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MANUAL PRÁTICO

Psicanálise
Clínica
ESTÁDIO DO ESPELHO E
CONSTITUIÇÃO PSÍQUICA:
IDENTIFICAÇÃO
O conceito de identificação é muito caro à Psicanálise desde Freud e perpassa uma
gama de outros conceitos que se articulam e abrem espaço para muitas discussões
acerca da teoria e técnica psicanalítica. Isso significa que para falarmos de identifi-
cação precisamos passar por alguns conceitos de Freud que se relacionam e consti-
tuem uma rede de construções teórico-clínicas até passarmos para o pensamento
de Lacan.
Com passar para o pensamento de Lacan, significa basicamente que os dois autores
não falam a mesma coisa sobre esses conceitos que serão trabalhados aqui. Não
é novidade que Lacan toma a Psicanálise a partir de uma reviravolta epistêmica e
avança em diferentes níveis, estabelecendo e deixando muito claro qual é o objeto,
o problema e os fundamentos da sua Psicanálise.
A nível conceitual, precisamos nos ater em conceitos como: narcisismo, eu, eu ide-
al, ideal do eu e a tópica do imaginário, que é quando nos aproximamos mais da
teoria de Lacan. Todo aquele que se debruça sobre a Psicanálise, seja ela qual for,
percebe que não é possível pensar a teoria e o direcionamento de uma análise sem
que seus conceitos estejam articulados e tomados em conjunto, tornando inviável
pensar o arcabouço teórico de forma isolada. Esse mesmo fato se dá na clínica, que
implica inúmeras construções epistêmicas para sustentar isso que denominamos
de discurso do analista.

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Narcisismo

Eu

Identificação Conceitos
articulados Eu ideal

Ideal do eu

Imaginário

O primeiro ponto que devemos pautar o nosso pensamento a respeito da identifi-


cação é, necessariamente, a partir do narcisismo.
Narcisismo é um termo que surge a partir do mito grego de Narciso, uma figura mí-
tica que se apaixona pela própria imagem ao se deparar com o reflexo de si. O mito
é utilizado para descrever situações em que as pessoas se apaixonam pela própria
imagem e, necessariamente, se torna objeto de si. A partir dessa narrativa mitoló-
gica, toma-se o narcisismo como um termo que se refere a essa situação. O narci-
sismo aparece frequentemente em Freud e é inviável pensar a estrutura psíquica,
o eu e a constituição da identidade sem que abordemos o narcisismo. Ainda que o
narcisismo se faça presente em toda a construção freudiana da Psicanálise, não é
um conceito que primeiramente foi abordado por Freud, mas que foi definido pela
Psicanálise dentro de sua possibilidade nesse campo (FREUD, 1914).
Aqui não abordaremos o narcisismo como um transtorno. Ainda que a Psiquiatria
ou outras áreas possam entender, também, o narcisismo a nível psicopatológico,
tratando-se de outra discussão. Nesse material, nos baseamos em Freud (1914) que
define o narcisismo como um mecanismo psíquico que se trata do investimento
que o eu1 faz em si mesmo, que se relaciona diretamente com a autopreservação

1 Na edição utilizada do texto de Freud, encontra-se a tradução “ego” para se referir ao


eu, mas aqui optamos por manter o termo “eu” por uma questão didática e para facilitar o
diálogo com outros autores aqui citados.

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intrínseca das pulsões2 do eu, que se voltam sempre ao objetivo de resguardar e
proteger o indivíduo.
Em linhas gerais, o narcisismo trata-se do ato de amar a si mesmo, o que se cons-
titui como uma condição necessária e natural da espécie. Vale pontuar que aqui
percebemos um caráter muito voltado à biologia que se faz presente na teoria freu-
diana do narcisismo.
Mas como se dá esse processo de amor a si mesmo?
Desde Freud, não é possível pensar o indivíduo de forma isolada, seja através da
espécie (paradigma biológico da teoria freudiana) ou através de sua relação com
os outros (seja o grupo, cuidadores, família etc.). Freud (1921) define que para sua
teoria não há diferença entre psicologia individual e psicologia social, defendendo
a ideia de que não devemos desprezar a relação do indivíduo com os outros e en-
tender isso como uma condição necessária para pensar uma análise. Com isso, o
narcisismo surge da relação com os outros, desde antes do nosso nascimento.
A ideia de um narcisismo que precede a nossa existência inverte as noções tempo-
rais e põe a nossa existência como dependente da relação que estabelecemos com
os outros. Esses outros, normalmente, são nossos pais ou aqueles que primeiro
exercem um papel de cuidado e que pensam na nossa existência antes mesmo do
nosso nascimento. Freud (1914) trabalha com a ideia de que somos investimentos
narcísicos dos nossos pais, que idealizam e transmitem ideais sobre nós e com isso
formamos esse primeiro contato com o nosso narcisismo, sendo um amor a si, mas
que advém dessa primeira afirmação que parte do outro.
Vejamos o que Freud (1914) diz a respeito disso:

A criança concretizará os sonhos dourados que os pais jamais rea-


lizaram – o menino se tornará um grande homem e um herói em
lugar do pai, e a menina se casará com um príncipe como compen-
sação para sua mãe. No ponto mais sensível do sistema narcisista,
a imortalidade do ego, tão oprimida pela realidade, a segurança é
alcançada por meio do refúgio na criança. O amor dos pais, tão co-
movedor e no fundo tão infantil, nada mais é senão o narcisismo

2 Aqui também optamos por questões didáticas pela utilização do termo “pulsão” ao invés
de “instinto”, ainda que a edição utilize “instinto” para traduzir a palavra “trieb” do alemão.

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dos pais renascido, o qual, transformado em amor objetal, inequi-
vocamente revela sua natureza anterior (FREUD, 1914, p. 98).

A respeito dessa citação temos um ponto importante para pensar a questão da


identificação, que é o fato de termos duas formas de amor: o amor narcísico e o
amor objetal, mas que ainda que tenhamos um amor objetal, ele retorna sempre a
essa identificação narcísica que construímos.

Amor narcísico
Investimento
Duas formas
Identificação Narcisismo narcísico
de amar
do outro
Amor objetal

É aqui que entra o conceito de eu ideal, tratando-se dos ideais transmitidos ao eu


pelo outro, criando possível formas de relação objetal a partir daquilo que toma-
mos como identificação daquilo que foi idealizado sobre nós. O ideal do eu seria
já a nossa identificação àquilo que o outro transmitiu e que tomamos como um
caminho possível para a nossa existência.
A partir daqui podemos então pensar em uma definição de identificação dada por
Freud (1921, p. 109): “A identificação é conhecida pela psicanálise como a mais re-
mota expressão de um laço emocional com outra pessoa”. Definição que sustenta a
identificação como um fato que dependa de uma relação, não sendo algo do cam-
po individual, que até aqui vemos que não é viável para a teoria freudiana. Porém,
a identificação é uma via de mão dupla que transitamos entre amar a si e amar o
outro, de forma que a identificação possa ser pensada como algo plural por sua
diversificação.
Após definirmos e fazer um percurso sobre a identificação em Freud, tomamos
esse mecanismo agora a partir da teoria lacaniana, que vai abordar a identificação
por outra via que é a da teoria do significante, isso quer dizer que a identificação
em Lacan vai se tratar de um fato de linguagem (LACAN, 2009).
A forma que Lacan encontra de trabalhar a identificação é através de sua teoriza-
ção acerca do estádio do espelho que é, de forma geral, uma etapa de constituição
do sujeito que se dá pela formação do eu enquanto algo do campo do imaginário. O
estádio do espelho não se trata de uma fase do desenvolvimento, como uma fase.

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A proposta de Lacan não é a de sustentar uma teoria desenvolvimentista e que es-
tágios evolutivos sejam seguidos como um padrão, o que significa que o estádio do
espelho diz respeito a uma estrutura de constituição do eu atrelado ao campo da
linguagem (SOUZA & DANZIATO, 2014). Claramente, o termo estádio do espelho
se trata de uma metáfora para discorrer sobre esse mecanismo de identificação.
Através do sistema imaginário, o indivíduo constitui a sua imagem corporal através
dos ideais transmitidos pelo outro e a partir disso, constrói consistência corporal
(que difere da ideia de organismo) e estrutura um eu como resultado dessa relação
de identificação de ideais. A identificação a nível imaginário vai ser a partir do refe-
rencial que se toma daqueles que inicialmente investem energia para o cuidado, o
que Lacan (1949) vai chamar de identificação com a imago do semelhante.
Segundo Lacan (1949):

O estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipi-


ta-se da insuficiência para a antecipação – e que fabrica para o
sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, as fanta-
sias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo
até uma forma de sua totalidade que chamaremos ortopédica – e
para a armadura enfim assumida de uma identidade alienante,
que marcará com sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimen-
to mental (LACAN, 1949, p. 100).

Identidade alienante é o resultado desse processo de constituição, que pode ser


pensado como alienação da linguagem, já que esses ideais partem da estrutura
do significante, o que define a alienação como um processo discursivo e que parte
do Outro enquanto lugar do significante. Nesse ponto nos aproximamos da iden-
tificação para além do imaginário, mas em sua articulação simbólica, já que trata
diretamente de um mecanismo que parte da linguagem, deixando claro o posicio-
namento de Lacan a respeito de sua teoria de que a estrutura é significante e que a
realidade discursiva é o que impera na sua demarcação teórica da psicanálise e que
diferencia da teoria freudiana (LACAN, 2008a; LACAN, 2008b).
Em resumo, vejamos o quadro abaixo para recapitularmos o nosso raciocínio acer-
ca da identificação em Psicanálise:

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A identificação
z É um conceito caro à psicanálise desde Freud.
z Está articulado com outros conceitos: Narcisismo, eu, eu ideal, ideal do eu e imaginário.
z O narcisismo é um ponto de partida para compreender a identificação.
z O narcisismo é, para Freud, o investimento que o eu faz em si mesmo, criando um amor
a si como uma forma de autopreservação.
z O narcisismo é algo que precede o nosso nascimento, primeiramente sendo transmitido
pelas idealizações que os pais/cuidadores fazem de nós.
z Primeiro, o outro investe narcisicamente e posteriormente podemos pensar as relações
de investimento como: investimento em si mesmo e o investimento objetal,
z A identificação para Freud diz respeito à relação que temos com os outros e como
tomamos isso como um referencial,
z Lacan vai abordar a identificação como um fato de linguagem,
z O estádio do espelho seria um mecanismo de constituição do eu e da imagem corporal que
ilustra a identificação como transmissão de ideais a partir de uma realidade discursiva,
z A identificação pode ser tomada como imaginária e simbólica,
z A identificação forma a identidade alienante a partir da estrutura significante,

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REFERÊNCIAS

1. Souza LB, Danziato LJB. Das relações entre identificação e nomeação: o


sujeito e o significante. Revista Subjetividades 2014;14(1). Disponível em:
https://doi.org/10.5020/23590777.14.1.53-61. Acesso em: 26 fev. 2021.
2. Freud S (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução. In: Freud S. Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago;
1996. v. XIV.
3. Freud S (1914). Psicologia de grupo e a análise do ego. In: Freud S. Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago;
1996. v. XVIII.
4. Lacan J (1949). O estádio do espelho como formador da função do eu. In:
Lacan, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar; 1998.
5. Lacan J (2008a). O seminário, livro 20: mais ainda. Rio de Janeiro: Zahar;
2008.
6. Lacan J (2008b). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar; 2008.
7. Lacan J (2009). O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de
Janeiro: Zahar; 2009.

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