Você está na página 1de 17
Clinica de linguagem: sobre a posicao do fonoaudidélogo na relagdo com a fala sintomatica de criangas Sonia Maria Aratijo Pode-se afirmar que a clinica de linguagem é inaugurada a partir da demanda de transformacao de falas sintométicas. Conforme observa Fonseca (1995, p. 76), 0 pe- ido de um sujeito por uma terapéutica cujo alvo é a fala “patol6gica” introduz a diferenga que abre essa clinica ¢ a oficializa. Entretanto, no é tarefa simples dizer 0 que legitima 0 fonoaudidlogo enquanto terapeuta de linguagem, tampouco uma clini- ca como sendo de linguagem. Isso porque € preciso que um compromisso particular com a fala e com uma teorizagao sobre a linguagem seja claramente assumido. Além dessa dupla exigéncia, quando esté em causa uma clinica do singular ~ marcada pela imprevisibilidade propria do sujeito e de sua fala -, hé ainda que se afastar a idéia de método enquanto conjunto de procedimentos previamente estabelecidos. Num cena- rio desse tipo, a interpretacdo € dependente da especificidade de uma fala e da singu- laridade dos movimentos de um sujeito. Desse modo, ela caminha passo a passo, ou melhor, a partir de seus efeitos na escuta do clinico. Definir um método clinico, portanto, no campo da clinica de linguagem niio € dizer 0 que fazer, nem como ou quando interpretar. Pelo contrario, trata-se de uma tarefa que passa, necessariamente, pela suspensio da idéia de norma ou da expectati- va de aplicacio de uma cartilha de procedimentos; uma tarefa que implica a circuns- crigdo de uma posigio terapéutica, efeito de um “jogo cerrado” entre a teoria e a pratica clinica. No Ambito deste trabalho, proponho-me a abordar essa questdo — a da posigio assumida pelo fonoaudidlogo ante a fala sintomatica — e a encaminhar uma reflexdo, ainda iniciante, sobre o ato interpretativo na clinica de linguagem. Embora reconhega_ que tal discussio deva contemplar também os efeitos produzidos na fala/posigio do sujeito na linguagem a partir de uma fala do terapeuta, para que se poss vir a delimi- tar a interpretacao na clinica de linguagem, a complexidade dessa tarefa requer um projeto de maior dimenso ¢ extensio. Focalizo aqui o lado do terapeuta, ou seja, os Preitos que nele SHO produzidos pela fala do paciente. Digitalizado com CamScanner 4396 + Aquisigao, patologias e clinica de linguagem ma reflexsio consistente sobre a posigo do Fonoaudilogo pasa pela gy a a consid, ragiio da relagio dn noaudiologia com a teorizagio sobre a linguagem, jg agai “se “ " e ac Ci isc Ae fala em sua condigao atolégica” que a convoca. No discurso fonoaudiolsy & fa tyra cizculagao de fermos estrangeifos e mestno contlitantes com essa nea’ ¢ a Ces. Je um gesto persistent de empréstimos puros ¢ Simpl enti des inge - = jncluindo af nogdes ing@nuas ou ate6ricas de lng - ia, so antes mesmo de perguntar sobre “qual concepcio de linguag vale antes indagar se, de fato, existe algumacn ue dade, em decorréncia d nogaes de outras areas clinic gem. Diante di mesn sustenta a pritica fonoaudioldgica’ vyalha a pena considerar. , FE fato que a atuagaio do fonoaudidlogo est explicitamente vinculada & nogao ge verifica na propria definigtio do campo, apresentado cong aquele dos “distirbios da comunicagao humana”, O termo comunicagao citcula no digcurso da rea como se valesse por linguagem — 0 que distancia 0 fonoaudidlogo de questées fundamentais para seu préprio trabalho. Nao se pergunta, por exemplo “qa 4 relagdo entre comunicagao ¢ linguagem”. E por esse motivo que a forte presenea do fermo comunicagio em uma clinica de linguagem sera aqui ponto inicial de questo. namento, Desnaturalizar a presenga da nogio de comunicagdo na Fonoaudiologia ~e ade linguagem que a ela se reduz — abre caminho para se contrapor uma concepcio que nao aquela que trata a linguagem como instrumento de trocas intersubjetivas ede representacZo, Sem esse primeiro passo, no hé espago para se levar em conta a sin- gularidade das falas que chegam a essa clinica. Vale lembrar que, na definigdo lingiifstica do termo (Dubois, 1998, p. 129). comunicagao implica troca de informagées, transmitidas de uma pessoa a outra por meio de uma mensagem codificada. Essa concep¢ao nao se restringe as particularids- des das Iinguas naturais e o que ela pressupde, sempre, € a transmissdo de mensagens. passivel de ocorrer por meio de qualquer sistema de codificago que permita o trinsto intersubjetivo de informagGes, tendo em vista a produgio de uma significagio tics. ‘Com base nessa definigdo, hé que se admitir que a presenga de qualquer proble- ma que impossibilite ou prejudique 0 processo de transmissdo de mensagens entre os interlocutores represente uma ameaga ao sucesso da comunicagao, Em outras pals: vras, que qualquer ordem de interferéncia na habilidade humana relacionada com essa possibilidade de “trocar informagoes” seja capaz. de produzir algum nivel de ae nua comunicagdo, Dai ajustifiativa para o fato de as diferentes “patolosis” das pela elfnica fonoaudiolégica estarem reunidas sob o rétulo “distarbio dae” municagao humana”, comunicacao, 0 que s = ts por um lado, o tuo “astro da comunicago” unica ese ape das disfonias! quanto, a © fato de a Fonoaudiologia responder tanto pelo tn tment senga e manutengio Me Has res de leitura-escrita, por outro lado, & sua aTinguapeny agit € geradora de problemas ~ especialmente por estar ét mo “patolégica”. Refiro-me aqui a inversio na ordem das coisas ———— 1. Disfonia é termo que ass desordens que acometem a produgio da V0 Digitalizado com CamScanner Clinica de linguagem: sobre a posi¢ao do fonoaudiologo na Telacao com a fala, . * 397 aque a nogio de comunicagio conduz, isto 6, a0 f er considerado como um problema em si mesmo, de um problema anterior, aquele que se manifest Em uma teoria da comunica ‘ato de o distirbio + 10 inves de ser trats 4 Como sintoma na fi it atividade lingiifstic, entre adu por principio. uma re ativa, Em tal concepe ‘io de interlocutores emptricos, isto &, im efetivo entre pessoas, un la comunicagao ilo como efeito inguagem, ulto © crianga é, I 40, NiO se vai além da impli- nstitufdos na relagéio imediata, num encon- vez que a idéia de troca de Mensagens entre sujeitos convoca a presenga de interlocutores reais, Prontos para interagir, | nterlocutores cons- titudos pela situagio concreta de comunicagiio e com capacidade cognitiva Para agir sobre cla, um sobre 0 outro ¢ ambos sobre r linguagem. Assim, a partir da selecio de unidades do cédigo, as mensagens sio codificadas e transmitid: um destinatirio que. + Se em condigdes de decodificé-las, ob mensagem como significagio tinica, ou seja, gragas a0 acesso dos interlocutores a um cédigo comum, Se, em uma relagio de comunicagao, 0s sujeitos estio aptos para interagir e para agit sobre 0 cédigo — mesmo no caso de relagdes assimétricas —, a linguagem fica reduzida a instrumento de comunicagao, a instrumento a servigo da transmissio de intengGes dos interlocutores. A linguagem comparece como funcio acesséria da re. Presentacdo (cogni¢do), cuja meta é a telagio social (De Lemos, 1986; Lier-DeVitto, 1998 e outros). Vé-se, assim, que a presenca da nogdo de comunicagio ressalta, além do cardter de “vefculo” da linguagem, o de sua transmissibilidade que, diga-se, de- corre da assun¢do de sua transparéncia. “Transmissibilidade” porque, na interagdo entre interlocutores independentes, mas unidos pela mesma relagio ao cédigo, men- Sagens podem ser veiculadas; “transparéncia” porque o sentido das unidades lingiifs- ticas empregadas é assumido como inequivoco. Enfim, a presenga da nogio de comu- nicagdo remete & concepgao de linguagem como um objeto que existe forse indepen- dente do sujeito. Sujeito esse tido como “capaz até de localizar esse objeto (...) de reconhecé-lo como tal ¢ dele se apossar” (De Lemos, ne 5). Se Poe nO Ao) eS ean aa ea mare isuirbios da comunicagio diferentes “patologias” numa mesma categoria ~ a dos dist iment de “objeto”, humana -, sua persisténcia é sintomitic: f é sintoma de “= bee tem conseqiiéncias de sua naturalizagiio. Refiro-me a0 “objeto eee : a earacdida'em ques hem sempre indcuas para uma clinica de tinguagem anes ae aeenesae efeitos sobre a comunicagdo ocupam a cena, a ne ne macs tquetcinee Entendo que a redugio da linguagem ee iain pensada em sua ordem prépria, que pros ete. rus que fung@es, tem fancios municagio? Refiro-me ao fato de que a lingwag' gio comunica las pelo remetente a ter4 como resultado uma apreenderd a intengdo do codificador, ante @ sobre a co- —S 2 © ononse? connunicayao, tal como a ambigdidade ser disruptive th Bfeito esse que pode, inclusive 6 ileal de comunicasao, : fo se powte susten nse, Tendo isso em vinta, niio se pode su Digitalizado com CamScanner linguagem 4398 + Aguisicto, patolozias o clinica de linguage ato, 1998), Assim, em ver, de considerar tm sujeito capturado? pel, mento (Lier-DeVitto, LPN te é logicamente anterior), 0 qule a NOgIO de coms. funcionamento dessa ori ge vem antes, qe & constituido sem 0 Seu concurs, odeina yore um pte, aquele que se coloca ante a finguagem-objeto (eon, tm sutton) E nese sentido que se pode dizer que a adesdo & teoria yp sos en wla Fonoaudiologia, apaga a linguagem. Gen ea nla eon oe eee pee on interacionista de De Lemos ~ abre novas perspectivas para se pensar a rela fo terapeuta-paciente na clinica de linguagem. Isso porque, com a implicacao dg Fingua em sta tcorizagio sobre a aquisigio da linguagem, a autora produz mudanca profunda na nogio de interagdo, de forma a torné-Iairredutivel & “empiria da relaczo entre duas pessoas” (Lier-DeVitto, 2000). Quer dizer, a introdugao da lingua (leis de referéncia interna da linguagem) como “um terceiro” € incompativel com a concep. ¢4o de interagdo enquanto dfade (relagdo dual), que esti na base da idéia de comuni- cacao. Diferentemente do sujeito do saber-controle, aparece em seu trabalho um su- jeito capturado pelo funcionamento da lingua. No cendtio dessa interagdo triddica, outro da crianga é assumido como instancia da lingua constituida. Para compreender a extensio de tal afirmagao e poder implicé-la numa reflexao sobre a posigao do fonoaudidlogo na clinica de linguagem, importa ressaltar que o outro, concebido como instdncia, nao € 0 outro empirico, mas concebido como lugar Ele nao pode, portanto, ser confundido com “individualidade” (De Lemos, 1995, p. 25; Lier-DeVitto e Arantes, 1998, p. 52). Trata-se do outro jé falante, cuja posicio é de identificacao com a lingua constitufda (com 0 Portugués, por exemplo), cuja fala esta submetida a restrigdes que tendem a homogeneidade. Pensar o outro como ins- tancia do funcionamento da lingua significa reconhecé-lo como sujeito divi fala e escuta e, portanto, sob efeito de falas — da prépria e do outro. ele esté na posicdo intervalar entre fala e escuta e & dessa posigaio de identificado com a lingua constituida — uma fala e interpreté-la. __Note-se que a nogdo de interpretago aqui assumida é bem diferente da idéia de tenis fe oseaniicagao presente nos modelos de comunicagiio, que implica a exis entre faantes. A noe ene Lo hando o mesmo codigo, que implica simetria que supe uma as eee ae ete opde-se a essa idéia de interagao 4 medida que remete 4 heterogeneidade eat cnire falantes numa mesma lingua, Assimetria mento € atingido no ease di aan falas © Sujettos, Cujo grau de maior pronuncia- das ¢ articulagses ce aes de linguagem’ ", Cujas composicdes inusita- due o imprevisivel panha mat i © suit caracteristica mais mareante, Enfim, falas em numa situagio particular: é co &xpressio. Nessa circunstancia, 0 outro colocade * © convocado a interpretar, mas fica numa condig&o em qué ido entre Assim entendido, escuta de falante — que ele pode estranhar (ou niio) o singular de =. 3. Expressii ‘a as propriedades do . Por De Lemos (1 ujeito, 992), que diz da alteridade da Iingua relativament Digitalizado com CamScanner Clinica de linguagem: sobre a posigao inica Hom: Sobre a Posi¢ao do tonoaudislogo na rel a A0 na relacaio com a fala... « 399 ageconhece € NO Feconhece™ tais produ ede come d weg chamado a incidlir sobre falas 7 legis propria lingua. O fanoaudiélo- -patolig: eolino, Wh) i “ae chamado a ccupar uma posigao diferente di do fol jmnerprete “especializado”. Se toda e qualquer tal mrento porque hii sempre dessemethanga entre implica. port ae ' go ndo-coincidente ~ ¢ ainda mais quando ha perturbagio no core dt teens Conforme observa Lier-DeVito. a singulniede ee ime gue abre a porta d de que decorre a necessidade de s: Sinia aceite ao saber antes” do encontro do clinico com o sujeito, A heterogencidade visibilidade constitutivas de cada caso demandam a sustentacio da os jo de nao. cater ante a fala, Do contririo, a tendéncia ¢ a de que prevaleca 6 imacinivin ty cransparéncia da linguagem e, com ele, a suposigo de saber adequi-la. Nesse movimento em direcio 4 homogencidade, corre-se o risco de afastamento da fala do paciente especificidade do que constitui “demanda” para a clinica de linguagem, ou apresenga de falas que jd se mostraram resistentes a interpretacdo (dos outros falantes) impede pensar 0 outro-terapeuta na posiga de uma dada lingua — e faver para tornd-Ia aber o que ¢ como se reconhecer que ele é Me de uma ling cnvolve sempre um desconheci-

Você também pode gostar