Freud é o primeiro a chamar atenção para o fato de que
o conteúdo manifesto dos sonhos - aquilo que se lembra - não é o próprio sentido do sonho, carecendo, portanto, de decifração. O conteúdo manifesto expressa, de forma condensada e cifrada, um infindável conjunto de pensamentos que se relacionam entre si por elos associativos. A este conjunto de pensamentos mais ou menos inconscientes que produzimos ao longo do dia, sem que percebamos muito bem, e que aparece de forma condensada no conteúdo manifesto, Freud chamou conteúdo latente ou pensamentos do sonho.
Tomemos um exemplo de um sonho meu:
Estou com o meu marido em um auditório em que se
apresentam cantores. A maestrina também está lá, só que na platéia. O espetáculo termina e alguns destes cantores tentam cantarolar canções que eles não sabem muito bem a letra. Na platéia, eu arrisco a cantar algumas partes e as pessoas me escutam. Fico tímida e paro, pois minha voz não soa bem. (Esta parte do sonho diz respeito ao fato de que o retorno do meu coral está próximo e eu tenho dúvida se voltarei ou não. Expressa também dúvidas acerca de eu ser boa cantora ou não)
A interação continua. Há comida (umas comidas
"gordas" tipo feijão tropeiro, calabresa… (Aqui há referência às comidas servidas em meu casamento, sobre o qual eu comentava ainda esta semana com uma amiga sobre a minha simplicidade de gostos) e o meu marido come e conversa animadamente com as pessoas, ao contrário de mim que fico mais acanhada. (aqui reflito sobre a minha timidez social em comparação com o meu marido, muito mais expansivo nestas ocasiões que eu)
Vamos embora e pegamos um ônibus (tipo um trólebus
altos e abertos daqueles que existem no Rio de Janeiro). Eu já estou lá em cima e o meu marido sobe nele já em movimento. Uma menina grita que o trólebus está sem motorista, mas eu não levo muito a sério porque ele não parece sem direção. (Aqui o sonho faz referência à vontade que tenho sentido de envelhecer na praia e à projetos de vida que parecem sem direção, mas não são)
Sinto uma dor abdominal muito grande parecida com
cólicas menstruais. Descemos e eu caminho em direção à uma farmácia para comprar remédios. Peço buscopan composto. (Aqui as cólicas menstruais que eu de fato experimentei de madrugada, mas que não me fizeram acordar, invadem o meu sonho. Possivelmente pensei dormindo que precisava acordar para tomar um remédio mas o desejo de dormir foi maior por isso o tomei em sonho, sem precisar acordar)
Para pagar, dou uma nota de cinquenta reais que a
atendente diz valer duzentos, por isso me devolve mais troco do que a própria nota valia. Eu estranho e chamo a atenção dela para isso e ela corrige o problema. (Nesta parte há uma reflexão acerca do aumento dos meus honorários, sobre o quanto de dinheiro precisamos para viver e sobre o quanto vale uma sessão de análise).
Se fosse continuar a análise do meu sonho, preencheria
páginas e páginas com pensamentos, reflexões, preocupações quotidianas, dúvidas, etc. que estão representadas neste sonho. Em última instância, nunca se pode ter a certeza de ter chegado a todos os pensamentos contidos num sonho. Freud propõe que a interpretação do sonho deve se dar parte por parte, onde “cada caractere tem que ser individualmente transposto para a linguagem dos pensamentos do sonho”. É incorreto em termos metodológicos tentar entender o sentido global do sonho, como se ele transmitisse uma mensagem obscura ou oculta única. Ao contrário, o sonho é um condensado de muitas ideias. O sonho é uma produção muito engenhosa e sofisticada da mente que revela sua vocação de “fábrica incessante de pensamentos”. Pensamentos, preocupações, anseios, dúvidas, conflitos, críticas, desejos; tudo o que povoa nossa cabeça ao longo do dia é agrupado e condensado de forma criativa e engenhosa num sonho. É errôneo considerar que sonhamos à noite o sonho completo e o condensamos logo ao acordar, embora por vezes tenhamos a sensação de termos sonhado muito mais do que lembramos. Na verdade, o sonho já nasce condensado, fruto de um trabalho psíquico muito engenhoso que o ego faz enquanto dorme e que Freud chama de trabalho onírico. Esta é a prova de que a função da censura que divide o Consciente do Inconsciente continua operando enquanto dormimos, sendo ela a responsável pelo trabalho onírico que condensa os pensamentos do sonho no sonho que lembramos. A enorme capacidade da mente em associar pensamentos, tirar conclusões e levantar problemas de forma rápida e sem qualquer consciência de se estar fazendo isso - conforme Freud descobriu nos pensamentos do sonho - levou-o à concluir que os pensamentos inconscientes são regidos por uma lógica própria, estranha à lógica da racionalidade. Por exemplo, no sonho da monografia de botânica, o Inconsciente de Freud representa o pensamento O que eu estou estudando e desenvolvendo é algo muito específico e vai me matar de fome sonhando que ele escreve uma monografia sobre uma planta à qual pouquissima gente se interessaria. No sonho de seu paciente, “Um sonho encantador”, o Inconsciente do paciente representa os seios das mulheres pobres que servem aos homens ricos (a babá da infância e a prostituta da vida adulta) como uma estalagem. Por fim, a condensação nos sonhos também acontece com pessoas e palavras. É o exemplo em que Freud, logo ao acordar, pensou na palavra erzefilisch inserida na seguinte frase: Isso tem uma influência erzefilisch nas emoções sexuais. Analisando-a, percebeu que esta condensação verbal referia-se à conversa (erzählung) que teve no dia anterior com a governanta Erzieherin sobre a prostitutição, na qual pretendia ter uma influência educacional (erzieherisch) sobre ela, embora talvez só tenha conseguido deixá-la mais envenenada (erzefilisch) de desejo. Toda esta cadeia de pensamentos, portanto, esteve contida na frase condensada: Isso tem uma influência erzefilisch nas emoções sexuais.
Parte B - O Trabalho de Deslocamento
Analisando sonhos, Freud percebe que alguns
elementos de grande valor psíquico em termos dos pensamentos do sonho, no sonho manifesto, passam a ocupar um lugar irrisório ao passo que elementos banais, de pouco valor psíquico, ganham destaque, o que torna a interpretação de um sonho neste aspecto bastante complicada para um ingênuo. Trata-se de uma manobra, junto da condensação, produzida pela censura, que é a responsável por tornar irreconhecíveis os pensamentos do sonho e por disfarçá-los no sonho manifesto. Se nossos sonhos fossem claros e refletissem de forma exata o nosso interior, talvez não suportássemos nos olhar no espelho a cada manhã: Parece haver algo que se oculta nos sonhos, algo impuro, num sentido especial e superior, certa qualidade secreta em seu ser que é difícil de entender. Um sonho nunca poderia ser absurdo - pois o homem é sempre o mesmo, esteja ele acordado ou sonhando.
O fenômeno metapsicológico que explica o
deslocamento é a capacidade da energia psíquica de deslocar-se de pensamentos de grande valor psíquico para outras de pouco valor psíquico. A isso Freud deu o nome de deslocamento. É algo como, para despistar a atenção de um leitor para uma palavra importante, grifar-se no texto outra palavra irrelevante. No sonho de um de meus pacientes, cujos pensamentos versavam sobre as relações sexuais que manteve com meninas “fáceis” na adolescência e sobre a frieza sexual das meninas “pra casar” em relação a ele, o único elemento psíquico destacado no sonho foi uma mesa de bilhar, que, de fato, ele jogava quando jovem. O sonho era:
Eu e dois amigos estávamos festejando na
casa de um farmacêutico que trabalhava e habitava o mesmo prédio, divididos somente por um corredor. Não havia ninguém lá e o espaço estava meio em ruínas. Chegamos em frente a uma porta e eu digo aos meus amigos que não precisam descer lá porque eu já sabia o tinha. Era uma mesa de bilhar que ficava no subsolo apertado e escuro, e que eu via com clareza ultra nítida.
Na análise deste sonho, descobriu-se que meu paciente
“dividiu” com estes dois amigos uma menina em uma festa, sendo ele o primeiro a ir até o seu quarto e penetrá-la. Portanto, o sonho faz referência a este episódio. Parte C - Os meios de representação nos sonhos
Neste item Freud indaga como os sonhos representam
relações causais e outras conjunções (porque, se, como, embora, ou…ou) que usamos para expressar pensamentos. Um aspecto importante é que este trabalho intelectivo não é produzido pelo sonho, mas faz parte dos pensamentos do sonho, que o sonho manifesto tenta dar conta de exprimir em forma pictórica. No sonho acima, há uma situação desse tipo envolvendo a condicional se - Se os meus dois amigos não tivessem frequentado também a menina naquela noite, eu não precisaria ter meu desempenho sexual comparado com o deles. Freud diz que o sonho se vale de dois métodos para expressar relações causais (isso aconteceu por causa disso): um sonho segue-se a outro na sequência, sendo um principal e outro secundário. Em outro sonho do mesmo paciente, o pensamento causal Eu vou destruir meu casamento porque me masturbei muito na infância aparece na sequência de três sonhos, sendo os dois primeiros acessórios e o terceiro, o principal:
No primeiro sonho, os meus sogros estão
brigando. No segundo, eu faço sexo com três mulheres enquanto minha mulher assiste. E no terceiro, eu levanto um aviãozinho e me choco contra um fio elétrico enquanto o meu pai diz, lamentando, meu filho não ama mais o Corinthians.
No sonho de outro paciente o pensamento causal Eu
estou deixando de ser competitivo e narcisista e agora meu superego me cobrará por isso é expresso em dois sonhos em sequência: No primeiro sonho, meu colega advogado passa vestido de terno e gravata e não me olha porque estou de chinelo e camiseta velha, mas eu não me importo. No segundo, estou com minha filha na piscina e cobro dela um ótimo desempenho. Sou tão exigente para que ela nade bem que nem percebo que ela bateu a cabeça e está se afogando.
Outra forma dos sonhos expressarem relações
causais é, no sonho, uma pessoa ou coisa se transformar em outra pessoa ou coisa bem diante dos nossos olhos.
Continuação - 28/01/2022
O sonho não consegue representar pictoricamente
pensamentos de sonho que expressem contradição ou negativa (“ele é amável e feroz ao mesmo tempo”, “ela não devia ter morrido”, etc.) Além disso, nas imagens oníricas do sonho quase sempre uma coisa e seu exato oposto estão representadas numa mesma imagem. Exemplo: no sonho da paciente de Freud, as flores que ela carregava nas mãos representavam tanto sua inocência sexual, numa camada mais superficial, quanto sua “sujeira sexual” numa camada mais profunda. Nestes casos, deve-se admitir que as duas assertivas são verdadeiras do ponto de vista do sonhador: ela se sentia pudica e suja ao mesmo tempo. Relações de semelhança (“fulano é como sicrano”, “isso aconteceu tal como aquilo”) são particularmente fáceis de serem representadas nos sonhos. Isso se deve ao fato de a base da condensação é a semelhança de características entre uma coisa e outra (todo elemento condensado num sonho tem alguma semelhança entre si). Exemplo: quando se condensa duas pessoas num sonho, isso significa que ambas têm algum ponto de semelhança ou de contato entre si. Isso ocorre de duas formas: ou uma pessoa aparece no sonho representando outra pessoa (identificação), que está encoberta. É o exemplo do sonho de Freud em que a paciente Irma representava sua outra paciente, a quem ele preferiria atender. Neste caso, a identificação se deu entre as duas figuras pelo aspecto de que Freud colocou Irma numa posição (“abria docilmente a boca para ser examinada”) que correspondia na realidade à conduta da outra paciente, mais dócil, com quem Freud a comparava. O outro método é a composição. Neste caso, compõe-se uma terceira pessoa no sonho que contém aspectos ou atributos, não comuns, às duas pessoas que estão representadas nela. Esta composição pode ser mais ou menos bem-sucedida. A meta da composição é esconder a comparação que o sonhador faz entre estas duas pessoas, apontando para algum elemento comum (normalmente desagradável) entre elas. Exemplo: sonho com uma figura composta que contém atributos de meu filho e de minha mãe para expressar o pensamento de que “filho é igual à minha mãe” neste ou naquele aspecto. Ou então “queria que meu filho fosse igual a minha mãe”, neste ou naquele aspecto. Todo sonho versa sobre o sonhador. Os sonhos são massas de estruturas compostas. Algumas exceções à premissa de que sonhos não podem representar contradições, desejo pelo contrário e negativas são: Já viu-se acima que sonhos podem representar, por identificação, o desejo de que “fulano fosse o contrário de sicrano”, por exemplo. Outro caso é o pensamento “isso devia ser exatamente o inverso do que é”, que também pode ser representado nos sonhos. Exemplo: no sonho do paciente de Freud sobre Safo, a representação de que ele estava embaixo e o irmão estava em cima, significava “ora, é exatamente o contrário, já que eu progredi e meu irmão não”. Assim como no sonho de Freud em que Goethe faz um ataque ao escritor medíocre, que significou: “sim, vocês tratam Goethe como um lunático mas é exatamente o contrário. Vocês é que são uns débeis mentais”. Assim, nos sonhos, virar as coisas ao contrário ou dar às costas a algo ou ainda uma coisa se transformar na outra pode significar: “isso é exatamente o contrário” ou “ah, se isso pudesse ter acontecido ao contrário”. A inversão de elementos nos sonhos serve muito bem à censura. Assim, uma dica técnica quando um sonho parece muito obscuro é trocar alguns de seus elementos pelo inverso. Exemplo: no sonho do paciente obsessivo de Freud em que seu pai o repreendia por voltar para casa tão tarde, houve duas inversões, pois era ele que, em criança repreendia o pai por voltar para casa (as posições dele e do pai foram invertidas no sonho). E a repreensão que ele fazia era por ele voltar cedo demais (cedo demais, no sonho, é invertido para tarde demais) Há sonhos nítidos, de grande intensidade sensorial, e outros vagos.. Sonhos (ou partes do sonho) nítidas significam duas coisas: ali está envolvida uma realização alucinatória de desejo e elas constituem pontos de partida para numerosas cadeias de ideias (maior número de condensação). Não confundir a sensação de indeterminação de um sonho (primeiro caso) com um sonho confuso. Por vezes, um sonho claro pode representar o pensamento do sonho ligado a algo ser claro e transparente. Assim como um sonho confuso pode significar o pensamento de “que algo é mesmo confuso e incerto”. Ou seja, o modo como se sonha algo pode representar formalmente o próprio tema oculto do sonho (sonho claro = teoria clara, sonho confuso = algo não está muito bem explicado, etc). Os comentários sobre o sonho também (“aqui há uma lacuna”, “pedaço obscuro”, “interrupção”= vagina) Sonhos que ocorrem na mesma noite fazem parte do mesmo todo. Situações de movimento inibido nos sonhos revelam uma contradição entre a afirmativa e a negativa sobre algo anulando-se entre si (Sonho de Freud: “sim, eu era um homem honesto e podia ir embora”, “não, eu não era honesto, por isso não achava meu chapéu e não podia partir”). Sensação de paralisia e incapacidade de execução num sonho revelam um conflito entre vontades (vontade de fazer e não fazer, ficar e não ficar, etc.) A sensação da inibição da vontade se aproxima tanto da angústia nos sonhos porque, na angústia, trata-se de um desejo libidinal inibido pelo pré-consciente. Sonhos dentro do sonho ou sonhar com “isso é apenas um sonho” revela desejo de minimizar a importância do que está sendo sonhado.
Parte D - Consideração à representabilidade
Aqui Freud fala da capacidade dos sonhos em se
apropriarem de expressões linguageiras e imagens simbólicas socialmente compartilhadas para expressarem pensamentos oníricos disfarçados. É o exemplo do sonho da senhora em que a imagem do maestro na alta torre circundado por grades de ferro simbolizou manicômio (“Torre dos idiotas” ou “gaiola de loucos”) ou a imagem dela e da amiga sentadas na platéia (o nosso equivalente ficar sentado à ver navios) que significou ficar solteira. Freud chamou isso de tendência dos sonhos a representar em imagens (sobretudo visuais) pensamentos e ideias abstratas. Silberer traz vários exemplos desta transposição:
pensei em ter de revisar um trecho irregular num ensaio
transpôs-se na imagem vi-me aplainando um pedaço de madeira. Seria o nosso equivalente a quebrar a cabeça… A linguagem popular está repleta destas imagens simbólicas para descrever ideias, conflitos e situações:
água mole em pedra dura tanto bate até que fura
fazer das tripas coração
mover mundos e fundos
separar o joio do trigo
comer o fígado
etc.
Tais expressões são produções discursivas milenares
derivadas de ditos populares, lendas e mitos que vão passando de geração em geração. Os sonhos fazem uso deste modo de expressão simbólica arcaica, modo pelo qual o inconsciente se expressa. Do estudo destes símbolos, Freud conclui que alguns destes são universais. Remetem a um modo de pensar “arcaico”, tal como vê-se nas pinturas rupestres e no pensar infantil, sobre problemas ligados ao dimorfismo sexual, à relação sexual e à origem da vida. Assim, casas podem representar o corpo humano e suas aberturas (portas, janelas) os seus orifícios (olhos, boca, etc.) bem como o interior das cavernas representavam para o homem ancestral as deusas da fertilidade. Encanamentos podem representar o aparelho urinário, plantas, os órgãos sexuais femininos (pela visão infantil dos pêlos pubianos), comidas (carne crua, sangue, etc), temas sexuais ligados ao nascimento de bebês e à relação sexual, neste último, graças à associação entre a simbologia alimentar e a sexual própria ao estádio oral. Cobras, armas pontiagudas, pés, torres podem representar o órgão fálico, assim como lugares ocos, bolsinhas, caixinhas, etc, podem representar o órgão sexual feminino Uma de minhas pacientes representou sua mágoa por ter nascido mulher sonhando que estava calçada com pés minúsculos por um grande tênis all star. Vermes, pequenos peixes, etc, podem representar crianças. Assim uma paciente que fez um aborto há dez anos sonhou que atravessava um rio dentro de um barco sob o qual pulavam milhares de girinos que tentavam desestabilizá-la. Capacidade de condensação, deslocamento e tendência à representabilidade comporão as três características do Inconsciente.
Parte E - Representação por símbolos nos sonhos - outros
sonhos típicos
Existem símbolos nos sonhos que não dependem, para
serem interpretados, das associações do sonhador. O intérprete deve conhecer a priori seu significado cuja natureza e origem é genética. Isso significa dizer que estes símbolos foram constituídos em épocas pré-históricas por semelhança visual, sonora ou tátil entre o símbolo e a coisa representada. Exemplo: o falo ereto é comprido, longo e rijo como um tronco de árvore ou uma lança. Maçãs e pêras são arredondadas como os seios femininos O ventre é “oco” e guarda coisas, como uma bolsinha. O barulho de água escorrendo é semelhante ao barulho que ouvimos quando urinamos. A sensação tátil de uma criança tentando escalar as pernas dos pais é semelhante a escalar uma parede lisa… Por isso diz Freud: “a relação simbólica parece ser uma relíquia e um marco de identidade anterior”. Freud adverte: para interpretar sonhos, não se deve superestimar a interpretação simbólica em detrimento dos significados trazidos pelo próprio sonhador. As associações do próprio sonhador continuam a ser método principal, sendo a tradução simbólica pelo intérprete do sonho, um método auxiliar sem o qual, é verdade, muitas vezes não se consegue avançar. Por isso, sugere-se o conhecimento prévio de alguns destes simbolismo (compreendidos no contexto de cada sonho):
Rei, rainha (pessoas de grande autoridade) = pais do
sonhador Príncipe, princesa = o próprio sonhador Objetos alongados (varas, troncos, guarda-chuva, chaves, facas, punhais, lanças, lixas de unha, etc) = pênis
Em um analisando cujo sintoma era agonia fóbica de
lixar unhas revelou-se por trás o horror à masturbação.
(representando ele e o pai) invadiam um quarto para roubar jóias.
Subir e descer escadas, elevadores = relação sexual
Uma analisanda cuja infância tinha sido marcada
pelas investidas sexuais de seu irmão sonhou que estava em um elevador que subia e descia vertiginosamente deixando-a com náusea.
Mesas, tábuas, mesas postas para refeição: mulheres
(“serviço de cama e mesa”) Chapéus, gravatas = órgão sexual masculino Aparelhos e máquinas complicados = idem Paisagens, pontes, colinas cobertas de vegetação = corpo humano com seus órgãos genitais Crianças = órgãos genitais Calvície, corte de cabelos, queda dos dentes, decapitação = castração Símbolos comuns do pênis duplicado = triunfo ou rechaço à castração Caudas de animais que voltam a crescer = idem Vermes, animaizinhos = crianças pequenas / gravidez
Partes IX e X
O simbolismo está presente desde sempre nas crianças,
sendo uma herança filogenética da espécie. Também não é produto exclusivo da mente neurótica, estando também presente na mente das pessoas saudáveis. A única diferença entre ambas é que nos sonhos ingênuos das pessoas sadias o simbolismo é mais simples e mais compreensível, pois a ação da censura não é tão extensa e, portanto, a distorção onírica é bem menor. Já nos sonhos de pessoas neuróticas, o simbolismo é obscuro e difícil de interpretar por causa do enorme peso da censura, que gera maior distorção. Freud dá o exemplo da jovem saudável que sonha o seguinte na véspera do seu casamento:
Estou arrumando o centro de uma mesa com flores
para um aniversário.
E também o sonho do estadista Otto von Bismarck,
conhecido como “chanceler de ferro” sonhado em meio aos acirrados conflitos de 1863, que visavam a unificação dos estados germânicos por ele:
Cavalgava por uma estreita trilha alpina, com um
precipício à direita e rochas à esquerda. O caminho foi-se estreitando, de tal modo que o cavalo recusou-se a prosseguir e era impossível dar meia-volta ou desmontar, devido à falta de espaço. Então, com o chicote na mão esquerda, golpeei a rocha lisa e invoquei o nome de Deus. O chicote cresceu até atingir comprimento interminável, a muralha rochosa desmoronou como um um pedaço de cenário num palco e abriu-se um caminho largo com um vista das colinas e florestas, como uma paisagem da Boêmia. Havia tropas com estandartes e mesmo em meu sonho me veio imediatamente a ideia de que eu deveria relatar isso a Vossa Majestade. Acordei regozijado e fortalecido.
Parte XII
No “O sonho de um químico” Freud demonstra sua surpreendente
intuição clínica, o que é impressionante em um período ainda tão inicial de suas formulações teóricas. Trata-se de um sonho transferencial onde o sonhador faz considerações acerca do tratamento com Freud e de sua postura pouco colaborativa com ele. Por trás de sua resistência na análise, há a tentativa de manter-se aferrado à masturbação sem precisar se implicar em relações genitais mais amadurecidas (na análise e na vida amorosa). O que com alguma displicência o paciente associava com seu “modo azarão e incompetente” de ser.
Em seguida, Freud traz algumas comprovações científicas acerca
do simbolismo. Schrotter sugestionou uma mulher hipnotizada a sonhar com relações homossexuais com uma amiga e ela sonhou com uma bolsa surrada portando uma etiqueta com os dizeres “só para mulheres”. Betlheim e Hartmann contaram anedotas de cunho sexual à pacientes com a síndrome de Korsakoff e quando estas eram reproduzidas em estados confusionais, eram recontadas por meio de simbolismos já estudados (copular aparecia como subir e descer escadas, atirar e apunhalar, etc.)
Voltando aos sonhos típicos:
Perder trem ou exames: sonhos de consolação frente o medo da
morte (a expressão de angústia é convertida em consolo - “não se preocupe, você se livrou dessa, sua hora ainda não chegou”). Sonhos com estímulo dental (perder dentes, arrancar dentes, etc): desejos masturbatórios do período da puberdade. Isso se explica pelo fato de que o recalcamento sexual pode transpor excitações de uma parte inferior do corpo para outra superior. E também por serem símbolos que servem bem ao disfarce. Alguns exemplos da transferência de excitação sexual dos genitais para as partes superiores do corpo são: uma pessoa anorgástica que transferiu sua excitabilidade sexual genital para a região dos olhos, tornando-se excessivamente curiosa e voyeurista. Ou outra, também anorgástica, que transferiu tal excitabilidade para a boca tornando-se alcoolista, fumante ou obesa mórbida. Um histérico que tenha transferido sua excitabilidade genital para o rosto pode contorcê-lo e convulsioná-lo. É o que ocorre nos tiques, maneirismos e cacoetes. Bochechas podem simbolizar as nádegas, narizes, pênis e a boca, vaginas e ânus. Continuando… Flutuar, cair, nadar: revivescência do prazer da criança de ter sido balançada e jogada para o alto pelos adultos. Nos homens, pode simbolizar a ereção. Sonhar com fogo: revivescência de experiências uretrais (molhar a cama por ter estado muito excitado). Sonho com ouro, dinheiro: revivescência de experiências intestinais
Um analisando que tinha muito nojo de defecar
fora de casa quando criança e que por isso segurava as fezes até fazê-las nas calças, sonhou certa vez que estava mergulhando em uma grande montanha de ouro, da qual saía um cheiro horrível.
Lugares onde se sente que já esteve antes: órgãos genitais da
mãe Passar por lugares estreitos, sonhar que se mergulha na água, que se salva alguém: nascer, dar à luz. Ladrões, assaltantes: o pai que atrapalha as investidas sexuais da criança, leva-o para urinar à noite, retira-o da cama da mãe.
O fato de os sonhos apresentarem tanto conteúdo sexual
explica-se pelo fato de que nenhuma outra pulsão, exceto a sexual, é submetida desde a infância a tanta supressão.
Parte F - Alguns exemplos- cálculos e ditos nos sonhos
Freud retoma os três fatores - condensação, deslocamento e
representabilidade - que constituem a formação dos sonhos. O quarto fator diz respeito ao modo como os sonhos representam falas e ditos. Uma mulher representou a empregada que lhe atirou insultos como tendo atirado um chimpanzé em cima dela. Algo equivalente a chamar alguém de “macaco”. Outra representou a ideia abstrata acerca das impressões que marcam as crianças como “o filho tendo o crânio deformado”. Outro representou a ideia abstrata super-fluido através de um hotel de onde gotejava água pelas paredes do quarto. Outro ainda para representar a ideia de que o irmão deveria restringir-se ou conter-se sonhou com o irmão dentro de uma caixa. Ainda outro sonhou que o tio lhe dava um beijo do automóvel para representar suas tendências auto eróticas. Sonhar com a hora do dia pode representar a idade do sonhador: em um sonho, cinco e um quarto da manhã significava a idade de 5 anos e 3 meses, idade em que o irmão mais novo do paciente nasceu. Feras selvagens podem representar a libido, uma força temida pelo ego e combatida pelo recalque. Os números nos sonhos não tem caráter premonitório: o inconsciente não efetua cálculo algum. Ele simplesmente coloca sob a forma de cálculos números que já se acham presentes nos pensamentos oníricos. No sonho em que a paciente ia pagar alguma coisa e sua filha retira 3 florins e 65 kreuzers da bolsa da mãe, ao que ela a corrige, dizendo o custo era de apenas 21 kreuses, isso significou a reflexão da paciente acerca do fato de que ela poderia ficar com Freud mais 365 dias (3 florins e 65 kreuzers), ou seja, um ano, mas teria efetivamente que deixá-lo em 21 dias (21 kreuses). Ditos em sonhos representam coisas, de fato, ouvidas ou lidas pelo sonhador. No sonho em que o sonhador escuta: “Vou embora, não suporto ver isso” e alguém lhe pergunta se estava gostoso, tratava-se de um dito ouvido por ele pela senhora que o forçou a comer e depois perguntou se estava gostoso. Estudar mais detidamente o sonho non vixit.
Sonhos absurdos e a atividade intelectual nos sonhos
No sonho absurdo em que o sonhador sonhou que o pai sofrera
uma grave calamidade a expressão “este busto está uma calamidade” foi transferida para a figura real do pai no sonho. Daí a frase: papai sofrera uma grave calamidade significar “o busto do papai está uma verdadeira calamidade (ou tragédia)”. Em outro sonho absurdo cujo tema é a morte de parentes mortos, o sonho “papai estava vivo de novo e conversava em seu estilo usual, mas ele havia realmente morrido só que não o sabia” foi produzido mediante uma junção entre realidade e desejo parricida do próprio sonhador significando que o pai não sabia que o filho havia desejado sua própria morte. O caráter absurdo do sonho decorreu da oposição entre os pensamentos diurnos (queria papai vivo de novo) e os desejos inconscientes (quero que papai morra só que ele não sabe disso), decorrente da ambivalência natural com pessoas que amamos. Também pode revelar um desejo de indiferença para fugir da ambivalência. Um sonho se torna absurdo quando se tenta representar nele alguma ideia que se julga absurda: é absurdo eu amar e desejar a morte de meu pai…é absurdo como ficou o busto deste artista…é absurdo sentir orgulho dos ancestrais, etc. Ideias por trás das quais há um tom de crítica ou ridicularização. Sonha-se tantos sonhos absurdos com pais mortos porque o tipo de relação do filho com este favorece o estado de espírito do primeiro com o segundo: ao mesmo tempo de escárnio e desejo de ridicularizar e a afeição filial, que impede a expressão consciente de tais tendências hostis. A censura permite, dentre as coisas que são proibidas, dizer-se mais daquelas que são falsas do que das que são verdadeiras. É por isso que Freud permitiu-se ridicularizar seu pai em seu sonho, pois sua admiração verdadeira por ele sabia que aquilo que ele julgava ridículo no pai não era, de fato, verdadeiro, mas falso. A tese de que todo sonho versa sobre conflitos do próprio sonhador (e não de outrem) e, portanto, é auto referenciado, é reforçada no sonho absurdo em que Goethe bate num jovem, sonho em que Freud identifica-se ao amigo Fliess pelo fato de ambos serem “mal compreendidos em suas teorias”. Como se Freud estivesse dizendo: “sim, este mundo está mesmo de pernas para o ar. Um jovem tolo acha-se superior à Goethe e vocês, críticos, julgam-se superiores a nós - Fliess e eu. Freud chega a considerar que quanto mais insensatos os sonhos mais profundos, no sentido de uma carga alta de pensamentos condensados, eles são. Algo como os bobos da corte que diziam coisas importantes em frases aparentemente non sense ou sem sentido.
A faculdade intelectiva ou o juízo nos sonhos
O sonho não executa um trabalho intelectual. Dito de outro modo,
um “sonho não pensa”. Ele transpõe pensamentos e julgamentos que foram emitidos na vida de vigília para ele. No sonho em que a paciente recusava-se a contá-lo por não “ser suficientemente claro” e não ter certeza sobre se quem aparecia era seu marido ou seu pai isso significava a tentativa de representar uma história que ouvira sobre uma moça que teve um filho e não sabia com clareza quem era o pai. A incerteza sobre a paternidade da criança na história foi representada pela sonhadora como o “o sonho não sendo suficientemente claro”. Assim também acordar com um sentimento de satisfação acerca do sonho significa o mesmo a expressão, no sonho, de algo que foi vivido como satisfatório na vida de vigília. O sonho faz uma composição, uma colagem destes elementos da vida de vigília: “o sonho é um conglomerado que, para fins de investigação, deve ser novamente decomposto em fragmentos”. A força psíquica que cria esta composição ou concatenação aparente nos sonhos Freud chamou de elaboração secundária, sendo ela o quarto elemento que compõe os sonhos além do deslocamento, condensação e tendência à representatibilidade. No sonho em que um sentimento de estranheza aparece, Freud explica que isso se deve ao fato de que, no sonhos, as representações podem ser convertidas em seu oposto - medo da morte por desejo de ser enterrado numa sepultura etrusca - mas o afeto angustioso não sofre transformação. Daí o sentimento de estranheza que acompanha o sonho. Freud retomará estas ideias em seu texto “O estranho” ou “O inquietante”.
Item H - Os afetos nos sonhos
Freud faz algumas considerações teóricas importantes sobre os
afetos. Sempre que ele aparece em um sonho, deve ter sido experimentado na vida de vigília, mesmo que neste possa ter sido deslocado para outra representação. Exemplo, no sonho com ladrões o afeto de temor é real e deve ter sido experimentado com relação a outra coisa, que não ladrões. Daí o ladrão ser uma representação que recebeu o afeto deslocado. Isso ocorre porque, segundo Freud, afetos não podem ser conhecidos, a menos que estejam vinculados a algum grupo de representações ou ideias. Tenho medo… este afeto “puro” precisa ligar-se a alguma representação (medo de ladrão, medo de morrer, medo de ficar pobre, tenho medo de barata, etc.) para ser conhecido psiquicamente. Nos sonhos, portanto, os afetos permanecem inalterados, enquanto as representações que se ligam a eles são deslocadas e substituídas. Portanto, é o afeto e não a representação que deve iniciar a análise. Um homem obsessivo pode achar banal seu temor de permanecer em filas pois o que ele não sabe que a representação, ou seja, o motivo real de seu temor é que está deslocado. Um analisando que teve uma crise de ansiedade na fila do correio descobriu que o que a evocou foi sua fantasia inconsciente de estar desfazendo-se do próprio pênis, simbolizado pelo tênis (pênis-tênis) que ele estava despachando, por ter sido comprado errado. Aprofundando a análise, descobriu-se ainda que temia o olhar julgador das pessoas na fila que poderiam vir a descobrir que seu pênis era flácido e impotente porque algumas vezes ele se vestia de mulher. Nos sonhos, o afeto pode aparecer ligado a algum conjunto de representações que tem ligação indireta com as representações originais (ex., sonho do leão) ou pode surgir totalmente desligado das representações originais, sendo inserido num outro conjunto de temas, a partir do qual se constrói uma narrativa bem amarrada. É o exemplo do navio de guerra em que o medo da própria morte de Freud (na figura do governador) é deslocado para o medo do navio de guerra. Outro aspecto é que os sonhos são mais pobres de afeto do que o material que o gerou (o afeto). Outra forma de dizer isso é: todo afeto é encontrado nos pensamentos oníricos, mas nem todos os pensamentos oníricos expressam seus afetos nos sonhos. O trabalho do sonho tende a realizar uma supressão dos afetos, transformando-os em um estado de leve indiferença (ex. sonho da botânica). Isso faz lembrar a paz que desce em um campo de batalhas cheio de cadáveres. Não resta nenhum traço da luta que ali se travou. Isso ocorre por dois motivos: primeiro, pelo trabalho da censura; segundo pela inibição que as antíteses, próprias dos pensamentos oníricos, exercem umas sobre as outras. Exemplo: no sonho dos excrementos pensamentos antitéticos ligados ao delírio de inferioridade e superioridade (sou maravilhoso, sou um merda) equilibram-se e anulam-se mutuamente dando ao sonho um teor afetivo de indiferença. Importante: um conteúdo afetivo realmente aflitivo não consegue ser representado num sonho, exceto se estiver à serviço de algum tipo de realização de desejo. O trabalho do sonho também pode transformar um afeto no seu oposto, para comparecer no sonho (ex. sonho do cavalheiro) Na vida social, a supressão e a inversão do afeto também acontecem. Sonhos hipócritas São sonhos que parecem contrariar a teoria do sonho como realização de desejo na medida em que o sonhador sonha à noite estar retornando a alguma fase anterior de sua vida onde não estava tão bem, enquanto na vida de vigília sente-se realizado e feliz com sua vida atual. Eles se explicam pela necessidade do sonhador se punir, graças aos impulsos masoquistas da mente, sendo, portanto, também sonhos de realização de desejos, só que desejos de destruição. São chamados também de sonhos de punição. Outro elemento motivador deste tipo de sonho é o desejo do sonhador de poder voltar no tempo e, portanto, voltar a ser jovem de novo. Freud utiliza exemplos do cotidiano para explicar o deslocamento das cargas afetivas no ser humano. Por exemplo, uma pessoa pode sentir-se satisfeita quando algo ruim ocorre com a pessoa que ela odeia, causada por sua própria má ação. Antes, ela não podia expressar seu ódio, mas agora que algo ruim aconteceu à pessoa odiada, ainda mais por sua própria culpa, ela tem “autorização” para expressar sua carga anterior de ódio, antes suprimida. Obviamente, ela é injusta ao agir assim, mas fica incapaz de perceber isso porque a carga de ódio antes suprimida encontrou forma “autorizada” de vazão. Este é um exemplo de que o id (fonte do ódio recalcado) e o ego/superego (instância moral) podem às vezes trabalhar em conjunto, para dar vazão ao impulso recalcado.
Encontro do dia 18/03/2022
Freud explica a tendência dos psiconeuróticos a experimentarem
afetos em quantidades excessivas pelo mesmo princípio do deslocamento das cargas afetivas. Diz ele que, como determinados afetos foram recalcados (isso contradiz sua visão já exposta anteriormente de que afetos não são passíveis de sofrer recalque, mas só representações), na medida em que existe a possibilidade de outros afetos serem expressos livremente (como no exemplo dado semana passada), os afetos recalcados “pegam carona” e finalmente podem ser descarregados. Daí sua ideia de que a descarga de um afeto no sonho pode estar à serviço de descarregar outros afetos, inconscientes e recalcados que se fossem expressos sem o disfarce dos outros só despertariam angústia e desprazer. É o que se vê no sonho Non Vixit. Nele, o afeto recalcado de satisfação e triunfo expresso no sonho acerca de que era bem-feito Fliess morrer por ter acusado Freud de ser língua frouxa foi excitada por outro conflito, muito anterior, que Freud viveu com seu sobrinho, com que também competia e disputava. O que significa dizer que, através do conflito atual com Fliess, o afeto de competição mais antigo, vivido na infância com o sobrinho, pôde novamente se expressar. Então, a interpretação do sonho ficaria mais ou menos assim: não tem problema que Fliess morra; eu também já fui desprezado pelo meu amigo e rival na infância e sobrevivi a ele. Arranjarei outro amigo para mim! Freud indaga como a censura deixou passar sentimentos tão egoístas que, vistos sem disfarce, despertariam só desprazer e mal-estar. E explica que isso foi possível porque outras cadeias de afetos e ideias, inobjetável, também estavam ligadas a estas mesmas pessoas, encobrindo o afeto original. Trata-se do pesar e da afeição por elas. Desta forma, todo sonho encontra seu motivador na satisfação de impulsos recalcados que se valem de outros para satisfazer-se. Daí que quanto mais aflitivo um sonho mais certo será que impulsos recalcados estão aproveitando para satisfazer-se. Como se o inconsciente dissesse: bom, já que o conteúdo onírico do sonho vai deixá-lo aflito mesmo (digamos que o originador atual do sonho seja a auto acusação por uma dívida não paga), vamos aproveitar que ele já vai estar aflito ou culpado mesmo para satisfazer nossos impulsos recalcados que, de todo modo, o deixariam assim também.
Parte I - Elaboração secundária
Aqui Freud propõe que o pensamento normal de vigília continua
atuante durante o sono, interferindo e modelando os sonhos manifestos (aquilo que lembramos logo ao acordar) Esta é uma observação extraordinária, pois demonstra o quão forte é este tipo de pensamento, cuja característica é buscar explicações e dar um sentido lógico a tudo. É esta modelação do sonho de acordo com padrões aceitáveis de racionalidade ao pensamento normal de vigília que Freud chama de elaboração secundária. Na vida de vigília ela corresponde ao que se conhece por racionalidade ou pensamento que prioriza a lógica em detrimento da verdade. É o exemplo dos parlamentares que ouvindo uma bomba ser solta no parlamento por um anarquista explicaram-na dizendo que isso era um costume do tribunal: soltar fogos após um bom discurso ser proferido. Isso remete ao caráter falseador e errôneo que pode significar o raciocínio linear de causa e efeito. Isso aconteceu por causa daquilo… pode tão somente querer dizer Isso aconteceu depois daquilo. Nos sonhos, Freud exemplifica a ação deste pensamento normal de vigília no pensamento “isso é apenas um sonho” que se pode ter ainda dormindo. Neste pensamento normal de vigília trabalha uma instância censora que Freud chamará aqui genericamente de A Consciência, e que futuramente dará origem ao Ego/Superego. Instância que não suporta o que não se entende e o que foge ao universo da lógica cartesiana. Frequentemente os sonhos e as produções simbólicas culturais usarão como material as fantasias inconscientes, que são uma continuação do devaneio e do sonho diurno, para driblar tal censura. Um exemplo disso são os contos de fadas. Assim, uma adolescente pode sonhar acordada em se casar com o Justin Bieber, o que é perfeitamente aceitável, quando, na verdade, estará dando vazão à poderosos impulsos sexuais que podem ter como objeto incestuoso um primo ou irmão. Voltando, a conclusão de Freud se encaminha para perceber que a ação da instância censora nos sonhos é muito mais profunda do que ele imaginava. Não se trata só dela remodelá-lo, mas de que, desde o início, ela atua impondo condições que o sonho precisa satisfazer para efetivar-se. Isso leva ao descrédito da veracidade dos nossos pensamentos normais, pois ele está mais preocupado em preencher lacunas e em criar explicações inverossímeis de coisas que ele não entende. Freud chocará, portanto, ao dizer que as partes mais claras como as mais nítidas de nossos pensamentos e sonhos tenderão a ser as mais falseadas. Finalizando, concluirá o capítulo afirmando que a atividade anímica do homem que sonha é constituída de dois componentes: 1) dos pensamentos oníricos, que são processos de pensamentos que produzimos durante o dia e que não chegam a ser conscientes. E que é muito diferente do pensamento normal de vigília. 2) do trabalho de elaboração secundária que transforma tais pensamentos oníricos no conteúdo do sonho. Daí serem os sonhos uma porta de acesso para se conhecer o inconsciente.
Capítulo VII - A psicologia dos processos oníricos
O sonho que abre o capítulo interessa à Freud pelo aspecto de
ser um sonho translúcido e claro, ou seja, sem nenhum tipo de disfarce, embora ainda assim preserve as características essenciais de um sonho, que o diferenciam da vida de vigília, a saber, ser uma realização de desejo (ver o filho vivo novamente) e servir para deixar o sonhador continuar dormir (ele “acode” o filho do fogo sem precisar levantar-se). Freud intui que existem processos anímicos próprios que levam à produção dos sonhos à noite, e que estudando tais processos (anímicos) poderá compreender melhor a alma oculta do homem. Esta é a grande inovação da psicanálise, algo que nunca tinha sido feito antes. Partindo dos sonhos, buscará investigar a estrutura do aparelho anímico e o jogo de forças que o compõem.
Parte A - O esquecimento dos sonhos
Aquilo em que os autores precedentes consideravam ser inexato,
falseado e incorreto da lembrança dos sonhos, inviabilizando-o como objeto de estudo da alma humana, Freud verá um sentido a ser descoberto. Isso porque, ao contrário destes autores, Freud considera que nenhuma alteração, troca, esquecimento e confusão na forma de se narrar um sonho é arbitrária, ou seja, sem sentido. Esta premissa inerente ao pensamento psicanalítico Freud chamará determinismo psíquico que pode ser traduzido por: tudo o que ocorre num lapso, num erro, num esquecimento, numa troca, numa falha tem um sentido, embora este sentido esteja inconsciente para a própria pessoa. Freud aplicará esta premissa aos sonhos e não aceitará a ideia de serem os sonhos imprestáveis para serem compreendidos por serem confusos, incompletos ou estranhos. Dirá, ao contrário, que este tratamento desdenhoso e duvidoso do intelecto com os sonhos é produto da resistência, conceito que utilizará cada vez mais e que significa tudo aquilo que opõe à trazer o recalcado de à consciência e que, portanto, paralisa o trabalho analítico. Tal resistência se expressa em atitudes de desprezo, descrença e demérito com os sonhos e outros produtos anímicos quando em outra postura, não resistente, poderia se dizer: não sei ao certo o que isso significa, mas eis o que me ocorre a respeito… Da mesma forma, superestima-se o quanto o sonho foi esquecido e está aos pedaços, não servindo à análise, também em prol da resistência. Freud dá uma prova da resistência interna à interpretação dos sonhos ao dizer que sonhos que havia tido há dois ou três anos foram facilmente interpretados por ele depois de se passarem alguns anos, algo como dizer que tudo aquilo de que tomamos uma certa distância no tempo e não nos mobiliza mais afetivamente pode ser melhor compreendido. Para ele, é muito difícil captarmos nossas próprias representações involuntárias, o que requer abster-se de qualquer crítica e aversão afetiva ou intelectual. Exemplo: abordar intelectualmente determinados assuntos, digamos o desejo de matar ou o estupro, pode me despertar ira, revolta e mal-estar e por isso rapidamente eu me evado de refletir livremente sobre ele. A dica de Freud para vencer tais resistências: persistir na reflexão e não se preocupar em chegar a algum lugar com isso. Nem todo sonho pode ser interpretado e nenhum sonho pode ser interpretado até o final, pois cada sonho tem o seu “umbigo”.
Relação dinâmica entre o sono, os sonhos e as resistências
O sonho só é possível de existir porque, no estado de sono, as
resistências arrefecem um pouco (não totalmente), o que, caso não acontecesse, tornaria impossível o sonhar. Nesse aspecto, pode-se dizer que o sonho é um produto do estado que o psiquismo adota durante o sono.
Item B - Regressão
Freud busca explicar em termos da psicologia dos processos
oníricos porque, nos sonhos, um pensamento onírico carregado de desejo é vivenciado sensorialmente, como se realmente estivesse ocorrendo. No exemplo do sonho da criança queimando, o desejo do pai de ter o filho vivo novamente, faz com que ele, de fato, o veja. Ou quando estamos com muita vontade de ir à praia e sonhamos à noite estarmos de fato lá. Isso não ocorre com os devaneios. Devaneamos, mas sabemos que aquilo não é real. Equivale a este aspecto vívido dos sonhos, as alucinações dos doentes e as “visões” dos normais. Para explicar isso, Freud lança mão de um modelo do aparelho psíquico formado por três instâncias (algo que ele retoma do Projeto) ou sistemas que mantêm uma relação temporal entre elas, umas vindo depois das outras. Neste modelo, o caráter alucinatório dos sonhos explica-se pelo fato de que, dormindo a extremidade motora fica paralisada, fazendo com que o sistema “rode” no sentido regressivo (sentido Motor - Pcpt). Sentido contrário ao quando progressivo, de quando se está acordado. Assim, a energia psíquica correndo em sentido oposto ativa o sistema Pcpt-Mnêmico, fazendo com que os registros mnêmicos armazenados no Incs sejam experimentados sensorialmente ou alucinatoriamente. Resumindo, dormindo, as catexias que durante o dia estavam investidas na consciência e no estado de vigília se tornam “mais frouxas e livres”. Isso, somado ao fato de que a extremidade motora está paralisada quando dormimos, é o que faz as catexias correrem em sentido regressivo, provocando os sonhos alucinatórios. Na vida de vigília, é o estado regressivo das catexias que explica as alucinações dos doentes e “visões” das pessoas normais. Nestes casos, são as representações recalcadas e, portanto, inconscientes que são alucinadas ou vistas. São as representações inconscientes as únicas que podem expressar-se regressivamente, ou seja, por alucinações e visões. Freud exemplifica isso com um menino que tinha visões de rostos verdes e olhos vermelhos, de onde se descobriu que a mãe, tentando-o fazê-lo parar de se masturbar, ameaçou-o dizendo que ele iria ficar como o colega mal comportado: com olhos vermelhos e cara verde. Além do que ia, ficaria burro e morreria cedo. Neste caso, a lembrança recalcada foi a da ameaça da mãe contra a masturbação que ele alucinou vendo os rostos. Isso leva Freud a considerar que as lembranças infantis, de alto teor sensorial, forçam entrada na consciência por meio dos sonhos e das alucinações. O que mostra como nunca, de fato, as deixamos para trás, tão fortemente nos marcaram. Como não podemos revivê-las, contentamo-nos a revivê-las nos sonhos. Conclusão, o efeito regressivo sobre as representações explicam-se por duas vias, que se somam entre si: primeiro, a resistência impedindo-as de chegar à consciência e segundo, a atração de tudo o que foi vivido sensorialmente exerce sobre nós.
Item C- Realização de desejos
Neste item Freud procura comprovar sua hipótese de que são as
moções carregadas de desejo do inconsciente os verdadeiros instigadores dos sonhos. Para prová-lo introduz a importante teoria das instâncias psíquicas dizendo que, ao dormir, as catexias do sistema Pcs aquiescem, propiciando precisamente o desligamento destas catexias do mundo externo, deixando a passagem livre para as excitações provenientes do sistema Ics. Freud não nega que os restos diurnos continuam operando enquanto se dorme, já que serão precisamente que serão “usados” pelo sistema Ics para se expressar. Exemplo, no sonho em que o resto diurno centrado na preocupação de Freud acerca de seu amigo Otto estar doente, o Incs se apoderou desta preocupação para expressar o desejo ambicioso de Freud em ocupar um lugar de destaque. Sonhos aflitivos não derrubam a teoria de que sonhos realizam desejos oriundos do inconsciente. Eles só demonstram o abismo existente entre o Inc e o Pcs ou o ego do sonhador. O estado aflitivo no sonho significa a aflição e angústia que o contato com aquele desejo inconsciente desperta no ego do sonhador. A diferença entre estes sonhos aflitivos e os sonhos de punição é que nos primeiros o desejo realizado no mesmo pertence ao recalcado, ao passo que no segundo a necessidade de punição deriva do ego. Daí Freud sugerir que a melhor oposição não seja entre consciente e inconsciente mas entre ego e recalcado. No caso dos sonhos de punição, o conteúdo do sonho não costuma ser aflitivo, mas sim de natureza satisfatória demonstrando exatamente o conflito do sujeito entre a realização e o sentimento de culpa. Um paciente que deixou para trás sua origem pobre tornando-se muito bem sucedido sonha frequentemente que tem que sair do país em que vive e voltar à escola de sua cidadezinha, pois repetiu de ano, sendo este um típico sonho de punição. Já o sonho de Freud com o acidente de seu filho é um exemplo de sonho em que restos diurnos aflitivos são usados para satisfazer, de modo disfarçado, algum desejo inconsciente recalcado, como vinha se explicando antes. Neste caso, trata-se do desejo de Freud de se vingar do filho porque, ele, Freud estava ficando velho, e vinha sentindo inveja da juventude do mesmo. A conclusão de Freud acerca da relação entre os restos diurnos e os desejos inconscientes para o sonho será a seguinte: as preocupações diurnas que sozinhas não poderiam gerar um sonho “emprestam” ou “apoderam-se” da força e intensidade das moções inconscientes para poderem gerar o sonho. Trata-se de uma relação de mútuo benefício. O resto diurno é o empresário, aquele que dá a ideia e as moções inconscientes são o capitalista, aquele de quem se empresta recurso ou energia. A dependência do Incs de um suporte material para se expressar revela algo de sua natureza, a saber, que ele não é capaz de ganhar acesso ao sistema Pcs se não estiver vinculado a representações. É como o espírito que precisa do médium para se materializar. Este é o sentido da transferência: o Incs transfere suas intensidades para alguma representação pré-consciente indiferente e banal, usando-a como “laranja”:
Os restos diurnos tomam emprestado
do inconsciente a força pulsional que está à disposição do desejo recalcado e oferecem, por outro lado, ao inconsciente algo indispensável, ou seja, o ponto de ligação necessário para uma transferência.
Destas conclusões Freud chega a compreender melhor o que
chama de moções carregadas de desejo. Trata-se das altas demandas excitatórias internas que buscam se satisfazer com objetos da realidade. O exemplo mais paradigmático é o bebê com fome procurando o peito. Encontra-se aqui, por outra via, o conceito de regressão estudado na semana passada. Se o bebê não é capaz de suportar a frustração e alucina o seio, isso significa o mesmo que o sonhar do adulto, ambas as situações representando uma situação em que o aparelho funciona em estado x, ou seja, da necessidade à alucinação do objeto que irá satisfazê-la. Será o sistema Pcs quem irá ser capaz de ir colocando freios neste modo de funcionamento primário que inclui conter a regressão alucinatória e buscar o objeto real na realidade. Os sonhos são o sinal de que este modo de funcionamento primário, que regeu nosso psiquismo nos primórdios, mantém-se operante, sendo isso o próprio Inconsciente (“O sonho é o ressurgimento da vida anímica infantil já suplantada”). Vemo-lo em funcionamento enquanto dormimos (dele decorre a produção dos sonhos) e nas psicoses, quando este modo de funcionamento primário assume o comando da motilidade, da volição e das ações. Outro exemplo de seu funcionamento operando são as transferências, feitas pelos psiconeuróticos. Daí ser a censura entre o Incs e o Pcs uma guardiã necessária à nossa saúde mental. A relação entre a censura do Pcs e os desejos do Incs se passam de modos diferentes nos sonhos e nos sintomas psiconeuróticos. Nos primeiros, o Pcs está concentrado no desejo de dormir; nos segundos, expressam-se na sobredeterminação do sintoma, de um lado realização de desejo (pela via do Inc), de outro, punição pelo desejo realizado (pela via do Pcs). Portanto, pelo estudo pormenorizado dos sonhos Freud chegou à elaboração de um modelo teórico explicativo bastante complexo do funcionamento psíquico baseado na relação dinâmica entre duas instâncias: o Inc e o Pcs.
Parte D - O despertar pelos sonhos - a função dos sonhos -
sonho de angústia
Neste item Freud aprofunda sua explicação de como a
transferência de catexias dos desejos inconscientes para os restos diurnos do Pcs produz as imagens oníricas dos sonhos. O mecanismo é o mesmo que ocorre com a formação dos sintomas, quando as catexias do inconsciente transferem-se para conteúdos pré-conscientes formando delírios ou ideias obsessivas. Com a diferença que aqui pelo fato do sujeito estar acordado, a regressão não chegou até o sistema perceptual produzindo imagens, como ocorre nos sonhos. O mesmo ocorre nas alucinações. Aprofunda seu entendimento do sistema Cs-Pcs dizendo que duas são as situações que excitam a consciência: as qualidades internas perceptuais de prazer-desprazer e, num nível mais fino de desenvolvimento, as qualidades que se ligam aos signos linguísticos, a saber, os processos de pensamento. Este é outro motivo pelo qual, quando dormimos, o sistema Cs-Pcs só será ativado pela via perceptual, pois as catexias ligadas aos pensamentos perdem interesse. Caso contrário, impediriam o dormir. Assim, o sono produz três estágios para a produção de sonhos: o primeiro, progressivo, quando as catexias do inconsciente apoderam-se ou transferem suas catexias para ideias pré-conscientes. Esta etapa da produção de um sonho começa já durante o dia e pode durar vários dias até vir a produzir um sonho; o segundo, regressivo, que faz esta energia retornar por encontrar as portas da motilidade fechadas, produzindo as imagens dos sonhos; e o terceiro, progressivo novamente quando tais imagens excitam o sistema Cs-Pcs fazendo o estado de vigília se aperceber do sonho e tomar consciência dele. As duas últimas partes acontecem quando se está dormindo. Quando o estado de vigília tomará consciência dele é algo variável e depende das intensidades psíquicas envolvidas em cada sonho. Como a maioria dos sonhos trabalha com intensidades psíquicas baixas, a consciência de vigília quase sempre se apercebe deles somente logo antes de acordar. Ou pode ocorrer também que a consciência de vigília se aperceba deles e continue dormindo. Quando esta intensidade é muito grande, mesmo em sono profundo, a pessoa acorda. Estes casos são os que mais chamam a atenção de Freud porque neles o desejo imperioso do Pcs de dormir é ferido por uma intensidade muito grande vinda do Incs. Na maioria das vezes, sonhar é compatível com dormir, assim como realizar tarefas noturnas como amamentar e voltar rapidamente a dormir também o são. A situação das intensidades psíquicas vindas do Incs (desejos inconscientes) serem fortes o suficiente para prejudicarem o desejo imperioso do Pcs de dormir revela algumas características do próprio Incs. Os desejos que lá habitam são indestrutíveis. São como fagulhas sempre prontas a se inflamarem novamente, não importa quanto tempo passe, assim que houver uma situação propícia para isso. A terapia consiste precisamente em esmaecer estas impressões vívidas do Incs, algo que o senso-comum acredita ocorrer simplesmente com a passagem do tempo. Quando, na verdade, demandam um trabalho árduo. Trata-se de colocar o Inc sob o domínio do Pcs. Nesse aspecto, há duas saídas para as moções psíquicas do Incs. Ou elas ficam livres e podem agir por sua própria conta. Ou se ligam ao Pcs, ganhando alguma contenção. É o que ocorre nos sonhos. Daí ser vantajoso deixar as moções psíquicas do Incs emergirem durante o sono e se ligarem pelo Pcs, pois com isso elas conseguem alguma descarga (via produção de imagens) e ao mesmo tempo preservam o desejo do Pcs de dormir, exigindo dele somente um pequeno dispêndio de atenção. Assim como os sintomas, os sonhos são, portanto, formações de compromisso, ou seja, satisfazem os desejos de ambos os sistemas ao mesmo tempo, enquanto forem compatíveis entre si. No caso do sonho, satisfaz o desejo de descarga do Incs e o desejo de dormir do Pcs. Quando estes interesses se tornam incompatíveis, o sujeito acorda, e o seu Pcs avisa que o Incs foi longe demais. São os sonhos de angústia. Eles mostram que a subjugação do Inc pelo Pcs nunca é tão completa. Quanto mais houver essa subjugação, mais saudável se é. Já os sintomas neuróticos mostram que o sistema Pcs está se sentindo incapaz de suprimir o Incs lidar com ele, ou melhor, com a angústia que ele desperta ao emergir. Assim, a agorafobia pode significar um incremento da defesa para evitar a crise de angústia, quase sempre o estopim inicial da doença, representando esta mesma a irrupção do Inc na consciência. A importância do Pcs é evitar o desprazer que a emergência do Incs desperta depois de ter sofrido recalcamento. Portanto, sonhos de angústia fazem parte da psicologia das neuroses e indicam: 1) a falha do Pcs em suprimir o Incs; 2) Intensidades elevadas do Incs com o qual o Pcs está tendo de lidar, intensidades estas de cunho sexual.
Parte E - Os processos primário e secundário - recalcamento
Freud está intrigado para tentar explicar porque os sonhos
parecem processos irracionais quando, na verdade, assentam-se e expressam, uma vez traduzidos, pensamentos e ideias bastante lógicas e racionais. Parte da explicação para isso já vinha sendo dada: as ideias e pensamentos formulados durante o dia que não foram catexizadas pela consciência (não receberam atenção) ficam em estado pré-consciente, tornando-se alvos preferenciais para que as moções do inconsciente apoderem-se delas, transferindo-lhes sua energia. Por este motivo é que tais ideias passarão a se expressar de um modo aparentemente anormal e intolerável aos critérios da lógica porque estão seguindo e sendo tratados pelas leis do processo primário, cujo objetivo é tornar as catexias o mais móvel e passível de descarga possível. Exemplo, para designar vela (barco) sonhar-se-á com uma vela (luz) ou vice-versa; para expressar o sentido de cumprimento (reverência) sonhar-se-á com comprimento (medida) ou vice-versa. Condensará características de duas pessoas criando uma terceira, inexistente; tomará o não como sim; o morto como vivo, etc. Nos sonhos, assim como nos sintomas psiconeuróticos, cadeias de pensamento normais comportam-se de modo anormal porque estão sendo “tratadas” ou receberam catexias oriundas do Inconsciente, que se rege pelo processo primário. No caso dos sintomas, trata-se de catexias oriundas do Inconsciente que sofreram recalcamento. O recalcamento e o processo primário e secundário
O processo primário é o que rege o Inconsciente. Nele as catexias
buscam a descarga pela via motora e alucinatória. Seu princípio econômico é evitar a experiência do desprazer, que corresponde ao aumento energético do aparelho psíquico gerado na dor, na frustração e na falta. No desenvolvimento saudável, o ego desenvolve-se a ponto de inibir este processo instaurando o processo secundário. Nele, suporta-se algum princípio de desprazer que é buscado solucionar-se pela via do pensamento e das ações coerentes no mundo. As ideias em estado de recalcamento não podem passar pelo crivo do processo secundário porque não foram catexizadas pelo ego. Ele até tentou se envolver com elas, mas por serem desagradáveis, conflitivas ou desprazerosas, o ego decide não lidar com elas. Trata-se da política do avestruz. Não catexizadas pelo ego e não submetidas ao processo secundário, tais ideias recalcadas ficarão à mercê do Inconsciente. Conclui-se daí que a instauração de um ego capaz de inibir os processos primários é crucial para a saúde mental da pessoa. Outra conclusão é que tanto os sonhos quanto os sintomas psiconeuróticos revelam os jogos de forças que se dão entre os dois sistemas psíquicos (primário e secundário, Inc e Pcs) operantes em todo psiquismo. O primeiro, revelador de um modo de funcionamento suprimido na vida de vigília, mas que toma a dianteira no homem doente, pelo fracasso de seu outro sistema em inibir as demandas do Inconsciente.
O Inconsciente e a consciência - realidade
No último item de seu longo trabalho sobre os sonhos Freud já
compreende muito melhor o funcionamento psíquico e suas engrenagens. Assim, concluirá que os sistemas Ics / Pcs-Cs que formam o aparelho psíquico não são lugares, tal como fica subentendido quando se diz “trazer algo à consciência” ou então “recalcar para o inconsciente” mas estados diferentes de uma mesma ideia. Assim, quando uma ideia está catexizada pela atenção ela pode vir a se tornar consciente e uma ideia descatexizada está necessariamente inconsciente. A consciência não tem acesso a este vasto conjunto de ideias, assim como não tem acesso ao vasto mundo da realidade externa. Algo como dizer que somos cegos por dentro e por fora, nossa consciência das coisas sendo algo extremamente limitado. A este vasto universo interno, constituído de fantasias, ideias, imagens, lembranças, pulsões e representações, muitas das coisas nunca chegarão a se tornar conscientes, Freud chamou de realidade psíquica. Esta realidade psíquica molda, deforma e produz a realidade externa ao mesmo tempo em que é moldada e transformada por ela. Nesse aspecto, o inconsciente introduzido ou revelado pela psicanálise não é insípido e racionalizante como o dos filósofos. O inconsciente humano revelado por Freud é um conjunto de forças pulsantes, arcaico, demoníaco e insana que subjaz como uma segunda natureza humana, nunca plenamente dominada pelo homem, ao lado de sua outra, racional, lúcida e previsível. Natureza que só poderia ter sido descoberta estudando-se de muito perto a loucura e os sonhos. O inconsciente que interessa ao psicanalista não é o inconsciente do filósofo, para quem processos psíquicos destituídos de consciência são aceitáveis. O inconsciente que interessa ao psicanalista é o inconsciente recalcado, a saber, aquilo que o homem repudia e recusa trazer à consciência. A consciência, antes tão soberana, será na psicanálise relegada a um órgão sensorial para perceber qualidades psíquicas. Uma espécie de olho interno de quem só se chama a atenção, no nível interno, para o que é agradável ou desprazeroso e, no nível externo, para o que excita sua percepção, incapaz por si só de reter e lembrar. Nesse sentido, é possível produzir pensamentos muito complexos sem a menor participação da consciência. Num aparelho mais desenvolvido, a consciência suportará maiores cargas de desprazer e trabalhará de modo mais discriminado. Exemplo, na mente de um obsessivo qualquer ideia, por mais desimportante que seja, excitará sua consciência, o que ele explicará dizendo “ter a mente cansada”. Já na mente de uma pessoa saudável, ela escolherá em quais ideias vale a pena investir atenção e em quais não, demonstrando uma maior capacidade discriminatória do seu sistema secundário. Como a consciência está mais próxima do sistema perceptual do que do mnêmico, isso explica porque é mais fácil submeter percepções do que lembranças à consciência. As lembranças, sobretudo as mais longínquas, são sempre muito difíceis de se tornarem objetos da consciência. Outro aspecto interessante da consciência é que ela se liga muito facilmente às lembranças verbais (o que ouvimos, lemos, etc.) - basta ver como um bebê presta atenção à alguém falando com ele - sendo a partir daí que se aprende a falar e, depois, a pensar. A prova cabal de que escapam à consciência pensamentos de baixa intensidade encontra-se, por exemplo, na histeria. Neste quadro, é como se a censura que divide o Cs do Pcs fosse tão intransponível quanto à que divide o Pcs do Incs. Isso pode dar a estas pessoas uma aparência de idiotia e lerdeza para perceber coisas e ter insights. Como foi o caso da paciente descrita por Freud, e sua mãe. Para os médicos que a observavam era evidente o conteúdo sexual que a jovem comunicava, mas para ela e para a mãe não. Por fim, Freud introduz uma crítica muito feita à psicanálise: vale a pena revelar o lado oculto de cada um? Não seria como abrir uma caixa de pandora, fazendo o homem perder o controle sobre si mesmo? Freud responde, com lucidez, que desejar algo é muito diferente de fazê-lo e que o valor ético de um homem não deve se medir pelo que ele deseja, ou carrega em sua natureza oculta, mas pelo que ele faz e pelo modo como efetivamente vive. Isso se traduz por não se confundir realidade psíquica com realidade material. Além do que, o conteúdo desta realidade psíquica é quase sempre mal interpretado pelos homens. A natureza do homem é complexa:
É muito raro a complexidade de um caráter
humano, impelida de um lado para o outro por forças dinâmicas, submeter-se a uma escolha entre alternativas simples, como levaria a crer nossa doutrina moral antiquada.