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Editor
Edson Manoel de Oliveira Filho
Gerente Editorial
Sonnini Ruiz
Produção editorial
Willi am C. Cruz
Preparação de texto
Lucia Leal Ferreira
Revisão de texto
Lucas Cartaxo
Capa e projeto grdfico /diagramação
Mauricio Nisi Gonçalves/ André Cavalcante Gimenez
Pré-impressão e impressão
Edições Loyola
LOUS
LAVELLE
APR.ESENTAÇÃO À EDIÇÃO BR.ASILEIR.A
R.ODRJGO PETR.ONIO
PR.EFÁCIO
MICHELADAM
TRADUÇÃO
LAR.A CHR.ISTINA DE MALIMPENSA
REVISÃO TÉCNICA
CAR.LOS NOUGUÉ
Sumário
Prefácio
por MichelAdam . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
PREÂMBULO
1. O mal
1.O escândalo do mal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
2.A alternativa entre o bem e o mal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42
3.O mal e a dor ............................................. 44
4.O uso da dor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46.
5.A injustiça . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48
6.A maldade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50
7. A definição do mal . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52
8.A opçãofundamental . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . 53.
2. O sofrimento
1.Descrição da dor . . . . . . . 65. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. ... . . . . . . . . .. 91
1. A separação
1.A célula secreta ........................................... 95
2.O risco da solidão ......................................... 96
3. O contato entre duas solidões ............................... 98
4.A solidão da impotência e da infelicidade ................... 101
5.A solidão do livre-arbítrio ................................ 104
2. A união
1.A consciência aberta ..................................... 107
2.A saída de si ............................................ 109
3. A independência entre os seres ............................112
4.A realização recíproca .................................... 114
5.O despojamento do individual ............................. 116
3. A influência
1.A presença de todo pura .................................. 119
2.O prestígio .............................................. 122
3. A influência individual ...................................124
4.A influência interindividual ............................... 126
5.A influência transindividual .............................. 128
8 1 O Mal e o Sofrimento
Escritos não por acaso no final da década de 1940, estes dois
ensaios surgiram junto com a conclusão daquele que é considera
do o opus magnum de Lavelle: La Dialectique de l'éternel présent,
em quatro tomos: De l'Être (1928 ), De l'Acte (1937), Du Temps et de
l'Eternité (1945), De l'Âme Humaine ( 1951 ). E também se situam
cronologicamente no período de desenvolvimento de suas obras
mais representativas, como La dialectique du monde sensible: Lu
perception visuelle de la profondeur (1921 ), La conscience de soi
(1933),1 La présence totale (1934),2 EErreur de Narcisse (1939),3
Le Mal et la Souffrance (1940), La Parole et l'Écriture (1947), e Les
puissances du Moi (1948). Além desse aspecto de maturidade de
seu pensamento, estes ensaios são marcados por um forte traço
autobiográfico. Logo nas primeiras linhas, concentram-se so
bre o problema da guerra, na qual Lavelle lutou. Marcam assim
não apenas o atestado de uma época como também insinuam
um pano de fundo autobiográfico. Autoconsciência e história se
cruzam. Além disso, temos aqui, como nas outras obras, a prosa
primorosa e límpida de Lavelle, um dos grandes estilistas do pen
samento metafísico do século XX.
Logo no início, Lavelle conduz o leitor a uma inflexão inespe
rada: a guerra não seria uma exceção ao funcionamento da vida.
Seria um ponto culminante de uma estrutura ontológica do hu
mano, enraizada no problema do mal. Não se trata de minorar o
sentido do conflito. Trata-se de pensar o conflito como algo da es
sência humana e da presença real do mal no mundo. A partir des
sa condição temporal, Lavelle parece sinalizar a própria condição
ambivalente do mal. Não é possível pensar o bem sem recorrer à
força contrastante de seus antípodas. Da mesma maneira, a dor
e as manifestações físicas do mal são o modo mesmo pelo qual
a consciência se apodera de si mesma e dota a vida de sentido e
valor. Nesse ponto surge um tema nuclear, desmembrado em di
versas variações: a solidão.
1 O 1 O Mal e o Sofrimento
também real. Caso não houvesse esse nível de distinção, as es
colhas não poderiam dar origem a nenhuma determinação de
valor, ou seja, consciência e moral se desvinculariam. No cer
ne desse movimento, pode-se superar tanto o dualismo moral
quanto o metafísico, à medida que o mal possui uma realidade
na mesma medida em que essa realidade se apresenta de modo
dialético e até mesmo paradoxal. Ao reconhecer essa estrutura
do mal, Lavelle faculta ao espírito a capacidade de transcendê-lo.
Por outro lado, Lavelle também reconhece muitos e dadivosos
bens no mal. Um deles, e um bem primordial, é o de introduzir na
carne o sofrimento. Apenas pela marca temporal da finitude a subs
tância da consciência consegue se singularizar. Deixa de ser uma
consciência intencional de algo e passa a ser uma consciência exis
tencial de alguém, como Lavelle demonstra nos argumentos finais,
sobre a passagem da individualidade para a interindividualidade e
desta para a transindividualidade, no seio da qual emerge a catego
ria de pessoa.A liberdade nesse sentido não está em um regresso ao
estado de natureza, que é em si mesmo decaído. Como diz Lavelle, a
inocência, depois de perdida, não pode ser recuperada, mas apenas
superada. A inocência da natureza e a da criança são sempre ne
gativas. Ela consiste em um estado no qual o espírito ainda não se
conformou a seu objetivo, pertence a uma idade anterior à cisão do
bem e do mal, e, portanto, anterior ao nascimento da consciência.
A natureza como natureza não pode ser confundida com a simplici
dade da substância divina, que não nos é nunca dada, mas proposta
e conquistada mediante atos da vontade e do espírito.
Como se sabe, em sua fenomenologia do ser e do nada, Sartre
concebe a experiência da natureza como uma experiência de
desintegração. A nadificação constitutiva da consciência, que
intenciona objetos à medida mesma que objetivada por outras
consciências, abre-se diante dos abismos infinitos de uma natu
reza em desintegração. Não é possível reconciliação entre o em
-si e o para-si das consciências, pois ambas se desdobram como
duas paralelas que não se tocam no infinito. A tentativa de trans
parência da consciência diante de si mesma e dos outros redun
da em má-fé, porque nenhuma consciência pode superar em si
a opacidade estrutural da própria atividade conscienciológica.
12 1 O Mal e o Sofrimento
Há, todavia, na obra de Lavelle uma dimensão ligada à esfera do
reconhecimento, e que confere à dinâmica de espelhamento das
consciências um lugar extremamente central em sua argumen
tação. A teoria do reconhecimento é uma das bases da fenome
nologia de Hegel. Em Lavelle, o reconhecimento adquire nuances
em relação à matriz hegeliana. Não se trata da assimilação das
singularidades e particularidades ao regime universal do Espírito.
A materialidade da dor demarca um corpo físico sobre o qual a
dor incide. O problema do mal moral se refrata na consciência real
de uma consciência encarnada. Nem corpo nem consciência se
mostram nestes ensaios de Lavelle como dimensões puramente
racionais ou formais das etapas de autorrealização do Absoluto.
São resíduos não assimiláveis a um sistema e à totalidade, a não
ser como mediação de ser a ser, em cadeia infinita.
Por outro lado, mesmo sabendo-se que a noção de sujeito em
Hegel engloba tanto a dimensão empírica quanto a conceituai e a
real, nestes ensaios de Lavelle as diversas atitudes que possamos ter
diante do mal e do sofrimento apenas em termos superficiais dizem
respeito a problemas da esfera subjetiva. Elas sempre têm suas raízes
em uma região ontológica que antecede a divisão dos papéis e das
máscaras sociais. A luta, presente em Hegel como força motriz da
negatividade constitutiva da dialética das consciências, surge aqui
mitigada, como pano de fundo da manifestação difusa do mal, do
sofrimento e da dor, paradoxalmente necessários à emergência mes
ma da consciência. Os desempenhos psicológicos de indivíduos não
esgotam o campo fenomênico da interação das consciências entre si.
São apenas um epifenômeno de uma atividade mais primitiva.A dor
faz a consciência descer até essa região antepredicativa e é por meio
da dor que chegamos à essência indissociável do valor. Para Lavelle
esse movimento não é uma queda - é uma ascensão. No limite, esse
movimento ascendente é o que poderíamos chamar de comunhão.
Vicente Ferreira da Silva, talvez o primeiro e um dos mais brilhantes
leitores de Lavelle no Brasil, aproximaria essa comunhão à experiên
cia do amor, única capaz de superar a negatividade das consciências
em suas trocas e buscas por reconhecimento.4
4 Vicente Ferreira da Silva, Obras Completas, vol. 1: Dialética das Consciências, vol. 2:
Lógica Simbólica:, vol. 3: Transcervllncia do Mundo. São Paulo, É Realizações, 2009-1O.
14 I O Mal e o Sofrimento
tornar-se não apenas a consciência intencional de algo, mas a
consciência moral de um valor. Nesse espaço de interioridade
universal no qual o universo se torna uma imensa interioridade,
perfeição e solidão se comunicam, se interpenetram e se supe
ram. Por quê? Porque esse é o lugar propício para a abertura
ontológica mais primitiva. É o espaço mesmo no qual as cons
ciências tocam o espaço-tempo da intersubjetividade. Apenas
mediante a autolimitação fornecida pela consciência da solidão
que o ser-individual consegue tocar o ser-todo. A irredutibilida
de de cada consciência disposta para si é o campo de abertura
para a consciência rumo à totalidade do mundo.
Toda escala do ser ocorre em mediações e intermediações
mútuas. A inteligência abre essas possibilidades de comunicação
entre todos os seres, comunicação essa que em sua expressão má
xima pode ser entendida como comunhão e como a integralidade
não cindida de toda a atividade consciente. Nessa teia de realiza
ções intencionais e perceptivas, a perfeição de todos os seres se
desdobra em uma coevolução e em uma contínua cocriação. Esse
movimento cocriativo não visa a um telos que se realiza como
consumação de uma obra, no sentido de Hegel. Está mais próxi
mo da noção de evolução criadora de Bergson, de quem Lavelle
foi aluno. Nessa conectividade dos seres, o ex tremo da riqueza é
o extremo da pobreza, porque a abertura ao mundo emerge justa
mente no ponto mais agudo do despojamento.
O acesso à totalidade conferido a um ser só ocorre mediante o
contato desse ser com outro ser, ou seja, em escaladas e espirais.
Os seres humanos se mantêm separados à medida mesma que se
conhecem a si mesmos e mesmo assim permanecem incapazes
de promover o salto que os lança à substância idêntica que os une
para além das separações fenomênicas. Nesse momento, rom
pem-se as células e esferas secretas da permanência nas quais
os seres permanecem enredados em si mesmos. A mediação mú
tua dos seres em relação a si mesmos assume o sentido de uma
transindividualidade. O resultado desse encontro que suspende
a solidão é a abundância infinita. Nesse espaço do espírito, per
tencemos àquela intimidade do redondo, de que fala Bachelard.
O interior e o exterior se superam como categorias antinômicas.
Rodrigo Petronio
Graduado em Letras Clássicas (USP), mestre em Ciência da
Religião (PUC-SP) e em Teoria da Literatura (UERJ). No douto
rado, pesquisa a interface entre Teoria da Literatura e Filosofia.
16 1 O Mal e o Sofrimento
PREFÁCIO
Louis Lavelle era originário de Lot-et-Garonne. Cf. Louis Lavei/e, Actes du Colloque
lnternational d'Agen. Société Académique d'Agen, 1987.
Convida a uma reflexão sobre experiências que são característi
cas de toda existência: o sofrimento do corpo e a provocação do
mal no mundo, assim como o encontro com outrem, que é sempre
uma aventura, fracasso ou enriquecimento, aprimoramento da
pessoa ou condenação a um retraimento em si.
Rapidamente se notará a valorização de uma abordagem que
torna este livro tão generoso e tão cativante. Os autores contem
porâneos, diante da hostilidade do mundo, comprazem-se em
atitudes negativas. A preocupação heideggeriana e a angústia
sartriana serão completadas pelo absurdo de Camus. O esnobis
mo da derrelição invadia o mundo intelectual e determinava uma
moda à qual muitos sucumbiam. Era bom chamar a atenção para
a própria existência e recusar à vida qualquer sentido positivo,
diante da invasão imperialista da infelicidade. Rapidamente se
constatará que Lavelle nos remete à nossa liberdade. Em vez de
sucumbir à aflição, convém assumir a responsabilidade por si
mesmo, para poder afirmar-se. Longe de bloquear a sensibilidade
e as consciências, de paralisá-las, o mundo hostil deve incitar ao
desenvolvimento de uma potência criadora. Constata-se, então,
que é por meio dela que eu me constituo, que minha vocação se
revela a mim. Em vez de me resignar, de me deixar engolir pela
infelicidade, proponho à sociedade em que vivo um exemplo de
superação e um estímulo a seguir essa mesma atividade. Diante
da hostilidade do mundo - e ao contestá-la -, minha liberdade se
tornou uma liberdade real (p. 104).
Diante da miséria do mundo - investida de minha reflexão -,
a vida interior ganha tanto em profundidade quanto em intensi
dade, e a liberdade entra em vigília. É nessa experiência sensível
que eu constato: para não ceder ao desespero, é preciso dar à alma
força e luz. O mundo deixa de ser um espetáculo indiferente: é
a ocasião de um enfrentamento em que as provações incitam à
afirmação de si e dos outros (p. 32). O mal do mundo, que convoca
minha ação, transforma-se em enunciação do bem. A consciência
cessou de considerar exclusivamente o mal; minha liberdade po
derá regenerar o mundo, que parecia ocasião, pela infelicidade que
expressava, de uma vontade má. Minha vitória sobre o mal im
pregnou o real de uma significação espiritual. Essas observações
18 I O Mal e o Sofrimento
filosóficas podem ser complementadas, aliás, por uma referência
à própria realidade do mal da guerra, por meio das anotações fei
tas por Lavelle durante sua experiência de soldado e de prisionei
ro.2 A possibilidade da luta contra o mal se revela em nós por meio
desse sofrimento que nos permite vislumbrar uma vida interior
que, como percebemos pouco a pouco, é a verdadeira vida.
A constituição da riqueza existencial me conduz à riqueza da
vida espiritual. Assim, leremos em nós a primazia da existência
sobre a afirmação de nosso ser. É assim que, em seu grande livro
De l'Acte [Do Ato], de 1937, Lavelle afirma que a existência prece
de a essência. Por meio dessa valorização da existência, envolve
o homem na ação alegre. Então o mal não está no dado, no real,
mas no querer. O mal que encontro é algo por superar, e não uma
limitação de meu ser. O sofrimento, por exemplo, é sentido na sen
sibilidade; mas, se me refiro, de modo complementar, ao espaço
em mim onde se expressam a vontade e a liberdade, constato que
estou na presença de uma experiência espiritual. Em vez de ser
restringido e humilhado por esse mal que me obceca, torno-me o
princípio de uma assunção dessa infelicidade. Posso afirmar-me
como princípio de vida em meu espírito, porque ele confere ao
mal uma significação e faz dele um obstáculo por vencer.
***
2Louis Lavelle, Carnets de Guerre: 1915-1918. Québec, Le Beffroi; Paris, Les Belles
Lemes, 1985.
Prefácio l 19
distração. Torno-me o foco de uma existência autônoma (p. 97).
Descubro que depende apenas de mim solicitar aquela fonte viva
que existe em mim para então assumir minha responsabilidade
de ser eu mesmo. A ferida do sofrimento e a decepção do isola
mento me mostram que existe um lugar íntimo que é realmente
meu, o lugar de minha atividade espiritual. É em meu ser que en
contro o princípio de minha atividade espiritual. E não será para
me comprazer nela, mas para participar da dinâmica íntima, que
ela me revela.
Assim, é no momento em que poderia sentir-me fraco, no mo
mento em que minha fragilidade se manifesta, em que sinto que
o entorno me parece hostil, que encontro a mim mesmo. Eu não
podia procurar a atividade do espírito no mundo. Esta se revela
no universo do invisível, e constato que cabe ao espírito penetrar
o mundo para lhe conferir um sentido capaz de se coordenar com
minha atividade interior. Graças ao mal que existia no mundo,
separei-me deste último e encontrei em mim o movimento espiri
tual que, à margem do mundo, me mostra meu dinamismo, meu
ardor, meu impulso (p. 55).
Esse impulso encontra sua significação na possibilidade que
possui de se orientar para lá ou para cá, para o bem ou para o
mal, para o alto ou para o baixo. Minha sensibilidade espiritual
se revela, portanto, como presença diante do dualismo principiai
axiológico. Eu deveria escolher entre o bem e o mal, entre o dina
mismo e a inércia, entre o abatimento e a vitalidade de espírito.
O querer se sente convocado a tomar uma decisão, e esta remete
à minha intimidade, a essa apreensão do eu em que se sente com
clareza que o que está em jogo é o próprio eu, sua vocação e seu
destino. Existe uma alternativa de escolha, mas ela se dirige a um
eu que é único e que, ao escolher, se escolhe. Meu ser se fará unica
mente pelo bem que ele encarnará em suas ações. É essa escolha
o que lhe dará sua unidade interior e o que, em última instância,
o caracterizará.
Nossas infelicidades parecem criar em nós um fendilhamento,
separações, uma pluralidade de possíveis. O percurso espiritual
nos restitui a unidade pessoal que parecíamos estar a ponto de
perder. A reflexão feita sobre nossa dificuldade de ser nos deu a
20 1 O Mal e o Sofrimento
possibilidade de recuperar nosso destino próprio. Graças à liber
dade, que voltou a ser sensível diante das dificuldades da vida, o
homem recupera a possibilidade de viver um sentido; é esse sen
tido que permitirá retomar uma atividade pessoal e um progresso
espiritual. O absurdo do mal é vencido pela vivacidade do espírito
e pela identificação dos valores que esperavam que eu lhes permi
tisse viver e irradiar-se em mim. Aqui se encontra o tema central
da perspectiva lavelliana. O ser será alcançado pelo ato, mas o ato
tem seu princípio na consciência viva reencontrada em mim. Essa
experiência da consciência axiológica nos revelou o ser. O ser será
aquele ato pelo qual o espírito faz a si próprio.
***
Prefácio 1 21
amor, esse movimento infinito que nos une ao Todo; ao mesmo
tempo, individualmente, sentimo-nos viver. É provável que um
aprofundamento dessa experiência nos levasse a encontrar-nos
numa participação em Deus, que une todos os seres, que os criou
para que estivessem unidos e vivessem numa sociedade de con
córdia espiritual. É sob o olhar de Deus que os seres se encontram
unidos e realizam seu próprio destino. Sob esse olhar encontra
mos o ato de bondade pelo qual o criador convidou suas criaturas
ao ser; devemos participar disso pelas iniciativas que acabamos
de descrever, nas quais o que nos é pedido, de certa forma, é que
nos "criemos" a nós mesmos a partir da liberdade que é nossa.
***
3 Louis Lavelle, Quatre Saints. Paris, Albin Michel, 1951 (republicado com o título
De la Sainteté, Paris, Christian de Bartillat, 1993).
4 Para uma apresentação geral da obra de Lavelle é preciso consultar Jean École,
Louis Lavei/e et !e Renouveau de la Métaphysique de l'Être au XXe Sii:cle. Hildesheim,
Olms, 1997.
22 1 O Mal e o Sofrimento
reencontrar o próprio dinamismo da vida do espírito. A presença
do emocional na vida psíquica, quando, esmeradamente, a tor
namos significante - graças à atenção da reflexão -, conduz-nos
pouco a pouco à dimensão do eu em seu diálogo com a liberdade.
Ao realizarmos os possíveis do eu, veremos florescer o que há de
mais espiritual em nós e realizar-se uma presença do divino com
partilhada entre todos os espíritos.
MichelAdam
Professor emérito de filosofia
Universidade Michel de Montaigne - Bordeaux III
Vice-presidente da Association Louis Lavelle
Prefácio 1 23
PREÂMBULO
PREÂMBULO
28 1 O Mal e o Sofrimento
a própria raiz do ser e da vida, se não constituíam os próprios
elementos de nosso destino, que nos obrigam, segundo alguns, a
sucumbir e, segundo outros, a atravessá-los para livrar-nos deles.
Mas durante a guerra o mal e o sofrimento adquirem uma am
plidão e um destaque que ultrapassam singularmente a esfera da
existência individual: já não podemos explicá-los pela enfermi
dade de cada um ou por sua maldade, embora uma e outra apare
çam sob uma luz crua. Quanto à origem do Mal e do Sofrimento
que o acompanha, não podemos limitar-nos a acusar os que que
remos responsabilizar pela guerra, visto que os povos os seguem
e que Deus mesmo lhes permite executar seus desígnios. Quanto
a todos os que se envolvem na guerra com o corpo e com a alma, o
sofrimento atinge tanto os mais vigorosos quanto os mais débeis;
e o mal que o homem faz ao homem assim que se torna seu inimi
go pode ser sinal de seu valor e excluir qualquer suspeita de mal
dade. Todos os que participam da guerra se sentem ultrapassados
por ela: submetem-se a ela como a uma espécie de catástrofe cós
mica, que a vontade humana tenta, como pode, refrear ou infiectir.
Ei-los inseridos, portanto, no império do Mal - onde, a partir daí,
sua ação deve exercer-se - e expostos por todos os lados ao sofri
mento, cujos riscos aceitam antecipadamente. Durante a paz, eu
me empenhava apenas em aboli-los: durante a guerra, isso não
pode sequer ser vislumbrado. É o próprio mal que eu converto em
bem, é ao próprio sofrimento que devo conferir um sentido que o
penetre e o transfigure.
A guerra dá à mais pacata das vidas uma perspectiva trági
ca. Imprime gravidade aos rostos mais frívolos. Confronta cada
um com o pensamento da morte e aproxima-o de nós a ponto de
misturá-lo com nossa própria vida, enquanto a paz nos permi
tia adiá-lo indefinidamente. Torna o sofrimento sempre iminente
em nossa própria carne e em tudo o que amamos. Obriga-nos ao
terrível aprendizado do temor e da ausência. Estabelece-nos, por
assim dizer, na espera e na angústia, que, entre todos os estados,
são os mais difíceis de suportar, dado que sua essência é ansiar
por seu término. Realiza entre os homens uma espécie de igualda
de, sejam quais forem as vantagens pessoais que eles continuem
a perseguir - e que nos chocam ainda mais porque o perigo é co
mum e porque, para cada um, o que está em jogo é ele próprio,
Preâmbulo 1 29
é essa sociedade e essa humanidade sem as quais ele não seria
ninguém, são todos os valores espirituais a que ele está ligado, que
dão sentido à vida e que, por meio de mil provações, é próprio da
vida tentar defender e encarnar. No entanto, não se deveria pensar
que a existência muda de fisionomia em tempo de guerra e em
tempo de paz, nem que a imagem que temos do universo pode
de súbito tornar-se diferente, nem que nossa conduta obedece a
princípios novos, nem, como se disse por vezes, que existe uma
psicologia ou uma moral da paz e outra da guerra. A guerra não
interrompe nem reverte o curso da vida, mas antes nos revela
todos os seus traços que o hábito havia pouco a pouco apagado,
numa espécie de despojamento que lhes confere uma impressio
nante nitidez. Os sentimentos mais belos e também, sem dúvida,
os mais baixos já não permanecem ocultos. O sofrimento está
sempre prestes a surgir. Reside no fundo da alma de modo contí
nuo, sem que precise eclodir.
Já não pensamos em dissimulá-lo ou apaziguá-lo. Ele pertence
à humanidade, já não ao indivíduo: aparece-nos com uma espécie
de gravidade nua que ninguém pensaria em exagerar ou simular,
a fim de atrair para si o interesse ou a piedade. Da mesma manei
ra, o Mal está diante de nós como uma potência que nos impõe
sua lei, à qual já não é permitido entregar-se ou ceder com com
placência. Já não se compõe com ele. O Mal se descobre para nós
não propriamente no inimigo - que é apenas sua figura -, mas
naquela mesma força que sempre se opõe ao que desejamos e ao
que amamos. Ora, essa força sempre exige ser vencida. E não exis
te nada na guerra que não seja, para nós, esforço ou dever.
Dir-se-á que é próprio da guerra exercer sobre nós uma espécie
de fascinação, reter todos os nossos pensamentos, desviá-los de
seu uso mais natural, que só poderia inserir-se na paz, a paz que
deixamos e a que esperamos reencontrar. Mas é impossível que
seja assim. É sempre no presente que vivemos: nem a nostalgia
nem a esperança bastam para preenchê-lo. Longe de suspender a
vida, a guerra lhe dá uma extraordinária tensão. Só as circunstân
cias são diferentes, mas por sua violência, por sua subitaneidade,
por aquela potência material que elas demonstram e que sempre
ameaça aniquilar nosso corpo: elas nos arrancam toda segurança
30 1 O Mal e o Sofrimento
e nos dão da vida inteiramente pura a consciência mais vívida
e mais dilacerante. Acima dessa superfície da alma na qual se
projetam - numa fantasmagoria de pesadelo - todas as imagens
da guerra, a guerra nos descobre um mundo que carregávamos
em nós sem que até então nosso olhar o tivesse penetrado, um
mundo espiritual iluminado por uma nova luz, no qual as coisas
perdem sua realidade e voltam a ser para nós o que de fato são,
isto é, aparências; no qual, em contrapartida, todos os nossos es
tados e todos os nossos atos interiores adquirem uma densidade
significativa e, a partir daí, compõem para nós o mundo verdadei
ro. É aí que experimentamos aquele sofrimento essencial à vida,
do qual todos os sofrimentos particulares são apenas modos ou
signos, e que aprendemos a aceitá-lo e aprofundá-lo, esse Mal que
é inseparável da vontade e contra o qual só sabemos lutar se, ao
encontrá-lo também em nós, tal luta for também uma luta contra
nós mesmos.
É justo dizer que somente quem combate tem experiência da
guerra. E, no âmbito mais tranquilo em que é chamado a viver,
cada um sente a consciência pesada se não aspira a imitar o com
batente; chega a desejar que lhe caiba compartilhar um pouco de
sua miséria, de seus perigos e do esforço obscuro no qual ele sem
pre corre o risco de sucumbir. Mas a guerra é um ofício: e, de to
dos os ofícios, é o mais exigente, o mais perigoso, o que nos impõe
o maior número de fadigas, no qual a matéria é mais resistente e
mais rebelde; um ofício como o do mineiro ou o do marinheiro,
mas no qual todos os recursos da indústria humana vêm aliar
-se contra ele à violência dos elementos, em vez de servir apenas
para dominá-la. No entanto, a guerra não esgota a consciência do
guerreiro: no isolamento em que o instala - no qual ele se man
tém separado de todos os vínculos que o sustentavam no meio
do mundo e, por assim dizer, suspenso entre o ser e o nada -, ele
repentinamente se vê diante de si mesmo, como se descobrisse
pela primeira vez sua existência, agora ameaçada. Por vezes se
observou que as narrativas de guerra, aparentemente destinadas
a impressionar a imaginação do modo mais vívido, sempre a de
cepcionavam. Existe nelas um caráter anedótico que faz com que
pareçam exteriores a nós. As impressões de horror e de pavor logo
atingem um limite que não pode ser superado; falta aí a presença
Preâmbulo 1 31
do corpo, e é inútil querer ensiná-lo a tremer pela simples evo
cação de uma imagem. Quem está envolvido de mais perto com
os acontecimentos da guerra não se compraz em repassá-los na
mente: assim que é libertado deles, cultiva, diante de tudo o que
viu, de tudo o que sofreu, uma espécie de pudor. Não é exatamente
com a paz que ele sonha, mas com o significado que terá de dar à
sua vida quando a paz lhe for entregue, à vida tal como se revelou
durante a guerra a seu olhar lúcido e desinteressado. Pensa me
nos na guerra do que em si mesmo. Sempre acaba por perceber
que é próprio da guerra, pelo papel destruidor com que, de sú
bito, ela reveste sua atividade material, obrigá-lo a espiritualizar
inteiramente sua vida. E o novo mundo que ele descobre está além
da paz e da guerra: a guerra, por esse grande desprendimento a
que nos reduz, mostra-nos que esse mundo é o único que resiste
quando tudo desmorona à nossa volta. O sofrimento e o mal se
tornam a medida de nossas provações e de nossos deveres. Ei-los
incorporados à essência de nosso destino, ei-los transformados
em instrumentos de nossa paciência e de nossa coragem. Na paz
reconquistada, nunca mais se tratará, para nós, de recusá-los ou
esquecê-los, mas sim de penetrá-los e convertê-los.
Aqui esses dois grandes testemunhos da miséria humana -
dos quais se pode dizer que suscitaram, contra a existência, todas
as maldições que pesaram sobre ela, e sem os quais talvez a exis
tência fosse um sonho sem consistência, mas não um combate
e uma redenção - foram examinados à luz da reflexão, indepen
dentemente de suas formas particulares e de todos os remédios
externos pelos quais tentamos aboli-los. Foi no próprio fundo da
consciência que se tentou captar essa ambiguidade entre o bem e
o mal que, ao obrigar-nos a realizar um e vencer o outro, confere à
nossa própria vida sua intensidade e sua profundidade. Também
nisso reside a prova de nossa liberdade: e, embora o mal só exista
no mundo para ser suprimido, se não o fosse por nosso esforço,
o bem o seria igualmente, e o mundo retornaria à indiferença
de puro espetáculo. Da mesma maneira, o sofrimento, que dá ao
sentimento de minha própria vida um caráter tão agudo e tão
incisivo, só pode adquirir valor pelo uso que sou capaz de fazer
dele: pode reduzir-me ao desespero, mas confere à alma que sou
be aceitá-lo uma força e uma luz incomparáveis. A guerra leva a
32 1 O Mal e o Sofrimento
experiência comum da vida a seu extremo: em sua pura essência
espiritual, essa experiência tende a despojar-se das imagens da
guerra; trata-se, para nós, de torná-la constante, de trazer em nós
sua presença ininterrupta e de reencontrá-la sempre e em todas
as partes, sem que o rosto fugaz da felicidade jamais nos permita
esquecê-la ou perdê-la.
Preâmbulo l 33
lhes é comum, os mergulha imediatamente na solidão. E muitos
deles conhecem a solidão pela primeira vez, como a um mundo
de que jamais haviam tido notícia, que constitui para todos um
mundo de desolação, mas se transforma para alguns num mundo
de luz. Essa solidão são todos os vínculos que nos sustentavam
na existência, subitamente rompidos. Quem parte não é mais que
um soldado reduzido ao que carrega no fundo de si mesmo, que
abandona todos os objetos de interesse ou de amor dos quais, até
então, toda a sua vida dependia, um soldado mais solitário ainda
pelo fato de entrar numa sociedade inteiramente diferente, a um
só tempo anônima e hierarquizada, da qual conhecerá apenas as
exigências que lhe serão impostas por ela. O soldado aprende a
maior das solidões, que é a da ausência por vezes nascida de uma
única presença abolida; isso é o que aprendem também, numa
admirável igualdade, todos os que ele deixou. Mas a realidade da
guerra confere ao sentimento dessa solidão uma extraordinária
potência: porque todos esses homens semelhantes, que se ignora
vam uns aos outros, que têm, cada qual, um passado misterioso
para todos os outros - que surge em cada um deles assim que
seu pensamento dispõe do mínimo tempo -, todos esses homens
confrontados com os mesmos perigos, entre os quais, no entanto,
como por uma espécie de eleição, um será atingido e outro, pou
pado, se veem postos de súbito diante de seu destino, cuja cur
va, ainda em suspenso, eles perscrutam. Assim, o próprio caráter
trágico dos eventos, a brusca abolição dos hábitos familiares, a
conversão de toda posse antiga em pura lembrança obrigam a
consciência a buscar apenas em si mesma o princípio de seu de
samparo ou o princípio de sua consolação.
Mas esses dois princípios sem dúvida constituem algo uno.
É preciso que a solidão nos apareça antes de tudo como aban
dono, que ela nos prive de todos os apoios, que nos deixe sem
recurso algum, que não nos permita esperar nada de um mundo
indiferente e hostil, para então nos obrigar a descobrir em nós
mesmos uma força e uma luz que em vão pedíamos ao mundo
e que ele é incapaz de nos oferecer. Na solidão aprendemos que
toda realidade é interior e que tudo o que olhamos com os olhos
do corpo é apenas uma expressão que a manifesta, uma ocasião
que lhe permite transparecer ou uma prova que a julga. Quando
34 1 O Mal e o Sofrimento
só lidamos com nossos pensamentos, com nossos sentimentos,
com nossas lembranças, as coisas que nos eram mais familiares
adquirem para nós um relevo, uma significação, um valor que
não possuíam quando dispúnhamos de sua presença sensível.
Parece que somente começam a ser. Talvez fosse possível dizer
que quem nunca teve a experiência da solidão só conheceu do
mundo um cenário de teatro no qual ele próprio era apenas um
ator entre outros. Na solidão, o cenário cai e o espetáculo cessa.
Do real não subsiste senão aquela verdade que ele não raro nos
dissimulava, em vez de no-la revelar: ele é reduzido, para nós, à
sua essência espiritual.
Ora, a partir desse momento, será possível dizer que a solidão
é verdadeiramente uma separação? Não será uma abertura em
vez de um fechamento? E, agora que o mundo nos recusa acesso,
não encontrará esse mundo em nós um acesso que jamais tivera?
Antes que conhecêssemos a solidão, um espaço imenso estava
desdobrado à nossa frente, com uma multiplicidade de caminhos
em que a vontade e o desejo se envolviam. Agora esse espaço se
estreita em torno de nós, como que para aprisionar nossos mo
vimentos, em vez de liberá-los. O horizonte se aproxima pouco a
pouco e vem confundir-se com nossos próprios limites. Já não há
para nós atmosfera nem luz. Nossa separação está consumada.
No entanto, pouco a pouco nosso olhar se abre para uma nova
luz. Gradualmente descobrimos outro mundo, que até então nos
parecia oculto. Outro horizonte começa a se formar em nós, um
horizonte que se amplia em nós à medida que o outro, fora de
nós, se retrai. A solidão deixa de ser para nós um fardo que nos
oprime, e torna-se uma espécie de refúgio. Acontece que nos sin
tamos menos sós quando estamos sós do que quando estamos
no meio dos outros. Essa mesma solidão se preenche aos pou
cos com uma presença espiritual que confere a todos os objetos
possíveis de nosso pensamento e de nosso amor uma existência
ardente que supera muito à do corpo. Todos os que tiveram a ex
periência da solidão conhecem a grandeza desse estado, sobre
o qual Santa Teresa afirmava: "Eu sozinha com Deus sozinho:'
Por uma espécie de paradoxo, porém, esse eu para o qual dirijo
agora meu olhar cessa de me dar, como há pouco, preocupação
e inquietude. Está livre de todo interesse. E tampouco se pode
Preâmbulo 1 35
dizer que me retirei do mundo, pois me parece que esse mundo
é algo que descubro como se jamais o tivesse visto. Ora, não se
trata propriamente de um mundo novo: é o mundo no qual sem
pre vivi, mas que parece iluminado por outra luz. Como acon
tece com aqueles que perdi, é na ausência que sempre se revela
a essência secreta dos outros seres, que é a melhor parte deles
próprios e que as relações cotidianas não raro interceptavam, em
vez de entregar. É agora, quando estou separado deles, que estou
verdadeiramente unido a eles; e já aprendo como deverei agir
com eles quando os reencontrar.
Essa comunhão com o próximo é algo que a guerra já me ensi
na a praticar. Os homens que me cercam, por sua vez, estão livres
de todas as amarras, como eu. Não estão unidos a mim por ne
nhum vínculo de parentesco nem de amizade. É pelo mais fortuito
dos encontros que, de súbito, vivem a meu lado; homens, simples
mente, como eu: envolvidos na mesma ação, sujeitos ao mesmo
perigo, com sua vida inteira diante deles. São verdadeiramente o
próximo e estão reduzidos, para mim, a não ser nada além disso;
a um só tempo próximos e desconhecidos, mergulhados na mes
ma solidão, indivíduos únicos, como eu, e nos quais, no entanto,
palpita a mesma humanidade. Para mim, estão ao mesmo tem
po ausentes e presentes. Nossas relações são despojadas de todo
artifício, não arrastam consigo o peso de ontem; e a imagem de
amanhã, que talvez não seja dada, não as altera em absoluto. Essas
relações se esgotam no puro hoje, quando recebem um valor atual
e total, seja de uma situação comum que não se pode recusar e à
qual é preciso responder, seja naquela espécie de oferta inocente
de si que faz com que, onde a aparência já não serve para nada, o
ser se torne tudo o que ele é, numa simplicidade perfeita, plena de
miséria e de grandeza. Não é rompendo a solidão, portanto, que os
homens se tornam capazes de comungar: é aprofundando-a. Essa
comunhão não abole a individualidade deles nem seus limites:
confere-lhes um sentimento vivo e recíproco; mas a descoberta
mútua de sua individualidade e de seus limites deve ensiná-los a
apoiar-se mutuamente, em vez de chocar-se uns com os outros. E
o ponto onde os homens têm a consciência mais dolorosa de sua
separação é também o ponto em que se sentem verdadeiramente
unidos e irmãos uns dos outros.
36 1 O Mal e o Sofrimento
A vida do espírito reside por inteiro numa misteriosa identi
dade da ausência e da presença. Isso porque o espírito não vive
apenas retraído em si mesmo. Realiza a grande separação diante
de tudo o que, até então, me era dado e parecia bastar-me. Mas
essa ausência se tornará uma presença miraculosa a mim mesmo
e a tudo o que existe: é ao mesmo tempo saída de si e penetração
na essência de todas as coisas. Isso se vê particularmente bem
nas relações que os seres têm uns com os outros, sobre as quais
se pode dizer que formam para nós a própria substância da exis
tência, a fonte de todas as nossas tristezas e de todas as nossas
alegrias. Como se o corpo fosse a tela que nos impedisse de vê-los
e falseasse todas as nossas relações com eles, eles adquirem, assim
que estão longe de nós, uma espécie de presença pura, tão como
vente que temos por vezes dificuldade para suportá-la. Trata-se,
para nós, de nos lembrarmos dessa presença espiritual quando
estivermos de novo entre eles. Que a presença sensível deixe en
tão de nos cegar - ou de nos contentar, o que é a mesma coisa.
Somente o longínquo pode descobrir-nos o próximo. Somente a
solidão é suficientemente profunda para acolher o sofrimento, su
ficientemente pura para nos lavar do mal, suficientemente vasta
para receber em si toda a realidade de outro ser. Deus mesmo, se
só se tem olhos para o mundo que se oferece aos nossos sentidos,
deve ser definido como o Solitário infinito, o Separado perfeito, o
eterno Ausente; mas parece-nos, então, que o mal e o sofrimento
invadem este mundo e, a partir daí, não têm remédio. Sucede po
rém que, se é possível convertê-los, é porque, quando a atenção se
torna mais lúcida e mais penetrante, e a boa vontade mais pura e
mais confiante, esse Solitário preenche nossa própria solidão, esse
Separado nos livra de nossa separação, e nesse Ausente encontra
mos a presença absoluta a nós mesmos e ao mundo.
Preâmbulo 1 37
PARTE !
O MAL E O SOFRIMENTO
•
1 . Ü MAL
1. O escândalo do mal
42 1 O Mal e o Sofrimento
imaginar o bem a que ele nos torna infiéis; e o bem, por sua vez, só
pode aparecer como bem pela ideia de um mal possível, suscetível
de nos seduzir e de nos fazer sucumbir.
É impossível imaginar um mundo onde só reinasse o bem e do
qual o mal estivesse banido. Isso porque, para uma consciência
que não tivesse a experiência do mal, tampouco haveria algo que
merecesse o nome de bem. Em uma perfeita igualdade de valor
entre todas as formas do ser, todo valor desapareceria; a sombra
nos permite perceber a luz e lhe confere seu preço. O próprio amor
que tenho pelo bem só é possível pela presença do mal de que
busco emancipar-me e que não cessa de me ameaçar. O bem só
dá sentido ao mundo pelo próprio escândalo do mal, que me faz
desejar o bem, que me obriga a fazer uma ideia dele e impõe à
minha vontade o dever de agir para realizá-lo.
É a alternativa entre o mal e o bem que é a própria fonte de
nossa vida espiritual. Por mais elevada que seja esta última, nela
sempre subsiste algum mal que a obriga a superar-se; este sem
pre é para ela o perigo no qual ela corre risco de cair. Rezamos ao
Senhor para que nos livre do mal; e sempre esperamos que nossa
inteligência possa tornar-se tão pura e nossa vontade tão perfeita,
que cessaríamos ao mesmo tempo de conhecer o mal e de fazê-lo.
Mas quem pensará que o bem possa algum dia existir em virtude
de uma inelutável necessidade? Será possível entender que ele se
torne um dia uma lei da natureza, uma coisa que nos seja dada?
Junto com o aniquilamento da possibilidade do mal, seria o bem
o que aniquilaríamos. Chega-se, assim, a um extraordinário para
doxo: o bem, que confere a tudo o que existe seu valor, sua signifi
cação e sua beleza, chama o mal como à condição de seu próprio
ser. E, no entanto, o mal, que é sua negação, não pode por sua vez
justificar-se senão por uma iniciativa que o nega; sendo assim,
é preciso que ele exista, mas só pode existir para ser suprimido.
A vida afetiva revela imediatamente a mesma lei do espírito,
o mesmo ritmo da consciência, entre um estado que amamos e
um estado contrário que o sustenta, embora com todas as nos
sas forças busquemos aboli-lo. Todos os homens amam o prazer e
detestam a dor, mesmo o santo, mesmo o asceta; a dor que supor
tam ou pedem nunca é mais que um elemento ou um meio para
1 - 0 Mal l 43
um alegria mais perfeita ou mais pura. Não existe ser algum que
não sonhe em eliminar toda a dor que reina no mundo, a fim de
que exclusivamente o prazer venha preenchê-lo. Mas esse é um
sonho contraditório: quem elimina de si mesmo a faculdade de
sofrer elimina também a de fruir. Não que o prazer seja apenas,
como pensam certos filósofos, uma dor que cessa; mas esses dois
estados são inseparáveis, como as duas extremidades de um pên
dulo: cada meia oscilação leva a outra consigo e a chama. Querer
disjungir os dois termos para manter um só é abolir a ambos.
Quem deseja um prazer contínuo só encontra a indiferença. E as
sensibilidades mais vivas e mais profundas são também as que
experimentam conjuntamente as dores e os prazeres mais inten
sos e mais ricos.
A inteligência, por sua vez, busca o conhecimento, isto é, a ver
dade. Mas essa verdade só é alguma coisa para nós em razão do
erro de que ela nos livra. É preciso que a verdade seja um erro
retificado e jamais, em si mesma, uma posse estável e garantida.
A verdade está pendurada num ato que depende de nós, que po
demos não realizar ou realizar mal: então nos enganamos, e é a
possibilidade de enganar-se que não apenas confere à verdade seu
preço, mas constitui sua própria existência. Não há verdade para
quem nunca teve experiência do erro. Assim como a vontade no
mal e a sensibilidade na dor, a inteligência encontra no erro um
termo negativo que ela busca abolir, mas do qual, contudo, não
pode prescindir, visto que, sem ele, o termo positivo ao qual ela
tende não poderia ser concebido nem obtido.
3. O mal e a dor
44 1 O Mal e o Sofrimento
fronteira para a expansão de nosso ser: ademais, a consciência a
repele com todas as suas forças como ao mal presente e indubitá
vel, antes até que a faculdade de julgar tenha começado a exercer
-se. Mesmo que a dor não esgote a totalidade do mal, mesmo que
não seja, ela própria, um mal, está direta ou indiretamente ligada
a todas as formas do mal, até as mais sutis e mais sofisticadas. O
pessimista que amaldiçoa a vida vê-a inteiramente entregue ao
sofrimento: detém o olhar ou no mundo animal, em que os seres
se devoram, ou em nossa civilização, que, à medida que se refina,
aumenta nossos meios de sofrer.
A dor não apenas está sempre associada a um protesto, a uma
revolta da consciência que busca expulsá-la, mas também adere a
tal protesto e a tal revolta. E sem dúvida se poderia mostrar que a
dor em si mesma não é um mal, um mal absoluto e radical, e até que
ela pode ser a condição de um bem maior. Ao menos se é obrigado a
reconhecer que ela é sempre um elemento integrante do mal e que,
se a dor de súbito desaparecesse do mundo, seria difícil definir o
que ainda se poderia entender por mal e dizer em que poderia con
sistir uma vontade má.Assim, a dor nos parece a marca e o testemu
nho da presença do mal. Sentir dor é sofrer. É próprio do malvado
provocar voluntariamente a dor. Um homem bom é, para nós, um
homem que sofre com a dor alheia e busca com todas as suas forças
aliviá-la. Ser pessimista, enfim, é encarar a dor como inseparável da
consciência, da própria possibilidade de seu exercício.
Mas não podemos contentar-nos em confundir o mal com a
dor, pois a existência da dor não apresenta, para a inteligência, di
ficuldades insuperáveis. Ela é o preço de nossa limitação. Rompe a
harmonia com nós mesmos e com o universo que até então asse
gurava nossa paz interior. Quebra o impulso, a expansão natural e
confiante que renovavam sem cessar nossos prazeres e nossas ale
grias. Acusa um fracasso, um dilaceramento da unidade de nosso
ser. Compreende-se muito facilmente que um ser limitado, preso
num universo que o ultrapassa em que se cruzam tantas forças
que não o levam em consideração, esteja sempre sujeito a sofrer
algum impacto ou ferimento. E por vezes se pensou que havia na
dor uma espécie de racionalidade, se é verdade que ela nos adver
te de um perigo do qual ainda podemos nos defender.
1 - 0 Mal l 45
Não é a dor em si, portanto, que consideramos um mal. Pode
mos gemer pelo destino das criaturas fadadas ao sofrimento num
mundo cego e indiferente. Esse sofrimento poderia ser a prova
de sua vontade, a medida da força, da pureza e da beneficência
desta última. Este mundo duro, austero e sofrente não seria um
mundo mau. Não é sem injustiça que o condenaríamos. Mas, se
o mal reside unicamente na vontade, então o mundo só é mau
se for o produto de uma vontade má, se a dor que nele reina for
uma dor intencional, a própria finalidade à qual a vontade tende
e não o meio de que a vontade precisa para produzir suas mais
belas obras. Talvez não exista no mundo um mal que seja isento
de relação com a dor; mas o mal não reside nela, e sim na atitude
da vontade diante dela, que pode ora deixar-se abater pela dor so
frida, ou impingi-la a outrem, ora aceitá-la, aliviá-la, penetrá-la e
superá-la: mas então a vontade a converte em bem.
4. O uso da dor
46 1 O Mal e o Sofrimento
nos dá uma extraordinária intimidade com nós mesmos; produz
um retraimento em si pelo qual o ser desce em si mesmo até a
própria raiz da vida, até o ponto em que, aparentemente, ela lhe
será arrancada. Aprofunda e escava a consciência, esvaziando-a
de súbito de todos os objetos de preocupação ou de distração que
até então bastavam para preenchê-la. Alguns seres adquirem uma
delicadeza, uma gravidade, um valor interior e pessoal que têm
relação com certas dores que lhes foram dadas, enquanto os que
não as conheceram mantêm, em comparação, uma indiferença a
um só tempo impermeável e superficial. As relações entre dois se
res têm ainda mais acuidade e penetração quando eles sofreram
em comum e até um pelo outro, como quando, apesar dos cho
ques da natureza e do caráter, eles perpetuam, acima de todas as
feridas e de todos os fracassos do amor-próprio, uma comunhão
puramente espiritual.
É talvez por nossa atitude em presença da dor que possamos
ser julgados. Nessa dificuldade que ela nos opõe, nessa angústia
que ela provoca em nós, nesse brusco retorno que ela nos obriga
a fazer a nosso eu individual e separado, a dor retira de nós qual
quer outro recurso, qualquer outra força salvo a que podemos en
contrar em nosso âmago. Por isso devemos dizer que do sentido
que pudermos atribuir à dor dependerá o próprio sentido que o
mundo poderá receber, para nós. Isso porque o mundo não tem
outro sentido além do que somos capazes de lhe dar. Se fosse um
objeto, um espetáculo puro, não teria sentido algum. O mundo só
tem sentido por minha vontade, que prefere o ser ao nada e que, à
custa da dor, à custa da própria vida, pretende realizar certos fins
que então conferem à dor, no momento em que esta não é ape
nas sofrida, mas aceita, à vida, quando esta não é apenas perdida,
mas sacrificada, sua verdadeira significação espiritual. E, se todo
valor depende de uma atividade que o escolha e a ele se dedique,
compreende-se muito bem que o valor possa retirar-se da dor e
da vida quando essa mesma atividade se ausenta. Compreende-se
até que uma e outra possam ser condenadas pelo uso que delas
faço; e é preciso que possam sê-lo para que possam ser salvas por
uma vontade que é o árbitro do bem e do mal, capaz de converter
em mal todos os bens que afagam nossa natureza, e em bem todos
os males que não cessam de pungi-la.
1 - 0 Mal l 47
5. A injustiça
48 1 O Mal e o Sofrimento
as decisões da vontade e os afetos que as acompanham. Os gre
gos pensavam que o sábio é sempre feliz, e até que é o único a
sê-lo; não que o sábio ignore a dor, mas é o único capaz de acei
tá-la, compreendê-la e penetrá-la. E não se reflete sem tremer
sobre a dupla acepção que se pode dar, em francês, à palavra
misérable [miserável] , que designa tanto o último grau da dor
quando o último grau da abjeção: de fato, acontece que coinci
dam. Podem acrescentar-se duas observações; a primeira é esta:
por mais feliz que o homem que fez o mal possa ser, jamais, con
tudo, ele se separa de seu passado; ora, de fato, muitos de nossos
contemporâneos consideram esse passado como algo que, para
quase todos os homens, é um fardo praticamente impossível de
carregar, a saber, o próprio fardo do remorso, como Baudelaire
bem viu; a segunda é que o homem de bem, por uma espécie
de inversão da regra segundo a qual devemos tratar aos outros
como a nós mesmos, só é homem de bem porque busca o bem
alheio e não o próprio; e é o bem alheio para o qual ele contri
buiu que é, para ele, a verdadeira felicidade, o que nos impede,
em meio às piores tribulações, de romper toda relação entre o
bem e a felicidade, ao menos na medida em que essa felicidade
é efeito do próprio bem que cumprimos.
Quando se vê o malvado feliz e o homem de bem infeliz -
supondo que isso possa ocorrer -, tem-se a impressão de estar
diante de uma desordem que poderia muito bem, para a cons
ciência, ser o verdadeiro mal. Essa não coincidência da felicidade
com o bem, e do mal com o sofrimento, é um escândalo contra o
qual a vontade e a razão se insurgem. Não aceitamos que a uni
dade de nossa vida possa ser rompida, que os estados que nossa
sensibilidade experimenta não sejam um eco fiel dos atos que
nossa vontade cumpriu, que uma boa ação suscite, em nós, afli
ção, e uma má ação, alegria. Contra tais sequências, é nossa lógica
que se irrita, tanto quanto nossa virtude. A felicidade - ainda que
aparente - do malvado, e a infelicidade - ainda que aceita - do
homem de bem são a um só tempo atentados contra a inteligência
e contra a justiça: não podemos compreender que a consciência
possa experimentar um aumento, um desenvolvimento quando
persegue um efeito negativo e destrutivo, nem que se sinta limi
tada e restringida quando sua ação é, por sua vez, beneficente e
1 - 0 Mal l 49
generosa. Consentimos em admitir, decerto, que o bem mais ele
vado só possa por vezes ser obtido por uma dor que devemos so
frer em outro plano de nossa consciência; ainda assim queremos
não só que essa dor seja consentida, senão que experimentemos
alegria em sofrê-la.
6. A maldade
50 1 O M� e o Sofrimento
de que dispõe; mas também se associa a isso um tipo de satisfação
em ver sofrer um ser cuja consciência deve ainda testemunhar a
miséria à qual se sente reduzido. E se dirá, talvez, que tal maldade
é rara, mas nada garante que ela jamais atravesse, como um raio,
as consciências mais benevolentes e mais puras, pois a condição
humana obedece a leis comuns das quais indivíduo algum pode
considerar-se emancipado.
Vê-se aqui, portanto, a linha de demarcação e o ponto de con
tato entre a dor e o mal. O mal não pode ser definido, indepen
dentemente do que se pense, por sua relação com a sensibilidade,
mas por sua relação com a vontade. Sucede apenas que a vontade
e a sensibilidade estão sempre implicadas uma na outra. A sensi
bilidade é, diante da vontade, o testemunho de sua potência e de
sua impotência. Assim, a própria dor não é um mal senão por sua
relação com a vontade: quando é a natureza que a impõe a nós, a
dor é encarada como um mal na medida em que é um obstácu
lo a nosso próprio desenvolvimento, na medida em que paralisa
e aniquila a vontade; e, quando a dor é efeito da vontade alheia,
experimentamos, então, um sentimento de horror, como se, ao
acrescentar a uma limitação da natureza uma limitação voluntá
ria, o Espírito se voltasse contra seu próprio fim e contribuísse
para assegurar sua derrota.
Não se deve pensar que, na maldade, a vontade de fazer sofrer
esteja isolada. Essa vontade sempre se associa a algum motivo ex
terno, como se vê, por exemplo, na vingança, em que a vontade
de impor um sofrimento àquele por quem sofremos está sempre
aliada seja à necessidade de vencer depois de haver sido vencido,
seja até à ideia de um equilíbrio restabelecido e de uma justiça sa
tisfeita. No entanto, o que mostra bem que a dor nunca é mais que
um signo do mal é o fato de que a maldade mais sutil e mais pro
funda não para na dor: nela vê apenas um meio, do qual o próprio
prazer poderia fazer as vezes, tendo este último até a vantagem
sobre ela de enganar o outro por uma falsa aparência. Seu alvo é
a diminuição do ser, uma espécie de inversão do desenvolvimen
to da consciência, de corrupção e degradação, sem que se possa,
contudo, considerar tal estado livre de toda dor secreta, que o mal
vado saboreia antecipadamente com uma sorte de deleite.
1 - 0 Mal l Sl
7. A definição do mal
52 1 O Mal e o Sofrimento
Sendo assim, se a solidariedade no bem não para de tornar, a
um só tempo, mais complexa e mais estreita a unidade de cada
ser ou a união entre diferentes seres, a solidariedade no mal
não pode perpetuar-se indefinidamente sem provocar muito
rapidamente um desacordo, uma dissonância, que não deixa
de nos opor tanto a nós mesmos como ao universo.
8. A opção fundamental
1 - 0 Mal l 53
distinguindo no mundo entre o bem e o mal; mas para que não se
torne imediatamente escrava é preciso que, ao reconhecer o valor
do bem, ela possa ainda assim preferir-lhe o mal, a fim de reivin
dicar sua independência fazendo do mal mesmo seu próprio bem,
contanto que ela o tenha escolhido.
De fato, a vida só possui valor para nós se nela houver lugar
para um bem que possamos compreender, querer e amar. O mal,
por sua vez, é o que não podemos compreender nem amar, mesmo
que o tenhamos desejado; é aquilo que nos condena quando o fi
zemos e aquilo que seria a condenação da vida se constituísse sua
própria essência. O bem e o mal submetem o real ao julgamen
to do espírito, pois o real só pode justificar-se se for considerado
bom: dizer que ele é mau é dizer que o nada lhe seria preferível.
Ambos corresponderiam, portanto, a um direito de jurisdição que
o espírito se arrogaria sobre o universo, pois bem e mal só existem
para uma vontade que considera o real com relação a uma escolha
que ela faz e que o real ora confirma, ora desmente. Concorda
mos, portanto, que o princípio do bem e do mal está em nós; no
entanto, seja porque a vontade está sempre associada em nós à
natureza, seja porque ela encontra fora de nós resistências que é
incapaz de vencer, o bem e o mal ultrapassam seu ato próprio -
o que a obriga a formular, no que lhe diz respeito, a questão da
responsabilidade e do mérito e, no que diz respeito ao universo, a
questão de sua razão de ser.
Tanto o bem como o mal estão ligados, portanto, à essência
da vontade, que não pode determinar-se se a ideia do bem não
a sacudir; e, se esta estiver ausente, por falta de conhecimento
ou de coragem, ou por uma perversão do impulso que o bem
lhe dá, é no mal que ela cairá. De fato, o bem só é um bem para
a vontade se ele puder escapar-lhe, seja porque ela se enganou
quanto a ele, seja porque se desviou dele ao permitir ainda que
sua sombra a retivesse.
Que nossa liberdade não possa exercer-se sem nos colocar na
presença de dois termos opostos entre si, entre os quais ela não
cessa de escolher, até isso é algo capaz de nos fazer sofrer, pois
existe na opção uma exigência que nos condena, se o mal for
vencedor. Assim, preferimos buscar no mundo um mal radical,
54 1 O Mal e o Sofrimento
inseparável de sua própria essência, a considerar nossa vontade,
que, por sua opção, o faz ser.
Mas o pessimismo é uma desculpa que nos damos. É uma fal
ta de confiança e uma abdicação de nosso ser espiritual, que se
recusa a agir e a dar ao que tem diante de si o sentido e o valor
que dependem exclusivamente dele. Reconhecer que existe mal no
mundo é permitir que nossa atividade espiritual se separe dele e
adquira, assim, sua independência e seu impulso. A atividade es
piritual cria-se a si mesma incessantemente por oposição a tudo
o que lhe é dado. Sempre corre o risco, portanto, de permanecer
sepultada, de ser ignorada ou vencida, mas esse risco é sua própria
vida; é dele que ela extrai seu alimento, é ele que lhe confere seu ar
dor e sua pureza. É próprio da vida do espírito ser invisível e sem
pre precisar ser apoiada e regenerada; e sempre poder ser negada.
A cada instante podemos tornar verdadeiro o materialismo
ao fixar o olhar, fora de nós, nos objetos, ou, em nós, na nature
za instintiva. Quem busca o espírito no meio do mundo como a
uma realidade atual tem todas as chances de mostrar que jamais
o encontra. O mundo que temos diante dos olhos é, por si mes
mo, desprovido de espiritualidade, mas isso é assim precisamente
porque o espírito é uma vida que deve penetrar o mundo, dar
-lhe um sentido e reformá-lo. O espírito não é algo que possa ser
mostrado, mas uma atividade que é exercida, em favor da qual se
opta e pela qual se faz uma aposta. Só existe para quem o quer e,
querendo-o, o faz ser. O espírito se esquiva de quem o nega. Tam
bém demonstra o que é ao recusar que o encontremos onde não
está. Dir-se-á que o mal está presente onde quer que o espírito não
esteja e deveria estar? Mas o julgamento que fazemos dele é ainda
uma testemunha do espírito, que nele encontra seu limite ou sua
derrota. Quando o mal é conhecido como mal, é sempre por um
ato do espírito, que estabelece uma dualidade entre o mundo e ele
próprio e que encontra no mundo seu contrário, mas que deve ter
coragem e confiança suficientes para aceitar o mundo como uma
prova, como uma tarefa e como um dever, como a condição de sua
essência separada e, ao mesmo tempo, da própria atividade pela
qual ele nunca para de criar-se a si mesmo e das vitórias que ela
jamais acaba de obter.
1 - 0 Mal 1 ss
9. Aquém do bem e do mal
56 1 O Mal e o Sofrimento
Mas esse quadro, por sua vez, também requer emendas. Antes
de tudo, ainda que a criança entre no mundo como um grumo de
lodo, isso não nos deve conduzir a diminuir, desde o princípio,
o próprio valor de nossa vida. É preciso que ela mergulhe suas
raízes nas regiões mais obscuras e profundas do Ser para desen
volver-se um dia nas regiões mais claras e luminosas; é belo que
a elevação de seu destino esteja em relação com a baixeza de sua
origem, e que a estreita necessidade em que ela de início está en
cerrada dê à sua liberdade mais força e mais impulso.
No entanto, essa natureza, onde ela está, por assim dizer, sepul
tada, não é em si mesma boa ou ruim, embora existam nela as se
mentes de todos os bens e de todos os males que se produzirão no
mundo, assim que sua liberdade tenha começado a agir. O adulto
poderá encontrar nela todas as perversões de que tem ideia, mas
só quando sua reflexão e sua vontade, depois de se haverem libe
rado dos sentidos, retornam a eles para neles se comprazer e a eles
se sujeitar. A perversidade da criança é com frequência a perversi
dade do pensamento do adulto. Assim como ela tem uma espécie
de inocência orgânica antes que sua consciência tenha nascido,
tem também uma espécie de inocência espiritual assim que suas
necessidades estejam satisfeitas e seu corpo lhe dê algum descan
so. Então ela descobre o mundo com um olhar desinteressado e
começa a sorrir para ele. Abre-se para ele, pronta para dar e rece
ber, esquecendo seu corpo e buscando nas coisas os ecos daquela
realidade mais íntima cuja presença misteriosa ela experimenta
em si. Toda essa inocência se rompe, porém, a partir do momento
em que os caminhos do corpo e do espírito, parando de seguir
vias separadas, se entrecruzam. Quando isso ocorre, deve fazer
-se a opção: e trata-se de saber se o corpo acabará por mostrar-se
dócil, ou se é o espírito que se deixará vencer.
Por vezes se tem o sonho de que, ao fim de todos os nossos
fracassos e de todas as nossas tribulações, a sabedoria possa ser
uma espécie de inocência recuperada. Mas a inocência não se
recupera. Depois de perdida, só pode ser superada. Haveria algo
de impossível, e até de horrível, em fazer dela um objeto do que
rer. A experiência da vida nos torna incapazes de reconquistar os
estados primitivos aos quais atribuímos, agora, uma inacessível
1 - 0 Mal l 57
pureza: o interesse, a lembrança, a paixão os penetraram, enri
queceram, alteraram. Jamais retrocedemos: é com tudo isso em
que nos tornamos que devemos, agora, progredir. Mais que isso,
todo homem que se dispõe a viver quer ter a um só tempo a cons
ciência de si, a responsabilidade e a liberdade; caso contrário não
passaria de um rebento da natureza e, ao receber o ser que possui,
em vez de dá-lo a si mesmo, seria uma coisa, mais que um ser.
Não queremos deixar agir em nós uma espontaneidade da qual
deixamos de dispor. Reclamamos a possibilidade de fazer o mal;
só existe bem possível, para nós, a esse preço. Não aceitamos que
a vida seja para nós um dom que nos bastaria receber. Seria isso
vida, para nós? Poderíamos chamá-la nossa?
A união do corpo e do espírito se apresenta como uma condi
ção de nossa liberdade. É graças a ela que podemos tornar-nos o
que somos, por um ato que depende de nós. É porque de início
estamos submetidos à natureza que o espírito deve ser para nós
uma incessante libertação. Se não existe liberdade já pronta, se a
liberdade só pode ser obtida e mantida mediante muitos esforços,
é evidente também que ela pode estiolar-se e tornar verdadeiro
o determinismo. Essa falha é, ela própria, um mal; no entanto, o
mal mais radical e mais secreto está na escolha da liberdade, que
deve ter a possibilidade de trair o bem, senão o bem, ao se tornar
necessário, se aniquilaria. Tal é a grandeza da vida do espírito: ela
só existe se for nossa. Encontra a seu lado uma natureza que lhe
resiste e, com frequência, a escandaliza. Mas não pode prescindir
dessa natureza, pois dela extrai as forças de que precisa. A vida do
espírito reside no uso que faz da natureza, na obediência e na ra
tificação que com frequência ela lhe dá, no combate que sustenta
com ela e do qual ora sai vencida, ora mais forte e mais purificada.
Só tem existência por meio daquilo que acrescenta à natureza e só
pode acrescentar-lhe alguma coisa pela reflexão.
É preciso pois estudar agora a origem da reflexão, que, por
vezes, tem um aspecto puramente crítico, negativo e até des
trutivo, que esgota o impulso da espontaneidade interior, que,
com tanta frequência, me torna infeliz e impotente, mas que, em
sua essência mais pura, constitui um retorno à própria fonte de
nossa vida, põe nossa atividade de novo em questão para nos
58 1 O Mal e o Sofrimento
permitir julgá-la e dispor dela: na reflexão reside o fundamento
de nossa iniciativa pessoal, é nela que as noções de bem e de mal
começam a se formar.
1 O. Nascimento da reflexão
1 - 0 Mal l 59
não a coisas, mas aos seres que me circundam, torna-se boa ou
má. A reflexão, por conseguinte, é naturalmente orientada para a
busca do valor moral. Se minha atividade encontra um obstáculo
que a limita, minha reflexão é capaz de despertar, a fim de superá
-lo: ela só se engaja de modo decisivo quando o desafio para ela é
o destino do eu e da sociedade espiritual que ele forma com todos
os outros "eus".
É para a reflexão, portanto, e a partir do momento em que ela
começa a se exercer, que a diferença entre o bem e o mal assu
me uma significação real. Não adquiro a livre disposição de mim
mesmo senão pela reflexão. Até então, era a natureza que agia em
mim e por mim. Mas a partir do nascimento da reflexão, que me
transforma em autor ou pai de minhas próprias ações, a presença
da natureza é sentida por mim como uma escravidão, isto é, como
uma espécie de humilhação e de vergonha. Daí a tendência da
teologia tradicional a considerar a própria natureza como o mal.
É que ela se impõe a nós apesar de nós. Somos obrigados a sub
meter-nos a ela. No entanto, não é a natureza que é má; a natureza
só se torna má ou perversa pelo espírito que se sujeita a ela e se
põe a servi-la. Dos prazeres mais saudáveis e simples ele faz um
objeto de complacência: avilta-os ao se aviltar. Ao contrário, tão
logo ele ilumina a natureza pelo interior e faz dela um meio de seu
próprio progresso, transfigura-a e eleva-a até seu próprio nível.
A vida do espírito e até a vida do eu só começam, portanto,
com a reflexão. Pode-se lamentar a perda da iniciativa inocente
da criança e de sua graça espontânea. Mas não se tem vontade de
comprá-las ao preço de suas angústias e dissabores. Existe em tal
nostalgia pouca sinceridade e pouca coragem: o paraíso da crian
ça é uma representação elementar e já falsificada. Essa nostalgia é
uma espécie de desejo contraditório, pois para nós se trata menos
de retornar a essa simplicidade instintiva e nebulosa do que de to
mar posse de todos os recursos que uma consciência adulta pode
descobrir nela. A reflexão está sempre disposta a buscar uma sor
te de menor esforço e gostaria de fruir cessando de agir. Mas essa
é uma ambição que lhe é proibida. Assim que a reflexão entra em
jogo, ela nos impõe deveres aos quais ela própria não pode renun
ciar. Produz em nós uma cisão, mas para nos trazer uma luz da
60 1 O Mal e o Sofrimento
qual até então estávamos privados, e ela só nos dá a representação
do mundo porque nos obriga a transformá-lo e a torná-lo melhor.
1 - 0 Mal l 61
eu busca conhecer o bem, é para dele se apoderar e torná-lo seu;
e basta que comece a pensar o bem para que cesse de fazer o bem.
Nesse sentido, compreende-se, portanto, que o conhecimento do
bem e do mal já seja o mal, porque transforma o bem em mal pelo
próprio desejo de fazer dele seu bem.
É que o bem e o mal não são coisas passíveis de ser conheci
das. Nascem da reflexão, mas quando esta se interroga sobre sua
intenção, não sobre seu fim. Que o fim jamais possa ser represen
tado, que ele jamais possa ser alcançado, aí está o que permitirá
isolar, na vontade, seu movimento mais espiritual e mais puro.
O fim não testemunha senão sua direção momentânea: não passa
de uma imagem ou de uma baliza que nos dissimula sua inflexão
mais profunda, em vez de descobri-la.
Parece, portanto, que a distinção entre o mal e o bem é inse
parável do advento da consciência. É essa distinção que, no uso
popular da palavra, é o objeto próprio da consciência, e não a luz
indiferente que nos dá uma representação de nós mesmos e do
mundo, como em seu uso filosófico; mas talvez se possa mostrar
que o segundo sentido deriva do primeiro e que só precisamos
conhecer-nos e conhecer o mundo para nele realizar nosso des
tino espiritual.
A distinção entre o bem e o mal provoca hesitação em nosso
pensamento e em nossa conduta, faz aparecer em nossa consciên
cia a aflição e a angústia. Em vez de nos entregar ao fluxo da natu
reza, obriga-nos a assumir a responsabilidade pelo que faremos,
pelo que seremos: e esse ato já nos julga.
62 1 O Mal e o Sofrimento
nosso destino se formará e o rosto do mundo será modificado.
A reflexão sempre mede o perigo ao qual nos expõe. Separa-nos
da natureza a que todo o nosso ser aderia até então. Obriga-nos a
assumir a responsabilidade por nós mesmos; confere à vida uma
incomparável acuidade. Somente por meio dela eu existo como
foco de iniciativa, como autor do que sou, isto é, como consciên
cia, como liberdade e como pessoa. Ao me separar da natureza
que me circunda, separei-me da natureza que me constitui: exis
te em mim um indivíduo, um ser de instinto e de desejo com o
qual já não me identifico, embora ele esteja envolvido em cada
uma de minhas ações: ele é a um só tempo a matéria e o ins
trumento delas. Obrigo-me agora a assumir a responsabilidade
por mim mesmo e pelo mundo, pois a atividade do espírito não
se deixa dividir. E, dado que ela não abole a natureza individual,
mas, ao contrário, descobre-a ao superá-la, compreende-se facil
mente que ela possa escolher entre dois partidos diferentes: ou
considerar o eu como o centro do mundo e fazer o mundo girar
para seu uso próprio, ou fazer do eu o veículo do espírito, pelo
qual o mundo deve ser penetrado por inteiro, a fim de receber
uma significação e um valor. Esse é o princípio supremo de que
deriva a oposição entre o bem e o mal, o que basta para provar
que o mal está sempre presente: só poderia desaparecer se o es
pírito lograsse abolir a natureza. No entanto, embora a natureza
não pare de reter o espírito e de incliná-lo para ela, desde que
ele começa a agir não pode prescindir da natureza: ele nasce ao
emancipar-se dela pouco a pouco, só se desenvolve por meio
desse obstáculo, que, para ele, é também um apoio, e é a própria
natureza o que ele ilumina e faz servir à sua glória.
Compreende-se, portanto, que, quanto ao problema do mal,
seja possível assumir, diante da natureza, três atitudes: a pri
meira, otimista e encantadora, consiste em louvá-la sempre, seja
pelo espetáculo que ela nos oferece - dotado de admirável valor
artístico -, seja pelos instintos que põe em nós, e que o pensa
mento não faz senão corromper. No entanto, é também a reflexão
que julga da beleza desse espetáculo; é ela igualmente que julga
de sua retidão. A segunda atitude é o inverso da anterior: vê a
natureza com pessimismo e considera-a sempre má. No fundo
de muitas consciências existe um velho dualismo maniqueísta.
1 - 0 Mal l 63
No entanto, o mesmo espírito que a condena trava contra a na
tureza uma luta da qual nem sempre sai vencedor. E pode-se até
pensar que a natureza é o real, ao passo que o espírito é o ideal,
que sempre sucumbe, assim como o direito, quando a força entra
em jogo. Mas existe uma terceira atitude, que consiste em preten
der que, em si mesma, a natureza não é nem boa nem má. Sucede
porém que o espírito, quando aparece, consagra os recursos de
sua invenção para dispor dela, mas para encontrar nela ora um
objeto de complacência e de fruição, ora a força e a eficácia de
que precisa e que só ela lhe pode dar.
Pode-se dizer que, em todos os casos, quem considera a natu
reza boa ou má não faz tal julgamento senão retrospectivamente.
É só quando sua vontade já entrou em jogo, quando ela já optou
entre o bem e o mal, que ele pode dizer que a natureza é boa ou
má, concebendo como voluntárias todas as ações que dependem
da natureza e distinguindo as que trazem o caráter de bondade e
de generosidade das que são testemunho de egoísmo ou violência.
É o próprio da reflexão obrigar cada ser a tornar-se um problema
para si mesmo, a interrogar-se sobre o valor de sua vida. A esse
problema, a essa interrogação, só o bem proporciona uma respos
ta. O mal não só o deixa sem solução mas também o transforma
em escândalo, contra o qual todas as potências da consciência
não param de insurgir-se.
64 I O Mal e o Sofrimento
2. Ü SOFRIMENTO
1. Descrição da dor
66 1 O Mal e o Sofrimento
2. A dor e o sofrimento
Talvez nos recriminem por não examinar aqui senão a dor físi
ca. Mas essa questão suscita um problema difícil, que é o da ligação
entre a dor e o corpo. Será que se deve pensar que não existe dor
sem certa lesão imposta a meu corpo? É inútil invocar, para defen
der tal tese, a concepção empirista segundo a qual os estados de
consciência não passam de tradução dos estados do organismo.
Basta observar o caráter de limitação ou de passividade que é inse
parável da dor, o qual faz com que ela seja sempre sofrida e só pos
sa sê-lo por intermédio do corpo. O corpo estaria destinado, então,
a assegurar a ação sobre nós das causas exteriores que a produzem.
E assim se compreenderia facilmente que certa aflição do corpo
possa transformar a vida de alguns seres num suplício contínuo.
No entanto, embora a dor física possa apresentar uma acui
dade e uma crueldade que a tornam, a cada instante, intolerável,
a dor moral vence-a singularmente em significação e em valor
assim que tentamos abraçar o conjunto de nosso destino. Sabe
mos bem que uma dor física pode ocupar-nos inteiramente; no
entanto, em vez de dizer que ela absorve, então, todas as potências
da consciência, seria antes preciso dizer que ela paralisa essas po
tências e suspende seu curso. A originalidade da dor moral, ao
contrário, está em preencher verdadeiramente toda a capacidade
de nossa alma, em obrigar todas as nossas potências a exercer-se
e até em dar-lhes um extraordinário desenvolvimento. Mas prova
velmente seria melhor, então, empregar aqui a palavra sofrimento
e não a palavra dor, pois a dor é algo que sofro, mas o sofrimento
é algo de que me apodero: o que procuro não é tanto rejeitá-lo,
mas penetrá-lo. Eu o sei meu e o faço meu. Quando digo "estou
sofrendo", trata-se sempre de um ato que cumpro.
Poder-se-ia, parece, introduzir entre a dor e o sofrimento a se
guinte distinção: a dor, precisamente por estar ligada ao corpo, está
ligada também ao instante; em sua própria continuidade existem
sempre rupturas e retomadas, momentos em que ela se abranda e
momentos em que se reaviva, uma espécie de ritmo, pulsações das
quais cada qual é uma espécie de brecha na continuidade do tempo.
2 O Sofrimento 1 67
-
Quando ela cessa, produz-se um alívio, um vazio pleno de promes
sas, uma alegria ainda temerosa e indeterminada. Nosso ser preser
va certo abalo, mas que já não tem caráter de dor; nessa espécie de
tremor em que ela nos deixa e em que nos parece que ela sempre
pode reaparecer, já não conseguimos reencontrá-la pela imaginação.
O sofrimento, ao contrário, está sempre ligado ao tempo. Em si
mesmo, é um mal presente e sempre experimentado no presente.
Mas ele sempre abandona o instante para preencher a duração. Em
vez de se renovar, como a dor, pelos próprios impactos que não
param de lhe vir de fora, encontra em nós mesmos um alimento.
Nutre-se de representações. Volta-se sempre para o que deixou de
ser ou para o que ainda não é, para lembranças que ele reaviva
sem cessar a fim de se justificar e de se manter para um futuro
incerto, mas no qual encontra, nas possibilidades que imagina, um
meio de aumentar seu tormento. Vê-se pois que, se é próprio da
consciência empenhar-se sempre em afugentar a dor, o mesmo
não ocorre com o sofrimento. A consciência não gostaria de sofrer,
decerto; no entanto, por uma espécie de contradição, o sofrimen
to é uma ardência, um fogo interior ao qual a própria consciência
precisa proporcionar um novo alimento. Ele não existiria se mi
nha consciência pudesse ser subitamente reduzida a um estado de
inércia ou de perfeito silêncio interior. É preciso que eu não pare
de consentir nele, e até de aprofundá-lo. Pela mesma razão, pode
-se dizer que a dor só diz respeito a uma parte de mim mesmo; já
no sofrimento, o eu está envolvido por inteiro; mesmo quando o
sofrimento foi apaziguado, já modificou, já impregnou minha vida
inteira. É que, na realidade, o sofrimento - do qual dizemos que
preenche nossa duração - vai além da própria duração. É só em
aparência que ele ocupa um lugar na história de minha vida: quan
do merece realmente seu nome, expressa um estado permanente
de nosso ser: é até sua essência mesma que ele penetrou.
3. O ato de sofrer
68 1 O Mal e o Sofrimento
primeiro plano, e é próprio do corpo pôr-me em relação com
as coisas. Isso explica que os filósofos contemporâneos estejam
quase sempre dispostos a considerar a dor uma sensação que de
pende de uma excitação exterior, como as sensações visuais ou
auditivas. Só sentiríamos dor, assim, pelo abalo de certos nervos
particulares que seriam, propriamente, nervos doloríferos.
O sofrimento, ao contrário, é muito mais complexo. A palavra
se aplica mal às feridas que as coisas podem infligir-nos. Na reali
dade, só sofremos nas relações com outros seres. A possibilidade
de sofrer mede a intimidade e a intensidade dos laços que nos
unem a outra consciência. Não sofremos em nossas relações com
indiferentes: a indiferença chega a ser, para nós, uma espécie de
proteção contra o sofrimento. Assim que ela cessa, nossa capaci
dade de sofrer reaparece e se mostra proporcional ao interesse,
à afeição que sentimos por alguém. Manifesta-se assim que os
laços que nos uniam a ele se veem ameaçados; demonstram, pre
cisamente dessa maneira, tanto a existência como a profundidade
desses vínculos.
Compreender-se-á facilmente que essa nova oposição não dei
xe de ter relação com a anterior, pois bem sabemos que nossas
relações com as coisas só importam no instante, ao passo que
nossas relações com as pessoas interessam à nossa vida inteira,
em sua duração e em sua eternidade.
É evidente, porém, que o sofrimento não pode ser considerado
uma sensação, pois é muito mais interior. Já não é minha vida
que está em perigo, na medida em que depende do corpo: é meu
ser espiritual que entra em jogo, que inicia consigo mesmo uma
espécie de dialética interior, cujo efeito é o sofrimento. Em última
instância, poder-se-ia dizer que sinto dor apenas com meu corpo,
ao passo que sofro com meu ser inteiro. É impossível que eu não
procure a razão de meus sofrimentos, que não me empenhe em
justificá-los: eles variam com as oscilações do conhecimento e do
querer, não com as alternativas de virulência ou de remissão de
uma ação exterior que me subjuga.
Admitindo-se que a dor, por si mesma, não seja nada além
de uma sensação, é evidente que só é boa ou má pela atitude da
2 O Sofrimento 1 69
-
consciência diante dela, pelo ato que toma posse dela e, por assim
dizer, pela própria maneira como a "sofremos".
Mas, se a dor sempre correspondesse a uma diminuição do
ser, se sempre expressasse, como afirma Spinoza, a passagem
de uma perfeição maior a uma perfeição menor, então não seria
sempre má? Observemos antes de tudo que ela consiste, como se
diz, numa passagem e não num estado, e, portanto, seja qual for
nossa miséria, essa mesma miséria só pode ser dolorosa quando
começa a piorar. Definição que é admirável em sua simplicidade.
Mas será suficiente? É -nos dito que, na dor, passo a uma perfeição
menor; é inevitável que essa passagem já interesse à minha ativi
dade interior. Temos o sentimento do que acabamos de perder: aí
estava, sem dúvida, algo que tínhamos. Mas o próprio sentimento
dessa perda introduz em nós, como sempre se observou, um au
mento de consciência que, por sua vez, não é uma perda. Nasce
em nós, por conseguinte, um ser novo, completamente distinto
daquele que éramos antes de haver começado a sofrer. Minha
espontaneidade se esgota, é verdade, mas minha reflexão, minha
vontade entram em jogo, como que para compensar o que me foi
retirado. Minha atividade, que até então era instintiva, tornou
-se espiritual. O uso que farei dela dependerá apenas de mim, e a
mim caberá decidir se essa perda poderá transformar-se em ga
nho, como se vê em certas consciências, cuja pureza e cuja riqueza
parecem proporcionais às provações que atravessaram.
O problema que formulamos aqui ultrapassa, e muito, o da
consciência imediata que temos da dor. De fato, encontramo-nos
em presença de duas interpretações diferentes da vida. Muitos ho
mens pendem naturalmente para o materialismo: estão convenci
dos de que a verdadeira realidade pertence aos objetos e ao corpo,
de que o espírito é uma realidade ilusória, que dá provas do que
existe sem ser, ele próprio, dotado de existência. Então se compre
ende que, em presença dos males da vida, ele tente consolar-nos
como possível, proporcionar-nos ainda algum bem de imagina
ção, quando a vida nos recusa os bens verdadeiros. Mas é próprio
da dor, justamente, ser uma experiência trágica, que nos obriga
a reconhecer qual é a essência do real. Estará ela neste corpo al
quebrado, que perde pouco a pouco a força e a vida? Ou estará na
70 1 O Mal e o Sofrimento
consciência que tomamos da própria dor, para então constituir, a
um só tempo contra ela e graças a ela, apesar dela e por meio dela,
nossa realidade mais autêntica, mais profunda e mais pessoal?
Esta última, que é obra nossa, enxerta-se na outra, que deverá ser
rejeitada um dia: a dor consuma, a cada dia, seu sacrifício.
Isso não equivale a dizer que a dor possua valor por si mesma,
nem que não se possa fazer dela o pior emprego. Equivale a dizer
que seu valor reside exclusivamente numa operação de nossa ati
vidade sobre ela, que permite a essa atividade transformá-la seja
em bem, seja em mal, pela própria maneira como dispõe dela.
Considera-se a dor alternadamente como a fonte dos maiores ma
les e dos maiores bens: e ambas as teses devem ser verdadeiras ao
mesmo tempo, se ela é para nós uma pedra de toque que mede
essa coragem da nossa liberdade sem a qual, em si mesma, nossa
liberdade não seria nada.
4. As atitudes negativas
a. O abatimento
Quando a dor é demasiado intensa, a atividade perde seus re
cursos e já não mostra força suficiente para exercer-se. Não se
deveria dizer, então, que a dor é um mal, mas em razão da impo
tência à qual reduz nossa liberdade, e não pelo emprego que dela
faz essa liberdade? A consciência inteira é capaz, exclusivamente
por efeito da dor, de entrar num estado de prostração e, por as
sim dizer, de paralisia. Nossa iniciativa então oscila e desmorona.
Acontece que a dor nos invada e nos submerja a ponto de abo
lir o diálogo com nós mesmos, o domínio de nós e a disposição
de nós que são necessários para pensar e querer. Compreende
-se então que a dor em si possa ser considerada um mal e que a
2 - O Sofrimento 1 71
humanidade tenha empreendido contra ela uma luta que, prova
velmente, jamais cessará. No entanto, se o mal não resulta aqui
de uma opção, mas da impossibilidade de optar, citaríamos fa
cilmente outros estados, afora a dor, que também suspenderiam
nossa atividade livre. É até possível que todos os nossos estados,
para além de certa intensidade, tendam a produzir o mesmo efei
to: as forças de nossa consciência que eles começam a despertar
à medida que crescem logo tiram a margem de ação de nossa
liberdade e acabam por bloqueá-la.
O abatimento é uma espécie de limite inferior em que a cons
ciência dolorosa não é mais que pura passividade. No entanto,
nossa atividade jamais se ausenta completamente: ora falha,
ora cede. Nunca podemos resolver o problema da dor por fór
mulas abstratas. Cada um carrega sua dor de uma maneira que
lhe é própria. Nada que ultrapasse as forças que um ser tem lhe
é pedido, e ninguém jamais pode dizer com certeza que as es
gotou. Ninguém jamais poderá afirmar sem medo de errar, no
momento em que se deixa abater pela dor, que não possuía no
fundo de seu ser nenhum recurso secreto ao qual teria podido
recorrer. Embora o abatimento seja produzido pela extremidade
da dor, traz consigo, no entanto, uma espécie de compensação,
porque a dor se torna então menos aguda; é transformada em
algo mais surdo e mais sereno, por assim dizer. Importa apenas
que a consciência não aceite prestar-se a isso. E no entanto isso
ocorre, por uma espécie de abandono em que a própria cons
ciência se torna inteiramente dor; em que a personalidade se vê
dissolvida, como se a dor encontrasse seu único remédio em seu
próprio excesso.
b. A revolta
Existe outra atitude que, ao menos em aparência, parece o
oposto do abatimento. É a revolta. O ser sente na dor uma estra
nha que o penetra apesar dele, que ocupa toda a sua consciência
independentemente de seu consentimento, que domina e aniquila
sua vontade - reduzida por ela à escravidão -, que devasta e des
trói tudo o que ele tem e tudo o que ele é. Quando isso ocorre,
deixa de haver diferença entre o sofrimento e o protesto interior
72 1 O Mal e o Sofrimento
que erguemos contra ele. Sofrer é protestar contra o sofrimento.
É buscar afugentá-lo, expulsá-lo de si; é querer aniquilar as cau
sas que o produzem. Mas a revolta em si não conhece limites: não
pode mover um processo contra a dor sem mover também um
processo contra a vida e a ordem do mundo. O mínimo traço de
sofrimento, mesmo de um verme, como se disse, bastaria para
condenar o mundo que o permite.
No entanto, essa é uma atitude tão negativa quanto a anterior.
Isso porque a dor capta todas as forças do eu dirigidas contra ela.
O eu também sucumbe, sem lograr apoderar-se dela nem domi
ná-la. Não faz nenhum julgamento sobre ela, não investiga se exis
te nela uma inteligibilidade, nem se ela é a condição de um bem
que só pode ser adquirido por ela.
Importa não confundir a revolta contra a dor com o desejo,
tão natural, de que ela cesse, nem com o esforço que podemos
fazer para aboli-la. A característica da revolta é mostrar nossa
impotência. Prova disso é que a revolta impossibilita a atividade
eficaz e construtiva pela qual nos pomos a tirar da dor o me
lhor partido, ou a edificar um mundo novo do qual essa própria
dor estivesse abolida. A revolta busca apenas destruir, e, como
não tem influência sobre a própria dor, desfere seus golpes ainda
menos contra as causas que parecem produzi-la do que contra
a própria realidade onde ela se insere, contra o universo que a
contém e, por uma espécie de delírio, contra mim mesmo, aquele
que sofre. Assim, o mal aqui não reside na dor propriamente dita,
mas na atividade que se aplica a ela e que, em vez de tentar des
cobrir o sentido da dor, de tentar encontrar na dor uma prova que
é preciso superar para que ela própria se amplie e se fortaleça,
toma a dor como pretexto para se voltar contra a vida e relegar o
ser ao nada, em vez de elevar o nada ao ser.
e. A separação
Mas a dor pode produzir em nós uma terceira atitude, que
também é negativa. Vimos, com efeito, que ela nos dá um senti
mento muito vívido de nossa existência individual; que ela nos
obriga a dizer "estou aqui"; que o homem cruel se compraz no
2 O Sofrimento 1 73
-
sofrimento que inflige porque está seguro de haver, por meio
dele, alcançado outro ser em seu próprio âmago, a ponto de este
último não poder negar o golpe que sofreu. Essa é também a
razão pela qual o intelectualismo sempre terá adversários, que
afirmarão da ideia, à qual pretende reduzir todo o real, que ela é
sempre exterior a nós; e essa é igualmente a razão pela qual os
pessimistas acreditarão poder triunfar, alegando que cada um de
nós só encontra a essência profunda e irrecusável da realidade
nesses momentos privilegiados que conferem à vida tanta gra
vidade e acuidade, nos quais nada se é além de um homem que
sofre. É no momento em que nossa vida é mais intensa que ela já
não pode ser tolerada.
Ora, essa dor - que assim penetra nossa intimidade mais se
creta e, se tal se pode dizer, o eu de nosso eu - nos encerra na
solidão e tende a nos separar do restante dos homens. Torna-nos
atentos exclusivamente a nós mesmos e indiferentes a tudo o
que nos cerca. Tende, portanto, a produzir entre os homens uma
verdadeira separação: podemos perguntar-nos se a simpatia ou
a piedade algum dia conseguirão vencê-la; acontece que elas a
acusem; e, no dia que logram atravessá-la, temos a impressão de
que uma espécie de milagre acaba de se produzir, em que a pró
pria divindade parece presente. Não apenas o homem que sofre
sempre começa por recolher-se em si mesmo e, em certo sentido,
por perder o contato com o outro, mas também lhe parece que
existem tanto na intensidade quanto na qualidade da dor que
ele sente certas características que ele é o único a experimentar:
"Vocês não podem imaginar a que ponto estou sofrendo, nem a
natureza de meu sofrimento:' Vemos até o próprio animal isolar
-se para sofrer. E nessa separação existe uma dor nova, que, no
entanto, é aceita: trata-se de uma fuga, a um só tempo instintiva e
voluntária, que não deixa de conter uma busca de si. "Deixe-me",
diz o homem que sofre, assim que se sente solicitado seja por uma
obrigação, seja pela amizade. Aqui, como se vê, a dor se torna um
mal, não porque nos encerramos em nós mesmos, onde podemos
encontrar o princípio de nosso aprofundamento, mas porque há
o risco de ela fazer dessa separação um uso negativo, de desejá
-la, de apegar-se a ela, de agravá-la indefinidamente. Rompemos,
então, todas as nossas relações com o mundo para encerrar-nos
74 I O Mal e o Sofrimento
num egoísmo doloroso, no qual a consciência também participa
de uma atitude de revolta e já pende a uma complacência para
com seus próprios estados.
d. A complacência
A complacência no sofrimento parece, de fato, uma espécie de
paradoxo. É o verdadeiro contrário da revolta, muito mais que o
abatimento, ao qual o havíamos inicialmente oposto. Aqui já não
se busca repelir a dor para fora de si, mas, ao contrário, mantê-la
e nutri-la no fundo de si. É dessa dor que se extrai uma sorte de
volúpia. Ama-se essa fruição amarga. E, no entanto, a revolta está
menos distante do que se imagina dessa complacência, pois todas
as atitudes negativas têm parentesco entre si. Assim, acontece que
a nossa revolta contra o mundo se fortaleça pelo próprio senti
mento de sofrer por meio dele e de ter razão contra ele. Queremos
que a própria injustiça que sofremos nos pareça sempre maior,
como que para melhor nos justificar.
Essa complacência no sofrimento é também uma complacên
cia em nós mesmos: isso porque, como o sofrimento pertence a
nosso ser mais pessoal, como em certa medida ele é a marca da
delicadeza de nossa consciência, parece elevar-nos. Separa-nos,
mas também nos distingue. Os sofrimentos que experimenta
mos mas que os outros homens, por sua vez, não conheceram
parecem ser a marca do destino em nós. Sempre existe neles um
caráter excepcional: queremos que pareçam inauditos. Explica
-se, assim, que exista uma espécie de cultura do sofrimento.
Compreende-se que certas formas baixas e populares da curio
sidade atraiam o olhar para o sofrimento, cujo simples espetá
culo parece proporcionar não se sabe que obscura satisfação.
O prazer não tem história; mas o menor sofrimento basta para
atrair nossa atenção e nossa emoção. Podemos até perguntar
-nos se a maioria dos homens é capaz de se abalar por um sen
timento profundo sem experimentar algum sofrimento. Sendo
assim, parece que nossa sensibilidade se mede muito menos
por nossa aptidão para o prazer do que por nossa capacidade de
sofrer. Daí a explicação, também, para o fato de tantos gêneros
literários - como o drama trágico e a poesia lírica - terem o
2 O Sofrimento 1 75
-
sofrimento por objeto. É que a pessoa só se revela, só penetra até
a extrema profundidade de si mesma, só está segura de haver
descoberto seu ponto de inserção no mundo e o valor supremo
ao qual está ligada quando é obrigada a reconhecer que sofre.
O mal aqui reside precisamente nessa suspeita com respeito ao
universo, à qual se mescla tanta ternura por nós mesmos, e que
nos faz amar demasiadamente nossa dor.
5. As atitudes positivas
76 1 O Mal e o Sofrimento
que ela é capaz de nos dar quando a vontade a isso se aplica como
devido. Concordaremos facilmente que existe na dor um dilacera
mento, uma divisão de si consigo, um conflito e até uma ruptura
do ser interior. A unidade de nossa consciência é abolida, porque
encontramos em nós a um só tempo um ser que sofre e um ser
que não quer sofrer. Mas é justamente isso o que nos convida a
indagar se ela realmente é, como se pensa, "uma privação de ser".
Ora, ao que parece, isso é verdadeiro e falso ao mesmo tempo:
verdadeiro porque só existe dor onde existe uma lesão, uma fe
rida que nos afete, e falso porque ela confere à consciência uma
extraordinária exaltação, já que oferece, diante dos estados de
paz e tranquilidade que a precederam, um relevo psicológico im
pressionante: por isso os homens lhe atribuem uma importância
privilegiada em sua vida pessoal, como se ela constituísse, pro
priamente, a parte mais pessoal deles próprios. É algo admirável
que pela pressão da dor - sempre recusada por nós - nossa vida
possa receber, graças à maneira como nossa vontade dispõe dela,
seus mais belos desenvolvimentos.
Quando nos perguntam qual é a significação que a dor pode
ter para nós, isto é, a significação que nossa vontade é capaz de
lhe dar, percebemos então que ela pode ser alternadamente, para
nós, uma advertência, uma condição de nosso aprimoramento e
de nosso aprofundamento, um meio de comunhão com as outras
consciências e, enfim, um instrumento de purificação interior.
a. A advertência
Que a dor seja uma advertência, isso é observado pelos psicó
logos, que nela veem um sinal precursor de um perigo que nos
ameaça. Essa observação já bastaria para mostrar que a dor não
é em si mesma um mal, mas uma reação, por vezes benfazeja,
a um mal iminente. Estremece-se quando se considera a que
ponto um ser que não sofresse, e não tivesse para reconhecer o
que poderia ser-lhe nocivo, senão os recursos que a ciência lhe
oferecesse, estaria ao mesmo tempo desamparado e vulnerável.
A dor é, antes de tudo, um sintoma, que, pelo protesto que susci
ta em nós, deve mobilizar todas as nossas potências interiores e
dirigi-las para nossa defesa.
2 O Sofrimento 1 77
-
No entanto, as coisas não são tão simples. A dor jamais é pro
porcional ao perigo e pode até estar ausente em caso de perigo
extremo, embora se possa compreender que, se o papel da dor é
despertar a consciência para que esta pense em defender a vida,
ela deixe de aparecer quando nossa vitalidade está tão profunda
mente afetada que já não tem forças para reagir.
Mas não podemos fazer apologia da dor dizendo que ela não
passa de uma reação espontânea de nosso ser diante do perigo
que o assalta, que está aí expressamente para desencadear em
nós movimentos de defesa. Seria talvez conceder demais ao ins
tinto e à finalidade. Pode muito bem acontecer que haja nela uma
ameaça: mas sempre será preciso que a interpretemos. Ela não
é, em si mesma, uma advertência: mas podemos fazer com que
venha a sê-lo.
Por outro lado, o perigo nem sempre está fora de nós: não raro
está em nós; acontece até, quando sofremos, que o perigo esteja
ausente. Mas a dor sempre cria em nossa consciência um confli
to entre o que nos afeta e o que queremos, e nesse conflito nossa
consciência não pode permanecer. Ora, cabe à nossa atividade
pessoal restituir aquela unidade interior perdida. A dor convida os
seres mais frívolos a refletir, não apenas para encontrar os meios
de expulsá-la, mas também para compreendê-la, para apreender
as razões do desacordo que se estabelece de súbito entre o real e
nós, para superá-lo, mas por um enriquecimento que deve preen
cher nossa vida e dar sua significação a nosso destino.
b. O aprimoramento e o aprofundamento
É uma visão muito superficial de nossa consciência a que nos
faz pensar que a dor constitui apenas um estado isolado, que
ocorreria de tempos em tempos e poderia ser eliminado por nós
enquanto todos os outros seriam preservados, sem que, por isso,
sofrêssemos perda alguma. Todos os nossos estados interiores
são solidários uns dos outros: não se pode realizar uma seleção
entre eles sem comprometer a unidade inteira de nosso ser. O que
valemos, nós o valemos pelos sofrimentos que suportamos, tanto
quanto pelas alegrias que nos foram dadas.
78 1 O Mal e o Sofrimento
Mais que isso: tais alegrias e tais dores dependem umas das
outras mais estreitamente do que se imagina. A capacidade de
sentir dor e a de experimentar prazer não constituem senão algo
uno: são os dois aspectos indissociáveis da sensibilidade. Não é
possível tornar-se insensível à dor sem se tornar insensível ao
prazer, como o demonstra o uso dos anestésicos. Nossa aptidão
para sofrer é o próprio sinal de nossa delicadeza. "Que coisa frágil,
o homem!" Um nada é suficiente para feri-lo: e é essa ferida sem
pre iminente que dá a todos os seus contatos com as coisas ou os
seres um significado tão sutil. Em todas as démarches de nossa
consciência, onde quer que a inteligência ou a vontade atuem, é
essa dor muito próxima o que as torna tão atentas, o que lhes dá
a um só tempo o tato e a penetração. Assim, vê-se que todos os
pontos sensíveis que a dor nos revela - toda a dor experimen
tada ou possível na extremidade de nossa consciência -, em vez
de pertencerem a uma parte tenebrosa e maldita de nós mesmos,
que não quereríamos senão amputar, contribuem para nos dar
mais luz, para aguçar nossa atividade, ao descobrir diante dela os
valores mais finos. Jamais se há de esquecer, porém, que a dor não
pode produzir nenhum desses efeitos por si mesma: para muitos
ela é uma derrota perpétua, e apenas para alguns é ocasião de vi
tórias sempre novas.
Para se pronunciar sobre o valor da dor, não é necessário pôr
em questão a própria causa que a produziu. É tão somente do uso
que fazemos dela, e não da grandeza do acontecimento que a sus
citou, que depende sua significação espiritual. Mesmo a dor mais
débil, cuja origem nos escapa, já possui uma espécie de profundi
dade metafísica. Nada conta aqui além da atitude de quem a sofre.
A dor física antes de tudo nos revela a presença de nosso corpo e
confere ao sentimento que temos dele uma extrema delicadeza.
E o corpo se torna presente para nós não como objeto, nem como
obstáculo, mas na própria vida que o anima, inseparável da cons
ciência que temos de nós mesmos. A consciência da vida em nós
sempre nos acompanha, mas não raro permanece obscura. A dor
a reaviva. É a própria vida o que ela nos descobre, por meio da
sequência de suas oscilações, por meio de seu fluxo e seu refluxo,
seus impulsos e suas quedas, no apego violento que temos a ela e
na renúncia que ela já solicita de nós e que um dia exigirá de nós.
2 O Sofrimento 1 79
-
O que dizer do sofrimento moral, que sempre nos proporciona
uma verdadeira revelação? O sofrimento moral desvela tudo o que
amamos. Traz à luz todas as misteriosas potências, todos os vín
culos obscuros que residem nas partes mais recônditas de nosso
ser. Desse modo, em vez de estreitar nossos limites, amplia-os in
cessantemente. No entanto, seu papel é menos o de nos ampliar
que o de nos aprofundar. Fornece-nos um conhecimento que está
muito distante do relativo ao objeto, que sempre permanece, até
certo ponto, exterior a nós. O puro saber reside sempre na super
fície da consciência, enquanto a dor desce em nós até a essência
indissociável do valor. Dissipa todos os estados aos quais nossa
alma se havia entregado até então, e que são da ordem da frivoli
dade ou da pura distração. A dor é sempre grave, e é ela que confe
re à vida sua gravidade. Não pretendemos dizer que a dor seja por
si mesma um bem. Ao contrário, é um bem que nos é arrancado:
mas é justamente a consciência desse arrancamento que escava
nosso ser interior e, ao despojá-lo do que ele tem, o mergulha no
que ele é; que, ao lhe revelar o sentido do que ele perdeu, lhe dá in
finitamente mais. A dor entra em carne viva na consciência: sulca
-a até a raiz. Permite-nos avaliar o grau de seriedade que somos
capazes de atribuir à vida. Alguns seres puderam ser modificados
pela experiência que fizeram da dor, ainda que não tenham guar
dado sua lembrança.
A dor, por conseguinte, pode aprimorar-nos ou aprofundar
-nos, contanto, como se vê, que, em vez de considerá-la uma
estrangeira que buscamos rechaçar ou pela qual nos deixamos
subjugar, consintamos de certa forma em assumi-la, para incor
porá-la a nós mesmos e fazer dela o meio de nosso próprio de
senvolvimento. A dor está sempre ligada à ideia de uma falta ou
de uma insuficiência. É a consciência que adquirimos de todas as
formas da nossa miséria: por isso, o maior elogio que podemos
fazer-lhe é dizer que a pior miséria seria, para nós, não senti-la.
No entanto, trata-se menos, para nós, de nos livrar da dor do que
de reparar a insuficiência de que ela é o sinal; ela se torna, então, a
condição de nosso progresso interior. De fato, a consciência nada
possui de maneira estável; não passa de transição e passagem. Ja
mais pode contentar-se com nada. Mas tudo o que ela possui deve
ser-lhe dado por ela mesma.
80 1 O Mal e o Sofrimento
A pior ilusão em que se pode cair, quando se considera a dor
como um mal que se trata tão somente de abolir, é pensar que
uma única coisa importa: voltar a um estado no qual não se sofre,
isto é, ao próprio estado em que estávamos quando a dor come
çou. Mas como isso seria possível? A consciência não pode tomar
como objeto do desejo um estado pelo qual já passou uma vez;
não pode orientar-se inteiramente para um objeto negativo, como
a não dor. Isso seria dar provas de que, nesse âmbito, se prefere
o nada ao ser. A dor só tem sentido para nós se nos obriga, pela
impossibilidade em que estamos de tolerá-la, a nos elevar a um
estado que a supere, mas que represente para nós um progresso
e não um recuo, e que não teria para nós tanta força nem tanta
riqueza se não a houvéssemos atravessado.
Pode-se dizer, por conseguinte, que a possibilidade de sofrer
mede, em certo sentido, a potência de ascensão da qual cada um
é capaz. No limite inferior, certos seres só conhecem o sofrimento
físico: não desejam nada além de evitá-lo; não fazem nada além
de padecê-lo. O sofrimento tem como limiares a sensação e a
própria resistência da vida. No outro extremo, existem seres que
estão dispostos a pensar que só as dores morais contam verdadei
ramente. Ora, pode-se dizer que a possibilidade de sofrer moral
mente é ilimitada: cresce com a própria consciência. Não existe
uma única região de nossa vida interior que o sofrimento não
possa um dia penetrar. Toda nova aquisição é ocasião para uma
nova ferida. É no intervalo entre o que temos e o que desejamos
que reside, aqui, a aptidão para sofrer, que é apenas o reverso de
nossa potência ascensional.
e. A comunhão
A mesma dor suscetível de produzir e agravar incessantemen
te nosso isolamento e de nos separar cada vez mais dos outros
homens deve poder tornar-se, é evidente - assim que nossa liber
dade dela se aposse, e visto que os contrários são sempre solidá
rios -, um fator de comunhão que os reúne. A comunhão será até
mais estreita quanto mais radical a separação ameaçava ser. Isso
porque, se a separação for vencida, a comunhão deverá ocorrer
na parte mais íntima de nós mesmos, precisamente onde a dor
2 O Sofrimento 1 81
-
nos obrigava a recolher-nos. A dor, na medida em que interessa
à parte passiva de nosso ser, está sempre ligada a alguma ação
exercida em nós pelas coisas ou pelos homens. Por conseguinte,
quem sofre sempre sente sua ligação com o que o faz sofrer. Na
medida em que rompemos os vínculos que nos ligavam ao que
nos cerca, como se vê na indiferença, diminuímos também nossa
capacidade de sofrer. Se a dor nos afeta, demonstramos assim
nossa união - muito mais que nossa separação - com aquilo que
nos afeta. E esses dois efeitos não são contraditórios senão em
aparência; é no momento em que o ser se separa voluntariamen
te do que o faz sofrer que ele dá à dor um caráter propriamente
egoísta: mas, quando esse desprendimento pode ocorrer, os laços
espirituais já estão rompidos e a dor perdeu sua acuidade. No en
tanto, é pelos seres que mais amamos que experimentamos mais
dor, assim como é por eles que experimentamos mais alegria.
Existe uma infinidade de maneiras, para os diferentes seres, de
sofrer uns pelos outros. E esse sofrimento será maior quanto mais
eles se aproximarem. Tem seu fundamento não só na pluralidade
dos indivíduos, a qual deixa subsistir entre eles uma distância im
possível de abolir, necessária para que se comuniquem, mas tam
bém na diversidade deles, diversidade tal que o que existe neles
de mais original constitui também o obstáculo contra o qual seu
esforço de comunicação sempre se choca. É aquilo que gostaría
mos de penetrar que é impenetrável. É o que gostaríamos de dar
que não pode ser recebido. Nosso sofrimento pelo que nos separa
é proporcional, portanto, ao desejo de união que existe em nós.
Sofremos pelo que nos une proporcionalmente à própria intensi
dade dessa união, como mostra a simpatia que torna os sofrimen
tos comuns. Sofremos por todos os sinais de imperfeição ou de
insuficiência, por todas essas marcas de fracasso que dão provas,
em nós, de nossa indignidade de ser amados e, em outro, da im
potência de nosso amor.
A comunhão entre os seres só é possível se eles se sentirem
inicialmente separados. E só se inicia, inclusive, a partir do mo
mento em que ambos estão seguros de estar, um e outro, encer
rados na intimidade de sua própria solidão. Até então, nenhuma
comunicação entre eles poderia ser válida. Eles só podem agir
82 1 O Mal e o Sofrimento
verdadeiramente um sobre o outro na parte mais inviolável de si
mesmos, onde tudo o que se oferece, tudo o que se aceita, parece
romper igualmente o pudor. A individualidade dos diferentes se
res é, de início, um efeito da matéria: e sabe-se que, para os mais
delicados, ser tocado já é sentir-se ferido. O que se deveria dizer
do contato que pode ocorrer entre duas vontades? Não podemos
pensar em nossa solidão, que alguém penetrará, e na solidão
alheia, que para nós se abrirá, sem experimentar uma espécie de
dolorosa ansiedade. Em todas as formas mais elevadas de comu
nhão entre dois seres humanos, nas quais reinam uma confiança
e uma alegria quase contínuas, é preciso que essa ansiedade per
maneça, uma ansiedade que é também a marca do caráter sagra
do da solidão e do milagre que a supera. Isso basta para mostrar
como, no ápice da consciência, todos os estados que até então se
opunham e formavam a condição de sua ascensão se encontram
agora confundidos: a separação está unida à comunhão, e o sofri
mento à alegria.
d. A purificação
Ao afirmarmos que a dor é um meio de aprofundamento, já
mostrávamos que é um meio de despojamento e de purificação.
Se um vínculo sempre foi estabelecido entre a vida espiritual e
o despojamento ou a purificação, se até foi possível confundi
-los, é porque nossa vida espontânea nos entrega a todas as im
pulsões da natureza, a todas as influências do meio, e porque
é próprio da vida espiritual, ao contrário, desviar-nos de tudo
isso para nos permitir reencontrar a nós mesmos no exercício
puramente interior da atividade que nos faz ser. No entanto,
quase sempre se admite que o caráter original da consciência
é produzir, à medida que ela se eleva, um enriquecimento de
nós mesmos. Mas será esse enriquecimento essencial? Pode-se
concordar que ele seja suscetível de ameaçar a unidade interior,
e até que toda nova aquisição crie, para nós, um novo perigo.
Em âmbito algum, mesmo o mais puro, a alma deve deixar-se
guiar pelo desejo de possuir: e é sempre deplorável falar de bens
espirituais como se fala de bens materiais. O que conta não é o
que temos, mas nossa atitude diante do que temos. Não se deve
2 · O Sofrimento 1 83
extrair disso uma satisfação de amor-próprio nem um motivo
de distração. Caso contrário nossa personalidade se dissolve, em
vez de crescer. Em todos os bens a que estamos apegados, existe
um objeto que pertence a nós, mas que não somos nós, que nos
faz sair de nós mesmos e que é, justamente, aquilo de que nos
envaidecemos. É difícil, decerto, realizar o desapossamento com
respeito ao que possuímos e, mais difícil ainda, com respeito aos
bens invisíveis, como o saber, a inteligência e a virtude, porque
deles se extrai um contentamento que parece mais desinteres
sado, mas que não raro é apenas uma vaidade mais profunda e
mais sutil. O sentido do despojamento é sempre desviar o ser do
que ele tem para recolhê-lo no que ele é.
Ora, a dor é para nós um fator de despojamento. Esse, sem
dúvida, não é seu primeiro efeito, que é, ao contrário, de sentido
inverso. Pois ela é primeiro uma violência que nos é imposta e
na qual sentimos, mais vividamente do que jamais o havíamos
sentido, nosso apego ao bem que acaba de nos ser retirado. Mas a
purificação só pode ocorrer numa segunda etapa, que nos obriga
a exercer todas as potências de nossa alma para avaliar - e ressus
citando em nós sua presença - o valor desse objeto que perdemos.
É aqui que a atividade espiritual começa a entrar em jogo.
Por vezes esse objeto nos parece insignificante: então a dor
cessa e temos a impressão de um livramento. Outras vezes, ao
contrário, seu valor não para de se multiplicar e de sobressair,
agora que estamos privados de sua presença sensível, como
acontece com a morte de um amigo. Parece-nos que só então co
meçamos a conhecê-lo e que até então não o havíamos amado
verdadeiramente. Assim, nossa dor muda de natureza: aprofun
da-se e espiritualiza-se. Não é uma nostalgia estéril; abala todas
as potências de nossa alma. Torna o amigo vivo em nós, realiza
com ele a união que havíamos buscado outrora e que relações
demasiado felizes ou demasiado fáceis haviam impedido, porque
faziam as vezes dessa união.
Desde sempre a consciência popular considerou a dor como
um meio de purificação. Isso se vê claramente na ligação imedia
ta que estabelecemos entre o erro e a punição, sem que o valor
da punição jamais seja esgotado, quando se busca reduzi-lo seja
84 I O Mal e o Sofrimento
à vingança, seja à utilidade. Não é apenas em razão da unidade
indissolúvel da consciência que exigimos, quando a vontade fez o
mal, isto é, cometeu um erro, que a sensibilidade também experi
mente um mal, isto é, padeça uma dor. Não vemos aí apenas um
restabelecimento, por uma espécie de compensação, da harmonia
quebrada. Acreditamos mais ou menos obscuramente, como os
primitivos - mas também como Platão, que ilustrou admiravel
mente essa antiga crença -, que existe na dor uma virtude puri
ficadora: é um movimento natural da alma que nos faz procurar,
quando a infelicidade chega, mesmo quando pensamos que só
existe nisso um resquício de superstição, o que pudemos ter feito
para merecê-lo. E parece-nos que, assim como existe um amargor
nos remédios que curam os males do corpo, assim também é pre
ciso que a amargura da dor seja a cura dos males da alma.
Até isso, porém, exige explicação. Não deve haver aí um sim
ples erro venerável que continue a nos iludir sem nos proporcio
nar luz alguma. Se a dor nos purifica, devemos ver como é capaz
de fazê-lo e seguir os movimentos da alma pelos quais essa pu
rificação se realiza. Primeiramente, porém, não é a dor em si que
purifica, assim como não é o amargor que cura. Toda purificação,
toda cura, se realiza por uma reação da alma ou do corpo, da qual
a dor é apenas a marca. Que não se imagine, ademais, quando a
consciência está em jogo, que a dor sofrida baste para apagar o
erro: de fato, ela pode agravar o mal, em vez de apagá-lo, ao pro
vocar em nós raiva ou rancor. A dor só pode purificar-nos se for
aceita, se existir um vínculo real entre ela e o erro, se for o próprio
erro o que a provoca por uma reflexão que a isso se aplica e que a
transforma, enfim, se for desejada ao mesmo tempo que é sofrida:
nisso consiste a própria definição do arrependimento.
A partir daí, a punição do corpo, quando a alma cometeu um
erro, é apenas uma imagem: ela assinala muito bem o caráter de
limitação e passividade que é inseparável de toda dor. Mas não é
a punição do corpo o que cura. Esta é uma espécie de substitui
ção temporária da dor que deve ser provocada, nele próprio, por
aquele que fez o mal; destina-se a chamá-la ou despertá-la, mas
não raro a impede de nascer. Ora, a dor só purifica se quem a sofre
é também quem a inflige.
2 - O Sofrimento 1 85
A cura é uma conversão interior da alma; e essa conversão
não pode ocorrer sem a lembrança do erro, cuja mera repre
sentação basta para me fazer sofrer. Mas o sofrimento, então, é
indissociável da purificação. De fato, ninguém poderia livrar
-se do mal se não sofresse por havê-lo cometido, e o sofrimen
to é aqui um efeito da reflexão. Existe no arrependimento e no
remorso, assim como na reflexão, mesmo quando eles nascem
quase espontaneamente, um recolhimento em si, uma reava
liação do que ocorreu e do que fizemos. Talvez seja verdadeiro
dizer que ninguém suporta a visão de seu passado sem sofrer.
Ao menos importa distinguir, nesse movimento retrospectivo,
o remorso, que nos deixa bloqueados na dor do erro passado e
fecha para nós todos os horizontes, e o arrependimento, que só
tem consideração pelo passado porque deseja que o futuro seja
diferente. Só o arrependimento é um sofrimento que nos trans
forma, um sofrimento que está na origem de todo recomeço, de
todo renascimento.
O arrependimento nos mostra, aqui, uma ligação singular
mente estreita entre a vontade e a sensibilidade. O erro foi outrora
um ato voluntário: pertence agora ao passado, sobre o qual já não
tenho influência. Só posso ter relação com ele, portanto, por sua
repercussão em minha sensibilidade, isto é, na parte passiva de
mim mesmo; só encontro em mim o traço que ele deixou. Mas
esse traço só é doloroso por minha vontade presente, que não
quer identificar-se com o que o erro fez de mim. Reconheço-me
em quem o cometeu, mas sofro porque não aceito continuar a sê
-lo. E o sofrimento se confunde com o ato que me regenera; é um
sofrimento eficaz, que o malvado desconhece e o homem honesto
alimenta, em vez de extenuar.
No ponto a que chegamos, a dor deixa de ser o escândalo inin
teligível que parecia no início. Tornou-se o sofrimento moral que,
longe de produzir o mal, nos livra dele, que, longe de ser imposto,
é, ao contrário, desejado. Aqui existe identidade entre a ideia do
erro e o sofrimento em si: ter consciência do erro, é isso o que é
sofrer. Não será motivo de surpresa, portanto, o caráter libertador
e purificador da ideia do erro, pois que ter consciência do erro já
é estar além.
86 I O Mal e o Sofrimento
6. Conclusão
2 - O Sofrimento 1 87
PARTE II
TODOS OS SERES,
SEPARADOS E UNIDOS
INTRODUÇÃO
92 1 O Mal e o Sofrimento
reside nas coisas cegas e indiferentes que estão espalhadas à nos
sa volta e contra as quais nosso corpo não para de se chocar; isso
porque as coisas só têm sentido pela inteligência que as ilumina
ou pela vontade que as transforma; elas testemunham uma ativi
dade espiritual decaída, ou que ainda não se ocupou delas a fim
de animá-las e regenerá-las. Não existe existência além da que é
interior a si mesma, a que possui iniciativa criadora e consciência
de si. As coisas então se tornam os instrumentos sem os quais as
consciências não poderiam exercer e manifestar suas potências,
nem ser separadas umas das outras, nem atestar ao mesmo tem
po sua presença uma para a outra.
Assim, é ao aprofundar o problema da solidão e da comunhão
que o próprio mistério do Ser poderá ser esclarecido, pois cada
consciência nasce perpetuamente para si mesma num universo
do qual, no entanto, é inseparável. É só nela que podemos espe
rar captar a potência criadora mas, por assim dizer, retida e apri
sionada em nossos próprios limites: ora, é nesses limites que a
solidão se revela a nós como um sofrimento, embora ela possa
multiplicar nossa força e nossa luz ao nos aproximar incessante
mente da fonte de onde elas jorram. Mas, se temos limites e pode
mos, contudo, atravessá-los, encontrando outras consciências que
podem tanto restringir a nossa quanto desenvolvê-la, é porque a
diversidade dos seres capazes de criar-se, de buscar-se uns aos
outros ou fugir uns dos outros, de prestar assistência mútua ou de
combater-se uns aos outros é um todo solidário no qual cada um
forma sua própria vocação espiritual ao contribuir para a forma
ção dos outros.
Então se compreende por que, de todos os problemas que a
reflexão formula e a vida nos impõe, não exista outro mais cons
tante, mais profundo e mais dramático que o da solidão em que
cada ser se encontra encerrado e da comunhão com outro, que
sempre é para ele objeto de esperança suprema e de supremo pu
dor. O mundo se torna tenebroso para nós e a angústia se apodera
de nós assim que aplicamos a nós mesmos a verdade do antigo
adágio: todo homem está condenado a viver e a morrer sozinho.
E, no entanto, não existe homem que não tenha conhecido cer
tos encontros, nos quais outro homem se revelava muito próximo
Introdução l 93
dele, já associado a ele no sentimento de um destino que lhes era
comum, de uma presença mútua impossível de abolir e que lhes
abria, a ambos, acesso a um mundo espiritual e luminoso do qual
a solidão os separava, mas que agora já não tem partes secretas,
que só encerra intenções e significações, onde só se encontram
atos de pensamento e de vontade que, buscando respectivamente
cumprir-se e sustentar-se, jamais deixam ser algum sem iniciati
va nem socorro.
94 J O Mal e o Sofrimento
l . A SEPARAÇÃO
1. A célula secreta
2. O risco da solidão
96 1 O Mal e o Sofrimento
também, em toda existência humana, momentos de descontração
e de entrega, nos quais a solidão deixa de ser sentida, nos quais o
homem reencontra em si, numa sorte de jogo, o instinto do ani
mal e a inocência da criança: por meio deles voltamos à humilde
fonte da vida; por meio deles reencontramos a unidade e o equi
líbrio, que a reflexão não para de romper, entre todas as forças in
teriores. Mas só nos tornamos uma consciência, uma pessoa, um
foco autônomo de existência se nos separamos da natureza com
que estávamos de início confundidos, se o mundo inteiro acaba
por nos faltar, se temos força para romper com todos os objetos
circundantes que, até então, não paravam de nos sustentar e nos
comover. É preciso haver experimentado a miséria de um eu des
provido de tudo e acuado na experiência da solidão absoluta, isto
é, na experiência de si próprio, para encontrar no recurso a si, isto
é, na descoberta de uma atividade cujo exercício depende de si, a
responsabilidade por seu próprio destino. É preciso haver corrido
o risco de permanecer sempre solitário, ansioso e impotente para
estabelecer, com o mundo do qual nos havíamos de início separa
do, relações que, em vez de ser entregues à natureza, são efeito da
vontade e do amor.
Nossa vida só pode adquirir um caráter de profundidade no
momento em que pensamos que ela é bem nossa e em que, nessa
intimidade inefável em que podemos dizer "eu", estamos sós no
mundo e o mundo nada pode fazer por nós. Assim, a solidão é a
ferida em permanente carne viva pela qual desprendo, da existên
cia do Todo, uma existência que me é própria e cuja simples cons
ciência basta para me dar uma espécie de vertigem. Alguns dirão
que aí está a iminência de uma alegria que ainda não temos força
para suportar, e como que o inebriamento oscilante, inseparável
de nossos primeiros passos. Isso seria verdadeiro se a consciência
não nos revelasse, na presença da vida, nada além de um impul
so conquistador. Mas a consciência é precisamente o contrário;
ela rompe esse impulso, volta-o contra si própria; obriga-me a
suspendê-lo para julgá-la. Entrega sua disposição e seu uso a um
ser que ainda não é nada, porque deve dar-se o ser a si mesmo, e
que avalia, no entanto, sua fraqueza e treme por sentir-se entregue
exclusivamente a seus recursos, nesse horizonte subjetivo em que
sabe estar encerrado e que ninguém penetrará.
1 - A Separação 1 97
Mas nossa solidão sempre é ainda mais inacessível do que
acreditamos. Isso porque o difícil para nós não é apenas formar
uma sociedade com outro, é antes de tudo formar uma verdadei
ra sociedade com nós mesmos. De fato, é próprio da consciência
criar um diálogo, um debate interior no qual jamais consigo obter
uma perfeita coincidência comigo. Jamais chego a expressar, nem
sequer a encontrar, tudo o que sou. Nem sempre me reconheço
nos atos que realizo, nem nas palavras que pronuncio, nem na
ideia que concebo de mim mesmo. Minha atividade mais profun
da tem obstáculos demais por superar antes de lograr emergir;
vem traçar na superfície de minha consciência uma imagem in
certa de mim mesmo que eu jamais ratifico inteiramente.
Poder-se-ia até dizer que sempre começo a me comunicar com
os outros assim que começo a me comunicar comigo mesmo. Tan
to é assim, que a solidão mais trágica é a que me impede de forçar
as barreiras que separam o que acredito ser daquilo que sou: nes
te caso, minha consciência se tornou tão alheia a meu verdadeiro
ser e minha aflição é tão grande, que não posso dizer o que dese
jo nem o que me falta. Solidão é sentir em si a presença de uma
potência que parece incapaz de exercer-se, mas que, assim que
começa a fazê-lo, me obriga a me realizar multiplicando minhas
relações comigo mesmo e com todos os seres.
98 1 O Mal e o Sofrimento
De início a solidão é apenas um refúgio em nós mesmos, sem
o qual nossa existência individual e subjetiva não poderia consti
tuir-se. E pressentir ao redor de si outras consciências solitárias é
redobrar a própria solidão; já é, no entanto, superá-la. Isso porque,
assim que consciências diferentes começam a se encontrar, o sen
timento da solidão se modifica e se define; deixa de ser puramente
metafísico: torna-se psicológico; sempre tem como contrapartida
a ideia de uma comunicação impossível ou malograda.
Não podemos encontrar em nosso caminho outros seres que
têm, como nós, um segredo e uma intimidade - que parecem ca
pazes de se comunicar conosco, mas apenas até certo ponto, além
do qual nos martirizam e nos ferem, e que possuem uma iniciati
va pela qual desmontam nossas previsões e nossos cálculos - sem
dirigir-lhes uma interrogação muda. O que vão proporcionar-nos
e o que somos capazes de entregar-lhes que eles estejam em con
dições de acolher? Que riquezas permitirão que eu descubra seja
neles, onde poderei haurir por sua oferenda, seja em mim, onde
até então permaneciam ocultas? Que luz, que alegrias, que sofri
mentos eles têm ocultos no olhar e nas mãos?
Por isso, o sentimento da solidão se torna para nós um fardo
intolerável quando, ao lançar o olhar para outros seres que nos cer
cam e cujo destino é inseparável do nosso, nos damos conta de que
não podemos ter com nenhum deles senão relações exteriores e
aparentes: como evitar, então, que nos autocensuremos por uma
falta de abertura ou por uma falta de amor que os obriga a nos
repelir ou nos impede de encontrar acesso até eles? Os homens
passam uns ao lado dos outros, realizam certos movimentos, pro
nunciam certas palavras, servem-se uns dos outros como de coisas,
mas guardam no fundo de si mesmos o segredo de seu ser próprio,
que por vezes procuram defender, quando, para eles, é tão difícil
revelá-lo. E, se nos sucede dirigir aos outros o mesmo olhar pro
fundo que dirigimos a nós mesmos, enquanto pensamos que eles
têm, como nós, uma vida subjetiva e incomunicável, o sentimento
de nossa própria solidão redobra e se multiplica: estremecemos ao
evocar tantos refúgios misteriosos destinados a permanecer eter
namente selados, embora já seja sair do nosso, pela imaginação e
pelo desejo, suspeitar uma infinidade de outros em torno de nós.
1 - A Separação 1 99
Na atitude do outro para conosco, se nenhum interesse estiver
em jogo, não raro só discernimos indiferença. Essa indiferença,
porém, é algo que suportamos muito diversamente. Algumas ve
zes, ao vermos que nossa existência própria não atrai para si ne
nhum olhar de atenção ou de amor, sentimo-nos rechaçados para
fora da existência, como se fôssemos incapazes de encontrar em
nós mesmos algo que pudesse sustentar-nos. Outras vezes essa
indiferença é aceita por nós como demonstração humilhante de
nossa tibieza, de nossa incapacidade para sair de nós mesmos,
de nossa falta de confiança e de impulso. E em certos casos, por
fim, ela nos parece uma segurança, um benefício pelo qual so
mos reconhecidos aos que nos cercam, a um só tempo por certa
complacência amarga com nossos pensamentos solitários e pela
assunção de que toda relação viva com outro ser produz em nós
algum martírio.
A indiferença, porém, seja quando parte de nós, seja quando
parte dos outros, assemelha-se à inércia e à morte. Ou antes, é
uma morte viva, pior que a morte, pelo sentimento da presença
de uma oferta que nos é feita, que é a da vida, à qual nada em
nós nem fora de nós vem responder. No entanto, não é possível
ignorar que a indiferença aparentemente mais invencível não
raro esconde um desprezo, uma repulsa desmedida por todos os
contatos superficiais que bastam para a maioria dos homens, a
exigência ardente de uma doação de si que não encontra emprego
e na qual o ser não cessa de se consumir.
No entanto, embora a solidão da indiferença se assemelhe a
um deserto, ela não nos restringe, não nos contrai tão dolorosa
mente dentro de nós mesmos quanto essa outra forma de solidão
que segue o movimento pelo qual todo o nosso ser se conduz para
outro e se vê repelido. Sucede porém que, enquanto a verdadeira
indiferença é sempre irremediável, aqui, ao contrário, podem dis
tinguir-se graus. Quem me rejeita não me ignora; não faz de mim
um puro objeto; pode reconhecer em mim uma vocação que me é
própria, que não encontra a sua, embora ambas estejam inseridas
no vasto mundo. Quando sinto no outro uma hostilidade, ele já
está, ainda que não o pareça, mais próximo de mim; interessa-se
por minha própria vida, que ele só parece querer aniquilar porque
No entanto, basta que outros seres possuam, como eu, uma in
timidade que lhes é própria para que, tão logo a menor abertura
me seja dada para ela, ela me pareça tão diferente da minha, que a
esperança de romper minha solidão se transmute numa decepção
que a torna mais amarga. Cada um se descobre como um indi
víduo distinto de todos os outros: no mundo interior não existe
nada que possa ser tomado de empréstimo ou cedido em em
préstimo; não existe território banal cujo uso possa ser comum
a várias pessoas. Cada um é obrigado a ter uma existência que só
pertence a ele, cujo valor inteiro provém do fato de ela ser sua e,
por conseguinte, única, e que em sua originalidade mais sublime
não pode ser assimilada nem compreendida por ninguém. Não
existe nada em minha consciência que possa aí fazer viver o es
tado de outro. Todos nós temos disso o mais vívido sentimento;
e, quando alcançamos esse reduto inviolável da individualidade,
estamos sempre prontos para dizer a nosso amigo mais fiel: "Nes
te ponto você já não pode entender-me:' Mesmo as palavras do
vocabulário comum pelas quais buscamos traduzir nossos movi
mentos mais secretos têm para nós uma ressonância que jamais
terão para outro. Existe em cada ser uma realidade última que
não comporta nenhuma comparação. Daí o sentimento de que
nossa solidão é irremediável, pois existe uma essência irredutí
vel da individualidade que jamais poderá fundir-se. Ao abdicar
dela, ao buscar aplaná-la, substitui-se uma comunicação viva e
1 - A Separação l 101
pessoal por uma comunicação superficial e anônima; é preciso
que ela esteja presente e seja respeitada, e não apagada e esque
cida, para que as relações entre dois seres adquiram uma verda
deira profundidade. Invocamos sempre a natureza inviolável da
individualidade para gemer melhor numa solidão que não temos
força para superar: mas não se deve desprezar seu segredo nem
deixar que ele seja forçado. O pudor é sua proteção mais delicada:
e, nos momentos em que o entendimento entre dois seres é mais
perfeito, o pudor se aguça, em vez de se perder.
No entanto, em presença de um ser radicalmente diferente de
nós, a dor da solidão a que nos sentimos relegados ainda é ape
nas de primeiro grau. Na realidade, essa dor é sempre proporcio
nal à esperança que tínhamos de encontrar uma pessoa a quem
acreditávamos poder unir-nos. Basta que ela não mostre nenhum
ponto de contato conosco para que a deixemos com o sentimento
de jamais havê-la encontrado. Por vezes ocorre, ao contrário, que
uma reaproximação e mesmo uma troca tenham começado a se
estabelecer entre ela e nós. Ora, de súbito medimos, em reações
imperceptíveis, o abismo que nos separa dela; sentimos, então,
uma mágoa que é difícil de curar, pois bem sabemos que o fun
do de nosso ser se revela em detalhes insignificantes, mais graves
ainda porque escapam de seu olhar, e que acusam um dissenti
mento absoluto na apreciação dos valores, um golpe involuntário
desferido contra a parte viva da consciência em que reside toda a
nossa delicadeza.
Será preciso aceitar agora a afirmação tão comum de que só
a dor nos dá a verdadeira experiência da solidão? É inegável que
se sofre sozinho. E também que a comiseração alheia, pela pró
pria impotência que demonstra, apenas agrava essa solidão. Há
pouco minha consciência tendia para ti, inteiramente aberta e
acolhedora; o mínimo sofrimento que, de súbito, vem atingir
-me, a mínima lembrança de um sofrimento antigo provocam
meu retraimento e desviam de ti minha atenção e meu interesse.
Assim, melhor que qualquer esforço de reflexão, a dor produz
um recolhimento do ser em si mesmo, pois o sofrimento é uma
limitação que lhe dá consciência de seus limites e o encerra neles
estreitamente. Pode-se dizer também a respeito da dor que ela
1 A Separação l 103
-
pervertidas e de fato o são tão logo a liberdade sinta pesar sobre
si a mais imperceptível imposição. Tenho então a impressão de
que me torno uma coisa. Como, em tais condições, a comunicação
não desmoronaria? Como, nesse naufrágio interior, a parte viva
de mim mesmo encontraria porto e salvação noutro lugar senão
essa solidão que ela havia acreditado abandonar e que agora é seu
único refúgio?
5. A solidão do livre-arbítrio
1 A Separação / 105
-
fraternidade da infelicidade. Nem sempre me dou conta, porém,
de que essa mesma fraternidade dissipa a infelicidade que a fez
nascer: conceber uma solidão que não é a própria é sair da pró
pria, é penetrar a outra, é descobrir um mundo que é um Si uni
versal em que cada um encontra o fundamento de seu próprio si
e de todos os outros sis.
Pode-se dizer, por conseguinte, que existem duas espécies de
solidão: uma solidão do eu individual, que não deve ser abando
nada porque é a defesa das prerrogativas do ser secreto contra a
vulgaridade de um universo aparente e público, mas que provo
ca o desespero se não ultrapassa a si mesma rumo ao interior e
se não descobre a solidão universal do espírito que permitirá ao
indivíduo enriquecer-se indefinidamente e comunicar-se com
todos os outros indivíduos, ao convidá-los, por sua vez, à mes
ma superação. Nessas duas formas - como pudor ansioso do in
divíduo que se sabe único no mundo e como conduta espiritual
pela qual me separo do mundo para me unir a Deus -, a solidão
deve ser mantida como a própria condição de nossa salvação inte
rior. Mas será possível recear que ela esteja ameaçada? Villiers de
l'Isle-Adam dizia: "Sempre haverá solidão para os que são dignos
delà'; é que a solidão de cada um é justamente a que ele merece.
1. A consciência aberta
2. A saída de si
2 A
- União / 109
que súbito nos é aberta e na qual jamais cessamos de fazer novos
progressos. Assim se explica que seja próprio da consciência ser
impelida por um movimento infinito, o que só pode assumir p ara
ela um sentido concreto e vivo se ela encontra em todas as par
tes novos motivos de amar, isto é, se ela sempre encontra, em seu
caminho, outras consciências que a fecundam ao mesmo tempo
que a multiplicam. De fato, a impossibilidade em que estamos de
nos bastar não vem, como se acredita, desse sentimento de nossa
limitação que faz com que busquemos ultrapassar incessante
mente nossos próprios limites, como se quiséssemos ampliar-nos
indefinidamente e tentar, enfim, igualar-nos ao Todo em que so
mos chamados a viver. Não é engolfando o Todo em sua própria
natureza que o ser conseguirá romper sua solidão. E Deus mesmo,
fora do qual ser algum subsiste, e que concede a cada um a pró
pria força que o anima, não pode ser considerado como o único
ser que se basta a si mesmo senão porque chama incessantemente
à existência uma infinidade de outros seres, aos quais entrega em
partilha a totalidade de sua essência e com os quais forma uma
sociedade real, na qual já não há diferença entre dispor de um
poder e pô-lo em obra, receber um dom e devolvê-lo.
Há, portanto, um preconceito evidente nos movimentos da
cupidez e da ambição pelos quais buscamos aumentar incessan
temente nosso império sobre as coisas ou dilatar indefinidamente
a riqueza de nossa consciência separada. A solidão é até mais di
fícil de carregar quando o ser desfruta de mais recursos que lhe
pertencem exclusivamente e quando não lhe falta nenhum dos
objetos aos quais o desejo costuma apegar-se. Quando a consciên
cia já não encontra nada que desejar, experimenta a saciedade e
o desprezo por todos os bens que possui; sente-se mais separada
deles agora que dispõe deles do que antes, quando era destituída
deles. Quanto mais plenamente satisfeita, mais experimenta sua
penúria. É que nenhum ser pode realizar seu destino açambar
cando, para encerrá-la em si, toda a riqueza do mundo, mas ape
nas saindo de si, a fim de realizar fora de si uma ação que o liberte,
a fim de encontrar em torno de si outros seres que possam acolhê
-lo. Minha existência só tem sentido a meus próprios olhos se, em
vez de se sentir entregue a si mesma, descobre seu parentesco com
outras existências às quais poderá unir-se e, graças a essa união,
l iO J O Mal e o Sofrimento
encontrar o princípio comum que proporciona a todas elas o im
pulso e a vida. Assim, já não lhe faltará apoio; ela já não estará
separada do mundo por uma barreira de trevas. Perceberá que é
a um só tempo capaz de compreender e de ser compreendida. Ela
própria se tornará um meio a serviço de um fim que a ultrapassa,
e ao qual poderá consagrar-se e sacrificar-se.
Por conseguinte, nenhuma comunicação com outro deve ser
desprezada. Quando dois homens começam a descobrir entre si
um pensamento, uma emoção ou uma intenção que lhes é co
mum, não sentem apenas uma semelhança fraterna: reconhecem
a identidade do princípio que os ilumina e do fim para o qual,
sem o saber, já colaboravam. É Deus que de súbito lhes mostra sua
face, pois só ele pode ser testemunha e fiador dessa união.
O homem que vive isolado no meio dos outros homens man
tém uma existência secreta que escapa aos olhares de todos e não
passa de um sonho subjetivo: desse modo, como só ele pode pe
netrar aí, ele naturalmente se habitua a olhar o mundo das coisas
passíveis de ser vistas e tocadas como ao único mundo real, em
bora esse mundo, que é igualmente dado a todos, seja, no entanto,
estranho a cada um. Mas quando outra consciência nos dá o con
tato de sua presença, quando seu olhar nos penetra e o nosso a pe
netra, então a realidade das coisas materiais recua e se desvanece;
o sonho que trazíamos em nós adquire de súbito uma extraordi
nária consistência; já não está exclusivamente em nós desde que
alguém nos mostrou que ele podia ser recebido. Por uma espécie
de paradoxo, em vez de nos encerrar em nós mesmos, esse sonho
nos faz sair de nós mesmos. Torna-se o verdadeiro mundo, onde
já não encontramos objetos que nos resistem, mas vontades que
respondem a nós, onde tudo é a um só tempo transparente, ativo
e comovente, onde só se podem então perceber significações que
se formam ou intenções vivas que se associam.
Por isso, nenhuma comunicação verdadeira, por mais tímida
que seja, é insuficiente. Ela suprime a própria possibilidade desse
desprezo que, desde que nasce e por mais imperceptível que possa
ser, já nos relega à solidão. De fato, ela é sempre uma abertura a
um infinito atual que a consciência já pressente, e que não cessa
de nutrir a esperança da consciência e de renovar seu movimento.
2 - A União l 111
Se ela for sincera, se ocorrer pelo interior e sacudir o próprio co
ração da pessoa, já será um dom total, um acesso ao único mundo
que seja real, um mundo interior que as aparências manifestam, e
não um mundo exterior que elas dissimulam.
2 A União l 1 13
-
um só tempo pessoal e comum. Toda comunhão é uma cocriação
de si e do outro, pelo outro e por si indivisivelmente.
4. A realização recíproca
1 14 I O M� e o Sofrimento
Assim, todos os seres têm um destino por realizar; em cada um
deles se encontram as mesmas potências, ainda que desigualmen
te desenvolvidas. A beleza do mundo, a unidade admirável que
reina nele decorrem precisamente do fato de que cada indivíduo
é para todos os que encontra um mediador. É por isso que, com
respeito a todo ser diante de mim, sempre estou em atitude de es
pera e de demanda, ansioso, aliás, por dever responder à espera
e à demanda que já desperto nele. Isso já é ultrapassar a solidão.
Não que ela jamais possa ser definitivamente superada, pois é pre
ciso que eu possa, a cada instante, vencê-la e recair nela. E toda
comunhão consiste, de fato, em duas solidões unidas. Mas a con
fiança que alguém deposita em mim obriga-me a me elevar aci
ma de mim mesmo para não decepcioná-la. O sentimento de que
cada um de nós pode proporcionar ao outro um benefício que não
ousamos recusar-lhe é a causa de nosso mútuo desenvolvimento.
Os indivíduos cessam de estar separados assim que percebem esta
lei fundamental da consciência: estamos fadados à solidão quando
ficamos reduzidos ao estado de potências puras, mas essas potên
cias são algo que só podemos exercer uns pelos outros.
O problema da comunhão envolve o da consciência inteira.
A origem da crença de que a consciência sempre permanece
enclausurada em si mesma está em definir a consciência como
simples poder de conhecer as coisas pelas ideias; desse modo se
compreende bem que, seja qual for o volume de ideias que a cons
ciência seja capaz de conter, as ideias permanecerão suas e ela
jamais sairá de sua própria esfera. Mas, falando rigorosamente,
já não é a ideia que é nossa, mas apenas o pensamento que temos
dela; e por meio dele cada consciência participa de um mundo
que é comum a todas, no interior do qual se pode distinguir uma
infinidade de perspectivas particulares, mas convergentes. Assim,
a inteligência abre, diante de todos os seres, um campo infinito
em que se descobrem e se ramificam sem cessar novas vias de
comunicação que os convidam a se aproximar e a se unir.
Mas, além disso, no ato pelo qual penso minha própria so
lidão eu a ultrapasso. Ao circunscrever meu ser próprio, situo
-me num ser incircunscrito; mas aí situo você também. Assim,
minha consciência individual e a sua haurem a mesma luz de
2 A União
- l 115
uma consciência universal, que é o meio comum onde elas
prosseguem sua vida própria, onde se separam e onde se unem:
é nele que penso meus limites e os seus, e que nós dois pode
mos ultrapassá-los.
Tal comunicação não basta, porém, para criar entre dois se
res uma comunhão verdadeira: de fato, a comunhão verdadeira
só pode residir na vontade, pois a vontade busca o ser por trás
da ideia e jamais se serve da ideia senão como meio. Não se pode
negar, quanto a ela, que seja uma saída de si: em sua forma mais
elevada, ela é criação, isto é, generosidade pura. Mas o único ter
mo digno dela é outra vontade que, quando, por sua vez, se livra
do egoísmo, comunga com a primeira no exercício de uma ativi
dade.que tem a mesma fonte e o mesmo fim, que é a um só tempo
pessoal e recíproca, e que sempre confere à consciência o impulso
interior que chamamos amizade ou amor. Cada consciência não
para de oscilar entre o egoísmo e o amor: mas o primeiro a encer
ra em sua miséria, não em sua riqueza, ao passo que o segundo a
liberta de toda propriedade particular, para lhe dar a posse de um
bem infinito do qual lhe é impossível desfrutar sem compartilhar.
É por isso que, quando se estabelece, a comunhão possui valor
por si mesma, que ela não extrai em absoluto do valor próprio dos
indivíduos que comungam. É preciso até dizer o contrário: a saber,
que cada indivíduo recebe o valor que lhe é próprio justamente da
comunhão à qual ele aceita se abrir. E, ao que parece, quem mais
dá é que mais recebe: isso porque, para a consciência, não existe
graça mais perfeita que a que a põe em condições de agir, isto é,
de oferecer. Assim, quando estou mais próximo de você, sinto que
seu ser nasce em mim, mas se desenvolve em você; não existe co
munhão mais estreita que a que, no mesmo momento, lhe dá um
sentimento idêntico com respeito a mim.
5. O despojamento do individual
1 16 1 O Mal e o Sofrimento
sempre de nós mesmos, nos dá acesso à totalidade do real, da qual
a existência individual nos havia primeiramente separado. É reen
contrar em si a fonte profunda da vida e fazer com que os outros
a encontrem. É haver renunciado a tudo o que nos separava deles,
isto é, a todos os objetos privilegiados de nosso apego, a todas as
vantagens materiais ou individuais, a todas as emoções demasia
do delicadas em que nosso amor-próprio podia comprazer-se.
Esses são estados ou coisas que apenas nos acorrentam, quando a
questão, ao contrário, é nossa libertação. Por isso, o corpo, que nos
pertence mais estreitamente que qualquer outra coisa no mundo,
e somente a nós, é o princípio supremo de todo fechamento, de
toda separação e de toda solidão: esse, ao menos, é seu papel em
todos os que fazem dele o objeto e não o veículo de sua atenção
e de seu amor. Mas é preciso ir mais longe, pois bem sabemos
. . .
2 - A União l 117
intervalo que opunha esses dois seres é preenchido, e estabelece
-se uma comunhão entre eles, fundada na presença reconhecida e
vivida de um princípio idêntico que os sustém e anima.
A amizade com tudo o que vive é a um só tempo o dever de
cada ser e seu próprio ser. É Deus mesmo que se torna presente
ao ser e que lhe desvenda, juntamente com o princípio que o faz
viver, o fim que suscita sua atividade e o obriga incessantemente
a ultrapassar-se.
1 18 1 O Mal e o Sofrimento
3. A INFLUÊNCIA
3 A Influência j 121
-
2. O prestígio
122 1 O M� e o Sofrimento
de renome lhes dará de súbito um valor inesperado, que por um
momento lisonjeará seu orgulho. Essa fascinação material, contu
do, não o transforma em profundidade.
A influência só pode nascer quando encontramos fora de nós
não a imagem fiel do que somos, mas o remate de uma tentativa
que nós mesmos começamos logo a esboçar. Sucede porém que,
ao reconhecermos que ela se rematou alhures, não raro acredita
mos estar dispensados de rematá-la por conta própria. Assim, esse
mesmo acordo com quem age sobre nós é nocivo para nós, em vez
de nos servir: tal influência, ao contrário da comunhão, em vez de
desenvolver as tendências existentes em nós, cria em nós um si
mulacro de nosso próprio ser. No prestígio, é sempre o indivíduo
que se mostra. É sempre ele que é procurado. Por isso, ele sempre
me parece excepcional e único, diferente de todos os outros e di
ferente de mim, alguém que ultrapassa a eles e a mim, que realiza
sem esforço tudo o que desejo e que amo, diante de quem per
maneço impotente, alguém que possui uma riqueza da qual não
paro de haurir, que suscita todos os meus desejos e se adianta a
todos eles. A qualidade do que ele nos proporciona logo se torna
indiferente, pois nos apegamos a ele pelo que ele é e não pelo que
nos oferece. Como seria possível indagar se o que vem dele é um
bem, já que, a nossos olhos, um bem só é um bem porque provém
dele? E em pouco tempo nos tornamos cegos às suas disposições
espirituais mais profundas, que não despertam em nós nenhum
impulso capaz de responder a elas. O espírito crítico é destruído:
a consciência se vangloria de seu apagamento e de sua docilidade.
No entanto, ela não pode invocar o exemplo do amor que, ele tam
bém, mede o valor dos dons pelo próprio ser que os dá, mas funda
a pessoa em vez de aboli-la, e sempre restitui o cêntuplo.
O prestígio intelectual é aquele que exerce em nós o maior fas
cínio. Não há deslumbramento que possa superar o do surgimento
em nós de um pensamento que não provém de nós e, no entanto,
torna-se nosso assim que outro ser consegue suscitá-lo em nós
pela magia da palavra. Por isso, é difícil pensar diferentemente de
quem nos ensinou a pensar: nos homens mais maduros se encon
tram certas formas de pensamento que lhes foram impostas por
seu primeiro mestre. Também neste caso é quase impossível levar
3 - A Influência l 123
em consideração a verdade, independentemente de quem a ensi
na: e a aderência da verdade à pessoa com frequência nos conduz a
submeter-nos a uma autoridade externa, em vez de nos convidar a
aprofundar as razões pessoais de nosso próprio consentimento. Pois
nenhuma proposição pode ter o mesmo preço para nós segundo seja
expressa pela boca de um homem que admiramos ou pela boca de
alguém que nos é indiferente. Seguramente, com efeito, se a verdade
não é um objeto, é então inseparável da própria consciência que a
concebe e sempre condizente com ela em valor: assim, as mais belas
formulações assumem o aspecto mais trivial, e as mais comuns uma
nobreza singular, conforme a qualidade da alma de quem as profere.
Mas sucede que o prestígio, ao se ligar à aparência da pessoa mais
que à pessoa em si, nos esconda a fonte pessoal de onde a verdade
deve jorrar; ele a esgota em nós; só deixa subsistir uma forma que
nos deslumbra e que nos contentamos em reproduzir.
3. A influência individual
3 A Influência J !25
-
É próprio do prestígio criar entre duas consciências uma rela
ção de causalidade comparável à que rege o mundo dos corpos.
Mas a lei da causalidade é inseparável da inércia; só intervém
entre as almas quando elas começam a se materializar. As comu
nicações espirituais são de outra ordem: sempre suscitam a ini
ciativa, em vez de aboli-la; excluem a necessidade e se reduzem a
um dom sempre renascente de luz e de amor.
4. A influência interindividual
3 - A Influência l 127
aumentam, em vez de atenuar-se. Pois cada um deles sai de si para
sofrer a influência do outro; mas, porque esse outro lhe devolve
sua imagem e exerce sobre ele uma ação na qual ele reconhece a
espontaneidade de seus próprios movimentos, vê-se que, quando
ele abdica, é em proveito de si próprio, mas de maneira que não
precisa assumir a responsabilidade por sua própria natureza e lhe
basta reconhecê-la na ação de uma força exterior a ele, à qual a
partir daí se entrega. Assim, experimenta uma dupla satisfação por
sentir que exerce e sofre uma influência que permanece a mesma:
suas démarches mais pessoais adquirem maior força e segurança
pela própria resposta que provocam, pelo sucesso que obtêm, pela
impressão que lhe dão de romper, enfim, as barreiras de sua so
lidão. E, ao mesmo tempo, ele se sente dispensado do esforço de
sustentá-las e regenerá-las; basta-lhe, para que renasçam, que ele
se deixe levar por uma ação cujo toque se tornou familiar para ele
e que ele próprio já não precisa cumprir. Estabelece-se entre esses
dois seres uma sorte de negócio inconsciente, que anula qualquer
despesa onerosa demais, pois ambos experimentam prazer em re
ceber aquilo que já lhes era prazeroso fazer com que fosse acolhido.
Assim, sempre subsiste na influência interindividual uma am
biguidade que nos parece deliciosa; imaginamos que o prestígio
esteja destruído e, no entanto, experimentamos uma dupla satis
fação: a de impor prestígio e a de ceder a ele. Em nossas relações
com outro, redobramos, ao dar-lhes mais amplitude e relevo, as
relações constantes que não param de se produzir entre a parte
ativa e a parte passiva de nós mesmos; e então temos a ilusão de
penetrar um mundo que ultrapassa nossos dois seres individuais
e lhes permite comunicar-se. Mas é preciso que a influência in
terindividual nos conduza até lá; caso contrário ela não passa de
falsa aparência: aviva o amor-próprio, em vez de superá-lo; esmo
rece a atividade, em vez de aumentar seu ímpeto.
5. A influência transindividual
3 · A Influência l 129
cumulou com seus dons: é admirar o emprego que ele faz desses
dons e que nos convida a fazer dos que recebemos um uso igual
mente belo. O valor não está encerrado nos limites da individuali
dade: reside em seu emprego, que sempre a ultrapassa, que cria a
própria originalidade da vida espiritual. Não existe pessoa que já
tenha nascido como deve ser, e tampouco existe pessoa que algum
dia se tenha tornado no que deve ser, isto é, que tenha chegado a
sê-lo. Mas ninguém progride de outro modo que não seja saindo
de si, isto é, triunfando sobre o apego a si mesmo que o separa
dos outros seres. E todos, ao se evadirem de si mesmos, quebram
igualmente os muros de sua prisão; encontram, assim, a imensi
dão do céu livre sob o qual se comunicam.
Quem sempre busca acumular novos bens e sempre tem medo
de perdê-los mede a cada instante sua própria miséria. Os bens
espirituais, no entanto, não podem ser confiscados. Ao contrário,
quem se despoja de todas as posses particulares descobre em tor
no de si uma abundância infinita. Dispõe de toda a riqueza do
mundo, cuja fruição não para de se ampliar para ele quando ele
faz com que seja compartilhada. Quando a influência se torna su
ficientemente profunda, quem a exerce é apenas o mensageiro de
uma boa nova; e o mensageiro se faz esquecer em prol da mensa
gem. Sendo assim, pode-se dizer a um só tempo que o indivíduo
para de nos seduzir porque renunciou a si mesmo, e que nada nos
interessa, no entanto, além da fundação da pessoa que se realizou
tanto nele como em nós, e que nos descobre na mesma ocasião a
diversidade e a harmonia de nossas vocações particulares.
A influência perde aqui todo caráter material; exclui todo es
pírito de dominação; repele toda passividade. É a revelação de
nossa iniciativa própria, o chamado de uma graça à qual somos
os únicos a poder responder e que abre para nós, no interior do
mundo, o caminho de um destino que é posto em nossas mãos.
É preciso parar de pensar em si para ser quem se é. É preciso
afastar-se de todas as preocupações que nos limitam e nos iso
lam para encontrar, numa participação comum da atividade
criadora, o único meio que permite que todos os indivíduos se
unam, ao se ultrapassarem.
Epilogo [ 133
começa a declinar, não é, como se pensa, porque as duas almas
se tenham cansado uma da outra, pois elas só se cansam uma da
outra quando reconheceram seus limites, e isso ocorre quando a
Presença espiritual da qual a amizade havia vivido até então se
tornou para elas mais obscura e mais longínqua.
A solidão não deve ser suportada como uma infelicidade inse
parável de nossa condição, nem buscada como um abrigo contra a
hostilidade do universo. É preciso recear e não desejar a distração
com que por vezes contamos para escapar dela; de fato, nossa soli
dão jamais é suficientemente perfeita, e sempre estamos divididos
entre o interior e o exterior. Ora, é o extremo da solidão, por assim
dizer, é seu aprofundamento absoluto (no momento em que, com
relação ao mundo que abandonamos, já não existe nostalgia nem
segundas intenções) o que nos livra dela: seu excesso é o que pro
voca sua explosão. E é então que reencontramos o mundo, como
se jamais tivéssemos olhado para ele, sob uma luz que nos entrega
sua significação, um mundo que não está livre do mal e do sofri
mento que de início nos pareciam preenchê-lo, mas que continua
a trazê-los em si como uma condição de sua existência, como uma
prova pela qual todos temos de passar, como as marcas de um de
ver que nos pertence. Ninguém neste mundo duvidaria que só po
demos entrar na vida do espírito pela vida do corpo: esta sustém
aquela, mas não cessa de lhe opor obstáculos. Sem a vida do cor
po, todavia, sem as misérias e a condição temporal em que ela nos
envolve, sem a separação em que nos encerra, sem a necessidade
à qual nos submete, sem a dor à qual nos expõe, que ser no mundo
poderia esperar ter uma existência individual, uma existência que
fosse verdadeiramente sua e que lhe permitisse dizer eu?
Ora, é justamente nessa existência individual que se enxerta
a liberdade, de que se pode dizer que ultrapassa a existência in
dividual sem, no entanto, ser capaz de prescindir dela. A liberda
de está precisamente no ponto de encontro da vida do corpo e
da vida do espírito, ali onde uma sempre deve ser convertida na
outra. Pois a vida do espírito jamais pode ser dada: sempre nos
é preciso adquiri-la - o que só é possível por uma operação de
desapego diante de tudo o que até então nos escravizava. Mas só
se é livre quando se tem a possibilidade de não sê-lo, de voltar a
Epilogo f 135
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