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A noção de automatismo mental está aparentemente polarizada na obra e no ensino de

Clérambault pelo cuidado de demonstrar o caráter fundamentalmente anidéico, como ele se


exprimia, dos fenô menos que se manifestam na evolução da psicose, o que quer dizer não
conforme a uma seqüência de idéias -isso não faz muito mais sentido, que pena!, que o
discurso do mestre. Essa referenciação se faz, pois, em função de uma compreensibilidade
suposta. A refe rência primeira à compreensibilidade serve para determinar o que justamente
produz ruptura e se apresenta como incompreensível.

Aí está uma assunção sobre a qual seria exagerado dizer que é bastante ingênua, já que não
resta dúvida de que não há uma que seja mais comum -e, temo, presente entre vocês ainda,
pelo menos entre muitos de vocês. O progresso maior da psiquiatria, 'desde a introdução deste
movimento de investigação que se chama psicaná lise, consistiu, acredita-se, em restituir o
sentido na cadeia dos fenô menos. Isso não é falso em si. Porém, o que é falso, é conceber que
o sentido de que se trata é aquele que se compreende. O qQe tería mos aprendido de novo, de
acordo com o que se pensa de maneira ambiente nas salas de plantão1, expressão do sensus
commune dos psiquiatras, é compreender os doentes. É uma pura miragem.

Isso consiste em pensar que há coisas que são evidentes, que, por exemplo, quando alguém
está triste é porque não tem o que seu coração deseja. Nada mais falso -há pessoas que têm
tudo o que os seus corações desejam e que ainda assim são tristes. A triste�a é uma paixão de
natureza inteiramente outra.

A compreensão só é evocada como uma relação sempre no limite. Desde que dela nos
aproximamos, ela é, a rigor, inapreen sível.

o grande segredo da psicanálise é que não há psicogênese. Se a psicogênese é isso; é


justamente aquilo de que a psicanálise· está mais afastada, por todo o seu movimento, por
toda a sua inspiração, por toda sua força, por tudo o que ela trouxe, por tudo aquilo para o
qual ela nos conduz, por tudo aquilo em que ela deve nos manter.

Da psicologia humana: é preciso dizer o que dizia Voltaire da história natural, a saber: que ela
não é tão natural assim, e, em resumo, que ela. é o que há de mais antinatural.

A experiência freudiana não é de forma alguma pré-conceitual. Não é uma experiência pura. É
uma experiência realmente estrutu rada por algo de artificial que é a relação analítica, tal como
é cons tituída pela confissão que o sujeito vem fazer ao médico, e pelo que o médico dela faz. É
a partir desse modo operatório primeiro que tudo se elabora. Através desse lembrete, vocês já
devem ter reconhecido as três ordens sobre as quais repiso para vocês o quanto elas são
necessá rias a fim de compreender o que quer que seja da experiência analítica -a saber: o
simbólico, o imaginário e o real.

,Q simbólico, vocês o viram aparecer ainda há pouco no mo mento em que fiz alusão, e através
de duas abordagens diferentes, ao que está além de toda compreensão, no interior do qual
toda compreensão está inserida, e que exerce uma influência tão mani festamente
perturbadora nas relações humanas e inter-humanas. O imaginário, vocês o viram também
transparecer pela referên cia que fiz à etologia animal, isto é, a suas formas cativantes, ou
captadoras, que constituem os trilhos pelos quais o comportamento animal é conduzido aos
seus fins naturais.

O que é exato nessa perspectiva é que · o imaginário é sem dúvida guia de vida para todo o
campo animal. Se a imagem desempenha igualmente um papel capital no campo que é o
nosso, esse papel é inteiramente retomado, refeito, reanimado pela ordem simbólica. A
imagem é sempre mais ou menos integrada nessa ordem que se define no homem, lembro isso
a vocês, por seu caráter de estrutura organizada

Que diferença há entre o que é da ordem imaginária ou real, c o que é da ordem simbólica? Na
ordem imaginária, ou real, nós temos sempre mais e menos, um limiar, uma margem, uma
conti nuidade. Na ordem simbólica, todo elemento vale como oposto a um outro.

Um de nossos psicóticos conta-nos em que mundo estranho ele entrou já há algum tempo.
Tudo para ele tornou-se signo. Não so mente ele é espiado, observado, vigiado. falam dele,
julgam-no, indi cam-no, olham-no, dão-lhe uma piscadela de olho, mas tudo isso invade -vocês
vão ver imediatamente a ambigüidade se estabele cer -o campo dos objetos reais inanimados,
não-humanos. Olhe mos isso aí um pouco mais de perto. Se ele encontra na rua um carro
vermelho -um carro não é um objeto natural -, não é por acaso, dirá ele, que esse passou
naquele exato momento.

Essa tradução é com efeito sensacional. Mas, tomem cuidado, ela deixa no mesmo plano o
campo das psicoses e o das neuroses 6e a aplicação do método analítico não liberasse nada
mais que uma leitura de ordem simbólica, ela se mostraria incapaz de dar conta da distinção
dos dois campos. É, pois, além dessa dimensão que se colocam os problemas que constituem o
objeto de nossa pesquisa deste ano

Já que se trata do discurso, do discurso impresso, do alienado, que estejamos na ordem


simbólica é portanto indiscutível. Isso posto, qual é o material mesmo desse discurso? Em que
nível se desen volve o sentido traduzido por Freud? D e que são tirados os elemen tos de
nomeação desse discurso? De maneira geral, o material é o corpo próprio. A relação ao corpo
próprio caracteriza no homem o campo no fim de contas reduzido, mas verdadeiramente
irredutível, do imaginário. Se alguma coisa corresponde no homem à função imagi nária tal
como ela opera no animal, é tudo o que o relaciona de uma maneira eletiva, mas sempre tão
pouco apreensível quanto possível, à forma geral de seu corpo em que tal ponto é dito zona
erógena. Essa relação, sempre no limite do simbólico, só a expe riência analítica permitiu
apreendê-la em suas últimas instâncias. Eis o que nos demonstra a análise simbólica do caso de
Schreber. Só pela porta de entrada do simbólico é que se consegue penetrá-lo .

Nessa perspectiva, bastante instru tiva em si mesma, podemos observar de saída que não é
pura e simplesmente, como Freud sempre sublinhou, desse traço negativo de ser um
Unbewusst, um não-consciente, que o inconsciente guarda sua eficácia. Traduzindo Freud,
dizemos -o inconsciente é uma linguagem. Que ela seja articulada nem por isso implica que ela
seja reconhecida. A prova é que tudo se passa como se Freud traduzisse uma língua
estrangeira, e mesmo a reconstituísse recor tando-a. O sujeito está simplesmente, no que diz
respeito à sua linguagem, na mesma relação que Freud. A se supor que alguém possa falar
numa língua que lhe seja totalmente ignorada, diremos que o sujeito psicótico ignora a língua
que ele fala.

Essa metáfora será satisfatória? Claro que não. A questão não é tanto a de saber por que o
inconsciente que está aí, articulado à flor da terra, permanece excluído para o sujeito, não-
assumido -mas porque ele aparece no real.
Pode acontecer que um sujeito recuse o acesso, ao seu mundo simbólico, de alguma coisa que
no entanto ele expe rimentou e que não é outra coisa naquela circunstância senão a ameaça
de castração. Toda a continuação do desenvolvimento do sujeito mostra que ele nada quer
saber disso, Freud o diz textual mente no sentido do recalcado.

Sucede, entretanto, além disso, que tudo o que é recusado na ordem simbólica, no sentido da
V erwerfung, reaparece no real. O texto de Freud é a esse respeito sem ambigüidade. Trata-se,
como vocês sabem, do Homem dos Lobos, o qual não deixa de testemunhar tendências e
propriedades psicóticas, como ele o de monstra na curta paranóia que fará entre o fim do
tratamento de Freud e o momento em que ele é retomado ao nível da observação. Pois bem,
que ele tenha rejeitado todo o acesso à castração, no entanto aparente na sua conduta, no
registro da função simbólica, que toda a assunção da castração por um eu tenha se tornado
para ele impossível, tem ligação muito estreita com o fato de que lhe tenha sucedido ter tido
na infância uma curta alucinação cujos de talhes extremamente precisos ele relata.

Há uma relação estreita entre, de um lado, a denegação e o reaparecimento na ordem


puramente intelectual do que não está integrado pelo sujeito, e, de outro, a V erwerfung e a
alucinação, isto é, o reaparecimento no real do que é recusado pelo sujeito. Há aí uma gama,
um leque de relações. De que se trata em �m fenômeno alucinatório? Esse fenômeno tem sua
fonte no que chamaremos provisoriamente a história do sujeito no simbólico. Não sei se
manterei sempre essa conjunção de termos, pois toda história é por definição simbólica, mas
guar demos por ora a fórmula. A distinção essencial é esta: a origem do recalcado neurótico
não se situa no simbólico no mesmo nível de história que o do recalcado de que se trata na
psicose, mesmo se há relações entre os conteúdos do modo mais estreito.

No sujeito psicótico ao contrário, certos fenômenos elementares, e especialmente a alucina


ção que é a sua forma mais característica, mostram-nos o sujeito completamente identificado
ao seu eu com o qual ele fala, ou o eu totalmente assumido através do modo instrumental. É
ele que fala dele, o sujeito, o S, nos dois sentidos equívocos do termo, a inicial S e o Es alemão.
É justamente o que se apresenta no fenômeno da alucinação verbal. No momento em que ela
aparece no real, isto é, acompanhada desse sentimento de realidade que é a característica
fundamental do fenômeno elementar, o sujeitó fala literalmente com o seu eu, e é como se um
terceiro, seu substituto de reserva, falasse e comentasse sua atividade.

O manejo atual da relação de objeto, no quadro de uma rela ção analítica concebida como
dual, está fundado no desconheci mento da autonomia da ordem simbólica, que acarreta
automatica mente uma confusão do plano imaginário e do plano real.

é a uma certa maneira de manejar a relação analítica que consiste em autentificar o imagi
nário, em substituir o reconhecimento no plano simbólico pelo reconhecimento no plano
imaginário, que é preciso atribuir os casos bem conhecidos de desencadeamento bastante
rápido de delírio mais ou menos persistente, e às vezes definitivo. O fato de que uma análise
possa desencadear uma psicose desde os seus primeiros momentos é bem conhecido, mas
nunca ninguém explicou por quê. É evidentemente função das disposições do sujeito, mas
também de um manejo imprudente da relação de objeto.

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