Você está na página 1de 19

O HOMEM E SUAS PERSPECTIVAS FILOSÓFICAS

Autor: Jeferson Ricardo Spode Flores

Instituto Packter

Orientadora: Maria Idalina Krause de Campos - Doutora em Educação PPGEDU/UFRGS

13/01/2023

RESUMO

Este texto defende a importância de se pesquisar sobre o conceito de homem contemplando


múltiplas facetas que servem como matéria de análise no campo da filosofia. O artigo se propõe
a mostrar uma análise crítica a respeito das diferentes concepções de homem numa perspectiva
temporal e filosófica. Utiliza como disciplina norteadora a Antropologia Filosófica devido à
sua especialização e alcance dentro da área da Filosofia nos últimos tempos, sendo esta
considerada uma das mais aptas na atualidade, para enfrentar o problema conceitual do homem
em sua multiplicidade, fator que auxilia no aprofundamento e compreensão da própria
humanidade. Analisa e constata uma complexidade do ser em seus múltiplos aspectos, o que
tornam a compreensão deste tema e eventuais definições mais desafiadoras porém necessárias,
especialmente como alternativa de enfrentamento aos desafios dos tempos atuais do homem
pós-moderno e pós-humano, destacando, dentre os vários aspectos, o surgimento do
entedimento da “historicidade” como importante descoberta como elemento constituinte deste
homem na atualidade. Por fim, este estudo tece considerações finais sobre o próprio auto-
conhecimento, como caminho individual alternativo e prioritário no enfrentamento e
encaminhamento das questões a respeito da pergunta primordial: “Que é o homem?”

Palavras-Chave: Homem; Filosofia; Antropologia Filosófica; Humanidade.

INTRODUÇÃO
O presente artigo resgata visões, teorias, conceitos e perspectivas a partir da tradição filosófica,
baseando-se na Antropologia Filosófica a respeito do conceito de Homem. Busca identificar
esses diferentes conceitos e compreender quais as principais características e qual o
entendimento primordial a respeito do homem é o mais aceito na atualidade. Para tanto
questiona-se: “Até que ponto a Filosofia, a Ciência, a Religião puderam nos auxiliar na
compreensão de “quem” ou “que” é o Homem? Já conseguimos, enquanto humanidade,
compreender suficientemente ou ainda nos falta avanços, aprofundamentos e aprendizados
nesse terreno?”
Ao eleger a área da Antropologia Filosófica como norteadora desses estudos sem deter-se
apenas nela e buscando inclusive o pensamento de diferentes autores, deseja-se ir além, em
direção ao conceito de homem em suas feições poéticas, espirituais ou místicas.

1. O HOMEM - NOÇÕES FILOSÓFICAS PRELIMINARES

1
Quando Protágoras de Abdera, considerado um dos grandes filósofos sofistas da Grécia
Antiga apresenta seu célebre pensamento “O homem é a medida de todas as coisas”, marca seu
entendimento sobre a subjetividade e particularidade de cada indivíduo, evidenciando que “a
verdade não existe independentemente do homem que a conhece, ela não está fora do homem
esperando para ser descoberta, a verdade é construída pelo homem, a partir de medidas do
próprio homem” (da Silva, pg. 43)

A máxima apresenta uma profundidade e alcance relevantes para estes estudos,


considerando-se primeiramente que para além das possíveis constatações e “verdades absolutas
e universais” a respeito do nosso objeto de estudo, o homem, quando se atém aos detalhes e
pormenores, quando se toca ou se aproxima da individualidade de cada ser humano, passa-se
a perceber que cada um não é só particularmente único no seu conjunto como também, ele
mesmo, percebe, entende, sente, mede o mundo e vive a vida, de modo também único. Como
então ter uma medida ou conceitos e noções adequadas, corretas ou seguras do que seja o
homem, visto que cada individualidade poderá perceber e narrar essa natureza a seu próprio
modo? Muitas são as definições e perspectivas pelas quais se considera o homem, a começar
pelos conceitos de alma, espírito ou consciência. Estes conceitos poderiam ser sinônimos de
homem? Até que ponto esses conceitos se equivalem, se aproximam ou se distanciam entre si?

Uma consulta ao Dicionário de Filosofia nos remete a uma evolução histórica destes
conceitos, com diferentes e importantes perspectivas. De forma geral e para fins destes estudos,
adota-se o entendimento genérico de que espírito e alma seriam sinônimos ou se equivalem
enquanto uma individualidade (desprovida de corpo) enquanto o termo consciência poderia ser
entendido como um atributo (maior do que a própria inteligência, por exemplo) desta alma ou
espírito. A partir dessas breves noções, três grandes entendimentos possíveis sobre o ‘homem’
se desenham como linhas principais: monismo, dualismo e hilemorfismo.

Segundo o professor Edvino Rabuske (1986), o “dualismo afirma que o homem se


‘compõe’ de duas substâncias heterogêneas completas[...] que bastam a si mesmas para existir
e somente por acaso, acidentalmente, estão unidas no homem” (pg.31).

Na forma radical, o dualismo não admite que corpo e alma dependam um do outro no
agir; cada qual age segundo energias e leis próprias. O dualismo paralelista e
interacionista admite certa interdependência entre o corpo e a alma, não na substância,
mas nas operações. O monismo espiritualista defende a idéia: No fundo tudo é
espírito. Pelo contrário, o monismo materialista reduz todo o ser humano ao corpo,
às suas estruturas e a seus processos. A terceira teoria propugna pela existência no
homem de duas substâncias heterogêneas incompletas, que se complementam ao
nível da substância e, conseqüentemente, também ao nível do agir. É a concepção
‘hilemorfista’, primeiramente proposta por ARISTÓTELES, aprofundada por
TOMÁS DE AQUINO e aceita, em geral, pela Filosofia Escolástica (Rabuske, pg.
31).

Segundo este autor, o dualismo, “em todas as suas formas, é refutado pelas
investigações antropológicas do século 20.” (Rabuske, pg. 31). Para ele, o monismo
materialista é “um reducionismo, que peca contra o princípio da causalidade: os fenômenos
culturais não podem ter como sua causa uma substância material (Rabuske, pg. 32). Já com
relação ao hilemorfismo, Rabuske afirma não se tratar de uma teoria científica, mas sim
filosófica em que a relação do corpo e da alma é pensada entre matéria e forma.

Os termos ‘matéria’ e ‘forma’ não devem ser entendidos como na linguagem


corrente atual. São categorias cujo sentido somente é compreensível no contexto da
2
filosofia aristotélico-tomista.[...] E mesmo aqueles que investiram muito tempo e
energia no estudo desta concepção recohecem que a união substancial entre corpo
e alma, entre matéria e espírito, continua sendo um enigna, um mistério. Se o
homem é um enigma, aqui temos um dos pontos enigmáticos. Para evitar uma
terminologia fora de uso, digamos que o homem é um ser distendido entre dois
pólos, um [...] espiritual e um [...] material. O homem é uma unidade na dualidade,
uma dualidade na unidade (Rabuske, pg. 32).

2. O PROBLEMA “CONCEITUAL” E “FILOSÓFICO” DO HOMEM

Para o professor C. I. Gouliane (1969), a “História da filosofia mostra que o homem


constitui sempre um dos temas principais do pensamento. Muitas vezes o assunto esteve apenas
implícito, e os filósofos (Descartes, Spinoza, etc.) não foram ao fundo das questões. Outras
vezes, pelo contrário, na época helenística e durante o Renascimento, por exemplo, o problema
do homem adquiriu evidente amplitude (Gouliane, pg.13).

De acordo com Ernst Cassirer (1972):

“Depois de tôdas as várias e divergentes definições da natureza do homem, dadas na


história da filosofia, os filósofos modernos chegaram, muitas vêzes, à conclusão de
que a própria questão, em certo sentido, é desorientadora e contraditória. Em nosso
mundo moderno, diz Ortega y Gasset, estamos assistindo a um colapso da teoria
clássica, da teoria grega do ser e, por conseguinte, da teoria clássica do homem”
(Cassirer, pg. 271).

Aqui revela-se uma outra característica do homem e dos estudos em torno dele. Os
avanços de pensamento ao longo da história da Filosofia e das ciências em geral, marcam
obviamente a ampliação do entendimento a respeito do tema, entretanto, o homem em si é
dinâmico na sua constituição e complexidade, evoluindo também com os tempos e de acordo
com as épocas. Esta condição sugere, de certa forma, que o homem também deva ser estudado
não só a partir de conceitos estáticos e absolutos, mas também em função do seu contexto, de
sua época, o que sugere que o homem é em grande medida um ser circunstanciado.

Antes porém de nos aprofundarmos a partir da Filosofia, necessário resgatar o homem


nas suas noções mais profundas e elementares e para isso busca-se essa noção nos folclores.

Goulaine cita fato que considera singularmente significativo:

“antes mesmo do aparecimento da filosofia numa sociedade dividida em classes, [...]


as massas populares conceberam espontâneamente uma concepção do homem, do
sentido da vida, do seu valor e do seu destino; esta concepção merece que não nos
afastemos dela.

Ela se nos desvenda na riqueza do folclore primitivo e do folclore universal. Essa


concepção [...] baseava-se, desde as eras mais recuadas, nas necessidades da vida e
no trabalho em comum, o que lhe conferiu desde o princípio certa seriedade,
proporcionou também fé na vida e no homem. Foi necessário esperar as literaturas do
Oriente antigo (Egito, Babilônia, Índia) para ver a opressão, a miséria e o sofrimento
engendrarem a dúvida e o pessimismo (os salmos babilônicos, a epopéia de
Gilgamesh, a moral budista nas Índias, o tema do destino nas tragédias gregas). Se o
folclore universal nos dá conta do panorama de sofrimento e amargura causados, sem
dúvida, pela injustiça e violência – muitas vêzes também pelo drama individual –
revela-nos uma sêde insaciável de vida, otimismo vigoroso e lúcido, uma fé
inquebrantável no valor humano. O folclore universal é, do ponto de vista ético,
duplamente revelador, porque documento ao mesmo tempo psicológico e literário
infinitamente precioso: as obras folclóricas confundem frequentemente os ideais do

3
humanismo popular com as representações realistas das fraquezas humanas
(Gouliane, pgs. 33 e 34).

No folclore encontra-se portanto a imagem pura do homem, sem retoques, com todas
as suas virtudes, potencial e grandezas bem como com todas as suas dores, misérias e tragédias,
um homem que também interessa ao presente estudo.

De volta ao terreno da Filosofia, Cassirer é de opinião que dentre as investigações


filosóficas, parece ser o conhecimento de si mesmo, a mais plenamente aceita como o objetivo
mais elevado dentre todas as investigações. “Em todos os conflitos travados entre as diferentes
escolas filosóficas, este objetivo permaneceu invariável e inabalado: revelou-se o ponto de
Arquimedes, o centro fixo e imutável, de todo pensamento. Nem mesmo os mais céticos
pensadores negaram a possibilidade e a necessidade do conhecimento próprio” (pg. 15).

“Nas grandes obras da história e da arte começamos a ver, atrás da máscara do homem
convencional, os traços do homem real, individual. Para encontrá-lo precisamos
recorrer aos grandes historiadores ou aos grandes poetas – aos autores trágicos como
Eurípides ou Shakespeare, aos escritores cômicos como Cervantes, Molière ou
Laurence Sterne, ou aos nossos romancistas modernos, como Dickens ou Thackeray,
Balzac ou Flaubert, Gogol ou Dostoievski. A poesia não é uma simples imitação da
natureza; a história não é uma narrativa de fatos e acontecimentos mortos. A história,
como a poesia, é um órgão do nosso autoconhecimento, um instrumento
indispensável à construção de nosso universo humano” (Cassirer, pg. 323).

Gouliane destaca também a concepção de homem de Confúcio, que segundo este autor
ocupa lugar destacado no pensamento do oriente antigo devido seu conhecimento realista,
profundo e sustentado numa fé inabalável nas possibilidades de aperfeiçoamento moral, sendo
o aperfeiçoamento pessoal a condição de todo desenvolvimento e progresso moral: “qualquer
que seja [...] sua posição social: desde o homem [...] no ápice da sociedade ao indivíduo mais
humilde e obscuro, todos têm o mesmo dever a cumprir: corrigir-se e aperfeiçoar-se” (pg.35).

De acordo com o autor italiano Battista Mondin, sacerdote e Doutor em Filosofia e


Religião junto à Harvard (2005), responder à pergunta ‘quem é o homem’ se configura “[...]
problema importantíssimo, mas, também [...] muito difícil, dada a enorme complexidade de
nosso ser, o nosso grande dinamismo, as fortes e elevadas aspirações, as múltiplas expressões
do bem e do mal, do ódio e do amor, da generosidade e da perversidade, do progresso e do
retrocesso de que somos capazes” (Mondin, pg.5).

Gouliane, em sua obra “A Problemática do Homem: Ensaio de uma Antropologia


Filosófica”, cita como nota de prefácio o pensamento de Pascal: “É perigoso insistir muito em
comparar o homem aos animais, sem lhe mostrar sua grandeza. É também perigoso insistir em
mostrar sua grandeza sem sua pequenez. É ainda mais perigoso deixá-lo ignorar ambas as
coisas. Mas é muito importante mostrar-lhe uma e outra” (Pascal in Gouliane, Prefácio).

“A história do conhecimento do homem ensina que o conhecimento de si mesmo


acarreta problemas singularmente difíceis e que poucos conseguiram discernir as
linhas-mestras dêles. Qual a razão disso? A experiência cotidiana prova que o homem
teve e continua a ter muita dificuldade em pensar objetivamente a seu respeito
(Gouliane, pg.21).

4
Gouliane recorda que Heráclito teria sido o primeiro pensador grego a confessar que
“analisou a si mesmo”.1

“Heráclito afirma que é impossível conhecer os confins da alma; maravilha-se ao


pressentir os insondáveis abismos dela, mas proclama que há um bem supremo e
comum a todos os homens, além das diferenças individuais e que êste bem é o logos.
Heráclito legou a imagem que esclarece os liames da alma e do corpo” (Diels,
frag.116 apud Gouliane, pg.36).

Mondin resgata que o homem tem sido objeto de pesquisa e de estudo desde os
primórdios da filosofia grega. “A questão que importava a Sócrates precipuamente era:
‘Conhece-te a ti mesmo’. Todos os grandes filósofos da Antigüidade (Platão e Aristóteles), da
Idade Média (Santo Agostinho e São Tomás) e da época moderna (Descartes, Kant, Hegel,
Marx, Heidegger) estudaram-na com paixão. Contudo, nenhuma de suas mais brilhantes
soluções satisfaz-nos plenamente (pg. 5).

Alexis Carrel, conceituado e reconhecido médico americano premiado em 1912 pelo


Nobel de Medicina, publica em 1944 sua obra ‘O Homem, esse desconhecido’: “O grande
volume de dados que temos hoje sobre o homem é um obstáculo à sua utilização. Para ser útil,
nosso conhecimento deve ser conciso e breve” (pg. 18).

Lembra-nos ainda sobre a dificuldade de estudar o homem: “Os seres humanos não
servem para a observação e experiência. Não se encontram facilmente indivíduos idênticos,
cujos resultados possam ser comparados” (Carrel, pg. 67).

Parecendo concordar com a necessidade de condensar e sintetizar de forma objetiva


esse grande volume de diferentes dados já levantados e debatidos sobre a natureza e essência
última do ‘homem’ é que Gouliane também, a seu tempo, vai afirmar:

“Filósofos, psicólogos, sociólogos, moralistas, escritores e jornalistas, marxistas e


não-marxistas, inclinam-se sôbre um problema que por sua complexidade ultrapassa
os quadros da psicologia ou da ética, da ontologia existencialista ou da psicologia
abissal. Êsse problema é tão palpitante quanto urgente é a necessidade de uma
intervenção no sentido de elucidar o objeto, legitimidade e alcance da antropologia
filosófica, o que, pelo menos por um momento, foi deixado de lado. [...] É de notar-
se também a escassez de obras de antropologia filosófica, isto é, de estudos dedicados
a oferecer uma elucidação multilateral, por conseguinte objetiva, do homem”
(Gouliane, pg.14)

Mondin considera que o homem é um mistério para ele mesmo e por esse motivo se
propõe em sua investigação antropológica-filosófica a pesquisá-lo, com empenho mas, também
com humildade, sem a pretensão, segundo ele, de grandes resultados, visto que mesmo as
mentes mais geniais nem de perto “balbuciaram miseravelmente” o que é o ‘Homem’ (pg. 6).

Para Carrel “O homem é um todo indivisível de extrema complexidade, do qual é


impossível ter uma concepção simples” e que não “há método capaz de compreender de uma
única vez seu conjunto, suas partes e suas relações com o mundo exterior” (pg. 30).

“Spinoza e Kant demonstraram que o homem se acha no ponto de interseção de duas


esferas: a da natureza (ou da necessidade) e a da liberdade” (Gouliane, pg.22).

1 Heráclito, Diels, frag.101 apud Gouliane, pg.36


5
“O homem conhecido pelos especialistas não é [...] o homem concreto, o homem real,
mas tão somente um esquema, ele próprio composto por esquemas construídos pelas
técnicas de cada ciência. Ele é simultaneamente o cadáver dissecado pelos
anatomistas, a consciência observada pelos psicólogos e líderes da vida espiritual, a
personalidade desvelada a todos nós pela introspecção” (Carrel, pg. 30).

Para o médico vencedor do Prêmio Nobel, essa dificuldade de conhecimento sobre nós
mesmos é de natureza particular:

“Ela não vem da dificuldade de obter as informações necessárias, tampouco de sua


imprecisão ou raridade. Pelo contrário, ela se deve à extrema abundância e confusão
de noções que a humanidade acumulou a respeito de si mesma ao longo das eras.
Além disso, deve-se à fragmentação de nós mesmos em partes quase infinitas pelas
ciências que dividiram o estudo e nosso corpo e consciência. Esse conhecimento
permaneceu em grande parte inutilizado e, na verdade, dificilmente é útil” (Carrel,
pg.51).

Se definir o homem é tarefa difícil, Cassirer lembra que também a própria concepção
de ciência inexistia antes do tempo dos grandes pensadores gregos e após um período eclipsada,
foi necessário redescobri-la e restabelecê-la na época da Renascença para triunfar de maneira
mais completa e incontestável. “Não há outro poder, em nosso mundo moderno, que se possa
comparar com o do pensamento científico. Considera-se como o pináculo e a consumação de
tôdas as nossas atividades humanas, o último capítulo da história da humanidade e o tema mais
importante de uma filosofia do homem” (Cassirer, pg. 325).

Como veremos a seguir e conforme diversos estudos indicam, esse mesmo pensamento
científico trouxe ao homem e especialmente ao homem ocidental, alguns problemas. Carrel,
por exemplo, se referindo aos métodos, prioridades e critérios de pesquisa a respeito do homem
ou de certas partes dele (em detrimento de outras), de forma crítica defende que a “relevância
de um fenômeno não depende da facilidade com que nossas técnicas podem ser aplicadas a seu
estudo. Ele deve ser julgado não em função do observador e de seus métodos, e sim do objeto,
do ser humano” (pg. 57).

“A dor da mãe que perdeu o filho, a angústia da alma mística mergulhada na noite
escura, o sofrimento do enfermo consumido por um câncer são de uma realidade
evidente, ainda que não sejam mensuráveis. Não temos o direito de negligenciar o
estudo dos fenômenos de clarividência mais do que o da cronaxia dos nervos, sob
pretexto de que a clarividência não se reproduz conforme a vontade e não pode ser
medida, ao passo que a cronaxia é mensurável de modo exato por um método
simples.” Devemos utilizar, nesse inventário, todos os meios possíveis e
contentarmos-nos em observar o que não podemos medir.” (pg. 57)

Nesse sentido, Carrel afirma que a existência da inteligência é um “dado imediato da


observação. “Essa capacidade de compreender a relação ente as coisas assume um valor e uma
forma em cada indivíduo” (pg.124).

Ampliando o debate e incluindo elementos do ‘homem’ geralmente pouco estudados


pela Ciência ou pela própria Filosofia, devido à sua subjetividade, Carrel aborda outras
modalidades de conhecimento e da inteligência humana, como por exemplo a intuição. O autor
a considera como um outro modo de conhecimento, afirma se tratar de “fenômeno inexplicável,
de uma faculdade estranha de apreender a realidade sem ajuda do raciocínio, sendo esta
produzida geralmente na ausência de observação e raciocínio (pgs. 125 e 126). Para o autor, a
intuição se aproxima da faculdade da clarividência, denominada pelo médico fisiologista e

6
também prêmio Nobel de Medicina, criador da metapsíquica - Charles Richet; de “sexto
sentido” (pg.126).

Para Carrel, a existência da intuição, da clarividência, assim como a “leitura de


pensamentos e sentimentos”, telepatia, etc... são dados imediatos da observação.

“Nossos instrumentos técnicos de observação e experimentação foram


imensamente aperfeiçoados e nossas anállises se tornaram mais apuradas e mais
penetrantes. Apesar disto, não parece que tenhamos encontrado ainda um método
para o domínio e a organização dêste material. Cotejado com nossa própria
abundância, o passado pode parecer paupérrimo. Entretanto, nossa riqueza de fatos
não é necessariamente uma riqueza de pensamentos. A não ser que consigamos
encontrar o fio de Ariadne que nos tire dêste labirinto, não poderemos ter uma visão
do caráter geral da cultura humana, e continuaremos perdidos no meio de um
conjunto de dados desconexos e desintegrados, carente, ao que parece, de tôda
unidade conceitual” (Cassirer, pgs, 45 e 46).

Da mesma forma, Cassirer buscando responder à questão central “que é o homem?”


procura descobrir um enfoque alternativo além do caminho já aberto da introspecção
psicológica, da observação e da experiência biológicas e da investigação histórica e nesse
sentido propõe um enfoque alternativo dessa natureza na Filosofia das Formas Simbólicas, fato
que na visão do autor não implica em inovação radical nem suprimir mas, completar pontos de
vista anteriores.

“... a filosofia das formas simbólicas parte do pressuposto de que, se existe alguma
definição da natureza ou “essência” do homem, só pode ser compreendida como
funcional, não como substancial. Não podemos definir o homem por nenhum
princípio inerente que constitui sua essência metafísica – nem passíveis de serem
verificados pela observação empírica. A característica do homem, a marca que o
distingue, não é sua natureza metafísica ou física – mas seu trabalho. É êste trabalho,
o sistema das atividades humanas, que define e determina o círculo de “humanidade”.
A linguagem, o mito, a religião, a arte, a ciência, a história são os constituintes, os
vários setores dêsse círculo. Uma “filosofia do homem” seria, portanto, uma
filosofia que nos desse a visão da estrutura fundamental de cada uma dessas
atividades humanas, e que, ao mesmo tempo, nos permitisse compreendê-las
como um todo orgânico (grifo nosso)” (Cassirer, pgs.115 e 116).

3. A ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA
Conforme pesquisas realizadas, entende-se que uma análise e possível conversação em
torno do tema ‘o quê ou quem é o homem’ numa perspectiva filosófica requer, inevitavelmente,
a consideração, o estudo e portanto, uma compreensão, ainda que genérica ou panorâmica da
chamada Antropologia Filosófica.
Em torno do pensamento filosófico, Cassirer considera que momento decisivo ocorre
na cultura e pensamento gregos quando:

“...Platão interpretou a máxima ‘Conhece-te a ti mesmo’, num sentido inteiramente


novo. Esta interpretação não só introduziu um problema estranho ao pensamento pré-
socrático como também ultrapassou os limites do método socrático. Obedecendo a
ordem do deus délfico e cumprindo a obrigação religiosa do auto-exame e do
conhecimento de si próprio, Sócrates abordará o homem individual. Platão
reconheceu as limitações do método socrático de investigação; e declarou que para
resolver o problema precisamos projetá-lo num plano mais amplo. Os fenômenos que
encontramos em nossa experiência individual são tão vários, complexos e
contraditórios que dificilmente conseguimos destrinchá-los. Deve-se estudar o
homem, não em sua vida individual, mas em sua vida política e social. No entender

7
de Platão, a natureza humana é como um texto difícil, cujo significado precisa ser
decifrado pela filosofia; mas escrito, em nossa experiência pessoal, em letras tão
miúdas que se torna ilegível. O primeiro trabalho da filosofia será ampliar essas letras
(Cassirer, pg. 109).

Entende-se assim que a Filosofia na busca por compreender o ‘Homem’ deve buscar
antes entender o seu contexto, aonde este homem se insere, sua generalidade ou universalidade
e, a partir disso, passar então ao trabalho de análise das particularidades que vão caracterizar,
entre outras coisas, sua individualidade e sua singularidade. Dos estudos realizados, pode-se
entender que a Filosofia, representada de forma retrospectiva e atual nos seus diferentes
pensadores, nas suas diferentes escolas e linhas de pensamento, apesar de ter tratado também
do tema (O Homem), vêm ao longo de sua história em torno da pesquisa do ‘homem’ se
desenvolvendo e atingindo no final do século XIX e início do século XX um ponto de
maturidade suficiente para permitir organizar seus conteúdos, suas teses e principais
pensamentos em torno da noção de homem, estágio de desenvolvimento que permite o
surgimento da Antropologia Filosófica enquanto movimento e disciplina da Filosofia, a qual
surge, inclusive, derivada de diversas outras disciplinas tais como a Ética, por exemplo.

No que diz respeito ao conteúdo da Antropologia Filosófica, segundo Rabuske, em


certo sentido, ela já marca presença na filosofia antiga. “Bastar recordar os Sofistas, Sócrates,
a “República” de Platão. Aristóteles escreveu o primeiro tratado sobre o homem, intitulado
“Perì Psychés” (Sobre a alma). Séculos depois, Agostinho escreve os “Solilóquios” e as
“Confissões” (pg. 14). Entretanto, para o autor, ainda não há, no sentido estrito, Antropologia
Filosófica.

O homem é visto unilateralmente; o que interessa é investigar a alma. O centro da


filosofia é a Metafísica. Na Idade moderna este centro se deslocou para a Teoria do
Conhecimento. Somente no século passado, quando entraram em crise os grandes
sistemas especulativos do Idealismo Alemão, começou realmente a Antropologia.
Mas, começou sob o predomínio do Materialismo; em termos mais neutros, começou
como tema de pesquisa científica. Basta recordar Darwin (Rabuske, pg.14).

Evidencia-se acima os deslocamentos do centro de atenção que a Filosofia passou e por


conseguinte, a dificuldade, de certa forma compreensível do ponto de vista histórico, de colocar
o homem no centro da atenção filosófica, dada a diversidade de temas de interesse e caminhos
pelos quais enveredou a filosofia.
De acordo com Rabuske o termo Antropologia Filosófica foi criado nos anos vinte do
século passado e deve muito de seu sucesso à obra de Max Scheler, A Posição do Homem no
Cosmos.
Trata-se dum movimento filosófico, surgido na década de 20, que a si mesmo deu o
nome de “Antropologia Filosófica”. Os seus representantes principais são: Max
Scheler (A Posição do Homem no Cosmos, 1928), Helmuth Plessner (Die Stufen des
Organischen und der Mensch, 1928) e Arnold Gehlen (Der Mensch. Seine Natur und
seine Stellung in der welt, 1928) (Rabuske, pg.14).

Interessante notar que, apesar do surgimento da Antropologia Filosófica e apesar do


seu instigante objeto de estudo (O Homem) dentre os temas filosóficos, ela mesma, passa a
enfrentar dificuldades próprias, as quais podem ser resumidas, na dificuldade de investigar o
homem dada a sua natureza e constituição, ao mesmo tempo simples e ao mesmo tempo tão
complexa, fazendo despertar uma velha questão para os pensadores: Seria possível acessarmos
ou compreendermos totalmente o homem? O desafio não é dos mais simples e no que toca às

8
dificuldades de uma Filosofia Antropológica, nesse sentido é a questão do método o seu grande
desafio: qual ou quais métodos seriam adequados ou mais apropriados para conduzir essas
investigações, análises e reflexões, quando o objeto de estudo é o ‘homem’?

Rabuske entende que “‘todos os temas’ da Filosofia cabem na Antropologia Filosófica,


pois todos partem do homem ou remetem a ele”. O autor nos pergunta então: “Será que temos
que aceitar a idéia de que a Antropologia Filosófica é a disciplina filosófica mais importante
no seu conteúdo e a mais precária no seu método?”(Rabuske, pg.16 ).

Gouliane atribui duas razões principais na problemática do homem para a chamada


antropologia filosófica não atingir, à sua época, o “status” de uma ciência filosófica, que são
elas: 1. “dificuldade (nota deste autor: do próprio homem) em fazer um julgamento objetivo,
livre de qualquer compromisso” e 2. “complexidade da natureza humana (Gouliane, pg.21).

Para Cassirer, Max Scheler foi um dos primeiros a perceber as dificuldades e pontos de
vista já na abordagem deste tema, tomando consciência do perigo de um evidente antagonismo
de ideias no terreno da Antropologia Filosófica ou daquilo que a precede: a discussão sobre o
homem, vindo a chamar atenção para ele, percebendo que não se tratava apenas de grave
problema teórico, mas de uma ameaça iminente a toda extensão de nossa vida ética e cultural.

“Em nenhum outro período do conhecimento humano, o homem se tornou mais


problemático para si mesmo do que em nossos dias. Dispomos de uma antropologia
científica, uma antropologia filosófica e uma antropologia teológica que se ignoram
entre si. Por conseguinte, já não possuímos nenhuma idéia clara e coerente do homem.
A multiplicidade cada vez maior das ciências particulares, que se ocupam do estudo
dos homens, antes confundiu e obscureceu do que elucidou nossa concepção do
homem” (Scheler, 2003, pgs. 5 e 6 apud Cassirer, 1972, p. 45) 2

Rabuske, no que diz respeito ao homem, comenta assim a obra ‘¿Qué Es El Hombre?’
(obra não traduzida no Brasil) do filósofo austríaco, jesuíta e padre católico Emerich Coreth:

O homem pergunta pela sua própria essência. Isto somente é possível, porque ele já
sabe algo de si mesmo. Não é um saber que suprime a pergunta, mas que a possibilita.
O homem não se compreende perfeitamente, ele permanece para si mesmo um ser
enigmático e misterioso. Sabe por si como um ser que espiritualmente se possui e
compreende. Mas está imerso na obscuridade do ser e devir material, que lhe impede
uma autocompreensão plena. Esta dualidade determina a essência do homem. Dela
surge a possibilidade e a necessidade do seu perguntar (Rabuske, pg. 16).

Segundo Rabuske, Coreth entende que em se tratando das ciências particulares, elas
não oferecem um ponto de partida filosoficamente legítimo para a Antropologia Filosófica:
“As ciências particulares só tratam de aspectos parciais do homem. A Antropologia Filosófica
tem a tarefa de apreender a totalidade do homem” (Rabuske, pg. 17).
Rabuske também analisa a obra considerada inicial da Antropologia Filosófica. Para
ele, um dos méritos da obra de Scheler é “procurar integrar numa síntese filosófica os resultados
de pesquisas de Biologia, Psicologia, Ciências do Comportamento etc”(Rabuske, pg. 28).

“A antropologia filosófica exibe um duplo feitio: de uma parte, ela generaliza e


sintetiza os resultados obtidos pelas ciêncas particulares; de outra, ela pretende
ultrapassar por sua atividade crítica tôdas as concepções limitadas que

2 SCHELER, Max. A Posição do Homem no Cosmos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
9
alternativamente se aplicam a reduzir a natureza humana a suas origens animais ou à
superioridade intelectual; à sua dinâmica afetiva ou às manifestações axiológicas; a
seus estados de espírito puramente subjetivos ou à sua substância apenas social,
enfim, reduzir o homem àquilo que êle é ou àquilo que êle vale (Gouliane, pg.22).

“Em razão mesmo de seu caráter de ciência (ou disciplina filosófica) sintética, a
antropologia filosófica é aplicada a valorizar tudo o que a precedeu em filosofia, ciência ou
literatura” (Gouliane, pg.33).

“Duas vias se apresentam diante de nós: podemos ou estudar o homem enquanto objeto
da ciência, ou tentar descobrir o homem enquanto liberdade”3.

Gouliane nos lembra ainda de que a discussão em torno do ‘homem’ também deve
considerar a sua atualidade:

“Em nossa época, filósofos, cientistas e escritores começam a compreender que não
basta simplesmente analisar os problemas propostos pelo humanismo: necessidade e
liberdade; significado da vida; caráter; personalidade; técnica etc., mas que é preciso
considerar novos aspectos da “filosofia do homem”. Êste revigoramento do interêsse
pelo conhecimento do homem é suscitado pelo fato de que ‘o homem jamais se
apresentou tão problemático a seus próprios olhos como atualmente’” (Gouliane,
pg.14).

4. O HOMEM NA SUA ESSÊNCIA – UMA BUSCA PERMANENTE E DESAFIADORA

‘O quê mais além de corpo e alma pode ser o homem? Perceber-se como uma espécie
de amálgama de diferentes dimensões e perspectivas ajudaria o homem a conhecer a si mesmo
e ser melhor compreendido ou isso apenas o confunde e reforça ideias fragmentadas a respeito
deste tema?

“O homem é um ser que, por definição, não pode ser definido. É indefinível,
indizível, inefável; é um mistério. Se o homem, como disse PASCAL, “transcende
infinitamente o homem”, então ele não cabe numa definição, que indica os limites.
Mas, isto não justifica a preguiça mental. E a razão não é totalmente impotente, pois
saber-se inefável já é, de algum modo, conhecer a própria essência (Rabuske, pg.
115).

Carrel se refere à diferentes dimensões e características e a dificuldade de acessar o


homem em sua integralidade nos seguintes termos:

“É esse conjunto de órgãos e consciência que se estende no tempo e cujo


desenvolvimento máximo os higienistas e educadores tentam alcançar. É o homo
economicus, que deve consumir sem parar para que funcionem as máquinas de que é
escravo, e é também o poeta, o herói e o santo. Ele é não somente o ser fabulosamente
complexo analisado pelos cientistas por meio de técnicas especiais, mas também a
soma das tendências, suposições e desejos da humanidade. As concepções que temos
dele são impregnadas de metafísica. Elas são compostas por dados tão numerosos e
tão imprecisos que é grande a tentação de escolher, entre eles, aquelas que mais nos
agradam. Além disso, nossa ideia do homem varia conforme nossos sentimentos e
crenças. Um materialista e um espiritualista aceitam a mesma definição de um cristal
de cloreto de sódio, mas não concordam quanto à definição do ser humano” (Carrel,
pgs. 30 e 31).

3 JASPERS, Karl. A fé filosófica, Plon, Paris, 1953, p.75 apud Gouliane, pg.30
10
Rabuske considera que o Ser Humano tem dimensões, que seriam ‘direções de
extensão’, que pertentem à essência do respectivo ser. Nesse sentido, o autor aborda algumas
dimensões como fundamentais, sendo elas: A linguagem, a comunidade, a historicidade e a
Ética.

O autor considera que as três primeiras são especialmente importantes devido à


hegemonia atual de ciências que lhes correspondem, no caso, a Lingüística, a Sociologia e a
Ciência Histórica, respectivamente. No caso da Ética, o autor considera que corresponde à sua
concepção de Filosofia e também de Antropologia Filosófica, sendo capaz de fundamentar um
certo comportamento moral, ou seja, o melhor serviço que a Filosofia pode prestar à cultura
atual (Rabuske, pg.119).

Segundo Rabuske, o “homem é um ser, cuja natureza essencial implica dois elementos:
o espírito e o corpo” (pg. 82).

“Quanto à relação entre estes dois elementos, é difícil encontrar a terminologia


adequada. Não posso dizer simplesmente; “eu sou meu corpo”, porque sou mais do
que isto. Também não é exato dizer: “Eu tenho um corpo”: O verbo “ter” não é
apropriado para exprimir a relação de transcendência e de imanência do espírito com
o corpo. Igualmente é insuficiente falar em “expressão” ou “verbalização”: que o
espírito “se exprime”, “se verbaliza” no corpo. Isto é apenas um aspecto [...] a nossa
tese é que o espírito, apesar da íntima união com o corpo, tem, face a ele, uma certa
autonomia. Isto resulta da reflexão sobre a atividade humana....Mas, a verdadeira
prova desta autonomia parcial reside no estudo da liberdade humana” (Rabuske, pg.
82).

O autor busca superar o diálogo com uma Ciência Particular na qual por exemplo a
Biologia vai evidenciar o homem como um ser animal ou mesmo com a antropologia cultural
que vai nos permitir compreender que este homem é o sujeito da cultura assim como o homem
considerado enquanto indivíduo é também “objeto” da cultura e que neste sentido, todos os
homens tiveram e têm uma cultura (Rabuske, pg. 49). “Afirmamos que o fundamento da cultura
é a ‘natureza humana’, que tem um pólo espiritual e um pólo biológico” (pg. 67).

Nesta busca de Rabuske e a partir das considerações acima sobre o homem (da biologia
e cultura) o autor então passa a elucidar os traços fundamentais da natureza humana, buscando
evidenciar como diferença específica, a espiritualidade. De acordo com o autor, “segundo uma
longa tradição, o espírito humano se manifesta através de dois tipos de atos: intelectivos e
volitivos” e que a Antropologia Filosófica não pode desenvolver toda a temática do
conhecimento, devendo concentrar-se em algumas teses centrais (Rabuske, pg. 68).

O autor divide seus estudos sobre o homem em três partes: A consciência; a razão
humana e a liberdade humana. Sobre a consciência, discorreu-se minimamente neste estudo
para os objetivos desta investigação. Já com relação à razão humana, Rabuske vai abordá-la
numa perspectiva que evidencia tanto o seu poder quanto a sua fraqueza.

Por fim, com relação à liberdade humana:

“O estudo da liberdade humana é uma das tarefas próprias da Filosofia, mais


especificamente, da Antropologia Filosófica. [...] a liberdade é algo que, por sua
própria natureza, é inacessível às Ciências Particulares, pois estas se caracterizam por
um método objetivante. Doutro lado, a liberdade não deve ser compreendida como
um fenômeno à parte da vida, individual e social” (Rabuske, pg. 88).

11
“Liberdade é a capacidade de decidir-se a si mesmo para um determinado agir ou sua
omissão, respectivamente para este ou aquele agir” (Rabuske, pg. 89).

A “pessoa humana”, segundo Rabuske, “tem dois modos fundamentais de agir:


conhecer e querer. Na realização do agir,...o querer é mais perfeito do que o conhecer. Por isto,
é válido definir o homem, não a partir da racionalidade, mas a partir da liberdade (pg. 117).

O autor considera então que assim como a razão humana tem seus limites, a liberdade,
da mesma forma, também os tem.

“Dum lado, a liberdade é absoluta: perante tudo, também perante Deus, posso dizer
“sim” ou “não”. Doutro lado, a liberade é limitada. Já antes de tomar a primeira
decisão, o indivíduo tem uma história: da sua infância, da sua família, do seu povo.
E a vida inteira permanece envolvido e penetrado por múltiplos condicionamentos,
que são tanto um apoio como um estorvo. A tarefa essencial da vida humana é realizar
a liberdade mediante conteúdos válidos e libertar-se do que é negativo e opressor”
(Rabuske, pg.117).

Inúmeros outros aspectos deste ‘Homem’ investigado poderiam ser aqui tratados, da
“física à metafísica”, tais como o conhecer sensitivo e intelectivo, a vontade, as paixões e o
amor, o aspecto social e político, o homem lúdico passando por questões da espiritualidade, da
capacidade de autotranscendência até as discussões sobre a imortalidade do homem e o
fenômeno da morte, todos temas abordados pelo italiano Battista Mondin em sua obra: ‘O
homem, quem é ele?’

5. O HOMEM NA ATUALIDADE E A ATUALIDADE NO HOMEM

Carrel, partindo da tese de Plotino de que “O homem deveria ser a medida de todas as
coisas”, pondera que [o mesmo] é um estranho no mundo que criou” (pg.49). Para o autor, “a
ciência desenvolveu-se na direção em que a curiosidade do homem a impelia, isto é, para o
mundo exterior” mas que, em se referindo às gerações anteriores: “Por muito tempo, nossos
pais não tiveram nem a oportunidade, nem a necessidade de estudar a si mesmos” (pg.33).

“O meio construído por nossa inteligência e invenções não é adequado nem à nossa
estatura nem à nossa forma. Ele não é feito para nós. Nele somos infelizes, decaímos
moral e mentalmente. Os grupos e nações onde a civilização industrial atingiu o ápice
são precisamente os que mais enfraquecem [...] O inquietamento e as infelicidades
dos habitantes da nova cidade resultam não apenas de suas instituições políticas,
econômicas e sociais, mas principalmente de sua própria degradação. Eles são as
vítimas do atraso das ciências da vida em relação às da matéria.[...] Somente um
conhecimento mais profundo de nós mesmos pode trazer uma cura para esse mal”
(Carrel, pg.49).

Também para Rabuske a nossa cultura está em crise e a atravessa num período
especialmente difícil que pede uma mudança de mentalidade. Ele cita como sintomas desta
crise a insatisfação psicológica, a criminalidade, o consumo de álcool e drogras, as tensões
sociais e políticas, o desnível econômico e a iminência de uma guerra atômica (pg. 83).

“Uma das raízes da crise, ou, pelo menos, um dos seus aspectos, reside na desconfiança
na razão. Critica-se a razão, a consciência, as suas pretensões e também o mundo ‘feito’ a
partir da consciência” (Rabuske, pg. 83).

12
A fim de contribuir na análise da origem dessa crise, Rabuske relembra outro
Antropólogo da Filosofia, Mondin, que procura esclarecer sobre a constituição do homem e de
seu conhecimento numa perspectiva contemporânea. Mondin estabelece que o conhecimento
intelectivo tem as seguintes propriedades: Universalidade, intencionalidade, mundanidade,
perspectividade, personalisticidade e historicidade (p. 78-89).

“No passado a Filosofia acentuava as duas primeiras propriedades: o conhecimento é


universal e necessário e atinge, de fato, o ser-em-si.[...] A partir do século passado4 se insiste
nas outras quatro propriedades, que revelam a limitação e a provisoriedade do conhecimento
humano, portanto, a fraqueza da razão humana” (Rabuske, pg. 84).
Nesse sentido, a razão por um lado mostra-se frágil e por outro, novos elementos
constituintes do homem ganham espaço, visibilidade e vez nesse entendimento filosófico.
Segundo Mondin, um “dom do nosso conhecimento que foi totalmente sublinhado pelo
pensamento moderno é a historicidade” (Rabuske, pg. 89).
Por historicidade, com referência ao conhecimento, entende-se a propriedade que ele
possui de ser profundamente marcado pelo selo do tempo. Por isso, asseverar a
historicidade do conhecimento não significa somente dizer que ele varie
objetivamente, segundo o período histórico ao qual o sujeito cognoscente pertence:
os conhecimentos do homem do século XX são diferentes dos do século XII ou do
século XVI. Essa influência da história é incontestável. Mas significa também e
sobretudo que o próprio poder cognitivo do homem sofre transformação interior.
Segundo os partidários da historicidade gnosiológica, o passado sedimenta-se no
sujeito cognoscente, plasma as suas faculdades cognitivas e influi, portanto, sobre
cada uma das suas atividades (Mondin, pg. 89).

De acordo com Mondin o homem moderno passa a adquirir consciência da sua


historicidade: o “pensamento clássico concebera o homem como um ser natural, dotado de
propriedades constantes e imutáveis como a natureza. O pensamento moderno rejeitou essa
concepção e pôs à luz o papel essencial que cabe à historicidade entre os elementos que
constituem o ser do homem.
“o aparecimento de tomada de consciência histórica é provavelmente a mais
importante das revoluções por nós sofridas depois do surgimento da época
moderna (grifo nosso). O seu alcance espiritual ultrapassa provavelmente a que nós
reconhecemos nas realizações das ciências naturais, realizações que visivelmente
transformaram a superfície física do nosso planeta. A consciência histórica que
caracteriza o homem contemporâneo é privilégio (ou talvez antes fardo) que não
foi dado a nenhuma das gerações precedentes (grifo nosso)” (Gadamer, Il
problema della conscienza storica, Guida, Nápoles, 1969, p.27 apud Mondin, pg. 90).

Para Rabuske, a consciência histórica é um fardo “enquanto está constantemente à beira do


relativismo.” Segundo este autor, o “filósofo tem, hoje, o trabalho penoso e interminável de
refutar o relativismo, admitindo a relatividade; de refutar o relativismo histórico, admitindo e
mesmo acentuando a historicidade. Fazendo isto, [...] recupera o prestígio da razão humana e
mostra aos homens a possibilidade de aumentar a confiança neles mesmos” (Rabuske, pg. 85).

Nota-se que o aspecto racional e a razão humana foram supervalorizados em notório


prejuízo de inúmeros outros aspectos. A própria razão humana fez evidenciar certos aspectos
mais objetivos, observáveis e mensuráveis do homem, colocando em segundo plano aqueles
aspectos mais sutis, complexos e subjetivos do homem. Com o tempo, a dificuldade da razão,

4 Nota deste autor: Rabuske se refere ao século XIX.


13
por si só em explicar e dar conta de explicar o homem enquanto fenômeno, enquanto ser, faz
despertar cada vez mais no pensamento filosófico a busca em outras direções, a exemplo das
mais recentes, como a Historicidade, a qual, de acordo com Rabuske, ao reinseri-la no
entendimento do homem, faz resgatar e reviver inclusive, a própria ‘razão’ que estava em
descrédito, porque agora não está mais sozinha nesses estudos.

5.1 O HOMEM PÓS-MODERNO E PÓS-HUMANO

Em 1935, Alexis Carrel pensava que: “A atenção da humanidade deve deslocar-se das
máquinas e do mundo físico para o corpo e a mente do homem, para os processos fisiológicos
e espirituais, sem os quais as máquinas e o universo de Newton e de Einstein não existiriam”
(pg.19). Não é difícil imaginar quantos avanços tecnológicos de lá para cá acentuaram a
necessidade dessa atenção, obviamente, sem o erro clássico extremista do monismo ou do
dualismo. Mesmo 87 anos após seus textos, parece corresponder e permanecer ainda em vigor
a visão que Carrel tinha do homem de sua época, com a visão de homem pós-moderno, com
todos seus avanços tecnológicos mas também com seus dramas, dilemas e dores existenciais:

“As pessoas, sobretudo as das classes inferiores, estão materialmente mais satisfeitas
do que nunca. Muitas, todavia, deixam pouco a pouco de apreciar as distrações e os
prazeres banais da vida moderna. Às vezes, sua saúde impede que continuem
indefinidamente com os excessos alimentares, alcóolicos e sexuais trazidos pela
extinção de toda disciplina. Além disso, essas pessoas são assombradas pelo medo de
perder seus empregos, economias, fortuna e meios de subsistência. Elas não são
capazes de satisfazer a necessidade de segurança existente em cada um de nós, e,
apesar das assistências sociais, continuam inquietas. Com frequência, aqueles que são
capazes de refletir tornam-se infelizes” (pgs. 42 e 43).

Analisando os principais problemas do homem do século XX, Rollo May já buscava


provocar reflexões e respostas sobre esse tema:
“Não há dúvida de que os sintomas descritos, em nossa época e em qualquer outra,
são infelicidade, incapacidade para tomar uma decisão referente ao casamento ou à
carreira, desespero generalizado, falta de objetivo na vida, e assim por diante. Mas o
que se encontra sob tais sintomas? Em princípios do século XX, a causa mais comum
desses problemas era o que [...] Freud [...] descreveu como a dificuldade em aceitar
o lado instintivo e sexual da vida e o resultante conflito entre os impulsos sexuais e
os tabus sociais. Mais tarde, na década de 20, Otto Rank escreveu que as raízes dos
problemas psicológicos da época eram os sentimentos de inferioridade, incapacidade
e culpa. Na década de 30, o foco do conflito psicológico alterou-se novamente: o
denominador comum era então, conforme indicou Karen Horney, a hostilidade entre
indivíduos e grupos, muitas vezes unida ao espírito competitivo (May, pg, 13).

Segundo este autor, “o problema fundamental do homem, em meados do século XX, é


o vazio, as pessoas estão vazias (May, pg.14).

Segundo Paula Sibilia, autora da obra ‘O Homem Pós-orgânico’ (2002), uma das
“características que melhor definem o homem é, precisamente, a sua indefinição: a proverbial
plasticidade do ser humano”.

“Não surpreende que tenha sido um renascentisa, Giovanni Pico della Mirandola,
quem teve a sorte de expressá-lo da melhor maneira: nas frases ardentes da sua
Oratio de Hominis Dignitate, cujos originais foram afixados com grande escândalo
nas portas da cidade de Roma. Corria o ano de 1486 e o jovem conde tinha
descoberto algo tão importante que não podia ser calado: o homem se revelava,
subitamente, como uma criatura miraculosa, pois a sua natureza continha todos os

14
elementos capazes de torná-lo seu próprio arquiteto. Há mais de cinco séculos, tal
sentença foi considerada uma gravíssima heresia, contudo, seu discurso não foi
esquecido. Pelo contrário, ele contribuiu para a inauguração de uma era que hoje
talvez esteja chegando ao fim: a do Homem” (Sibilia, pg. 9).

Carrel, May e Sibilia tem em comum a visão particular de um “homem tipicamente


renascentista”, que se redescobre e se coloca no centro da cena evolutiva após um período de
obscurecimento (idade média) em que ‘Deus’ e a religião até então ocupavam lugar de destaque
e que passa a depositar na ‘razão’ e faz da ‘racionalidade’ a nova e principal força
impulsionadora para renascer junto com uma nova ciência, para se estabelecer no mundo, capaz
de criar máquinas, de esquadrinhar o universo, que passa a guiar-se e guiar sua vida por uma
visão mecanicista e cartesiana. Um homem que, por ser dotado de razão, passou a julgar-se
superior às outras espécies e todos os problemas decorrentes desse movimento, inclusive os de
cunho psicológico e existencial para o próprio homem, que passa a apresentar diversos
“sintomas típicos de um homem moderno”, que luta pela sobrevivência, para consumir, para
tentar “ser”, para parecer, deixando aspectos de sua natureza íntima e espiritual esquecidas e
abandonadas, sem cuidado, sem atenção, o que o faz recair em “depressões”, “vazio
existencial” e diversos outros problemas relatados por este típico homem moderno que também
anuncia o seu fim. Sibilia portanto destaca uma era que pode estar prestes a acabar não porque
a espécie em si esteja ameaçada (aliás, fato que não deixa também de ser considerado
minimamente nos debates atuais dadas as profundas transformações ambientais globais e as
ameaças de convulsões sociais e guerras), mas principalmente porque este homem
renascentista confiou e apostou tudo na razão e no poder da sua ciência. Colocou elementos
abstratos como ‘intuição’, ‘fé’, ‘clarividência’, ‘telepatia’, ‘pressentimento’, a própria
‘religiosidade’ além de ‘sonhos’ e capacidade de imaginação em segundo e terceiro planos,
quando não os ignorou por completo, justamente por não serem objetivas e concretas, isto é,
por estarem fora do alcance dos métodos científicos de até então. Este homem, tocado pelo
sofrimento, pela dor e pelos dilemas existenciais próprios da vida moderna, passa, aos poucos,
a perceber o alcance, as limitações e fraqueza, enfim, a insuficiência da razão humana para
lidar com novos e típicos desafios de uma nova era que se anuncia e se impõe aos poucos, da
‘modernidade líquida’ numa expressão (e obra) do sociólogo e filósofo Zygmunt Baumann,
considerado um dos maiores intelectuais do século XXI, ficando progressivamente evidente a
necessidade de encontrarmos, na constituição do homem, nos seus caracteres e na sua essência
novos ou outros elementos capazes de atendê-lo e supri-lo nas suas necessidades e desafios de
hoje e do futuro que se anuncia. Além desses novos elementos, reforça-se a importância de
visões sintetizadas de tudo o que até aqui já produzimos e descobrimos sobre este homem,
evitando os equívocos e distorções clássicas do passado. Dilemáticos se tornam portanto não
só os caminhos humanos adotados para lidar com os problemas criados por uma visão
reducionista (ainda que importante – deste homem moderno que anuncia o fim de sua era), bem
como os novos que surgem decorrentes da dificuldade de compreensão e transição entre
épocas, tornando o processo ainda mais confuso para o homem, que se antes se deprimia por
não se reconhecer e se encontrar, agora se sente ansioso e inquieto dadas às profundas
transformações em todos os campos da vida humana em andamento e que fica, novamente,
sem saber as causas.

Para Harari, autor do best-seller ‘21 lições para o século XXI’, nós humanos
conquistamos o mundo graças a nossa capacidade de criar narrativas ficcionais e acreditar
nelas. “Somos, portanto, particularmente ruins em perceber a diferença entre ficção e
realidade (grifo nosso). Ignorar essa diferença tem sido para nós uma questão de
15
sobrevivência. Porque a coisa mais real no mundo é o sofrimento. Nesse sentido, o que importa
não seria encontrar então a resposta para o “sentido da vida”, mas a grande questão passa a ser
então “como acabar com o sofrimento?” (pgs. 374 e 375). Harari responde aconselhando: “...se
você quer saber a verdade sobre o universo, sobre o significado da vida e sobre sua própria
identidade, o melhor modo de começar é observando o sofrimento e explorando o que ele é”.
O historiador nos lembra que “a resposta não é uma história”, sendo portanto que a resposta
deve partir da realidade, sem ficções ou ilusões (pg.377).

Quando consideramos o pensamento acima de Harari notamos sua proximidade com o


entendimento do Zoólogo Desmond Morris, que apesar de analisar o homem na sua obra ‘O
Macaco Nu’ na perspectiva exclusivamente biológica, reforça seu desejo de ajudar a, primeiro,
fazer compreender que somos sim, seres animais e que a negação dessa realidade (e em tudo o
que isso implica) com uma possível sublimação ou idealização da nossa imagem tem nos
gerado muitos problemas e que, ao contrário, a aceitação irrestrita (sem ilusões, histórias ou
ficções sobre nós mesmos quanto a esse aspecto) nos ajudaria muito a evoluírmos
verdadeiramente, enquanto espécie humana.

Obviamente essa “negação da realidade biológica nua e crua” como Morris apresenta,
a ponto de nos comparar e nos aproximar dos símios na nossa natureza mais essencial, é apenas
uma faceta da percepção fragmentada que temos a nosso próprio respeito, podendo ser
atribuído a mais uma “ilusão” ou versão de história que contamos a nós mesmos, aquela na
qual ignoramos essa natureza. Considerar a natureza humana exclusivamente nesta perspectiva
corporal ou biológica, assim como considerá-la exclusivamente em qualquer outra, os estudos
e estudiosos estão a nos indicar, desde a ideia do monismo ou do dualismo, que é um erro
(típico de uma visão racionalista extrema). Ao contrário, encontrar formas de incluir e
considerar esta e todas as outras perspectivas numa síntese, sem promover fragmentações,
aceitando tudo o que implicar ser ‘homem’, isto é, nem só corpo, nem só espírito, mas um
encontro e conjunção de ‘espírito’ e de ‘corpo’, sem ilusões a nosso respeito, pode facilitar essa
compreensão.

Segundo Harari, o “gênero humano está enfrentando revoluções sem precedentes, todas
as nossas antigas narrativas estão ruindo e nenhuma narrativa nova surgiu até agora para
substituí-las” (pg. 319).

6. AUTO-CONHECIMENTO COMO CAMINHO

Harari questiona como é possível se preparar para um mundo cheio de transformações


e incertezas radicais e como educar as novas gerações para esse futuro?

“Por milhares de anos filósofos e profetas instaram as pessoas a conhecerem a si


mesmas. Mas esse conselho nunca foi mais urgente do que é no século XXI, pois
diferentemente da época de Lao Zi ou Sócrates, agora você tem uma séria
concorrência. Coca-Cola, Amazon, Baidu e o governo estão todos correndo para
hackear você. Não seu smartphone, nem seu computador, nem sua conta bancária –
eles estão numa corrida para hackear você e seu sistema operacional orgânico. Você
pode ter ouvido dizer que estamos vivendo numa era de hackeamento de
computadores, mas isso não é nem metade da verdade. A verdade é que estamos
vivendo na era do hackeamento de humanos. Se [...] você quiser manter algum
controle sobre sua existência pessoal e o futuro de sua vida, terá de correr mais rápido
que os algoritmos [...] e conseguir conhecer a si mesmo melhor do que eles conhecem
(Harari, pgs. 329 e 330).

16
Harari anuncia tendências que poderão ou não se confirmar, entretanto, não deixa de
levantar uma questão que parece novamente se impor dada não só à urgência, mas à sua
importância no passado, presente e futuro, ou seja, a necessidade ou relevância para a
humanidade e o homem em particular, em buscar se conhecer como forma de poder lidar com
os desafios existenciais em qualquer tempo.

May entendia que a “questão fundamental é de que modo o indivíduo, na percepção de


si mesmo e do período em que vive, é capaz, por intermédio de suas decisões, de alcançar a
liberdade interior e viver com integridade” (May, pg. 250).

“Seja na Renascença, no século XIII na França, ou no tempo da decadência romana,


fazemos parte de nossa época em todos os seus aspectos – guerras, conflitos
econômicos, ansiedades, realizações. Mas nenhuma sociedade “bem integrada” pode
agir pelo indivíduo, ou poupá-lo à tarefa de alcançar a autoconsciência e a capacidade
para tomar suas decisões de maneira responsável. E nenhuma situação mundial
traumática pode roubar-lhe o privilégio de fazer a opção final com respeito a si
mesmo, ainda que apenas para confirmar seu destino (May, pg. 250).

Harari por sua vez expressa opinião (ainda que controversa) e de certa forma
convergente à May, exceto por um ponto: opinião segundo a qual, na época atual e segundo a
amplitude e profundidade dos avanços e transformações que se anunciam para breve, a questão
da época se tornará sim determinante para o homem, diferentemente do que pensava May, ao
sugerir que:
“Observar a si mesmo nunca foi fácil, mas pode ter se tornado mais difícil com o
passar do tempo. À medida que transcorria a história, os humanos criaram narrativas
cada vez mais complexas sobre si mesmos, o que tornou cada vez mais difícil saber
quem realmente nós somos. Essas narrativas visavam a unir grande número de
pessoas, acumular poder e preservar a harmonia social. Foram vitais para alimentar
bilhões de pessoas famintas e assegurar que essas pessoas não degolassem umas às
outras. Quando pessoas tentavam observar a si mesmas, o que comumente
descobriam eram essas narrativas pré-fabricadas. Uma exploração em aberto era
perigosa demais. Ameaçaria solapar a ordem social. [...] Por mais alguns anos ou
décadas, ainda teremos escolha. Se fizermos esse esforço, ainda podemos investigar
quem somos realmente. Mas, se quisermos aproveitar essa oportunidade, é melhor
fazer isso agora” (pg. 388 e 389).

May encerra sua obra “O Homem à procura de si mesmo” com uma sugestão prática:
“a meta do homem é viver cada momento com liberdade, sinceridade e responsabilidade”
(pg.252). E de forma eloqüente nos lembra que:
“A liberdade, a responsabilidade, a coragem, o amor e a integridade interior são as
qualidades ideais, nunca perfeitamente realizadas por ninguém, mas constituindo as
metas psicológicas que dão significado ao nosso movimento para a integração.
Quando Sócrates descrevia a vida e a sociedade ideais, Glauco replicou: “Sócrates,
não creio que exista a Cidade de Deus em parte alguma da terra”. Ao que Sócrates
respondeu: “Se tal cidade existe no céu ou existirá um dia na terra, o sábio viverá à
sua maneira e não quererá saber de qualquer outra e assim colocará em ordem a sua
casa” (May, pg. 253).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Passando pelos “problemas conceituais e filosóficos” a respeito do homem, vê-se no


presente artigo a dificuldade, em todos os tempos, de definí-lo. O texto ensaia uma primeira
definição e logo identifica-se a necessidade de contar com o suporte fundamentado da

17
“antropologia filosófica” como forma de subsidiar os estudos e pesquisas sobre o objeto de
estudo (O Homem) na perspectiva filosófica.

Pode-se comprender a partir da pesquisa de diferentes perspectivas e definições, que o


próprio entendimento filosófico sobre estes termos se altera com a História da filosofia, nos
seus avanços e que, apesar de sua amplitude, ainda assim têm se mostrado com dificuldades
para sintetizar e responder à complexa e intrigante pergunta: “Quê ou Quem é o Homem?”,
porque o objeto de estudo também muda conforme os tempos e a partir dele (tempo).

Ao iniciar-se a pesquisa, o desejo era aprofundar a compreensão de como a “filosofia”


de um modo geral entende e interpreta o “homem” em seus múltiplos aspectos e diferentes
correntes ao longo de sua tradição filosófica. Particular interesse deste autor remetia as
pesquisas em direção à dimensão espiritual do homem: ‘Que contribuições teria a Filosofia
para proporcionar nesse sentido para além das religiões?’ O que encontrou-se foi muito mais
amplo e profundo do que a hipótese inicial. Propôs-se e avalia-se que foi atingido na pesquisa,
a intenção de investigar além das noções óbvias, por mais importantes que fossem, e alcançar
o homem nas noções poéticas, nas noções espirituais ou místicas. Os resultados encontrados
indicam não só um Ser com numerosas, vastas, complexas e intrincadas feições e que ao mesmo
tempo mostra-se, simples e único na condição de ‘homem’.

Conclui-se que o homem é o artífice único de ponte em condições circunstanciadas


únicas entre dois mundos e naturezas supostamente antagônicas, a material e a espiritual, mas
que formam apenas um único mundo e realidade! Pode-se admitir essas condições e buscar
viver, refletir e aprender com ela, sem ilusões e fantasias a respeito de si mesmo (na sua
integralidade e tudo o que isso implica: ser ‘homem’, ser humano!) ou pode-se se perder em si
ou para fora de si, em visões pouco ajustadas à realidade, ora mais em direção à essa natureza
material numa existência mundana (e limitada) ou ora mais em direção à sua natureza espiritual
(também limitada na condição atual de homem) e sem lastro, sem raízes e sem profundidade
com a vida no mundo e com tudo de belo e maravilhoso que a experiência humana pode
proporcionar.

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5ª Edição revista e ampliada. Tradução da 1ª


Edição Brasileira coordenada e revista por Alfredo Bosi. – São-Paulo-SP: Martins Fontes,
2007.

BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Tradução de Mauro Gama e Cláudia


Martinelli Gama. – Rio de Janeiro: Zahar, 2022.

CARREL, Alexis. O homem, esse desconhecido. Tradução, apresentação e notas de Evelyn


Tesche. – São Paulo: EDIPRO, 2016.

CASSIRER, Ernst. Antropologia Filosófica: Ensaio sôbre o homem: Introdução a uma filosofia
da cultura humana. Tradução do Dr. Vicente Felix de Queiroz. – São Paulo: Editôra Mestre
Jou, 1972.

FROM, Erich. Análise do homem. Tradução de Octavio Alves Velho. – São Paulo: Circulo do
Livro. [sem ano]

18
____. Ter ou Ser? Tradução de Nathanael C. Caixeiro. – Rio de Janeiro-RJ: Guanabara
Koogan, 1987.

GOULIANE, C.I. A problemática do homem: Ensaio de uma Antropologia Filosófica.


Tradução de Nathanael C. Caixeiro. – Rio de Janeiro-RJ: Paz e Terra, 1969.

HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século 21. Tradução de Paulo Geiger. – São Paulo:
Companhia das Letras, 2018.

HILL, Christopher S. Consciência. Tradução de Alzira Allegro. – São Paulo: Editora Unesp,
2011.

LUJIPEN, W. Introdução à Fenomenologia Existencial. Tradução de Carlos Lopes de Mattos.


– São Paulo: E.P.U. – Editora Pedagógica e Universitária Ltda, 1973.

MAY, Rollo. O Homem à procura de si mesmo. Tradução de Aurea Brito Weissenberg. – 33


ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 1972.

MONDIN, B. O homem, quem é ele?: Elementos de Antropologia Filosófica. 12ª Ed. Tradução
de R. Leal Ferreira e M. A. S. Ferrari. – São Paulo: Paulus, 2005.

MORRIS, Desmond. O Macaco Nu: Um estudo do animal humano. 12ª ed. Tradução de
Hermano Neves. – Rio de Janeiro: Record, 1993.

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Antropologia Filosófica Contemporânea: Subjetividade e


inversão teórica. – São Paulo: Paulus, 2012.

RABUSKE, Edvino A. Antropologia Filosófica: Um estudo sistemático. – Petrópolis-RJ:


Editora Vozes, 1986.

SCHELER, Max. A Posição do Homem no Cosmos. Tradução de Marco Antônio Casanova. –


Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

SIBILIA, Paula. O Homem Pós-orgânico: Corpo, subjetividade e tecnologias digitais. – Rio de


Janeiro: Relume Dumará, 2002.

SILVA, Ronaldo Miguel da (organizador). Raízes gregas da Filosofia Clínica. Caxias do Sul,
RS: EDUCS, 2016.

19

Você também pode gostar