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O OBJETO DO ESPECIALISTA A primeira pessoa do plural utilizada neste texto (nés, nos, nosso) néo & pré-forma; refere-se explicitamente aos profis. sionais que trabatham no Centro “Dra. Lydia Coriat”... ow Aqueles que se sentirem implicados. 'm longo percurso pela clinica levou-nos a colocar o brincar no centro da estratégia de nosso trabalho com as criangas. Nao é€ facil para nés manter esta posig&o. Tudo coadjuva contra ela: as demandas dos pais, as demandas institucionais e, acima de tudo, as demandas de nossa prépria formagao, ali onde a mesma nao foi trabalhada pela psicandlise. Em muitos casos entre aqueles dos quais nos ocupamos (crian- gas deficientes, especialmente as menores), também trabalha contra 0 brincar o proprio siléncio na demanda da crianga. E habitual, ocorre muito & mitido, que quando convidamos uma crianga a entrar no consultério e propomos que brinque do que quiser, que ela comece a pér ¢ tirar objetos de um recipiente... uma e outra ve; € nfo saia disso. Poderfamos fazer uma lista de “brincadeiras” similares, atividades pobres e repet vas, ds quais com muita dificul- dade podemos chegar a atribuir 0 sentido que porta qualquer jogo simbélico. / Da nossa parte, se nos limitamos a ser testemunhas de ae ati- vidade, se nao intervimos de uma ou de outra maneira, entediamo- nos mortalmente: essas brincadeiras nfio tém nada de divertidas. Pior Digitalizado com CamScanner 188 @ ELSA CORIAT ainda, sabemos que depois virdo as reclamagies dos pais, ¢ € que nossa criancinha nfo parece avangar muito de sessia o Quantas xicrinhas de cha com gosto de nada tives golir, em sessdes © mais sessGes, com tantos pacientes fonemas recebemos nos quais nada nos é dito? 4 Verdade mM SCSS%q, OS que en. ? Quantos tele. E nfo digo “cha com gosto de nada” porque se trata de um cha de mentirinha, e tampouco digo que “nada nos é dito” Porque a ctian. cinha em questio ainda nao saiba, no sentido estrito, falar. Refiro-me a esse nada de gosto que suspeitamos quando 0 ché é servido automa. tica e repetitivamente quando a crianga depara-se com cada uma das xicrinhas que esto na caixa de brinquedos. Um cha que nao tem gosto de nada porque nao acalma sede alguma. E necessério intervir, é imprescindivel. E necessario que a sede aparega. Intervir sim, mas como? Como intervir, desde onde intervir, se o que legitima nossa clini- ca € nosso desejo de que cada corpinho caminhante (ou engatinhante, ou imobilizado) esteja dirigido por um sujeito de seu Proprio desejo, e que nfo permanega como objeto, telecomandado desde 0 gozo do Outro? Mas se intervimos, de uma forma ou de outra, acaso nao esta- mos nds lhe dizendo 0 que tem que fazer, em vez de estarmos atentos ao seu desejo? Antes de que a Psicanilise se entremeasse no coragao de nossa clinica, introduzindo sua ética na diregao da cura, nfo nos formuléva- mos estas perguntas. Cada profissional realizava a intervencio desde Os parimetros que Ihe proporcionava a teoria de seu campo especiti- CO, €, mesmo que os profissionais As vezes inclufssem o brincar como 4m operador clinico a mais, introduziam-no como mero auxiliar, como instrumento de uma técnica, relegando, mais uma vez, a crianga como sujeito do desejo. Digitalizado com CamScanner O OBJETO DO ESPECIALISTA @ ta9 HA aproximadamente trés anos* come ‘AMOS a descobrir og efei- tos que, em NOSSOS pacientes ¢ jos que, em nés Mesmos, operava a Psicandlise. incidindo ¢ tansmudando os objetivos ¢ a diregio dos tratamentos nas diferentes areas, Os prinefpios da Psicanilise, Sua estrutura teé nos sair de certos impasses na clinic; alguma palestra, nos » em cada sessio um ‘mplo), respondiamos: E em Psicomotricidade? “Brinca”. E em Estimulagaio Pre- ©oce, em Psicopedagogia, no pré-jardim...? “Brinca, brinea, brinca”. Em um primeiro momento, 0 efcito de tudo isto sobre nés mes- Mos resultou libertador. A Perspectiva do brincar eas implicagdes com aS quais o situdvamos ajudava a levantar esse pesado véu que geral- mente deixa acuados os profissionais que trabalham com criangas deficientes, esse véu que envolve e asfixia os pequenos sujeitos. Perguntavam a respeito do que fazia, em sintese. Profissional da equipe de Linguagem (por exer “Brinca”, Mas 0 tempo do trabalho continuou transcorrendo e nossas fla- Mantes afirmagoes de entio nos devolvem, como um bumerangue, uma. iT s am ao nova pergunta: “Pois bem, se todos brincam, se todos apontam ——_____ *(N.T,): Referéncia a meados da década de 80, Digitalizado com CamScanner 190 @ ELSA CORIAT figura as diferengas entre as diferentes especifi. tinuar mantendo essa diviso em equipes por ava em jogo especialmente no momento de mesmo fim, 0 que con! cidades? Para que con frea?” Esta pergunta fic: cada encaminhamento. Na maioria dos casos, com ou sem comprometimento motor, sentam se estende a todas as dreas: linguagem escassa ou nula, ini- bigdo motora, momentos de conexao imprecisa. Se em fungiio da idade a ou pelo desenvolvimento ja foram superados os niveis de quando se trata de criangas deficientes, a pobreza da atividade que apre- cronolégic Estimulagdo Precoce, a que equipe deve ser realizado 0 encaminha- mento: Linguagem, Psicomotricidade, Psicopedagogia ou Psicologia? E, inversamente, quando, por exemplo, uma lesao cerebral afe- ta sua motricidade com um comprometimento muito maior que o de outras Areas, por que encaminhé-lo & Psicomotricidade se, j4 que se trata de brincar, poderia fazé-lo em qualquer uma das outras equipes? Pior ainda: tomemos como exemplo o caso de um menino Down que aos dois anos e poucos meses concluiu seu tratamento em Estimula- fio Precoce com um excelente nivel geral mas sem nada de lingua- gem, por-que se decidiu encaminhé-lo 4 Psicomotricidade, se cumpria com todos os requisitos de motricidade que o desenvolvimento neu- rolégico exigia para sua idade? Por que nao foi encaminhado a equipe de Linguagem? E, ainda: por que este mesmo menino, brincando com a especialista de Psicomotricidade, comegou a falar ao longo de seu tratamento, demonstrando por meio dos fatos que o encaminhamento foi adequado? Tivéssemos ou nio as respostas para estas perguntas, a clinica de cada crianga exigia-nos efetuar um encaminhamento ¢ assim o fa- zfamos. (Os resultados, de modo geral, foram nos dizendo que nao estévamos muito enganados.) Basedvamos a indicagao de tratamento €m nossa apreciagao diagndstica de qual era a drea mais entravada, e, Digitalizado com CamScanner © OBJETO DO ESPECIALISTA 191 ccpecalente, qual era aquela que obstaculizava com mais forca 9 di esenvolvimento geral. Mas também (c fundamentalmente) a base4- vamos na escolha de um profissional que viamos que tinha mais ca. pacidade para se encarregar dessa crianga em Particular, O que guiava que “vissemos” um Profissional como melhor que outro para determinada crianga? Costuma-se dizer: “uma questio transferencial”. sc nao se especifica algo mais sobre isto Corre-se 0 risci cana pura subjetividade daquele que realiza o encamii - E correto, mas 0 de que se per- inhamento. Até aqui falei no passado, mas se trata de uma situagao atual. 0 que procuro, neste texto que estou escrevendo, é situar quais os para- metros que se articulavam.em nossos encaminhamentos, para além daquilo que nés mesmos féssemos Capazes de explicitar, Comecemos a trabalhar o que foi situado anteriormente desde uma nova pergunta: por que o brincar Passou a ocupar este lugar cen- tral em nossa clinica? Pra comecar, o brincar é a atividade central (central e consti- tuinte) na vida de toda crianga. Meu modo de entender as palavras de Freud referidas a que 0 brincar transforma em ativo o que se sofreu passivamente (!) é a se- guinte: , “O brincar é 0 cenrio no qual a crianga apropria-se dos signi- ficantes que a marcaram.” . (Se quisermos ser estritos, conveniente dizer que esta sprogelt- ¢40 S6 ird se legitimar na passagem pela puberdade. Mas aurora nos a falar desde o presente da crianga, ja que se a atividade Nidica ne se desenvolvesse nesse tempo, nio haveria possibilidades de uma apt Priacio posterior.) Digitalizado com CamScanner 192 @ ELSA CORIAT Os significantes que marcaram a crianga sao aqueles que, desde a hist6ria dos pais, delimitaram as zonas erégenas no corpo do filho, recortando os objetos pulsionais. Significantes que, do lado da crianga- bebé, em um primeiro tempo, s6 se estabelecem como marcas soltas, em relagao entre si, sem conexao entre uma e outra, tatuagens no corpo que ainda nao formam uma rede. Na passagem pelo estddio do espelho, se 0 olhar do Outro, en- carnado na mie, libidiniza-o, ird possibilitar-Ihe capturar esse conjun- to de marcas na bolsa da imagem corporal; mas os significantes ainda nao fazem uma rede entre si. A atividade ltidica, 0 que nds, os sérios adultos, chamamos com complacéncia “brincadeira”, é um persistente trabalho de elabo- ragio por parte da crianga. Trabalho que consiste em outorgar um sen- tido a esses significantes, sentido que nao € outro do que aquele que pode ser lido na situago que a crianga desenvolve no cenério Itidico. Nesta operagiio, o significante, que até entao estava isolado € capturado na mudez da marca, comega a falar: inclui-se na frase que a cena do brincar representa, arma cadeia com outros significantes, res- tabelece (desta vez, do lado da crianga) sua propriedade de rede. Po- derfamos dizer que quando os significantes se encadeiam entre si, li- beram o sujeito, cercado até entao. Trata-se de uma metéfora. Estritamente, nesse instante (impos- sfvel de situar no tempo mas imprescindfvel logicamente) é quando 0 sujeito se produz. Antes, o sujeito nao existia de direito préprio, por mais que tivesse um lugar no discurso dos pais. Isto € 0 que queriamos dizer quando escreviamos: “é sempre desde o brincar que se produz uma crianga”.@ O sujeito nao nasce de uma vez e para sempre, nao tem uma continuidade linear no tempo. Postulamos uma primeira vez, mas a partir dali renascera infinitas vezes em cada ato que produza. Digitalizado com CamScanner O OBJETO DO ESPECIALISTA @ 199 9 mesmo porém diferente. Mistura de Fénix ¢ Metamorfose de bor- poleta. Arrede significante, se vier a articular-se na metifora precisa, remarcard o lugar da marca e do objeto Pulsional, esse que nao estava desde 0 infcio ira cair outra vez, sem possibilidade de retorno, Complicadas disquisigdes estas, as dos Psicanalistas; de que nos servem, se, em geral, as criangas do mundo, de todos os tempos, no precisam de um analista para brincar? Em geral, as criangas brincam sozinhas ou com outras criangas eo brincar opera por sua conta, alegre e produtivamente, por mais que os analistas insistam em dizer que 0 que ali esta em jogo sfio os dra- mas da passagem pelo Edipo. As criangas brincam sozinhas sim, ¢, em muitos momentos, na- da chega a incomodé-las mais do que a presenga de um adulto, mas 0 marco que sustenta 0 cendrio de seu brincar, as luzes que o iluminam © 0s elementos que o compdem foram provistos pelo Outro. Este Outro, que aqui escrevemos misteriosamente com maitis- cula, representa, nestas linhas, os prdprios pais da crianga, os signifi- cantes de sua hist6ria eo lugar que a partir dela deram & crianga e ao seu brincar, as palavras de seu discurso e como estas chegaram & crian- ¢a em questo, a modalidade de manipulagio que marcou o corpo da crianga quando esta ainda era um bebé . No entanto, quando o marco nfo sustenta, quando nao foram Provistos os elementos que permitem desdobrar o brincar até suas dl- timas conseqiiéncias, quando o Outro nfo cumpriu sua fungio ou 0 i de forma deficiente, as regras de nosso jogo de humanos (em aon hel que esté escrita somente para os casos extremos) oan que pars to deve passar a cumprir, nesse lugar, papel de ——— che: Estas coisas acontecem todos os dias sem a ne iraparancis Iquer adulto que adquira i guemos a perceber. De fato, qualq Digitalizado com CamScanner 194 @ ELSA CORIAT para a crianga em um dado momento, circunstancial ou prolongada- mente, passa a integrar algum clemento neste lugar do Outro da crian- ¢a. Para melhor ou para pior, as vezes traumaticamente, as vezes pos- sibilitando, este Outro fantasmitico vai se configurando desde uma multiplicidade de personagens, 20 longo da infancia. As vezes, é a empregada ignorante quem oferece & crianca esse €um vizinho mal-humo- marco que seus pais nfo sustentam, as vezes rado quem pronuncia as palavras que faltavam para ressignificar co- mo proibigao as palavras do pai. Podemos imaginar infinitas circunstancias, mas © que nos interes- sa € que elas se particularizam na vida de cada um e que, se as mesmas sfio levadas a uma anilise, iré se descobrir que nada do que aconteceu foi arbitrério: no caso de uma crianga remete-se ao lugar que seus pais Ihe deram a partir de e em sua histéria. Mas suponhamos que esta combinatéria de possibilidades dé como resultado, em uma histéria particular, que uma crianga nao te- nha sido provida do marco e/ou dos elementos que precisa para seu brincar, que esta caréncia nao tenha sido “espontaneamente” suprida por nenhuma circunstancia, ¢ que os comportamentos que a crianga manifesta preocupem seus pais. Que os pais estejam preocupados em relagio ao filho é algo que, por si s6, faz tremer o marco de sustentagao. Bem-vindos esses tremores do marco: possibilitardo sua rees- truturagdo em uma arquitetura talvez mais Ppropiciatéria que a ante- rior. Mas as heres ° Lie reestrutura-se diminuindo 0 cendrio ou metendo-se nele, impedindo 0 desdobramento da cena do brincar. Outras vezes, o marco nio para de tremer, dificultando 0 trabalho dos atores. E, Se eee quando os pais comegam a tremer, consultam aqueles que supdem que sabem reparar aquilo que, ao i seu vi a vai bem. er, nao Digitalizado com CamScanner de sua cultura e de sua histéria Particular indica, Tampouco é 0 mesmo “o que vai mal” aos olhos dos dife- » Por mais que lo XX. Tao-somente a escolha nsulta ja est nos dizendo algo © ponto de vista desde o qual vé o que da especialidade do profissional que co) em relagao a qual é, para ele, est acontecendo ao seu filho. Qualquer que seja a especialidade do profissional consultado, quando este conversar com os pais, proponha-se a isto ou nao, estard ttabalhando sobre 0 marco que sustenta 0 cenério do brincar. Ha marcenciros que, sem pressa, medem o tempo de seu traba- Iho sobre a falha mesma da madeira em questio, aquela que provoca- va a instabilidade da estrutura, fazem uma obra artesanal no préprio trabalho de devolver firmeza ao cenario. Arte HA outros que, com decisio, pregam os pregos em q) a dos atores. Conseguem, sem a gar, por exemplo na cabega mesma Digitalizado com CamScanner 196 @ ELSA CORIAT veo deine de tremer, mas é duvidoso que ali possa chegar a que o ma s ser representada qualquer coisa. uma menina de cinco anos. E possfvel origem congénita, mas 6, para nés, diff. pecto é normal ¢ sua conduta autista, Consulta-nos a mie de que padega de certo retardo de cil defini-lo como tal porque seu as Nio fala, Dé grunhidos. Apesar disto, assim que a obse! uma aproximagio, dé a impressfio de uma dades do que o seu comportamento mostra e sua mie relata. Pedimos & mie que nos fale da histéria da menina. De inicio, no que ela nos diz, toma-se evidente que os sintomas que a menina apresenta, haja ou n&io uma questo organica, sa0 0 resultado do lugar rvamos dois minutos ¢ tentamos menina com mais possibi que esta menina veio ocupar no casal parental. Dois anos antes, uma especialista em estimulagao precoce con- sultada, opinou que a mae deveria iniciar um tratamento psicoldgico; que, caso contrério, nada poderia ser feito. Como a mie estava preocupada, empreendeu o caminho suge- rido. Consultou uma psicéloga. Falou-Ihe de seu rechago, da relago mutuamente agressiva que tinha com sua filha, de sua anguistia quan- do estava longe dela. A psicéloga escutou- mal que aparega rechago nos pais de uma crianga com problemas, que e 4 continuagiio esclareceu que € nor- ela nao era um monstro, que em todas as mies causa anguistia separar- se de seus filhos, : Conclusio: tudo 0 que ocorria com esta mie era tio normal que nao era preciso que realizasse um tratamento psicoldgico. als como exemplo dessas Teparagdes que conseguem resta- belecer solidamente o marco. Foi uma intervengiio tio eficaz que a mae deixou de tremer e se tranqijilizou: ela nao era responsdvel nem tinha — Digitalizado com CamScanner © OBJETO Do ESPECIALISTA @ 197 ibilidades de modificar algo do destino de sua filh en que a vida nao lhe resultou mais grata, tampou a. . eae a sua filha um marco mais adequado Ppara.u a produtivo. | Algum tempo depois, a ¢ dela mes- CO péde passar 'm brincar mais a intervengao de Outra profissi muito menos renome que a primeira, devido a sua juventude, e com uma paixao diferente em relagio ao trabalho com sua pequena Paciente) possibilitou que se reabrissem as Perguntas e fosse Solicitada uma consulta conosco. Enquanto isso, perderam-se dois anos. Dois quais se escreve o destino. onal (de anos daqueles nos Quando nasce uma erianga com qualquer tipo de problemas, 0 marco treme antes mesmo de que comece a fungio. Nos casos mais graves, e particularmente em aqueles em que se diagnostica sindrome de Down, 0 marco treme como se houvesse se produzido uma defi- cigncia na prépria estrutura dos alicerces, As luzes que iluminavam o Cendrio esperando o brincar do Tecém-nascido, so apagadas. Fecham- Se as pesadas cortinas do telio e todo o teatro veste- Depois de chorar trés dias ou trés meses, os pais decidem se sobrepor e fazer pelo filho tudo o que for necessario. Os efeitos desta decisio, que de algum modo é inevitavel, as Vezes so nefastos: € como se chegasse o lanterninha e comegasse a levantar os Papeizinhos do chio ¢ lustrasse os bronzes da decoracao. i con- ‘contramo-nos com um teatro pulcrissimo, mas as luzes da cena tinuam apagadas. se de luto. Outras vezes, os pais fazem as consultas que Pega : informago que solicitam em fungiio do que no sabem, ae Mensdes do marco segundo a medida de seu novo progres a as luzes, abrem 0 telio... e nos oferecem uma fungio inha”, no sabe brincar por si Dado que a crianga, por seu “probleminha”, nao sal Digitalizado com CamScanner 198 @ ELSA CORIAT 6, cles irfio escrever 0 texto a representar € guiarao os movimentos 86, s dos atores na cena. De qual ética partimos em nossa intervengao, se os pais consul- tam-nos? Utilizamos a palavra nem do mal, do correto ou do incorreto. Menos ainda de uma técnica es- tabelecida, de um programa a aplicar para tal ou qual patologia. Trata-se de deixar-se levar na busca do desejo dos pais, e fun- devolvendo-o, des- “ética” porque aqui nao se trata nem do bem cionar como pivé de sua emergéncia no discurso, de as profundezas a que foi jogado pelo impacto das més noticias, ao presente e ao futuro que moram no corpo de seu filho. ‘Ao Outro com maitiscula, aquele que faz 0 marco de susten- tago para o jogo da crianga, também podemos chamé-lo de “saber dos pais.” E a esse saber que, ao observar que hd algo que nao vai bem, que se faz o buraco, que treme em sua consisténcia mesma e recorre aquele ao qual supGe o saber, € o que chamamos transferéncia. A psicdloga de nosso exemplo n@o se enganou nem um pou- quinho. Tudo o que disse era correto. N6s mesmos utilizamos pala- vras semelhantes em muitas oportunidades. Escorar 0 marco, ajudar a que se sustente, é imprescindivel pa- ra que nesse cendrio possa se estabelecer algum brincar. Mas nao € necessdrio se apressar como se o mundo inteiro fosse vir abaixo caso nao colocdssemos rapidamente nosso prego. £ melhor contar com um certo tempo, estudar os planos do tea- tro em questo, ¢ saber também que, se nesse trabalho de apontoa- mento nao deixamos livre certo espago para o trabalho da madeira, se Pretendemos que tudo fique sélido demais, corremos 0 risco de que se faga uma linha de fratura na propria viga, Digitalizado com CamScanner “NOs na cena sem ser ssa viga de ma- deira que, posta no meio, entorpece a funcao? No caminho da diivida, outra Pergunta: para que brincam as criangas? As criancinhas que descreviamos no ink Segundo caminho, Por enquanto, esto em um 10 ndo escolheram este brincar que niio leva a nenhum lugar por si s6. E necessétio intervir, mas como? Quando se escolhe dar uma volta e tomar um caminho inverso & i i a parte, Porque algo fez, obsticulo, limite, no caminho direto, Por outra pi ne Como o caminho mais direto é ficar no lugar de infcio (ou seja ae incd espeje a do lugar de objeto) € necessario que algum incdmodo despej que ocupava esse lugar. Digitalizado com CamScanner 200 @ ELSALU™™ mite damos, ¢m Psicandlise, diferentes nomes. ‘erna, Lei, proibigao. : tendido ao pé da letra pelos Profissiona ¢ consideram que a chave dos problemas Aquilo que faz li Nome-do-Pai, fungao pat Parece que isto éen das mais diversas Areas, qu da crianga passa por scus pais ni Isto est tio difundido que ni 10. Inclusive, agora é freqiiente que cheguem os pais 4 consulta 1m de infcio que esse € 0 problema, que nao sao suficiente. io colocarem limites. io € preciso que fagamos um escla reciment cc esclaregal mente rigorosos com scUus filhos. A inteligéncia do assunto limita-se a investigar de que forma e em que situagdes por limites a uma crianga manhosa, que com sua ati- vidade sintomatica pretende ser 0 centro da atengao daqueles que a rodeiam. Nesses casos, ou nossa inteligéncia é limitada ou algo a mais do que um limite € preciso oferecer, dado que por esse caminho po- demos chegar a conseguir, 4s vezes, que desaparega certo comporta- mento que incomoda, mas dificilmente que ele seja substitufdo por outro mais produtivo. Oferecer, 0 qué? Proponho... (Esclare i eae e¢O que nao se trata de uma ii 0 mi a Inven I~ nha, mas eu a retomo.) “sn Pr i i objet oponho que, ao subir ao cendrio, nos situemos no lugar do jeto, quer dizer, por exemplo, no lugar de xicrinha. Como tomar i igo mm ‘ ctiangas tal oferecimento? Mais além de nossas , m das intengdes da crianga, é a propria crianga quem, no ponto de partida, 7 Partida, nos coloca ali. Esta é a outra face da transferéncia. Ainda que ara 2 Para outras questdes convenha especificar diferen- Gas, nisto as criangas sio iguai Gas SiO iguais aos adultos: colocam as pessoas com Digitalizado com CamScanner O OBJETO DO ESPECIALISTA #201 quais se relacionam em alguma das séries de “clichés"4) que estabe- as quals S ae A Jeceram a partir de sua dinamica pulsional, Freud esclarece que esta estrutura da situagiio nao se apresenta somente em um tratamento analftico, mas em toda e qualquer circuns- tancia. A questao € 0 que fazemos n6s, Os profissionais das diferentes éreas que trabalhamos com criangas que apresentam problemas de de- senvolvimento, com esse. lugar que a crianga oferece-nos. Ha os que se negam rotundamente a serem tomados como uma xicrinha. Preferem brincar de que cles so os que sabem como se usam as xicaras, como sao as xicaras e 0 que uma crianga deve saber acerca das xicaras: * que a xicara est4 “embaixo” da cadeira e que € melhor colo- cé-la “em cima” da mesa; * que o agticar deve ser posto “dentro” da xicara e que o leite tespingou para “fora”; “que a xicrinha € de cor “vermelha” e que, conseqtientemente, no vai em cima do pratinho que € de cor “amarela”; * que primeiro se poe a mesa, depois se serve 0 leite (ai!, es- Guecemos “uma” xicrinha, porque na mesa hé apenas “duas” € con- tando a boneca somos “trés”), agora € a vez de tomar nosso leite ¢ também podemos passar manteiga e doce de “laranja” (ou prefere de “morango” ou de “ameixa’?) em nossa bolachinha; ao terminar wiio devemos. esquecer de tirar os pratos da mesa, lavé-los e guardar 7 a Sas nos armérios, ¢ com isto haveremos integrado em uma “seqiiéncia « —_ temporal” aquilo que para a crianga era um ato isolado, quase desp: vido de sentido. 1 Cada coisa em Ao terminar a sesso: “A guardar, a guardar! caus sua mae, seu lugar”, e, com capricho, entregaremos nossa c! a comportou como corresponde, A mie ird nos perguntar se a erianga Digitalizado com CamScanner 202 @ ELSA CORIAT bem ¢ nds explicaremos novamente que a Ue se cla se com. ta bem ou mal, que SC trata de outra coisa, © aproveitaremos para co. Ss os avangos na _aprendizagem Ou @ preocupacao por sua auséncia. (“Houve algum contratempo na vida familiar nesta semana? O tinico problema desta seqiiéncia impecdvel é que, no ponto do qual se partiu, profissional encarregado negou-se a ser tomado por uma xicrinha. Ao negar-se a ocupar o lugar que lhe foi sugerido, ao negar-se a deixar-se levar pela demanda da crianga, a cena desdobrada no brin- car continuou 0 roteiro escrito previamente pelo profissional. Ficamos sem saber que roteiro teria escrito a crianga, com um plus (¢ isto € 0 grave): quando uma crianga, no brincar, nao representa © papel de ator que representa a obra que ele mesmo escreve no ato Midico, 0 ator, privado de seu lugar de autor, torna-se uma marionete. Velho lugar conhecido e seguro, especialmente promovido para as crian- as “especiais” nos tratamentos “especiais”. Que vantagens poderiam ser obtidas, pela crianga ou por nés. se nos colocdssemos no lugar da xicara? Gragas & plasticidade de nosso corpo diante da consistente anatomia das coisas, um ser hu: mano tem varias vantagens em relaca, ' ais exatid : ¢a propoe, 40 a0 lugar que a crian- i Estamos em condigdes de ganhar Campeonato d Cstio competindo pelo interesse da ctianca, Bey © xfcaras que transformar-nos em um de seus Objetos Diferentemente das xicrinhas, por mais que tent : oe a tar-nos muito dificil ser idénticos a NOs Mesmos em 1 i. Osso disfarce de Digitalizado com CamScanner r © OBJETO DO ESPECIALISTA @ 203 ha da primeira, ocasido. Ira se estabelecer uma minima diferenga wir ae procuraré solucionar se quiser se reencontrar com esse oreo Jé haveré algo que se perdeu. “— lém disso, falamos, Vemo-nos levados a dizer coisas, inclu- sive desde o lugar de xicrinha, inclusive quando o Papel que nos é designado exige-nos ficar de boca fechada. A lingua de que somos portadores esta presente nas regras do jogo por mais que seja a crian- caquem dita 0 argumento. Nossas palavras, inscritas no gozo do brincar, irio remarcar a zona erégena, delimitando uma borda mais precisa, a0 mesmo tempo que se modifica a dimensio libidinal do objeto. Nos uiltimos pardgrafos especialmente, parece-me que no que ‘sctevo estou mais perto do que a Psicanilise descreve como o lugar da me enquanto Outro primordial no primeiro ano de vida, que do que se descreve como o lugar de um analista no brincar de uma crianga. Nao € por acaso que nao contamos com muitos relatos clinicos que se refiram ao trabalho de um analista com criangas pequenas, en- quanto que na casufstica com a que trabalhamos encontramo-nos com uma problematica que finca suas rafzes em um pobre recorte do obje- to, em uma escassa libidinizagio do mesmo. Nosso trabalho est4 mais préximo de sublinhar a marca, ali on- de cla ainda nao efetuou corte, que do encadeamento dos significantes de que falamos ao comego, Porém, mesmo que as vezes nos convenha precisar em que ‘empo l6gico de sua constituigio como sujeito esté uma crlanges ne que tange ao lugar do qual nos convém partir quando nos fazemos Presentes no cenfrio do brincar, vale mpre o mesmo: aquele do chupar-nos como uma objeto no que a crianga nos coloca, seja para chupar-nos poe ‘cri on a bala, beber de nés como de uma xicrinha, representar Deu Digitalizado com CamScanner 204 @ ELSA CORIAT da mae, a criancinha que esta de castigo ou a mulher que Teclama 7 presenga do Chapolim. ' 7 Para ocupar este lugar, € preciso ser analista? Os que sabem de certos jogos das criangas sao os especialistas, Dedicaram-se a estudar isto, ainda que nem sempre tenha lhe Corrido chamar assim 0 que estudaram. Este saber pode tornar-se uma das melhores ferramentas ou po- de tornar-se 0 mais pesado dos obstéculos, segundo o modo em que se fizer presente na cena do brincar. Na maioria das ocasides, para deixar-se tomar como xicrinha, para deixar-se tomar como objeto, no é imprescindivel ser capaz de explicitar com exatidao de qual objeto se trata. E questo de deixar-se levar pelo que a crianga propoe e partir daf, o brincar operard segundo suas prdprias regras. Quantas vezes teremos sido xicrinhas e nem se- quer nos demos conta! O titulo habilitante e a formagao profissional, constituem um pro- blema quando se levam ao cendrio. Sentimo-nos obrigados a demons- trar e exercer nosso saber, enquanto o que ali o que interessa desdobrar € justamente o saber da crianga, saber que se expressa e trabalha no brincar com 0 objeto. Este tiltimo comentério nao vale apenas para psicopedagogos ¢ afins. Os “psicanalistas” também temos nossos vicios profissionais. “Sabemos” tanto da importancia da prescindéncia que as vezes faze- mos de parede. Esse € nosso jogo, nao o da crianga. Fazer-se de objeto, dizfamos, nao significa ficar calados. Qual- quer um gostaria mais de brincar com uma xicrinha magica, que sabe Certas coisas icri 6: coisas das xicrinhas que nés desconhecemos e que incrementa nosso repertério de jogos, a xicrinha se meta em nos: golir um saber, mesmo qu mas € dificil que nos resulte agradével que sa boca em nosso lugar ¢ obrigue-nos a en- este tenha muito mel. Digitalizado com CamScanner aue M como “magico”. E uma boa metdfora, a condi¢ao de Por um instante POssamos esq juecel i Sar tenhamos Tegistrado) de que a Nien wegen ae : 8 mecanismos da magia da pal . ed ficamente, palavra, seu cardter criador. - Saber inconsciente que 6, por sua vez, 0 resultado das inscri- Ses que a hist6ria libidinal de cada um foi deixando. Um especialista que tenha escolhido uma determinada disci- Plina, que a tenha estudado desde seu interesse pelo objeto da mesma, Contard, nesse campo, com mais elementos do que outros para desdo- brar um brincar eficaz. E necessario saber da importincia das relagoe ; Ses espaciais (em cima-cmbaixo), da orem de topoldgi (dentro-fora), das relagé Digitalizado com CamScanner 206 @ ELSA CORIAT o-amarelo, laranja-morango-ameixa), da radj. ges (vermelh ' re uma cena fotografica ¢ uma cena que se classifica cal diferenga que existe ent no tempo, & necesséri rtamentos de uma crian jo saber tudo isto para poder registré-lo desdobra 1 nS ga c, em algumas ocasides, intervir nos compo! adequadamente sobre i Quem tenha se di toes, quem disto tenha estudado, outros em relagao a que tudo isto aparega no brincar que propicia. O mesmo poderfamos dizer dos especialistas em Psicomotri- ado o trabalho de pensar e ordenar estas ques- estaré em melhores condigGes que cidade e dos especialistas em Linguagem, bastaria substituir os ele- mentos tematicos que tomamos em nosso exemplo. Mas acontece que, ainda que a teoria de cada disciplina ofereca os elementos do brincar, 0 marco que propomos (para toda pratica tera- péutica com criangas) 0 da teoria psicanalitica. Corresponderé a cada profissional revisar em que posigao se poe em jogo: se joga bola com a crianga, desfrutando e transmitindo 0 gozo do objeto em jogo, ou se brinca de ser o que ensina a jogar bola, colocando, inevitavelmente, a crianga no lugar de objeto. Tanto falar do gosto, tanto falar do gozo...! Acaso nfo se trata- va de propiciar 0 surgimento do desejo? Ao seguir as regras do jogo, ali irdo operar as mesmas leis que fazem que desde o lugar do gozo do objeto-bebé se produza um sujeito do desejo. ' O desejo aparece no resquicio que a demanda nao alcanga a satisfazer. O que se demanda € o objeto que proporcionou um gozo. Oferecendo o espago de gozo de um jogo, oferecemos o espago para que se formule uma demanda. Situar-nos como objeto implica que de- mandamos a demanda da crianga, explicita ou implicitamente. vés da pergunta: “O que queres?” == E muito possfvel que a crianga na A $s ar forts so canes eh een iGdes, ird responder-nog Digitalizado com CamScanner yr © OBJETO DO ESPECIALISTA @ 207 através dos atos de seu brincar. Se somos nés quem damos valor de palavra @ esses atos, ocorrerd 0 mesmo que acontece com © primeiro choro do bebé: € sua mae, enquanto Outro primordial, quem esta- belece esses sons indiscriminados como explfcita demanda oral no momento de oferecer-lhe 0 objeto. Ea palavra o que est4 em jogo em todo brincar, nao a palavra metafisica € sim a que promove 0 objeto pulsional. A palavra que se Ie se escreve, em cada hora de jogo, desde os significantes que estiio inscritos no corpo e que se articulam no mito edipico de cada um. No campo da deficiéncia mental, no trabalho com criangas pe- quenas, os psicanalistas (além da fungio que cumprimos em relagio aos tratamentos que outros tém a cargo) reservamo-nos para os peque- nos que brincam de nao brincar, ou para aqueles que esto detidos em uma tinica brincadeira, e para os quais a presenga do especialista nao resulta suficiente como para que possam passar a outro. Se resumimos as fungGes que, nesta clinica que propomos, ca- bem a qualquer especialista, dirfamos o seguinte: . Saber colocar-se no lugar do objeto que a crianga demanda. . Saber introduzir ali as modificagdes correspondentes no mo- mento adequado. ; . Saber fazer o papel de marco que sustenta 0 brincar da crianga. . Saber abrir as pesadas cortinas do luto, . Saber acender a luzes das lampadas libidinais. sofeegam | Saber reordenar o saber dos pais para que cles Caan ei 20 seu filho 0 cendrio adequado no qual CET ae emer rando 0 momento em que nés remos desaparecer¢® WN a. Este saber € um saber fazer. Saber fazer que er inconsciente. Saber inconse’ 7 ue, em uma andlise, S¢ ordena i i onsciente que, © ber i 7 no discurso- Digitalizado com CamScanner 208 @ ELSA CORIAT Nem a Psicanélise, nem saber de Psicandlise, sao condigag ou garantia para brincar desde o ponto de ae que ce Propoe Neste texto, quando se trabalha no marco de uma equipe interdisciplinar. Uma equipe interdisciplinar implica a presenga de um psicanalis. ta, implica a presenga da Psicandlise como marco te6rico que sustenta a diregao da cura, ¢ implica a supervisdo sistemdtica do material clini- co através de um trabalho em equipe. Sabemos por experiéncia que os interrogantes que, desde esta clinica, se colocam convidam a buscar a resposta no estudo da Psica- ndlise e na anlise pessoal. Sejam bem-vindos essa inquietude e esse trabalho: retornarao na eficdcia clinica de cada um. Mas se estes novos interrogantes despejam os especialistas do estudo e da pesquisa de seu objeto especifico, o teatro correré o risco de tornar-se um marco vazio, ou, no melhor dos casos, contaré com menos elementos para brincar do que aqueles que se mostraram necessarios. Em nossa proposta, trata-se de re-situar 0 objeto em uma nova clinica, néo de abandoné-lo, REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS 1) Ref. Mds Allé del Principio del Placer, de Si ; mund Freud Completas, Ed. Biblioteca Nueva. . cancel 2) Elsa Coriat: Uma psicanalista em Paris (ver capitulo I desta ediga0). 3) Ref. A Subversién del sujeto y dialética del dese, i , oenel i i Se el inconsciente freudiano, 4) Ref. a La dindmica de la tran, sferencia, de Sigmund Fi Completas, Ed. Biblioteca Nueva, sinne Seen om Obra Digitalizado com CamScanner

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