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#016 - A importância dos sonhos na clínica e a natureza fragmentária do discurso do paciente

Na aula de hoje não falaremos exatamente sobre a condução freudiana do caso, mas sobre
alguns aspectos introdutórios importantes que Freud apresenta antes de iniciar a exposição
da análise de Dora.

Notas preliminares:

Freud inicia o texto apresentando que buscam, em primeiro lugar, defende-lo da acusação
de que estaria violando o sigilo da paciente.
Freud prepara o leitor para que ele não possa fazer essa acusação a ele

Em segundo lugar, Freud adverte o leitor quanto ao fato de mencionar pormenores da vida
sexual da paciente, reclamando para si os mesmos direitos de que gozam os ginecologistas.

Em seguida, Freud passa a falar das circunstancias que facilitaram sua publicação do caso: o
fato de o tratamento ter durado apenas 3 meses, de ter anotado os 2 sonhos principais da
paciente imediatamente após as respectivas sessões e de ter redigido a história clínica logo
após o fim da análise.
O tratamento durou só 3 meses porque a paciente decidiu encerra-lo

Freud também assinala que o título original do trabalho seria “Sonhos e Histeria”, pois seu
principal objetivo seria mostrar como “a interpretação dos sonhos se entrelaça na história de
um tratamento” e como a análise onírica é útil para o alcance dos objetivos de uma análise.

Inclusive, a esse respeito, Freud faz uma advertência ao leitor: quem não estiver
familiarizado com os processos de formação dos sonhos olhará com ceticismo para as
análises e explicações que serão apresentadas para a neurose de Dora.

Ainda a título de informações preliminares, Freud menciona as diferenças entre a técnica


que utilizava na época em que publicou “Estudos sobre a histeria” (1895) 3 o novo
procedimento terapêutico que empregou com Dora: a associação livre.
Breuer ensinou para Freud o primeiro método de tratamento que foi o método catártico.
Todos os tratamentos que diz respeito a “estudos sobre histeria” foram feitos com o método
catártico. E como era o método catártico? A paciente chegava com os seus sintomas, e vamos
supor que uma paciente chegasse com tosse nervosa, Freud iria pegar esse sintoma e ia
hipnotizar a paciente e ia pedir pra que a paciente em estado de hipnose tentasse se lembrar
quando foi que ela começou a ter o sintoma, e a paciente seria levada a rememorar uma cena
traumática, teria em estado hipnose as reações emocionais que ela não conseguiu ter no
passado e através disso ela se curaria do sintoma. A técnica que Freud utilizava em 1895 era
uma técnica em que o comando, a direção, a pauta estava nas mãos do terapeuta, ele que
decidia qual seria a pauta da sessão, ele ficava em uma posição de mestre.

O procedimento que Freud utilizou com Dora foi diferente, esse procimento é a associação
livre. Agora ao invés de escolher um sintoma e pedir pro paciente se lembrar das
circunstancias que estão na origem desse sintoma, agora simplesmente se pede para que o
paciente fale, ou seja, se trabalha com aquilo que vem à cabeça do paciente, não se fica
direcionando ou definindo pauta.

Esse é um procedimento mais complicado/difícil de ser executado do que a hipnose/método


catártico porque quem direciona é o paciente.
O QUADRO CLÍNICO

Como já havia adiantado, Freud inicia propriamente o trabalho dizendo que seu principal
objetivo com o caso Dora é dar uma amostra de como a interpretação dos sonhos pode ser
utilizada clinicamente. Assinala, inclusive, que foi justamente a clínica que lhe apresentou o
“problema dos sonhos”.
Freud não chegou aos sonhos por acaso, ele não era praticante de tarot, exotérico, ele era um
cientista, um pesquisador positivista tradicional. Freud foi estudar sonhos porque ele era um
bom clinico, porque ele começou a observar que atendendo seus pacientes eles falavam de
coisas que aconteciam na vida deles e volta e meia encaixavam na sua narrativa um sonho. Ex:
Paciente “ontem eu discuti com minha mãe, ela queria que eu fizesse uma tarefa de casa e eu
estava com preguiça e não quis fazer e brigamos e a noite sonhei que eu estava com uma
mulher num teatro assistindo uma peça do édipo rei e eu estava junto com essa mulher, não
sei quem era essa mulher mas ela estava do meu lado” e Freud vai achando aquilo curioso, e
se pergunta porque essa mulher estava trazendo um sonho. A conclusão dele é a seguinte “se
o paciente está trazendo um sonhos, isso é um sinal de que os sonhos tem uma função na
narrativa do paciente” como se Freud estivesse olhando para o discurso do paciente em
analise como uma narrativa como uma narrativa de um romance, e na narrativa todos os
elementos são necessários para a trama. Não tem como pegar um romance e achar que há
partes nesse romance que são descartáveis, um bom escritor amarra todas as pontas do texto
para que tudo aquilo se encaixe na narrativa, se você olha pra narrativa de um paciente assim,
você encara como uma costura de vários retalhos que vão fazer sentido de um ponto de vista
macro, então se o paciente está narrando sonhos é porque esses sonhos são alguns desses
retalhos. Esses sonhos reclamam um lugar da vida psíquica do paciente e aí então que vai ter a
primeira intuição sobre os significados do sonho, porque se os pacientes estão trazendo
sonhos pra clinica é um sinal de que os sonhos tem um significado pessoal que vai ser uma das
grandes diferenciações da visão freudiana sobre os sonhos. O que o senso comum pensa sobre
o sonhos?: “Ah, o sonho é uma premonição do que vai acontecer” “sonhei que a pessoa
morreu então ela vai morrer” como se o sonho não tivesse um sentido pessoal mas um sentido
cósmico que é parecido com a visão junguiana sobre os sonhos, Jung acredita que sonho não
tem a ver só com o sonhador mas com o movimento inconsciente coletivo, Freud não... a visão
de Freud é “o sonho tem o significado pessoal”, a partir dessa primeira intuição que ele vai
deslanchar nos estudos dos sonhos até chegar na sua tese fundamental de que o sonho é a
realização disfarçada de um desejo inconsciente.

O objetivo primordial do caso é mostrar a utilidade da interpretação dos sonhos na clínica.


Freud não quer mostrar como a psicanalise é boa e cura porque se fosse pra isso o caso Dora
seria o pior pra isso, mas mostrar como a interpretação dos sonhos é útil na clínica.

Nesse contexto, Freud reafirma que todo psicanalista precisa dominar a interpretação
onírica, pois o sonho é um dos caminhos para acessar o recalcado, ou seja, o conjunto de
pensamentos que foram afastados da consciência do sujeito e que estão sendo
simbolicamente representados nos sintomas.
O que é o recalcado? Quando usamos esse termo na psicanalise, não estamos pensando em
uma coisa só mas um conjunto de coisas. O recalcado é um conjunto de pensamentos, ideia,
raciocínios, representações que foram afastados da consciência do sujeito, ou seja, estão no
inconsciente, estão reprimido/recalcados e que se expressam simbolicamente por meio dos
sintomas. O que Freud está dizendo? O objetivo da psicanalise é chegar no lugar x, porque esse
lugar x está o tempo todo se manifestando na vida do paciente de forma
disfarçada/simbólica/sofrida através dos sintomas, a doença que o paciente traz pro
consultório como os padrões doentios de relacionamento, os pensamentos obsessivos, atos
compulsivos, os sintomas físicos, a depressão é a expressão disfarçada desse lugar aonde
queremos chegar. O que Freud está dizendo é que o sonho é um atalho pra chegar nesse lugar,
nos pensamentos reprimidos que estão se manifestando disfarçadamente no sintoma. Ele
mostra que existe uma homologia entre os sintomas e os sonhos, sintoma e sonho obedecem
a uma mesma lógica porque tanto o sintoma quanto o sonho são formações do inconsciente.
Ex: esse relacionamento doentio que você tem ele é tão produto do inconsciente quanto o
sonho que se tem a noite, os pensamentos obsessivos que você tem são tão produtos do
inconsciente quanto os sonhos.

Da mesma forma que se tem dificuldade para entender os seus sonhos, você tem dificuldade
de entender seus sintomas. “Porque tenho essas crises de ansiedade? Porque estou nesse
relacionamento? Porque me cobro tanto?”. São produções do inconsciente e são tão
enigmáticos quanto os sonhos.

Quando você se torna perito na interpretação dos sonhos se consegue interpretar com mais
facilidade os sintomas, porque é um atalho. É mais fácil interpretar um sonho do que o
sintoma, porque no sintoma tenho gozo, tem uma satisfação inconsciente muito colada no
sintoma, então não basta no caso do sintoma decifrar, no caso do sintoma precisa mais que
uma decifração para que largue dele. O sonho não, o sonho não atrapalha a vida, tenho ele
durante a noite e esqueço durante o dia, então é mais fácil interpretar um sonho mas para
interpretar um sonho você tem que ficar meio “maluco”.

Ex: paciente “eu tive um sonho em que eu tinha que sentar numa poltrona e eu não podia
levantar de lá, tinha que ficar sentado” e você olha e pensa “o que será que isso significa?”
mas aí você se lembra que no funk contemporâneo brasileiro que permeia a cabeça de todos
nós. Isso Lacan nos ajuda a entender muito bem, o inconsciente é o discurso do grande outro,
da cultura, ele não está só preso a nossa cabeça, o nosso inconsciente é alimentado pelo
discurso, pela linguagem, pela cultura. E então você se lembra que na nossa cultura
contemporânea o termo “sentar” tem sido utilizado com uma conotação explicitamente sexual
e praticamente toda música popular de funk se diz “vai sentar, vai sentar, vai sentar”, o que
significa o sentar? Significa o ato sexual do ponto de vista feminino, o se deixar prenetrar.. se
você não tem essa percepção, esse enlouquecimento saudável, você não consegue interpretar
esse sonho.

Na sequencia, Freud fala das dificuldade que o psicanalista enfrenta ao tentar fazer uma
anamnse do paciente. Ele assevera que nem os familiares do doente nem a própria pessoa
são capazes de fornecer inicialmente uma história clínica suficientemente coesa, precisa e
organizada.
O que é uma anamnese? É traçar a vida do paciente, a história da doença, os elementos da
biografia do paciente. Porque isso no caso da psicanalise precisa problematizar? Em primeiro
lugar Freud diz por uma questão fenomenológica.

Se pega os familiares do doente, por exemplo no caso de Dora quem a levou para ser atendida
foi o pai, então Freud fez uma entrevista com o pai. Quando atende uma pessoa que foi trazida
por outras, sobretudo adolescentes, pessoas muito jovens ou casos mais graves se faz uma
entrevista com quem trouxe o paciente.

Freud diz que os familiares da pessoa não são capazes de dar uma descrição precisa da história
daquela pessoa e muito menos a própria pessoa. “Ah mas eu sei da minha história, da minha
verdade” não sabe nada!
Frequentemente o analista pergunta alguma coisa e o paciente não sabe responder.

Quando pegamos o livro da nossa história percebemos que tem um monte de página falta. O
que Freud nos diz? Que é justamente pelo fato de no livro de sua história estar faltando
algumas páginas que você está doente, os seus sintomas, os seus problemas emocionais são
justamente substitutos dessas páginas que estão faltando. Qual o objetivo da psicanalise? É
recolocar essas páginas no lugar, mas o paciente tem medo de fazer isso, tem dificuldade.

Então nem os familiares e nem o próprio paciente consegue apresentar uma história clinica
suficientemente coesa, precisa e organizada. O profissional que vai praticar a psicanalise
esperando encontrar essa história do paciente organizada vai se sentir frustrado.

Freud vai elencar os motivos que levam isso a acontecer.

Pag 27 do caso clinico “Na realidade, os paciente são incapazes de fornecer tais relatos a seu
próprio respeito. De fato, podem dar ao médico muitas informações coerentes sobre este ou
aquele período de suas vidas, mas logo se segue outro período em relação ao qual suas
comunicações escasseiam, deixando lacunas e enigmas; e em outras ocasiões fica-se diante
de novos períodos de total obscuridade [...] As ligações, inclusive as aparentes, são em sua
maiorias desconexas, e a sequência dos diferentes acontecimentos é incerta. Durante o
próprio relato, os pacientes corrigem repetidamente um pormenor ou uma data, talvez para
retornar, depois de muita hesitação a sua versão inicial.”
Se o paciente fala uma coisa e depois desmente, acredite, a primeira é a fiel, é a versão correta
da história, a segunda é uma tentativa de esconder e de disfarçar.

Freud chegava, inclusive, a tomar a apresentação fragmentária, hesitante e desconexa dos


aspectos biográficos como um elemento crucial para fazer o diagnóstico diferencial entre
casos de histeria e de doença orgânicas (vide nota de rodapé da página 27)
Se o paciente chega pra mim e consegue apresentar uma história clinica (como começou a
doença, quais foram os fatores, foi depois do que, o que ele sentiu, quais foram as
consequências) já se sabe que não é histeria.

Ex: Um colega enviou para Freud um caso de uma paciente achando que ela tinha histeria e
Freud observou que o relato da paciente era super clean e organizadinho, e como ele faz os
exames ele percebe que não era histeria e sim um problema físico e orgânico, porque quando
se trata de neurose o relato é sempre fragmentado.

Por que os pacientes não conseguem expor a própria história com clareza e precisão? Freud
elenca 3 fatores que são responsáveis por esse quebra cabeça ficar com muitas peças
faltantes. (1) a “falta consciente de fraqueza” provocada por sentimentos como timidez,
vergonha e discrição; (2) a “insinceridade inconsciente”; e (3) as “amnésicas verdadeiras”
resultantes do recalque e possíveis paramnésias correlatas.
Não se pode esperar que a princípio o paciente seja 100% sincero, isso pode acontecer depois
de algum tempo com um vínculo mais consolidado.

(2) Não é que paciente está conscientemente evitando de falar de certas coisas, ele não fala
porque não se lembra naquele momento, então a resistência do ego inconsciente impede o
paciente naquele momento de falar de certas coisas.

(3) São aquelas partes da nossa vida psíquica que foram reprimidas e portanto fica uma lacuna
ali.
Perguntas:
Fiquei pensando no desmentido (Ferenczi) como causa do trauma, no caso de Dora, quando
os pais não acreditam em suas palavras diante da “proposta amorosa” do Sr. K.
No momento em que os pais não acreditam no relato de Dora, ela fica então prisioneira desse
trauma, ela não pode contar com o acolhimento que viria da parte do outro pra mitigar o
efeito deletério desse caso. Podemos entender com isso o efeito prejudicial da postura de
Freud em relação a Dora. Freud fica muito focado em mostrar que havia desejo de Dora por Sr
K, e ele não percebe que ainda que não houvesse o ato dele foi um ato de invasão, um ato de
intrusão, não foi um ato de acolhimento àquela jovem, isso passou totalmente despercebido
por Freud e era inclusive uma das acusações que Ferenczi fazia a Freud.

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