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O inconsciente do analista que nao retrocede ante as criancas ‘Mas 0 psicanalista tem detrds de si seu préprio inconsciente, do qual se vale para dar uma interpretagéo. Jacques Lacan, O sonho de Aristoteles, 1978. E HABITUAL QUE ALGUM JOVEM ANALISTA CONFESSE em supervisdo estar perdido apés varios encontros com uma crianca, nos quais somente péde sustentar certa atividade Itdica. Estar perdido ou néo saber muito bem o que se esta fazendo sdo expressdes que dao conta da auséncia do eu, justamente porque o eu é a instancia que permite néo nos perdermos, orientar-nos ou, inclusive, saber para onde vamos. Se utilizamos 0 jogo ou o desenho como substitutos da associacdo livre, se realmente estamos convencidos de que ambas atividades estao estruturadas como uma linguagem, nossa atitude como analistas pode se esclarecer seguindo os conselhos' que Freud nos legou. Retornemos uma vez mais 4 sua obra para realizar uma leitura que ilumine nossa posicao, a dos analistas que ndo retrocedemos ante as criangas. Nada de recursos auxiliares, nada de anotagdes durante as sessées. Nao prestar particular atengdo a nada em especial, a nao ser uma atencéo uniformemente flutuante aquilo que va surgindo. Digitalizado com CamScanner FUGIR PAR, AIAN re Freud fundomenta esse modo 160 particular de fol re J 1-se de impedir 0 funcio, desaporecer o eu, Trate Pe once dos prdprias expectativas ou inclinagées Porque, "se ¢ s expectotivas, estaré arriscando a nunca Sescobri, suas exp s, nada além do que jd sabe; e, se seguir as incl r certamente falsificara o que se possa perceber”? dizio de modo mais econdmico: "néio me procur 1¢6e5, - Lacan g Orig se ig néo me tivesses achado”’, Ora, considerando nosso quefazer lidico & gréficg com as criangas, impde-se uma pergunta: qual Poderig ser a atitude correspondente a essa atencdo uniforme. mente flutuante na hora de brincar ou desenhar com ym analisante-crianca? Se, durante essas atividades, o analistg Se concentra em produzir certas relacées analdgicas entre os elementos em jogo ea situagdo de seu Onalisante, ests desrespeitando a regra. Se a Barbie representa a mée, se o Ken representa o pai, se a casa desenhada figura © proprio lar, se a menina do relato 6a analisante em questo... 0 analista estaria perando uma conexao entre t6picos que considera importantes — o que poderia ser otribuido somente as expectativas que seu eu impde a situagéo clinica, O ideal seria um analista sem eu. Lacano ofirma Precocemente: “Se se formam analistas é para que haja sujeitos tais que neles o eu esteja ausente. E o ideal do ondlise que, é cl ‘FO, permanece virtual. Nao existe NUNCA sujeito sem uM eu, sujeito plenamente realizado ty", A tesposta de Freud a esse problema apoia-se &™ a Aliens YNGo S@ d concen cao temporal Propria & psicandlise: “No 4, sGi0 coisas We esquecer qe 0 que se escuta, na maioria, sdo cols’ | Digitalizado com CamScanner O inconsciente do analista que néo retrocede ante as criangas cujo significado sé é identificado posteriormente”®. A ideia é clara: o tempo do que ocorre na sessGo e o tempo do discernimento nao coincidem. Exigem um intervalo, o qual é situado por Freud no texto com um termo que se prefere manter no alemao original: nachtraglich®. Essa palavra supde um efeito delongado no tempo — que se pode produzir tanto para adiante quanto para tras. Nesse caso pontual, Freud afirma que o discernimento do que ocorre na sesso se produz a posteriori, ou seja, retroativamente. O eu do analista, entéo, apareceré na cena depois, e nao durante a sessdo. Mas... e durante a sessdo? Aqui aparece outra regra freudiana, representada com uma simplicidade que assombra, mas, ao mesmo tempo, nos introduz outro problema. Cito o pardgrafo fora do corpo do texto, devido ao particular uso que Freud faz das aspas: A regra (...) pode ser assim expressa: ‘Ele deve conter todas as influéncias conscientes da sua capacidade de prestar atengéo © abandonar-se inteiramente & ‘meméria inconsciente’. Ou, para dizé-lo puramente em termos técnicos: ‘Ele deve simplesmente escutar e ndo se preocupar se estd se lembrando de alguma coisa.’,” Fica situada assim a posigéo do analista ante a aparigao de qualquer fenémeno durante a sessdo: abandonado as suas memérias inconscientes® — ou seja, nada do eu. Nao ha nada que compreender durante o encontro clinico. Nao é necessdrio também que opere conhecimento algum. Digitalizado com CamScanner FUGIR PARA ADIANTE Comecemos pelo inicio: contrariamente ao que alguns comentaristas destacaram na obra do préprio Freud?, © mais adeptas a associagéo livre do que to. Sabemos © que na maioria das as criangas sa qualquer paciente adult vezes ocorre se os confroniamos de forma direta com sey sintoma: fecham-se e escapam, com a consequente perda de confianga em seu interlocutor, de quem poderiam supor que nao compreende as regras do jogo. Enquanto os pacientes adultos apresentam com frequéncia sérias dificuldades para deixar de falar daquilo que os leva G andlise e se indicar uma indicagdo acerca de fazem de fortes para rei como soluciond-lo, exigindo algum esclarecimento sobre g causa de seu padecimento, as criancas chegam livres de tal posicéo e, com grande facilidade, se dispéem a dar corda & proliferacdo de suas brincadeiras, mitos € diversos relatos, Suponhamos um paciente adulto que busca o aten- dimento por um motivo pontual: certas dificuldades para solucionar um estado afetivo produzido pelo término recente de um relacionamento. Essa pessoa suportaria de bom grado uma pergunia totalmente desconexa daquilo de que se queixa? Além disso, no momento de narrar seu préprio padecimento, incluiria por conta prépria referéncias a outras dreas de sua vida, ndo afetadas por sua particular situagao? Sabemos que é dificil, apesar de nao ser impossivel — de fato, hé muitos desses casos que conduzem 4 instalagao de uma posicdo analisante. Entretanto, todos nés, analistas, passamos alguma vez pela complicada situagdo de tentar sustentar essa abertura 4 rede significante apesar de nosso interlocutor, cujo ev Ihe impedia renegar as regras do relato - ordenado ¢ coerente — a favor da produgdo de um simples texto. Digitalizado com CamScanner O inconsciente do analista que néo retrocede ante as criancos Freud compreendeu que era essa propria escolha que tornava sem valor o depoimento do doente. Se quisermos reconhecer uma realidade caracteristica das reagées psiquicas, ndo convém comegarmos por escolher entre elas: € preciso comegar por néo escolher. Para aquilatar sua eficiéncia, hd que respeitar sua sucesso. Decerto Go se trata de restituir-lhes a cadeia através do relato, mas © momento mesmo do depoimento pode constituir um fragmento significativo delas, desde que se exija a integra de seu texto e que se o liberte dos grilhoes do relato.'° As criangas podem situar-se perfeitamente nessa posicGo quase ideal ante a linguagem, que Freud propunha como atitude para iniciar a experiéncia analitica. Fingindo ignorar que, ds vezes, portam um sintoma inscrito no corpo, podem nos contar suas vivéncias do dia, fazer referéncia a suas fantasias mais bizarras, ilustrando tudo isso com desenhos dos personagens imagindrios que povoam seus devaneios; contando também o filme visto no fim de semana e alguma anedota de seus parentes mais proximos. Puro texto: sem ordem cronolégica, sem respeitar a sequéncia abertura-desenvolvimento-fechamento, sem preocupagao 27 com os dados da realidade e bem longe da reivindicagéo do valor de verdade para seus dizeres. Esse tipo vinculo de trabalho é refratario 4 inteligéncia do suposto psicanalista. Explico-me: enquanto alguns de nossos colegas embarcam, com certa frequéncia, em calorosas polémicas Idgicas com seus pacientes adultos — tentando demonstrar que séo mais inteligentes do que aqueles, mediante o recurso de assinalar suas contradicées e colocando-os em apertos, cagoando as Digitalizado com CamScanner FUGIR PARA ADIANTE inconsisténcias de seus dizeres —, nada disso seria vidvel durante 0 enconiro com uma crianga. Inclusive, se possivel fosse, ndo consistiria em nada além de um recurso educativo: porque ensinar légica proposicional a uma crianga deixaria o analista muito préxirno de um professor (ou mestre), de onde poderia verificar-se uma recusa ao real. Se o eu coincide com um sistema de afirmacées © negagées estrulurado conforme os trés principios de Arist6teles, insistir com um paciente para que sua posicdo se tome consistente com essa légica nao faria mais do que reforcd-lo, Quase nunca falo de forma direta com uma criancga Sobre seu sintoma. O modo pelo qual escolho inicior nosso vinculo de trabalho aponta para outra coisa. Poderia representé-lo da seguinte maneira: quando me encontro pela primeira vez com uma crianca, tento instalar um didlogo sobre qualquer assunto que nao seu sintoma. Dedico um bom tempo a viabilizar o deslocamento do Outro desse sintoma. Se foi um sintoma © que conduziu essa crianga 4 andlise, quem o sancionou como tal foram seus pais e/ou parentes, seu médico ou educadores. £ possivel, inclusive, que isso que seus outros leem como sintoma nao tenha o mesmo valor para ela, Em uma conferéncia de 1983, intitulada A psicandlise frente ¢ demanda escolar, Colette Soler desenvolveu uma nogado de sintoma especifica para os atendimentos de crianga. Falou de uma “definicdo externa” desse — definigao que também qualificou de “psiquidtrica” —, jd que carece de uma condicéo propriamente analitica: a de supor que | Digitalizado com CamScanner O inconsciente do analista que ndo retrocede ante as criangas esse sintoma se apresenta como algo incompleto. Cito o argumento: +++ € preciso que se acrescente ao sintoma a ideia de que hé uma causa para isso (...). As condigées minimos para que se possa dizer que ha uma demanda de andlise séo que o sintoma se apresente como algo incompleto. Ou seja, que pega um complemento.!! E justamente esse cardter de incompletude que | possibilita a intervengao do analista, posto que quem se dirige a ele “supde que o analista tem o complemento de seu sintoma (...) sob a forma do saber”!?. Mas a clinica com criangas nos situa ante um sintoma diferente: definido, localizado e sancionado de fora por algum outro, nao revestido para seu portador desse cardter de incompletude que prefigura um lugar para o analista. E justamente por isso que ndo convém interrogé-lo diretamente, para | nao ficar situado, demasiadamente rdpido, na série dos personagens que o sancionaram. “Demasiadamente rapido” quer dizer antes de estabelecer com clareza um lugar operativo na transferéncia. Além disso, nédo é conveniente atacar o sintoma antes de estabelecer qual a sua funcdo. A hipédtese da psicandlise afirma que o sintoma nao é a doenga. Inclusive, considerando-o a partir de um ponto de vista eminentemente freudiano, 0 sintoma é uma mensagem que pode resultar enigmdtica a seu portador, No caso da crianga, Lacan o apresentou explicitamente escrevendo que responde [répondre 4] ao sintomatico da estrutura familiar, e deve-se considerar que, ao qualificd-lo de “resposta”, Digitalizado com CamScanner 1° a FUGIR PARA AD ian ” "a Dat . © termo vale também como “defesa Dai o Corte, i 2 re se inst digamos, procedente do sintoma: sempre tala coma uma resposta a ouira coisa, nunca é causa sui O caso mais evidente a respeito 6 0 do sintoma loca. lizadoemumasessoorganizadapelodiscursouniversitérig, Em tais casos, desempenha uma fungéo espectfica, ¢ © Ultimo bastiéo onde alojar o sujeito, permitinds cer, “recuperagdo subjetiva’'', Atacé-lo de modo direto, situa © anolisia na série dos avaliadores © devolve 6 crane, em questdo ao lugar de objeto da avaliagéo ~ situacéo da qual sempre se sai reprovado. E claro que em fais casos é muito importante o estabelecimento do dispositive de presenca de pais e parentes, ja que, sem isso, q impaciéncia irromperd no consultério, 0 trabalho sobre a fungdo do sintoma sera lido pelos outros da crianga como um fracasso terapéutico e, provavelmente, fiquemos sem paciente. Eis aqui um fenédmeno frequente do qual, historicamente, os psicanalistas se queixam, mesmo igno- rando sua participagdo no assunto: sem influxo anallitico sobre os pais e parentes, sem um dispositivo que instale sua presenga na andlise das criancas, é praticamente impossivel sustentar 0 trabalho sem remissGo do sintoma — bem como sustentd-lo quando o sintoma tenha desaparecido, A “definicéo externa” do sintoma descrita por Colette Soler tem sua contraparte na redefinicdo que esse expe- rimenta ao se incorporar na relagGo transferencial. Assim 0 afirmava Freud Precocemente, quando propunha que" transferéncia cria uma regido intermedidria entre a doenco e a vida real”'S, No caso de nossos analisantes-criangos, esse reino sé se produz se o analista se comporta como Digitalizado com CamScanner inconsciente do analista que ndo retrocede ante as criangas um bom entendedor'® e contribui com sua construgéo mediante um trabalho que aposte na associacéo livre e, em Ultimo caso, no inconsciente ~ do que ele, inevitavelmente, também participa. Eis aqui o complemento que o sintoma requer para ser analitico. Qualquer recurso ao eu da crianga introduzird, de forma direta, 0 fator evolutivo em termos de desenvolvimento cognitive e transformaré o encontro em uma psicoterapia. Jd dizia Lacan que “tera- peutizar 0 psiquico nao vale a pena’’, e qualquer apelo ago compromisso, & responsabilidade, 4 vontade ou ao esforgo desse eu em formacéo, néo contribuira mais do que a perder o tempo e 0 sentido de nossa tarefa. Fizemos esse percurso para afirmar a necessidade de que, na medida do posstvel, o analista desaloje o eu para instalarsua funcGo, bem como asituagao analitica. O desejo do analista que nao retrocede ante as criangas coloca-se em jogo através de uma aposta no inconsciente — 0 que também pode se apresentar como rendncia ao eu. Ora, nao falamos do eu de uma pessoa em particular (analista, analisante, pais e/ou parentes), sendo do valor que o eu tem como um modo preciso de tratamento da estrutura da linguagem e que, desde o primeiro de seus seminarios, 31 Lacan reduziu a uma fungdo de desconhecimento. Nao encontramos aqui nenhuma reminiscéncia do hominculo, nem de uma instancia dentro de pessoa alguma. O eu é um modo de falar que afirma os trés principios légicos de Aristételes, o que equivale a dizer que desconhece a légica do inconsciente (justamente por se fundar em sua negacdo). © eu, porém, reforca o esquecimento do que se diga por tras do que se diz no que se escutaentende. Esse desconhecimento introduza repressdo. E, finalmente, opera Digitalizado com CamScanner FUGIR PARA ADIAN sobre um fenémeno universal da linguagem — fendmeng prévio @ invengdo do inconsciente, mas que funciong como sua condicéo necesséria, desconhecendo que, quando alguém fala, sempre diz algo mois, algo menos ou algo diferente do que queria dizer. A posigGo esponténeg das criangas ante a linguagem favorece o deslocamento daquilo do inconsciente; intervir forgando uma resposta egéica contribui apenas com sua educagdo. Nesse ponto, © analista comporta-se antipedagogicamente, devido mais & sua posigdo ética do que a uma recomendacao técnica. O eu também apresenta uma face real, posto que encontramos seus enunciados sempre no mesmo lugar: aquele a partir do qual desconhecem a divisdo do sujeito, suturando-a a favor do sentido comum e da crenga na identidade. Na hora de néo retroceder ante as criangas, o analista encontra no inconsciente seu aliado mais valioso. Eas criancas também o encontram, mas em seu analista... Quando recebi pela primeira vez os pais de Tony, apresentaram-me uma situagGo extremamente delicada. O menino tinha seis anos, estava comegando o primeiro ano do Ensino Fundamental e pesava apenas dezoito quilos. O motivo da busca pelo atendimento era bem especifico: comia muito Pouco e apresentava um quadro de retencdo das fezes que, segundo disseram, estava relacionado 4 conduta alimentar — a légica era assim: “Come pouco. Por isso, nao vai ao banheiro”. Sua mae me contou que as dificuldades na alimentagdo nasceram com Digitalizado com CamScanner O inconsciente do analista que néo retrocede ante as criancas © menino: aparentemente, algo falhou em seu encontro inicial com Tony e a laclagdo néo funcionou bem. Essa dificuldade ficou enquadrada nas histéricas dificuldades da mae de Tony na relagéo com sua propria mae, quem, diagnosticada como esquizofrénica-paranoide, néo a acompanhou no momento do nascimento do menino, nem transmitiv nenhuma indicagéo que orientasse seus primeiros cuidados. Além de padecer de um quadro de ictericia, durante seu primeiro més de vida, o menino ganhou pouco peso. Depois desse periodo, indicaram-lhe a mamadeira, com complemento alimentar, Aos trés meses, momento em que sua mae comecou a ausentar-se para retomar os estudos, © menino recusou 0 peito completamente e teve que ser alimentado somente com a mamadeira. A partir dos seis meses, recusou os sdlidos. Comia, por isso, tudo batido no liquidificador. Na época do atendimento, aceitava somente alimentos muito especificos e em pouca quantidade. A mesa familiar, na hora das refeigées, repetia-se uma cena em que, depois de algumas colheradas, Tony se afastava do prato, manifestando estar com coceira, cansado ou 33 com frio. Tanto seu pai quanto sua mée declararam nao saber o que fazer com a situacéo. © discurso parental divergiu a respeito de uma intervengéo cirtrgica 4 qual o menino havia sido submetido. Enquanto a mae afirmou que Tony nasceu sem certos orgdos muito especificos do corpo, o pai asseverou que o menino os tinha, mas que néo funcionavam. A intervengao cirdrgica havia resolvido o problema. Ambos coincidiram ao dizer que o menino, em sua primeira infancia, foi submetido Digitalizado com CamScanner | FUGIR PARA ADIANTe a investigagdes € praticas exlremamente agressivas. Q corpo do pequeno se tornou, assim, cendrio de dois tipos de inconvenientes: por um lado, o mau encontro com sug mée, situado na dimenséo alimentar. Por outro, um déficit orgdnico por falha ou falta — o discurso parental dividia. se a esse respeito. Tony esteve internado duas vezes por causa de suas dificuldades com a defecagdo. Em ambas as ocasides, os médicos enfatizaram o baixo peso do menino. O pedido a mim apresentado estava claro: 0 processo seria terapéutico na medida em que Tony comecasse a comer, aumentasse de peso e normalizasse a defecagéo — pedido que, ao mesmo tempo, nao deixava de fazer notar que, nas dificuldades de Tony, estava em jogo sua vida. Quando recebi Tony, encontrei-me com um menino muito magro e cheio de olheiras, de contextura fisica muito pequena. Todos os objetos do consuliério chamavam sua atengGo e manifestava surpresa ante cada coisa que via. Sua linguagem era rica e utilizava termos pouco frequentes no discurso das criangas de sua idade. Somente se complicava quando tentava narrar alguma sequéncia: notavam-se dificuldades na construgao e na organizagéo do relato. Sua deriva pelos objetos do consultério se deteve quando encontrou os carrinhos. Logo apés manifestar sua inquietude ante 0 achado, passou a estudé-los um Por um, até que encontrou um em particular. Nesse momento, aproximou-se para mostré-lo a mim e, em voz muito baixa, disse: — Eu tenho igual. Nao fala nada. £ um segredo. © somegamos a apostar corridas, as quais ele sempre ganhava. E assim foi durante quatro ou cinco encontros. Digitalizado com CamScanner O inconsciente do analista que néo retrocede ante as criancas Ao longo das reproducées de um mesmo jogo, o analista no deve duvidar de que, cedo ou tarde, essas © conduzirao a algum lugar — ou, o que dé no mesmo, de que 0 jogo tem um sentido. O desespero em produzir alguma leitura, a pressa em compreender de que se trata, o furor por interpretd-lo, nao sao outra coisa sendo os modos pelos quais o desejo do analista que nao retrocede ante as criangas pode vacilar em favor de um eu que pretende saber de anteméo o que ocorreré, que procura compreender e estar orientado, Em tais situacées, mais do que nunca, o anolista deve ser paciente... Nao hé diferenca estrutural entre essas interagdes e as reiteracdes que se apresentam no discurso de um paciente adulto. Qual objetivo teria forcar esse texto para que conclua de uma vez e diga alguma coisa em particular? Como saber © que teria que dizer? Esse texto, esse jogo, nao é mais que um meio que exige certa temporalidade para poder se realizar'®. Por isso, Tony e eu aposiamos muitas corridas de carrinhos durante o primeiro més e meiode nossos encontros. Seu entusiasmo em jogar e ganhar nao diminufa. E, a cada vez que surgia 0 carro que temos em comum, ressurgia nosso segredo através de algum gesto ou palavra. Enquanto isso, durante esse periodo, atendia regularmente a seus Pais, escutava seu desespero e sua impoténcia, e recebia suas queixas pelos inexistentes avancos do tratamento. Reconheceram apenas uma pequena mudanca: Tony, esse Menino magrinho, seco e sem energia, contava os dias “como um preso” — conforme expressdo de seu pai — para me ver. Era a dnica atividade que, nesse momento dificil sua vida, realmente o entusiasmava. Digitalizado com CamScanner FUGIR PARA Abang Aié que um dia, depois de ganhar de mim nas Cortidgs pela centésima vez, exclamou: — Uau! Que chocolate te dei!!? Nao é, amigo? — Uh, que gostoso... Adoro chocolate! — respondi, Tony riv de meu comentario inesperado. Mas, imedig. tamente, acrescentou: — Eu como pouquinho... — Por qué? — perguntei. ~ Shhh... E outro segredo. Desse modo, pela via do equivoco e sem saber muito bem do que estdvamos falando, o assunto alimentar apareceu entre nds e envolveu-nos em um segredo que © préprio Tony me revelou tempos depois confessando: “tenho corpo de robé", Chegando a esse ponto, estava entre nés a resposta de ] suas dificuldades alimentares, mesmo que essa tivesse sido apresentada enigmaticamente. Sem duvida, poderiamos referi-la a historia de seu corpo: um corpo construide @ partir de um mau encontro com o de sua mae e um ambiguo déficit organico. Havia a tentagdo de perguntar- Ihe de forma direta a que se referia seu corpo de robé. Essa tentacdo é outra maneira de deixar cair o desejo do analista que nao retrocede ante as criangas... Em alguma sessdo posterior, Tony chegou ao consul- torio com um enorme robé, ao qual faltava um braco- Ele tinha a Peca, mas se negava a tentar uma reparagao Porque, conforme me disse, com razdo, “se colarmos © brago, néo vai conseguir mové-lo depois”. Questionei: Digitalizado com CamScanner O inconsciente do analista que néo retrocede ante as criangas - Talvez, depois de cold-lo, consiga mové-lo um pouquinho. Assim, a partir do valor significante em jogo entre “pouquinho” e “nada”, colocamos a méo na massa. Finalmente, o braco péde se mover de lado, mas néo de cima a baixo, o que, contudo, era suficiente para brincar. E brincamos muito: sem importar o tamanho e tampouco © material com que eram construidos, todos os bonecos do consultério se transformaram em robés; alguns eram amigos, outros lutavam, ganhavam e perdiam batalhas. No dmbito dessa proliferagao de situagées, decidimos criar nosso préprio robé. Para isso, fizemos uso dos blocos e outros elementos dispersos pelo consultério. Demos o nome de Atom e estavamos muito felizes com nossa criacdo. Mas a vida de Atom foi efémera: em meio a uma enorme batalha, pouco depois de ter sido construido, caiu no chao e ficou destruido, demonstrando assim sua fragilidade. Tony ficou muito bravo e atacou nosso prdéprio trabalho exclamando: — Era um robé de merda! Uma verdadeira cagadal Dobrei a aposta: — Cagada de robé, merda de robé. mentando seus gritos. — disse comple- —NGo, néo. Os robés néo cagam. Nao cagam porque nao comem. Té vendo que nao tém o buraco do cu? ~ Ainda bem que no sou um robé. E vocé? — Vou desenhar para ver se assim vocé entende. Desse modo, Tony produziu uma passagem do jogo ao desenho. Comegou retratando figuras humanas robéticas lw Digitalizado com CamScanner FUGIR PARA ADiay, que nao se pareciam aquelas que as criangas de Sug idade costumam representar no papel. Em um primeir, momento (momento que se estendeu por duas sesséeg) as figuras estavam vazias. Logo, acrescentou um COracag para, finalmente, incorporar o que poderia denorninar-se uma “teoria dos tubos do corpo”. Desse modo, comecoy a conectar diversos buracos por tubos: as orelhas com cérebro, o nariz com a boca e os pulmédes, o umbigo como coragao e a boca com o cu. Para o desenvolvimento dessa teoria, passdvamos dos desenhos ds construgées com todo tipo de materiais, faziamos maquetes e mapas. Nos concentramos nos materiais que circulavam pelos tubos: ar, muco, amor, sons, comida e cocé. Acrescentamos um circuito para o sangue e o xixi, Claro que se tratava de uma anatomia significante, mas Tony se mostrava muito interessado em seu desenvolvimento. Eu nao tinha ideia de até aonde chegariamos em nosso trabalho. Mas o que sabia, sim, era que estava disposto a acompanhé-lo e a nGo recusar nenhuma proposta que supusesse dar um Passo a mais em nossa tarefa, Enquanto submergia com ele nas mais diversas cons- trues e utilizavamos qualquer material disponivel para dar realidade a nossos desenhos, lembrei uma citagdo do grande Michel Silvestre: Como se pode ver, se a crianga neurética pudesse de- mandar algo, demandaria que a deixem fazer (faire) sua neurose em paz. Parece-me que isso é o que com preenderam os melhores psicanalistas de criangas. 060 @ impressGo de preservar, de orientar, de dirigir U" processo, mais do que tentar colocar-lhe obstaculos. p Digitalizado com CamScanner O inconsciente do analista que ndo retrocede ante as criangas Mas, mesmo assim, ndo é surpreendente que seja 0 entorno da crianga que se ditige oo analista, toda vex que & a esse entomo ( a quem a crianga formula sua pergunta (demande), e que essa pergunta ndo é formulada a néo ser porque esse entorno jd se mostrou enfraquecido no instante de responder?” Citei um dos pardgrafos que foi publicado em meu primeiro livro”! — e, se retomo a citagéo tantos anos depois, é porque me lembrei dela todo esse tempo. Esse pardgrafo esté composto por trés oragdes, cada uma delas com um valor diferente. Sempre me surpreendeu a ideia de que uma crianca demandaria que a deixassem desenvolver sua neurose em paz — 0 verbo francés faire tem diversas possibilidades de tradugdo além de “fazer”, que é a mais pobre delas. Creio que Silvestre faz ressoar ali o que, na ocasidéo de seu comentario do caso do pequeno Hans, Lacan introduz sob a forma da exausido (ou esgotamento) das permutagées de um ndmero limitado de significantes que compdem um assunto: “(...) a solugao do impossivel é trazida ao homem pelo esgotamento de todas as formas possiveis de impossibilidades encontradas no equacionamento significante da solugao””. 39 A segunda oragéo deixa de indicar uma falta de humildade para se converter no preferivel: é melhor um analista que compreenda essa ideia, que a facilite e a acompanhe com seu desejo, ao invés de qualquer posigéo que a obstaculize, inclusive em nome do mais elevado ideal de satde. Em relacdo ao segundo pardgrafo, no caso de Tony, foi evidente que seus outros parentais se mostraram Digitalizado com CamScanner FUGIR PARA ADIaNTe esmorecidos ante sua pergunta/demanda (demande, em francés, tem os dois significados). Enquanto todo esse assunto (sujeito) se desenrolava, o menino havig comecado a comer um pouco mais e a regularizar suas defecagées, néo sem um trabalho com os pais no émbito do dispositivo de presenga. Esse trabalho consistiv em apontar que poderiam associar suas fungées alimentares e excrementicias a algo lidico: desfrutar e se divertir na hora das refeicdes e de ir ao banheiro, ao invés de vivencid-las como uma situacGo tensa e de avaliagao ~ por nao dizer “universitaria” — em que se aprovavam ou NGo a quantidade de colheradas e dejetos. E facil ler a posteriori o quanto convém que o analista que nao retrocede ante as criangas se involucre na légica da “coextensividade do desenvolvimento do sintoma e de sua resolucao curativa"®s, 0 que se consegue “unicamente com a condicdo de o eu do analista aceitar nGo estar ai, unicamente com a condicéo de o analista NGo ser um espelho vivo, porém um espelho vazio”24, Qual é a via que conduz a €ssa posicdo? Deixemos que Lacan responda: ++ NGo seria tanto de uma longa experiéncia do analista, de um conhecimento extenso daquilo que ele pode €ncontrar na estrutura, que deveriamos esperar a maior Pertinéncia, 0 salto do ledo de que nos fala Freud, que sé se dé uma vez em suas melhores realizagées ~ nao, é da comunicagdo dos inconscientes. & dai que sairia aquilo ve, na andlise existent, concreta 1, iria mais longe, 09 mais profundo, até 0 maior efeito.25 = Digitalizado com CamScanner © inconsciente do analista que ndo retrocede ante as criangas Esse pardgrafo poderia ser lido como uma declaragéo de principios: a andlise nao avanca gracas & experiéncia do analista, mas 4 medida que esse néo obstaculize, com sua experiéncia, com seu saber ou com seu eu, a comunicacdo inconsciente. Entéo, nds, os analistas que nao retrocedemos ante as criancas, deparamo-nos com outro obstdculo que é proprio & nossa clinica, dado que é a Unica que nos exige considerar nossos jovens pacientes, ao mesmo tempo, criangas e analisantes. Encontrei essa ideia em um texto publicado em 1975 na revista Scilicet 5, revista do Campo Freudiano cuja particularidade era a de manter © anonimato dos autores de seus textos. O artigo nos presenteia com um excelente panorama acerca do modo como se colocavam os problemas préprios 4 nossa clinica em meados dos anos 70, no dmbito da Escola de Lacan. Cito: Se a maior dificuldade no oficio do analista que trabalha com criangas é a de considerd-las, ao mesmo tempo, criangas e analisantes, é ao final da cura que as representagées imagindrias que o analista fez da crianga tendem a privilegid-la [a crianga] como tal, e nao como analisante.”* Tais representagées, quando se impdem, rebaixam © desejo do analista que ndo retrocede ante as criancas a um fim terapéutico, quando, na realidade, se trata de “evitar ser localizado ante um fato consumado [leia-se: 0 fim dos sintomas] e de levar seu jovem paciente tao longe quanto possivel seja”?”. Digitalizado com CamScanner FUGIR PARA ADIANTE Sem duvida, estamos aqui mais além de Freud ou, ao menos, daquilo que ele propunha a respeito da andlise de criangas. Para poder sustentar o desejo do analista quando hd remisséo dos sintomas de um analisante-crianga, é preciso considerar com rigor tedrico que “toda crianga em andlise é um analista virtual”*, Isso s6 é possivel se © analista realiza as manobras que permitem instalar o dispositive de presenca de pais e/ou parentes. Caso con- trdrio, o Unico final de andlise concebivel com uma crianca Sera © terapéutico, ou seja, aquele sancionado com a Digitalizado com CamScanner

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