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o início do famoso cap. XXVII do seu Ensaio, intitulado
“Identidade e
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“Há algo de grande– escreve Kant – e, na minha opinião com muito
fundamento na noção de Leibniz: a alma acompanha todo o universo com
o seu poder de representação, embora só uma pequena parte destas
representações seja clara”.11 A “apercepção cosmológica” de Kant – à qual
se refere num escrito inédito “Sobre o sentido interno” Vom inneren
Sinne12 – aproxima-se desta noção leibniziana da alma como vis
repraesentativa universi. Esta noção do eu como ser- no-mundo vai
abrindo caminho no pensamento de Kant, como se confirma neste texto do
Opus Posthumum: “Eu sou. – Além de mim existe um mundo (praeter me)
no espaço e no tempo e eu mesmo sou um ser no mundo: sou consciente
desta relação e das forças que movem em mim sensações ou percepções. –
Eu mesmo, enquanto ser humano sou para mim um objecto sensível
externo, uma parte do mundo”13. O mundo, “além de mim” exerce uma
atracção sobre o eu, forçando- o a sair de si, a direccionar-se para o
mundo, consciente desta relação-força que origina sensações e percepções
– representações diversas em que se desdobra o eu. Mas simultaneamente
“sou para mim um objecto sensível externo”, apreendo-me a mim como
algo no mundo. É curioso notar que noutros textos Kant negará esta
possibilidade do Eu alguma vez poder tornar-se “objecto” para si mesmo...
Voltando a Leibniz: se a ideia de “eu” e a sucessiva gradação da identidade
pessoal assinala uma nova pista para pensar a individualidade, não é por
transferir para o campo da filosofia da consciência o problema da unidade
e diversidade, na tentativa de justificar a identidade do eu na diversidade e
dispersão das suas próprias experiências. A ideia de Leibniz aponta
sobretudo para uma peculiar sutura do universal com o singular, da
contracção, – termo empregue por Nicolau de Cusa: “Individua sunt actu,
in quibus sunt contracte universa”.14 – contracção do Universo no ser
individual. Este momento de contracção reenvia a individualidade para a
ordem de um ens omnimodo determinatum. Com este plus de
determinações há que conciliar a abertura máxima, a indeterminação, a
infinita possibilidade de ser-outro, de ser não-idêntico a si mesmo no
tempo, na relação, na diferença..., em suma, o registo de toda a fragilidade
e vulnerabilidade – a
11 Akademie – Ausgabe, II, 199.
12 Publicado por Gerhard Seel numa edição franco-alemã no jornal suíço Revue
Théologique et de Philosophie, 119 (1987), pp. 422-472. Cfr trad. portuguesa in Análise,
n.16 (1992), pp.145-147.
13 Akademie – Ausgabe, XXI, 63, texto entre 1800-1803. 14 Docta Ignorantia, 2, 6.
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