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Um ebook da

Interpretação
dos Sonhos
Cintia Poveda

@snesp.psicanalise
Um Guia da Filosofia Moderna A.M. Monteiro

Sumário
Abertura.........................................................................................3

Sonhos na Antiguidade................................................................4

A Interpretação dos sonhos........................................................8


Sumários
Mas, por que os sonhos?...........................................................10

Conteúdo Latente e

Conteúdo Manifesto dos sonhos.............................................12

Material Recente nos sonhos: vivências diárias.....................16

O material dos sonhos - a memória nos sonhos...................20

Como se formam os sonhos.....................................................25

Por que nos esquecemos dos sonhos ao despertar?...........32

Sonhos de angústia (pesadelos)...............................................36

Sonhos pós-traumáticos...........................................................37

Alguns termos.............................................................................38

Como analisar?...........................................................................39

Referências Bibliográficas.........................................................45

Quem é Cintia Poveda...............................................................46

1
"Nas páginas que seguem, apresentarei
provas de que existe uma técnica
psicológica que torna possível interpretar
os sonhos, e que, quando esse
procedimento é empregado, todo sonho
se revela como uma estrutura psíquica que
tem um sentido..."
Sigmund Freud

2
Para mim, é uma grande responsabilidade escrever
sobre o método que possibilitou um antes e um depois
das obras de Sigmund Freud.
Quem nunca sonhou? Tem pessoas que dizem que
nunca sonhou, mas a verdade é que, não se lembram do
sonho. E como psicanalista, encontrei muita
dificuldade no início do meu percurso, quando se
refere em interpretar sonhos, e ao mesmo tempo, meus
pacientes traziam muitos sonhos.
Venho desenvolvendo sobre o assunto há quase 13
anos — seja a partir de experiência clínica, seja na área
de estudos, e considero o estudo dos sonhos ainda um
campo complexo e necessário.
Aprimorei meus conhecimentos sobre a interpretação
dos sonhos e decidi dedicar-me a estudar mais
subjetivamente, assim como Freud propõe - visto que,
a maioria dos psicanalistas e terapeutas engessam a
interpretação, catalogam o sujeito e retiram o sujeito
de sua condição de indivíduo - , principalmente, no
que se trata, os sonhos como realização disfarçada de
um desejo.
Muitos psicanalistas possuem uma visão de sonhos
ainda como adivinhação e ficam presos a uma visão
universal dos símbolos e imagens que aparecem no
sonho, por exemplo: sonhou que estava grávida porque
está desejando uma vida nova ou coisas novas estão por
vir. Mas será que é esse o caminho que Freud nos
propõe?
Esse ebook, visa trazer um estudo ético, didático e
descomplicado da interpretação dos sonhos.
Vejo-me no consultório, diversos pacientes buscando
respostas de seus sonhos, alguns trazendo todo o sonho
lembrado, outro trazendo partes do sonho, ainda
aqueles que se sentem inquietos e angustiados ao
acordar.
Em poucas palavras, durante os capítulos que
vivenciaremos juntos, tentaremos aprofundar a teoria e
a clínica da interpretação dos sonhos.

3
Quando falamos em sonhos, encontramos na literatura
várias visões, até os estudos de Freud, nenhum avanço
científico havia sido concluído.
Na antiguidade mantinham a crença de que os
sonhos eram enviados pelos deuses com o objetivo de
ordenar ações aos homens. Podemos apresentar como
exemplo o sonho de Faraó, proposto a José na Bíblia,
das sete vacas gordas seguidas por outras sete magras
que devoravam as primeiras. Foi visto como uma
profecia de sete anos de fome no Egito.

Os povos antigos, chineses, gregos, hindus e romanos


consideravam os sonhos como mensageiros; para uns,
mensageiros dos espíritos e demônios, para outros,
mensageiros dos deuses. O comportamento desses
povos era determinado pela compreensão dos sonhos.
(REIS, 2015 p.1)

4
1
Sociedades antigas davam tamanha importância ao
sonho que a primeira atividade diária era contar,
coletivamente, seus sonhos a fim de esclarecer o que
sonharam. Assim, aquele povo poderia saber se seriam
agraciados por alguma bênção ou amaldiçoados por
doenças e pragas.
Freud afirma em seu livro que, antes de Aristóteles, os
antigos não consideravam que o sonho pudesse ter
alguma relação com a psique, mas apenas uma origem
divina. Para esses povos da antiguidade existiam dois
tipos de sonhos: os de natureza divina que eram
considerados verdadeiros e valiosos e tinham como
função advertir ou anunciar o futuro e sonhos
insignificantes e fúteis que serviam apenas para
desorientar e arruinar o sonhador. Como consta na obra
magna do criador da psicanálise:

Como se sabe, antes de Aristóteles os antigos não


consideravam o sonho um produto da psique que
sonha, e sim uma inspiração de origem divina, e
as duas correntes antagônicas que sempre
encontraremos na apreciação da vida onírica já
tinham se afirmado entre eles. Fazia-se distinção
entre sonhos verdadeiros e valiosos, enviados à
pessoa que dorme para adverti-la ou lhe anunciar
o futuro, e sonhos insignificantes, enganadores e
fúteis, cuja intenção era desorientá-la ou
precipitá-la na ruína. (FREUD, 2012 p.17)

Sonhos sempre significaram muito para a


humanidade, mas ganhou cientificidade apenas no
século XX.

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Um sonho não interpretado é como
uma carta não aberta.
Talmud

6
No século XIX, tinha uma produção a respeito do
sonho, mas uma produção médica/psiquiátrica, com um
ponto de vista neurológico. Tinha a ver com o sonho
como produção do corpo, - estamos em um estado de
repouso no sono, e o sonho surge como reações do
próprio corpo -, nesse estado do sono, os estímulos
externos são percebidos, e incorporados no sonho. A
explicação central desses estudos era que os sonhos eram
estímulos do corpo e percebidos pelo corpo.
Reforço então: eram estímulos que não são
percebidos em estado consciente, sensações corporais
são incorporadas no sonho. Sede, fome, desejo sexual,
sons. Para facilitar a compreensão, vou citar três
exemplos: o indivíduo sonha que está indo ao banheiro
urinar, ao acordar percebe a vontade real de ir ao
banheiro; o indivíduo sonha que está tomando água e ao
acordar percebe que está com sede; e por último, o
indivíduo sonha que tem alguém o enforcando, e ao
acordar, percebe que o cobertor estava pressionando o
seu pescoço. Dessa forma, os sonhos eram explicados a
partir dos estímulos corporais.
Antes da Interpretação dos sonhos, Freud começa a
escrever um projeto (que não foi publicado), foi um
rascunho, mas ele tentou criar uma estrutura para a
psique a partir dos neurônios, a partir da biologia e
como na época era complicado, -não era como hoje
com facilitações de equipamentos-, ele abandona esse
modelo de estudar a partir dos neurônios e na Interpre-

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tação dos sonhos, ele desenvolve o estudo a partir do
psiquismo.Decididamente, é a partir de Freud que o
sonho torna-se objeto de pesquisa científica, resultando
na criação de um novo método de interpretação
psicanalítica. Não há dúvida que aquela era uma grande
descoberta, mais ou menos original. Sim, porque mesmo
que eternamente fosse admitido algum sentido para os
sonhos, a novidade freudiana, foi fazer deles, através de
uma práxis, uma via régia.
A Interpretação dos sonhos, marca o
aprofundamento de Freud na psicanálise e o afastamento
da área médica. Nessa época, Freud estava trabalhando
com as mulheres histéricas, já com o método da
associação livre. A paciente chegava contando algum
tipo de sintoma/queixa, um problema emocional e
Freud fazia alguns estudos preliminares, convidava a
paciente para o divã e a convidava a falar o que ela
estava pensando naquele momento - livre liberdade -.
Ele entendia que o que era discursado pela paciente,
tinha sentido, carregava significado e tinha associação
com o inconsciente.
Assim, Freud percebeu que os sintomas histéricos,
carregam sentido, sentido ligado ao conteúdo psíquico
das pacientes. E como ele tratava os sintomas
histéricos/neuróticos? Freud, convidava a paciente a
falar tudo que vinha na mente, ao falar a paciente
entendia que estava falando tudo que estava na
consciência dela, mas, ao mesmo tempo, ela estava
levando para o analista seus conteúdos inconscientes, via

8
deslocamento. Em suma, os conteúdos inconscientes se
deslocam para o consciente e é possível chegar a uma
interpretação. Freud deixava as pacientes irem contando
sobre a vida delas, e a interpretação dos sintomas, o
levava ao inconsciente. Em tais casos, durante os
atendimentos, ao invés delas trazerem ideias,
pensamentos, elas começaram a trazer sonhos, elas
contavam sonhos. Na maioria das vezes os sonhos
pareciam absurdos - bem como ainda se apresentam na
maioria dos casos -, não tinham sentido claro.
Temos então, os sintomas histéricos que se
apresentavam para Sigmund Freud, em formato
confuso, porém carregados de sentidos. Por que então,
os sonhos, que se apresentam no mesmo formato, não
podem ter sentido? Foi dessa maneira, que Freud
começou a investir mais os sonhos, da mesma forma das
neuroses. Não era o discurso consciente que tinha
sentido, era o que estava por trás.
No ano de 1899, Sigmund Freud publicou (com data de
1900) o que considerava sua maior obra: A
Interpretação dos Sonhos, que transformou sua clínica e
teoria ao longo do tempo.
O pai da psicanálise, desenvolve o seu trabalho em
cima de que todo sonho é a realização disfarçada de um
desejo, porém abre as suas exceções, posterior a essa
obra, em 1920, trazendo o conceito de pulsão de morte
e sonhos de angústia, o que estudaremos mais adiante.

9
Pois bem, sabemos que as pulsões se originam para
obter prazer, quando não satisfeito, o desejo permanece
gerando forte tensão e pressão, durante o sono a
repressão diminui, podendo então sonhar com aquilo
que está sufocado. Na medida que o corpo se desliga,
ocorre um “afrouxamento”, “relaxamento”, das censuras,
permitindo que os desejos se realizem.
O psicanalista lembrou em seu livro que poderia ser
questionado sobre: se o sonho for uma realização de
desejo, porque não sonhar diretamente com o que se
deseja, ao invés de ter que passar por uma interpretação
para descobrir o que o sonhador realmente anseia. Ele
então explica que o motivo se dá ao fato de que o desejo
está reprimido, tendo como única maneira de passar
pela consciência, distorcendo o sonho; vale a mesma
explicação para a origem dos sonhos de angústia. Como
escreve em seu exemplar:

Quando a realização de desejo é irreconhecível,


quando é disfarçada, deve ter havido uma
tendência à defesa contra esse desejo e, em
consequência dela, o desejo não poderia se
manifestar de outra forma a não ser distorcido.
(FREUD, 2012 p.163).

Neste caso, por que os sonhos geralmente parecem


tão confusos então?

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Freud dá a explicação que embora a repressão possa
diminuir durante o sono, ainda continua em menor
quantidade, fazendo uma comparação com um regime
ditatorial, como por exemplo, no caso da mídia e das
músicas que devem ser escritas de modo a não chamar a
atenção dos censores do governo, com trocadilhos e
figuras de linguagem. Na música brasileira do
renomado cantor Chico Buarque, Cálice, há um trecho
da canção: “Pai, afasta de mim esse cálice”, onde cálice é
possível ser substituído por “cale-se”, que mesmo
soando igual não é a mesma palavra, em alusão à
repressão da ditadura.
Aqui então, fica claro, que os sonhos, ganham
tamanha importância, uma vez que ao dormir, as
censuras afrouxam e por meio de disfarces é possível
trazer o material recalcado para a consciência,
realizando assim, o desejo.

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Pensemos no sonho como um substituto de uma
cadeia de pensamentos que estavam no inconsciente,
assim, conforme se manifesta na mente, conforme
lembramos dele, é na realidade um substituto de outros
conteúdos inconscientes, que esses sim, são conteúdos
com sentidos. Aquilo que a gente lembra e parece
absurdo é apenas um substituto.
Por consequência, temos dois tipos de conteúdo
diferentes, um conteúdo que Freud vai chamar de
manifesto – que é aquilo que a gente lembra do sonho -
e o conteúdo que ele vai chamar de latente – latente
porque está oculto. Toda teoria de Freud está vinculada
ao conteúdo latente.
Em resumo, o conteúdo latente e o conteúdo
manifesto levantam duas questões importantes: a
primeira é, que tipo de processo é esse que forma uma
espécie de conteúdo em outro? E a segunda questão,
porque essa transformação? Porque não sonhar com o
conteúdo direto? Porque o sonho é distorcido?
O pai da psicanálise, nomeia esse processo de
trabalho do sonho – processo que transforma um
conteúdo no outro, veremos sobre esse trabalho mais
adiante.

1.Relações dos conteúdos latente e manifesto

12
Dissemos que para Freud os sonhos têm o conteúdo
aparente (manifesto) e o conteúdo que está por trás
(latente). A psicanálise vai se preocupar com o conteúdo
latente.
Aqui, gostaria de trazer os três tipos de relações
entre o conteúdo latente e o conteúdo manifesto.
Dirigindo-se a primeira, podemos dizer que não seria
bem uma relação, pois o conteúdo manifesto e latente
estão equacionados, igualados. Não existe diferença
entre eles. Freud vem atribuir esse tipo de relação a
crianças pequenas, o conteúdo latente que dá origem ao
conteúdo manifesto, é igual ao conteúdo manifesto.
Para clarificar, vou expor dois exemplos: Um menino de
vinte e dois meses foi privado de comer cerejas e ao
acordar de manhã ele diz: “comi todas as cerejas”.
Segundo exemplo: com os mais recentes sonhos de
realização de desejos: Aninha, um ano e meio de idade.
Um dia, em Aussie, ela teve de ficar sem comer porque
passou mal de manhã, o que foi atribuído ao fato de ter
comido morangos. Durante a noite seguinte, ela recitou
um cardápio inteiro no sono: ‘Molangos, morangos
silvestres, omelete, pudim’ (Freud, 1950 [1892-1899] /
1996b, p. 318).
Claramente, vemos nesses dois exemplos a realização
imediata de desejos, desejos que as crianças tiveram no
dia anterior, ou seja, a interpretação desse sonho é
voltada apenas ao dia anterior. O que vivenciou, nos
sonhos infantis, não tem distorção.

13
É importante destacar, que essa primeira “relação”
cabe somente às crianças pequenas, crianças que ainda
não desenvolveram o superego, assim, não passando pela
repressão.
Mas, e os adultos, será que possuem sonhos como das
crianças?
Todos concordamos que a primeira vista pode
parecer que sim, porque existem sonhos que parecem
óbvios, mas Freud vem nos dizer que a resposta é não,
não é tão simples assim. Os adultos, já possuem
consciência moral, passando por diversas repressões,
dessa forma, mesmo o sonho parecendo claro, existe o
deslocamento. Vamos exemplificar: o paciente relata ter
sonhado que estava tomando água da torneira e ao
acordar percebeu que estava com sede. O desejo de
tomar água é realizado no sonho. Abrindo a impressão
de ser como o sonho infantil -realização imediata de
desejo-, mas Freud nos traz que se analisarmos a fundo,
esses sonhos já vem com uma certa distorção (trabalho
do sonho). Já vão ter outros elementos que mostram o
trabalho onírico, os sonhos de adultos nunca são tão
simples, sempre tem mais sentidos (inconsciente).
Partimos agora para a segunda relação: o conteúdo
manifesto tem uma sequência lógica e é compreensível,
mas o sentido dele é esquisito. Exemplo: o paciente diz
que sonhou que seu gato morreu. O discurso é claro, o
sonho não é aparentemente confuso, porém, o sentido
não é claro, uma vez que a paciente gosta do seu gato e
não quer que ele morra.

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Dessa forma, que desejo ela realizou? Para responder
é necessário partir para a investigação: quando você
pensa no seu gato, o que lhe vem na mente? Qual o seu
sentimento pelo gato, o que ele representa para você?
Posso dizer aqui, que o gato é apenas uma imagem
disfarçada de um conteúdo inconsciente. Nessa segunda
relação, entre conteúdo latente e conteúdo manifesto já
é possível ver uma distorção. Só vamos entender se
buscarmos um sentido.
A terceira, e última relação, diz respeito ao próprio
conteúdo manifesto que aparece de forma confusa e
absurda, ao contrário do exemplo anterior que o
manifesto é coerente. Exemplo: O paciente sonhou que
estava jogando sneaker fora da casa dele e estava
nevando, apesar dele nunca ter visto neve, a intensidade
da qual os flocos de neve caíam podia ser controlada por
ele. Conseguia fazer isso soltando pum, quanto mais alto
o pum que ele soltava, mais rápido a neve caía.
Como você vai entender algo nesse sonho sem o
trabalho da interpretação? Há uma grande distorção
entre o conteúdo latente e manifesto.
Uma última observação. Os sonhos de adultos são
sempre da segunda e terceira relação, embora possa
parecer de crianças, o conteúdo latente é sempre
distorcido em algum nível.

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Nesse momento, quero iniciar, trazendo um trecho do
livro em que Freud cita com excelência as experiências
do dia anterior,

Se examinar minha própria experiência com a


questão da origem dos elementos incluídos no
conteúdo dos sonhos, deveria começar pela
afirmação de que, em todo sonho, é possível
encontrar um ponto de contato com as
experiências do dia anterior. (Freud,2001.
pág.174)

Cabe ressaltar, que Freud diz que para interpretarmos


um sonho é necessário pegarmos parte por parte, porque
todo o sonho traz uma representatividade.
Para exemplificar, trago, um sonho explicado em partes
por Freud:

1. Eu estava visitando uma casa à qual tinha dificuldade


em ter acesso…;nesse ínterim, deixava uma senhora
ESPERANDO.
Fonte: Eu tivera uma conversa com uma parenta na
noite anterior, na qual lhe disseera que ela teria que esperar
por uma compra que desejava fazer até…etc.

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2. Eu tinha escrito uma MONOGRAFIA sobre uma
certa espécie (indistinta) de planta.
Fonte: naquela manhã eu vira uma monografia sobre o
gênero Ciclâmen na vitrina de uma livraria.
3. Eu via duas mulheres na rua, MÃE E FILHA, sendo
a segunda uma paciente minha.
Fonte: Uma das minhas pacientes me explicara, na noite
anterior, as dificuldades que sua mãe vinha antepondo à
continuação de seu tratamento. (Sigmund Freud, 2001. pág
174)

Freud sugere que separamos os sonhos em partes,


vamos pegar cada parte específica do sonho e vamos
conduzir o paciente pela associação livre, - o que essa
parte do sonho te lembra?
Conforme o paciente vai narrando essas associações,
conteúdos, imagens, nós vamos construindo uma
interpretação do sentido real do sonho e não de como
ele aparece no sonho.
A primeira associação, que Freud fez é com o dia
anterior, a importância na formação dos sonhos, como
mencionado no início deste capítulo.
Cabe observar, que todo sonho se vale de vivências
diárias - restos diurnos - para compor o enredo do
sonho. Entre essas vivências, surge uma dúvida: até onde
o sonho é reflexo dos restos diurnos e até onde é desejo
disfarçado do inconsciente?

17
Suponho, assim, que todo o sonho se vale de
vivências diárias, porém trazendo representações dos
desejos inconscientes. Para que os conteúdos
inconscientes tenham acesso à consciência, o trabalho
do sonho (veremos mais adiante), pega as vivências
diárias para formar o sonho. E porque as vivências
diárias? Podemos dizer que por já ter vivido, a psique
entende como vivências não ameaçadoras, podendo ser
revivida através dos sonhos.
Não é a toa no consultório, que muitos pacientes
verbalizam sonhos com pessoas que viram apenas uma
vez, com imagens ou cenas que ocorreram durante a
semana.
Posso dizer, que o trabalho do sonho, segura o que
é conhecido do dia a dia e desloca as imagens do
inconsciente, assim, não se sonha com o açougueiro que
viu apenas uma vez na vida, mas com o que ele
representa. No trabalho de interpretação, será necessário
investigar qual deslocamento foi feito na imagem do
açougueiro.
Vimos então, que os sonhos se formam através das
nossas vivências diárias, porém, tudo se vale de sentido.
Mesmo o sonho parecendo óbvio, nem tudo é óbvio.
Acredito ser importante dizer que, o erro de alguns
profissionais é: o paciente diz “sonhei com o
açougueiro”, e o analista após identificar o contato
anterior do paciente com a figura do açougueiro,
prontamente responde: “percebe que você sonhou
porque o viu e ficou registrado em sua consciência?”.

18
Quero frisar bem: mesmo parecendo óbvio, é
necessário investigar a representação da figura do
açougueiro - pensando no açougueiro, o que ele te
lembra? Consegue associar a algo?"
Vejo ser de extrema relevância citar Hildebrandt
(1875, 11): “Pois o fato notável é que os sonhos extraem
seus elementos não dos fatos principais e excitantes,
nem dos interesses poderosos e imperiosos do dia
anterior, mas dos detalhes casuais, do fragmentos sem
valor, poder-se-ia dizer, do que se vivenciou
recentemente, ou do passado mais remoto. Uma morte
na família, que nos tenha comovido profundamente e
sob cuja sombra imediata tenhamos adormecido tarde da
noite, é apagada de nossa memória até que, com nosso
primeiro momento de vigília, retorna a ela novamente
com perturbadora violência. Por outro lado, uma
verruga na testa de um estranho que vimos na rua, e em
quem não pensamos mais depois de passar por ele, tem
um papel a desempenhar em nosso sonho…”
Posso então concluir, que os elementos que
aparecem no sonho, são restos diurnos, vivências diárias
-até mesmo aquelas que não damos nenhuma
importância- carregadas de representações
inconscientes.

19
Dissemos agora pouco das vivências diárias,
entremos agora no que Freud denomina como “a
memória nos sonhos”.
Em seus estudos, Sigmund Freud diz que todo o
material que compõe o conteúdo de um sonho é
derivado, de algum modo, da experiência, ou seja, foi
reproduzido ou lembrado no sonho - ao menos isso
podemos considerar como fato indiscutível.
Acrescentando ser um erro supor que uma ligação dessa
natureza entre o conteúdo de um sonho e a realidade,
esteja destinada a vir à luz facilmente, como resultado
imediato da comparação entre ambos. A ligação exige,
pelo contrário, ser diligentemente procurada, e em
inúmeros casos pode permanecer oculta por muito
tempo.
É possível que surja, no conteúdo de um sonho, um
material que, no estado de vigília, não reconheçamos
como parte de nosso conhecimento ou nossa
experiência. Lembramo-nos, naturalmente, de ter
sonhado com a coisa em questão, mas não conseguimos
lembrar se ou quando a experimentamos na vida real.
Ficamos assim em dúvida quanto à fonte a que recorreu
o sonho e sentimo-nos tentados a crer que os sonhos
possuem uma capacidade de produção independente.

20
Então, finalmente, muitas vezes após um longo
intervalo, alguma nova experiência relembra a
recordação perdida do outro acontecimento e, ao
mesmo tempo, revela a fonte de sonho. Somos assim
levados a admitir que, no sonho, sabíamos e nos
recordávamos de algo que estava além do alcance de
nossa memória de vigília.
Cabe complementar com um exemplo
particularmente impressionante fornecido por Delboeuf
a partir de sua própria experiência, que aqui, irei
resumir: Viu ele num sonho o quintal da sua casa,
coberto de neve, e sob ela encontrou dois pequenos
lagartos semicongelados. Tendo uma grande afeição por
animais, apanhou-os, aqueceu-os e os levou de volta
para o pequeno buraco que ocupavam na alvenaria. No
sonho Delbouef deu aos lagartos, algumas folhas de uma
pequena samambaia que crescia no muro. No sonho, ele
sabia o nome da planta. Quando desperto, Delboeuf
sabia os nomes em latim de poucas plantas, e a que viu
no sonho não estava entre eles. Para sua grande
surpresa, pôde confirmar o fato de que realmente existe
uma samambaia com esse nome.
O sonho ocorreu em 1862. Dezesseis anos depois,
quando Delbouef em uma visita a um de seus amigos, ao
se deparar com um álbum de flores prensadas, começou
a se recordar que dois anos antes do sonho, uma irmã
desse mesmo amigo, em viagem de lua-de-mel, fizera
uma visita a ele e trazia consigo o álbum. Esse álbum
seria o presente dela ao irmão e Delboeuf deu-se o

21
trabalho de escrever sob cada planta seca o nome em
latim, inclusive o nome da samambaia que estava em seu
sonho e ele sabia do nome.
Por esse riquíssimo exemplo, podemos entender que
tudo que aparece nos sonhos, não são ordens de
adivinhações ou premonições, e sim, da memória dos
sonhos. Independente do tempo, a memória se faz
presente na elaboração do sonho.
Outra fonte de onde os sonhos retiram material para
reprodução - material que, em parte, não é nem
recordado nem utilizado nas atividades do pensamento
de vigília - é a experiência da infância.
Assim como diz, Volkelt (1875, 119): “É especialmente
notável a facilidade com que as recordações da infância
e da juventude ganham acesso aos sonhos. Os sonhos
continuamente nos relembram coisas em que deixamos
de pensar e que há muito deixaram de ser importantes
para nós.”
Aqui, gostaria de insistir em como os sonhos têm a
seu dispor material oriundo da infância, e dado que,
como todos sabemos, esse material se acha obliterado,
em sua maior parte, por lacunas em nossa faculdade
consciente da memória, essas circunstâncias dão
margem a curiosos sonhos hipermnésicos, dos quais,
darei alguns exemplos encontrados no livro “A
Interpretação dos Sonhos - Edição 100 anos”.
Freud menciona um exemplo dele próprio, no qual o
que tinha de ser reconstruído não era uma impressão,
mas uma ligação:

22
“Sonhei com alguém que, no sonho, eu sabia ser o
médico de minha cidade natal. Seu rosto era indistinto,
mas se confundia com a imagem de um dos professores
da minha escola secundária, com quem ainda me
encontro ocasionalmente. Quando acordei, não
conseguia descobrir que ligação haveria entre esses dois
homens. Entretanto, fiz a minha mãe algumas perguntas
sobre esse médico que remontava aos primeiros anos de
minha infância, e soube que ele tinha apenas um olho.
O professor cuja fisionomia se sobrepusera à do médico
no sonho também só tinha uma vista. Fazia trinta e oito
anos que eu vira o médico pela última vez e, ao que eu
sabia, nunca pensara nele em minha vida de vigília,
embora uma cicatriz em meu queixo pudesse ter-me
feito recordar suas atenções para comigo”. (pág 37)
Naturalmente, vários autores, preocupados em não
lançar dúvidas sobre a íntima relação entre o conteúdo
dos sonhos e a vida de vigília, têm-se surpreendido com
o fato de as impressões com que os pensamentos de
vigília se acham intensamente ocupados só aparecerem
nos sonhos depois de terem sido um tanto postas de lado
pelas atividades do pensamento diurno. Assim, após a
morte de um ente querido, as pessoas em geral não
sonham com ele logo de início, enquanto se acham
dominadas pela dor (Delage, 1891, [40]). Por outro
lado, uma das mais recentes observadoras, a Srta. Hallam
(Hallam e Weed, 1896, 410-11), coligiu exemplos em
contrário, assim afirmando o direito de cada um de nós
ao individualismo psicológico nesse aspecto.

23
Outra característica da memória dos sonhos é
demonstrada na escolha do material reproduzido. Pois
nos sonhos o que se considera digno de ser lembrado
não é, como na vida de vígilia, apenas o que é mais
importante, mas, pelo contrário, também o que é mais
irrelevante e insignificante.
Em suma, o modo como a memória se comporta nos
sonhos é, sem sombra de dúvida, da maior importância
para qualquer teoria da memória em geral. Ele nos
ensina que “nada que tenhamos possuído mentalmente
uma vez pode se perder inteiramente” (Scholz, 1893, 59)

24
Vejamos, agora, o “trabalho do sonho” ou “elaboração
onírica”, ou seja, a transformação do conteúdo latente
em conteúdo manifesto após algumas deformações. Por
que precisa haver essas deformações/transformações?
Justamente porque a instância crítica que Freud chamou
de superego, não aceita entrar em contato com aqueles
conteúdos. Os sonhos se formam no inconsciente,
porém sempre dão um jeito de acessar a consciência,
para ter esse acesso o material dos sonhos precisa passar
pela primeira e segunda censura.
Dirigindo-se, a busca do conteúdo latente através do
sonho manifesto, visando decifrar o trabalho do sonho é
chamada interpretação.
Para chegar a interpretação dos sonhos faz-se
necessário um trajeto progressivo da elaboração onírica
e observar os quatro mecanismos fundamentais do
trabalho do sonho: Condensação, deslocamento,
figuração e elaboração secundária, esta última como
sendo um segundo momento da elaboração onírica.
Para a interpretação de um sonho, Freud centra sua
teoria em dois fatores, cuja estimável obra, Dicionário
de Psicanálise explica primeiramente, é a Condensação
como:

25
Termo empregado por Sigmund Freud para
designar um dos principais mecanismos do
funcionamento do inconsciente. A condensação
efetua a fusão de diversas ideias do pensamento
inconsciente, em especial no sonho, para
desembocar numa única imagem no conteúdo
manifesto, consciente. (ROUDINESCO E.;
PLON M., 1998 p.125)

O segundo, explicado pelos autores, é o Deslocamento


como:

Processo psíquico inconsciente, teorizado por


Sigmund Freud sobretudo no contexto da análise
do sonho. O deslocamento, por meio de um
deslizamento associativo, transforma elementos
primordiais de um conteúdo latente em detalhes
secundários de um conteúdo manifesto.
(ROUDINESCO E.; PLON M., 1998 p.148)

Explicando melhor, a condensação é como se fosse


uma maneira de disfarçar pensamentos tidos como
desagradáveis pelo sonhador, enganando a consciência
com uma mistura de outras emoções. Ao mesmo tempo,
a condensação pega os conteúdos e coloca em imagens,
aglomera, junta os conteúdos em uma única imagem.
Para chegar ao raciocínio principal, antes é necessário,
com ajuda do analista, passar por um encadeamento de
ideias até chegar ao núcleo.

26
Já o deslocamento, trabalha junto com a condensação,
são as principais características do funcionamento do
inconsciente. A condensação e o deslocamento são
responsáveis pela confusão que se apresenta nos sonhos.
Além dos dois termos mencionados, o médico
vienense explica que os sonhos devem ser interpretados
por meio de associação livre, onde o paciente, ajudado
pelo analista, associaria livremente o que cada parte do
sonho lembra. Esse método era necessário, pois somente
assim poderia-se ter acesso ao inconsciente, onde ficam
os desejos represados pelo recalque.
A condensação e o deslocamento interligam-se para
o mesmo objetivo que é camuflar o desejo recalcado no
conteúdo manifesto, para desta forma não torná-lo
consciente. Deixando desta forma o trabalho dos sonhos
descarregar as forças psíquicas aliviando as tensões no
inconsciente.
O psicanalista falou também dos sonhos típicos, os
quais possuem o mesmo significado para todos, pois são
provenientes de uma mesma fonte em todas as pessoas,
provavelmente. Assim, escreve em seu livro, com a
costumeira maestria a qual escolhe as palavras, segue a
sua geniosa explicação acerca do que observou:
Esses sonhos típicos também despertam um
interesse especial porque supostamente
provêm das mesmas fontes em todas as
pessoas, parecendo portanto especialmente
apropriados para dar esclarecimentos sobre
as fontes dos sonhos. (FREUD, 2012 p.263).

27
Uma observação, sonho esses, como: sonhar que está
correndo e não sair do lugar, sonhar que está pelado,
sonhar que caiu, etc.
Ainda, em relação aos sonhos típicos, muito a
contragosto, ele afirma em seu livro que sonhos típicos
não dão os melhores resultados nas análises, dando a
seguinte explicação:

Na interpretação dos sonhos típicos faltam


em geral as ideias que ocorrem ao sonhador
e que em geral nos levaram à compreensão
do sonho, ou elas se tornam obscuras e
insuficientes, de modo que não podemos
resolver nossa tarefa com a ajuda delas.
(Ibid.).

Podemos entender, que mesmo os sonhos típicos,


precisam de uma interpretação subjetiva, não podendo
se prender a uma única interpretação que engessa as
pessoas. Assim, cada sonho diz sobre o sonhador, e ao
interpretar os sonhos por via da associação livre,
podemos acessar o inconsciente: como foi para você
sonhar que estava pelado? O que isso pode estar
querendo dizer? Como você se sente ao lembrar do
sonho? Como você se sente ao estar pelado? Etc.
Seguindo nosso estudo sobre o trabalho do sonho,
temos a figuração, o processo de figuração ou de
representação, é a forma, onde o trabalho do sonho
transforma os pensamentos em imagens visuais
representativas.

28
Um exemplo são os desenhos primitivos encontrados
nas paredes de pedra nas cavernas, onde imagens
representativas formam pensamentos e ou
demonstrações das atividades ou desejo, como caçadas e
saudações aos deuses. Temos também, a dramatização,
sendo a forma em que o trabalho do sonho realiza o
desejo com cenas, imagens de objetos e personagens são
criadas para acabar com a censura das representações
sexuais da psique do indivíduo.
Por último, seguimos com a elaboração secundária,
ela é responsável por lugar os conteúdos para formar um
enredo. Nem todos os sonhos passam pela elaboração
secundária, podemos dizer que a função, é criar uma
história no sonho. No estado de vigília o paciente
procura transformar o conteúdo manifesto, com um
significado racional. Fazendo desta forma que o
conteúdo latente fique cada vez mais reprimido,
escondido. Com a associação livre este conteúdo vai
ganhando forma e desta forma o inconsciente expõe a
forma, sendo transformado o conteúdo latente em
consciente.
Em resumo, é nos capítulos 6 e 7 do livro, que Freud
desenvolve o mecanismo de trabalho dos sonhos e o
funcionamento do aparato mental. Apresenta o
mecanismo de deslocamento na possibilidade que as
ideias têm, no inconsciente, de 'emprestar' seu valor
para outras ideias, de modo que fatos ou imagens
aparentemente sem importância podem ter sido
amenizados, com o que burlam a censura, compondo o

29
material do sonho. De forma inversa, fatos que
aparecem no sonho como extremamente nítidos ou
valorizados usualmente ganharam seu relevo por uma
associação a outra ideia, está sim, carregada de sentido.
Vale dizer ainda que a distorção a que o material do
sonho foi submetida nunca é casual ou caótica, e é por
provar isto que o trabalho de Freud adquiriu seu valor.
Uma ideia (um desejo, uma intenção ou mesmo uma
percepção) está permanentemente relacionada a outras.
A natureza desta relação é muito abrangente, podendo
ser determinada pela proximidade espacial ou temporal
em que ocorreu, pela similaridade, pela homofonia,
enfim, por toda uma gama de possibilidades.
O que importa é que a ideia 'principal', uma vez que
tenha sido censurada, não poderá ser reconhecida no
consciente, mas as ideias com as quais se associa, uma
vez que esta associação não seja óbvia, podem ser
utilizadas para representá-la (deslocamento). Então,
lembrando que no inconsciente as ideias buscam sua
expressão, ou nos termos de Freud: os desejos buscam
sua realização, o trabalho do sonho é a maneira pela
qual um desejo pode se realizar por seus substitutos.

30
"Quanto mais rigorosa for a atuação da
censura, mais elaborado será o disfarce".
Sigmund Freud

31
É comum, ao acordarmos saber que sonhamos, mas
não lembrar o conteúdo do sonho, com freqüência,
porém, temos a sensação de nos termos lembrado apenas
parcialmente de um sonho, e de que houve algo mais
nele durante a noite; podemos também observar como a
lembrança de um sonho, que ainda era nítida pela
manhã, se dissipa, salvo por alguns pequenos
fragmentos, no decorrer do dia; muitas vezes sabemos
que sonhamos, sem saber o que sonhamos; e estamos tão
familiarizados com o fato de os sonhos serem passíveis
de ser esquecidos que não vemos nenhum absurdo na
possibilidade de alguém ter tido um sonho à noite e,
pela manhã, não saber o que sonhou, nem sequer o fato
de ter sonhado. Por outro lado, ocorre às vezes que os
sonhos mostram extraordinária persistência na memória,
vira e mexe, o sonho vem para a mente consciente.
Quando estamos acordados, normalmente nos
esquecemos, de imediato, de inúmeras sensações e
percepções, seja porque foram fracas demais ou porque a
excitação mental ligada a elas foi excessivamente
pequena. O mesmo se aplica a muitas imagens oníricas:
são esquecidas por serem fracas demais, enquanto outras
imagens mais fortes, adjacentes a elas, são recordadas.
Quem já não teve a sensação de ter tido muitos
sonhos à noite e ao acordar não conseguir se lembrar de

32
nenhum? Quem não constatou falhas e buracos ao
descrever um sonho?Freud, em “A interpretação dos
sonhos”, no capítulo sobre o esquecimento dos sonhos,
atribui esses fenômenos à censura psíquica e afirma que
“o principal responsável por esse esquecimento é a
resistência anímica ao sonho, resistência essa que já fez
o que pôde contra ele durante a noite”.
Entretanto, naquela época, o psicanalista acreditava
que através da sugestão era possível conseguir que o
paciente se lembrasse de um sonho esquecido, ou, pelo
menos, de suas partes mais importantes, para que esse
fosse minuciosamente interpretado. Pontuava que o
aspecto esquecido era normalmente o mais importante e
usava técnicas, como por exemplo, pedir ao paciente
que repetisse o sonho mais de uma vez, para conseguir
identificar a passagem censurada, e, normalmente, a
parte censurada era aquela “esquecida” por ocasião do
segundo relato. De acordo com Freud, o “empenho do
sonhador em impedir a solução do sonho fornece-nos
uma base para inferir o cuidado com que seu manto foi
tecido”.
Como já estudamos aqui, em aparência absurdos e
desprovidos de sentido, os sonhos se apresentam como
uma cadeia de imagens e eventos sem nexo explícito
para o olhar leigo. Para Freud, porém, estes fenômenos
psíquicos têm um sentido e uma causa, e eles expressam
a realização disfarçada de desejos inconscientes que
estão em conflito na vida anímica do paciente. Nesta
batalha, a representação conflitante é recalcada – mas o

33
desejo segue habitando o inconsciente, buscando
constantemente sua realização – e acaba achando no
sonho uma forma oportuna e viável para se expressar. E
claro, por esse motivo, ocorre muitas vezes, o
esquecimento total ou parcial dos sonhos. Como assim?
Sabemos que o recalcado, são conteúdos que por vezes
não foram digeridos e compreendidos, gerando forte
pressão e desequilíbrio na psique. Agora imaginem o
retorno do recalcado por meio dos sonhos? Mesmo
sendo um sonho confuso, ele é carregado de
representações do recalcado, podendo trazer forte
angústia.
Dessa forma, esquecer parcialmente ou totalmente os
sonhos, está mostrando a resistência, a defesa. Nesse
caso, cabe ao analista, em processo de transferência,
solicitar ao paciente trazer as partes do sonho que se
lembra, buscar as representações e assim como Freud
diz, aos poucos as resistências vão se afrouxando dando
abertura para trazer mais lembranças do sonho.
Você pode estar se perguntando, mas como buscar as
representações? E aqui, devo trazer um exemplo: o
paciente chega até a análise e diz ter sonhado, mas
lembra apenas do cachorro do vizinho que estava
voando. Confuso né? Mas partimos agora, para a busca
da representação: me conta mais sobre o cachorro, o que
você lembra dele? E durante o dia, com que frequência
encontra o cachorro do vizinho? E o vizinho, você tem
amizade, proximidade? Pra você, o que representa um
cachorro? Você gosta de cachorro? E voar, o que pode

34
representar?
Percebe quantas perguntas podem ser feitas para
trazer à mente consciente o sentido do sonho? Por
favor, nada de pesquisar o que significa sonhar com
cachorro. Pergunte para o sonhador, o que representa
para ele o cachorro, afinal, o sonho é subjetivo.

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Você já deve ter lido que a função do sonho, é
guardar o sono, ser guardião do sono. Mas, como
sabemos, os pesadelos geralmente nos acordam, sendo
assim, são sonhos perturbadores, parecem ser exceção a
regra de que todo sonho é realização de desejo. Os
pesadelos nos assustam, mostram cenas terríveis, como
podem representar desejos?
Consideramos pesadelos, quando o sonho expressa
com maior intensidade os desejos que não são admitidos
pela consciência, também podem ser considerados
realização desejo, porém são expressos mais claramente
(sem a devida distorção) e assim se tornando assustador
e ameaçador.
Podemos dizer então, que os pesadelos se tornam tão
assustadores, porque entramos em contato com o real
desejo recalcado, se tornando assim uma grande ameaça
à integralidade da psique.

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No início deste estudo, mencionei que Freud reviu
sua teoria dos sonhos, e passou a estudar os excessos dos
sonhos como realização de desejo. Principalmente pós-
guerra, Freud, constatou inúmeros pacientes com
sonhos pós-traumáticos, sonhos que os pacientes
reviviam com dores e angústia da guerra.
Para teorizar, Freud passa a mencionar os sonhos que
ocorrem numa neurose traumática, que tem como
característica de que o sujeito sempre retorna ao
momento traumático, o que faz retornar o terror - e
assim o sujeito se encontra fixado ao trauma. Esses
sonhos passaram a denunciar que o psiquismo não
funciona exclusivamente pelo princípio de prazer,
passando a estudar a pulsão de morte.
O psicanalista, aponta que os sonhos traumáticos têm
o propósito de recolocar a cena traumática, na
tentativa de restabelecer o princípio de prazer que
foi paralisado pelo trauma.

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Conceito de regressão: os sonhos tomam uma via
regressiva e se manifestam por meio de uma alucinação
(fantasia), uma vivência alucinatória. O sonho é como
um devaneio, o sonho é uma vivência real.

Umbigo dos sonhos: sonhos que não são possíveis de


interpretar.

Sobredeterminação: fenômeno do psiquismo humano


consistente no fato de que uma mesma formação do
inconsciente (sintoma, sonho etc.) pode ser originada
por uma pluralidade de fatores heterogêneos e,
portanto, é passível de receber diferentes interpretações,
simultaneamente verdadeiras. Geralmente, devido a
condensação que aglomera os materiais inconsciente.

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Chegamos então na parte prática, a interpretação dos
sonhos, após entendermos como se formam os sonhos,
como e porque ocorre o trabalho do sonho, adentramos
a interpretação.
Freud recomenda dividirmos os sonhos em partes,
buscando uma associação com o processo de análise,
conforme os elementos trazidos pelo analisante.
Partindo disso, vamos formando uma rede, deve sempre
iniciar com a interpretação do próprio analisante - se
entrarmos com a nossa interpretação podemos ir por
caminhos diferentes.
Os sonhos sonhados na mesma noite, se
complementam, mesmo que o enredo tenha se
apresentado em formato diferente.
Vamos imaginar agora, o paciente relatando um
sonho. Devemos estar atentos no discurso e também nas
expressões faciais, ao concluir o discurso, vamos nos
inteirando das possibilidades: como você se sentiu ao
acordar? como você se sente agora relatando o sonho? o
que o sonho te lembra? Essa parte do sonho te
representa algo? Na interpretação, vale se abrir para
inúmeras perguntas, perguntas a base da interpretação e
não da curiosidade.
Mais concretamente, toda imagem, toda figura que
aparece no sonho, apresenta uma representação, ou seja,
não se sonha - com a mãe, com o pai, com a árvore,

39
com a escada, com o carro, etc- sonha com a
representação de cada uma dessas imagens. Por esse
motivo, a interpretação é investigativa. Qual o
deslocamento feito para essas imagens? O que sonhar
com a mãe está querendo dizer?
Algumas vinhetas clínicas poderão ilustrar estas
perguntas, vou lhes apresentar dois sonhos em contexto
clínico nas quais observamos o psicanalista em ação.

Nunca sonhei com o meu pai

É extremamente importante se atentar a forma que o


paciente relata o sonho. Viviane vem para a sessão
relatando nunca sonhar com o pai, e segue dizendo o
sonho que tivera na mesma noite: “estava em um lugar
com um lago muito sujo e eu precisava atravessá-lo para
chegar até uma cabana abandonada. Eu não queria
passar pelo lago, então encontrei um meio de passar pela
lateral sem precisar entrar, cheguei até a cabana, abri a
porta e acordei”. Demos início a interpretação: “Você se
recorda como se sentiu ao acordar desse sonho”?
perguntei. “muito angustiada” respondeu. Prossegui:
“quando você pensa em lago sujo, o que te vem na
mente?”, “Por que você acha que não conseguiu entrar
no lago?”.

40
Conforme as respostas vinham, associamos a fala que
antecedeu o discurso do sonho: “Você disse que nunca
sonhou com o seu pai e logo relatou esse sonho, será
que tem alguma possibilidade de estar representando a
sua história com a figura paterna?” perguntei. Logo
Viviane respirou fundo e disse: “No sonho, estava difícil
acessar a casa e eu sabia que tinha que acessar, assim
como é difícil eu falar sobre o meu pai, mesmo sabendo
que é importante falar sobre ele em terapia”.
Nesse momento já adentramos a um possível sentido,
sonhar com a figura paterna não é permitido pelo
superego, dessa forma, o trabalho do sonho, condensa e
desloca as informações de pensamentos, sentimentos e
emoções em relação ao pai e desloca para a imagem da
casa e a dificuldade de acessar esses conteúdos para a
imagem do “lago sujo”.
No sonho ela realiza o desejo de acessar o pai, mesmo
que por um atalho.

Sonhei com você

Vejamos agora o sonho da Nathália: “sonhei que eu


estava grávida e que você era a parteira. Quando o bebê
nasceu, ele era a minha cara, tinha o meu nome e tinha
nascido no mesmo dia que eu nasci”.

41
Segui fazendo algumas perguntas: “e o que você
consegue entender desse sonho?”, “o que gravidez
simboliza para você?”, “qual a representação da figura
do analista para você?”, “Como foi a sua gestação?”. Por
meio da interpretação, Nathália encontra sentido no seu
sonho: “Gravidez representa para mim uma vida nova e
você está possibilitando isso através da análise. Então o
sonho pode ser o meu autoconhecimento”.
Mais uma vez podemos ver a realização de desejo
por meio dos sonhos, a paciente realizou o desejo de
mudança, de novas visões e sentidos. E você pode estar
se perguntando, se dar sentido é algo bom, porque
realizar por meio dos sonhos e não sentir de forma
consciente? Nathália resiste à mudança por entender
que ela não pode pensar e agir diferente do padrão
familiar, dessa forma, só é possível por meio dos sonhos.

42
Nós, psicanalistas, temos, portanto, que
enxergar a interpretação dos sonhos
como um excelente método e entender
que a tese central dos estudos dos sonhos
segundo Freud é “o sonho é a realização
de um desejo”. Este desejo, não é
necessariamente um desejo que possamos
aceitar conscientemente. Quando não se
trata de um desejo aceitável, Freud diz
que preferimos esquecê-lo. Este
esquecimento será descrito como
consequência de um mecanismo chamado
recalque, o desejo recalcado, no entanto,
permanece exercendo seus efeitos, os
sonhos são apenas um exemplo desses
efeitos.

43
Cintia Poveda

A Interpretação dos
Sonhos

Aprenda a utilizar a
interpretação dos sonhos na
sua prática clínica de forma
tranquila e sem insegurança.

ainterpretacaodossonhos.com.br

44
Cintia Poveda

Referências Bibliográficas

Freud, Sigmund, 1856-1939. A Interpretação dos Sonhos /


Sigmund Freud: tradução de Walderedo Ismael de Oliveira:
Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001. 616pp.

R765d Dicionário de psicanálise/Elisabeth Roudinesco,


Michel Plon; tradução Vera Ribeiro, Lucy Magalhães;
supervisão da edição brasileira Marco Antonio Couti- nho
Jorge. — Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

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Cintia Poveda

Quem é Cintia Poveda

Cintia Poveda é Psicanalista, escritora, professora e


supervisora clínica na Sociedade Nacional de Estudos e
Saberes Psicanalíticos (SNESP) e supervisora clínica.
No ano de 2009 iniciou sua trajetória como Psicanalista e ao
longo de seu percurso foram inúmeros estudos. É graduada
em Terapia Ocupacional, especialista em Saúde Mental e
especialista em Dependência Química. Em 2019 realizou o
sonho de abrir uma escola de formação em Psicanálise, que
tem por objetivo, levar a Psicanálise de uma forma ética e
descomplicada, já ensinou mais de 800 alunos nos mais
variados cursos ministrados pessoalmente e/ou on-line.
Cintia acredita profundamente que todo profissional não
deve parar de se aperfeiçoar, para ela o conhecimento liberta
e qualquer pessoa pode aprender algo novo.
Seu primeiro livro está à venda no site da editora dialética:
O desejo de não sentir dor: psicanálise e drogas.

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