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INSTITUTO AGOSTINIANO DE FILOSOFIA

SEMINÁRIO AGOSTINIANO NOSSA SENHORA APARECIDA

O PERSONALISMO DE KAROL WOJTYLA – UMA SÍNTESE PELAS OBRAS


“PERSONA Y ACCIÓN” E “EL HOMBRE Y SU SENTIDO”.

Síntese apresentada à Disciplina Seminário de Filosofia Cristã do Curso de


Filosofia do Instituto Agostiniano de Filosofia, como requisito parcial para
composição de nota da referida disciplina ministrada pelo Prof. Me. Fr. Afonso
de Carvalho Garcia

Lucas Emanuel Souza Melo

No turbulento século XX, um dos mais sanguinários e desumanos momentos da história


apertou a mão da mais ávida e determinada defesa do ser humano, as duas guerras mundiais,
bem como o holocausto nazista. Essa situação fomentou que uma das questões mais importantes
para a filosofia deste século foi a pergunta sobre o ser humano, por quem é e qual é o sentido
de sua existência. Vários filósofos pensaram essas questões e diversas foram as visões
antropológicas que ofereceram.

Entre as diferentes teorias filosóficas desse século, algumas tomaram como núcleo de
sua reflexão a compreensão do ser humano como pessoa, dando origem assim ao que se
denominou como “personalismo”. O personalismo propõe uma compreensão da pessoa através
de uma fundamentação da responsabilidade do sujeito e uma explicação de sua situação no
mundo, de sua inserção na sociedade e de sua ação na história. É nesse contexto que está
inserido Karol Wojtyla, que teve uma vasta produção, cunhando seu sistema personalista.

A obra de Wojtyla gira em torno da compreensão do ser humano, que existe um esforço
cognoscitivo:

“pode ser que o problema consista em que o homem está a espera de uma nova
e profunda análise de si mesmo, ou melhor, o que é muito mais importante, de
uma síntese sempre nova, e isso não é fácil de conseguir. Depois de haver
conquistado tantos segredos da natureza, o mesmo conquistador necessita, uma
vez mais, que se desvelem ininterruptamente seus próprios mistérios. Na
ausência de uma análise definitiva, o homem deve buscar sempre uma
expressão nova – mais madura – de sua natureza”. (WOJTYLA, 2011, p. 25)

Além desta necessidade de conseguir um maior conhecimento de si mesmo, para o


filósofo polaco existem outros dois motivos que incidem na conveniência de estudar o ser
humano: evitar que a cotidianidade, devida à prioridade da experiência do eu, acabe em rotina,
e fomentar que o ser humano não perca seu lugar no mundo. Ao afirmar isso, Wojtyla pretende
responder “aos problemas mais existenciais do homem no mundo contemporâneo.”
(WOJTYLA, 2011, p. 27)

É necessário e oportuno enfrentar o estudo do ser humano para oferecer uma correta
compreensão deste ser peculiar. Isto requer superar as divisões que prevaleceram durante um
período de tempo e abordar o estudo do homem unido a uma perspectiva objetiva e subjetiva.
Só deste modo se pode alcançar o irredutível no homem, o que constitui sua originalidade
própria: seu ser pessoa, sua subjetividade ou “ser sujeito”.

O ponto de partida da visão de homem que Wojtyla oferece é a experiência do ser


humano que atua. A adoção deste ponto de vista parece óbvia a ele, já que esta é a experiência
mais rica entre todas as experiências e sempre acompanha qualquer outra. Wojtyla define assim:
“quando falamos da experiência do homem, nos referimos, fundamentalmente, para o fato de
que em sua experiência o homem tem que enfrentar-se consigo mesmo; quer dizer, entra numa
relação cognoscitiva com seu próprio eu.” (WOJTYLA, 2011, p. 3)

Wojtyla trata da consciência, levantando polêmica com outros fenomenólogos que


identificam o sujeito com a consciência. Para o autor, porém, a consciência é apenas uma função
intelectual do homem derivada do conhecimento. Portanto, o homem não se identifica com sua
consciência. Para Tomás de Aquino, o ato humano (Actus humanus) é sempre um ato voluntário
que já pressupõe a consciência. Wojtyla acrescenta a noção de "dinâmica" ao ato humano,
analogicamente tirando do plano metafísico a ideia de "dinamismo" do ato de ser.

Sem absolutizar a consciência, o autor afirma que requer um lugar próprio de estudo
(sobre gêneros) Seguindo a análise fenomenológica, Wojtyla enumera duas funções da
consciência: espelhar o autoconhecimento e formar a experiência vivida. A primeira função
consiste na reflexão do conhecimento objetivo apresentado pelo autoconhecimento que irradia
conhecimento. O segundo, por outro lado, é o que permite viver interiormente como si mesmo,
isto é, viver como sujeito de seus atos e de suas próprias experiências vividas.

Assim, a análise da consciência manifesta a espiritualidade do homem, visto que a


consciência é de natureza intelectual. Além disso, a consciência vincula o homem à esfera
moral, pois o homem tem consciência de ser o autor de seus atos e assume uma atitude de
sensação e avaliação sobre eles. A consciência, portanto, permite que o homem não apenas seja
consciente da moralidade de seus atos, mas também de vivê-la com autenticidade. Graças à
consciência, o autor afirma que tanto o ato como os valores morais pertencem objetivamente
ao sujeito real - o homem.
Para ele, a eleição da experiência humana como ponto de partida do estudo da pessoa se
deve a que o homem se mostra fenomenicamente em sua ação, como “pessoa em ação”. A
experiência de uma ação é sempre a experiência de uma pessoa, já que “a ação revela a pessoa,
e olhamos para a pessoa através de sua ação” (WOJTYLA, 2011, p. 12). A experiência do
homem em ação, especialmente nas ações morais, que só podem ser realizadas por um agente
moral ou pessoal, é a melhor forma de obter um conhecimento vasto e profundo da essência da
pessoa. Daí a estreita união da ética e da antropologia e sua complementariedade, o que
demonstra a profunda unidade do ser humano, porque desde “o ponto de vista dinâmico ou
existencial, podemos dizer que a pessoa está na origem dos valores morais bem como em seu
resultado final” (WOJTYLA, 2011, p. 15). Apesar dessa união, Wojtyla se detém no estudo do
homem atuando, deixando em segundo plano a ética, que pressupõe a pessoa.

O ato é sempre sinal da pessoa, já que implica intencionalidade e deliberação, e como


tal pode ser utilizado como fonte de conhecimento desta. Assim, Wojtyla inverte a postura
clássica, operari sequitur esse, sem desqualificá-la, mas tratando de completá-la, porque não se
trata de negar que a pessoa é o fundamento das ações humanas, senão de conhecê-la tomando
como ponto de partida suas ações: “nos ocupamos da interpretação ontológica da pessoa através
da ação enquanto ação. ‘Por interpretação ontológica’ entendemos uma interpretação que
manifesta que é a realidade da pessoa.” (WOJTYLA, 2011, p. 33)

Wojtyla estuda com atenção as dimensões do ato humano como ato consciente, do que
se tem consciência, e como ação eficiente. De todo este estudo, o que mais se destaca é sua
insistência em não aceitar um papel absoluto da consciência, o que o diferencia das abordagens
modernas, e mostra a raiz aristotélico-tomista de seu pensamento:

a consciência reflete as ações humanas à sua própria maneira – o reflexo forma


parte de sua mesma natureza intrínseca -, mas não objetiva cognoscitivamente
nem as ações, nem a pessoa que as realiza, nem sequer todo ‘o universo da
pessoa’, que, em um outro sentido, está relacionado com o ser e atuar do
homem. (WOJTYLA, 2011, p.43)

Por outro lado, ele considera que esse estudo da pessoa desde seus atos se baseia no
autoconhecimento e na auto posse, e que isso não significa nem um ficar encerrado em si mesmo
nem um objetivar o “eu”:

a função do autoconhecimento se opõe a toda consideração egoísta da


consciência, a toda abordagem que pode tentar apresentar a consciência (ainda
que apenas de forma indireta) sob a forma do “eu puro” (o sujeito). O
autoconhecimento não tem tampouco nada em comum com um conhecimento
objetivador que se ocupa do eu abstrato e generalizado, com nenhuma forma
de “eulogia”. O objeto do autoconhecimento é o eu concreto, o eu enquanto
tal. (WOJTYLA, 2011, p. 49)
O conhecimento do ser pessoal se adquire desde a experiência de sua ação, desde o
autoconhecimento que tem de si mesmo como ser concreto, dotado de uma grande riqueza e de
uma dinamicidade, que se integra em uma unidade e cujo conhecimento se vai expressando e
forma de conhecimentos progressivamente mais gerais, mas sempre referentes ao eu e não ao
homem em geral.

A autoconsciência ou autoconhecimento permite ao homem experimentar sua própria


subjetividade, porque o ajuda a formar a experiência do homem e mostra-lhe suas ações como
próprias. Sem este autoconhecimento, o homem não seria subjetividade ou não se constituiria
como sujeito, mas não é para ser real ou concreto por causa do papel da consciência. Sua tese
a esse respeito é muito fluida:

a consciência, em sua união íntima com o ser e atuar baseados na realidade


ôntica do homem-pessoa concreto, não absorve em si mesma nem obscurece a
este ser, a sua realidade dinâmica, senão que, pelo contrário, a descobre “desde
dentro”, e, por isso, a revela em sua diferença específica e correção singular.
(WOJTYLA, 2011, p. 57)

Wojtyla observa que nem tudo o que acontece no homem tem um reflexo na consciência.
Assim, ele distingue as duas estruturas de dinamismo operacional da abordagem
fenomenológica. Como ele destaca, na filosofia clássica isso está representado através das
noções de ato e potência, mas o que realmente se exige é alcançar uma diferenciação adequada
entre esses dois tipos de ações para poder entender em seu caráter específico o que é a ação
humana, a que revela a pessoa. A passagem da potência para o ato implica um certo tornar-se
do homem.

Para Wojtyla a diferença pode ser estabelecida tomando como ponto de partida a
experiência, que mostra que a diferença reside na eficácia, já que “ao atuar, tenho a experiência
de mim mesmo enquanto agente responsável desta forma concreta de dinamização de mim
mesmo enquanto sujeito” (WOJTYLA, 2011, p. 81). A experiência da pessoa em ação é, pois,
a do sujeito como agente ou como causa consciente de sua própria causalidade. Isso mostra o
sujeito como origem de seu atuar e como aquele que mantém a existência, tornar-se e ser do
efeito, pelo qual a pessoa se desvela como sujeito moral e responsável.

Na experiência de atuar, o homem percebe ao mesmo tempo sua imanência e sua


transcendência em relação à sua ação, assim como sua própria “criação”, pois “o homem se
forma a si mesmo com sua atuação” (WOJTYLA, 2011, p. 86). Agora, então, isso há de ser
entendido com bom senso, já que Wojtyla aceita o princípio aristotélico-tomista, que afirma
que existe um fator ontologicamente subjacente (suppositum) como condição da ação: o sujeito
como ser está embaixo e serve de suporte a toda ação, a sua estrutura dinâmica própria.

Embora a ação humana não faça o ser humano ser, o torna o que realmente é, isto é, dá
origem à moralidade e a torna boa ou má. A esta característica da pessoa Wojtyla denomina
“autodeterminação”, o que mostra a auto posse, característica distintiva do ser pessoal, pois “só
pode ser pessoa quem esteja em posse de si mesmo e seja, ao mesmo tempo, sua própria, única
e exclusiva posse” (WOJTYLA, 2011, p. 124). Isso acontece assim porque as ações humanas
não desaparecem sem mais, mas deixam um rastro de sua passagem, por sua realidade
existencial, no próprio sujeito que as executou e o definem moralmente. Portanto, a pessoa é o
único ser que se realiza na ação e esta capacidade de autorrealização põe em relevo uma
característica ontológica da pessoa: sua potencialidade ou seu não ser plenamente em ato, sua
contingência. Assim, a liberdade é uma propriedade da pessoa que lhe permite autodeterminar-
se, converter-se em boa ou má, criar-se a si mesma ou constituir-se enquanto homem, fazer-se
“alguém” no plano pessoal-ético, não no ontológico,

Essa liberdade manifestada na autodeterminação é, por sua vez, a maneira de acessar ao


conhecimento de outra característica da pessoa: sua transcendência, já que “a pessoa
‘transcende’ suas ações por que é livre e apenas na medida em que é livre” (WOJTYLA, 2011,
p. 161). Essa transcendência está vinculada para Karol à estreita relação da liberdade com os
transcendentais, à submissão da liberdade à Verdade. Isto é, a liberdade não é ilimitada, não
cria normas morais, mas as descobre, o que não a priva de criatividade, pois “o papel criativo
da consciência consiste no fato de que configura as normas, dando-lhes essa forma única e sem
paralelo que adquirem dentro da experiência e realização da pessoa” (WOJTYLA, 2011, p.
192). A verdadeira autorrealização reside no sentido da obrigação, na forma em que a aceitação
da obrigação modifica a autodeterminação.

O homem, por ser livre, é responsável por suas ações e é responsável perante outra
pessoa, perante alguém. Isso abre as portas para a comunidade, para a relação com outras
pessoas, pois o homem é responsável perante si e perante os outros. Isso ele chama de
“participação” e a explica como uma dimensão dotada de dois sentidos: “em primeiro lugar,
como propriedade da pessoa expressando-se na capacidade de conferir uma dimensão pessoal
(personalismo) ao próprio existir e fazer quando o homem existe e faz em comum com os
outros; em segundo lugar, a participação, se entende como relação positiva à humanidade dos
outros homens, entendendo-se a humanidade não como ideia abstrata de homem, mas –
conforme o ponto de vista que é próprio deste estudo – como o eu pessoal é, em cada caso,
único e irrepetível” (WOJTYLA, 2001, p. 73).

A este respeito indica que o primeiro sentido de participação incide no primado do


sujeito pessoal em detrimento da comunidade. Só atendendo à relação de perfeição do homem
na e graças à comunidade (seu ser e atuar junto com o outros) se explica a alienação, como seu
oposto. Mas o fundamental é a pessoa, já que a comunidade é a unidade de uma multiplicidade,
que pode ser definida como a relação, o vínculo e a unidade social experimentados na
consciência e na vida dos sujeitos individuais.

Na comunidade, é preciso estabelecer uma diferença entre a dimensão interpessoal, “eu-


tu”, e a dimensão social, “nós”. A primeira relação se reduz a dois seres pessoais e vai de mim
para outro eu, que é, para Wojtyla, o tu:

O ‘tu’ é ‘outro eu’ distinto de mim. Pensando e dizendo ‘tu’, eu expresso uma
relação que de algum modo se projeta fora de mim, mas que ao mesmo tempo
retorna também a mim. O ‘tu’ não é só a expressão de uma separação, mas
também a expressão de uma unidade. Nessa expressão está contida sempre a
delimitação clara de um entre muitos outros. (WOJTYLA, 2001, p. 81).

Além disso é uma relação reflexiva, pois retorna ou volta ao eu de onde partiu, e
complementar, porque para o tu, o eu é também um tu e só assim é uma verdadeira experiência
interpessoal. E mais, “nesta reversibilidade da relação (não ainda necessariamente na
reciprocidade, ou seja, na contrarrelação “tu-eu”) está contido o momento da constituição
específica do ‘eu’ humano através da relação com o ‘tu’.” (WOJTYLA, 2001, p. 83)

O tu ajuda o eu a afirmar-se, a aperfeiçoar-se ou autodefinir-se moralmente e, por isso,


não só não tira o eu de sua subjetividade, mas o enraíza mais em si mesmo, alcançando assim
uma experiência de sua própria subjetividade e do outro como um si mesmo. Tanto o eu como
o tu estão constituídos e se definem por sua auto posse e autodomínio, mas em sua presença
mútua cada um permite que o outro capte sua transcendência e sua aspiração al
aperfeiçoamento. Daí nasce “uma responsabilidade recíproca da pessoa pela pessoa.”
(WOJTYLA, 2001, p. 89)

A dimensão social, “nós”, se refere a uma multiplicidade composta de pessoas, que


expressa uma relação acidental para cada um de seus membros, mas que oferece uma base de
juízo de todos eles, pois mostra que existem e fazem em comum. O que define a comunidade,
o “nós”, é a existência de um bem comum e isto abre uma nova dimensão de realização. Para
Wojtyla só em uma comunidade social que se constitui sob a referência do bem comum e atende
à transcendência da pessoa “se pode vislumbrar no “nós” humano a autêntica comunio
personarum” (WOJTYLA, 2001, p. 99). Conseguir que isso se dê, que a comunidade se
estabeleça desse modo, é tarefa do ser humano.

Apesar de o ponto de partida ser a pessoa em ação e que a intersubjetividade retorna ao


eu favorecendo seu aperfeiçoamento, isso não significa um solipsismo, porque “essa
subjetividade não encerra o homem em si mesmo, não faz dele uma mônada impenetrável, ao
contrário, o abre de uma maneira particular à outra pessoa. Se pode e se deve ver na participação
– tanto na dimensão interpessoal da comunidade “eu-tu”, como na dimensão social do “nós” –
uma autêntica expressão da transcendência pessoal e sua confirmação subjetiva na pessoa”
(WOJTYLA, 2001, p. 102). A participação é, portanto, a experiência do outro eu enquanto
pessoa, outra pessoa.

A intersubjetividade é, pois, abordada desde a experiência da pessoa em ação junto com


outros, que é o que do que se aproxima do personalismo propriamente dito. Em outros termos,
a preocupação de Wojtyla pelas diferentes filosofias personalistas e seus temas pertence ao que
se conhece como a terceira etapa de seu pensamento, que segue à publicação de sua obra mestra,
Pessoa e Ato. O ponto de vista que Wojtyla escolhe para o retorno ao homem como pessoa na
obra Pessoa e Ato é o da autodeterminação da pessoa no agir. Wojtyla estuda o agir como o que
revela o homem, não o contrário. A eleição deste ponto de vista é o que distingue seu
pensamento, desde a origem, de todos os demais fenomenólogos do humano.

Para ele o homem atua junto com os outros porque é um ser comunitário, um ser que
existe com outros seres humanos. Mas essa dimensão não é a originária, visto que depende da
estreita relação que existe entre a pessoa e sua ação:

Somente contando como a base dessa relação fundamental, qualquer fato de


agir junto com outras pessoas adquire seu devido significado humano. Esta é a
sequência básica, que não se pode inverter nem deixar de lado, e esta é a
sequência que temos seguido em nossas investigações. (WOJTYLA, 2011, p.
307)

Isto é, para Wojtyla o estudo na natureza social segue o estudo da pessoa, pois apenas
se explica desde a natureza da pessoa e não o inverso. Como ele mesmo afirma, seu estudo é
uma ontologia da pessoa, que trata de compreender e conhecer desde a experiência a ação
humana, e que é definida ontologicamente como sujeito subsistente, como ser, que se
autorrealiza na ação, que deste modo tem um valor personalista. Nesse sentido, a pessoa se
define como autogoverno e auto posse, não como abertura absoluta à alteridade. Por isso
Wojtyla é muito consciente de que seu estudo da pessoa não rechaça a abordagem tradicional,
mas que a pensa novamente a partir de uma perspectiva complementar.
Ele afirma ainda muito claramente que não é possível dar prioridade à relação com
outras pessoas como modo de conhecimento da pessoa:

O autor – depois de examinar os argumentos a favor e contra – se afirma na


opinião de que um conhecimento adequado do sujeito em si mesmo (da pessoa
através da ação) abre o caminho a uma mais profunda compreensão da
intersubjetividade humana; na realidade seria totalmente impossível
estabelecer a devida proporção na compreensão da pessoa e de suas
interrelações com outras pessoas sem categorias como as da auto posse e
autogoverno. (WOJTYLA, 2011, p. 316)

A intersubjetividade ou atuar junto com outros tem sua raiz na autodeterminação, e só


por ela é possível o dom gratuito:

na experiência da autodeterminação, a pessoa humana se nos revela como uma


singular estrutura de auto posse e autodomínio. O um e o outro não significam,
porém, um enclausuramento da pessoa para o exterior. Ao contrário, tanto a
auto posse quanto o autodomínio revelam uma particular disponibilidade ao
“dom de si”, ao dom desinteressado. Somente o que se possui pode também
doar-se e dar-se inteiramente. (WOJTYLA, 2001, p. 183)

Apesar de a intersubjetividade não ser primária, é vista por Wojtyla como altamente
positiva, sempre que entendida adequadamente, já que permite que o homem alcance seu
desenvolvimento próprio e intrínseco. Esse é um direito inalienável da pessoa, que se
desenvolve e autorrealiza em sua ação com os outros. A correta compreensão da
intersubjetividade ou participação requer uma visão do bem comum como fundamento das
autênticas comunidades humanas, de tal forma que se possa evitar o individualismo e o
totalitarismo ou “anti individualismo”, cuja raiz é comum, e reside em uma identificação do
bem humano com o bem individual entendido de modo excludente. Só em uma comunidade
baseada na participação o ser humano pode se desenvolver plenamente, pois este é o sentido da
solidariedade humana.

Devido à mesma capacidade de participação, o homem espera que, nas


comunidades baseadas no bem comum, suas próprias ações sirvam à
comunidade e a ajudem a manter-se e enriquecer-se. Nas condições
estabelecidas de acordo com esse modelo axiológico, ele terá o prazer de
renunciar ao seu bem individual e sacrificá-lo pelo bem-estar da comunidade.
Como este sacrifício corresponde à capacidade de participação que é inerente
ao homem e como esta capacidade lhe permite autorrealizar-se, não é
‘contrário à natureza’.” (WOJTYLA, 2011, p. 330)

Por fim, Wojtyla não vê como incompatível a identidade e a alteridade, tal como se
define desde a filosofia aristotélico-tomista: o homem é sujeito de ações, sujeito que se
experimenta como pessoa em ação com outros e a partir disso acolhe a experiência dos outros.
O homem é um ser responsável, um ser que atua e que ao atuar alcança seu aperfeiçoamento, é
um ser responsável por suas ações e irá responder por elas. Todas as suas ações devem ser
balizadas pelo amor, e Wojtyla descobre o mandato evangélico: amarás. Esse mandato não diz
apenas “amarás”, mas adiciona “ao próximo como a ti mesmo”. Só este amor permite abrir-se
ao próximo: “a significação do sistema de referência ao próximo é fundamental, porque este
sistema ultrapassa qualquer outro sistema de referência que exista em uma comunidade humana
e o supera por seu alcance, simplicidade e profundidade.” (WOJTYLA, 2011, p. 344)

REFERÊNCIAS

BURGOS, Juan M. La filosofia personalista de Karol Wojtyla. Madrid: Palabra, 2007.


DAMASCENA, Francisco A. A consciência e a autoconsciência moral na realidade
dinâmica da pessoa humana segundo Karol Wojtyla. 1997. Dissertação para licença.
Pontifício Ateneo Regina Apostolorum - Faculdade de Filosofia.
SILVA, Paulo C. A antropologia personalista de Karol Wojtyla: pessoa e dignidade no
pensamento de João Paulo II. Aparecida: Ideias e Letras, 2005.
WOJTYLA, Karol. El hombre y su destino. 4. ed. Madrid: Palabra, 2005. Tradução nossa.
WOJTYLA, Karol. Persona y acción. 2. ed. Madrid: Palabra, 2011. Tradução nossa.

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