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VAN DER LEEUW, Gerardus. Fenomenologia della religione. Torino: Bollati Boringhieri, 1992.

109. Fenômeno e fenomenologia (pp. 529-535)1

1. A fenomenologia procuro o fenômeno; o que é o fenômeno? É aquilo que se mostra. Isto implica uma
tríplice afirmação: 1) existe algo; 2) este algo se mostra; 3) é um fenômeno pelo fato mesmo de se mostrar.
Ora, o fato de se mostrar torna interessante tanto o que se mostra, quanto aquele a quem é mostrado;
conseqüentemente o fenômeno não é um simples objeto; e não é nem mesmo o objeto, a verdadeira
realidade, cuja essência estaria apenas recoberta pela aparência da coisa vista. Disso fala uma certa
metafísica. Com fenômeno não se pretende nem mesmo algo de puramente subjetivo, uma vida (vivido)2 do
sujeito estudada por um ramo distinto da psicologia - na medida em que tem a possibilidade para isso. Mas o
fenômeno está junto com um objeto que se refere ao sujeito, e um sujeito relativo ao objeto. Com isto não se
pretende dizer que o sujeito sofreria alguma usurpação do seu campo por parte do objeto, e vice versa. O
fenômeno não é produzido pelo sujeito, e muito menos corroborado ou demonstrado por ele. / (p. 530) / Toda
a sua essência consiste no mostrar-se, mostrar-se a alguém. Tão logo o alguém começa a falar daquilo que
se mostra, começa a existir a fenomenologia.
Conseqüentemente, o fenômeno, com respeito ao alguém a quem se mostra, comporta três características
fenomenais sobrepostas: 1) é - relativamente - escondido; 2) revela-se progressivamente; 3) é -
evidentemente - transparente. Estas etapas sobrepostas não são iguais, mas correlativas, àquelas da vida: 1)
experiência vivida; 2) compreensão; 3) testemunho. As duas últimas relações, cientificamente tratadas,
constituem o objetivo da fenomenologia.
Por experiência vivida, entendemos uma vida presente que, segundo o meu significado, forma unidade3. Não
é portanto vida pura e simples; inicialmente condicionada objetivamente (cf. a expressão alemã er-lebt)4, a
experiência vivida, em segundo lugar, é inseparavelmente associada à sua interpretação enquanto tal. A vida
em si mesma é impossível de se abarcar. “Aquilo que o jovem de Sais revela é a figura, não a vida”5. A
experiência vivida originária sobre a qual se fundam as experiências que nós vivemos é sempre própria
irrevogavelmente do passado, desde o instante no qual a nossa atenção se volta para elas. A minha vida, que
experimentei vivendo-a (er-lebte) enquanto escrevia as duas ou três linhas da frase precedente, está já tão
distante de mim quanto a vida das linhas que escrevi há trinta ou quarenta anos atrás, nos bancos da escola;
não posso chamá-las de volta, são passado. O que digo? A experiência vivida das linhas precedentes não é
mais próxima de mim que a experiência do escriba egípcio que escreveu cartas sobre papiros há quatro mil
anos atrás. Que este seja um outro diferente de mim, não tem nenhuma importância, porque o rapaz que
fazia deveres de casa há trinta ou quarenta anos é, também ele, antes de mais nada um outro, quando o
considero, e é necessário que eu objetive a mim mesmo na minha experiência vivida daquele tempo. O
imediato não é nunca dado nem no tempo nem no espaço, é preciso reconstrui-lo. Não temos nenhum
acesso a nós mesmos, isto é à nossa vida mais íntima, aquela que nos é própria no sentido integral da
palavra; a nossa vida não é a casa onde moramos; não é nem mesmo o corpo com o qual podemos, pelo
menos, fazer alguma coisa. Diante da nossa vida, estamos sem socorro. O que dá a impressão da máxima
diferença e da maior distância, entre nós mesmos e o outro, o próximo, aqui do lado ou na China, ontem ou
há quatro mil anos atrás, é uma coisa imperceptível, se a medimos sob a imensa aporia na qual nos
encontramos, tão logo queiramos alcançar a vida como tal. Ainda que a reduzíssemos à sua manifestação
histórica, ficaríamos desconcertados; a porta permanece fechada, tanto aquela de ontem como aquela da
mais distante origem. Cada historiador sabe começar talvez em algum lugar, mas sabe também parar, no fim,
quando chega a si mesmo, isto é reconstrói6. O que significa então esta reconstrução?
Podemos descrevê-la como o traçado de um plano no meio daquela confusão de linhas caóticas chamado
realidade. Tal plano se chama estrutura, e a estrutura é / (p. 531) / uma coesão não unicamente

1 Traduzido por Paulo Roberto de Andrada Pacheco, sem autorização e revisão da editora. O texto original é em alemão e foi
publicado pela primeira vez em 1956, sob o título Phäenomenologie der Religion.
2 A expressão experiência vivida está já orientada de forma objetiva (faz-se experiência de alguma coisa) e designa uma estrutura.
3 DILTHEY, Ges. Schr., vol. 7, p. 194.
4 A partícula er indica aquisição (n.d.t.).
5 DILTHEY, Ibidem, p. 195.
6 Cf., em um outro campo do saber, P. BEKKER, Musikgeschichte (1926), p. 2.
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experimentada ou unicamente abstrata por via lógica ou casual, mas compreendida. É um todo orgânico que
não se deixa decompor, mas se faz entender mediante as suas partes; é um tecido de elementos particulares
que não podem combinar entre si somando-se ou diminuindo-se uns aos outros, mas apenas o conjunto, o
todo, se deixa entender como tal7. Em outros termos, a estrutura é, sim, experimentada, mas não de modo
imediato; é, sim, construída, mas não é abstrata segundo a lógica causal. A estrutura é a realidade
significativamente organizada. Mas o significado pertence em parte à realidade mesma, em parte ao alguém
que procura compreendê-la. É sempre tanto compreensão quanto compreensibilidade, e o é em um nexo não
divisível, vivido. Não se pode nunca dizer com certeza o quanto é compreensão minha e o quanto é
compreensibilidade da coisa compreendida. Eis exatamente aquilo que pensamos quando declaramos que a
compreensão de um relacionamento, de uma pessoa, de um dado, se abre a nós8. O domínio do significado é
um terceiro domínio, um lugar além da pura subjetividade e da pura objetividade9. A porta que leva à
realidade da experiência vivida originária, realidade em si inacessível, é o significado, o sentido, o meu e o
seu tornados irrevogavelmente um no ato da compreensão.
Eu faço a experiência vivida da conexão de sentido, da estrutura, compreendendo-a primeiro no instante. O
sentido se me abre, mas não é a verdade inteira; de fato a compreensão não é nunca limitada à experiência
vivida do instante. Estende-se simultaneamente a mais unidades experimentadas enquanto provém da
compreensão das ditas unidades experimentadas. Mas evidentemente estas outras experiências vividas,
compreendidas e ao mesmo tempo participantes da compreensão têm com o que é compreendido
instantaneamente uma semelhança que se demonstra precisamente mediante a compreensão como
comunhão de essência. Uma vez compreendida, a experiência vivida é incorporada na compreensão, e
mediante esta numa conexão objetiva mais vasta. Cada experiência particular é já conexão; cada conexão é
ainda experiência vivida. Isto queremos dizer quando, junto às estruturas, falamos de tipos10.
Aquilo que se mostra, se mostra como imagem, que comporta últimos planos e planos adjacentes, e se
comporta a si mesmo, em direção a outras entidades que se mostram, seja por semelhança, seja por
contraste, seja segundo muitas outras nuances possíveis: condição, posição periférica ou central,
concorrência, distância etc. Mas tais relacionamentos são sempre alcançáveis, compreensíveis11; não são
nunca relacionamentos de fato, relações causais. É inútil dizer que não excluem as relações causais, mas
não exprimem nada delas. Valem apenas numa conexão compreensível. Tal conexão a chamamos tipo, ou
tipo ideal12, aplicável a pessoas, situações históricas, religiões etc.
O tipo não tenha realidade; não é, nem mesmo, uma fotografia da realidade. Como / (p. 532) / a estrutura,
esta fora do tempo e não tem necessidade de se apresentar na realidade histórica13. Mas possui vida, um
sentido próprio, uma lei própria. A alma, como tal, não aparece nunca em lugar algum; é sempre uma
determinada espécie de alma, a que se acredita; é única na sua determinação. Ouso dizer que a
representação da alma de dois indivíduos, ainda que pertencentes ao mesmo ambiente cultural e religioso,
não são nunca completamente idênticas. Mas existe um tipo de alma, uma conexão compreensível entre as
diversas estruturas da alma. Este tipo está fora do tempo, não é real; é vivo, todavia, e se mostra para todos.
O que fazemos para vê-lo realmente?

2. Nós exercitamos a fenomenologia. Expressão clara em si mesma: devemos falar daquilo que se mostrou a
nós14. Aquilo que dizemos contém os seguintes elementos, que enumeramos sucessivamente, na medida em
que a prática da palavra comporte justaposições e interpenetrações, muito mais que sucessões.

7 Isto foi chamado de círculo hermenêutico; G. Wobbermin foi quem primeiro chamou nossa atenção sobre isso; cf., J. WACH,
Religionswissenschaft, p. 49.
8 Cf., A. A. GRÜNBAUM, Herrschen und Lieben (1925), p. 17; SPRANGER, Die Einheit der Psychologie, pp. 6ss.
9 SPRANGER, op.cit., p. 436.
10 SPRANGER, op.cit., p. 177. Cf. a observação de WACH: a estreita conexão entre doutrina dos tipos e a teoria da hermenêutica

não foi até agora revelada suficientemente; Religionswiss., p. 149.


11 O termo “relação compreensível” é de Karl Jaspers.
12 Sobre a história dessa noção cf. B. PFISTER, Die Entwick. Zum Idealtypus (1928).
13 SPRANGER, Lebensformen, p. 115; BINSWANGER, Einführung, p. 296; VAN DER LEEUW, Über einige neuere Ergebnisse der

psychologischen Forschung, passim. Veja-se também P. HOFMANN, Das religiöse Erlebnis (1925), p. 8.
14 Aquilo que entendemos por “fenomenologia da religião”, Hackmann o chama “ciência geral das religiões”. Outros nomes foram

apresentados (mas não se conservaram): psicologia transcendental, eidologia, doutrina (ou ciência) das formas [Formenlehre], das
representações religiosas (Usener).
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A. Àquilo que ficou visível damos um nome. Cada palavra é antes de mais nada dom do nome. “O
simples uso do nome constitui uma forma de pensamento intermediária entre a percepção e a
figuração”15. Dando nomes, separamos os fenômenos e os reagrupamos; em outros termos, os
classificamos, inserimos ou eliminamos; chamamos um certo fenômeno sacrifício, um outro
purificação; desde quando Adão deu nomes aos animais, todos aqueles que falam sempre fizeram
igual. Todavia arriscamos de deixar-nos hipnotizar pelo nome, ou pelo menos de nos contentarmos
com eles, de pararmos ali. É o perigo descrito por Goethe: “transformar as intuições em noções, as
noções em palavras” e servir-se desta palavras “como se fossem objetos”16. Buscaremos evitar o
perigo através
B. da inserção do fenômeno na nossa própria vida17. Inserção que não é um ato arbitrário; sequer
podemos fazer isso. A realidade é sempre a minha realidade, a história é a minha história, “a
projeção, o prolongamento para trás do homem que vive agora”18. Mas devemos saber o que
fazemos quando nos colocamos a falar daquilo que se mostrou a nós e ao qual damos um nome.
Com esse fim devemos representar a nós mesmos que tudo aquilo que se mostra a nós não se dá de
modo imediato, mas apenas como sinal de um sentido a ser interpretado, como uma coisa que quer
ser interpretada por nós. Porém a interpretação é impossível se não vivemos aquilo que se mostra, e
o vivemos não involuntariamente e com uma meia consciência, mas experimentamos, vivemos com
assiduidade e método. Mesmo aqui citarei as belas palavras de Usener, que não sabia nada de
fenomenologia, mas entendia o que está implicado neste termo: “apenas lançando-nos com
abandono nos passos de um tempo desaparecido...19 podemos chegar a dividir com ele os
sentimentos; então cordas afins podem pouco a pouco vibrar em nós e ressoar em uníssono com
eles, e descobrimos na nossa consciência os fios que unem o antigo ao novo”20. É a mesma coisa
que / (p. 533) / Dilthey chama de “a experiência vivida de uma conexão de estrutura”. Certo, esta
experiência é mais arte que ciência21. É a arte primordial, essencialmente humana, do ator, a arte
indispensável a todas as outras artes, mas também às ciências do espírito: inserir a própria vida na
experiência vivida alheia (e mesmo na nossa, aquela de ontem, que já se tornou estranha!). É inútil
dizer que esta inserção tem os seus limites. Os quais, no entanto, em medida talvez maior, são
marcadas também pela nossa compreensão de nós mesmos. O célebre homo sum, humani nihil a me
alienum puto, não abre nenhuma porta para a compreensão mais profunda da mais remota
experiência vivida, mas afirma todavia, e vitoriosamente, que tudo o que é essencialmente humano
continua a sê-lo, ao menos que quem compreenda tenha se tornado muito professor e muito pouco
homem. “Quando o bárbaro conta ao professor que houve um tempo em que nada existia para além
de uma grande serpente emplumada, o doutor não compreende nada se não vibra internamente,
sentindo-se meio tentado a desejar que o bárbaro tenha razão”22. Somente a atuação duradoura e
energicamente procurada desta inserção na vida alheia, somente o estudo ininterrupto do próprio
objetivo, deixa o fenomenólogo realmente capaz de interpretar aquilo que se mostra. Como o disse
muito bem Jaspers, “cada psicólogo constata em si mesmo que a vida da sua alma se ilumina sempre
mais, que o não percebido se torna para ele consciente, e que o último limite não é nunca
alcançado”23.
C. O último limite é inacessível não apenas no sentido que lhe dá Jaspers: designa também aquilo que
existe de inacessível na existência. A fenomenologia não é uma metafísica, e não abraça melhor que

15 W. McDOUGAL, An outline of psychology, 3ª ed. (1926), p. 284.


16 GOETHE, Farbenlehre, citado por BINSWANGER, Einführung, p. 31.
17 A expressão habitual, Einführung, insiste muito sobre a parte legítima da sensibilidade nesta inserção.
18 SPRANGER, Lebensformen, p. 430.
19 O mesmo acontece para aquilo que se chama presente.
20 H. USENER, Götternamen (1896), p. VII.
21 BINSWANGER, Einführung, p. 246; VAN DER LEEUW, Neuere Ergebnisse, pp. 14ss.
22 G. K. CHESTERTON, The everlasting man, p. 116; Dilthey “possuia um estranho instinto do método fenomenológico, tal como o

praticava Husserl. Mas este último não conseguia compreender Dilthey, porque interpretava a própria descoberta de modo
racional”; H. PLESSNER, Die Stufen des Organischen und der Mensch. Einleitung in die Philosophie Anthropologie (1928), passim.
Cf. HOFMANN, Religiöses Erlebnis, p. 4.
23 K. JASPERS, Allgemeine Psychopathologie, 3ª ed. (1923), p. 204.
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a metafísica a realidade empírica. Respeita a reserva, a epoché, e a sua compreensão daquilo que
aconteceu depende sempre de uma inserção entre parênteses. A fenomenologia se ocupa somente
dos fenômenos, isto é daquilo que se mostra; por isso atrás do fenômeno não existe nada. Esta
reserva não é um simples procedimento de método, uma medida de prudência; é a qualidade própria
de cada comportamento humano diante da realidade. Scheler formulou de modo notável: “Ser homem
- escreve - significa opor a este gênero de realidade um rigoroso não”. Buda sabia disto, quando dizia
que é magnífico contemplar cada coisa, mas é terrível sê-lo. Platão o sabia, quando correlacionava a
visão das idéias ao movimento da alma que torce o olhar do conteúdo sensível das coisas, ou quando
ao entra em si mesma para descobrir a origem das coisas. E. Husserl pensa na mesma coisa quando
se junta o conhecimento das idéias a uma redução fenomenológica, quer dizer a uma radiação ou
inserção entre parênteses do coeficiente de existência (fortuito) das coisas do mundo, para obter a
sua essência24. É inútil sublinhar que aqui nenhuma espécie de idealismo é preferida a um qualquer
realismo, antes se afirma que o homem pode ser positivo apenas se se destaca das coisas como lhe
vêem dadas, caóticas / (p. 534) / e informes e na medida em que dá a elas antes de mais nada uma
forma e um sentido. A fenomenologia não é um método elaborado com sutileza, mas é aquela viva
atividade, autenticamente humana, que consiste no não se perder, nem entre as coisas nem no ego,
no não caminhar por cima das coisas como um Deus, nem passar por baixo delas como um animal,
no fazer aquilo que não é dado nem aos animais nem a Deus: colocar-se compreensivamente do lado
daquilo que se mostra e olhar25.
D. A vista daquilo que se mostra implica uma elucidação, uma clarificação daquilo que se olha: deve-se
reunir aquilo que é solidário (semelhante), separar aquilo que não tem a mesma natureza. Não que a
elucidação deva proceder por meio de conexões causais: A vem de B, mas C tem sua gênese própria
que o une a D. A elucidação se conformará unicamente com a maneira própria às conexões
compreensíveis, um pouco como o pintor de paisagens reagrupa entre elas as partes do seu quadro
ou as afasta umas das outras. A justaposição deve se tornar não uma dedução, mas uma
solidariedade compreensível26; em outros termos, nós buscamos a conexão típica ideal, que depois
tentaremos incorporar em torno, num conjunto mais vasto27.
E. Todos estes atos, olhados juntos e contemporaneamente, formam em sentido próprio o ato de
compreender; de tal modo que a realidade caótica, inerte, se torna uma comunicação levada ao
nosso conhecimento, uma revelação. O factum empírico, ontológico ou metafísico, se torna um
datum, a coisa uma palavra viva, a rigidez inerte se torna expressão28. “As ciências do espírito se
fundam sobre a relação entre experiência vivida, expressão e compreensão”29. Eis como nós
explicamos isso: se a experiência vivida, inapreensível, não se deixa nem aferrar nem dominar, nos
mostra, todavia, alguma coisa, um rosto, e diz alguma coisa, uma palavra. Trata-se de entender este
logos; a ciência é uma hermenêutica30.
Se, como no nosso caso, a ciência em questão é uma ciência histórica, parece este o ponto no qual o
ceticismo ameaçador se infiltra no nosso trabalho e torna impossível a nós qualquer compreensão
dos tempos e zonas distantes. A isto se poderia responder assim: nós somos muito dispostos a
reconhecer que não podemos saber nada e que também podemos compreender pouco, mas
compreender os Egípcios da primeira dinastia não é, em si, mais difícil que compreender o nosso
vizinho. Os monumentos da primeira dinastia são dificilmente inteligíveis, mas como expressões,
como discurso humano, não apresentam maior dificuldade que as cartas de um nosso colega. Sob

24 M. SCHELER, Die Stellung des Menschen im Kosmos (1928), p. 63. Cf. M. HEIDEGGER, Sein und Zeit, p. 38; U. EYSER,
Phäenomenologie, Das Werk E. Husserl, Mass und Wert (Zurique, 1938); E. FRICK, Die phäenomenologische Philosophie Husserl
in der gegenwärtigen Kritik, Kantstudien, 38 (1933).
25 VAN DER LEEUW, Der Mensch und die Religion; SCHELER, Nachlass, vol. 1, p. 267: a fenomenologia pressupõe um comércio

sumamente intenso e direto, uma quase simbiose com o mundo; é o empirismo mais radical, porque para todas as teses e fórmulas,
compreendidas aquelas da lógica pura temos necessidade de uma prova no conteúdo vivido.
26 BINSWANGER, op.cit., p. 302. Cf. JASPERS, Psychopathologie, pp. 18 e 35.
27 SPRANGER, Lebensformen, p. 11
28 HEIDEGGER, op.cit., p. 37; DILTHEY, Ges. Schor., vol. 7, pp. 71 e 86.
29 DILTHEY, Ibidem, p. 131.
30 Cf. também BINSWANGER, op.cit., pp. 244 e 288.
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este ponto de vista, o historiador pode aprender como o psicólogo. “Quando permanecemos
igualmente maravilhados diante de um antigo mito ou de uma cabeça egípcia, e nos aproximamos
dessas coisas convictos que nelas existe algo de compreensível no terreno da experiência vivida,
mas infinitamente distante de nós, inacessível, ao mesmo tempo que consideramos com surpresa um
processo psicopatológico ou um caráter anormal, nos é dada, pelo menos, a possibilidade de
voltarmos / (p. 535) / um novo olhar compreensivo, mais profundo, e talvez delindar uma exposição
viva”31.
F. Se a fenomenologia quer conduzir o seu objetivo a um bom fim, tem estreita necessidade de receber
uma perpétua retificação, que encontrará nas mais conscienciosas pesquisas filosóficas e
arqueológicas; deverá estar sempre pronta a afrontar os documentos e os fatos. Não que a
elaboração objetiva destes materiais possa acontecer sem interpretação, quer dizer sem
fenomenologia: cada exegese, cada tradução, por fim cada leitura, é já uma hermenêutica. Mas esta
hermenêutica puramente filológica tem fins menos amplos que aquela puramente fenomenológica.
Trata-se antes de mais nada do vocabulário, depois da coisa enquanto concretamente pensada, em
outros termos traduzíveis. Naturalmente isto exige um significado, mas menos profundo e menos
esteso que a compreensão fenomenológica32. Esta última, todavia, degenera em puro artifício, ou em
vazia fantasia, tão logo se subtrai ao controle da interpretação filológico-hermenêutica33.
G. O conjunto destas práticas, aparentemente complicado, no final mira apenas a pura objetividade. A
fenomenologia não emana das coisas, muito menos de seus condicionamentos mutáveis, e
infinitamente menos ainda da coisa em si. Quer encontrar acesso às coisas mesmas34, e para isso
tem necessidade de um significado, porque não pode fazer com o seu talento a experiência viva das
coisas. Mas este significado é puramente objetivo; é excluída toda violência, empírica, lógica ou
metafísica. Como Ranke retinha para cada época, a fenomenologia pensa que cada devir “é imediato
a Deus” e que “o seu valor não se fundamenta sobre aquilo que emana daí, mas sobre sua existência
mesma, sobre o seu próprio si mesmo”35. A fenomenologia se destaca do pensamento moderno que
gostaria de nos ensinar a “considerar o mundo como uma matéria sem forma, que cabe a nós formar,
elevando-nos como senhores do mundo”36. Quer uma coisa só: atestar aquilo que se lhe mostrou37, e
o pode alcançar apenas indiretamente, através de uma segunda experiência vivida daquilo que
aconteceu, através de uma reconstrução. Neste caminho, deve encontrar muitos obstáculos, e lhe é
negado ver face a face. Mas ainda aquilo que se deixa olha no espelho não é pouca coisa, e de tudo
aquilo que for visto desta forma se pode falar.

31 JASPERS, Psychopathologie, p. 404. Cf. USENER, Götternamen, p. 62.


32 SPRANGER dá um belo exemplo, confrontando os vários sentidos de um texto bíblico, sempre mais amplos e profundos: Einheit
der Psychologie, pp. 180ss.
33 VAN DER LEEUW, Neuere Ergebnisse, passim; WACH, Das Verstehen, p. 117.
34 HEIDEGGER, op.cit., p. 34.
35 L. Von RANKE, Weltgeschichte, vol. 8, 4ª ed. (1921), p. 177.
36 E. BRUNNER, Gott und Mensch (1930), p. 40.
37 Cf. W. J. AALDERS, Wetenschap als Getuigenis (1930).

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