Você está na página 1de 17

Oitavo Capítulo

O conceito tradicional de homem face a interpretação


de Heidegger ao pensamento calculador

Katieli Pereira

Introdução

No ano de 1927, ao lançar sua obra capital Ser e tempo, Mar-


tin Heidegger (1889-1976) surpreende a comunidade filosófica ao
propor novo olhar sobre a história das ontologias tradicionais,
apontando como a filosofia se anuncia e se desenvolve desde a
Grécia antiga até a modernidade, corroborando o esquecimento
de ser. Nesta perspectiva, ao constatar tal esquecimento, Heide-
gger propõe um projeto que retoma de maneira radical a pergunta
pelo sentido de ser, construindo um caminho de pensamento que,
em parte, visa a apreensão da estrutura essencial do único ente
que compreende ser: o humano.
Na acepção de Heidegger, a consideração originária da es-
sência do homem (Dasein) só é possível quando esta é perscrutada
a partir de sua relação com o ser e a verdade. Neste ínterim, Hei-
degger mostra que, ao promover o encobrimento da diferenciação
ontológica entre ser e ente, a filosofia nascida em solo grego deixa
como herança a impossibilidade de uma fidedigna elucidação da
constituição essencial humana. Com isso, surge a questão: como
procedem então as ontologias tradicionais ao pensar a essência do
homem? Uma hipótese de resposta a esta pergunta nos leva a pon-
derar que, ao buscar pela essência, as ontologias tradicionais ofe-
recem definições de características gerais a respeito da espécie hu-
mana, recaindo na objetivação do homem.
Heidegger indica que o modus operandi do pensamento
moderno, que busca por explicações objetivas e compreensíveis
para tudo, se origina ainda na Grécia com os sofistas, consoli-
dando-se na obra de Platão. Ao modo de pensar centrado no ente,
que objetifica seus elementos de estudo tornando-os passíveis de
Studium

medição, quantificação e controle, dá-se o nome de pensamento


calculador (rechnende Denken). Para Heidegger, o pensar forma
uma hierarquia, no topo desta encontra-se o pensamento originá-
rio e, abaixo, o pensamento calculador que está sempre a alimen-
tar expectativas ao contar com algo, subsistindo num horizonte
fixo que o impossibilita de transcender os seus limites. Esta forma
de pensar, por sua vez, vigora no seio da filosofia tradicional e,
atravessando a Idade Média se dissemina na modernidade, tor-
nando-se instrumento das ciências e, por conseguinte, infiltrando-
se também no senso comum. Ao perceber as consequências da vi-
gência do pensamento calculador na modernidade, Heidegger
aprofunda sua crítica demonstrando de que forma o esquecimento
do ser coloca em risco a essência humana.
Num primeiro momento deste capítulo, portanto, abarca-
remos a compreensão heideggeriana sobre a essência do homem,
buscando mostrar como as ontologias tradicionais se distanciam
deste modo de pensar. Num segundo momento, nos ateremos a
uma exposição mais apurada sobre o pensamento calculador e so-
bre como o modo de vigência das ciências e da filosofia colocam
em risco a essência humana.

Da observação heideggeriana sobre o esquecimento do ser

Lancemos a questão: o que é isto – o homem? E, pronta-


mente, nossa investigação tenderá à busca de definições que, de
algum modo, abarcam ideias gerais sobre a constituição essencial
da espécie humana. Vejamos: Platão, principal idealizador do du-
alismo, defende que o homem é um ser dotado de corpo e alma,
determinando a segunda como sua essência. Para Platão, a parte
superior da alma é a razão. No diálogo de Fédon, Sócrates afirma
que o corpo se constitui como uma barreira para atingirmos a ver-
dade, uma vez que as necessidades corpóreas ocupam o nosso
tempo, comprometem nossa razão e nos privam dos lazeres da fi-
losofia. Por conseguinte, para sabermos verdadeiramente alguma
coisa, a alma necessita separar-se do corpo. É neste sentido que,

142
Oitavo Capítulo

para Sócrates, a morte se apresenta como forma de libertação


(PLATÃO, 2002).
Já para Agostinho de Hipona, que subordina a Filosofia à
Teologia da era patrística, a essência humana é o amor. Todos os
Homens amam, mas o amor só é virtuoso quando respeita o juízo
divino. Na acepção do filósofo, o amor ideal é aquele que se apre-
senta enquanto charitas (caridade), ou seja, que está voltado para
si, para os homens e para as coisas do mundo em função de Deus.
Por outro lado, chama-se cupiditas (ambição) o amor autocen-
trado, voltado para utensílios e coisas mundanas que, por sua vez,
é imperfeito. Neste sentido, a verdade e a luz da razão são expres-
sas por Agostinho em termos de amor. Com efeito, o destino ter-
reno ou ultraterreno dos homens dependerá do peso de seu amor
(REALE, ANTISERI, 2005).
Na modernidade, quando a filosofia se liberta da Teologia
com a sublimação da razão, René Descartes revoluciona o pensa-
mento filosófico com a formulação do “cogito” e, como herdeiro
de Platão, reafirma que a constituição essencial do homem é a ra-
zão, uma vez que a existência do mundo material será sempre pas-
sível de dúvida, mas a dúvida enquanto tal não pode desprender-
se de si, pois se deixamos de duvidar, ora, é porque deixamos de
existir. Neste sentido, a teoria cartesiana propõe uma definição de
homem também pautada no dualismo: o homem é um ser consti-
tuído de corpo e alma, sendo o corpo relacionado ao mundo ma-
terial cuja natureza é a propriedade de extensão, e a alma relacio-
nada à existência espiritual, sendo sua natureza o pensamento
(SOUSA, LOPES, 2009).
Em síntese, os fragmentos teóricos destes ilustres pensado-
res representantes de sua época nos mostram que, desde os tem-
pos da Grécia clássica, muito se foi pensado a respeito da essência
humana e, embora haja divergências entre as teorias filosóficas,
grande parte delas concordam neste aspecto em especial: a essên-
cia do homem é a razão. Contudo, filósofos voluntaristas moder-
nos tais como Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche contes-
taram esta tese tradicional, caracterizando a constituição funda-
mental do homem como Vontade e Vontade de Poder. Ainda que

143
Studium

Heidegger não seja um voluntarista, também embarcou na esteira


desta corrente crítica, asseverando que toda a tradição metafísica,
ao pensar sobre a constituição essencial do homem, deixou legado
ao esquecimento uma questão fundamental: a pergunta pelo sen-
tido do ser (HEIDEGGER, 1979).
Ao meditar sobre tal esquecimento, Heidegger se debruça
sobre um projeto que visa a desconstrução da metafísica e a reto-
mada da pergunta pelo sentido do ser, dando início a elaboração
de uma ontologia fundamental, isto é, um estudo metódico sobre
o ente e a constituição de sua essência. A rigor, para adentrarmos
o caminho de pensamento que lança luz sobre as implicações do
esquecimento do ser homem, antes de tudo, é imprescindível to-
mar conhecimento da análise heideggeriana sobre como a filosofia
tradicional se anuncia e se desenvolve promovendo o esqueci-
mento do ser. Com o esquecimento do ser, o homem deixa de
compreender-se como aquele que atende ao apelo do ser e, por
conseguinte, fecha os olhos para a própria essência. Visto isso, fa-
remos a seguir um percurso sumário sobre o esquecimento do ser
na tradição filosófica.

A filosofia enquanto pensamento do ente

Em sua conferência Que é isto – a Filosofia? (1957), Heide-


gger medita sobre a questão enunciada. O termo “philósophos” de
philos (amor) sophón (sabedoria), portanto, amor a sabedoria,
surge com o pensador originário Heráclito, cujo sentido é comple-
tamente distinto do que se entende hoje por Filosofia. Embora seja
difícil traduzir o sentido originário deste termo para Heráclito,
Heidegger assevera que o “philósopho” era aquele que estava em
correspondência com o Lógos, o que significa estar em correspon-
dência com o todo do fenômeno. Analisar o todo quer dizer anali-
sar o fenômeno pela perspectiva do ser: o ente é no ser. Portanto,
o ente só pode ser perscrutado quando o fenômeno do ser se ma-
nifesta. Dito isso, cabe ressaltar que o thaumazein (espanto) era a
condição primeva para o pensar dos gregos originários: “[...] o es-
panto é a dis-posição na qual e para qual o ser do ente se abre. O

144
Oitavo Capítulo

espanto é a dis-posição em meio à qual estava garantida para os


filósofos gregos a correspondência ao ser do ente” (HEIDEGGER,
1979, p. 22).
O termo filósofos, com efeito, sofreu variações de sentido
na medida em que os gregos, sobretudo os sofistas, deixaram de
tender ao sophón, isto é, deixaram de contemplar com espanto a
manifestação do fenômeno do ser e passaram a aspirar, procurar
pelo sophón. Este aspirar é determinado pelo Eros, isto é, pelo de-
sejo de saber. Neste momento, surge a questão: que é o ente, en-
quanto tal? E assim, o pensamento torna-se Filosofia, quanto a
pergunta que considera tão somente o ente é colocada. Portanto,
a busca por respostas tornou supérfluo o espanto, o inserindo num
lugar de esquecimento. É por este motivo que Heráclito, Parmêni-
des, Tales de Mileto e os demais pensadores originários não são
considerados filósofos pelo prisma heideggeriano, mais do que
isso, estes são considerados os maiores pensadores: os pastores do
ser (HEIDEGGER, 1979).
Visto isso, na acepção de Heidegger, ao empreender uma
busca pela sabedoria e oferecer uma explicação compreensível
para tudo, os sofistas prepararam o primeiro passo para a Filosofia.
Contudo, “[...] o passo para a Filosofia, preparado pela sofística, só
foi realizado por Sócrates e Platão” (HEIDEGGER, 1979, p. 17). Só-
crates e seu discípulo Platão, ao perguntarem pelo ente enquanto
tal, conceberam ser tão somente enquanto simples presença: o ser
é a entidade do ente (HEIDEGGER, 1979). Assim, estes filósofos
encobriram a diferença fundamental entre o ser e o ente, fazendo
a pergunta pelo ser se apagar durante toda a história da filosofia,
ressurgindo somente mais de 2 milênios depois, na modernidade,
sob a luz do pensamento heideggeriano. O Ser não é nenhum ente,
enfatiza Heidegger, ser é um conceito indefinível e “[...] a indefi-
nibilidade do ser não dispensa a pergunta pelo seu sentido, mas
precisamente por isso a exige” (HEIDEGGER, 2012, p. 39).
Ao analisar o acontecimento histórico em que se deu o es-
quecimento do ser, Heidegger adentra a sua crítica, discorrendo
sobre as implicações de tal esquecimento. Para o filósofo, o pen-
samento que se atém ao ente, originado na filosofia socrático-

145
Studium

platônica é, em si, uma técnica, um “[...] processo de calcular a


serviço do fazer e operar. Nesse processo já se toma o cálculo em
função e com vistas à práxis” (HEIDEGGER, 1995, p. 26). Isto
ocorre devido a necessidade de a filosofia justificar sua existência
diante das ciências, ou seja, para não perder sua importância e ser
julgada irrelevante, a filosofia, principalmente na modernidade,
persegue o modo de fazer e operar científico, atendo-se à lógica e
a exatidão técnico-teórica dos conceitos. Para Heidegger, pelo
contrário, o elemento essencial do pensar é o ser, uma vez que “[...]
o rigor do pensamento se edifica na medida em que seu dizer per-
manece, exclusivamente, no elemento do ser e deixa vigorar a sim-
plicidade de suas múltiplas dimensões” (HEIDEGGER, 1995, p. 27).
É por este motivo que, quando interpelada pela pergunta “o
que é isto – o homem?” a tradição filosófica se insere numa dinâ-
mica de buscas por definições de um traço substancial intrínseco
a espécie humana. Não obstante, para Heidegger, só alcançaremos
alguma reflexão originária sobre a essência humana quando nos
dispusermos a analisá-la a partir de sua relação com o ser e a ver-
dade, cuja natureza é constantemente mutável e, por isso, não
prontamente acessível a nós (HEIDEGGER, 2012).
Neste sentido, “[...] nem a animalidade, nem a racionali-
dade, nem o corpo, nem a alma, nem o espírito, nem todos eles
juntos são suficientes para conceber a essência do homem de ma-
neira inicial” (HEIDEGGER, 2007, p. 146), uma vez que o ser ho-
mem não pode ser definido a partir da soma dos modos de ser de
alma, corpo ou espírito. Ao elaborar uma reflexão sobre a essência
do homem partindo de tais terminologias, a filosofia, de maneira
não intencional, dispensa a reflexão ontológica originária acerca
de tais termos, recaindo na coisificação do ser humano (HEIDE-
GGER, 2012). Heidegger diverge, assim, da tradição filosófica ao
propor a questão do sentido do ser, projetando um novo olhar em
que destaca a importância de definir rigorosamente a constituição
fundamental do ente que compreende ser, a saber, o homem, o
único com condição de produzir uma ontologia. Portanto, elabo-
rar a questão do ser significa tornar transparente o ser humano. A

146
Oitavo Capítulo

isso Heidegger designou a sua analítica existencial, como forma de


investigação que examina a experiência do ser-aí (Dasein).
O ser-aí é o que configura a constituição essencial do existir
humano. Ser-aí é um estar aberto para a coisidade, é um poder-ser
e um poder-compreender as significações daquilo que a ele se
apresenta (HEIDEGGER, 2009). É neste sentido que Heidegger as-
severa que o ser humano, em sua essência, não pode ser pronta-
mente definido. O ser humano, em sua essência, se constrói de
acordo com as possibilidades existenciais na medida em que se re-
laciona com o ser. Para resumir em termos claros: a essência do
ser homem é a existência (HEIDEGGER, 2012).
Neste interim, após a abertura de um caminho que redire-
ciona a maneira de pensar o ser homem, o analisando com vistas
à existência, ao poder-ser, Heidegger prepara, na obra Ser e tempo,
o próximo passo da analítica existencial, empreendendo um es-
tudo onde se debruça sobre os possíveis modos de ser do homem,
denominados existenciais. Se o ser-aí é um ente marcado pelo po-
der-ser e nada sendo para além da dinâmica da existência, logo,
não possui uma sustância que predetermine a sua natureza. Por-
tanto, entende-se por existenciais as estruturas componentes do
ser-aí que só se realizam existindo (HEIDEGGER, 2012). A exemplo
disso, é possível afirmar que o ser-aí só existe no tempo e no es-
paço, sendo a temporalidade e a espacialidade componentes fun-
damentais de sua estrutura. Além disso, o ser-aí existe no mundo
e partilha este com outros entes, por isso é ser-no-mundo e ser-
com-os-outros. Em síntese, não nos cabe aqui uma análise ampla
dos existenciais, mas tão somente a sua caracterização sumária, no
intuito de determinar que o que constitui o ser-aí se fundamenta
na existência e prescinde de qualquer elemento que o transcenda
(como substância, essência inteligível ou categorias a priori).
Visto isso, partiremos agora para a análise heideggeriana de
um dos possíveis modos de ser do homem, que se reflete e se di-
funde amplamente na modernidade: o modo de ser da pesquisa
científica, o modo de ser próprio da ciência.

147
Studium

Do esquecimento do ser homem nas ciências e suas implica-


ções na modernidade

Em 2 de novembro de 1964, durante um seminário aos ou-


vintes de Zollikon, Heidegger enuncia que:

Quanto mais naturalmente nos sentirmos familiarizados no


mundo das representações das ciências naturais, tanto mais es-
tranha é a reflexão que fazemos sobre os fenômenos do espaço,
da temporalidade, do homem e da causalidade (HEIDEGGER,
2009, p. 55).

Tal como vemos a partir da citação, diante do domínio pla-


netário conquistado pelo modo de fazer e operar característico do
pensamento científico moderno, que submete ao princípio da ra-
zão e da causalidade todas as outras formas de saber, tais como a
filosofia, a política, a educação etc., Martin Heidegger se vê na ur-
gência de questionar a essência do pensamento científico. Visto
isso, o filósofo destaca que, embora existam consideráveis distin-
ções entre a ciência antiga e a moderna, a essência de ambas se
origina na filosofia grega clássica, sobretudo no pensamento de
Platão e Aristóteles. Por esse motivo, para compreendermos o do-
mínio global empreendido pela vontade de conhecer caracterís-
tica da ciência moderna, faz-se necessário entabular um diálogo
fecundo com os pensadores gregos, analisando como a ciência se
anuncia e evolui em seu modo de operar a que Heidegger deno-
mina pensamento calculador (HEIDEGGER, 2018).
Mas, afinal, o que é a ciência? Partindo do ponto de vista
científico, propor uma definição única e objetiva a este tema é uma
tarefa bastante complexa, visto que filósofos da ciência tendem a
discordar de tais delimitações e encará-las como incompletas.
Ainda assim, deixando de lado as preocupações epistemológicas e
atendo-se aos elementos básicos da ciência enquanto disciplina,
considera-se a seguinte definição geral: “[...] um conjunto de des-
crições, interpretações, teorias, leis, modelos etc., visando ao co-
nhecimento de uma parcela da realidade, em contínua ampliação

148
Oitavo Capítulo

e renovação, que resulta da aplicação deliberada de uma metodo-


logia especial” (FREIRE-MAIA, 1995, p. 24).
A ciência moderna, nesse sentido, seria, então, um con-
junto de elaborações do real que, por intermédio de teorias e apre-
ensão de leis naturais, intervém sobre uma representação de rea-
lidade. Na conferência Ciência e pensamento do sentido, minis-
trada por Heidegger em 1953, o filósofo afirma que “a ciência é a
teoria do real” e, em seguida, explora os termos real e teoria medi-
ante o resgate dos significados dessas palavras desde a Grécia clás-
sica até a Idade Moderna. Para Heidegger, o exercício etimológico
é importante para que se compreenda o contexto de significações
em que as palavras se desdobram no decorrer da história (HEIDE-
GGER, 2018). Visto isso, resgataremos com Heidegger a origem se-
mântica das palavras real e teoria, para compreendermos como a
Ciência opera mediante o pensamento calculador e se dissemina,
incidindo na coisificação do homem. Segundo Heidegger (2018), o
único termo capaz de traduzir fidedignamente o que os pensado-
res gregos pensavam como “real” é vigência, cujo significado origi-
nário é “[...] a duração daquilo que, tendo chegado a desencobrir-
se, assim perdura e permanece” (HEIDEGGER, 2018, p. 43). No en-
tanto, a palavra vigência sofreu uma série de transmutações, so-
bretudo desde a tradução romana, onde passou a ser pensada
como operatio, operação.
A partir desta mudança, ao real foi atribuído o caráter de
resultado de um feito, isto é, resultado de uma operação, surgindo
pela primeira vez à luz da causalidade. Mediante essa e outras evo-
luções da etimologia do termo, o real surge no início da Idade Mo-
derna como sinônimo de certo, seguro e factual, oposto a tudo o
que não pode firmar-se em certeza. Uma das características ele-
mentares do real é a objetividade, visto que na modernidade o
modo de vigência do real busca pela objetivação dos seus elemen-
tos de investigação (HEIDEGGER, 2018).
Em relação a teoria, na frase “a ciência é a teoria do real”,
cabe ressaltar que esta nasce da composição de dois étimos gregos,
cujo sentido originário é “o perfil em que alguma coisa é ou se
mostra”, ou seja, o modo de representação do vigente e a forma

149
Studium

como ele se apresenta. Os romanos, todavia, traduzem teoria por


contemplari, adquirindo uma significação completamente distinta
da originária, pois contemplari, do latim, que dizer “separar e di-
vidir uma coisa num setor e aí cercá-la e circundá-la” (HEIDE-
GGER, 2018, p. 46). Os alemães traduzem contemplari por Betra-
chtung, que significa observação ou consideração. Deste termo ad-
vém a expressão trachten, que quer dizer prender, aspirar a algo
ou, em outras palavras, perseguir uma coisa e dela apossar-se
(HEIDEGGER, 2018).
Diante de tais esclarecimentos, entende-se, portanto, que a
teoria é uma elaboração do real que dele se apodera para construir
a sua própria narrativa. Como bem postulado por Heidegger, “a
ciência põe o real” e, por isso, é absolutamente intervencionista,
pois dispõe de um conjunto de métodos e operações que provoca
e domina o real para alcançar efeitos previsíveis (HEIDEGGER,
2018). Neste ponto, é importante assinalar que quando o pensa-
mento se afasta do elemento do ser e se transforma em teoria,
deixa de ser originário e passa a tão somente a proceder por cálcu-
los. Para demonstrar tal fato, Heidegger recorda uma frase outrora
escrita pelo renomado físico moderno Max Planck, que sustentava
que “real é o que se pode medir”. Esta afirmação ressalta um dos
aspectos essenciais do modus operandi da ciência moderna: a cal-
culabilidade. A ação de calcular não se reduz a operação com nú-
meros, pois abrange toda forma de observação, consideração e ex-
pectativa de alcançar efeitos previsíveis mediante a aplicação de
leis e métodos deliberados que ensejam resultados exatos e obje-
tivos. A este ato de interpretação próprio da teoria do real, Heide-
gger denomina pensamento calculador (HEIDEGGER, 2018).
Ao compreendermos como emerge e se desenvolve o pen-
samento calculador, possibilitamos uma compreensão mais clara
do esquecimento do ser homem na modernidade. Vejamos: o pro-
jeto científico-natural, tal como é, não tem a pretensão de analisar
o homem com vistas à sua essência, pois o método projetado pelas
ciências só pode observar o homem como ente natural, o subme-
tendo a um processo de objetificação teórico-técnico. O fato é que,
para as ciências, o método científico-natural é absolutamente

150
Oitavo Capítulo

adequado, pois os efeitos do método não têm necessariamente um


compromisso com a verdade 1, mas sobretudo um compromisso
com a exatidão e domínio da natureza, cuja ambição é torná-la útil
e passível de calculabilidade (HEIDEGGER, 2009). Com efeito, se
o método científico-natural impossibilita uma análise mesmo que
incipiente sobre a essência humana, como atuam a antropologia,
a psicologia e a biologia que, enquanto ciências do homem, recor-
rem ao método científico-natural para produzirem conheci-
mento?
No parágrafo §10 de Ser e tempo, Heidegger assevera que as
investigações tradicionais sobre a essência humana não possibili-
taram uma compreensão verdadeira do problema, pois para atin-
gir tal compreensão, é necessário recorrer à ontologia. Ao insistir
no erro de pensar a essência humana frente ao método científico-
natural, as ciências voltadas ao homem nunca se aproximarão de
colocar corretamente a questão que pergunta pela essência, que é
de caráter filosófico, tampouco chegarão a uma resposta (HEIDE-
GGER, 2012). Com isso, ainda que haja diferenças no método de
investigação, na elaboração das teorias e nos resultados alcança-
dos, as ciências humanas tendem a construir uma rede epistemo-
lógica que adentra um caminho sem saída no que tange à compre-
ensão da verdadeira essência do homem, devido à falta de funda-
mentos ontológicos.
Se para Heidegger a essência humana é poder-ser, logo se-
ria um erro supor que a essência do homem reside numa coisa –
ou estaria o homem no espaço tal como um objeto como o copo?
Obviamente não. E é neste sentido que o ser humano se distingue
dos demais entes presentes na natureza, pois exige uma constitui-
ção essencial própria. Nas palavras de Heidegger, “[...] à essência
da pessoa pertence ao existir somente na execução dos atos inten-
cionais; e, assim, ela, por essência, não é objeto” (HEIDEGGER,
2012, p. 155).

1
Na perspectiva ontológica, a verdade só pode ser vislumbrada na medida em
que se desvela o ser do ente em sua particularidade. Portanto, embora os resul-
tados das pesquisas científicas sejam exatos e corretos, não necessariamente são
verdadeiros (HEIDEGGER, 2009).

151
Studium

Quando o homem é submetido a condição de objeto pela


análise científica, cria-se uma representação conceitual deste que
impede a captação de suas múltiplas dimensões. Isto ocorre pois,
ao observarmos o homem como apenas mais um ente natural, tor-
nando-o um fenômeno passível de mensurabilidade de processos
espaço-temporais, por exemplo, deixamos de vislumbrá-lo em sua
singularidade e passamos a analisá-lo com vistas a uma represen-
tação geral. Às representações gerais dá-se o nome de conceito. Os
conceitos são representações necessárias às ciências:

Para o físico é um horror o fato de que a linguagem de uma ciên-


cia do homem, como também, por exemplo, a da poesia, tenha
que ser ambígua. Ele acredita que a inequivocidade dos concei-
tos seja uma exigência para qualquer ciência. Entretanto, esta
opinião só é correta caso se acredite no dogma de que o mundo
seja totalmente mensurável e que o mundo mensurável seja a re-
alidade verdadeira. Esta concepção nos força em direção ao de-
senvolvimento sinistro que está se delineando, segundo o qual
não se pergunta mais quem e como é o homem; em vez disso ele
é representado a priori a partir da manipulabilidade técnica do
mundo (HEIDEGGER, 2009, p. 181).

É imprescindível esclarecer que o “a priori” na citação


acima refere-se ao modo moderno de conceber os entes, dentre
eles o “ente humano”. Essa ideia se origina na teoria kantiana de
que o homem é sujeito, constituído por corpo e faculdades inte-
lectuais necessárias para a viabilização do conhecimento. Em
suma, essas faculdades são: sensibilidade, que permite a captação
e assimilação dos objetos; e entendimento que, após a captação e
assimilação, permite ao sujeito conceituar os objetos de acordo
com representações categoriais como espaço, tempo, quantidade
e qualidade. Nesse sentido, o homem é sujeito constituído por ca-
tegoriais que antecedem sua experiência com o mundo, ou seja,
categorias que vem a priori. Heidegger, por sua vez, pensa o ho-
mem como ser-aí: não há categorias que constituam o ser-aí, pois
este se manifesta na imanência, enquanto está sendo (HEIDE-
GGER, 2009).

152
Oitavo Capítulo

Além disso, a crença na inequivocidade dos conceitos por


parte da ciência-natural demonstra o dogmatismo desta área do
saber, pois uma vez alcançada a ideia geral do ente, este torna-se
inquestionado – é isso que Heidegger quer dizer quando declara
que não se pergunta mais quem e como é o homem –. Por isso, a
linguagem científica lida constantemente com preconceitos e re-
presentações irrefletidas. Essas representações e preconceitos não
são indagados pelas pessoas que os defendem, pois, contempora-
neamente, a ciência tomou tamanha proporção que se deposita
nela confiança de que seja a única detentora da verdade, tor-
nando-se a nova religião (HEIDEGGER, 2009). A proposta de Hei-
degger com a fenomenologia visa a construção de um caminho de
pensamento no qual o olhar que pensa deve manter-se aberto ao
fenômeno, abstendo-se de conclusões intrínsecas ao pensamento
calculador. A intenção desta proposta, no entanto, não é criar fi-
lósofos, mas tornar as pessoas atentas àquilo que não é pronta-
mente acessível.

Vivemos numa época estranha, singular e inquietante. Quanto


mais a quantidade de informações aumenta de modo desenfre-
ado, tanto mais decididamente se amplia o ofuscamento e a ce-
gueira diante dos fenômenos. Mais ainda, quanto mais desme-
dida a informação, tanto menor a capacidade de compreender o
quanto o pensar moderno torna-se cada vez mais cego e trans-
forma-se num calcular sem visão (HEIDEGGER, 2009, p. 109).

Este “calcular sem visão” é o que nos distancia daquilo que


hoje nos falta: o pensamento do sentido. Pensar o sentido é dife-
rente de tomar consciência de algo, isto é, diferente de vislumbrar
os entes com clareza objetiva, buscando uma utilidade. Pensar o
sentido tem uma essência diferente também do conhecimento for-
mal, adquirido em instituições de educação, pois estes se cons-
troem com referências em modelos e ideais comuns. Pensar o sen-
tido, diz Heidegger, é caminhar na direção daquilo que é digno de
ser questionado, retornando ao lar mediante a retomada do cami-
nho do nosso acontecer histórico, admitindo a inutilidade daquilo

153
Studium

que se pensa e reconhecendo que é esta inutilidade que não se


deixa contabilizar (HEIDEGGER, 2018).
Enquanto homens, só podemos existir na base da diferen-
ciação ontológica, visto que pensar o sentido do ser é o que nos
distingue dos demais entes. Portanto, ao nos aprofundarmos cada
vez mais no pensamento que calcula, ignorando a nossa diferen-
ciação, abandonamos a nossa essência, colocando-a em perigo
(HEIDEGGER, 2018). É preciso pensar nas consequências deste
abandono: o que será de um futuro em que os valores dos entes
serão calculados com vistas à sua utilidade? De um futuro em que
a natureza e o homem não serão mais do que objeto de explora-
ção? De um futuro em que o comportamento humano será calcu-
lado em tabelas de vantagens? O que será de um futuro onde o
homem será analisado e explorado tal como se explora um pedaço
de madeira?
Por fim, cabe ressaltar que retomar a pergunta pelo sentido
do ser não significa abandonar as ciências ou negar o progresso
científico. Significa, sobretudo, estabelecer uma relação livre com
as ciências, meditando sobre seu papel e seus limites ao que con-
cerne a humanidade, resgatando o que nos há de mais valioso: a
nossa própria história e o pensamento autêntico.

Considerações finais

Numa passagem da obra Seminários de Zollikon, Heidegger


promove uma meditação que expressa preocupação na crença pre-
tenciosa da Ciência como única detentora da verdade. Ao se dirigir
a um grupo de representantes das ciências psíquicas, Heidegger
alerta que o domínio processador das ciências recai numa análise
de homem que fala em termos calculistas e pouco reflexivos. Com
efeito, para o filósofo, aquele que quiser conservar alguma reflexão
a fim de ajudar pessoas psiquicamente enfermas, deve compreen-
der os limites da verdade científica.
Esta passagem em especial, apresentada no seminário de 8
de julho de 1965, foi decisiva para um primeiro passo rumo a ela-
boração deste capítulo. Ao expor com primazia tal pensamento,

154
Oitavo Capítulo

Heidegger abre caminhos para uma problematização: se a concep-


ção de homem vigente na modernidade se abriga no seio do do-
mínio processador das ciências, de que outra forma pode-se vis-
lumbrar um entendimento de homem? A busca de respostas para
esta pergunta abre caminhos para uma série de perspectivas. No
que concerne ao pensamento heideggeriano, a compreensão mo-
derna de homem origina-se na filosofia grega clássica, portanto,
seria impreciso tratar sobre a questão sem recorrer as ontologias
tradicionais que deram origem ao modo de pensar calculador vi-
gente em nossa época.
Ao debruçar-se sobre o estudo da origem do pensamento
calculador, é notável a importância de abordar o acontecimento
que incidiu sobre o esquecimento do ser na história das ontolo-
gias. A partir do esquecimento do ser, preparado na obra de Pla-
tão, nasce uma nova forma de pensar designada teoria, centrando-
se exclusivamente no ente. Deixando de atender ao apelo do ser,
filósofos se aventuraram na busca de respostas para a constituição
essencial do ente homem a partir de definições gerais de “natureza
humana. Com isso, tomando o homem objetivamente, como um
ente entre outros, ignoraram o que nos há de peculiar e o que nos
diferencia dos animais e dos demais entes: a existência como po-
der-ser.
O homem é o único ente que existe, pois ultrapassa a reali-
dade simplesmente presente e objetiva, tendo como condição fun-
damental inúmeras possibilidades. Por isso que, ao propor uma
análise do único ente que compreende ser, Heidegger a define
como analítica existencial, por centrar-se nos existenciais, nos mo-
dos de ser que constituem a existência humana. A apreensão da
essência humana, transcendendo o âmbito da objetivação que re-
duz o homem a uma coisa simplesmente presente, torna possível
apreender aquilo que é peculiar à condição humana e que a dis-
tingue dos demais entes.
Cabe ressaltar, por fim, que a elaboração de uma crítica ao
pensamento calculador não tem por finalidade negar ou vilipen-
diar a importância das ontologias tradicionais e da ciência, mas
aclarar os limites da verdade científica, possibilitando, assim,

155
Studium

fundamentá-la rigorosamente. Para além desse aspecto, aprender


a pensar com Heidegger, mantendo o olhar atento ao fenômeno,
é permitir a abertura de caminhos que resgatem a pluralidade dos
modos de vigência do ser, possibilitando ao homem uma formação
mais crítica e autêntica.

Referências

FREIRE-MAIA, N. A ciência por dentro. Petrópolis: Vozes, 1995.

HAAR, M. Heidegger e a essência do Homem. Trad. Ana Cristina Alves.


Lisboa: Instituto Piaget, 1990.

HEIDEGGER, M. A questão da técnica. In: Ensaios e conferências. Trad.


Emanuel Carneiro Leão Petrópolis: Vozes, 2018.

HEIDEGGER, M. Ciência e pensamento do sentido. In: Ensaios e confe-


rências Trad. Emanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Vozes, 2019.

HEIDEGGER, M. Nietzsche, vol. II. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio


de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

HEIDEGGER, M. Que é isto – A Filosofia? In: Os Pensadores. Tradução


e notas de Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

HEIDEGGER, M. Seminários de Zollikon. Trad. Gabriella Arhhold; Ma-


ria de Fátima de Almeida Prado. Petrópolis: Vozes, 2009.

HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Trad. Fausto Castilho. São Paulo: EdUni-


camp; Petrópolis: Vozes, 2012.

HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback.


Petrópolis: Vozes, 1988.

HEIDEGGER, M. Sobre o humanismo. Trad. Emanuel Carneiro Leão.


Rio de Janeiro: Editora Biblioteca Tempo Universitário, 2012.

PLATÃO. Fédon In: Diálogos. São Paulo: Editora Cultrix, 2002.

156
Oitavo Capítulo

REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia: Patrística e Escolástica.


São Paulo: Editora Paulus, 2005.

SOUSA, M. H. F. de; LOPES, I. C. Descartes e um novo fundamento


para a verdade. Revista Homem, Espaço e Tempo. Vol. 3, n. 2, 2009. Dis-
ponível em: https://rhet.uvanet.br/index.php/rhet/article/view/70.
Acesso em: 11 de julho de 2021.

ZARADER, M. Heidegger e as palavras de origem. Trad. João Duarte.


Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

157

Você também pode gostar