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Instituto Packter
13/01/2023
RESUMO
INTRODUÇÃO
O presente artigo resgata visões, teorias, conceitos e perspectivas a partir da tradição filosófica,
baseando-se na Antropologia Filosófica a respeito do conceito de Homem. Busca identificar
esses diferentes conceitos e compreender quais as principais características e qual o
entendimento primordial a respeito do homem é o mais aceito na atualidade. Para tanto
questiona-se: “Até que ponto a Filosofia, a Ciência, a Religião puderam nos auxiliar na
compreensão de “quem” ou “que” é o Homem? Já conseguimos, enquanto humanidade,
compreender suficientemente ou ainda nos falta avanços, aprofundamentos e aprendizados
nesse terreno?”
Ao eleger a área da Antropologia Filosófica como norteadora desses estudos sem deter-se
apenas nela e buscando inclusive o pensamento de diferentes autores, deseja-se ir além, em
direção ao conceito de homem em suas feições poéticas, espirituais ou místicas.
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Quando Protágoras de Abdera, considerado um dos grandes filósofos sofistas da Grécia
Antiga apresenta seu célebre pensamento “O homem é a medida de todas as coisas”, marca seu
entendimento sobre a subjetividade e particularidade de cada indivíduo, evidenciando que “a
verdade não existe independentemente do homem que a conhece, ela não está fora do homem
esperando para ser descoberta, a verdade é construída pelo homem, a partir de medidas do
próprio homem” (da Silva, pg. 43)
Uma consulta ao Dicionário de Filosofia nos remete a uma evolução histórica destes
conceitos, com diferentes e importantes perspectivas. De forma geral e para fins destes estudos,
adota-se o entendimento genérico de que espírito e alma seriam sinônimos ou se equivalem
enquanto uma individualidade (desprovida de corpo) enquanto o termo consciência poderia ser
entendido como um atributo (maior do que a própria inteligência, por exemplo) desta alma ou
espírito. A partir dessas breves noções, três grandes entendimentos possíveis sobre o ‘homem’
se desenham como linhas principais: monismo, dualismo e hilemorfismo.
Na forma radical, o dualismo não admite que corpo e alma dependam um do outro no
agir; cada qual age segundo energias e leis próprias. O dualismo paralelista e
interacionista admite certa interdependência entre o corpo e a alma, não na substância,
mas nas operações. O monismo espiritualista defende a idéia: No fundo tudo é
espírito. Pelo contrário, o monismo materialista reduz todo o ser humano ao corpo,
às suas estruturas e a seus processos. A terceira teoria propugna pela existência no
homem de duas substâncias heterogêneas incompletas, que se complementam ao
nível da substância e, conseqüentemente, também ao nível do agir. É a concepção
‘hilemorfista’, primeiramente proposta por ARISTÓTELES, aprofundada por
TOMÁS DE AQUINO e aceita, em geral, pela Filosofia Escolástica (Rabuske, pg.
31).
Segundo este autor, o dualismo, “em todas as suas formas, é refutado pelas
investigações antropológicas do século 20.” (Rabuske, pg. 31). Para ele, o monismo
materialista é “um reducionismo, que peca contra o princípio da causalidade: os fenômenos
culturais não podem ter como sua causa uma substância material (Rabuske, pg. 32). Já com
relação ao hilemorfismo, Rabuske afirma não se tratar de uma teoria científica, mas sim
filosófica em que a relação do corpo e da alma é pensada entre matéria e forma.
Aqui revela-se uma outra característica do homem e dos estudos em torno dele. Os
avanços de pensamento ao longo da história da Filosofia e das ciências em geral, marcam
obviamente a ampliação do entendimento a respeito do tema, entretanto, o homem em si é
dinâmico na sua constituição e complexidade, evoluindo também com os tempos e de acordo
com as épocas. Esta condição sugere, de certa forma, que o homem também deva ser estudado
não só a partir de conceitos estáticos e absolutos, mas também em função do seu contexto, de
sua época, o que sugere que o homem é em grande medida um ser circunstanciado.
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humanismo popular com as representações realistas das fraquezas humanas
(Gouliane, pgs. 33 e 34).
No folclore encontra-se portanto a imagem pura do homem, sem retoques, com todas
as suas virtudes, potencial e grandezas bem como com todas as suas dores, misérias e tragédias,
um homem que também interessa ao presente estudo.
“Nas grandes obras da história e da arte começamos a ver, atrás da máscara do homem
convencional, os traços do homem real, individual. Para encontrá-lo precisamos
recorrer aos grandes historiadores ou aos grandes poetas – aos autores trágicos como
Eurípides ou Shakespeare, aos escritores cômicos como Cervantes, Molière ou
Laurence Sterne, ou aos nossos romancistas modernos, como Dickens ou Thackeray,
Balzac ou Flaubert, Gogol ou Dostoievski. A poesia não é uma simples imitação da
natureza; a história não é uma narrativa de fatos e acontecimentos mortos. A história,
como a poesia, é um órgão do nosso autoconhecimento, um instrumento
indispensável à construção de nosso universo humano” (Cassirer, pg. 323).
Gouliane destaca também a concepção de homem de Confúcio, que segundo este autor
ocupa lugar destacado no pensamento do oriente antigo devido seu conhecimento realista,
profundo e sustentado numa fé inabalável nas possibilidades de aperfeiçoamento moral, sendo
o aperfeiçoamento pessoal a condição de todo desenvolvimento e progresso moral: “qualquer
que seja [...] sua posição social: desde o homem [...] no ápice da sociedade ao indivíduo mais
humilde e obscuro, todos têm o mesmo dever a cumprir: corrigir-se e aperfeiçoar-se” (pg.35).
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Gouliane recorda que Heráclito teria sido o primeiro pensador grego a confessar que
“analisou a si mesmo”.1
Mondin resgata que o homem tem sido objeto de pesquisa e de estudo desde os
primórdios da filosofia grega. “A questão que importava a Sócrates precipuamente era:
‘Conhece-te a ti mesmo’. Todos os grandes filósofos da Antigüidade (Platão e Aristóteles), da
Idade Média (Santo Agostinho e São Tomás) e da época moderna (Descartes, Kant, Hegel,
Marx, Heidegger) estudaram-na com paixão. Contudo, nenhuma de suas mais brilhantes
soluções satisfaz-nos plenamente (pg. 5).
Lembra-nos ainda sobre a dificuldade de estudar o homem: “Os seres humanos não
servem para a observação e experiência. Não se encontram facilmente indivíduos idênticos,
cujos resultados possam ser comparados” (Carrel, pg. 67).
Mondin considera que o homem é um mistério para ele mesmo e por esse motivo se
propõe em sua investigação antropológica-filosófica a pesquisá-lo, com empenho mas, também
com humildade, sem a pretensão, segundo ele, de grandes resultados, visto que mesmo as
mentes mais geniais nem de perto “balbuciaram miseravelmente” o que é o ‘Homem’ (pg. 6).
Para o médico vencedor do Prêmio Nobel, essa dificuldade de conhecimento sobre nós
mesmos é de natureza particular:
Se definir o homem é tarefa difícil, Cassirer lembra que também a própria concepção
de ciência inexistia antes do tempo dos grandes pensadores gregos e após um período eclipsada,
foi necessário redescobri-la e restabelecê-la na época da Renascença para triunfar de maneira
mais completa e incontestável. “Não há outro poder, em nosso mundo moderno, que se possa
comparar com o do pensamento científico. Considera-se como o pináculo e a consumação de
tôdas as nossas atividades humanas, o último capítulo da história da humanidade e o tema mais
importante de uma filosofia do homem” (Cassirer, pg. 325).
Como veremos a seguir e conforme diversos estudos indicam, esse mesmo pensamento
científico trouxe ao homem e especialmente ao homem ocidental, alguns problemas. Carrel,
por exemplo, se referindo aos métodos, prioridades e critérios de pesquisa a respeito do homem
ou de certas partes dele (em detrimento de outras), de forma crítica defende que a “relevância
de um fenômeno não depende da facilidade com que nossas técnicas podem ser aplicadas a seu
estudo. Ele deve ser julgado não em função do observador e de seus métodos, e sim do objeto,
do ser humano” (pg. 57).
“A dor da mãe que perdeu o filho, a angústia da alma mística mergulhada na noite
escura, o sofrimento do enfermo consumido por um câncer são de uma realidade
evidente, ainda que não sejam mensuráveis. Não temos o direito de negligenciar o
estudo dos fenômenos de clarividência mais do que o da cronaxia dos nervos, sob
pretexto de que a clarividência não se reproduz conforme a vontade e não pode ser
medida, ao passo que a cronaxia é mensurável de modo exato por um método
simples.” Devemos utilizar, nesse inventário, todos os meios possíveis e
contentarmos-nos em observar o que não podemos medir.” (pg. 57)
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também prêmio Nobel de Medicina, criador da metapsíquica - Charles Richet; de “sexto
sentido” (pg.126).
“... a filosofia das formas simbólicas parte do pressuposto de que, se existe alguma
definição da natureza ou “essência” do homem, só pode ser compreendida como
funcional, não como substancial. Não podemos definir o homem por nenhum
princípio inerente que constitui sua essência metafísica – nem passíveis de serem
verificados pela observação empírica. A característica do homem, a marca que o
distingue, não é sua natureza metafísica ou física – mas seu trabalho. É êste trabalho,
o sistema das atividades humanas, que define e determina o círculo de “humanidade”.
A linguagem, o mito, a religião, a arte, a ciência, a história são os constituintes, os
vários setores dêsse círculo. Uma “filosofia do homem” seria, portanto, uma
filosofia que nos desse a visão da estrutura fundamental de cada uma dessas
atividades humanas, e que, ao mesmo tempo, nos permitisse compreendê-las
como um todo orgânico (grifo nosso)” (Cassirer, pgs.115 e 116).
3. A ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA
Conforme pesquisas realizadas, entende-se que uma análise e possível conversação em
torno do tema ‘o quê ou quem é o homem’ numa perspectiva filosófica requer, inevitavelmente,
a consideração, o estudo e portanto, uma compreensão, ainda que genérica ou panorâmica da
chamada Antropologia Filosófica.
Em torno do pensamento filosófico, Cassirer considera que momento decisivo ocorre
na cultura e pensamento gregos quando:
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de Platão, a natureza humana é como um texto difícil, cujo significado precisa ser
decifrado pela filosofia; mas escrito, em nossa experiência pessoal, em letras tão
miúdas que se torna ilegível. O primeiro trabalho da filosofia será ampliar essas letras
(Cassirer, pg. 109).
Entende-se assim que a Filosofia na busca por compreender o ‘Homem’ deve buscar
antes entender o seu contexto, aonde este homem se insere, sua generalidade ou universalidade
e, a partir disso, passar então ao trabalho de análise das particularidades que vão caracterizar,
entre outras coisas, sua individualidade e sua singularidade. Dos estudos realizados, pode-se
entender que a Filosofia, representada de forma retrospectiva e atual nos seus diferentes
pensadores, nas suas diferentes escolas e linhas de pensamento, apesar de ter tratado também
do tema (O Homem), vêm ao longo de sua história em torno da pesquisa do ‘homem’ se
desenvolvendo e atingindo no final do século XIX e início do século XX um ponto de
maturidade suficiente para permitir organizar seus conteúdos, suas teses e principais
pensamentos em torno da noção de homem, estágio de desenvolvimento que permite o
surgimento da Antropologia Filosófica enquanto movimento e disciplina da Filosofia, a qual
surge, inclusive, derivada de diversas outras disciplinas tais como a Ética, por exemplo.
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dificuldades de uma Filosofia Antropológica, nesse sentido é a questão do método o seu grande
desafio: qual ou quais métodos seriam adequados ou mais apropriados para conduzir essas
investigações, análises e reflexões, quando o objeto de estudo é o ‘homem’?
Para Cassirer, Max Scheler foi um dos primeiros a perceber as dificuldades e pontos de
vista já na abordagem deste tema, tomando consciência do perigo de um evidente antagonismo
de ideias no terreno da Antropologia Filosófica ou daquilo que a precede: a discussão sobre o
homem, vindo a chamar atenção para ele, percebendo que não se tratava apenas de grave
problema teórico, mas de uma ameaça iminente a toda extensão de nossa vida ética e cultural.
Rabuske, no que diz respeito ao homem, comenta assim a obra ‘¿Qué Es El Hombre?’
(obra não traduzida no Brasil) do filósofo austríaco, jesuíta e padre católico Emerich Coreth:
O homem pergunta pela sua própria essência. Isto somente é possível, porque ele já
sabe algo de si mesmo. Não é um saber que suprime a pergunta, mas que a possibilita.
O homem não se compreende perfeitamente, ele permanece para si mesmo um ser
enigmático e misterioso. Sabe por si como um ser que espiritualmente se possui e
compreende. Mas está imerso na obscuridade do ser e devir material, que lhe impede
uma autocompreensão plena. Esta dualidade determina a essência do homem. Dela
surge a possibilidade e a necessidade do seu perguntar (Rabuske, pg. 16).
Segundo Rabuske, Coreth entende que em se tratando das ciências particulares, elas
não oferecem um ponto de partida filosoficamente legítimo para a Antropologia Filosófica:
“As ciências particulares só tratam de aspectos parciais do homem. A Antropologia Filosófica
tem a tarefa de apreender a totalidade do homem” (Rabuske, pg. 17).
Rabuske também analisa a obra considerada inicial da Antropologia Filosófica. Para
ele, um dos méritos da obra de Scheler é “procurar integrar numa síntese filosófica os resultados
de pesquisas de Biologia, Psicologia, Ciências do Comportamento etc”(Rabuske, pg. 28).
2 SCHELER, Max. A Posição do Homem no Cosmos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
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alternativamente se aplicam a reduzir a natureza humana a suas origens animais ou à
superioridade intelectual; à sua dinâmica afetiva ou às manifestações axiológicas; a
seus estados de espírito puramente subjetivos ou à sua substância apenas social,
enfim, reduzir o homem àquilo que êle é ou àquilo que êle vale (Gouliane, pg.22).
“Em razão mesmo de seu caráter de ciência (ou disciplina filosófica) sintética, a
antropologia filosófica é aplicada a valorizar tudo o que a precedeu em filosofia, ciência ou
literatura” (Gouliane, pg.33).
“Duas vias se apresentam diante de nós: podemos ou estudar o homem enquanto objeto
da ciência, ou tentar descobrir o homem enquanto liberdade”3.
Gouliane nos lembra ainda de que a discussão em torno do ‘homem’ também deve
considerar a sua atualidade:
“Em nossa época, filósofos, cientistas e escritores começam a compreender que não
basta simplesmente analisar os problemas propostos pelo humanismo: necessidade e
liberdade; significado da vida; caráter; personalidade; técnica etc., mas que é preciso
considerar novos aspectos da “filosofia do homem”. Êste revigoramento do interêsse
pelo conhecimento do homem é suscitado pelo fato de que ‘o homem jamais se
apresentou tão problemático a seus próprios olhos como atualmente’” (Gouliane,
pg.14).
‘O quê mais além de corpo e alma pode ser o homem? Perceber-se como uma espécie
de amálgama de diferentes dimensões e perspectivas ajudaria o homem a conhecer a si mesmo
e ser melhor compreendido ou isso apenas o confunde e reforça ideias fragmentadas a respeito
deste tema?
“O homem é um ser que, por definição, não pode ser definido. É indefinível,
indizível, inefável; é um mistério. Se o homem, como disse PASCAL, “transcende
infinitamente o homem”, então ele não cabe numa definição, que indica os limites.
Mas, isto não justifica a preguiça mental. E a razão não é totalmente impotente, pois
saber-se inefável já é, de algum modo, conhecer a própria essência (Rabuske, pg.
115).
3 JASPERS, Karl. A fé filosófica, Plon, Paris, 1953, p.75 apud Gouliane, pg.30
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Rabuske considera que o Ser Humano tem dimensões, que seriam ‘direções de
extensão’, que pertentem à essência do respectivo ser. Nesse sentido, o autor aborda algumas
dimensões como fundamentais, sendo elas: A linguagem, a comunidade, a historicidade e a
Ética.
Segundo Rabuske, o “homem é um ser, cuja natureza essencial implica dois elementos:
o espírito e o corpo” (pg. 82).
O autor busca superar o diálogo com uma Ciência Particular na qual por exemplo a
Biologia vai evidenciar o homem como um ser animal ou mesmo com a antropologia cultural
que vai nos permitir compreender que este homem é o sujeito da cultura assim como o homem
considerado enquanto indivíduo é também “objeto” da cultura e que neste sentido, todos os
homens tiveram e têm uma cultura (Rabuske, pg. 49). “Afirmamos que o fundamento da cultura
é a ‘natureza humana’, que tem um pólo espiritual e um pólo biológico” (pg. 67).
Nesta busca de Rabuske e a partir das considerações acima sobre o homem (da biologia
e cultura) o autor então passa a elucidar os traços fundamentais da natureza humana, buscando
evidenciar como diferença específica, a espiritualidade. De acordo com o autor, “segundo uma
longa tradição, o espírito humano se manifesta através de dois tipos de atos: intelectivos e
volitivos” e que a Antropologia Filosófica não pode desenvolver toda a temática do
conhecimento, devendo concentrar-se em algumas teses centrais (Rabuske, pg. 68).
O autor divide seus estudos sobre o homem em três partes: A consciência; a razão
humana e a liberdade humana. Sobre a consciência, discorreu-se minimamente neste estudo
para os objetivos desta investigação. Já com relação à razão humana, Rabuske vai abordá-la
numa perspectiva que evidencia tanto o seu poder quanto a sua fraqueza.
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“Liberdade é a capacidade de decidir-se a si mesmo para um determinado agir ou sua
omissão, respectivamente para este ou aquele agir” (Rabuske, pg. 89).
O autor considera então que assim como a razão humana tem seus limites, a liberdade,
da mesma forma, também os tem.
“Dum lado, a liberdade é absoluta: perante tudo, também perante Deus, posso dizer
“sim” ou “não”. Doutro lado, a liberade é limitada. Já antes de tomar a primeira
decisão, o indivíduo tem uma história: da sua infância, da sua família, do seu povo.
E a vida inteira permanece envolvido e penetrado por múltiplos condicionamentos,
que são tanto um apoio como um estorvo. A tarefa essencial da vida humana é realizar
a liberdade mediante conteúdos válidos e libertar-se do que é negativo e opressor”
(Rabuske, pg.117).
Inúmeros outros aspectos deste ‘Homem’ investigado poderiam ser aqui tratados, da
“física à metafísica”, tais como o conhecer sensitivo e intelectivo, a vontade, as paixões e o
amor, o aspecto social e político, o homem lúdico passando por questões da espiritualidade, da
capacidade de autotranscendência até as discussões sobre a imortalidade do homem e o
fenômeno da morte, todos temas abordados pelo italiano Battista Mondin em sua obra: ‘O
homem, quem é ele?’
Carrel, partindo da tese de Plotino de que “O homem deveria ser a medida de todas as
coisas”, pondera que [o mesmo] é um estranho no mundo que criou” (pg.49). Para o autor, “a
ciência desenvolveu-se na direção em que a curiosidade do homem a impelia, isto é, para o
mundo exterior” mas que, em se referindo às gerações anteriores: “Por muito tempo, nossos
pais não tiveram nem a oportunidade, nem a necessidade de estudar a si mesmos” (pg.33).
“O meio construído por nossa inteligência e invenções não é adequado nem à nossa
estatura nem à nossa forma. Ele não é feito para nós. Nele somos infelizes, decaímos
moral e mentalmente. Os grupos e nações onde a civilização industrial atingiu o ápice
são precisamente os que mais enfraquecem [...] O inquietamento e as infelicidades
dos habitantes da nova cidade resultam não apenas de suas instituições políticas,
econômicas e sociais, mas principalmente de sua própria degradação. Eles são as
vítimas do atraso das ciências da vida em relação às da matéria.[...] Somente um
conhecimento mais profundo de nós mesmos pode trazer uma cura para esse mal”
(Carrel, pg.49).
Também para Rabuske a nossa cultura está em crise e a atravessa num período
especialmente difícil que pede uma mudança de mentalidade. Ele cita como sintomas desta
crise a insatisfação psicológica, a criminalidade, o consumo de álcool e drogras, as tensões
sociais e políticas, o desnível econômico e a iminência de uma guerra atômica (pg. 83).
“Uma das raízes da crise, ou, pelo menos, um dos seus aspectos, reside na desconfiança
na razão. Critica-se a razão, a consciência, as suas pretensões e também o mundo ‘feito’ a
partir da consciência” (Rabuske, pg. 83).
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A fim de contribuir na análise da origem dessa crise, Rabuske relembra outro
Antropólogo da Filosofia, Mondin, que procura esclarecer sobre a constituição do homem e de
seu conhecimento numa perspectiva contemporânea. Mondin estabelece que o conhecimento
intelectivo tem as seguintes propriedades: Universalidade, intencionalidade, mundanidade,
perspectividade, personalisticidade e historicidade (p. 78-89).
Em 1935, Alexis Carrel pensava que: “A atenção da humanidade deve deslocar-se das
máquinas e do mundo físico para o corpo e a mente do homem, para os processos fisiológicos
e espirituais, sem os quais as máquinas e o universo de Newton e de Einstein não existiriam”
(pg.19). Não é difícil imaginar quantos avanços tecnológicos de lá para cá acentuaram a
necessidade dessa atenção, obviamente, sem o erro clássico extremista do monismo ou do
dualismo. Mesmo 87 anos após seus textos, parece corresponder e permanecer ainda em vigor
a visão que Carrel tinha do homem de sua época, com a visão de homem pós-moderno, com
todos seus avanços tecnológicos mas também com seus dramas, dilemas e dores existenciais:
“As pessoas, sobretudo as das classes inferiores, estão materialmente mais satisfeitas
do que nunca. Muitas, todavia, deixam pouco a pouco de apreciar as distrações e os
prazeres banais da vida moderna. Às vezes, sua saúde impede que continuem
indefinidamente com os excessos alimentares, alcóolicos e sexuais trazidos pela
extinção de toda disciplina. Além disso, essas pessoas são assombradas pelo medo de
perder seus empregos, economias, fortuna e meios de subsistência. Elas não são
capazes de satisfazer a necessidade de segurança existente em cada um de nós, e,
apesar das assistências sociais, continuam inquietas. Com frequência, aqueles que são
capazes de refletir tornam-se infelizes” (pgs. 42 e 43).
Segundo Paula Sibilia, autora da obra ‘O Homem Pós-orgânico’ (2002), uma das
“características que melhor definem o homem é, precisamente, a sua indefinição: a proverbial
plasticidade do ser humano”.
“Não surpreende que tenha sido um renascentisa, Giovanni Pico della Mirandola,
quem teve a sorte de expressá-lo da melhor maneira: nas frases ardentes da sua
Oratio de Hominis Dignitate, cujos originais foram afixados com grande escândalo
nas portas da cidade de Roma. Corria o ano de 1486 e o jovem conde tinha
descoberto algo tão importante que não podia ser calado: o homem se revelava,
subitamente, como uma criatura miraculosa, pois a sua natureza continha todos os
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elementos capazes de torná-lo seu próprio arquiteto. Há mais de cinco séculos, tal
sentença foi considerada uma gravíssima heresia, contudo, seu discurso não foi
esquecido. Pelo contrário, ele contribuiu para a inauguração de uma era que hoje
talvez esteja chegando ao fim: a do Homem” (Sibilia, pg. 9).
Para Harari, autor do best-seller ‘21 lições para o século XXI’, nós humanos
conquistamos o mundo graças a nossa capacidade de criar narrativas ficcionais e acreditar
nelas. “Somos, portanto, particularmente ruins em perceber a diferença entre ficção e
realidade (grifo nosso). Ignorar essa diferença tem sido para nós uma questão de
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sobrevivência. Porque a coisa mais real no mundo é o sofrimento. Nesse sentido, o que importa
não seria encontrar então a resposta para o “sentido da vida”, mas a grande questão passa a ser
então “como acabar com o sofrimento?” (pgs. 374 e 375). Harari responde aconselhando: “...se
você quer saber a verdade sobre o universo, sobre o significado da vida e sobre sua própria
identidade, o melhor modo de começar é observando o sofrimento e explorando o que ele é”.
O historiador nos lembra que “a resposta não é uma história”, sendo portanto que a resposta
deve partir da realidade, sem ficções ou ilusões (pg.377).
Obviamente essa “negação da realidade biológica nua e crua” como Morris apresenta,
a ponto de nos comparar e nos aproximar dos símios na nossa natureza mais essencial, é apenas
uma faceta da percepção fragmentada que temos a nosso próprio respeito, podendo ser
atribuído a mais uma “ilusão” ou versão de história que contamos a nós mesmos, aquela na
qual ignoramos essa natureza. Considerar a natureza humana exclusivamente nesta perspectiva
corporal ou biológica, assim como considerá-la exclusivamente em qualquer outra, os estudos
e estudiosos estão a nos indicar, desde a ideia do monismo ou do dualismo, que é um erro
(típico de uma visão racionalista extrema). Ao contrário, encontrar formas de incluir e
considerar esta e todas as outras perspectivas numa síntese, sem promover fragmentações,
aceitando tudo o que implicar ser ‘homem’, isto é, nem só corpo, nem só espírito, mas um
encontro e conjunção de ‘espírito’ e de ‘corpo’, sem ilusões a nosso respeito, pode facilitar essa
compreensão.
Segundo Harari, o “gênero humano está enfrentando revoluções sem precedentes, todas
as nossas antigas narrativas estão ruindo e nenhuma narrativa nova surgiu até agora para
substituí-las” (pg. 319).
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Harari anuncia tendências que poderão ou não se confirmar, entretanto, não deixa de
levantar uma questão que parece novamente se impor dada não só à urgência, mas à sua
importância no passado, presente e futuro, ou seja, a necessidade ou relevância para a
humanidade e o homem em particular, em buscar se conhecer como forma de poder lidar com
os desafios existenciais em qualquer tempo.
Harari por sua vez expressa opinião (ainda que controversa) e de certa forma
convergente à May, exceto por um ponto: opinião segundo a qual, na época atual e segundo a
amplitude e profundidade dos avanços e transformações que se anunciam para breve, a questão
da época se tornará sim determinante para o homem, diferentemente do que pensava May, ao
sugerir que:
“Observar a si mesmo nunca foi fácil, mas pode ter se tornado mais difícil com o
passar do tempo. À medida que transcorria a história, os humanos criaram narrativas
cada vez mais complexas sobre si mesmos, o que tornou cada vez mais difícil saber
quem realmente nós somos. Essas narrativas visavam a unir grande número de
pessoas, acumular poder e preservar a harmonia social. Foram vitais para alimentar
bilhões de pessoas famintas e assegurar que essas pessoas não degolassem umas às
outras. Quando pessoas tentavam observar a si mesmas, o que comumente
descobriam eram essas narrativas pré-fabricadas. Uma exploração em aberto era
perigosa demais. Ameaçaria solapar a ordem social. [...] Por mais alguns anos ou
décadas, ainda teremos escolha. Se fizermos esse esforço, ainda podemos investigar
quem somos realmente. Mas, se quisermos aproveitar essa oportunidade, é melhor
fazer isso agora” (pg. 388 e 389).
May encerra sua obra “O Homem à procura de si mesmo” com uma sugestão prática:
“a meta do homem é viver cada momento com liberdade, sinceridade e responsabilidade”
(pg.252). E de forma eloqüente nos lembra que:
“A liberdade, a responsabilidade, a coragem, o amor e a integridade interior são as
qualidades ideais, nunca perfeitamente realizadas por ninguém, mas constituindo as
metas psicológicas que dão significado ao nosso movimento para a integração.
Quando Sócrates descrevia a vida e a sociedade ideais, Glauco replicou: “Sócrates,
não creio que exista a Cidade de Deus em parte alguma da terra”. Ao que Sócrates
respondeu: “Se tal cidade existe no céu ou existirá um dia na terra, o sábio viverá à
sua maneira e não quererá saber de qualquer outra e assim colocará em ordem a sua
casa” (May, pg. 253).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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“antropologia filosófica” como forma de subsidiar os estudos e pesquisas sobre o objeto de
estudo (O Homem) na perspectiva filosófica.
REFERÊNCIAS
CASSIRER, Ernst. Antropologia Filosófica: Ensaio sôbre o homem: Introdução a uma filosofia
da cultura humana. Tradução do Dr. Vicente Felix de Queiroz. – São Paulo: Editôra Mestre
Jou, 1972.
FROM, Erich. Análise do homem. Tradução de Octavio Alves Velho. – São Paulo: Circulo do
Livro. [sem ano]
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____. Ter ou Ser? Tradução de Nathanael C. Caixeiro. – Rio de Janeiro-RJ: Guanabara
Koogan, 1987.
HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século 21. Tradução de Paulo Geiger. – São Paulo:
Companhia das Letras, 2018.
HILL, Christopher S. Consciência. Tradução de Alzira Allegro. – São Paulo: Editora Unesp,
2011.
MONDIN, B. O homem, quem é ele?: Elementos de Antropologia Filosófica. 12ª Ed. Tradução
de R. Leal Ferreira e M. A. S. Ferrari. – São Paulo: Paulus, 2005.
MORRIS, Desmond. O Macaco Nu: Um estudo do animal humano. 12ª ed. Tradução de
Hermano Neves. – Rio de Janeiro: Record, 1993.
SILVA, Ronaldo Miguel da (organizador). Raízes gregas da Filosofia Clínica. Caxias do Sul,
RS: EDUCS, 2016.
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