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ANÁLISE E INTUIÇÃO

NOTAS SOBRE OS MÉTODOS E ATITUDES NA FILOSOFIA DE


WITTGENSTEIN
Maria Luísa Couto Soares

Em filosofia, nenhuma explicação satisfaz completamente, nenhuma preenche o


desejo de resposta. Quando as razões se acabam, resta o silência, depara-se com os limites da
razão analítica, atarefada na sua acção de decomposição, de redução. Mas o silêncio não é
total, porque é então que tudo se revela ser como é. A filosofia é simultaneamente analítica e
intuitiva, discursiva e expressiva. O método - o método de Wittgenstein - consiste
precisamente numa luta esforçada e contínua para não se deixar aprisionar por nenhum
método: "O nosso próprio método é o da apresentação sinóptica (Übersicht). Tudo o que
parece ser uma explicação é, de facto já falseado e não poderia satisfazer-nos totalmente."
Propomo-nos, em primeiro lugar, explorar os limites e paradoxos do pensamento
analítico e a necessidade do recurso a um outro modo de proceder, seja ele intuitivo,
analógico ou até metafórico; em segundo lugar, averiguar a possibilidade de conciliar uma
atitude analítica, atenta ao detalhe, visando decompor a estrutura nos seus elementos mais
simples, com essa visão de conjunto, panorâmica, que poderá ser a melhor expressão do
filosofar.

1. O sonho de Sócrates

A razão discursiva confronta-se sistematicamente com os seus próprios limites: a


análise suspende-se e atinge o seu termo ao encontrar-se com a hipótese da natureza dos
fundamentos, sejam eles os elementos simples, as unidades básicas, os últimos elos da
cadeia de razões. Quando estas se acabam, o que resta? Reconhecer o contacto directo,
imediato, a apreensão intuitiva dessas unidades sobre as quais não é possível continuar
analisando, relacionando, discorrendo racionalmente. O simples impõe-se à racionalidade
como seu limite e fundação; limite, porque se toca o ininteligível, o irracional, algo do
qual nada se pode dizer; fundação, porque se se pudesse prosseguir analisando, dando
razões, o espectro do infinito regresso espreitaria e ameaçaria a própria consistência da
razão.
De facto, o "sonho" de alcançar os elementos simples e últimos de qualquer
complexo prevalece como uma ilusão da análise. Sócrates, no Teeteto fala de um sonho,
não um sonho directamente sonhado, mas de um sonho narrado, que tem por fundamento
um testemunho e assenta num "ouvir dizer". Porquê um sonho, não um mito? Pode
interpretar-se o sonho como um ideal desejável mas inalcançável, um ponto atractor que
regula todo o processo discursivo e analítico da razão; ou como a mera ilusão, a
abdicação da razão que se abandona indefesa na região onírica, fora do domínio racional.
Este ideal regulador ou ilusão transcendental é uma constante da história da razão
humana e tem diversas expressões: exemplos múltiplos e em registos diferentes desse
sonho são as mónadas de Leibniz, os objectos simples de Wittgenstein, os "indivíduos"
de Russell, os protocolos e os sense data (na decomposição estrutural do processo
cognitivo). O par simples/composto funciona como um atractor em diferentes domínios -
do lógico ao epistemológico e ontológico e "<conduz> facilmente a toda a espécie de
superstições filosóficas" 1.
A aporia que se levanta com estes elementos últimos, consiste em que eles não
podem ser rejeitados, para evitar os absurdos do infinito regresso no processo discursivo,
mas tão-pouco podem ser explicados em termos racionais. Estão aí como uma barreira
inamovível, exigida e mantida pela própria constituição da razão discursiva. O paradigma
do alfabeto - sugerido por Platão - exemplifica bem a situação: as palavras não se formam
combinanto os nomes das sílabas, nem estas combinando os nomes das letras; o
significado de uma palavra detém uma certa unidade, não constituída pelas partes
elementares de que é feita a palavra. Destes elementos apenas se pode dar o nome,
designar; e no entanto, a partir destes nomes nada se pode construir, sendo
imprescindíveis para a construção da palavra, não configuram o seu significado, este
emerge no todo do signo. Entre designar e descrever não há uma passagem directa, mas
uma discontinuidade: não estão no mesmo plano, dirá Wittgenstein. "Designar ainda não

1 Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 49.


é um lance no jogo da linguagem (…) Poder-se-ia dizer com a designação de uma coisa
ainda não se fez nada"2. Não há qualquer articulação, qualquer estrutura, como um ponto
geométrico ideal, fora de qualquer contexto espacial - os nomes são como esse pontos3 -
estão como que fora ou aquém de qualquer possível relação estrutural. Posso falar deles,
mas não exrpimi-los4.
Este modo unívoco de tratar dos «objectos simples», a réplica wittgensteiniana
dos elementos últimos e originários do Teeteto, é explorado até ao paradoxo nos
parágrafos das Investigações. A semântica do nome é misteriosa, está envolvida por uma
neblina que torna quase irreal essa relação entre o nome e o que ele refere. E, neste caso
como em tantos outros, são os mitos da linguagem que denunciam os falsos problemas, o
sem sentido das nossas perplexidades. "«Os nomes designam apenas aquilo que é
elemento da realidade. Aquilo que não pode ser destruído; o que permanece imutável»5.
Wittgenstein dá voz às nossas próprias ilusões, forjadas na atracção pela completude do
processo analítico até ao seu termo último e fundante, até à suposição do elemento
simples e originário. "Mas o que é isso? É o que ao pronunciarmos a frase já temos em
mente! Já pomos em palavras uma concepção completamente determinada. Uma imagem
determinada que queremos utilizar. Porque de facto a experiência não nos revela estes
elementos." 6
Não nos são dados nem na experiência, nem na percepção, nem em qualquer
outro modo de conhecimento ou acesso. O real é sempre complexo e a racionalidade
respira essa complexidade: o cognoscível é sempre o composto, o estrutural, o relacional,
tudo aquilo que é articulável ao nível do pensamento proposicional, o simples transgride
os limites de qualquer articulação, e portanto, de qualquer inteligibilidade possível. A

2 Ibidem, §49.

3 Cfr Tractatus, 3.144.

4 Cfr Tractatus, 3.221.

5 Investigações, §59.

6 Ibidem.
razão discorre, deduz, infere no domínio do complexo e a correspondente expressão
linguística reflecte precisamente esse carácter articulado, estrutural; só ao nível
proposicional é que a linguagem se torna compreensível, os nomes isolados nada dizem,
não exprimem qualquer sentido; as proposições fazem ver um novo sentido, os nomes
apenas tocam no objecto que referem7. Isto parece apontar para um princípio do
conhecimento e sua expressão de carácter intrinsecamente proposicional, a apreensão
directa e imediata do simples, da unidade última, parece ser teoricamente inviável8. Só os
podemos captar mediatamente enquanto elementos de uma estrutura, de um articulado. E,
no entanto, o sonho analítico persegue-os insistentemente, sem descanso, animado pela
ilusão ou miragem dessas unidades absolutamente originárias, na fronteira do indizível e
do inexpressável.

A estranheza destes objectos últimos, inconcebíveis, para além dos limites do


razoável, não é um convite directo ao silêncio? Os limites do meu mundo são os limites
da minha linguagem… E onde estão esses limites? O absolutamente simples não se situa
além da fronteira que contorna o pensável e a sua expressão linguística? Ou não se dará
uma reconversão total de modo que o único objecto simples é o próprio «eu», esse ponto
geométrico, inextenso… imaginário? Solipsismo… misticismo… Não foi a mesma
lógica, que postula os objectos simples, e exige as proposições elementares, que originou
o desenlace final do Tractatus, a redução ao silêncio total?
Silêncio perante tudo aquilo de que não se pode falar com clareza, o que não tem
sentido: as proposições éticas, estéticas, lógicas, grande parte das filosóficas rompem esse

7 Cfr Tractatus 4.026: "As denotações dos sinais simples (das palavras) têm que nos ser explicadas para que
as compreendamos. Com as proposições porém fazemo-nos compreender."

8 Os «objectos simples» do Tractatus são entidades puramente formais que constituem os factos e só
podem ser pensados no contexto de algum facto. E o que é um facto? Uma concatenação de objectos A
descrição circular é inevitável e não esclarece muito. No entanto, indica o carácter completo e independente
do facto, em contraste com a natureza dependente e incompleta dos objectos (Cfr Weinberg, J. R. "Are
there Ultimate Simples?" in Copi e Beard - Essays on Wittgenstein's Tractatus, pp.75-85). Note-se, porém
que Wittgenstein considera os objectos como a substância do mundo - "A substância é o que permanece
independente daquilo que é o caso" (Tractatus, 2024) - e é possível que nada seja o caso. A auto-
subsistência dos objectos em relação aos factos parece óbvia. Sendo assim não se podem considerar os
objectos como algo dependente e incompleto. Cfr Keyt, D. "Wittgenstein's Notion of an Object", Copi e
Beard - ob. cit., p. 292.
limite imposto pelo modelo refigurativo da linguagem. São pseudo-proposições, não
imagens mas simulacros que nada nos dizem sobre o mundo tal como é. Sem sentido são
também todos os signos que designam os elementos últimos constitutivos dos factos. Esta
relação de referência directa - nome/objecto - está tão envolta pela nebulosa mística como
todos os discursos que não se adequam ao modelo pictórico.
Para que este silêncio não seja definitivo e paralizador poderá recorrer-se aqui a
um outro modo de relação intencional, a de um acto intuitivo, uma apreensão imediata e
directa, sem estrutura nem complexidade. Mas poderá este modo de visão intelectual
constituir uma forma de conhecimento e encontrar a sua correspondente expressão
linguística?

2. Os privilégios da intuição: ver ou tocar?

O que está em causa é saber se a mera apreensão, o contacto directo da


consciência com o seu objecto - singular, universal? - constitui de facto uma forma de
saber, de conhecer, ou se, pelo contrário, se encontra apenas no limiar de qualquer
processo cognitivo, ou mesmo fora dele. A questão é recorrente em toda a filosofia do
conhecimento, e tem originado diferentes resoluções, pautadas por duas metáforas
originárias que exprimem dois modelos cognitivos: a metáfora da visão e a do tacto. Ver
conota simples apreensão, abertura à luz que irradia o próprio objecto que se dá, se
presentifica, mantendo-se sempre à distância. Tacter, «agarrar» conota uma certa
actividade «manipuladora» de tomar posse, de apoderar-se e dominar o que se dá a
conhecer. O primeiro é um sentido da distância, o segundo um sentido de contacto,
empregando a conhecida distinção aristotélica.
No horizonte de fundo destes dois paradigmas, perpassam todos os problemas que
levanta o par quase-categorial do singular/universal: há conhecimento do singular? Que
tipo de conhecimento? Experiencial, directo, acto apreensivo, ou mediatizado pelo
conceito e pelos actos predicativos? O singular é visto - vislumbrado - ou
«agarrado» (begriefen), possuído? Por um lado, ele parece escapar à conceptualização, é
sempre algo para lá de todos os predicados reais e possíveis. O conhecimento
universaliza. Mas o universal, por seu lado, é visto em si mesmo, numa "visão em sentido
universal", segundo a expressão de Husserl, ou sempre se reporta aos singulares que
subsume?
Não nos propomos aqui responder às difíceis aporias epistemológicas que têm a
sua origem neste par de noções fugidias, se bem que inevitáveis, nem formular uma teoria
do conhecimento que pretenda resolver de um modo definitivo essas questões. O que
importa é ver como as diferentes posições assumidas vão provocar diferentes atitudes em
relação ao modo e estilo de pensar em filosofia. Não apenas por uma questão de método,
mas porque impõem um certo estilo aos modos de proceder e de pensar: se se concede
um papel privilegiado à intuição no processo cognitivo, esta pode inspirar uma filosofia
do singular, assente numa dimensão experiencial apta para o apreender e assimilar; ou
uma teoria das ideias de raíz platonizante que atribui um papel preponderante à
capacidade de ver as essências, de um olhar que não se deixa aprisionar pelas
particularidade, mas que acede directamente ao que há de mais geral, ao universal que
recobre a experiência do particular. Se, no entanto, a intuição é relegada do âmbito do
conhecimento propriamente dita, por ser alvo das suspeitas racionalistas, o estilo que
domina o pensar será preponderantemente analítico, discursivo.
Para muitos, a palavra intuição não é muito prestigiada. "Um subterfúgio (shuffle)
desnecessário", dizia Wittgenstein. As objecções ao recurso à intuição, surgem provêm
geralmente do estilo e do modo analítico de pensar, e invocam vários argumentos que
salientam o carácter estrutural e complexo de todo o conhecimento justificado. Em
primeiro lugar, o carácter analítico de toda a explicação, é algo mais do que a mera
percepção de unidades ou sínteses à qual está ligada a intuição. Nesta está ausente
qualquer estrutura, apenas nos apercebemos de uma unidade, essa sim, estruturada; este
carácter simples do acto intuitivo não permite formular uma teoria da intuição, e a
variedade de sentidos com que a palavra é usada na linguagem corrente, é bem prova
disso; falar de intuição é falar dessa grande variedade de expressões metafóricas, um
tanto vagas, que se empregam para traduzir uma forma de conhecimento não conceptual
nem judicativo. O recurso à intuição, no contexto da análise conceptual, significaria
sempre uma cedência ao psicologismo: o acto intuitivo não é um objecto teorético que se
apresente à filosofia, mas uma certa forma de apreensão cujo estudo pertence à
psicologia9

Apesar de tudo, filosofias tão diversas como o nominalismo ou a fenomenologia,


são fundamentalmente filosofias da intuição.
Ockham - descrição da experiência originária, in-fundável, a experiência ante-
predicativa, antes de mais a intuição: esta é a apreensão imediata e evidente do singular
nas suas condições concretas de existência, ela dá a coisa como existente ou não
existente; a abstracção abstrai a coisa da existência ou não existência, a intuição é o lugar
da diferença entre existência e não existência, o que a torna de certo modo paradoxal. Se
a existência é o parâmetro, positivo ou negativo da intuição, implica a possibilidade de
uma intuição do não-existente. Esta intuição sem objecto explica-se pela própria
singularidade absoluta do acto de intuição, por um lado, e do objecto, por outro. O
objecto propriamente dito da apreensão, mesmo se numa frase, está do lado da coisa, para
além dos signos que o representam, e a apreensão originária, condição de toda a condição
na experiència, termina na própria coisa.
Entre os actos do intelecto, Ockham distingue o acto apreensivo e o judicativo;
este último diz rerspeito a algo complexo e pressupõe um acto apreensivo deste mesmo
complexo. Apreendemos não só os incomplexos, mas também as proposições,
demonstrações, os impossíveis, os necessário e em geral tudo o que se refere à
capacidade intelectiva. O acto judicativo, expresso na proposição, refere-se sempre ao
complexo, visto que damos o nosso assentimento apenas ao que consideramos
verdadeiro, mas pressupõe um conhecimento (notitia) incomplexa dos termos, porque

9 Cfr Rosen, S. - The Limmits of Analysis, p. 6. Stanley Rosen defende, ao longo do seu livro The Limmits
of Analysis, que a filosofia é, passo a passo, a um tempo intuitiva e analítica, discutindo o papel da intuição
em todo o pensamento analítico.
pressupõe um acto de apreensão, e este, quando se refere a um complexo, pressupõe o
conhecimento incomplexo dos termos10.
A intuição em Ockham tem um domínio vasto: as coisas sensíveis, nas sua
existência inegável, que nos são dadas em presença, no aqui e no agora, mas também na
sua essência singular tal como se dá imediatamente ao pensar; os actos internos, não
sensíveis, mas directa e imediatamente experienciados por cada um, na consciência de si
e da própria existência. A evidência destas apreensões intuitivas determina o seu papel na
experiência, como fonte de todo o conhecimento «experimental».
Note-se, porém que a intuição, condição e fonte de toda a experiência, não
implica ainda o assentimento, característica decisiva do conhecimento: "o acto de
conhecer ou de dar o seu assentimento - escreve Ockham - é propriamente um acto
complexo, porque tem por objecto o complexo"11, porque na verdade o conhecimento
"refere-se apenas às proposições, porque estas é que são conhecidas"12. Ockham exprime-
o claramente numa passagem do seu tratado da Física: "Não há conhecimento a não ser
dos complexos" 13.
Onde situa Ockham o acto originário do conhecimento? Na intuição ou no
assentimento? É possível que tenha havido algumas variantes no seu pensamento,
expressas em citações aparentemente contraditórias: em tudo o que se refere à intuição do
singular, esta é sempre evidente, mas separável do seu objecto, a imediatez dá-se entre o
acto de intuição e o juízo que este fundamenta. Esta distância entre o acto e o objecto, na
própria intuição, revela o desvio origiinário na raíz e núcleo de toda a experiência, e
determinará o "empirismo" ockhamiano: um empirismo um tanto paradoxal, que não
arranca de um contacto directo entre os actos da experiência e os objectos, mas que põe

10 Cfr Prologo ao Comentário das Sentenças, qu 1, art. 1, pp. 16, 17, 21. Cit. por Elie, H. Le Complexe
Significabile, p. 14.

11 Quodlibeta, III, q. 6. Cit. por Elie, H.

12 Sent., I, D. II, q. 4.Cit. por Elie, H.

13 Physic., Prolog. Mss Bruges 557, fol. 104. Citado por Elie, H. Le Complexe Significabile
como princípio absoluto de todo o conhecimento a intuição ou apreensão imediata da
essência do singular: um "empirismo da intuição intelectual"14 .
Este desvio originário entre o acto intuitivo e o seu objecto leva a pensar que a
intuição ainda não é propriamente conhecimento, está fora do domínio cognitivo, que
pressupõe a complexidade de um reconhecimento, traduzido na forma de assentimento.
Esta será a objecção crucial de Schlick à filosofia da evidência. Será este o motivo que
leva Ockham a distinguir entre o objecto imediato ou próximo do assentimento, que é a
proposição, o seu objecto distanciado, os termos enquanto significam as coisas, e por fim
o objecto mais afastado e último, a coisa incomplexa significada pelos termos. Na
reconstituição genética do conhecimento, Ockham afirma claramente que é a proposição
o primeiro objecto de conhecimento, relegando a questão da apreensão directa e imediata
do singular para o lugar de um constitutivo originário da experiência, mas reconhecendo
que conhecimento, só dos complexos15.
A relação mais próxima, identitária entre o sujeito e o objecto, é a intuição: o
objecto intuído não só se apresenta, mas funde-se com a consciência do objecto, num acto
simples e numa unidade inscindível: ao olhar para uma superfície encarnada, a cor faz
parte integrante do conteúdo da minha consciência; só por esta experiência da intuição
imediata, e não através de conceitos, é que sei o que é a cor. É pela intuição que sei o que
é o prazer, a dor, o frio ou o calor. Mas isto, segundo Schlick, não nos justifica a
considerar a intuição como conhecimento, ou mesmo como a fonte originária de todo o
processo cognitivo.
Schlick refere dois exemplos representativos da primazia da intuição: Bergson e
Husserl. O primeiro afirma: "Filosofar é colocar-se dentro do objecto pelo exercício da
intuição" 16. Para Husserl, "uma intuição propriamente filosófica (…) serve para abrir um
imenso campo de trabalho em conjunto com uma ciência que, sem qualquer simbolização

14 A expressão é de P. Alféri, Guillaume d'Ockham. Le Singulier, Paris, Ed. Minuit, 1989. Sobre a intuição
e suas aporias, cfr pp. 152-184.

15 Cfr Elie, H. - Le Complexe Significabile, Paris Vrin, 1937, pp. 14-15.

16 Einführung in die Metaphysik, Jena 1901, p. 26. Cit. por Schlick, General Theory of Knowledge, p. 82.
ou métodos matemáticos, sem um aparato de inferências e provas, obtém no entanto uma
abundância de conhecimento bem rigoroso e decisivo para toda a filosofia ulterior"17.
No entanto, a intuição é um processo essencialmente diferente do conhecimento:
uma coisa é a experiência intuitiva, directa e imediata, pela qual tomo consciência de um
conteúdo - esta mancha de cor - outra coisa é conhecer, saber o que é a essência da cor,
saber o que é o vermelho. Na intuição, observa Schlick, o objecto é simplesmente dado,
não compreendido. A intuição é mera experiência, um contacto com o o bjecto dado, mas
esta apreensão directa não envolve ainda conhecimento nem compreensão. Poderia ter
experiências - da dor, do prazer, da cor ou do som - sem saber o que são, sem as
compreender.
A objecção de Schlick às filosofias da intuição, assenta numa distinção
fundamental entre Kennen (correspondente a acquaintance) e Erkennen (re-
conhecimento): é a confusão entre estas duas noções bem distintas que está na raíz de
toda a filosofia da intuição. O conhecimento propriamente dito implica reconhecimento
(Erkennen), não basta «tocar» as coisas para as conhecer, é necessário pensar, o que
significa movimentar-se intelectualmente, relacionar, ordenar, comparar. "A ciência -
escreve Schlick - não nos «põe em contacto» (make us acquainted) com os objectos;
ensina-nos a compreender, a abarcar tudo o que já conhecemos (what we are acquainted),
e isso é que significa saber. Conhecimento (Acquaintance) e saber (knowledge) são
conceitos tão fundamentalmente diferentes que até o discurso corrente possui duas
palavras para os designar. E no entanto, a maioria dos filósofos confundem-nos
fatalmente, à excepção de dois únicos casos louváveis"18.
A apreensão directa que o «eu» tem de si mesmo na auto-consciência, é apenas
isso, uma forma de contactar, de experienciar, mas não constitui propriamente um
conhecimento, que implica mais do que um mero apreender ou captar. Schlick considera
o processo cognitivo estabelece uma relação entre vários objectos, uma conexão com
algo de complexo, e não se pode identificar de modo algum com a captação ou apreensão

17 Philosophie als strenge Wissenschaft, Logos I, 1910/11, p. 341. Cit. por Schlick, p. 82.

18 Schlick, ibidem, p. 83. As duas excepções a que se refere Schlick são Riehl e Russell.
(grasping) de um objecto simples e único. Este último consiste numa espécie de contacto
sem mais, não pressupõe necessariamente conhecimento, compreensão. Por isso para
Schlick o «Eu sou» exprime apenas um facto, não conhecimento. O «ego sum»
cartesiano, a existência dos conteúdos da consciência, não necessita de qualquer
fundamento. Não se trata de conhecimento, mas de um conjunto de factos que existem
apenas, não requerem nenhuma confirmação através da auto-evidência; não são certos
nem incertos, são simplesmente, dão-se como mera facticidade. Não faz qualquer sentido
procurar uma garantia da sua existência, da qual temos apenas experiência, mas não
conhecimento. Este exige, não apenas o ser consciente de si mesmo, mas o reconhecer-se
como si mesmo, não apenas a percepção ou experiência de si mesmo, mas o juízo que
envolve relacionação, identificação, incorporação dessa percepção em experiências
anteriores, e compreensão de uma estrutura complexa19. Schlick rejeita terminantemente
a perspectiva segundo a qual o conhecimento é uma espécie de representação intuitiva
que refigura ou retrata as coisas na consciência. Se o processo cognitivo fosse deste tipo
não poderia trazer os seus objectos à consciência sem os alterar, e falharia radicalmente o
seu desideratum, o de manter as coisas inalteráveis tal como são em si mesmas. Conhecer
consiste num acto que, efectivamente deixa as coisas intocáveis e inalteráveis: a diferença
entre a imagem ou representação e o signo ou designação radica precisamente no facto de
a primeira ser totalmente incapaz de refigurar um objecto tal como é, visto que se trata
sempre de uma imagem a partir de uma certa perspectiva ou posição, de uma
representação de um sujeito; o signo, pelo contráio, designa o objecto deixando-o tal
como é20.
Husserl é um dos pensadores visados pela crítica de Schlick às filosofias da
intuição. Com efeito, o "Princípio de todos os Princípios" do conhecimento é a
presentação intuitiva, na qual o objecto nos é dado. Husserl formula-o no § 24 das Ideen:
"que toda a intuição originária presentativa é um fonte legítima de conhecimento,
que tudo o que originariamente (por assim dizer, na sua actualidade «pessoal») nos é

19 Cfr ibidem, p. 87.

20 Cfr ibidem,p. 89.


dado na «intuição» deve ser aceite simplesmente como o que se apresenta como ser, mas
também só dentro dos limites nos quais se apresenta aí".
O termo «intuição» (Anschauung) é recorrente nos textos husserlianos, para
designar aquilo que nos é imediatamente dado na experiência. Em Husserl, o termo
significa essencialmente o «dado» (datum), a via de acesso mais originária e imediata.
Não se trata de uma fonte separada da verdade ou da certeza: a intuição é um termo
genérico que abarca tudo o que tem o privilégio da doação imediata. Entendida como a
expressão da mera auto-doação, a intuição em Husserl não confere nenhuma posição
privilegiada à percepção sensível ou à intuição empírica. Pode dizer-se, de certo modo
que as intuições, no sentido husserlianao, não precisam de ser «intuitivas» no sentido
corrente do termo. Husserl reconhece explicitamente modos de doação imediata que não
se encontram na esfera do sensorial: é o caso da intuição categórica. O princípio
regulador da fenomenologia é precisamente essa «visão no sentido universal»:
"A visão imediata, não a mera visão sensível experiencial, mas a visão no sentido
universal como uma consciência originariamente presentativa (originär gebende), seja do
que for, é a fonte última de todas as asserções racionais"21.
A fenomenologia é preponderantemente uma filosofia da visão - as metáforas
visuais multiplicam-se, para traduzir tanto o carácter imediato e directo de qulauqer
forma de intuição, como o carácter de doação, presentificação do objecto em si mesmo,
«em pessoa», isto é sem qualquer interferência ou mediação.

3. Modos de ver

21Ideenn I, § 19. Cfr Hintikka, J. - "The phenomenological dimension", in Barry Smith e David Woodruff
Smith, The Cambridge Companion to Husserl, Cambridge University Press, 1995, pp.84-88.
Filosofia da visão é também o pensamento de Wittgenstein: mas uma visão de
conjunto (Übersicht), uma visão sinóptica:
"A importância da descrição filosófica consiste no facto de nos permitir uma visão
de conjunto que nos previne contra a adopção de um outro sistema unicamente pela razão
que nós não vemos qual o «bom» (das richtige) sistema. Desejamos uma apresentação
sinóptica, isto é um sistema, não vemos o bom: somos levados pela linguagem ou por
quaisquer circunstâncias, a pressupor um sistema falso, e é a filosofia que nos liberta
(erlöst) propondo-nos a visão sinóptica correcta"22 .
E como é que se alcança esta visão sinóptica? Não basta uma explicação, que
deverá sempre encontrar um termo e parar, reenviando portanto a algo que não se deixa
explicar. Em última análise, no fim de qualquer explicação, encontramo-nos sempre com
alguma forma de convenção ou estipulação. A descrição - descrição da linguagem como
medium para esclarecer os problemas filosóficos - é como a descrição de um jogo,
clarifica as regras segundo as quais falamos, nos exprimimos, empregamos as palavras na
variedade dos seus usos e sentidos. Este descrever é mais um ir descrevendo que tem o
efeito de uma luz que se vai intensificando pouco a pouco, fazendo ver com uma nitidez
cada vez maior e mais precisa.
Em nenhum momento se poderá recorrer decisivamente a uma verificação, que
não permite estabelecer uma ligação entre a linguagem e o mundo: entre a linguagem e a
realidade não existe qualquer termo intermediário. De facto, escreverá Wittgenstein,
temos "o sentimento que com a linguagem não aderimos à realidade, porque o tempo
escapa-se-nos enquanto falamos (…)". Sentimos que "os fenómenos nos escapam e
desaparecem no passado sem que os possamos reter"23. Teremos que contentar-nos com
descrições particulares e aproximadas: "A descrição do meu campo visual, quer seja
através de palavras, quer seja com o auxílio de um desenho, ou de qualquer outro modo,
será sempre aproximada, bruta, imprecisa - cada uma à sua maneira. O melhor, mais uma

22 Dictées de Wittgenstein à Waismann et pour Schlick, p. 63.

23 Ibidem, p. 161.
vez, será não fazer nenhum enunciado geral, mas procurar no caso específico o que se
poderia chamar como uma «maior exactidão»"24 .
Dado este hiato entre linguagem e realidade, impossível de colmatar por um
processo de verificação, ou por uma descrição «isomórfica», «pictórica», a única
possibilidade é recordar o uso da linguagem 25. Não é possível fazer uma ideia exacta,
correcta, deste carácter vago da linguagem que escapa a uma visão meridiana e nítida.
Apenas logramos uma imagem nebulosa, de contronos esfumados. A linguagem "gira em
torno das palavras como o ar à volta das coisas. É a luz do crepúsculo que banha a maior
parte dos significados das palavras. Para pôr diante dos olhos este factor invisível e no
entanto presente em todo o lado, desejaríamos esgotar-nos para encontrar imagens e
metáforas (Gleichnisse)."26
O método da filosofia, o modo de pensar os seus problemas é surpreendente e um
tanto paradoxal: na impossibilidade de ver com nitidez, de obter uma imagem,
representação, intuição definida das coisas e dos conceitos, temos de contentar-nos com
uma pluralidade de imagens que se sobrepõem, se multiplicam numa aproximação
assintótica de uma imagem mais exacta. O mais adequado será adoptar uma visão em
constante movimento fazendo o esforço de ir focando para alcançar a boa perspectiva, o
bom ponto de mira.
"Que atitude deveremos adoptar perante esta vacuidade? Deveremos assinalar o
uso efectivo de uma palavra, por mais flutuante e irregular que seja? Isso dar-nos-ia
quando muito uma história do uso da palavra. Ou devermos erigir em paradigma um
certo modo de empregar a palavra? Deveremos dizer: só isto vale, tudo o resto é um
desvio? Seria pronunciar um juízo tirânico. Mas se não fazemos nada disso, então a tarefa
da filosofia parece volatizar-se de novo. É que ela deveria mesmo expulsar a obscuridade

24 Ibidem, p. 162.

25 Ibidem, p. 59.

26 Ibidem, p. 139.
for a do mundo, remetendo-se às regras. Mas se não existem regras em absoluto, que
deverá ela fazer?"27

"Não queremos dogmatizar mas deixar a linguagem ser tal como é e pô-la em
paralelo com uma imagem gramatical cujas propriedades dominamos completamente.
Construimos por assim dizer um caso ideal mas sem pretender que corresponde com o
que quer que seja. Construimo-lo apenas com o fim de obter um esquema sinóptico com
o qual comparar a linguagem, algo assim como um aspecto que não afirma ainda nada,
mas que também não é falso"28

"Tal como o jurista trata como «paradigma» certos casos litigiosos, como se se
tratasse de casos ideais, assim construimos nós também casos ideais, imagens
gramaticais, para encontrar aspectos em caso de diferendo filosófico, afim de resolver o
conflito. Queremos considerar a linguagem unicamente do ponto de vista do
procedimento que se conforma a uma lista de regras, sob tal aspecto." (p. 145)

"Neste sentido pode dizer-se que não temos sistema. O que significa que ninguém poderá
estar ou não de acordo connosco. De facto, limitamo-nos a indicar um método" (p. 145)

27 Ibidem, p. 140.

28 Ibidem, p. 140.

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