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1.0 - Introdução
Henri Bergson (1859-1941) é tido por alguns como o grande último metafísico ocidental
no sentido forte do termo. Se tal afirmação possa ser demasiadamente exagerada, ao
menos não podemos desconsiderar sua importância na história do pensamento ocidental
do século XX. Apropriando-se do conhecimento científico de seu tempo, o filósofo
francês defendeu uma filosofia de “superação da condição humana” e de “experiência
total” (GALLEGO, 2018, p. 7). Para tanto, fez-se valer da consciência, da intuição, da
memória e do impulso vital como conceitos centrais de seu pensamento.
Assim como nos lembra o professor Mário Porta, a filosofia pode parecer um “espaço
onde reina o capricho, podendo cada um dizer o que quiser” (PORTA, 2014, p. 27). No
entanto, basta dedicar-se ao seu estudo sistemático para entender que a filosofia não se
trata de apontar meramente “crenças” e “opiniões” sobre determinados temas, mas
sobretudo, de propor “problemas e soluções” (Idem, ibidem). Dito isto, nos cabe retomar
as questões das quais Bergson se colocava e localizá-lo na história da filosofia para
entendermos suas problematizações e considerações.
Nascido em Paris, em 1859, Bergson viveu a fremente passagem do final do século XIX
para o século XX, sendo contemporâneo das investidas da segunda fase da revolução
industrial, dos intensos e fortuitos debates filosóficos e das pesquisas científicas que
ganhavam força e volume naquele tempo, com destaque para as teorias positivistas,
evolucionistas e psicológicas.
Para além das perspectivas contemporâneas de pensamento, das quais o pensador francês
colocava-se em diálogo, sua filosofia responde em contraposição mais radical à toda uma
história pautada na Ideia platônica e na tese do ser de Parmênides[4]. Bergson propõe
inverter a leitura da filosofia remetendo-se, em certo sentido, ao pensamento heraclitiano,
trazendo o movimento e a fluidez como questão central a ser pensada em sua intensidade
e radicalidade: ao contrário do que o mundo das Ideias projeta (o real - o ser - como
imutável, incorruptível), o pensamento é movimento e é necessário que a filosofia volte-
se a pensar este movimento e seu poder criativo. É através desta chave de leitura filosófica
sobre o movimento que sua concepção de memória se encontra.
Para Bergson a duração é memória. Para entender esta concepção faz-se necessário
considerar a intuição da duração como elemento fundante e central. A intuição é tida
como a única via em que se pode chegar à compreensão das coisas e do mundo quando a
inteligência “não dá conta, ou seja, quando fracassa”. Por sua vez, a inteligência é a
faculdade que captura a matéria espacial, os fenômenos e suas essências. Trata-se de uma
“faculdade de produzir categorias rígidas”, portanto uma “faculdade
fabricadora” (VIEILLARD-BARON, 2007, p. 59). Para tanto, a inteligência se
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Ora, tais aplicabilidades dão-se por meio das ciências através das experiências e de seus
resultados acerca as coisas do mundo, aos corpos inorgânicos mais especificamente.
Consiste-se assim em tratar os corpos como “instrumentos”. O comentador Vieillard-
Baron, ao discorrer sobre este aspecto, nos aponta que “o papel da inteligência só é
verdadeiramente compreendido a partir do momento em que ela aparece claramente como
produto da vida”. Nele, o fluxo da vida dá-se por três caminhos: a inação, o instinto e a
inteligência, sendo o primeiro próprio da vida vegetal, o segundo da vida animal e o
terceiro da vida humana. Este último não é tido em Bergson como um conhecimento
desinteressando e meramente especulativo, mas caracteriza-se por sua “flexibilidade” em
relação ao instinto, produzindo, como dito acima, objetividade diante da matéria. (Idem,
ibidem, p. 65)
“Mas se, em vez de pretender analisar a duração (ou seja, no fundo, fazer sua
síntese com conceitos), nos instalarmos primeiro nela por um esforço de intuição,
teremos a sensação de uma certa tensão bem determinada, cuja própria
determinação aparece como uma escolha entre uma infinidade de durações
possíveis. A partir daí, percebem-se quantas durações se quiser, todas muito
diferentes umas das outras, embora cada uma delas, reduzida a conceitos, ou seja,
considerada exteriormente dos dois pontos de vista opostos, sempre se resume à
mesma indefinível combinação do múltiplo e do um.” (BERGSON, 2006, p. 35)
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“Pois nossa duração não é um instante que substitui um instante: haveria sempre,
então, apenas o presente, nada de prolongamento do passado no atual, nada de
evolução, nada de duração concreta. A duração é o progresso contínuo do passado
que rói o porvir e que incha ao avançar. Uma vez que o passado aumenta
incessantemente, também se conserva indefinidamente.” (BERGSON, 2015, p.
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imagens de registros, como muitos sugerem imaginá-la. Sobre tal questão Bergson infere
que:
Deleuze, ao discorrer sobre essa memória virtual, esclarece que sua categoria é
ontológica. Bergson dá um “salto na ontologia” ao propor um “passado geral” do qual
podemos chegar aos passados particulares. Ele diz: “Saltamos realmente no ser, no ser
em si, no ser em si do passado. Trata-se de sair da psicologia; trata-se de uma Memória
imemorial ou ontológica” (DELEUZE, 2012, p. 48). É desta “memória virtual”, deste
“passado geral” ontológico que se chega às memórias plurais. Segundo Bergson, este
“salto” à memória ontológica se realiza pois não seria possível retomá-lo por meio de
recomposições de presentes. O que significa dizer que não “partimos do presente para o
passado, não partimos da percepção à lembrança, mas do passado ao presente, da
lembrança à percepção”. (Idem, ibidem, p. 54)
Tais inferências apontam para uma questão cara à filosofia bergsoniana já apontada acima
mas que se faz necessário reforçar: “o passado é “contemporâneo” do presente que ele
foi”, ou seja, o passado não é uma temporalidade estanque ao seu próprio presente. Não
“designam momentos sucessivos, mas momentos que coexistem” e, este passado que
coexiste no presente não é um mero fragmento, um recorte, mas sim um passado total:
“é todo o nosso passado que coexiste com cada presente”. (idem, ibidem, p. 50)
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Fazendo-se valer das geometrias cônicas do século XVII, o filósofo francês representa a
memória total em um volumétrico cone invertido onde a base AB assume as memórias
mais gerais, ao passo que quando trazidas e contraídas pelo vértice S toca o plano P que
representa nosso presente, nossa dinâmica corpórea, material. Deste modo, não só o
passado AB coexiste em P, mas também seus pares A’B’, A’’B’’ em aproximação com o
vértice.
Sobre estas demandas, Bergson escreve: “De modo geral, de direito, o passado só retorna
à consciência na medida em que possa ajudar a compreender o presente e a prever o
porvir: é um batedor da ação” (BERGSON, 2006, p. 61). Neste sentido, a consciência
presente, em contato com os níveis de acesso ao passado pela memória, se movimenta
ora por um passado mais contraído, ora por um passado mais dilatado (lembremo-nos do
desenho do cone invertido), de modo a exercer seu potencial criador e sonhador do qual
um “autômato consciente” não seria capaz de realizar, uma vez que limita-se ao “nível
mais contraído do seu passado”. (GALLEGO, 2018, p. 99)
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Referências:
BERGSON, Henri. A evolução criadora. Tradução: Bento Prado Neto. São Paulo: Folha
de S. Paulo, 2015. (Coleção Folha: Grandes nomes do pensamento; v. 27)
DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Tradução: Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34,
2012.
[1] Félix Ravaisson (1813-1900) foi um filósofo e restaurador de obras artísticas francês.
Teve contato com o romantismo alemão, dentre outros, por meio das aulas e obras de
Schelling, em Munique, fazendo parte da seara de filósofos denominados “espiritualistas
franceses”. Criou sua própria doutrina conhecida como “positivismo espiritualista”.
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[4] Parmênides de Eléia, filósofo grego que viveu entre 530 a.C. a 460 a.C. foi discípulo
de Pitágoras e exerceu forte influência em Platão. Seu poema filosófico ‘Sobre a
Natureza’ trata, primeiramente, da verdade e, em uma segunda parte, sobre a opinião. Sua
tese vai contra o dualismo do ser e não ser e contra o mobilismo de Heráclito. Platão, por
sua vez, defendia a Ideia como expressão do real em contraposição à sua cópia: o mundo
perene, corruptível da matéria. Ambos, cada um a seu modo, tinham como pressuposto o
imobilismo como categoria fundante de seu pensamento.