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- Quando utilizo uma palavra – disse Humpty Dumpty, num tom desdenhoso -, ela
significa exactamente o que eu quero que ela signifique.
- - A questão está em saber – disse Alice se podes fazer com que as palavras tenham
significados diferentes.
- A questão está em saber quem deverá ser o mestre, é só isso
SHAKESPEARE
discordância ocorre no que diz respeito à caracterização desta estrutura inata: Quine
rejeita as teses irredutivelmente mentalistas de Chomsky, e este rejeita as restrições
pouco razoáveis do behaviorismo de Quine.1 O seu cepticismo semântico origina
uma guerra às noções de sentido e significado, bem patentes na célebre tese da
indeterminação da tradução.
As explicações «naturalistas» serão satisfatórias? Poderão dar conta da
complexidade do fenómeno linguístico? Os meus argumentos podem não ser
totalmente persuasivos, mas pelo menos levantam algumas questões: à luz da
competência inata e dos universais linguísticos, e no quadro de uma explicação
científica, behaviorista do comportamento, como explicar em que consiste e como se
processa a significação? Como explicar a linguagem enquanto forma de acção
humana, racional e intencional? Como explicar a enorme flexibilidade e plasticidade
das formas de expressão humanas?
Estas são algumas das interrogações que não encontram uma resposta cabal
nas propostas de uma abordagem estritamente científica do fenómeno linguístico.
O propósito deste texto é o de confrontar as versões naturalistas das teorias
do sentido e da significação com estas questões, e mostrar que a compreensão da
linguagem humana não se funda apenas numa explicação científica – neurobiológica,
neurofisiológica, ou meramente biológica – mas releva de uma teoria antropológica
do conhecimento e da acção humanas.
O grande interesse pela linguagem não é novo, data dos primórdios da nossa
cultura e pensamento ocidental. Lucrécio escrevia: Nomina si nescis, perit et cognitio
rerum (Se desconheceres os nomes, perecerá o conhecimento das coisas). E Platão
ensaiou no Crátilo a vantagem para a filosofia, de procurar elucidar os seus
problemas através da análise da linguagem. Mas, depois de uma exaustiva discussão
sobre a origem e a justeza dos nomes, Sócrates acaba por concluir que o problema
não é fácil de investigar nem é próprio de um homem cordato entregar-se com toda
a alma ao cuidado dos nomes. Como as palavras e os signos são tão mutáveis, tão
frágeis, tão sujeitos a modificações de sentido e de significado, parece que esta
instabilidade se contagia às próprias coisas; estas submergem-se num fluir contínuo
1 Cf Gibson, 1986: 180.
4
3 Chomsly, 1998
4 ibid.
8
5 Cfr Lakoff, G. e Johnson, M., 1999: 471. Na verdade, Chomsky herda apenas o carácter inato,
autónomo e isolado do corpo da mente cartesiana. O pensamento, segundo a concepção de
Xhomsky seria apenas uma questão de manipulação de símbolos. A crítica de Lakoff e Johnson
aponta justamente este carácter desincarnado da noção de pensamento e significado e a autonomia
da sintaxe: se assim fosse, esta estaria localizada no cérebro de modo independente, num módulo
que dispensaria qualquer input. Mas de facto, comentam estes autores, não há nenhuma parte do
cérebro, nem módulo ou subestrutura de neurónios que não necessitem de qualquer input neuronal:
isso seria fisicamente impossível.
6 Chomsky, ibidem
9
“A linguagem – escreve Quine – é uma arte social que todos adquirimos com
base exclusivamente na evidência do comportamento visível, público das
outras pessoas, sob circunstâncias publicamente recognoscíveis.” 9
7 Chomsky, 1999:393-401
8 Sobre esta questão cf Putnam, 1975: 85-106.
9 Quine, 1969:26-27
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intervêm diferentes níveis ou estratos que vão desde as crenças, desejos e intenções
do locutor, a interpretação e compreensão, as regras implícitas no emprego da
linguagem, a sua estrutura formal como meio para atingir os fins propostos pelo
sujeito linguístico. A complexidade do processo significativo resiste a qualquer teoria
simplificadora que ignore ou subestime a pluralidade e variedade dos factores nele
implicados. Como acção que é, a linguagem não se pode identificar com uma
espécie de super-estrutura construída por entidades abstractas; tão-pouco se pode
remeter exclusivamente para a particularidade e contingência de cada evento
linguístico nem muito menos para a intenção do sujeito. Como acção tipicamente
humana, é racional, intencional; mas é uma acção estratégica, o que significa que a
intenção de significar contém em si mesma a intenção de seguir as regras e as
convenções. Não há portanto uma oposição nem sequer uma tensão entre o
intencional e o convencional, mas uma imbricação peculiar que representa o aspecto
mais genuíno do funcionamento da linguagem.
Esta perspectiva assinala um nítido contraste com a tradição, pois a sintaxe e
a semântica sempre pretenderam dar uma visão da linguagem em abstracto, sem ter
em conta os contextos situacionais: a primeira pretende averiguar se uma série de
palavras constitui uma frase gramaticalmente correcta, a segunda, ocupa-se do
significado de uma proposição-tipo, abstraindo de qualquer emprego concreto e
particular. De facto, na prática linguística, não há lugar nem para uma abordagem do
significado de proposições em si mesmas consideradas, fora do contexto de uso,
nem se pode esquecer que os factores práticos e sociais se interpenetram com os
factores puramente semânticos, que determinam o significado das palavras e
proposições. A competência linguística releva de uma acção intencional, integrada
numa racionalidade prática e estratégica.
Os debates actuais em torno do modo de enquadrar a relação entre o
pensamento e a linguagem, no âmbito da psicologia e das ciências cognitivas
propõem modelos de explicação da intencionalidade num plano meramente
representativo, isto é, apresentam-se como formas de reduzir a intencionalidade a
uma relação naturalde representação: nomeadamente a discussão da “Hipótese da
Linguagem de Pensamento”, como exemplo de uma nova teoria representacionista
que se propõe explicar essa relação fundamental no processo de significação. A
16
12Cfr Preston, J. (ed.), 1997, contém ensaios de Davidson, Searle, Glock e Dennett, entre outros,
que discutem a hipótese da linguagem do pensamento. Embora nenhum destes autores subscreva a
teoria de Fodor, tão pouco exprimem uma atitude radicalmente contra as teorias
representacionistas. As objecções que apontam à linguagem do pensamento são de ter em conta
numa discussão ampla do problema e suas implicações.
17
13 Cfr “How to do Other Things with Words”, in Preston, J., 1997: 219-235.
14 Cfr Davidson, D. “Seeing through language”, in Preston, J., 1997: 15-27.
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15Cfr Merleau-Ponty, 1945: 220 “O signo artificial não se reduz ao signo natural, porque não há no
homem signo natural, e, ao aproximar a linguagem das expressões emocionais, não se compremete
o que ela tem de específico, se é verdade que a própria emoção como variação do nosso ser no
mundo é contingente em relação aos dispositivos mecânicos do nosso corpo (...) Só poderíamos
falar de «signos naturais» se, a «estados de consciência» dados a organização anatómica do nosso
corpo fizesse corresponder gestos definidos (...) O equipamento psicofisiológico deixa em aberto
quantidades de possibilidades e não há aqui, como não há no domínio dos instintos uma natureza
dada de uma vez por todas. O uso que o homem fará do seu corpo transcende este mesmo corpo
como ser simplesmente biológico.”
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Autopsicografia
F. Pessoa
O Poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente
Paul Celan
Se é a dor que busca os nomes, como explicá-los como uma mera resposta a
estímulos orgânicos ou biológicos? E que competência inata e universal teriam
Pessoa e Celan para escrever estes poemas?
Como se explica, além disso, que é precisamente quando a linguagem, por
vezes, sai fora dos eixos, que ela ganha expressões novas, e origina em nós novas
sensações, vivências diferentes. Um texto literário nem sempre cumpre à risca as
regras sintácticas e gramáticas, mas são esses desvios que abrem horizontes novos, e
dizem muito mais do que as formas correctas.
O estilo é feito de mil detalhes na construção das frases, no ritmo que se lhes
imprime, nas transgressões intencionais mas não procuradas. Não se aprende um
estilo, não se constrói com base em novas regras: o estilo é precisamente a contínua
invenção da linguagem. Segundo palavras de Vergílio Ferreira, “O estilo de um
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grande artista, ele próprio não o sabe. Como a sua voz. Ou os seus gestos. Ou a
mímica do seu rosto quando fala. Porque quando o souber tê-lo-ia já perdido.”
É ele, o poeta, o artista, que fala, escreve, e nunca acaba de dizer em palavras
tudo o que quer. A linguagem não é para ele um mero instrumento é muito mais. Vive
com ele, noite e dia, ou melhor é ele que vive na sua língua, que se apodera dela
completamente – seja ela qual for. A tal ponto que acontece o que terá dito Pessoa:
“Eu não escrevo em português. Escrevo eu mesmo.”
Todo este tema daria para um outro ensaio, que espero vir a escrever.
Isto não significa, de modo algum, que esteja a pôr em causa os contributos
científicos, que permitem um conhecimento cada vez mais detalhado das bases
neurológicas do processo linguístico. Eles são, sem dúvida alguma, importantes. Mas
não vejo como possam dar conta da criatividade, espontaneidade, flexibilidade e
liberdade com que os homens se exprimem. Pode ser que haja uma explicação
neurocientífica disponível que explique a criatividade literária, na sua imensa
variedade. Eu não a conheço. Mas se há, gostaria muito de a conhecer.
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