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LENDO FREUD #02 - O poder revelador da transferência

Compêndio da psicanalise, esse título você não vai encontrar lá na edição Standar porque lá
está obra é traduzida como “esboço de psicanalise” invés de “compêndio”, trata-se de uma
obra inacabada, Freud não finalizou esse texto porque ele veio a falecer antes de completar
esse trabalho e é um trabalho bom porque apesar de não está completo, a pretensão de Freud
ao escreve-lo é apresentar como muitas vezes ele fez ao longo de sua trajetória como
psicanalista e pesquisador apresentar uma versão resumida da teoria psicanalítica. Como
vemos nas aulas ao vivo nas 5 lições Freud faz isso, mas aqui Freud já havia descoberto uma
sérue de outras coisas, é um trabalho do final da vida dele que foi escrito por volta de 1938.
Aqui vai encontrar praticamente toda a teoria psicanalítica do ponto de vista freudiano,
incluído os desenvolvimentos feitos a partir de 1920, como a divisão mente em id, ego e super-
ego, o conceito de pulsão de morte, a segunda teoria da angustia, tudo isso vai encontrar
nesse texto “compendio da psicanalise”.

Sem mais delongas quero mostrar o trecho que gostaria de comentar com vocês, esse trecho
se encontra na página 110 dessa edição de bolso, na parte 2 – a tarefa prática no capitulo 6 em
que Freud trata da técnica psicanalítica, é um texto muito interessante porque Freud abusa da
sua elegância na escrita, porque ele é de uma concisão e ao mesmo tempo de uma clareza
impressionantes neste livro. Aqui Freud fala o seguinte, ele fala da importância da
transferência e diz o seguinte:

“Outra vantagem da transferência é que nela o paciente nos apresenta com clareza plástica
um fragmento importante de sua história de vida, sobre o qual, em outras circunstancias,
provavelmente nos teria dado apenas informações insuficientes. Ele age diante de nós, por
assim dizer, em vez de nos fazer um relato.”

Foi justamente levando em consideração este trecho da obra de Freud e vários outros trechos
que eu certa vez formulei a tese de que a transferência é a apresentação do inconsciente ao
vivo e a cores. Porque? Porque como Freud diz nesse trecho, o que acontece na transferência
não é apenas, como muitas pessoas costumam fazer parecer, não é apenas um vinculo afetivo
entre o paciente e o analista, muitas vezes percebo que pessoas reduzem o fenômeno
transferencial apenas a isso, elas dizem “não rolou a transferência” querendo dizer com isso
que o vínculo entre o terapeuta e o paciente não foi estabelecido, mas o fenômeno da
transferência é muito mais amplo que esse, inclusive Freud faz questão de dizer nos seus
escritos técnicos, em alguns trabalho que Freud fez especificamente voltados para técnica
psicanalítica por volta de 1912, Freud faz questão de dizer que nós temos a transferência
positiva e a negativa, esse vínculo ao qual todos se referem ao falar da transferência é a
transferência na sua vertente positiva em que o paciente dirige sentimentos de respeito, de
admiração ao analista e se forma um vínculo, mas temos também a transferência negativa que
é quando o paciente dirige ao psicanalista sentimentos que são da ordem da resistência ao
tratamento, sentimento que muitas vezes são de ordem agressiva, sentimentos de aversão,
isso pode acontecer também e isso faz parte do processo psicanalítico, chamo sua atenção pra
isso porque eu escolhi esse trecho exatamente coincidentemente hoje atendendo algumas
pacientes eu justamente fui apresentado a manifestações transferências de ordem negativa,
pacientes que na transferência expressaram a sua resistência ao processo analítico, e o que me
leva a dizer que era de transferência que se tratava naqueles casos aos quais estou me
referindo? Estou falando por exemplo de uma paciente que se sentiu abandonada pelo seu pai
na infância e por conta disso desenvolveu certa magoa dele e uma resistência, uma aversão
melhor dizendo á figura masculina de forma geral, isso me permitiu compreender porque a
analise dessa paciente vinha sendo tão complicada no sentido de que ela se abria muito
pouco, tinha dificuldade pra falar, ela respondia as perguntas de forma muito sucinta, e
quando ela me trouxe alguns elementos dessa história com o pai, eu pude perceber com
clareza que ela estava reproduzindo sua defesa contra o amor do pai, contra esse sentimento
de abandono que ela experimentou na relação com o pai, ela estava transferindo isso pra mim.
De certa forma, o medo de ser novamente abandonada pelo pai era o que a impedia de se
entregar à relação comigo no processo terapêutico, então por conta disso ela resistia, ela se
mantinha cautelosa, ela tinha dificuldade pra falar, isso me permitiu enxergar o inconsciente
dessa paciente ao vivo e a cores, ali durante a sessão de análise. Embora ela tenha relatado
elementos que me indicavam que havia um sentimento de abandono e ao mesmo tempo uma
magoa desse pai, ela não trouxe exatamente isso pra mim, ela relatou o que tinha acontecido
mas o que se passava no inconsciente dela só se apresentou transferencialmente, da mesma
forma que outra paciente que foi bastante humilhada na infância, que experimentou diversos
sofrimento e situações difíceis na infância e acabou por conta disso, por desenvolver um falso
self, acabou desenvolvendo uma personalidade para o consumo externo á fim de se defender
de todas aquelas dores que haviam acontecido com ela, essa paciente também no tratamento
comigo vinha tendo muita dificuldade para expressar o que de fato se passava com ela, o
sofrimento do qual ela padecia, e esse sofrimento só veio á tona hoje, no momento em que
transferencialmente pude compreender que essa paciente estava transferindo na relação
comigo a mesma defesa que ela utilizava de modo geral na vida contra as memórias do
sofrimento, assim como na vida ela se apresentava como forte, resiliente, como capaz de
superar todos os obstáculos, ela fazia a mesma coisa na analise, mas na analise esse tipo de
defesa é prejudicial ao tratamento porque o tratamento psicanalítico exige que o paciente se
abra e se coloque de maneira vulnerável, porque do contrário a gente não consegue avançar,
as feridas precisam estar expostas para que a gente possa trata-las, você percebe que na
transferência o paciente atualiza, coloca em ato aquilo que se passa nas regiões mais
profundas da sua alma, aquilo que se passa no inconsciente, aí temos acesso não a um relato
do que está acontecendo lá dentro porque o próprio paciente não dá conta de relatar, a gente
tem acesso à manifestação concreta e real do que está acontecendo, por isso que Freud diz
“ele age diante de nós” por assim dizer, invés de nos fazer um relato e aí temos acesso à um
fragmento importante da sua história sobre o qual, em outras circunstancias provavelmente
nos teria dado apenas informações insuficientes. Eu jamais conseguiria entender efetivamente
o que estava se passando no interior de cada uma dessas pacientes pela boca delas, porque
elas mesmas não dariam conta de relatar isso pra mim, mas ao invés de relatarem elas
vivenciaram isso diante de mim, na relação comigo, portanto transferência não é só vinculo,
não é só respeito pelo analista, não é só colocar o analista no lugar de sujeito de suposto
saber, no lugar de autoridade, transferência fundamentalmente é o inconsciente ao vivo e a
cores, por isso ao atender nossos pacientes não podemos ficar atentos apenas ao que eles
dizem, mas ficar atentos também e fundamentalmente a como elas agem conosco, como
acontece o seu relacionamento, ali no aqui e agora da sessão.

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