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#017 - Furos de roteiro, reintegração e a relação da histérica com a Outra mulher

Aula passada:

Comentamos algumas das notas preliminares que Freud coloca antes de iniciar a
apresentação do caso: a questão do sigilo, o objetivo original do trabalho e a técnica
utilizada com Dora.
A principal finalidade de Freud ao escrever e publicar esse trabalho era mostrar como a
interpretação dos sonhos é um procedimento que pode e deve ser utilizado no tratamento
psicanalítico, ele quis mostrar que tudo o que escreveu no livro “a interpretação dos sonhos”
não era apenas um conhecimento irrelevante. Todo o trabalho que ele teve pra mostrar de
que sonhos poderiam ser interpretados e que seria possível encontrar as raízes subjetivas dos
sonhos, ele quis mostrar que isso tem utilidade no trabalho psicanalítico.

O primeiro título que Freud pensou para esse artigo foi “Sonhos e histeria” porque esse era o
principal intuito. O objetivo não seria mostrar a eficácia da psicanalise ou mostrar como ele
soube conduzir bem o caso de histeria porquê de fato não se trata disso, o caso é um fracasso
do ponto de vista terapêutico mas ele exemplifica e ilustra de maneira bastante clara como a
gente pode utilizar a interpretação dos sonhos durante um tratamento psicanalítico.

Freud vai dizer também nessas notas preliminares que ele utilizou no tratamento de Dora uma
técnica diferente da que ele havia utilizado com suas pacientes que ele descreve nos estudos
sobre histeria, naquela época (1895) Freud ainda estava muito ligado à Breuer e então ele
utilizava com aquelas pacientes o método catártico que foi inventado por Breuer (não é um
método psicanalítico ainda) que consistia em ir atacando sintoma por sintoma, pedindo à
paciente que tentasse se lembrar da ocasião em que o sintoma havia surgido, a paciente se
lembrava e então permitia que na sessão em hipnose ou sem hipnose ela descarregasse o
afeto que havia sido reprimido na cena que deu origem ao sintoma, a paciente descarregava
esses afetos e então ela ficava curada do sintoma. Com Dora Freud utilizara o método
psicanalítico que é chamado de associação livre em que se pede para o paciente para que fale
o que vier à cabeça. A aposta de Freud ao propor esse método é que o paciente
inevitavelmente falaria sobre as questões que estão na origem de seus sintomas, não era
preciso ter pressa, a boca fala do que o coração está cheio, então o paciente inevitavelmente
acabaria expressando sua verdade através da associação livre ainda que de maneira distorcida,
disfarçada mas a verdade estaria sempre presente em seu discurso. Isso que Freud utiliza com
Dora.

Vimos também os primeiros apontamento que Freud faz na seção sobre o quadro clínico,
enfatizando a importância da interpretação dos sonhos e explicando as inevitáveis lacunas
presentes no relato dos pacientes sobre sua própria história.
No início do quadro clinico ele volta a enfatizar a importância da interpretação dos sonhos
mostrando que os sonhos são formações do inconsciente, eles são meios através dos quais nós
inconscientemente expressamos as ideias, os pensamentos que nós reprimimos, pensamentos
que estão ligadas ao desejo, ligados a impulsos. Esses pensamentos reprimidos podem
retornar à consciência de maneiras disfarçadas, uma das maneiras através das quais os
pensamentos reprimidos retornam é através dos sonhos.

Se o objetivo da psicanalise é justamente levar o paciente a ser capaz de reconhecer a sua


verdade, reconhecer os pensamentos que ele reprimiu e que portanto caracterizam aquilo que
ele verdadeiramente deseja, nesse caso, a interpretação dos sonhos precisa ter lugar no
tratamento psicanalítico porque dentro todas as manifestações do inconsciente o sonho
representa a principal delas, é o caminho mais seguro para o encontro com o modo de
funcionamento do inconsciente, com o modo como o inconsciente trabalha. É mais fácil
perceber o inconsciente no sonho do que no sintoma por exemplo, o sintoma apresenta uma
faceta muda no sentido de não falar, se apresenta como um bloco rígido difícil de ser analisado
e esmiuçado. O sonho não, o sonho se presta mais facilmente a esse trabalho de decifração
que faz parte do tratamento psicanalítico.

Freud também vai falar sobre as inevitáveis lacunas presentes no relato dos pacientes sobre
sua própria história. “Aqueles entre vocês que praticam ou pretendem praticar a psicanálise e
esperarem encontrar na boca de seus pacientes relato claro, límpido, preciso acerca de sua
própria história vocês se frustrarão porque isso não vai acontecer, e se acontecer você deveria
olhar isso com muita suspeita porque na verdade a própria estrutura do adoecimento
neurótico ele produz necessariamente amnésias, lacunas, buracos, furos na narrativa que o
paciente faz de sua própria história, isso é inevitável”. Freud vai dizer que o modo como o
paciente conta sua história tem a ver com o reconhecimento do que ele permite que esteja
disponível no seu eu/ego, então se determinados pontos da história entram em choque com
seu eu ideal, com aquilo que ele pretende ser, se pontos de sua historia entram em choque
com isso a saída neurótica é apagar esses pontos, e por isso que os pacientes ao falar com sua
própria história frequentemente usarão expressões como “não sei” “não me lembro” “não sei
se isso aconteceu antes ou depois” “pode ser só uma coisa da minha cabeça”, e partir daí que
começa a aula de hoje.

Por que os pacientes não conseguem expor a própria história com clareza e precisão? Freud
elenca 3 fatores: (1) a “falta consciente de franqueza” provocado por sentimentos como
timidez, vergonha e discrição; (2) a “insinceridade inconsciente”; e (3) as “amnésias
verdadeiras” resultantes do recalque e possíveis paramnésias correlatas.
Por mais que nos peçamos aos nossos pacientes para fazerem uso da associação livre, a grande
maioria não vão seguir a associação livre, no final das contas, a associação livre é um ideal mas
não é um procedimento fácil de se cumprir. Frequentemente veremos paciente fazendo de
fato associação livre no final do tratamento, decorrido alguns anos de terapia, porque nos
primeiros momentos/meses de terapia o paciente tem uma série de pensamentos em relação
a você, então ele pode muito bem não contar uma série de coisas que passam na cabeça dele
por timidez, vergonha.

Algumas das lacunas que observamos no discurso do paciente é devido essa falta consciente
de franqueza.

(2) Lacunas que tem a ver com a insinceridade inconsciente, ou seja, o paciente até contaria
mas ele não conta porque naquele momento não lhe ocorre, o seu ego não permitiu que
aquela ideia aparecesse naquele momento da análise, então ela ficou no pré-consciente e não
se tornou consciente porque o ego não quis. Não se trata de uma vontade consciente de não
contar, mas a parte inconsciente.

(3) Processo de recalque, ou seja, o paciente nem em outro momento poderia falar pra você
aquilo porque foi reprimido porque está no inconsciente e pra ser trazido de volta à tona não
basta apenas a passagem do tempo, vai ser necessário o trabalho psicanalítico propriamente
dito.
Freud pontua que a defesa contra certas memórias pode se apresentar não só por meio de
amnésias, mas também mediante a alteração da ordem cronológica dos acontecimentos.
É muito típico de ditaduras operarem uma reformulação da história, ou seja, eu não
necessariamente apago uns elementos mas conto uma história diferente sobre eles, dou uma
reformulada na descrição original, e assim faço com que aquela memória não seja mais
incompatível com a versão original. Então para não dizer pra mim mesmo que de repente um
sintoma meu tem a ver com certa experiência sexual que passei na adolescência, digo pra mim
mesmo que na verdade meu sintoma começou antes da experiência sexual que vivi na
adolescência. Se faz essa reformulação pra se proteger.

A memória é uma ilha de edição. Freud mostra que podemos alterar a cronologia, digo que
algo aconteceu antes mas que na verdade pode ter acontecido depois e vice-versa.

Algumas lembranças podem se apresentar “num primeiro estágio de recalcamento”. Por


isso, aparecem “cercadas de dúvidas”. Em nota de rodapé, Freud orienta os analistas a
desconsiderarem a dúvida e a se fiarem na primeira versão de uma narrativa caso haja
dúvida entre duas.
Freud se dá conta e mostra que o processo de recalque tem uma fase inicial e uma fase final.
Nessa fase inicial o ego não sepulta de imediato a ideia, num primeiro estágio de recalcamento
o ego coloca aquela ideia em dúvida. Ex: Digo pra mim assim: a minha mãe abusou
sexualmente de mim. Passei por esse situação e digo pra mim mesmo isso, eu conto essa
história (a versão original) mas essa versão original o meu ego não aguenta, porque no ego
estão outras ideias como “não é adequado ter envolvimento sexual com a mãe” “a minha mãe
tem que ser alguém pura” então não consigo conciliar a memória do abuso sexual com outras
ideias que estão presentes no ego. O que o ego faz em primeiro momento? Ele coloca dúvida,
não apaga de uma só vez e coloca em dúvida o que faz o sujeito ficar se perguntando
“aconteceu ou não aconteceu?” “será que ela de fato abusou sexualmente de mim ou foi uma
fantasia?” “será que aconteceu com outra pessoa e estou atribuindo à minha mãe?”.

O segundo estágio do recalcamento é o sepultamento. Então no primeiro momento fico em


dúvida e a sustento por algum tempo e depois de algum tempo apago completamente. Mas
por o que Freud está dizendo é possível que algumas memórias/ideias não tenham ido pro
segundo estágio e tenham permanecido no primeiro estágio de recalcamento.

Qual orientação clinica que Freud dá? Pag 28: Se o paciente apresentar dúvidas em relação a
um ponto, desconsidere a dúvida porque a dúvida é colocada depois, o ponto de interrogação
no início. Parta do pressuposto de que aquela memória aconteceu, existe de fato na mente
desse paciente a memória de uma cena de abuso, essa memória pode ser fantasistica mas
existe na mente do paciente essa cena, quando ele coloca em dúvida é uma estratégia do ego
para se defender.

Segundo indicativo clinico é quando o paciente chega com duas versões da história, acredite
na primeira.

Freud assinala que esses “furos” na história do paciente são tamponados pelos sintomas. Em
outras palavras, depositamos no adoecimento os capítulos que censuramos da narrativa de
nossa própria existência.
Depositamos no adoecimento justamente esses capítulos que censuramos, é como se nossa
vida fosse um livro e a gente tentasse arrancar páginas desse livro, mas arrancamos as páginas
desse livro e essas páginas vão pra algum lugar e esse lugar é justamente a doença. A nossa
vida ao invés de parecer com uma história com tudo encaixado, parece com aqueles filmes mal
feitos que é cheio de buraco, cheio de furo no roteiro, e esses furos no roteiro, esses pontos
que não conseguimos explicar, que não nos lembramos, que tem uma característica incerta,
esses pontos estão sendo tamponados e preenchidos pelos sintomas. Os capítulos da nossa
vida que censuramos, que não queremos que faça parte do livro da nossa vida está todos
depositados no sintoma.

“O inconsciente é o capitulo de minha história que é marcado por um branco ou ocupado por
uma mentira mas a verdade pode ser resgatada” Lacan. Como se estivesse assistindo um filme
e de repente corta uma parte e aí você não consegue entender o restante do filme.

A aposta da Psicanalise é a de que a eliminação do sintoma se dá pelo resgate e reintegração


desses capítulos censurados. A doença vai perdendo a função à medida que nos dispomos a
reconhecer nossa própria história.
Não queremos apenas ajudar nossos pacientes a relembrarem aquilo que lhes aconteceu ou
aquelas fantasias que estavam presentes em sua consciência e agora não estão mais, o
trabalho da psicanalise não é um trabalho como acontecia no método que catártico que é um
trabalho apenas de recordação.

“Recordar, repetir e elaborar”

O que é a elaboração? O que chamamos em psicanalise de elaboração é na prática um


processo de reintegração. Analogia: Imagina que você recebeu um filme pra assistir, e aí esse
filme vem cheio de partes em branco e quando volta você não entende o que aconteceu
porque ficou faltando aquela parte, e então vem outra parte branca e quando volta você não
entendeu. Porque? Porque essas partes que você não viu são essenciais pra compreensão da
trama e como você não teve acesso a elas você não entende. Esse é o estado em que os nossos
pacientes nos procuram, como se eles chegassem para nós e dissessem “eu vim aqui porque
não entendo” “tenho essa dor de cabeça, esses pensamentos obsessivos, tenho essa
depressão mas o problema é que eu não entendo, eu funciono de uma maneira que não
entendo a lógica, diz pra mim porque sou desse jeito?”. O paciente portanto é esse filme com
partes faltando. E aí vamos supor que nosso trabalho como psicanalista fosse apenas de
resgatar essas partes que estão faltando e joga-las pro paciente, resolveria o problema? Não.

Eu tô assistindo o filme e tem várias partes em branco, então uma pessoa me manda todas as
partes que estão faltando, eu vou saber encaixar cada uma das partes que estão faltando nas
suas respectivas lacunas? Isso vai demandar um trabalho, somente receber essas partes
faltantes não vai resolver o problema e eu vou ter o trabalho de assistir ao filme várias vezes
até conseguir encaixar cada uma dessas partes nas suas respectivas lacunas.

Ao longo de uma análise temos a impressão de que estamos repetindo, que estamos passando
pelos mesmos pontos mas é necessário. Para fazer esse trabalho de reintegração foi
necessário ver o filme várias vezes.

Na sequência, Freud assinala que, no tratamento psicanalítico, é preciso direcionar o olhar


para as “circunstancias puramente humanas e sociais dos enfermos”, em especial para o
círculo familiar do paciente.
Quando estamos lidando no tratamento psicanalítico das neuroses nosso olhar não se volta só
para a doença do paciente, na psicanalise a gente presta muita atenção naquilo que ele chama
de “circunstâncias puramente humanas e sociais dos enfermos”, nosso olhar biopsicossocial.
Além dos aspectos familiares de Dora que já vimos na primeira aula, Freud assinala a
existência de uma tia supostamente neurótica que teria morrido de um “marasmo que
progrediu rapidamente" e d” um tio que era um “solteirão hipocondríaco”.

Freud acredita que na última fase de sua histeria, Dora teria tomado como modelo essa tia
que teria vivido “acabrunhada por um casamento infeliz”. A esse respeito, vale a pena citar o
que diz Joel Dor sobre a identificação histérica:
O quadro depressivo de Dora não foi por acaso, Dora estava inconscientemente imitando a tia.

As pacientes histéricas frequentemente fazem imitação, tomam uma determinada mulher


como modelo e se identificam a essa mulher. Identificação em psicanalise é imitação
inconsciente. Tem a imitação consciente e a inconsciente que é a identificação. A identificação
com uma mulher é um fenômeno muito típico da histeria feminina.

“É lugar-comum constatar que a histérica fixa este ou aquele modelo feminino para tentar
assumir sua própria feminilidade [...] Se a histérica tão facilmente se deixa subjugar por uma
outra mulher investida como modelo, é porque esta última é suposta poder responder à
questão crucial da histérica: o que é ser uma mulher? (Dor, 1994, pp. 79-80, grifo do autor)
Para assumir a própria feminilidade a histérica precisa de uma outra mulher, se a histérica tão
facilmente se deixa subjugar por uma outra mulher investida como modelo, é porque está
última é suposta poder responder a questão crucial da histérica “o que é ser uma mulher”.

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