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Impresso no Brasil, novembro de 2014

Título original: Le Mal et La Souffrance


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Capa e projeto grdfico /diagramação
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Pré-impressão e impressão
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por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica,
fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução,
sem permissão expressa do editor.
OMAL
E O SOF�IMENTO

LOUS
LAVELLE
APR.ESENTAÇÃO À EDIÇÃO BR.ASILEIR.A
R.ODRJGO PETR.ONIO
PR.EFÁCIO
MICHELADAM
TRADUÇÃO
LAR.A CHR.ISTINA DE MALIMPENSA
REVISÃO TÉCNICA
CAR.LOS NOUGUÉ
Sumário

Apresentação à edição brasileira - O mal e o nascimento


da consciência
por Rodrigo Petronio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

Prefácio
por MichelAdam . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

PREÂMBULO

Sobre o tempo da guerra ..................................... 27

PARTE I - O MAL E O SOFRIMENTO

1. O mal
1.O escândalo do mal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
2.A alternativa entre o bem e o mal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42
3.O mal e a dor ............................................. 44
4.O uso da dor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46.

5.A injustiça . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48
6.A maldade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50
7. A definição do mal . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52
8.A opçãofundamental . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . 53.

9.Aquém do bem e do mal . . . . . .. .. . . . . . . . . . .


. . . . . . . . . . . . . . . . 56
1O.Nascimento da reflexão . . . . . . . . . . . . . . . . . .. .
. . . . . . . . . . . . . . . 59
li.O conhecimento do bem e do mal ........................... 61
12.A responsabilidade por si mesmo . . . . . . . . . . . . . . . . ... . . . . . . . . 62

2. O sofrimento
1.Descrição da dor . . . . . . . 65. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

2.A dor e o sofrimento....................................... 67


3. O ato de sofrer . .. ... . . . . . 68
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

4.As atitudes negativas ...................................... 71


5.As atitudes positivas ...................................... 76
6.Conclusão . . . . . . . .87 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

PARTE II - TODOS OS SERES, SEPARADOS


E UNIDOS...................................

Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. ... . . . . . . . . .. 91

1. A separação
1.A célula secreta ........................................... 95
2.O risco da solidão ......................................... 96
3. O contato entre duas solidões ............................... 98
4.A solidão da impotência e da infelicidade ................... 101
5.A solidão do livre-arbítrio ................................ 104

2. A união
1.A consciência aberta ..................................... 107
2.A saída de si ............................................ 109
3. A independência entre os seres ............................112
4.A realização recíproca .................................... 114
5.O despojamento do individual ............................. 116

3. A influência
1.A presença de todo pura .................................. 119
2.O prestígio .............................................. 122
3. A influência individual ...................................124
4.A influência interindividual ............................... 126
5.A influência transindividual .............................. 128

Epílogo . . . . ... . . .. . . ..... .. . . . . .. . . ... . . . . . . . . . . . . . . . 131


APRESENTAÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA

O mal e o nascimento da consciência

O problema do mal atravessa a história do pensamento huma­


no, seja em seu aspecto ontológico, racional ou secularizado, seja
como uma demanda interna a praticamente todas as religiões do
mundo. Na tradição ocidental, que Leon Chestov e Leo Strauss
definiram como uma oscilação pendular entre Atenas (ontologia
racional) e Jerusalém (verdade revelada), o problema do mal foi
entendido a partir dessas matrizes: a metafísica grega e a reve­
lação abraâmica. E nesse âmbito o problema do mal recebeu o
nome de teodiceia. Como conciliar uma eventual perfeição finita
do cosmos entendido como physis com a imperfeição, a dor e a
morte? Como equacionar a infinita bondade de um Criador com a
existência do mal no mundo? Desde Platão, os gnósticos, os estoi­
cos, Agostinho, Tomás de Aquino e Espinosa até Leibniz, Hegel e
Kierkegaard, essa pergunta sobre a razão do mal perturbou pen­
sadores de orientações as mais diversas. E recebeu as mais diver­
sas respostas, quase sempre aporéticas.
A partir do século XVIII, o problema da relação que a cons­
ciência estabelece com o mal adquiriu tanta relevância que as
soluções apresentadas por ontologias regionais passaram a se
mostrar insuficientes. Mesmo de um ponto de vista antimeta­
físico, o problema do mal continuava a reaparecer em termos
epistemológicos sob a forma do acaso e da contingência, como
resíduo noético que inviabilizava o fechamento de qualquer siste­
ma racional. Nesse sentido, é possível entender o pensamento de
Kant e mesmo a doutrina do idealismo alemão como tentativas de
conceber a filosofia moral e a filosofia dos valores como sendo as
duas faces de uma doutrina geral da consciência, e, desse modo,
solucionar o impasse lógico milenar da adequação do mal entre a
contingência e a necessidade.
O problema do mal estaria aquém da dimensão metafísica
e além de uma dimensão moral. O imperativo categórico e o
apriorismo kantianos, a fenomenologia do Espírito de Hegel, a
instauração agonística e teogônica da consciência desenhada
por Schelling, a doutrina do pathos, entendida como realização
suprema do sofrimento divino-humano, segundo Hõlderlin -
diversos foram os caminhos que propuseram uma aliança entre
a filosofia da consciência e a filosofia moral e meios de articula­
ção entre consciência e valor. A axiologia e a ontologia passam
a ser assimiladas ao projeto de uma gnosiologia geral, como di­
ziam os novecentistas.
Em decorrência dos desastres do século XX, essa busca de uma
unidade entre filosofia moral e filosofia da consciência se intensi­
ficou. Ambas tornaram-se faces distintas de um mesmo proble­
ma filosófico, a ponto de podermos identificar em algumas obras
e autores um apagamento de suas fronteiras. A fenomenologia
nesse sentido se constituiu como método privilegiado por meio
do qual a estrutura fundamental dos atos intencionais da cons­
ciência pôde ser transformada em um palco privilegiado para a
compreensão da emergência dos valores. Em meio a pensadores
de orientações extremamente diversas, mas que se aproximam
em pontos específicos, em decorrência de sua abordagem feno­
menológica ou conscienciológica, a obra de Louis Lavelle ocupa
um lugar de destaque. Reunidos em um único volume, estes dois
ensaios que o leitor tem em mãos, O mal e o sofrimento e Todos
os seres, separados e unidos, impecavelmente traduzidos por Lara
Christina de Malimpensa, representam por sua vez um dos pon­
tos mais agudos da mencionada convergência entre filosofia da
consciência e investigação moral.

8 1 O Mal e o Sofrimento
Escritos não por acaso no final da década de 1940, estes dois
ensaios surgiram junto com a conclusão daquele que é considera­
do o opus magnum de Lavelle: La Dialectique de l'éternel présent,
em quatro tomos: De l'Être (1928 ), De l'Acte (1937), Du Temps et de
l'Eternité (1945), De l'Âme Humaine ( 1951 ). E também se situam
cronologicamente no período de desenvolvimento de suas obras
mais representativas, como La dialectique du monde sensible: Lu
perception visuelle de la profondeur (1921 ), La conscience de soi
(1933),1 La présence totale (1934),2 EErreur de Narcisse (1939),3
Le Mal et la Souffrance (1940), La Parole et l'Écriture (1947), e Les
puissances du Moi (1948). Além desse aspecto de maturidade de
seu pensamento, estes ensaios são marcados por um forte traço
autobiográfico. Logo nas primeiras linhas, concentram-se so­
bre o problema da guerra, na qual Lavelle lutou. Marcam assim
não apenas o atestado de uma época como também insinuam
um pano de fundo autobiográfico. Autoconsciência e história se
cruzam. Além disso, temos aqui, como nas outras obras, a prosa
primorosa e límpida de Lavelle, um dos grandes estilistas do pen­
samento metafísico do século XX.
Logo no início, Lavelle conduz o leitor a uma inflexão inespe­
rada: a guerra não seria uma exceção ao funcionamento da vida.
Seria um ponto culminante de uma estrutura ontológica do hu­
mano, enraizada no problema do mal. Não se trata de minorar o
sentido do conflito. Trata-se de pensar o conflito como algo da es­
sência humana e da presença real do mal no mundo. A partir des­
sa condição temporal, Lavelle parece sinalizar a própria condição
ambivalente do mal. Não é possível pensar o bem sem recorrer à
força contrastante de seus antípodas. Da mesma maneira, a dor
e as manifestações físicas do mal são o modo mesmo pelo qual
a consciência se apodera de si mesma e dota a vida de sentido e
valor. Nesse ponto surge um tema nuclear, desmembrado em di­
versas variações: a solidão.

1 Louis Lavelle, A Comciência de Si. Trad. Laca Christina de Malimpensa; apresen­

tação de René Le Senne. São Paulo, É Realizações, 2014.


' Idem, A Presença Total e Outros Ensaios. Trad. Carlos Nougué; apresentação de
Tarcísio Padilha. São Paulo, É Realizações, 2012.
3Idem, O Erro de Narciso. Trad. Paulo Neves; apresentação de Alfredo Bosi. São
Paulo, É Realizações, 2012.

Apresentação à Edição Brasileira 1 9


A redução eidética de Husserl corresponderia na obra de Lavelle
a uma redução existencial, mais próxima de uma ontologia cristã.
Diante do mal, o indivíduo não se coloca diante de uma essência
catada em suspensão durante o percurso noético. Pelo contrário,
vê-se despido de toda possibilidade de troca e de solidarização
com outros seres humanos, vedado à troca intersubjetiva com ou­
tras almas. A guerra, a dor e a morte são paradoxais porque lançam
o indivíduo para as camadas mais profundas de sua constituição
subjetiva. Nesse sentido, são um meio de superação dialética da
solidão, constitutiva do humano. Por isso, a vida do espírito é uma
misteriosa identidade entre presença e ausência.
Em Lavelle, a perspectiva fenomenológica é preenchida pelos
dados da experiência existencial. A suspensão [epoché] deixa de
ser um método e atinge o estatuto de uma comunicação existencial
entre os seres humanos. O papel desempenhado por Deus não é
apenas mostrar-se presente, pois a presença contínua de Deus es­
vaziaria o próprio valor de Deus, em termos metafísicos e também
espirituais. Por isso, a forma de manifestação de Deus é estrutural­
mente igual às formas pelas quais a consciência humana se releva
e se oculta a si mesma, ou seja, como ausência, solidão, separação.
Cabe a Deus dar-nos a dimensão inefável de uma distância absolu­
ta. Apenas assim a consciência pode apreender seu próprio limite
e se unir a outras consciências. Sem essa dotação de distância, o
horizonte último das consciências não teria nenhuma distinção
ontológica em relação às manifestações superficiais, e, portanto,
todas as consciências se diluiriam em um pampsiquismo.
Esse caráter paradoxal de Deus e da dor é importante para a
construção argumentativa de Lavelle. Inserido a meio caminho
entre a tradição agostiniana, que entende o mal como privação
de bem [privatio boni] e não como potência, e a tradição do
realismo escolástico, que confere ao mal uma realidade, Lavelle
concebe a escalada de perfeição das criaturas como os modos de
inscrição divina da liberdade no seio da Criação. Desse modo, à
maneira de Agostinho no tratado sobre o livre-arbítrio, Lavelle
neutraliza a ação divina nos desdobramentos do mal no mun­
do, alocando-o no coração humano das escolhas. Nesses termos,
bem e mal não recebem apenas uma distinção de forma, mas

1 O 1 O Mal e o Sofrimento
também real. Caso não houvesse esse nível de distinção, as es­
colhas não poderiam dar origem a nenhuma determinação de
valor, ou seja, consciência e moral se desvinculariam. No cer­
ne desse movimento, pode-se superar tanto o dualismo moral
quanto o metafísico, à medida que o mal possui uma realidade
na mesma medida em que essa realidade se apresenta de modo
dialético e até mesmo paradoxal. Ao reconhecer essa estrutura
do mal, Lavelle faculta ao espírito a capacidade de transcendê-lo.
Por outro lado, Lavelle também reconhece muitos e dadivosos
bens no mal. Um deles, e um bem primordial, é o de introduzir na
carne o sofrimento. Apenas pela marca temporal da finitude a subs­
tância da consciência consegue se singularizar. Deixa de ser uma
consciência intencional de algo e passa a ser uma consciência exis­
tencial de alguém, como Lavelle demonstra nos argumentos finais,
sobre a passagem da individualidade para a interindividualidade e
desta para a transindividualidade, no seio da qual emerge a catego­
ria de pessoa.A liberdade nesse sentido não está em um regresso ao
estado de natureza, que é em si mesmo decaído. Como diz Lavelle, a
inocência, depois de perdida, não pode ser recuperada, mas apenas
superada. A inocência da natureza e a da criança são sempre ne­
gativas. Ela consiste em um estado no qual o espírito ainda não se
conformou a seu objetivo, pertence a uma idade anterior à cisão do
bem e do mal, e, portanto, anterior ao nascimento da consciência.
A natureza como natureza não pode ser confundida com a simplici­
dade da substância divina, que não nos é nunca dada, mas proposta
e conquistada mediante atos da vontade e do espírito.
Como se sabe, em sua fenomenologia do ser e do nada, Sartre
concebe a experiência da natureza como uma experiência de
desintegração. A nadificação constitutiva da consciência, que
intenciona objetos à medida mesma que objetivada por outras
consciências, abre-se diante dos abismos infinitos de uma natu­
reza em desintegração. Não é possível reconciliação entre o em­
-si e o para-si das consciências, pois ambas se desdobram como
duas paralelas que não se tocam no infinito. A tentativa de trans­
parência da consciência diante de si mesma e dos outros redun­
da em má-fé, porque nenhuma consciência pode superar em si
a opacidade estrutural da própria atividade conscienciológica.

Apresentação à Edição Brasileira l l l


Em Lavelle, a natureza também é negativa. Porém, diferentemen­
te, a gênese das consciências ocorre a partir de um solo comum.
Por isso a troca intersubjetiva e o encontro se tornam possíveis.
Nesse ponto Lavelle aprofunda sua teoria da reflexão, dotada
de um admirável realismo. Porque ao mesmo tempo que a re­
flexão, ao inaugurar a consciência, nos separa do mundo, é essa
mesma separação que promove a possibilidade de uma dialética
ausência-presença, essencial para a configuração da vida do espí­
rito. A perda da espontaneidade natural nos inscreve no horizonte
do conhecimento, ou seja, dos atos livres. Apenas como resultado
de atos livres o mundo e o ser humano podem ser dotados de
valor, pois apenas em liberdade e no nível consciente pode haver
distinção entre bem e mal. A reflexão obriga a consciência a se
tornar um problema para si mesma.
Mais do que isso: conduz a consciência ao substrato que uni­
fica a separação aparente dos seres. Sem a separação, não have­
ria a possibilidade de apreender a unidade vital dos fenômenos.
A marca da dor, a solidão e a cisão reflexiva são a ação do mal
sobre a superfície da consciência humana. Sem essa ação, não
haveria a escolha entre bem ou mal e, nesse sentido, não haveria
sequer possibilidade de distinção formal entre bem ou mal. Re­
tornaríamos ao mundo indiferenciado e ante-humano das coisas
e dos seres indiferentes. Estaríamos presos ao dualismo do cogito
e da extensão, na acepção cartesiana.
Desse modo, Lavelle se conecta ao milenar problema da sin­
gularização das substâncias por meio da dinâmica entre a ma­
téria, a forma e os atributos. Ao mesmo tempo que sua chave de
reflexão retorna aos antigos e aos escolásticos, inscreve-se em
um horizonte de problemas oferecidos pela filosofia da consciên­
cia dos últimos quatro séculos. A matriz de sua fenomenologia
da consciência não é nem Kant nem Descartes, pois não se en­
raíza nem em uma dimensão transcendental nem em uma con­
cepção racionalista da atividade cognitiva. Parece antes dialogar
com as filosofias da existência em sua matriz cristã e moderna, e
os modos pelos quais essas filosofias renovaram o interesse pe­
los problemas de natureza metafísica, mediante a inversão entre
existência e essência.

12 1 O Mal e o Sofrimento
Há, todavia, na obra de Lavelle uma dimensão ligada à esfera do
reconhecimento, e que confere à dinâmica de espelhamento das
consciências um lugar extremamente central em sua argumen­
tação. A teoria do reconhecimento é uma das bases da fenome­
nologia de Hegel. Em Lavelle, o reconhecimento adquire nuances
em relação à matriz hegeliana. Não se trata da assimilação das
singularidades e particularidades ao regime universal do Espírito.
A materialidade da dor demarca um corpo físico sobre o qual a
dor incide. O problema do mal moral se refrata na consciência real
de uma consciência encarnada. Nem corpo nem consciência se
mostram nestes ensaios de Lavelle como dimensões puramente
racionais ou formais das etapas de autorrealização do Absoluto.
São resíduos não assimiláveis a um sistema e à totalidade, a não
ser como mediação de ser a ser, em cadeia infinita.
Por outro lado, mesmo sabendo-se que a noção de sujeito em
Hegel engloba tanto a dimensão empírica quanto a conceituai e a
real, nestes ensaios de Lavelle as diversas atitudes que possamos ter
diante do mal e do sofrimento apenas em termos superficiais dizem
respeito a problemas da esfera subjetiva. Elas sempre têm suas raízes
em uma região ontológica que antecede a divisão dos papéis e das
máscaras sociais. A luta, presente em Hegel como força motriz da
negatividade constitutiva da dialética das consciências, surge aqui
mitigada, como pano de fundo da manifestação difusa do mal, do
sofrimento e da dor, paradoxalmente necessários à emergência mes­
ma da consciência. Os desempenhos psicológicos de indivíduos não
esgotam o campo fenomênico da interação das consciências entre si.
São apenas um epifenômeno de uma atividade mais primitiva.A dor
faz a consciência descer até essa região antepredicativa e é por meio
da dor que chegamos à essência indissociável do valor. Para Lavelle
esse movimento não é uma queda - é uma ascensão. No limite, esse
movimento ascendente é o que poderíamos chamar de comunhão.
Vicente Ferreira da Silva, talvez o primeiro e um dos mais brilhantes
leitores de Lavelle no Brasil, aproximaria essa comunhão à experiên­
cia do amor, única capaz de superar a negatividade das consciências
em suas trocas e buscas por reconhecimento.4

4 Vicente Ferreira da Silva, Obras Completas, vol. 1: Dialética das Consciências, vol. 2:
Lógica Simbólica:, vol. 3: Transcervllncia do Mundo. São Paulo, É Realizações, 2009-1O.

Apresentação à Edi�o Brasileira l 13


A partir dessas imagens e conceitos de grande penetração, a fi­
losofia da consciência de Lavelle também sinaliza para uma teoria
do vínculo. Impossível separar corpos e almas que, para estarem
unidos, precisam estar separados. O paradoxo dessa asserção re­
pousa sobre o fato de que não há unidade sem a possibilidade
ontológica de separação. Unidade e separação, presença e ausên­
cia são compossíveis. Por isso, mesmo afetos como remorso, res­
sentimento, recolhimento, apresentam, na anatomia mesma dos
termos, a marca de uma remissão e de uma rememoração: o in­
divíduo só pode se purificar porque conseguiu se separar do que
fora e fizera um dia. Só assim pode se reconectar consigo mesmo
em um momento diverso do tempo. Esse movimento em espiral
parece explicar muito bem as motivações implicadas nesta obra e
no pensamento de Lavelle.
As células secretas da intimidade demonstram a pertença de
uma consciência a si mesma. Nessa condição, mesmo solitária, a
consciência é rica. Porque a solidão é a condição de possibilida­
de para o encontro. Mais do que isso: para o encontro verdadeiro.
O pensamento é o que nos constitui e o que nos encerra. É nossa
liberdade e nossa clausura, simultaneamente. O problema da soli­
dão, da indiferença aos outros ou da falta de reconhecimento con­
siste em reduzir a dor e o sofrimento advindos dessas situações a
forças puramente exteriores que agiriam de modo adverso sobre
um indivíduo. Essa exterioridade das relações inviabiliza nosso
acesso à região mais profunda onde ocorre o nascimento da cons­
ciência para si mesma. Corremos o risco de nos prendermos em
relações de prestígio, de vaidade e em influências individuais mú­
tuas, como se esses bens representassem a própria consciência.
Reduzimos assim a consciência a um palco.
Talvez seja essa dimensão pública da consciência, brilhan­
temente explorada por Husserl, que Lavelle parece sutilmente
contestar, advogando por um senso de interioridade espiritual
pura, presente no fundo da consciência. Uma consciência aberta
não seria uma consciência cujos atos intencionais a despojam
de toda substância interior inalienável. Uma consciência aberta
é aquela que mergulhou nos estados profundos da dor, do des­
pojamento e da nudez para renascer como pessoa, ou seja, para

14 I O Mal e o Sofrimento
tornar-se não apenas a consciência intencional de algo, mas a
consciência moral de um valor. Nesse espaço de interioridade
universal no qual o universo se torna uma imensa interioridade,
perfeição e solidão se comunicam, se interpenetram e se supe­
ram. Por quê? Porque esse é o lugar propício para a abertura
ontológica mais primitiva. É o espaço mesmo no qual as cons­
ciências tocam o espaço-tempo da intersubjetividade. Apenas
mediante a autolimitação fornecida pela consciência da solidão
que o ser-individual consegue tocar o ser-todo. A irredutibilida­
de de cada consciência disposta para si é o campo de abertura
para a consciência rumo à totalidade do mundo.
Toda escala do ser ocorre em mediações e intermediações
mútuas. A inteligência abre essas possibilidades de comunicação
entre todos os seres, comunicação essa que em sua expressão má­
xima pode ser entendida como comunhão e como a integralidade
não cindida de toda a atividade consciente. Nessa teia de realiza­
ções intencionais e perceptivas, a perfeição de todos os seres se
desdobra em uma coevolução e em uma contínua cocriação. Esse
movimento cocriativo não visa a um telos que se realiza como
consumação de uma obra, no sentido de Hegel. Está mais próxi­
mo da noção de evolução criadora de Bergson, de quem Lavelle
foi aluno. Nessa conectividade dos seres, o ex tremo da riqueza é
o extremo da pobreza, porque a abertura ao mundo emerge justa­
mente no ponto mais agudo do despojamento.
O acesso à totalidade conferido a um ser só ocorre mediante o
contato desse ser com outro ser, ou seja, em escaladas e espirais.
Os seres humanos se mantêm separados à medida mesma que se
conhecem a si mesmos e mesmo assim permanecem incapazes
de promover o salto que os lança à substância idêntica que os une
para além das separações fenomênicas. Nesse momento, rom­
pem-se as células e esferas secretas da permanência nas quais
os seres permanecem enredados em si mesmos. A mediação mú­
tua dos seres em relação a si mesmos assume o sentido de uma
transindividualidade. O resultado desse encontro que suspende
a solidão é a abundância infinita. Nesse espaço do espírito, per­
tencemos àquela intimidade do redondo, de que fala Bachelard.
O interior e o exterior se superam como categorias antinômicas.

Apresentação à Edição Brasileira l 15


As consciências nascem e sabem o que as divide e o que as une.
Tudo isso graças à ação do mal e do sofrimento, sem os quais esse
despertar jamais seria possível.

Rodrigo Petronio
Graduado em Letras Clássicas (USP), mestre em Ciência da
Religião (PUC-SP) e em Teoria da Literatura (UERJ). No douto­
rado, pesquisa a interface entre Teoria da Literatura e Filosofia.

16 1 O Mal e o Sofrimento
PREFÁCIO

Durante os dez últimos anos de sua vida, Louis Lavelle (1883-


1951) lecionou no College de France. Foi a conclusão de uma vida
plena de atividades universitárias e de realizações de obras de
rara qualidade, nas quais se conjugam a profundidade da reflexão,
a pertinência das observações sobre a existência e sua aborda­
gem por meio de uma sensibilidade que a torna presente para nós.
Aos vinte livros publicados é preciso acrescentar grande número
de artigos, sem desconsiderar as crônicas filosóficas do jornal Le
Temps, entre 1930 e 1942, das quais as principais foram publica­
das em livro. Distinguem-se comumente as obras de Louis Lavelle
entre as metafísicas e as morais. A classificação é cômoda, mas
não deve fazer esquecer que a metafísica sustenta o pensamento
moral, como se verá aqui. As obras morais, portanto, são de fato
filosofia da mais autêntica, pois a observação das condutas huma­
nas fornece um viveiro do qual se depreendem a significação da
existência e a realização da pessoa.'
O Mal e o Sofrimento pertence, portanto, às obras dedicadas
à filosofia moral. Foi realizado a partir de dois artigos, datados
de 1934 e 1937, e publicado em 1940. Sempre consta em biblio­
grafias de filosofia moral; sua riqueza de análise o celebrizou, e
era importante que pudéssemos lê-lo e meditá-lo uma vez mais.

1 Realizou-se um colóquio internacional em Agen de 27 a 29 de setembro de 1985;

Louis Lavelle era originário de Lot-et-Garonne. Cf. Louis Lavei/e, Actes du Colloque
lnternational d'Agen. Société Académique d'Agen, 1987.
Convida a uma reflexão sobre experiências que são característi­
cas de toda existência: o sofrimento do corpo e a provocação do
mal no mundo, assim como o encontro com outrem, que é sempre
uma aventura, fracasso ou enriquecimento, aprimoramento da
pessoa ou condenação a um retraimento em si.
Rapidamente se notará a valorização de uma abordagem que
torna este livro tão generoso e tão cativante. Os autores contem­
porâneos, diante da hostilidade do mundo, comprazem-se em
atitudes negativas. A preocupação heideggeriana e a angústia
sartriana serão completadas pelo absurdo de Camus. O esnobis­
mo da derrelição invadia o mundo intelectual e determinava uma
moda à qual muitos sucumbiam. Era bom chamar a atenção para
a própria existência e recusar à vida qualquer sentido positivo,
diante da invasão imperialista da infelicidade. Rapidamente se
constatará que Lavelle nos remete à nossa liberdade. Em vez de
sucumbir à aflição, convém assumir a responsabilidade por si
mesmo, para poder afirmar-se. Longe de bloquear a sensibilidade
e as consciências, de paralisá-las, o mundo hostil deve incitar ao
desenvolvimento de uma potência criadora. Constata-se, então,
que é por meio dela que eu me constituo, que minha vocação se
revela a mim. Em vez de me resignar, de me deixar engolir pela
infelicidade, proponho à sociedade em que vivo um exemplo de
superação e um estímulo a seguir essa mesma atividade. Diante
da hostilidade do mundo - e ao contestá-la -, minha liberdade se
tornou uma liberdade real (p. 104).
Diante da miséria do mundo - investida de minha reflexão -,
a vida interior ganha tanto em profundidade quanto em intensi­
dade, e a liberdade entra em vigília. É nessa experiência sensível
que eu constato: para não ceder ao desespero, é preciso dar à alma
força e luz. O mundo deixa de ser um espetáculo indiferente: é
a ocasião de um enfrentamento em que as provações incitam à
afirmação de si e dos outros (p. 32). O mal do mundo, que convoca
minha ação, transforma-se em enunciação do bem. A consciência
cessou de considerar exclusivamente o mal; minha liberdade po­
derá regenerar o mundo, que parecia ocasião, pela infelicidade que
expressava, de uma vontade má. Minha vitória sobre o mal im­
pregnou o real de uma significação espiritual. Essas observações

18 I O Mal e o Sofrimento
filosóficas podem ser complementadas, aliás, por uma referência
à própria realidade do mal da guerra, por meio das anotações fei­
tas por Lavelle durante sua experiência de soldado e de prisionei­
ro.2 A possibilidade da luta contra o mal se revela em nós por meio
desse sofrimento que nos permite vislumbrar uma vida interior
que, como percebemos pouco a pouco, é a verdadeira vida.
A constituição da riqueza existencial me conduz à riqueza da
vida espiritual. Assim, leremos em nós a primazia da existência
sobre a afirmação de nosso ser. É assim que, em seu grande livro
De l'Acte [Do Ato], de 1937, Lavelle afirma que a existência prece­
de a essência. Por meio dessa valorização da existência, envolve
o homem na ação alegre. Então o mal não está no dado, no real,
mas no querer. O mal que encontro é algo por superar, e não uma
limitação de meu ser. O sofrimento, por exemplo, é sentido na sen­
sibilidade; mas, se me refiro, de modo complementar, ao espaço
em mim onde se expressam a vontade e a liberdade, constato que
estou na presença de uma experiência espiritual. Em vez de ser
restringido e humilhado por esse mal que me obceca, torno-me o
princípio de uma assunção dessa infelicidade. Posso afirmar-me
como princípio de vida em meu espírito, porque ele confere ao
mal uma significação e faz dele um obstáculo por vencer.
***

Como constato, é uma realidade espiritual o que me faz ser. No


exemplo do sofrimento, constata-se que ele me leva a aprofundar
minha interioridade, a indagar sobre mim mesmo. Meu ser ganha
em gravidade e, ao mesmo tempo, em delicadeza. Já não posso
entregar-me à indiferença nem à busca de bens exteriores. Em
contrapartida, é como se eu descobrisse o acesso a bens interiores,
que parecem tão invisíveis quão valiosos. Mais que isso: descubro,
na mesma experiência, que alcanço uma unidade interior no cen­
tro, na fonte de minha sensibilidade (p. 83-84).
Já não me é possível, então, deixar-me levar por todas as soli­
citações da natureza. Constato que essas solicitações tendiam a
uma desestabilização do eu, a uma dispersão no mundo, a uma

2Louis Lavelle, Carnets de Guerre: 1915-1918. Québec, Le Beffroi; Paris, Les Belles
Lemes, 1985.

Prefácio l 19
distração. Torno-me o foco de uma existência autônoma (p. 97).
Descubro que depende apenas de mim solicitar aquela fonte viva
que existe em mim para então assumir minha responsabilidade
de ser eu mesmo. A ferida do sofrimento e a decepção do isola­
mento me mostram que existe um lugar íntimo que é realmente
meu, o lugar de minha atividade espiritual. É em meu ser que en­
contro o princípio de minha atividade espiritual. E não será para
me comprazer nela, mas para participar da dinâmica íntima, que
ela me revela.
Assim, é no momento em que poderia sentir-me fraco, no mo­
mento em que minha fragilidade se manifesta, em que sinto que
o entorno me parece hostil, que encontro a mim mesmo. Eu não
podia procurar a atividade do espírito no mundo. Esta se revela
no universo do invisível, e constato que cabe ao espírito penetrar
o mundo para lhe conferir um sentido capaz de se coordenar com
minha atividade interior. Graças ao mal que existia no mundo,
separei-me deste último e encontrei em mim o movimento espiri­
tual que, à margem do mundo, me mostra meu dinamismo, meu
ardor, meu impulso (p. 55).
Esse impulso encontra sua significação na possibilidade que
possui de se orientar para lá ou para cá, para o bem ou para o
mal, para o alto ou para o baixo. Minha sensibilidade espiritual
se revela, portanto, como presença diante do dualismo principiai
axiológico. Eu deveria escolher entre o bem e o mal, entre o dina­
mismo e a inércia, entre o abatimento e a vitalidade de espírito.
O querer se sente convocado a tomar uma decisão, e esta remete
à minha intimidade, a essa apreensão do eu em que se sente com
clareza que o que está em jogo é o próprio eu, sua vocação e seu
destino. Existe uma alternativa de escolha, mas ela se dirige a um
eu que é único e que, ao escolher, se escolhe. Meu ser se fará unica­
mente pelo bem que ele encarnará em suas ações. É essa escolha
o que lhe dará sua unidade interior e o que, em última instância,
o caracterizará.
Nossas infelicidades parecem criar em nós um fendilhamento,
separações, uma pluralidade de possíveis. O percurso espiritual
nos restitui a unidade pessoal que parecíamos estar a ponto de
perder. A reflexão feita sobre nossa dificuldade de ser nos deu a

20 1 O Mal e o Sofrimento
possibilidade de recuperar nosso destino próprio. Graças à liber­
dade, que voltou a ser sensível diante das dificuldades da vida, o
homem recupera a possibilidade de viver um sentido; é esse sen­
tido que permitirá retomar uma atividade pessoal e um progresso
espiritual. O absurdo do mal é vencido pela vivacidade do espírito
e pela identificação dos valores que esperavam que eu lhes permi­
tisse viver e irradiar-se em mim. Aqui se encontra o tema central
da perspectiva lavelliana. O ser será alcançado pelo ato, mas o ato
tem seu princípio na consciência viva reencontrada em mim. Essa
experiência da consciência axiológica nos revelou o ser. O ser será
aquele ato pelo qual o espírito faz a si próprio.
***

No entanto, não se trata de nos comprazermos num solipsis­


mo. A filosofia de Lavelle é todo o contrário disso. O eu não se
retraiu em si mesmo, mas encontrou em si o lugar de uma experi­
ência da qual os outros seres são capazes e na qual lhes é possível
comungar. Pode-se levar essa interioridade até a universalidade.
Encontra-se o caminho para isso por aquela apreensão de alegria
criadora que vibra em nós, ao mesmo tempo que uma luz parece
iluminar-nos. Vê-se a possibilidade de uma sociedade espiritual.
A solidão ou o sofrimento podia fechar-nos em nós mesmos; no
entanto, ao reencontrar a si mesmo em sua fonte, o eu deixou o
mundo das aparências, da exterioridade. Na interioridade do es­
pírito é possível comunicar-se, é possível comungar. A vida inte­
rior pode acolher as outras vidas interiores. Assim, sinto-me só e,
ao mesmo tempo, nessa experiência, encontro os outros. Através
dessa fraternidade pode constituir-se uma comunidade de ale­
gria. Eu me separei daquilo que agia no mundo para encontrar
aquilo que vive no espírito, naquela vida do espírito que é comu­
nhão e que, com o tempo, vibrará com o próprio espírito de Deus.
O sofrimento e o isolamento arruinaram meu amor-próprio.
A epopeia espiritual subsequente libera o intervalo entre os seres
e dá ensejo a uma comunicação que se elabora na sensibilidade
a um princípio que a alimenta. Cada ser descobre a presença do
princípio divino e, nesse movimento de progressão e de ascensão
que se opera, reconhece uma presença que nutre sua atividade.
A vida espiritual descobre, nessa superação, a própria vida do

Prefácio 1 21
amor, esse movimento infinito que nos une ao Todo; ao mesmo
tempo, individualmente, sentimo-nos viver. É provável que um
aprofundamento dessa experiência nos levasse a encontrar-nos
numa participação em Deus, que une todos os seres, que os criou
para que estivessem unidos e vivessem numa sociedade de con­
córdia espiritual. É sob o olhar de Deus que os seres se encontram
unidos e realizam seu próprio destino. Sob esse olhar encontra­
mos o ato de bondade pelo qual o criador convidou suas criaturas
ao ser; devemos participar disso pelas iniciativas que acabamos
de descrever, nas quais o que nos é pedido, de certa forma, é que
nos "criemos" a nós mesmos a partir da liberdade que é nossa.
***

Este livro descreve, assim, uma experiência humana que so­


licita nossa liberdade. Vemos que, ao vivê-la em profundidade, o
que se oferece a nós é que nos realizemos a nós mesmos. Nosso
ser é uma atividade espiritual que acaba por nos abrir para a ati­
vidade compartilhada por todos os seres que se unifica no Espí­
rito puro. Lavelle lia com prazer os escritos dos grandes santos
da tradição cristã, ou se inspirava em seus exemplos.3 A moral
e a metafísica de Lavelle, por meio dessa filosofia da liberdade,
desembocam nessa expressão do eu que encontra pleno floresci­
mento na união com o espírito divino. É por meio das dificulda­
des que encontramos no mundo que nos é dada a possibilidade
de nos desenvolver nessa totalidade que não é outra coisa senão a
comunhão mística com o Espírito do Deus criador. Como se viu,
existe uma complementaridade que devo assumir entre a redes­
coberta de mim, à qual as asperezas do mundo me convidam, e a
elevação e o retorno a Deus. 4
A leitura deste livro mostra uma riqueza espiritual, uma be­
leza de expressão que só podem regozijar a quem se dedica a ele.
Aqui se encontrará uma valorização da descrição psicológica que
se distancia de tudo o que se reduz à racionalidade estéril, para

3 Louis Lavelle, Quatre Saints. Paris, Albin Michel, 1951 (republicado com o título
De la Sainteté, Paris, Christian de Bartillat, 1993).
4 Para uma apresentação geral da obra de Lavelle é preciso consultar Jean École,
Louis Lavei/e et !e Renouveau de la Métaphysique de l'Être au XXe Sii:cle. Hildesheim,
Olms, 1997.

22 1 O Mal e o Sofrimento
reencontrar o próprio dinamismo da vida do espírito. A presença
do emocional na vida psíquica, quando, esmeradamente, a tor­
namos significante - graças à atenção da reflexão -, conduz-nos
pouco a pouco à dimensão do eu em seu diálogo com a liberdade.
Ao realizarmos os possíveis do eu, veremos florescer o que há de
mais espiritual em nós e realizar-se uma presença do divino com­
partilhada entre todos os espíritos.

MichelAdam
Professor emérito de filosofia
Universidade Michel de Montaigne - Bordeaux III
Vice-presidente da Association Louis Lavelle

Prefácio 1 23
PREÂMBULO
PREÂMBULO

Sobre o tempo da guerra

Encontram-se aqui reunidos, num único volume, dois ensaios -

O Mal e o Sofrimento, Todos os Seres, Separados e Unidos-, escritos


em tempos de paz, mas que, como se considerou, poderiam pro­
porcionar uma leitura útil em tempos de guerra. Existe na paz uma
espécie de doçura cujo preço só sentimos em sua inteireza depois
que a perdemos. É sempre assim com a felicidade, que nos escapa
quando a possuímos e da qual só conhecemos a lembrança. A pró­
pria paz em que vivemos entre as duas guerras estava tão mistura­
da à guerra, à que ainda nos assombrava e à que já nos ameaçava,
que era como um equilíbrio em suspenso: não sabíamos se iria
romper-se ou estabelecer-se; era um incêndio mal apagado.
Nenhum homem nascido no século em que estamos conhe­
ceu, na idade adulta, a verdadeira paz: e é preciso ter coragem
de considerar que ele já não tem grandes chances de conhecê-la
um dia. Ainda assim, nenhum deles deixa de evocar a paz como
um porto onde encontrará o termo de suas tribulações, onde, en­
fim, porá o pé em terra firme e começará a viver de acordo com
seus anseios. E, se se alegasse que a única paz é a paz do coração,
existiria no mundo um ser tão egoísta ou tão forte que não se
deixasse atingir por esse grande dilaceramento dos corpos e das
almas que constitui o destino da humanidade durante a guerra,
que não participasse de todos os sofrimentos dos quais a guerra
se alimenta até em seus sucessos ou em seu triunfo, que não se
interrogasse sobre o próprio Mal ao qual a guerra parece entre­
gar-nos e no qual ninguém pode estar certo de não ter alguma
parte de responsabilidade?
Experimentamos o mal e o sofrimento tanto durante a paz
como durante a guerra. Podemos considerar a ambos como in­
separáveis de nossa humana condição. São as marcas de nossa
miséria e explicam bem o longo gemido que a consciência não
cessou de fazer ouvir ao longo das eras, e que por vezes se consi­
dera a única voz que lhe é natural. De fato, a consciência nunca é
mais aguda do que quando sofre: o prazer a dissipa e entorpece.
O sofrimento é o aguilhão que a desperta, que estimula seu ponto
mais sensível. Ao mesmo tempo, porém, o sofrimento é a primei­
ra revelação do Mal; o Mal nunca está isento de relação com o
sofrimento. É seu princípio: o mal que faço é antes de tudo um
sofrimento que imponho ao outro; sendo assim, só me propor­
ciona uma satisfação amarga. Isso porque o Mal, cujo rastro é o
sofrimento, é a vida que volta contra si mesma a própria potência
de que dispõe; é a vida que se fere e se mutila.
Durante a paz podíamos meditar sobre o mal e sobre o sofri­
mento com mais tranquilidade. Durante a guerra, somos arrasta­
dos pelo turbilhão deles. Durante a paz, o mal e o sofrimento eram
eventos isolados, cujo domínio buscávamos circunscrever e cuja
causa buscávamos determinar, a fim de solucioná-los: queríamos
ver neles apenas fenômenos excepcionais, numerosos, é certo, e
sempre renascentes, mas exclusivamente imputáveis a acidentes
ou falhas, contra os quais é preciso lutar com a esperança de triun­
far sempre. Não tínhamos experiência do Mal e do Sofrimento se­
não em nós e à nossa volta, nos seres suficientemente próximos
para que sua dor fosse também a nossa ou para que uma ferida
pudesse vir-nos deles. O horizonte de nossa sensibilidade era bem
estreito. Para além dele, o mal e o sofrimento eram mais imagi­
nados que sentidos: não passavam de ideias; em nós, fora de nós,
só buscávamos esquecê-los e escapar deles. Só uma consciência
desesperada ou capaz de uma profunda meditação era suscetível
de se perguntar se o Mal e o Sofrimento não mergulhavam até

28 1 O Mal e o Sofrimento
a própria raiz do ser e da vida, se não constituíam os próprios
elementos de nosso destino, que nos obrigam, segundo alguns, a
sucumbir e, segundo outros, a atravessá-los para livrar-nos deles.
Mas durante a guerra o mal e o sofrimento adquirem uma am­
plidão e um destaque que ultrapassam singularmente a esfera da
existência individual: já não podemos explicá-los pela enfermi­
dade de cada um ou por sua maldade, embora uma e outra apare­
çam sob uma luz crua. Quanto à origem do Mal e do Sofrimento
que o acompanha, não podemos limitar-nos a acusar os que que­
remos responsabilizar pela guerra, visto que os povos os seguem
e que Deus mesmo lhes permite executar seus desígnios. Quanto
a todos os que se envolvem na guerra com o corpo e com a alma, o
sofrimento atinge tanto os mais vigorosos quanto os mais débeis;
e o mal que o homem faz ao homem assim que se torna seu inimi­
go pode ser sinal de seu valor e excluir qualquer suspeita de mal­
dade. Todos os que participam da guerra se sentem ultrapassados
por ela: submetem-se a ela como a uma espécie de catástrofe cós­
mica, que a vontade humana tenta, como pode, refrear ou infiectir.
Ei-los inseridos, portanto, no império do Mal - onde, a partir daí,
sua ação deve exercer-se - e expostos por todos os lados ao sofri­
mento, cujos riscos aceitam antecipadamente. Durante a paz, eu
me empenhava apenas em aboli-los: durante a guerra, isso não
pode sequer ser vislumbrado. É o próprio mal que eu converto em
bem, é ao próprio sofrimento que devo conferir um sentido que o
penetre e o transfigure.
A guerra dá à mais pacata das vidas uma perspectiva trági­
ca. Imprime gravidade aos rostos mais frívolos. Confronta cada
um com o pensamento da morte e aproxima-o de nós a ponto de
misturá-lo com nossa própria vida, enquanto a paz nos permi­
tia adiá-lo indefinidamente. Torna o sofrimento sempre iminente
em nossa própria carne e em tudo o que amamos. Obriga-nos ao
terrível aprendizado do temor e da ausência. Estabelece-nos, por
assim dizer, na espera e na angústia, que, entre todos os estados,
são os mais difíceis de suportar, dado que sua essência é ansiar
por seu término. Realiza entre os homens uma espécie de igualda­
de, sejam quais forem as vantagens pessoais que eles continuem
a perseguir - e que nos chocam ainda mais porque o perigo é co­
mum e porque, para cada um, o que está em jogo é ele próprio,

Preâmbulo 1 29
é essa sociedade e essa humanidade sem as quais ele não seria
ninguém, são todos os valores espirituais a que ele está ligado, que
dão sentido à vida e que, por meio de mil provações, é próprio da
vida tentar defender e encarnar. No entanto, não se deveria pensar
que a existência muda de fisionomia em tempo de guerra e em
tempo de paz, nem que a imagem que temos do universo pode
de súbito tornar-se diferente, nem que nossa conduta obedece a
princípios novos, nem, como se disse por vezes, que existe uma
psicologia ou uma moral da paz e outra da guerra. A guerra não
interrompe nem reverte o curso da vida, mas antes nos revela
todos os seus traços que o hábito havia pouco a pouco apagado,
numa espécie de despojamento que lhes confere uma impressio­
nante nitidez. Os sentimentos mais belos e também, sem dúvida,
os mais baixos já não permanecem ocultos. O sofrimento está
sempre prestes a surgir. Reside no fundo da alma de modo contí­
nuo, sem que precise eclodir.
Já não pensamos em dissimulá-lo ou apaziguá-lo. Ele pertence
à humanidade, já não ao indivíduo: aparece-nos com uma espécie
de gravidade nua que ninguém pensaria em exagerar ou simular,
a fim de atrair para si o interesse ou a piedade. Da mesma manei­
ra, o Mal está diante de nós como uma potência que nos impõe
sua lei, à qual já não é permitido entregar-se ou ceder com com­
placência. Já não se compõe com ele. O Mal se descobre para nós
não propriamente no inimigo - que é apenas sua figura -, mas
naquela mesma força que sempre se opõe ao que desejamos e ao
que amamos. Ora, essa força sempre exige ser vencida. E não exis­
te nada na guerra que não seja, para nós, esforço ou dever.
Dir-se-á que é próprio da guerra exercer sobre nós uma espécie
de fascinação, reter todos os nossos pensamentos, desviá-los de
seu uso mais natural, que só poderia inserir-se na paz, a paz que
deixamos e a que esperamos reencontrar. Mas é impossível que
seja assim. É sempre no presente que vivemos: nem a nostalgia
nem a esperança bastam para preenchê-lo. Longe de suspender a
vida, a guerra lhe dá uma extraordinária tensão. Só as circunstân­
cias são diferentes, mas por sua violência, por sua subitaneidade,
por aquela potência material que elas demonstram e que sempre
ameaça aniquilar nosso corpo: elas nos arrancam toda segurança

30 1 O Mal e o Sofrimento
e nos dão da vida inteiramente pura a consciência mais vívida
e mais dilacerante. Acima dessa superfície da alma na qual se
projetam - numa fantasmagoria de pesadelo - todas as imagens
da guerra, a guerra nos descobre um mundo que carregávamos
em nós sem que até então nosso olhar o tivesse penetrado, um
mundo espiritual iluminado por uma nova luz, no qual as coisas
perdem sua realidade e voltam a ser para nós o que de fato são,
isto é, aparências; no qual, em contrapartida, todos os nossos es­
tados e todos os nossos atos interiores adquirem uma densidade
significativa e, a partir daí, compõem para nós o mundo verdadei­
ro. É aí que experimentamos aquele sofrimento essencial à vida,
do qual todos os sofrimentos particulares são apenas modos ou
signos, e que aprendemos a aceitá-lo e aprofundá-lo, esse Mal que
é inseparável da vontade e contra o qual só sabemos lutar se, ao
encontrá-lo também em nós, tal luta for também uma luta contra
nós mesmos.
É justo dizer que somente quem combate tem experiência da
guerra. E, no âmbito mais tranquilo em que é chamado a viver,
cada um sente a consciência pesada se não aspira a imitar o com­
batente; chega a desejar que lhe caiba compartilhar um pouco de
sua miséria, de seus perigos e do esforço obscuro no qual ele sem­
pre corre o risco de sucumbir. Mas a guerra é um ofício: e, de to­
dos os ofícios, é o mais exigente, o mais perigoso, o que nos impõe
o maior número de fadigas, no qual a matéria é mais resistente e
mais rebelde; um ofício como o do mineiro ou o do marinheiro,
mas no qual todos os recursos da indústria humana vêm aliar­
-se contra ele à violência dos elementos, em vez de servir apenas
para dominá-la. No entanto, a guerra não esgota a consciência do
guerreiro: no isolamento em que o instala - no qual ele se man­
tém separado de todos os vínculos que o sustentavam no meio
do mundo e, por assim dizer, suspenso entre o ser e o nada -, ele
repentinamente se vê diante de si mesmo, como se descobrisse
pela primeira vez sua existência, agora ameaçada. Por vezes se
observou que as narrativas de guerra, aparentemente destinadas
a impressionar a imaginação do modo mais vívido, sempre a de­
cepcionavam. Existe nelas um caráter anedótico que faz com que
pareçam exteriores a nós. As impressões de horror e de pavor logo
atingem um limite que não pode ser superado; falta aí a presença

Preâmbulo 1 31
do corpo, e é inútil querer ensiná-lo a tremer pela simples evo­
cação de uma imagem. Quem está envolvido de mais perto com
os acontecimentos da guerra não se compraz em repassá-los na
mente: assim que é libertado deles, cultiva, diante de tudo o que
viu, de tudo o que sofreu, uma espécie de pudor. Não é exatamente
com a paz que ele sonha, mas com o significado que terá de dar à
sua vida quando a paz lhe for entregue, à vida tal como se revelou
durante a guerra a seu olhar lúcido e desinteressado. Pensa me­
nos na guerra do que em si mesmo. Sempre acaba por perceber
que é próprio da guerra, pelo papel destruidor com que, de sú­
bito, ela reveste sua atividade material, obrigá-lo a espiritualizar
inteiramente sua vida. E o novo mundo que ele descobre está além
da paz e da guerra: a guerra, por esse grande desprendimento a
que nos reduz, mostra-nos que esse mundo é o único que resiste
quando tudo desmorona à nossa volta. O sofrimento e o mal se
tornam a medida de nossas provações e de nossos deveres. Ei-los
incorporados à essência de nosso destino, ei-los transformados
em instrumentos de nossa paciência e de nossa coragem. Na paz
reconquistada, nunca mais se tratará, para nós, de recusá-los ou
esquecê-los, mas sim de penetrá-los e convertê-los.
Aqui esses dois grandes testemunhos da miséria humana -
dos quais se pode dizer que suscitaram, contra a existência, todas
as maldições que pesaram sobre ela, e sem os quais talvez a exis­
tência fosse um sonho sem consistência, mas não um combate
e uma redenção - foram examinados à luz da reflexão, indepen­
dentemente de suas formas particulares e de todos os remédios
externos pelos quais tentamos aboli-los. Foi no próprio fundo da
consciência que se tentou captar essa ambiguidade entre o bem e
o mal que, ao obrigar-nos a realizar um e vencer o outro, confere à
nossa própria vida sua intensidade e sua profundidade. Também
nisso reside a prova de nossa liberdade: e, embora o mal só exista
no mundo para ser suprimido, se não o fosse por nosso esforço,
o bem o seria igualmente, e o mundo retornaria à indiferença
de puro espetáculo. Da mesma maneira, o sofrimento, que dá ao
sentimento de minha própria vida um caráter tão agudo e tão
incisivo, só pode adquirir valor pelo uso que sou capaz de fazer
dele: pode reduzir-me ao desespero, mas confere à alma que sou­
be aceitá-lo uma força e uma luz incomparáveis. A guerra leva a

32 1 O Mal e o Sofrimento
experiência comum da vida a seu extremo: em sua pura essência
espiritual, essa experiência tende a despojar-se das imagens da
guerra; trata-se, para nós, de torná-la constante, de trazer em nós
sua presença ininterrupta e de reencontrá-la sempre e em todas
as partes, sem que o rosto fugaz da felicidade jamais nos permita
esquecê-la ou perdê-la.

O Mal e o Sofrimento remetem o homem a si mesmo, numa es­


pécie de ansiedade em que ele tem a impressão de descobrir uma
hostilidade oculta no próprio interior da criação, como se seu
autor, arrependendo-se de lhe dar existência no exato momento
em que o faz, misturasse a toda a sua obra um germe destinado
a corrompê-la e destruí-la. No momento em que o homem acre­
dita entrar em contato seja com o mundo, seja consigo mesmo,
é sempre por uma dupla ferida. E, no entanto, ele não pode des­
considerar que, embora sua existência lhe pareça então separada,
exclusivamente entregue a seus próprios recursos, numa solidão
que nenhum outro ser pode penetrar, nesse perfeito despojamen­
to a que se encontra reduzida, ela é, contudo, a mesma para todos
os homens. Este é precisamente o tema a que aplicamos nosso es­
pírito no segundo ensaio: Todos os Homens, Separados e Unidos;
este último é, por assim dizer, a contrapartida do anterior - ao
menos se é verdadeiro que é na intimidade dessa solidão na qual
todos os homens são irmãos que aprendemos a tomar consciên­
cia dos males que são os de toda vida que vem a este mundo; e se é
verdadeiro que, por essa mesma consciência que tomamos deles,
já começamos a aceitá-los, a tomar posse deles e a curá-los.
Também nesse aspecto se pode dizer que, em vez de a guerra
ser para nós uma situação de exceção, ela concretiza, com traços
singularmente vívidos e pronunciados, essa situação de todos os
instantes em que o homem que se sente mais só é também o que,
tendo rompido todos os vínculos superficiais com outrem - os
quais, é preciso dizer, são as marcas da distração e não da apro­
ximação -, é capaz de alcançar com outro ser a união mais pura,
mais silenciosa e mais profunda. Isso porque, se é verdadeiro que
se sofre sozinho e se morre sozinho, também é verdadeiro que a
guerra, ao se impor a todos os homens como uma catástrofe que

Preâmbulo l 33
lhes é comum, os mergulha imediatamente na solidão. E muitos
deles conhecem a solidão pela primeira vez, como a um mundo
de que jamais haviam tido notícia, que constitui para todos um
mundo de desolação, mas se transforma para alguns num mundo
de luz. Essa solidão são todos os vínculos que nos sustentavam
na existência, subitamente rompidos. Quem parte não é mais que
um soldado reduzido ao que carrega no fundo de si mesmo, que
abandona todos os objetos de interesse ou de amor dos quais, até
então, toda a sua vida dependia, um soldado mais solitário ainda
pelo fato de entrar numa sociedade inteiramente diferente, a um
só tempo anônima e hierarquizada, da qual conhecerá apenas as
exigências que lhe serão impostas por ela. O soldado aprende a
maior das solidões, que é a da ausência por vezes nascida de uma
única presença abolida; isso é o que aprendem também, numa
admirável igualdade, todos os que ele deixou. Mas a realidade da
guerra confere ao sentimento dessa solidão uma extraordinária
potência: porque todos esses homens semelhantes, que se ignora­
vam uns aos outros, que têm, cada qual, um passado misterioso
para todos os outros - que surge em cada um deles assim que
seu pensamento dispõe do mínimo tempo -, todos esses homens
confrontados com os mesmos perigos, entre os quais, no entanto,
como por uma espécie de eleição, um será atingido e outro, pou­
pado, se veem postos de súbito diante de seu destino, cuja cur­
va, ainda em suspenso, eles perscrutam. Assim, o próprio caráter
trágico dos eventos, a brusca abolição dos hábitos familiares, a
conversão de toda posse antiga em pura lembrança obrigam a
consciência a buscar apenas em si mesma o princípio de seu de­
samparo ou o princípio de sua consolação.
Mas esses dois princípios sem dúvida constituem algo uno.
É preciso que a solidão nos apareça antes de tudo como aban­
dono, que ela nos prive de todos os apoios, que nos deixe sem
recurso algum, que não nos permita esperar nada de um mundo
indiferente e hostil, para então nos obrigar a descobrir em nós
mesmos uma força e uma luz que em vão pedíamos ao mundo
e que ele é incapaz de nos oferecer. Na solidão aprendemos que
toda realidade é interior e que tudo o que olhamos com os olhos
do corpo é apenas uma expressão que a manifesta, uma ocasião
que lhe permite transparecer ou uma prova que a julga. Quando

34 1 O Mal e o Sofrimento
só lidamos com nossos pensamentos, com nossos sentimentos,
com nossas lembranças, as coisas que nos eram mais familiares
adquirem para nós um relevo, uma significação, um valor que
não possuíam quando dispúnhamos de sua presença sensível.
Parece que somente começam a ser. Talvez fosse possível dizer
que quem nunca teve a experiência da solidão só conheceu do
mundo um cenário de teatro no qual ele próprio era apenas um
ator entre outros. Na solidão, o cenário cai e o espetáculo cessa.
Do real não subsiste senão aquela verdade que ele não raro nos
dissimulava, em vez de no-la revelar: ele é reduzido, para nós, à
sua essência espiritual.
Ora, a partir desse momento, será possível dizer que a solidão
é verdadeiramente uma separação? Não será uma abertura em
vez de um fechamento? E, agora que o mundo nos recusa acesso,
não encontrará esse mundo em nós um acesso que jamais tivera?
Antes que conhecêssemos a solidão, um espaço imenso estava
desdobrado à nossa frente, com uma multiplicidade de caminhos
em que a vontade e o desejo se envolviam. Agora esse espaço se
estreita em torno de nós, como que para aprisionar nossos mo­
vimentos, em vez de liberá-los. O horizonte se aproxima pouco a
pouco e vem confundir-se com nossos próprios limites. Já não há
para nós atmosfera nem luz. Nossa separação está consumada.
No entanto, pouco a pouco nosso olhar se abre para uma nova
luz. Gradualmente descobrimos outro mundo, que até então nos
parecia oculto. Outro horizonte começa a se formar em nós, um
horizonte que se amplia em nós à medida que o outro, fora de
nós, se retrai. A solidão deixa de ser para nós um fardo que nos
oprime, e torna-se uma espécie de refúgio. Acontece que nos sin­
tamos menos sós quando estamos sós do que quando estamos
no meio dos outros. Essa mesma solidão se preenche aos pou­
cos com uma presença espiritual que confere a todos os objetos
possíveis de nosso pensamento e de nosso amor uma existência
ardente que supera muito à do corpo. Todos os que tiveram a ex­
periência da solidão conhecem a grandeza desse estado, sobre
o qual Santa Teresa afirmava: "Eu sozinha com Deus sozinho:'
Por uma espécie de paradoxo, porém, esse eu para o qual dirijo
agora meu olhar cessa de me dar, como há pouco, preocupação
e inquietude. Está livre de todo interesse. E tampouco se pode

Preâmbulo 1 35
dizer que me retirei do mundo, pois me parece que esse mundo
é algo que descubro como se jamais o tivesse visto. Ora, não se
trata propriamente de um mundo novo: é o mundo no qual sem­
pre vivi, mas que parece iluminado por outra luz. Como acon­
tece com aqueles que perdi, é na ausência que sempre se revela
a essência secreta dos outros seres, que é a melhor parte deles
próprios e que as relações cotidianas não raro interceptavam, em
vez de entregar. É agora, quando estou separado deles, que estou
verdadeiramente unido a eles; e já aprendo como deverei agir
com eles quando os reencontrar.
Essa comunhão com o próximo é algo que a guerra já me ensi­
na a praticar. Os homens que me cercam, por sua vez, estão livres
de todas as amarras, como eu. Não estão unidos a mim por ne­
nhum vínculo de parentesco nem de amizade. É pelo mais fortuito
dos encontros que, de súbito, vivem a meu lado; homens, simples­
mente, como eu: envolvidos na mesma ação, sujeitos ao mesmo
perigo, com sua vida inteira diante deles. São verdadeiramente o
próximo e estão reduzidos, para mim, a não ser nada além disso;
a um só tempo próximos e desconhecidos, mergulhados na mes­
ma solidão, indivíduos únicos, como eu, e nos quais, no entanto,
palpita a mesma humanidade. Para mim, estão ao mesmo tem­
po ausentes e presentes. Nossas relações são despojadas de todo
artifício, não arrastam consigo o peso de ontem; e a imagem de
amanhã, que talvez não seja dada, não as altera em absoluto. Essas
relações se esgotam no puro hoje, quando recebem um valor atual
e total, seja de uma situação comum que não se pode recusar e à
qual é preciso responder, seja naquela espécie de oferta inocente
de si que faz com que, onde a aparência já não serve para nada, o
ser se torne tudo o que ele é, numa simplicidade perfeita, plena de
miséria e de grandeza. Não é rompendo a solidão, portanto, que os
homens se tornam capazes de comungar: é aprofundando-a. Essa
comunhão não abole a individualidade deles nem seus limites:
confere-lhes um sentimento vivo e recíproco; mas a descoberta
mútua de sua individualidade e de seus limites deve ensiná-los a
apoiar-se mutuamente, em vez de chocar-se uns com os outros. E
o ponto onde os homens têm a consciência mais dolorosa de sua
separação é também o ponto em que se sentem verdadeiramente
unidos e irmãos uns dos outros.

36 1 O Mal e o Sofrimento
A vida do espírito reside por inteiro numa misteriosa identi­
dade da ausência e da presença. Isso porque o espírito não vive
apenas retraído em si mesmo. Realiza a grande separação diante
de tudo o que, até então, me era dado e parecia bastar-me. Mas
essa ausência se tornará uma presença miraculosa a mim mesmo
e a tudo o que existe: é ao mesmo tempo saída de si e penetração
na essência de todas as coisas. Isso se vê particularmente bem
nas relações que os seres têm uns com os outros, sobre as quais
se pode dizer que formam para nós a própria substância da exis­
tência, a fonte de todas as nossas tristezas e de todas as nossas
alegrias. Como se o corpo fosse a tela que nos impedisse de vê-los
e falseasse todas as nossas relações com eles, eles adquirem, assim
que estão longe de nós, uma espécie de presença pura, tão como­
vente que temos por vezes dificuldade para suportá-la. Trata-se,
para nós, de nos lembrarmos dessa presença espiritual quando
estivermos de novo entre eles. Que a presença sensível deixe en­
tão de nos cegar - ou de nos contentar, o que é a mesma coisa.
Somente o longínquo pode descobrir-nos o próximo. Somente a
solidão é suficientemente profunda para acolher o sofrimento, su­
ficientemente pura para nos lavar do mal, suficientemente vasta
para receber em si toda a realidade de outro ser. Deus mesmo, se
só se tem olhos para o mundo que se oferece aos nossos sentidos,
deve ser definido como o Solitário infinito, o Separado perfeito, o
eterno Ausente; mas parece-nos, então, que o mal e o sofrimento
invadem este mundo e, a partir daí, não têm remédio. Sucede po­
rém que, se é possível convertê-los, é porque, quando a atenção se
torna mais lúcida e mais penetrante, e a boa vontade mais pura e
mais confiante, esse Solitário preenche nossa própria solidão, esse
Separado nos livra de nossa separação, e nesse Ausente encontra­
mos a presença absoluta a nós mesmos e ao mundo.

Preâmbulo 1 37
PARTE !

O MAL E O SOFRIMENTO

1 . Ü MAL

1. O escândalo do mal

Cabe perguntar se é útil ao espírito fixar seu olhar no mal, seja


para defini-lo, seja para explicá-lo, seja para evitá-lo. Pois a ele se
confere, ao considerá-lo de muito perto, uma espécie de realidade;
ele passa a fascinar a consciência que, pelo próprio medo que tem
dele, se sente atraída por ele. Não serão, ao contrário, a ideia e a
vontade do bem que, sozinhas, devem conferir à nossa alma a luz
e a força e, ao ocupar toda a capacidade de nossa consciência, reti­
rar do mal sua própria possibilidade de nascer? É somente quan­
do a atividade generosa começa a falhar que um lugar vazio se
abre na consciência onde o mal vem insinuar-se. E a moral mais
viril só conhece preceitos positivos: ordena o que se deve fazer e
não precisa proibir-nos nada.
No entanto, não podemos esperar que baste nos voltarmos sem­
pre para o bem para que o mal desapareça de nossa experiência.
Nós o encontramos em todas as partes, em nós e fora de nós. Ele
não se limita ao erro que depende só de nós. A dor é um mal que
sentimos, que somos obrigados a sofrer. Seja qual for a pureza de
nossa vontade, existem em nós tendências más que de súbito atra­
vessam nosso pensamento como um raio e nos enchem de pavor,
pela profundidade em que as sentimos mergulhar, por uma pre­
sença obscura com que não param de nos cercar e de nos ameaçar.
Existe o sofrimento dos outros; existe sua miséria moral. O mal se
mescla, apesar de nós, a nossos mínimos gestos, a nossas iniciati­
vas mais naturais; talvez seja um ingrediente de nossas melhores
ações. Desconsiderar o mal a fim de dar o bem como único ponto
de aplicação à nossa atividade é cegar-se voluntariamente, é expor­
-se à aflição quando o mal se oferece a nós apesar de nós, é care­
cer daquela coragem de espírito que deve olhar o real face a face
e abraçá-lo em sua totalidade, a fim de penetrá-lo e endireitá-lo.
O mal é alvo de todos os protestos da consciência: da sensibili­
dade, quando se trata do sofrimento, e do julgamento, quando se
trata do erro; e é porque não podemos abdicar de nossa liberdade
que temos o poder, mesmo repelindo-o, de cometê-lo. O mal é o
escândalo do mundo. Constitui, para nós, um problema de suma
importância: é ele que faz do mundo um problema para nós.
Impõe-nos sua presença sem que possamos recusá-la. Não existe
homem algum que seja poupado dela. Ela exige que busquemos a
um só tempo explicá-la e aboli-la.
Diremos nós que o bem é igualmente um problema? Mas até
essa mesma palavra já não convém tão perfeitamente, pois o bem,
assim que é reconhecido, assim que é cumprido, é, ao contrário,
uma solução; é até, por definição, a solução de todos os proble­
mas. Por uma espécie de inversão, só constitui um problema para
quem o procura, ao passo que o mal é um problema para quem o
encontra. Isso porque não existe vontade que, ao perseguir o mal,
não persiga igualmente uma sombra do bem. No entanto, é ao re­
fletirmos sobre o intervalo que separa o bem que queremos do
mal que fazemos que a reflexão nos descobre a um só tempo o
sentido de nosso destino, o próprio cerne de nossa responsabili­
dade e o centro de oscilação de nossa vida espiritual.

2. A alternativa entre o bem e o mal

Não se pode pensar no bem ou no mal isoladamente. Eles só


existem um em relação ao outro e como dois contrários: cada
qual chama o outro e o exclui. Ninguém pode imaginar o mal sem

42 1 O Mal e o Sofrimento
imaginar o bem a que ele nos torna infiéis; e o bem, por sua vez, só
pode aparecer como bem pela ideia de um mal possível, suscetível
de nos seduzir e de nos fazer sucumbir.
É impossível imaginar um mundo onde só reinasse o bem e do
qual o mal estivesse banido. Isso porque, para uma consciência
que não tivesse a experiência do mal, tampouco haveria algo que
merecesse o nome de bem. Em uma perfeita igualdade de valor
entre todas as formas do ser, todo valor desapareceria; a sombra
nos permite perceber a luz e lhe confere seu preço. O próprio amor
que tenho pelo bem só é possível pela presença do mal de que
busco emancipar-me e que não cessa de me ameaçar. O bem só
dá sentido ao mundo pelo próprio escândalo do mal, que me faz
desejar o bem, que me obriga a fazer uma ideia dele e impõe à
minha vontade o dever de agir para realizá-lo.
É a alternativa entre o mal e o bem que é a própria fonte de
nossa vida espiritual. Por mais elevada que seja esta última, nela
sempre subsiste algum mal que a obriga a superar-se; este sem­
pre é para ela o perigo no qual ela corre risco de cair. Rezamos ao
Senhor para que nos livre do mal; e sempre esperamos que nossa
inteligência possa tornar-se tão pura e nossa vontade tão perfeita,
que cessaríamos ao mesmo tempo de conhecer o mal e de fazê-lo.
Mas quem pensará que o bem possa algum dia existir em virtude
de uma inelutável necessidade? Será possível entender que ele se
torne um dia uma lei da natureza, uma coisa que nos seja dada?
Junto com o aniquilamento da possibilidade do mal, seria o bem
o que aniquilaríamos. Chega-se, assim, a um extraordinário para­
doxo: o bem, que confere a tudo o que existe seu valor, sua signifi­
cação e sua beleza, chama o mal como à condição de seu próprio
ser. E, no entanto, o mal, que é sua negação, não pode por sua vez
justificar-se senão por uma iniciativa que o nega; sendo assim,
é preciso que ele exista, mas só pode existir para ser suprimido.
A vida afetiva revela imediatamente a mesma lei do espírito,
o mesmo ritmo da consciência, entre um estado que amamos e
um estado contrário que o sustenta, embora com todas as nos­
sas forças busquemos aboli-lo. Todos os homens amam o prazer e
detestam a dor, mesmo o santo, mesmo o asceta; a dor que supor­
tam ou pedem nunca é mais que um elemento ou um meio para

1 - 0 Mal l 43
um alegria mais perfeita ou mais pura. Não existe ser algum que
não sonhe em eliminar toda a dor que reina no mundo, a fim de
que exclusivamente o prazer venha preenchê-lo. Mas esse é um
sonho contraditório: quem elimina de si mesmo a faculdade de
sofrer elimina também a de fruir. Não que o prazer seja apenas,
como pensam certos filósofos, uma dor que cessa; mas esses dois
estados são inseparáveis, como as duas extremidades de um pên­
dulo: cada meia oscilação leva a outra consigo e a chama. Querer
disjungir os dois termos para manter um só é abolir a ambos.
Quem deseja um prazer contínuo só encontra a indiferença. E as
sensibilidades mais vivas e mais profundas são também as que
experimentam conjuntamente as dores e os prazeres mais inten­
sos e mais ricos.
A inteligência, por sua vez, busca o conhecimento, isto é, a ver­
dade. Mas essa verdade só é alguma coisa para nós em razão do
erro de que ela nos livra. É preciso que a verdade seja um erro
retificado e jamais, em si mesma, uma posse estável e garantida.
A verdade está pendurada num ato que depende de nós, que po­
demos não realizar ou realizar mal: então nos enganamos, e é a
possibilidade de enganar-se que não apenas confere à verdade seu
preço, mas constitui sua própria existência. Não há verdade para
quem nunca teve experiência do erro. Assim como a vontade no
mal e a sensibilidade na dor, a inteligência encontra no erro um
termo negativo que ela busca abolir, mas do qual, contudo, não
pode prescindir, visto que, sem ele, o termo positivo ao qual ela
tende não poderia ser concebido nem obtido.

3. O mal e a dor

Não se pode deixar de reconhecer que existe uma intuição


imediata e primitiva da consciência que identifica o mal com a
dor; à medida que a consciência adquire mais delicadeza, a dor
e o mal se dissociam, embora jamais o elo que os une se rompa.
É que a dor se impõe a nós apesar de nós, o que já mostra que
ela é a marca de nossa passividade e de nossa limitação, uma

44 1 O Mal e o Sofrimento
fronteira para a expansão de nosso ser: ademais, a consciência a
repele com todas as suas forças como ao mal presente e indubitá­
vel, antes até que a faculdade de julgar tenha começado a exercer­
-se. Mesmo que a dor não esgote a totalidade do mal, mesmo que
não seja, ela própria, um mal, está direta ou indiretamente ligada
a todas as formas do mal, até as mais sutis e mais sofisticadas. O
pessimista que amaldiçoa a vida vê-a inteiramente entregue ao
sofrimento: detém o olhar ou no mundo animal, em que os seres
se devoram, ou em nossa civilização, que, à medida que se refina,
aumenta nossos meios de sofrer.
A dor não apenas está sempre associada a um protesto, a uma
revolta da consciência que busca expulsá-la, mas também adere a
tal protesto e a tal revolta. E sem dúvida se poderia mostrar que a
dor em si mesma não é um mal, um mal absoluto e radical, e até que
ela pode ser a condição de um bem maior. Ao menos se é obrigado a
reconhecer que ela é sempre um elemento integrante do mal e que,
se a dor de súbito desaparecesse do mundo, seria difícil definir o
que ainda se poderia entender por mal e dizer em que poderia con­
sistir uma vontade má.Assim, a dor nos parece a marca e o testemu­
nho da presença do mal. Sentir dor é sofrer. É próprio do malvado
provocar voluntariamente a dor. Um homem bom é, para nós, um
homem que sofre com a dor alheia e busca com todas as suas forças
aliviá-la. Ser pessimista, enfim, é encarar a dor como inseparável da
consciência, da própria possibilidade de seu exercício.
Mas não podemos contentar-nos em confundir o mal com a
dor, pois a existência da dor não apresenta, para a inteligência, di­
ficuldades insuperáveis. Ela é o preço de nossa limitação. Rompe a
harmonia com nós mesmos e com o universo que até então asse­
gurava nossa paz interior. Quebra o impulso, a expansão natural e
confiante que renovavam sem cessar nossos prazeres e nossas ale­
grias. Acusa um fracasso, um dilaceramento da unidade de nosso
ser. Compreende-se muito facilmente que um ser limitado, preso
num universo que o ultrapassa em que se cruzam tantas forças
que não o levam em consideração, esteja sempre sujeito a sofrer
algum impacto ou ferimento. E por vezes se pensou que havia na
dor uma espécie de racionalidade, se é verdade que ela nos adver­
te de um perigo do qual ainda podemos nos defender.

1 - 0 Mal l 45
Não é a dor em si, portanto, que consideramos um mal. Pode­
mos gemer pelo destino das criaturas fadadas ao sofrimento num
mundo cego e indiferente. Esse sofrimento poderia ser a prova
de sua vontade, a medida da força, da pureza e da beneficência
desta última. Este mundo duro, austero e sofrente não seria um
mundo mau. Não é sem injustiça que o condenaríamos. Mas, se
o mal reside unicamente na vontade, então o mundo só é mau
se for o produto de uma vontade má, se a dor que nele reina for
uma dor intencional, a própria finalidade à qual a vontade tende
e não o meio de que a vontade precisa para produzir suas mais
belas obras. Talvez não exista no mundo um mal que seja isento
de relação com a dor; mas o mal não reside nela, e sim na atitude
da vontade diante dela, que pode ora deixar-se abater pela dor so­
frida, ou impingi-la a outrem, ora aceitá-la, aliviá-la, penetrá-la e
superá-la: mas então a vontade a converte em bem.

4. O uso da dor

Se levarmos em consideração apenas a dor que preenche o


mundo e cujo eventual desaparecimento não podemos esperar, e
se começarmos a identificar essa dor com o mal, então tudo estará
perdido, a consciência ficará bloqueada e nossa vida, sempre ex­
posta e ameaçada, só poderá ser objeto de maldição. A dor tomada
em si mesma, independentemente do uso que a liberdade possa
fazer dela e de todo o bem a que ela possa servir, é a um só tempo
um absurdo e uma crueldade. No entanto, o próprio da liberdade
é conferir sentido a tudo o que ela toca, e que pode tornar-se con­
dição de seu exercício e meio de sua ascensão. É preciso, portanto,
partir da liberdade que busca o bem e que, se encontrar na dor o
próprio meio de seu destino moral, conseguirá restituir-lhe uma
significação espiritual.
Não pode tratar-se aqui, aliás, de condenar todos aqueles a
quem a dor abate e que se deixam vencer por ela. Para muitos se­
res, a dor tem um caráter destrutivo: mina sua energia. Constitui,
portanto, sinal de um supremo perigo: sempre ameaça subjugar­
-nos, embora possa ser, para nós, uma prova que nos liberte. A dor

46 1 O Mal e o Sofrimento
nos dá uma extraordinária intimidade com nós mesmos; produz
um retraimento em si pelo qual o ser desce em si mesmo até a
própria raiz da vida, até o ponto em que, aparentemente, ela lhe
será arrancada. Aprofunda e escava a consciência, esvaziando-a
de súbito de todos os objetos de preocupação ou de distração que
até então bastavam para preenchê-la. Alguns seres adquirem uma
delicadeza, uma gravidade, um valor interior e pessoal que têm
relação com certas dores que lhes foram dadas, enquanto os que
não as conheceram mantêm, em comparação, uma indiferença a
um só tempo impermeável e superficial. As relações entre dois se­
res têm ainda mais acuidade e penetração quando eles sofreram
em comum e até um pelo outro, como quando, apesar dos cho­
ques da natureza e do caráter, eles perpetuam, acima de todas as
feridas e de todos os fracassos do amor-próprio, uma comunhão
puramente espiritual.
É talvez por nossa atitude em presença da dor que possamos
ser julgados. Nessa dificuldade que ela nos opõe, nessa angústia
que ela provoca em nós, nesse brusco retorno que ela nos obriga
a fazer a nosso eu individual e separado, a dor retira de nós qual­
quer outro recurso, qualquer outra força salvo a que podemos en­
contrar em nosso âmago. Por isso devemos dizer que do sentido
que pudermos atribuir à dor dependerá o próprio sentido que o
mundo poderá receber, para nós. Isso porque o mundo não tem
outro sentido além do que somos capazes de lhe dar. Se fosse um
objeto, um espetáculo puro, não teria sentido algum. O mundo só
tem sentido por minha vontade, que prefere o ser ao nada e que, à
custa da dor, à custa da própria vida, pretende realizar certos fins
que então conferem à dor, no momento em que esta não é ape­
nas sofrida, mas aceita, à vida, quando esta não é apenas perdida,
mas sacrificada, sua verdadeira significação espiritual. E, se todo
valor depende de uma atividade que o escolha e a ele se dedique,
compreende-se muito bem que o valor possa retirar-se da dor e
da vida quando essa mesma atividade se ausenta. Compreende-se
até que uma e outra possam ser condenadas pelo uso que delas
faço; e é preciso que possam sê-lo para que possam ser salvas por
uma vontade que é o árbitro do bem e do mal, capaz de converter
em mal todos os bens que afagam nossa natureza, e em bem todos
os males que não cessam de pungi-la.

1 - 0 Mal l 47
5. A injustiça

Aceitamos em geral que o mal não esteja na dor, mas na


vontade de provocá-la. No entanto, exigimos então que exista
na mesma consciência uma espécie de coincidência entre o mal
que ela quer e o mal que a afeta; exigimos que aquilo que sofre­
mos seja condizente com aquilo que fazemos, que exista sempre
uma harmonia entre a parte ativa e a parte passiva de nosso ser.
Mas, em geral, não é isso o que ocorre. Quem sofre mais não é o
mais culpado. E mesmo o mal, em sua forma mais grave, é pre­
cisamente esse elo tão estreito que se estabelece entre dois seres,
um elo tal que, quando um faz o mal, é o outro que o experi­
menta. Nisso consiste, para nós, o próprio princípio da injustiça.
A impossibilidade em que nos encontramos de estabelecer
uma correspondência regular entre o mal sensível, que é a dor,
e o mal moral, que é o pecado, cria na consciência humana uma
perturbação extremamente profunda. Se tal correspondência
existisse sempre, o mal deixaria de nos surpreender. Seria uma
espécie de desordem compensada. No entanto, os exemplos que
temos diante dos olhos nos mostram, ao contrário, uma estranha
disparidade entre a felicidade e a virtude. Fosse essa disparida­
de absoluta e definitiva, pareceria à maioria dos homens como a
própria essência do mal; mas sempre se tentou explicá-la de duas
maneiras, e sempre olhando para trás, ou para frente: para trás,
a fim de mostrar como todo sofrimento é, de fato, efeito de um
erro desconhecido ou longínquo, efeito esse que ainda persiste na
vontade, que precisa ser purificada; para frente, a fim de mostrar
que existe nesse sofrimento uma provação que, se superada, pro­
duzirá, no fim, uma convergência entre a sensibilidade e o querer.
Pode-se dizer que o próprio da fé é unir essas duas explicações e ir
de uma a outra sem jamais separar a queda da redenção.
No entanto, ninguém aceitará que, no próprio interior desta
vida, exista um conflito irremissível entre a felicidade e o bem,
nem que a dor e o mal permaneçam sempre separados. Não se
porá na conta do acaso, por uma espécie de abdicação do julga­
mento, as relações tão diversas que podem estabelecer-se entre

48 1 O Mal e o Sofrimento
as decisões da vontade e os afetos que as acompanham. Os gre­
gos pensavam que o sábio é sempre feliz, e até que é o único a
sê-lo; não que o sábio ignore a dor, mas é o único capaz de acei­
tá-la, compreendê-la e penetrá-la. E não se reflete sem tremer
sobre a dupla acepção que se pode dar, em francês, à palavra
misérable [miserável] , que designa tanto o último grau da dor
quando o último grau da abjeção: de fato, acontece que coinci­
dam. Podem acrescentar-se duas observações; a primeira é esta:
por mais feliz que o homem que fez o mal possa ser, jamais, con­
tudo, ele se separa de seu passado; ora, de fato, muitos de nossos
contemporâneos consideram esse passado como algo que, para
quase todos os homens, é um fardo praticamente impossível de
carregar, a saber, o próprio fardo do remorso, como Baudelaire
bem viu; a segunda é que o homem de bem, por uma espécie
de inversão da regra segundo a qual devemos tratar aos outros
como a nós mesmos, só é homem de bem porque busca o bem
alheio e não o próprio; e é o bem alheio para o qual ele contri­
buiu que é, para ele, a verdadeira felicidade, o que nos impede,
em meio às piores tribulações, de romper toda relação entre o
bem e a felicidade, ao menos na medida em que essa felicidade
é efeito do próprio bem que cumprimos.
Quando se vê o malvado feliz e o homem de bem infeliz -
supondo que isso possa ocorrer -, tem-se a impressão de estar
diante de uma desordem que poderia muito bem, para a cons­
ciência, ser o verdadeiro mal. Essa não coincidência da felicidade
com o bem, e do mal com o sofrimento, é um escândalo contra o
qual a vontade e a razão se insurgem. Não aceitamos que a uni­
dade de nossa vida possa ser rompida, que os estados que nossa
sensibilidade experimenta não sejam um eco fiel dos atos que
nossa vontade cumpriu, que uma boa ação suscite, em nós, afli­
ção, e uma má ação, alegria. Contra tais sequências, é nossa lógica
que se irrita, tanto quanto nossa virtude. A felicidade - ainda que
aparente - do malvado, e a infelicidade - ainda que aceita - do
homem de bem são a um só tempo atentados contra a inteligência
e contra a justiça: não podemos compreender que a consciência
possa experimentar um aumento, um desenvolvimento quando
persegue um efeito negativo e destrutivo, nem que se sinta limi­
tada e restringida quando sua ação é, por sua vez, beneficente e

1 - 0 Mal l 49
generosa. Consentimos em admitir, decerto, que o bem mais ele­
vado só possa por vezes ser obtido por uma dor que devemos so­
frer em outro plano de nossa consciência; ainda assim queremos
não só que essa dor seja consentida, senão que experimentemos
alegria em sofrê-la.

6. A maldade

Quando distinguimos o mal e a dor, é para assinalar que a dor


não passa de uma afecção da sensibilidade e, por conseguinte, de
um fato que sofremos, ao passo que o mal, que depende da von­
tade, é um ato que cumprimos. Só isso já basta, no entanto, para
demonstrar a estreita ligação que sempre subsiste entre a dor e o
mal: pois, se a dor, na medida em que é sofrida, só é um mal na
medida em que expressa em nós uma limitação, o próprio mal
é uma dor que infligimos ao outro, isto é, uma limitação que lhe
impomos. A dor é sempre a marca de uma limitação ou de uma
destruição, que podem ser os meios de uma purificação ou de um
crescimento: e a distância entre a dor e o mal é a que separa uma
limitação ou uma destruição involuntária de uma limitação ou de
uma destruição voluntária.
Pensar-se-á, portanto, que seria muito estreito definir o mal
pela simples produção da dor; que a dor, por vezes, pode ser dese­
jada em prol de um bem maior; e que a perversidade busca menos
fazer sofrer do que aviltar, pelo próprio uso do prazer. Isso basta,
com efeito, para mostrar que a dor não é um mal quando é ape­
nas a indicação de uma diminuição do ser que foi, ela própria,
desejada; é essa mesma diminuição que a perversidade se propõe
alcançar. E o prazer pode ser a etapa pela qual ela é obtida.
Mas que existe um elo impossível de romper entre a dor e o
mal, isso é indubitavelmente comprovado pela análise da malda­
de. De fato, o malvado tem como primeiro objetivo o sofrimento
dos outros; e sem dúvida esse sofrimento é, para ele, uma dimi­
nuição do ser naquele que ele vê sofrer, diminuição essa da qual
ele é a causa e que nele acentua o sentimento da própria potência

50 1 O M� e o Sofrimento
de que dispõe; mas também se associa a isso um tipo de satisfação
em ver sofrer um ser cuja consciência deve ainda testemunhar a
miséria à qual se sente reduzido. E se dirá, talvez, que tal maldade
é rara, mas nada garante que ela jamais atravesse, como um raio,
as consciências mais benevolentes e mais puras, pois a condição
humana obedece a leis comuns das quais indivíduo algum pode
considerar-se emancipado.
Vê-se aqui, portanto, a linha de demarcação e o ponto de con­
tato entre a dor e o mal. O mal não pode ser definido, indepen­
dentemente do que se pense, por sua relação com a sensibilidade,
mas por sua relação com a vontade. Sucede apenas que a vontade
e a sensibilidade estão sempre implicadas uma na outra. A sensi­
bilidade é, diante da vontade, o testemunho de sua potência e de
sua impotência. Assim, a própria dor não é um mal senão por sua
relação com a vontade: quando é a natureza que a impõe a nós, a
dor é encarada como um mal na medida em que é um obstácu­
lo a nosso próprio desenvolvimento, na medida em que paralisa
e aniquila a vontade; e, quando a dor é efeito da vontade alheia,
experimentamos, então, um sentimento de horror, como se, ao
acrescentar a uma limitação da natureza uma limitação voluntá­
ria, o Espírito se voltasse contra seu próprio fim e contribuísse
para assegurar sua derrota.
Não se deve pensar que, na maldade, a vontade de fazer sofrer
esteja isolada. Essa vontade sempre se associa a algum motivo ex­
terno, como se vê, por exemplo, na vingança, em que a vontade
de impor um sofrimento àquele por quem sofremos está sempre
aliada seja à necessidade de vencer depois de haver sido vencido,
seja até à ideia de um equilíbrio restabelecido e de uma justiça sa­
tisfeita. No entanto, o que mostra bem que a dor nunca é mais que
um signo do mal é o fato de que a maldade mais sutil e mais pro­
funda não para na dor: nela vê apenas um meio, do qual o próprio
prazer poderia fazer as vezes, tendo este último até a vantagem
sobre ela de enganar o outro por uma falsa aparência. Seu alvo é
a diminuição do ser, uma espécie de inversão do desenvolvimen­
to da consciência, de corrupção e degradação, sem que se possa,
contudo, considerar tal estado livre de toda dor secreta, que o mal­
vado saboreia antecipadamente com uma sorte de deleite.

1 - 0 Mal l Sl
7. A definição do mal

É notável que jamais possamos definir o mal de maneira


positiva. Não apenas ele entra num par de que o bem é o ou­
tro termo, como é impossível nomeá-lo sem evocar o bem de
que ele é, precisamente, a privação. Há mais. Existem, ao que
parece, formas muito numerosas de mal, e pode-se perder o
bem de muitas maneiras, às quais se dá, no entanto, o mesmo
nome. Segundo as palavras de um pensador da Antiguidade, o
bem tem caráter finito, ao passo que o mal tem caráter infini­
to. Reconhece-se aqui a concepção comum a todos os gregos
de que o finito é o rematado e o perfeito, aquilo a que nada
falta, ao passo que o infinito é o indeterminado, a desordem, o
caos, aquilo que carece de tudo o que poderia conferir-lhe um
sentido e um valor, isto é, o ato de pensamento que permiti­
ria organizá-lo, circunscrevê-lo e apropriar-se dele. Deixemos
de lado essa oposição, que poderia ser contestada: ao menos
é preciso reconhecer que todas as formas de bem convergem
umas com as outras. Podemos multiplicar as virtudes e até
opô-las entre elas, insistir na diversidade das vocações morais:
no entanto, o próprio das virtudes é produzir um acordo entre
as diferentes potências da consciência, enquanto o mal sempre
se define como uma separação, como a ruptura de uma har­
monia, seja no mesmo ser, seja entre todos os seres. É que toda
vontade malévola persegue fins isolados que, ao sacrificar o
Todo à parte, atentam contra a integridade do Todo e ameaçam
aniquilá-lo. Compreende-se, portanto, que existam inúmeras
formas de mal, embora todas possuam o caráter comum de
dividir e destruir, o que se pode observar no próprio interior
de uma consciência, onde o mal provoca um dilaceramento
interior, onde a própria perversidade nos concede um prazer
amargo, e também nas relações mútuas entre as consciências
que só buscam atacar e prejudicar umas às outras. O entendi­
mento entre criminosos não é uma exceção a essa lei, se é ver­
dade que ele é sempre precário e se dirige contra o restante da
humanidade. Na medida em que o entendimento é verdadeiro,
ele imita o bem e constitui um esboço de uma sociedade moral.

52 1 O Mal e o Sofrimento
Sendo assim, se a solidariedade no bem não para de tornar, a
um só tempo, mais complexa e mais estreita a unidade de cada
ser ou a união entre diferentes seres, a solidariedade no mal
não pode perpetuar-se indefinidamente sem provocar muito
rapidamente um desacordo, uma dissonância, que não deixa
de nos opor tanto a nós mesmos como ao universo.

8. A opção fundamental

O próprio do espírito é introduzir no mundo o valor. Por


isso, a palavra mal só tem sentido em relação a nosso destino
espiritual; e esse destino nada é se não for obra nossa, se não
depender das sucessivas iniciativas de nossa liberdade. Quan­
to à liberdade em si, não se compreenderia como ela poderia
exercer-se se os diferentes fins propostos à sua escolha fossem
justapostos uns aos outros num plano horizontal. Optar é esta­
belecer entre nossas ações uma ordem hierárquica, isto é, uma
ordem vertical tal, que cada uma delas possa ser definida como
uma ascensão ou como uma queda.
É que a alternativa entre o bem e o mal, portanto, só tem senti­
do para nossa liberdade. E até a experiência da liberdade é indis­
sociável da experiência do bem e do mal. Isso porque a liberdade
em si não é nada se não for o poder de optar; por outro lado, não
optaríamos se todos os objetos da vontade estivessem para nós
no mesmo plano. É preciso, portanto, que existam entre eles di­
ferenças de valor para que se rompa a indiferença do querer. Mas
essas diferenças em si romperiam e dispersariam sua unidade se
não se reduzissem, todas, à diferença entre o bem e o mal, de que
nos apresentam uma infinidade de graus, mas que reside, em si,
em nosso próprio ser mais secreto, na oscilação insensível pela
qual determinamos nosso destino e nos sentimos, a cada instan­
te, capazes de tudo ganhar ou de tudo perder. Assim, a unidade
perfeita do Eu reside em sua possibilidade de escolher: mas ele
só escolhe entre dois partidos, e sua unidade é a unidade viva do
ato que apresenta a alternativa e a resolve. Vê-se, portanto, que,
por uma espécie de paradoxo, nossa liberdade só pode decidir-se

1 - 0 Mal l 53
distinguindo no mundo entre o bem e o mal; mas para que não se
torne imediatamente escrava é preciso que, ao reconhecer o valor
do bem, ela possa ainda assim preferir-lhe o mal, a fim de reivin­
dicar sua independência fazendo do mal mesmo seu próprio bem,
contanto que ela o tenha escolhido.
De fato, a vida só possui valor para nós se nela houver lugar
para um bem que possamos compreender, querer e amar. O mal,
por sua vez, é o que não podemos compreender nem amar, mesmo
que o tenhamos desejado; é aquilo que nos condena quando o fi­
zemos e aquilo que seria a condenação da vida se constituísse sua
própria essência. O bem e o mal submetem o real ao julgamen­
to do espírito, pois o real só pode justificar-se se for considerado
bom: dizer que ele é mau é dizer que o nada lhe seria preferível.
Ambos corresponderiam, portanto, a um direito de jurisdição que
o espírito se arrogaria sobre o universo, pois bem e mal só existem
para uma vontade que considera o real com relação a uma escolha
que ela faz e que o real ora confirma, ora desmente. Concorda­
mos, portanto, que o princípio do bem e do mal está em nós; no
entanto, seja porque a vontade está sempre associada em nós à
natureza, seja porque ela encontra fora de nós resistências que é
incapaz de vencer, o bem e o mal ultrapassam seu ato próprio -
o que a obriga a formular, no que lhe diz respeito, a questão da
responsabilidade e do mérito e, no que diz respeito ao universo, a
questão de sua razão de ser.
Tanto o bem como o mal estão ligados, portanto, à essência
da vontade, que não pode determinar-se se a ideia do bem não
a sacudir; e, se esta estiver ausente, por falta de conhecimento
ou de coragem, ou por uma perversão do impulso que o bem
lhe dá, é no mal que ela cairá. De fato, o bem só é um bem para
a vontade se ele puder escapar-lhe, seja porque ela se enganou
quanto a ele, seja porque se desviou dele ao permitir ainda que
sua sombra a retivesse.
Que nossa liberdade não possa exercer-se sem nos colocar na
presença de dois termos opostos entre si, entre os quais ela não
cessa de escolher, até isso é algo capaz de nos fazer sofrer, pois
existe na opção uma exigência que nos condena, se o mal for
vencedor. Assim, preferimos buscar no mundo um mal radical,

54 1 O Mal e o Sofrimento
inseparável de sua própria essência, a considerar nossa vontade,
que, por sua opção, o faz ser.
Mas o pessimismo é uma desculpa que nos damos. É uma fal­
ta de confiança e uma abdicação de nosso ser espiritual, que se
recusa a agir e a dar ao que tem diante de si o sentido e o valor
que dependem exclusivamente dele. Reconhecer que existe mal no
mundo é permitir que nossa atividade espiritual se separe dele e
adquira, assim, sua independência e seu impulso. A atividade es­
piritual cria-se a si mesma incessantemente por oposição a tudo
o que lhe é dado. Sempre corre o risco, portanto, de permanecer
sepultada, de ser ignorada ou vencida, mas esse risco é sua própria
vida; é dele que ela extrai seu alimento, é ele que lhe confere seu ar­
dor e sua pureza. É próprio da vida do espírito ser invisível e sem­
pre precisar ser apoiada e regenerada; e sempre poder ser negada.
A cada instante podemos tornar verdadeiro o materialismo
ao fixar o olhar, fora de nós, nos objetos, ou, em nós, na nature­
za instintiva. Quem busca o espírito no meio do mundo como a
uma realidade atual tem todas as chances de mostrar que jamais
o encontra. O mundo que temos diante dos olhos é, por si mes­
mo, desprovido de espiritualidade, mas isso é assim precisamente
porque o espírito é uma vida que deve penetrar o mundo, dar­
-lhe um sentido e reformá-lo. O espírito não é algo que possa ser
mostrado, mas uma atividade que é exercida, em favor da qual se
opta e pela qual se faz uma aposta. Só existe para quem o quer e,
querendo-o, o faz ser. O espírito se esquiva de quem o nega. Tam­
bém demonstra o que é ao recusar que o encontremos onde não
está. Dir-se-á que o mal está presente onde quer que o espírito não
esteja e deveria estar? Mas o julgamento que fazemos dele é ainda
uma testemunha do espírito, que nele encontra seu limite ou sua
derrota. Quando o mal é conhecido como mal, é sempre por um
ato do espírito, que estabelece uma dualidade entre o mundo e ele
próprio e que encontra no mundo seu contrário, mas que deve ter
coragem e confiança suficientes para aceitar o mundo como uma
prova, como uma tarefa e como um dever, como a condição de sua
essência separada e, ao mesmo tempo, da própria atividade pela
qual ele nunca para de criar-se a si mesmo e das vitórias que ela
jamais acaba de obter.

1 - 0 Mal 1 ss
9. Aquém do bem e do mal

Se o mal é um problema, devemos investigar como ele nasce no


interior da consciência. Esse nascimento é tardio e contemporâ­
neo da reflexão. Pode-se conceber uma aurora da consciência na
qual a reflexão ainda não se mostrava, e na qual a distinção entre
o bem e o mal seria ainda desconhecida. É o estado de inocência
descrito pelo Gênesis, no qual a unidade da consciência ainda não
foi rasgada, no qual sua simplicidade ainda não se embaçou, no
qual ela age por uma espontaneidade a um só tempo natural e
espiritual. Mas esse é um estado que está aquém do bem e do mal
e não além; e não raro se considera que o único mal, para nós, é
havê-lo perdido, e que o bem verdadeiro seria reconquistá-lo.
Não deveríamos, no entanto, expor-nos aqui a nenhum equívo­
co. Observemos a inocência da criança: é uma inocência negativa,
a da natureza. A criança ainda não começou a dirigir sua vida;
é sua vida que a dirige. A criança traz em si todas as potências
que exerceremos um dia, entrega-se alternadamente a cada uma
delas; e a unidade que existe nela é exclusivamente a da ausência
de um freio que possa opor-se a tal desordem. Mas o homem se
debruça sobre o berço da criança para procurar em seu rosto, com
admiração e angústia, todas as forças espirituais que ele próprio
deixou escapar, desperdiçou, aviltou, corrompeu. No entanto, ele
já faz uma escolha entre elas. Nenhum daqueles que nos pregam
o "retorno" gostariam de ser tomados ao pé da letra. O retrato da
criança não deve ser o de um anjo que ainda não entrou em con­
tato com a Terra; é preciso acrescentar aí alguns traços mais seve­
ros, pois a criança também está muito próxima da Terra e ainda
não teve tempo de se elevar muito acima dela. Existe na criança
um ser doloroso e miserável, a um só tempo gemente e colérico,
incapaz de se bastar, entregue por inteiro às necessidades e afli­
ções da vida orgânica, aos tormentos do crescimento. Mais que
isso, sabe-se que o olhar cruel de certos psicólogos já descobre na
criança um feixe de instintos pavorosos, lugar de origem e de per­
petração de todas as perversões, das quais cada um tenta, durante
toda a sua vida, libertar-se e purificar-se, mas cuja lembrança não
cessa de atormentar e perseguir.

56 1 O Mal e o Sofrimento
Mas esse quadro, por sua vez, também requer emendas. Antes
de tudo, ainda que a criança entre no mundo como um grumo de
lodo, isso não nos deve conduzir a diminuir, desde o princípio,
o próprio valor de nossa vida. É preciso que ela mergulhe suas
raízes nas regiões mais obscuras e profundas do Ser para desen­
volver-se um dia nas regiões mais claras e luminosas; é belo que
a elevação de seu destino esteja em relação com a baixeza de sua
origem, e que a estreita necessidade em que ela de início está en­
cerrada dê à sua liberdade mais força e mais impulso.
No entanto, essa natureza, onde ela está, por assim dizer, sepul­
tada, não é em si mesma boa ou ruim, embora existam nela as se­
mentes de todos os bens e de todos os males que se produzirão no
mundo, assim que sua liberdade tenha começado a agir. O adulto
poderá encontrar nela todas as perversões de que tem ideia, mas
só quando sua reflexão e sua vontade, depois de se haverem libe­
rado dos sentidos, retornam a eles para neles se comprazer e a eles
se sujeitar. A perversidade da criança é com frequência a perversi­
dade do pensamento do adulto. Assim como ela tem uma espécie
de inocência orgânica antes que sua consciência tenha nascido,
tem também uma espécie de inocência espiritual assim que suas
necessidades estejam satisfeitas e seu corpo lhe dê algum descan­
so. Então ela descobre o mundo com um olhar desinteressado e
começa a sorrir para ele. Abre-se para ele, pronta para dar e rece­
ber, esquecendo seu corpo e buscando nas coisas os ecos daquela
realidade mais íntima cuja presença misteriosa ela experimenta
em si. Toda essa inocência se rompe, porém, a partir do momento
em que os caminhos do corpo e do espírito, parando de seguir
vias separadas, se entrecruzam. Quando isso ocorre, deve fazer­
-se a opção: e trata-se de saber se o corpo acabará por mostrar-se
dócil, ou se é o espírito que se deixará vencer.
Por vezes se tem o sonho de que, ao fim de todos os nossos
fracassos e de todas as nossas tribulações, a sabedoria possa ser
uma espécie de inocência recuperada. Mas a inocência não se
recupera. Depois de perdida, só pode ser superada. Haveria algo
de impossível, e até de horrível, em fazer dela um objeto do que­
rer. A experiência da vida nos torna incapazes de reconquistar os
estados primitivos aos quais atribuímos, agora, uma inacessível

1 - 0 Mal l 57
pureza: o interesse, a lembrança, a paixão os penetraram, enri­
queceram, alteraram. Jamais retrocedemos: é com tudo isso em
que nos tornamos que devemos, agora, progredir. Mais que isso,
todo homem que se dispõe a viver quer ter a um só tempo a cons­
ciência de si, a responsabilidade e a liberdade; caso contrário não
passaria de um rebento da natureza e, ao receber o ser que possui,
em vez de dá-lo a si mesmo, seria uma coisa, mais que um ser.
Não queremos deixar agir em nós uma espontaneidade da qual
deixamos de dispor. Reclamamos a possibilidade de fazer o mal;
só existe bem possível, para nós, a esse preço. Não aceitamos que
a vida seja para nós um dom que nos bastaria receber. Seria isso
vida, para nós? Poderíamos chamá-la nossa?
A união do corpo e do espírito se apresenta como uma condi­
ção de nossa liberdade. É graças a ela que podemos tornar-nos o
que somos, por um ato que depende de nós. É porque de início
estamos submetidos à natureza que o espírito deve ser para nós
uma incessante libertação. Se não existe liberdade já pronta, se a
liberdade só pode ser obtida e mantida mediante muitos esforços,
é evidente também que ela pode estiolar-se e tornar verdadeiro
o determinismo. Essa falha é, ela própria, um mal; no entanto, o
mal mais radical e mais secreto está na escolha da liberdade, que
deve ter a possibilidade de trair o bem, senão o bem, ao se tornar
necessário, se aniquilaria. Tal é a grandeza da vida do espírito: ela
só existe se for nossa. Encontra a seu lado uma natureza que lhe
resiste e, com frequência, a escandaliza. Mas não pode prescindir
dessa natureza, pois dela extrai as forças de que precisa. A vida do
espírito reside no uso que faz da natureza, na obediência e na ra­
tificação que com frequência ela lhe dá, no combate que sustenta
com ela e do qual ora sai vencida, ora mais forte e mais purificada.
Só tem existência por meio daquilo que acrescenta à natureza e só
pode acrescentar-lhe alguma coisa pela reflexão.
É preciso pois estudar agora a origem da reflexão, que, por
vezes, tem um aspecto puramente crítico, negativo e até des­
trutivo, que esgota o impulso da espontaneidade interior, que,
com tanta frequência, me torna infeliz e impotente, mas que, em
sua essência mais pura, constitui um retorno à própria fonte de
nossa vida, põe nossa atividade de novo em questão para nos

58 1 O Mal e o Sofrimento
permitir julgá-la e dispor dela: na reflexão reside o fundamento
de nossa iniciativa pessoal, é nela que as noções de bem e de mal
começam a se formar.

1 O. Nascimento da reflexão

A reflexão tem em nós uma tripla origem. Por um lado, como


mostramos com frequência - e como a etimologia da palavra in­
dica -, pode surgir quando nossa espontaneidade encontra um
obstáculo que a obriga a se recolher em si, a tomar consciência
da finalidade que está buscando e a se interrogar sobre sua pos­
sibilidade e seu valor: vemos então formar-se em nós dois per­
sonagens, um dos quais descobre o outro com uma espécie de
assombro, mas já se separando dele e julgando-o. Por outro lado,
a reflexão, ao que parece, é inseparável da consciência que temos
do tempo: eu paro de ser absorvido pelo que me é dado assim que
sou capaz de opor o presente a um passado e a um futuro que só
podem ser pensados e com os quais começo a compará-lo, dado
que o passado é para mim objeto de nostalgia, e o futuro, objeto
de desejo. Por fim, a reflexão nasce, sobretudo, de meu encontro
com outros seres, que, por sua semelhança ou dessemelhança
comigo, me obrigam a realizar a imagem do que sou: então se
suscitam em mim problemas insondáveis, que se multiplicam à
medida que minhas relações com outrem se tornam mais estrei­
tas, e que, por vezes, sou obrigado a resolver com urgência pelas
exigências da ação.
É um grande erro pensar que a reflexão se aplica, antes de tudo
e sobretudo, ao mundo das coisas, como o prestígio dos métodos
científicos poderia fazer crer; estes me ensinam apenas a reconhe­
cer as relações dos objetos entre si, para que eu possa servir-me
deles. No entanto, as perguntas mais graves que me faço dizem
respeito à minha conduta para com outra pessoa, cuja consciên­
cia sempre me é até certo ponto impermeável, consciência que é
dotada de uma liberdade inviolável - que não posso pensar em
coagir nem reduzir - e com a qual sempre busco uma espécie de
acordo e cooperação. Tão logo minha ação começa a interessar

1 - 0 Mal l 59
não a coisas, mas aos seres que me circundam, torna-se boa ou
má. A reflexão, por conseguinte, é naturalmente orientada para a
busca do valor moral. Se minha atividade encontra um obstáculo
que a limita, minha reflexão é capaz de despertar, a fim de superá­
-lo: ela só se engaja de modo decisivo quando o desafio para ela é
o destino do eu e da sociedade espiritual que ele forma com todos
os outros "eus".
É para a reflexão, portanto, e a partir do momento em que ela
começa a se exercer, que a diferença entre o bem e o mal assu­
me uma significação real. Não adquiro a livre disposição de mim
mesmo senão pela reflexão. Até então, era a natureza que agia em
mim e por mim. Mas a partir do nascimento da reflexão, que me
transforma em autor ou pai de minhas próprias ações, a presença
da natureza é sentida por mim como uma escravidão, isto é, como
uma espécie de humilhação e de vergonha. Daí a tendência da
teologia tradicional a considerar a própria natureza como o mal.
É que ela se impõe a nós apesar de nós. Somos obrigados a sub­
meter-nos a ela. No entanto, não é a natureza que é má; a natureza
só se torna má ou perversa pelo espírito que se sujeita a ela e se
põe a servi-la. Dos prazeres mais saudáveis e simples ele faz um
objeto de complacência: avilta-os ao se aviltar. Ao contrário, tão
logo ele ilumina a natureza pelo interior e faz dela um meio de seu
próprio progresso, transfigura-a e eleva-a até seu próprio nível.
A vida do espírito e até a vida do eu só começam, portanto,
com a reflexão. Pode-se lamentar a perda da iniciativa inocente
da criança e de sua graça espontânea. Mas não se tem vontade de
comprá-las ao preço de suas angústias e dissabores. Existe em tal
nostalgia pouca sinceridade e pouca coragem: o paraíso da crian­
ça é uma representação elementar e já falsificada. Essa nostalgia é
uma espécie de desejo contraditório, pois para nós se trata menos
de retornar a essa simplicidade instintiva e nebulosa do que de to­
mar posse de todos os recursos que uma consciência adulta pode
descobrir nela. A reflexão está sempre disposta a buscar uma sor­
te de menor esforço e gostaria de fruir cessando de agir. Mas essa
é uma ambição que lhe é proibida. Assim que a reflexão entra em
jogo, ela nos impõe deveres aos quais ela própria não pode renun­
ciar. Produz em nós uma cisão, mas para nos trazer uma luz da

60 1 O Mal e o Sofrimento
qual até então estávamos privados, e ela só nos dá a representação
do mundo porque nos obriga a transformá-lo e a torná-lo melhor.

1 1. O conhecimento do bem e do mal

Assim que a ação deixa de ser espontânea, passa a ser deter­


minada pelo conhecimento. E é na relação entre o conhecimento
e a ação que reside a origem do mal, como o reconheceu a tra­
dição unânime de todos os povos. Não que o conhecimento seja
em si mesmo um mal, como se disse. Como seria ele um mal,
e não a natureza? É ele que nos dá acesso à vida do espírito; é
com ele que nasce a condição de nossa liberdade e, por conse­
guinte e simultaneamente, o princípio indiviso do bem e do mal.
O conhecimento não pode bastar, decerto, e constitui um perigo
para nós na medida em que buscamos nele uma pura satisfação
do espírito. Acontece que ele seja ainda para nós uma distração,
mais que um alimento. O pensamento sempre tende a fazer de
cada problema uma sorte de jogo em que ele exerce suas forças,
e que regozija nosso amor-próprio, seja pelo exercício, seja pelo
sucesso. Por isso, segundo o autor da Imitação, o conhecimento
é difícil de carregar. Pode servir em nós ao egoísmo, à malícia, ao
desejo de dominar. E, para os mitos mais antigos, sempre exis­
te no conhecimento uma sorte de veneno. A relação entre o mal
e o conhecimento é, decerto, singularmente sutil. Não é possível
contentar-se em pensar que a natureza é sempre boa, nem com
que o conhecimento, ao buscar surpreender seus segredos, nos dá
apenas os meios de mal agir. De fato, é o conhecimento do bem e
do mal, e não o conhecimento das coisas, o que engendra o mal.
Quando o bem está presente, não devemos buscar conhecê-lo para
possuí-lo e desfrutar dele: demasiada luz aniquila, como se vê na
aventura de Pandora ou na de Psique. Mas tanto nesta como na­
quela se encontra um segredo muito profundo da vida espiritual:
o de que o bem é invisível, o de que ele não pode ser apreendido
como um objeto e se descobre misteriosamente àquele que o quer,
mas não àquele que olha para ele. Na vontade que faz o bem, o eu
se distancia de si mesmo e se esquece a si mesmo; assim que o

1 - 0 Mal l 61
eu busca conhecer o bem, é para dele se apoderar e torná-lo seu;
e basta que comece a pensar o bem para que cesse de fazer o bem.
Nesse sentido, compreende-se, portanto, que o conhecimento do
bem e do mal já seja o mal, porque transforma o bem em mal pelo
próprio desejo de fazer dele seu bem.
É que o bem e o mal não são coisas passíveis de ser conheci­
das. Nascem da reflexão, mas quando esta se interroga sobre sua
intenção, não sobre seu fim. Que o fim jamais possa ser represen­
tado, que ele jamais possa ser alcançado, aí está o que permitirá
isolar, na vontade, seu movimento mais espiritual e mais puro.
O fim não testemunha senão sua direção momentânea: não passa
de uma imagem ou de uma baliza que nos dissimula sua inflexão
mais profunda, em vez de descobri-la.
Parece, portanto, que a distinção entre o mal e o bem é inse­
parável do advento da consciência. É essa distinção que, no uso
popular da palavra, é o objeto próprio da consciência, e não a luz
indiferente que nos dá uma representação de nós mesmos e do
mundo, como em seu uso filosófico; mas talvez se possa mostrar
que o segundo sentido deriva do primeiro e que só precisamos
conhecer-nos e conhecer o mundo para nele realizar nosso des­
tino espiritual.
A distinção entre o bem e o mal provoca hesitação em nosso
pensamento e em nossa conduta, faz aparecer em nossa consciên­
cia a aflição e a angústia. Em vez de nos entregar ao fluxo da natu­
reza, obriga-nos a assumir a responsabilidade pelo que faremos,
pelo que seremos: e esse ato já nos julga.

12. A responsabilidade por si mesmo

É próprio da reflexão dividir nossa atividade espontânea, mas


a fim de criar uma interioridade que nos pertença. Cessamos de
confiar em todas as forças que até então nos impeliam. O mal
ainda não se introduziu em nós, mas apenas aquela emoção,
extraordinariamente viva e sempre renascente, de descobrir no
fundo de nós uma potência de ação da qual dispomos, pela qual

62 1 O Mal e o Sofrimento
nosso destino se formará e o rosto do mundo será modificado.
A reflexão sempre mede o perigo ao qual nos expõe. Separa-nos
da natureza a que todo o nosso ser aderia até então. Obriga-nos a
assumir a responsabilidade por nós mesmos; confere à vida uma
incomparável acuidade. Somente por meio dela eu existo como
foco de iniciativa, como autor do que sou, isto é, como consciên­
cia, como liberdade e como pessoa. Ao me separar da natureza
que me circunda, separei-me da natureza que me constitui: exis­
te em mim um indivíduo, um ser de instinto e de desejo com o
qual já não me identifico, embora ele esteja envolvido em cada
uma de minhas ações: ele é a um só tempo a matéria e o ins­
trumento delas. Obrigo-me agora a assumir a responsabilidade
por mim mesmo e pelo mundo, pois a atividade do espírito não
se deixa dividir. E, dado que ela não abole a natureza individual,
mas, ao contrário, descobre-a ao superá-la, compreende-se facil­
mente que ela possa escolher entre dois partidos diferentes: ou
considerar o eu como o centro do mundo e fazer o mundo girar
para seu uso próprio, ou fazer do eu o veículo do espírito, pelo
qual o mundo deve ser penetrado por inteiro, a fim de receber
uma significação e um valor. Esse é o princípio supremo de que
deriva a oposição entre o bem e o mal, o que basta para provar
que o mal está sempre presente: só poderia desaparecer se o es­
pírito lograsse abolir a natureza. No entanto, embora a natureza
não pare de reter o espírito e de incliná-lo para ela, desde que
ele começa a agir não pode prescindir da natureza: ele nasce ao
emancipar-se dela pouco a pouco, só se desenvolve por meio
desse obstáculo, que, para ele, é também um apoio, e é a própria
natureza o que ele ilumina e faz servir à sua glória.
Compreende-se, portanto, que, quanto ao problema do mal,
seja possível assumir, diante da natureza, três atitudes: a pri­
meira, otimista e encantadora, consiste em louvá-la sempre, seja
pelo espetáculo que ela nos oferece - dotado de admirável valor
artístico -, seja pelos instintos que põe em nós, e que o pensa­
mento não faz senão corromper. No entanto, é também a reflexão
que julga da beleza desse espetáculo; é ela igualmente que julga
de sua retidão. A segunda atitude é o inverso da anterior: vê a
natureza com pessimismo e considera-a sempre má. No fundo
de muitas consciências existe um velho dualismo maniqueísta.

1 - 0 Mal l 63
No entanto, o mesmo espírito que a condena trava contra a na­
tureza uma luta da qual nem sempre sai vencedor. E pode-se até
pensar que a natureza é o real, ao passo que o espírito é o ideal,
que sempre sucumbe, assim como o direito, quando a força entra
em jogo. Mas existe uma terceira atitude, que consiste em preten­
der que, em si mesma, a natureza não é nem boa nem má. Sucede
porém que o espírito, quando aparece, consagra os recursos de
sua invenção para dispor dela, mas para encontrar nela ora um
objeto de complacência e de fruição, ora a força e a eficácia de
que precisa e que só ela lhe pode dar.
Pode-se dizer que, em todos os casos, quem considera a natu­
reza boa ou má não faz tal julgamento senão retrospectivamente.
É só quando sua vontade já entrou em jogo, quando ela já optou
entre o bem e o mal, que ele pode dizer que a natureza é boa ou
má, concebendo como voluntárias todas as ações que dependem
da natureza e distinguindo as que trazem o caráter de bondade e
de generosidade das que são testemunho de egoísmo ou violência.
É o próprio da reflexão obrigar cada ser a tornar-se um problema
para si mesmo, a interrogar-se sobre o valor de sua vida. A esse
problema, a essa interrogação, só o bem proporciona uma respos­
ta. O mal não só o deixa sem solução mas também o transforma
em escândalo, contra o qual todas as potências da consciência
não param de insurgir-se.

64 I O Mal e o Sofrimento
2. Ü SOFRIMENTO

1. Descrição da dor

De todos os estados de consciência, a dor é o que pode tornar-se


mais intenso e mais agudo. É um dilaceramento interno em que o
eu adquire, no próprio ataque por ele sofrido, uma consciência de
si extraordinariamente viva. Sente-se ferido e miserável. Também
se sente dominado e invadido por uma potência que o ultrapassa, à
qual está, por assim dizer, entregue. Mas isso ainda não é nada. Até
então, era como se sua existência própria, inserida no vasto conjun­
to da natureza, aderisse a ela, sem haver manifestado sua intimida­
de subjetiva e separada. Essa intimidade se revela a ele assim que
ele começa a sofrer. Os laços mais profundos que o unem à vida se
mostram a nu assim que estão em perigo e a ponto de se romper.
A dor é uma ameaça; em sua forma mais elementar, já existe nela
uma evocação da morte, a ideia de uma transição da vida à morte.
Ela é a morte que, na própria vida, já se revela. Sem dúvida se pode
dizer que a morte, para o ser que sofre, é, ao contrário, um apazi­
guamento, pois faz cessar a dor em vez de ser seu ápice e seu paro­
xismo. E aqui encontraríamos na dor uma contradição insolúvel, se
seu papel não fosse mostrar-nos todo o preço que damos à vida no
momento em que pensamos que ela nos poderia ser retirada.
Tampouco é de assombrar a relação singularmente estreita
que une a dor à consciência de si, pois o próprio do querer ou
do conhecimento é aplicar nossa atividade a um objeto exterior
a nós: distanciar-nos de nós mesmos e distrair-nos. Muitos
pessimistas chegam a pensar que o melhor efeito do conheci­
mento e da ação é produzir o esquecimento de si. A alegria que
experimentamos em compreender ou em criar é também a ale­
gria que sentimos em sair de nós. A sensibilidade, ao contrá­
rio, faz com que nos voltemos para nós mesmos. Nesse ponto,
porém, existe muita desigualdade entre o prazer e a dor, pois
o prazer é naturalmente expansivo. Existe nele uma sorte de
entrega a nós mesmos que é um abandono de nós mesmos. Só
temos consciência de haver sido felizes quando já não o somos.
A felicidade cria entre o mundo e nós uma harmonia em que a
consciência tende a se dissolver. Já a dor nos põe à parte. Esta­
mos sós ao sofrer. Quando digo "penso, logo existo", ou mesmo
"ajo, logo existo", descubro, com minha existência pessoal, uma
existência mais vasta de que participo; existo em comunicação
com o mundo. A existência, tal como ela se mostra a mim na
dor, é a do eu individual no que ele tem de privilegiado e único,
no momento em que ele deixa de se comunicar com o mundo,
que só se faz presente para oprimi-lo e obrigá-lo a se recolher
em si mesmo. No entanto, no próprio reconhecimento a que a
dor me obriga, o que reconheço não é apenas, como se pen­
sa, um estado doloroso e momentâneo, que seria um simples
modo de minha existência e me permitiria reencontrar-me a
mim mesmo assim que estivesse livre dele; o que reconheço
em meio à dor é, no próprio ponto em que ela me atinge, a
presença do meu eu real, ali onde ele se enraíza no ser e na
vida. Por isso, não é de assombrar que na criança, nos períodos
primitivos e turbulentos em que os instintos mais profundos
da natureza já não têm nenhum controle, a vontade de poder
se manifeste sempre pela crueldade; é quando a criança faz um
animal sofrer, ou quando o vencedor faz sofrer seu inimigo,
que cada um deles tem a sensação de haver penetrado no outro
até a própria sede de sua existência; então o reduziu à sua mer­
cê; garantiu sobre ele uma supremacia que se pode muito bem
chamar metafísica, e que se sobrepõe à que obteria ao matá­
-lo, pois que, ao provocar a dor, é à própria consciência que ele
obriga a render-lhe homenagem.

66 1 O Mal e o Sofrimento
2. A dor e o sofrimento

Talvez nos recriminem por não examinar aqui senão a dor físi­
ca. Mas essa questão suscita um problema difícil, que é o da ligação
entre a dor e o corpo. Será que se deve pensar que não existe dor
sem certa lesão imposta a meu corpo? É inútil invocar, para defen­
der tal tese, a concepção empirista segundo a qual os estados de
consciência não passam de tradução dos estados do organismo.
Basta observar o caráter de limitação ou de passividade que é inse­
parável da dor, o qual faz com que ela seja sempre sofrida e só pos­
sa sê-lo por intermédio do corpo. O corpo estaria destinado, então,
a assegurar a ação sobre nós das causas exteriores que a produzem.
E assim se compreenderia facilmente que certa aflição do corpo
possa transformar a vida de alguns seres num suplício contínuo.
No entanto, embora a dor física possa apresentar uma acui­
dade e uma crueldade que a tornam, a cada instante, intolerável,
a dor moral vence-a singularmente em significação e em valor
assim que tentamos abraçar o conjunto de nosso destino. Sabe­
mos bem que uma dor física pode ocupar-nos inteiramente; no
entanto, em vez de dizer que ela absorve, então, todas as potências
da consciência, seria antes preciso dizer que ela paralisa essas po­
tências e suspende seu curso. A originalidade da dor moral, ao
contrário, está em preencher verdadeiramente toda a capacidade
de nossa alma, em obrigar todas as nossas potências a exercer-se
e até em dar-lhes um extraordinário desenvolvimento. Mas prova­
velmente seria melhor, então, empregar aqui a palavra sofrimento
e não a palavra dor, pois a dor é algo que sofro, mas o sofrimento
é algo de que me apodero: o que procuro não é tanto rejeitá-lo,
mas penetrá-lo. Eu o sei meu e o faço meu. Quando digo "estou
sofrendo", trata-se sempre de um ato que cumpro.
Poder-se-ia, parece, introduzir entre a dor e o sofrimento a se­
guinte distinção: a dor, precisamente por estar ligada ao corpo, está
ligada também ao instante; em sua própria continuidade existem
sempre rupturas e retomadas, momentos em que ela se abranda e
momentos em que se reaviva, uma espécie de ritmo, pulsações das
quais cada qual é uma espécie de brecha na continuidade do tempo.

2 O Sofrimento 1 67
-
Quando ela cessa, produz-se um alívio, um vazio pleno de promes­
sas, uma alegria ainda temerosa e indeterminada. Nosso ser preser­
va certo abalo, mas que já não tem caráter de dor; nessa espécie de
tremor em que ela nos deixa e em que nos parece que ela sempre
pode reaparecer, já não conseguimos reencontrá-la pela imaginação.
O sofrimento, ao contrário, está sempre ligado ao tempo. Em si
mesmo, é um mal presente e sempre experimentado no presente.
Mas ele sempre abandona o instante para preencher a duração. Em
vez de se renovar, como a dor, pelos próprios impactos que não
param de lhe vir de fora, encontra em nós mesmos um alimento.
Nutre-se de representações. Volta-se sempre para o que deixou de
ser ou para o que ainda não é, para lembranças que ele reaviva
sem cessar a fim de se justificar e de se manter para um futuro
incerto, mas no qual encontra, nas possibilidades que imagina, um
meio de aumentar seu tormento. Vê-se pois que, se é próprio da
consciência empenhar-se sempre em afugentar a dor, o mesmo
não ocorre com o sofrimento. A consciência não gostaria de sofrer,
decerto; no entanto, por uma espécie de contradição, o sofrimen­
to é uma ardência, um fogo interior ao qual a própria consciência
precisa proporcionar um novo alimento. Ele não existiria se mi­
nha consciência pudesse ser subitamente reduzida a um estado de
inércia ou de perfeito silêncio interior. É preciso que eu não pare
de consentir nele, e até de aprofundá-lo. Pela mesma razão, pode­
-se dizer que a dor só diz respeito a uma parte de mim mesmo; já
no sofrimento, o eu está envolvido por inteiro; mesmo quando o
sofrimento foi apaziguado, já modificou, já impregnou minha vida
inteira. É que, na realidade, o sofrimento - do qual dizemos que
preenche nossa duração - vai além da própria duração. É só em
aparência que ele ocupa um lugar na história de minha vida: quan­
do merece realmente seu nome, expressa um estado permanente
de nosso ser: é até sua essência mesma que ele penetrou.

3. O ato de sofrer

Existe entre a dor e o sofrimento uma oposição que é talvez


mais profunda que a anterior. Na dor, é o corpo que está em

68 1 O Mal e o Sofrimento
primeiro plano, e é próprio do corpo pôr-me em relação com
as coisas. Isso explica que os filósofos contemporâneos estejam
quase sempre dispostos a considerar a dor uma sensação que de­
pende de uma excitação exterior, como as sensações visuais ou
auditivas. Só sentiríamos dor, assim, pelo abalo de certos nervos
particulares que seriam, propriamente, nervos doloríferos.
O sofrimento, ao contrário, é muito mais complexo. A palavra
se aplica mal às feridas que as coisas podem infligir-nos. Na reali­
dade, só sofremos nas relações com outros seres. A possibilidade
de sofrer mede a intimidade e a intensidade dos laços que nos
unem a outra consciência. Não sofremos em nossas relações com
indiferentes: a indiferença chega a ser, para nós, uma espécie de
proteção contra o sofrimento. Assim que ela cessa, nossa capaci­
dade de sofrer reaparece e se mostra proporcional ao interesse,
à afeição que sentimos por alguém. Manifesta-se assim que os
laços que nos uniam a ele se veem ameaçados; demonstram, pre­
cisamente dessa maneira, tanto a existência como a profundidade
desses vínculos.
Compreender-se-á facilmente que essa nova oposição não dei­
xe de ter relação com a anterior, pois bem sabemos que nossas
relações com as coisas só importam no instante, ao passo que
nossas relações com as pessoas interessam à nossa vida inteira,
em sua duração e em sua eternidade.
É evidente, porém, que o sofrimento não pode ser considerado
uma sensação, pois é muito mais interior. Já não é minha vida
que está em perigo, na medida em que depende do corpo: é meu
ser espiritual que entra em jogo, que inicia consigo mesmo uma
espécie de dialética interior, cujo efeito é o sofrimento. Em última
instância, poder-se-ia dizer que sinto dor apenas com meu corpo,
ao passo que sofro com meu ser inteiro. É impossível que eu não
procure a razão de meus sofrimentos, que não me empenhe em
justificá-los: eles variam com as oscilações do conhecimento e do
querer, não com as alternativas de virulência ou de remissão de
uma ação exterior que me subjuga.
Admitindo-se que a dor, por si mesma, não seja nada além
de uma sensação, é evidente que só é boa ou má pela atitude da

2 O Sofrimento 1 69
-
consciência diante dela, pelo ato que toma posse dela e, por assim
dizer, pela própria maneira como a "sofremos".
Mas, se a dor sempre correspondesse a uma diminuição do
ser, se sempre expressasse, como afirma Spinoza, a passagem
de uma perfeição maior a uma perfeição menor, então não seria
sempre má? Observemos antes de tudo que ela consiste, como se
diz, numa passagem e não num estado, e, portanto, seja qual for
nossa miséria, essa mesma miséria só pode ser dolorosa quando
começa a piorar. Definição que é admirável em sua simplicidade.
Mas será suficiente? É -nos dito que, na dor, passo a uma perfeição
menor; é inevitável que essa passagem já interesse à minha ativi­
dade interior. Temos o sentimento do que acabamos de perder: aí
estava, sem dúvida, algo que tínhamos. Mas o próprio sentimento
dessa perda introduz em nós, como sempre se observou, um au­
mento de consciência que, por sua vez, não é uma perda. Nasce
em nós, por conseguinte, um ser novo, completamente distinto
daquele que éramos antes de haver começado a sofrer. Minha
espontaneidade se esgota, é verdade, mas minha reflexão, minha
vontade entram em jogo, como que para compensar o que me foi
retirado. Minha atividade, que até então era instintiva, tornou­
-se espiritual. O uso que farei dela dependerá apenas de mim, e a
mim caberá decidir se essa perda poderá transformar-se em ga­
nho, como se vê em certas consciências, cuja pureza e cuja riqueza
parecem proporcionais às provações que atravessaram.
O problema que formulamos aqui ultrapassa, e muito, o da
consciência imediata que temos da dor. De fato, encontramo-nos
em presença de duas interpretações diferentes da vida. Muitos ho­
mens pendem naturalmente para o materialismo: estão convenci­
dos de que a verdadeira realidade pertence aos objetos e ao corpo,
de que o espírito é uma realidade ilusória, que dá provas do que
existe sem ser, ele próprio, dotado de existência. Então se compre­
ende que, em presença dos males da vida, ele tente consolar-nos
como possível, proporcionar-nos ainda algum bem de imagina­
ção, quando a vida nos recusa os bens verdadeiros. Mas é próprio
da dor, justamente, ser uma experiência trágica, que nos obriga
a reconhecer qual é a essência do real. Estará ela neste corpo al­
quebrado, que perde pouco a pouco a força e a vida? Ou estará na

70 1 O Mal e o Sofrimento
consciência que tomamos da própria dor, para então constituir, a
um só tempo contra ela e graças a ela, apesar dela e por meio dela,
nossa realidade mais autêntica, mais profunda e mais pessoal?
Esta última, que é obra nossa, enxerta-se na outra, que deverá ser
rejeitada um dia: a dor consuma, a cada dia, seu sacrifício.
Isso não equivale a dizer que a dor possua valor por si mesma,
nem que não se possa fazer dela o pior emprego. Equivale a dizer
que seu valor reside exclusivamente numa operação de nossa ati­
vidade sobre ela, que permite a essa atividade transformá-la seja
em bem, seja em mal, pela própria maneira como dispõe dela.
Considera-se a dor alternadamente como a fonte dos maiores ma­
les e dos maiores bens: e ambas as teses devem ser verdadeiras ao
mesmo tempo, se ela é para nós uma pedra de toque que mede
essa coragem da nossa liberdade sem a qual, em si mesma, nossa
liberdade não seria nada.

4. As atitudes negativas

Diante da dor assumimos ora uma atitude negativa, ora uma


atitude positiva. Mas a atitude negativa se apresenta de quatro
formas, que podem ser assim denominadas: o abatimento, a re­
volta, a separação e a complacência.

a. O abatimento
Quando a dor é demasiado intensa, a atividade perde seus re­
cursos e já não mostra força suficiente para exercer-se. Não se
deveria dizer, então, que a dor é um mal, mas em razão da impo­
tência à qual reduz nossa liberdade, e não pelo emprego que dela
faz essa liberdade? A consciência inteira é capaz, exclusivamente
por efeito da dor, de entrar num estado de prostração e, por as­
sim dizer, de paralisia. Nossa iniciativa então oscila e desmorona.
Acontece que a dor nos invada e nos submerja a ponto de abo­
lir o diálogo com nós mesmos, o domínio de nós e a disposição
de nós que são necessários para pensar e querer. Compreende­
-se então que a dor em si possa ser considerada um mal e que a

2 - O Sofrimento 1 71
humanidade tenha empreendido contra ela uma luta que, prova­
velmente, jamais cessará. No entanto, se o mal não resulta aqui
de uma opção, mas da impossibilidade de optar, citaríamos fa­
cilmente outros estados, afora a dor, que também suspenderiam
nossa atividade livre. É até possível que todos os nossos estados,
para além de certa intensidade, tendam a produzir o mesmo efei­
to: as forças de nossa consciência que eles começam a despertar
à medida que crescem logo tiram a margem de ação de nossa
liberdade e acabam por bloqueá-la.
O abatimento é uma espécie de limite inferior em que a cons­
ciência dolorosa não é mais que pura passividade. No entanto,
nossa atividade jamais se ausenta completamente: ora falha,
ora cede. Nunca podemos resolver o problema da dor por fór­
mulas abstratas. Cada um carrega sua dor de uma maneira que
lhe é própria. Nada que ultrapasse as forças que um ser tem lhe
é pedido, e ninguém jamais pode dizer com certeza que as es­
gotou. Ninguém jamais poderá afirmar sem medo de errar, no
momento em que se deixa abater pela dor, que não possuía no
fundo de seu ser nenhum recurso secreto ao qual teria podido
recorrer. Embora o abatimento seja produzido pela extremidade
da dor, traz consigo, no entanto, uma espécie de compensação,
porque a dor se torna então menos aguda; é transformada em
algo mais surdo e mais sereno, por assim dizer. Importa apenas
que a consciência não aceite prestar-se a isso. E no entanto isso
ocorre, por uma espécie de abandono em que a própria cons­
ciência se torna inteiramente dor; em que a personalidade se vê
dissolvida, como se a dor encontrasse seu único remédio em seu
próprio excesso.

b. A revolta
Existe outra atitude que, ao menos em aparência, parece o
oposto do abatimento. É a revolta. O ser sente na dor uma estra­
nha que o penetra apesar dele, que ocupa toda a sua consciência
independentemente de seu consentimento, que domina e aniquila
sua vontade - reduzida por ela à escravidão -, que devasta e des­
trói tudo o que ele tem e tudo o que ele é. Quando isso ocorre,
deixa de haver diferença entre o sofrimento e o protesto interior

72 1 O Mal e o Sofrimento
que erguemos contra ele. Sofrer é protestar contra o sofrimento.
É buscar afugentá-lo, expulsá-lo de si; é querer aniquilar as cau­
sas que o produzem. Mas a revolta em si não conhece limites: não
pode mover um processo contra a dor sem mover também um
processo contra a vida e a ordem do mundo. O mínimo traço de
sofrimento, mesmo de um verme, como se disse, bastaria para
condenar o mundo que o permite.
No entanto, essa é uma atitude tão negativa quanto a anterior.
Isso porque a dor capta todas as forças do eu dirigidas contra ela.
O eu também sucumbe, sem lograr apoderar-se dela nem domi­
ná-la. Não faz nenhum julgamento sobre ela, não investiga se exis­
te nela uma inteligibilidade, nem se ela é a condição de um bem
que só pode ser adquirido por ela.
Importa não confundir a revolta contra a dor com o desejo,
tão natural, de que ela cesse, nem com o esforço que podemos
fazer para aboli-la. A característica da revolta é mostrar nossa
impotência. Prova disso é que a revolta impossibilita a atividade
eficaz e construtiva pela qual nos pomos a tirar da dor o me­
lhor partido, ou a edificar um mundo novo do qual essa própria
dor estivesse abolida. A revolta busca apenas destruir, e, como
não tem influência sobre a própria dor, desfere seus golpes ainda
menos contra as causas que parecem produzi-la do que contra
a própria realidade onde ela se insere, contra o universo que a
contém e, por uma espécie de delírio, contra mim mesmo, aquele
que sofre. Assim, o mal aqui não reside na dor propriamente dita,
mas na atividade que se aplica a ela e que, em vez de tentar des­
cobrir o sentido da dor, de tentar encontrar na dor uma prova que
é preciso superar para que ela própria se amplie e se fortaleça,
toma a dor como pretexto para se voltar contra a vida e relegar o
ser ao nada, em vez de elevar o nada ao ser.

e. A separação
Mas a dor pode produzir em nós uma terceira atitude, que
também é negativa. Vimos, com efeito, que ela nos dá um senti­
mento muito vívido de nossa existência individual; que ela nos
obriga a dizer "estou aqui"; que o homem cruel se compraz no

2 O Sofrimento 1 73
-
sofrimento que inflige porque está seguro de haver, por meio
dele, alcançado outro ser em seu próprio âmago, a ponto de este
último não poder negar o golpe que sofreu. Essa é também a
razão pela qual o intelectualismo sempre terá adversários, que
afirmarão da ideia, à qual pretende reduzir todo o real, que ela é
sempre exterior a nós; e essa é igualmente a razão pela qual os
pessimistas acreditarão poder triunfar, alegando que cada um de
nós só encontra a essência profunda e irrecusável da realidade
nesses momentos privilegiados que conferem à vida tanta gra­
vidade e acuidade, nos quais nada se é além de um homem que
sofre. É no momento em que nossa vida é mais intensa que ela já
não pode ser tolerada.
Ora, essa dor - que assim penetra nossa intimidade mais se­
creta e, se tal se pode dizer, o eu de nosso eu - nos encerra na
solidão e tende a nos separar do restante dos homens. Torna-nos
atentos exclusivamente a nós mesmos e indiferentes a tudo o
que nos cerca. Tende, portanto, a produzir entre os homens uma
verdadeira separação: podemos perguntar-nos se a simpatia ou
a piedade algum dia conseguirão vencê-la; acontece que elas a
acusem; e, no dia que logram atravessá-la, temos a impressão de
que uma espécie de milagre acaba de se produzir, em que a pró­
pria divindade parece presente. Não apenas o homem que sofre
sempre começa por recolher-se em si mesmo e, em certo sentido,
por perder o contato com o outro, mas também lhe parece que
existem tanto na intensidade quanto na qualidade da dor que
ele sente certas características que ele é o único a experimentar:
"Vocês não podem imaginar a que ponto estou sofrendo, nem a
natureza de meu sofrimento:' Vemos até o próprio animal isolar­
-se para sofrer. E nessa separação existe uma dor nova, que, no
entanto, é aceita: trata-se de uma fuga, a um só tempo instintiva e
voluntária, que não deixa de conter uma busca de si. "Deixe-me",
diz o homem que sofre, assim que se sente solicitado seja por uma
obrigação, seja pela amizade. Aqui, como se vê, a dor se torna um
mal, não porque nos encerramos em nós mesmos, onde podemos
encontrar o princípio de nosso aprofundamento, mas porque há
o risco de ela fazer dessa separação um uso negativo, de desejá­
-la, de apegar-se a ela, de agravá-la indefinidamente. Rompemos,
então, todas as nossas relações com o mundo para encerrar-nos

74 I O Mal e o Sofrimento
num egoísmo doloroso, no qual a consciência também participa
de uma atitude de revolta e já pende a uma complacência para
com seus próprios estados.

d. A complacência
A complacência no sofrimento parece, de fato, uma espécie de
paradoxo. É o verdadeiro contrário da revolta, muito mais que o
abatimento, ao qual o havíamos inicialmente oposto. Aqui já não
se busca repelir a dor para fora de si, mas, ao contrário, mantê-la
e nutri-la no fundo de si. É dessa dor que se extrai uma sorte de
volúpia. Ama-se essa fruição amarga. E, no entanto, a revolta está
menos distante do que se imagina dessa complacência, pois todas
as atitudes negativas têm parentesco entre si. Assim, acontece que
a nossa revolta contra o mundo se fortaleça pelo próprio senti­
mento de sofrer por meio dele e de ter razão contra ele. Queremos
que a própria injustiça que sofremos nos pareça sempre maior,
como que para melhor nos justificar.
Essa complacência no sofrimento é também uma complacên­
cia em nós mesmos: isso porque, como o sofrimento pertence a
nosso ser mais pessoal, como em certa medida ele é a marca da
delicadeza de nossa consciência, parece elevar-nos. Separa-nos,
mas também nos distingue. Os sofrimentos que experimenta­
mos mas que os outros homens, por sua vez, não conheceram
parecem ser a marca do destino em nós. Sempre existe neles um
caráter excepcional: queremos que pareçam inauditos. Explica­
-se, assim, que exista uma espécie de cultura do sofrimento.
Compreende-se que certas formas baixas e populares da curio­
sidade atraiam o olhar para o sofrimento, cujo simples espetá­
culo parece proporcionar não se sabe que obscura satisfação.
O prazer não tem história; mas o menor sofrimento basta para
atrair nossa atenção e nossa emoção. Podemos até perguntar­
-nos se a maioria dos homens é capaz de se abalar por um sen­
timento profundo sem experimentar algum sofrimento. Sendo
assim, parece que nossa sensibilidade se mede muito menos
por nossa aptidão para o prazer do que por nossa capacidade de
sofrer. Daí a explicação, também, para o fato de tantos gêneros
literários - como o drama trágico e a poesia lírica - terem o

2 O Sofrimento 1 75
-
sofrimento por objeto. É que a pessoa só se revela, só penetra até
a extrema profundidade de si mesma, só está segura de haver
descoberto seu ponto de inserção no mundo e o valor supremo
ao qual está ligada quando é obrigada a reconhecer que sofre.
O mal aqui reside precisamente nessa suspeita com respeito ao
universo, à qual se mescla tanta ternura por nós mesmos, e que
nos faz amar demasiadamente nossa dor.

5. As atitudes positivas

Reconhece-se facilmente que, na presença da dor, a consciência


esteja sempre em perigo, que as atitudes negativas que acabamos
de descrever sempre possam ocorrer e até que estejam sempre em
nós, de forma mais ou menos velada; cabe a nós lutar contra elas
e convertê-las.
Se a dor sempre pode produzir em nós o abatimento, a revolta,
a separação ou a complacência, é porque a tomamos como uma
realidade pronta que só podemos expulsar ou suportar. No entan­
to, a dor tem uma relação muito mais estreita do que se imagina
com a própria atividade de nosso espírito; é preciso que essa ativi­
dade aprenda não apenas a carregá-la, como também a penetrá-la
e fazê-la sua. De início a dor não é apenas uma simples privação
de ser, ou diminuição de ser. Há nela um elemento positivo que se
incorpora à nossa vida e a modifica. Cada um só pensa, decerto,
em rejeitar a dor no momento em que esta o assalta; mas, quando
se revê o passado, percebe-se que foram as dores experimentadas
que exerceram sobre cada um a maior ação; foram marcantes;
deram à vida sua seriedade e sua profundidade; foi delas que se
extraíram, a respeito do mundo em que se é chamado a viver e do
significado do próprio destino, os ensinamentos mais essenciais.
Tentemos satisfazer o desejo, talvez o mais ardente, de cada cons­
ciência, que é não sofrer: ninguém ousaria dizer que não perderia
mais do que pensa ganhar.
No problema das relações entre a dor e o mal, o que importa
para nós não é tanto buscar o que a dor vale por si mesma, mas o

76 1 O Mal e o Sofrimento
que ela é capaz de nos dar quando a vontade a isso se aplica como
devido. Concordaremos facilmente que existe na dor um dilacera­
mento, uma divisão de si consigo, um conflito e até uma ruptura
do ser interior. A unidade de nossa consciência é abolida, porque
encontramos em nós a um só tempo um ser que sofre e um ser
que não quer sofrer. Mas é justamente isso o que nos convida a
indagar se ela realmente é, como se pensa, "uma privação de ser".
Ora, ao que parece, isso é verdadeiro e falso ao mesmo tempo:
verdadeiro porque só existe dor onde existe uma lesão, uma fe­
rida que nos afete, e falso porque ela confere à consciência uma
extraordinária exaltação, já que oferece, diante dos estados de
paz e tranquilidade que a precederam, um relevo psicológico im­
pressionante: por isso os homens lhe atribuem uma importância
privilegiada em sua vida pessoal, como se ela constituísse, pro­
priamente, a parte mais pessoal deles próprios. É algo admirável
que pela pressão da dor - sempre recusada por nós - nossa vida
possa receber, graças à maneira como nossa vontade dispõe dela,
seus mais belos desenvolvimentos.
Quando nos perguntam qual é a significação que a dor pode
ter para nós, isto é, a significação que nossa vontade é capaz de
lhe dar, percebemos então que ela pode ser alternadamente, para
nós, uma advertência, uma condição de nosso aprimoramento e
de nosso aprofundamento, um meio de comunhão com as outras
consciências e, enfim, um instrumento de purificação interior.

a. A advertência
Que a dor seja uma advertência, isso é observado pelos psicó­
logos, que nela veem um sinal precursor de um perigo que nos
ameaça. Essa observação já bastaria para mostrar que a dor não
é em si mesma um mal, mas uma reação, por vezes benfazeja,
a um mal iminente. Estremece-se quando se considera a que
ponto um ser que não sofresse, e não tivesse para reconhecer o
que poderia ser-lhe nocivo, senão os recursos que a ciência lhe
oferecesse, estaria ao mesmo tempo desamparado e vulnerável.
A dor é, antes de tudo, um sintoma, que, pelo protesto que susci­
ta em nós, deve mobilizar todas as nossas potências interiores e
dirigi-las para nossa defesa.

2 O Sofrimento 1 77
-
No entanto, as coisas não são tão simples. A dor jamais é pro­
porcional ao perigo e pode até estar ausente em caso de perigo
extremo, embora se possa compreender que, se o papel da dor é
despertar a consciência para que esta pense em defender a vida,
ela deixe de aparecer quando nossa vitalidade está tão profunda­
mente afetada que já não tem forças para reagir.
Mas não podemos fazer apologia da dor dizendo que ela não
passa de uma reação espontânea de nosso ser diante do perigo
que o assalta, que está aí expressamente para desencadear em
nós movimentos de defesa. Seria talvez conceder demais ao ins­
tinto e à finalidade. Pode muito bem acontecer que haja nela uma
ameaça: mas sempre será preciso que a interpretemos. Ela não
é, em si mesma, uma advertência: mas podemos fazer com que
venha a sê-lo.
Por outro lado, o perigo nem sempre está fora de nós: não raro
está em nós; acontece até, quando sofremos, que o perigo esteja
ausente. Mas a dor sempre cria em nossa consciência um confli­
to entre o que nos afeta e o que queremos, e nesse conflito nossa
consciência não pode permanecer. Ora, cabe à nossa atividade
pessoal restituir aquela unidade interior perdida. A dor convida os
seres mais frívolos a refletir, não apenas para encontrar os meios
de expulsá-la, mas também para compreendê-la, para apreender
as razões do desacordo que se estabelece de súbito entre o real e
nós, para superá-lo, mas por um enriquecimento que deve preen­
cher nossa vida e dar sua significação a nosso destino.

b. O aprimoramento e o aprofundamento
É uma visão muito superficial de nossa consciência a que nos
faz pensar que a dor constitui apenas um estado isolado, que
ocorreria de tempos em tempos e poderia ser eliminado por nós
enquanto todos os outros seriam preservados, sem que, por isso,
sofrêssemos perda alguma. Todos os nossos estados interiores
são solidários uns dos outros: não se pode realizar uma seleção
entre eles sem comprometer a unidade inteira de nosso ser. O que
valemos, nós o valemos pelos sofrimentos que suportamos, tanto
quanto pelas alegrias que nos foram dadas.

78 1 O Mal e o Sofrimento
Mais que isso: tais alegrias e tais dores dependem umas das
outras mais estreitamente do que se imagina. A capacidade de
sentir dor e a de experimentar prazer não constituem senão algo
uno: são os dois aspectos indissociáveis da sensibilidade. Não é
possível tornar-se insensível à dor sem se tornar insensível ao
prazer, como o demonstra o uso dos anestésicos. Nossa aptidão
para sofrer é o próprio sinal de nossa delicadeza. "Que coisa frágil,
o homem!" Um nada é suficiente para feri-lo: e é essa ferida sem­
pre iminente que dá a todos os seus contatos com as coisas ou os
seres um significado tão sutil. Em todas as démarches de nossa
consciência, onde quer que a inteligência ou a vontade atuem, é
essa dor muito próxima o que as torna tão atentas, o que lhes dá
a um só tempo o tato e a penetração. Assim, vê-se que todos os
pontos sensíveis que a dor nos revela - toda a dor experimen­
tada ou possível na extremidade de nossa consciência -, em vez
de pertencerem a uma parte tenebrosa e maldita de nós mesmos,
que não quereríamos senão amputar, contribuem para nos dar
mais luz, para aguçar nossa atividade, ao descobrir diante dela os
valores mais finos. Jamais se há de esquecer, porém, que a dor não
pode produzir nenhum desses efeitos por si mesma: para muitos
ela é uma derrota perpétua, e apenas para alguns é ocasião de vi­
tórias sempre novas.
Para se pronunciar sobre o valor da dor, não é necessário pôr
em questão a própria causa que a produziu. É tão somente do uso
que fazemos dela, e não da grandeza do acontecimento que a sus­
citou, que depende sua significação espiritual. Mesmo a dor mais
débil, cuja origem nos escapa, já possui uma espécie de profundi­
dade metafísica. Nada conta aqui além da atitude de quem a sofre.
A dor física antes de tudo nos revela a presença de nosso corpo e
confere ao sentimento que temos dele uma extrema delicadeza.
E o corpo se torna presente para nós não como objeto, nem como
obstáculo, mas na própria vida que o anima, inseparável da cons­
ciência que temos de nós mesmos. A consciência da vida em nós
sempre nos acompanha, mas não raro permanece obscura. A dor
a reaviva. É a própria vida o que ela nos descobre, por meio da
sequência de suas oscilações, por meio de seu fluxo e seu refluxo,
seus impulsos e suas quedas, no apego violento que temos a ela e
na renúncia que ela já solicita de nós e que um dia exigirá de nós.

2 O Sofrimento 1 79
-
O que dizer do sofrimento moral, que sempre nos proporciona
uma verdadeira revelação? O sofrimento moral desvela tudo o que
amamos. Traz à luz todas as misteriosas potências, todos os vín­
culos obscuros que residem nas partes mais recônditas de nosso
ser. Desse modo, em vez de estreitar nossos limites, amplia-os in­
cessantemente. No entanto, seu papel é menos o de nos ampliar
que o de nos aprofundar. Fornece-nos um conhecimento que está
muito distante do relativo ao objeto, que sempre permanece, até
certo ponto, exterior a nós. O puro saber reside sempre na super­
fície da consciência, enquanto a dor desce em nós até a essência
indissociável do valor. Dissipa todos os estados aos quais nossa
alma se havia entregado até então, e que são da ordem da frivoli­
dade ou da pura distração. A dor é sempre grave, e é ela que confe­
re à vida sua gravidade. Não pretendemos dizer que a dor seja por
si mesma um bem. Ao contrário, é um bem que nos é arrancado:
mas é justamente a consciência desse arrancamento que escava
nosso ser interior e, ao despojá-lo do que ele tem, o mergulha no
que ele é; que, ao lhe revelar o sentido do que ele perdeu, lhe dá in­
finitamente mais. A dor entra em carne viva na consciência: sulca­
-a até a raiz. Permite-nos avaliar o grau de seriedade que somos
capazes de atribuir à vida. Alguns seres puderam ser modificados
pela experiência que fizeram da dor, ainda que não tenham guar­
dado sua lembrança.
A dor, por conseguinte, pode aprimorar-nos ou aprofundar­
-nos, contanto, como se vê, que, em vez de considerá-la uma
estrangeira que buscamos rechaçar ou pela qual nos deixamos
subjugar, consintamos de certa forma em assumi-la, para incor­
porá-la a nós mesmos e fazer dela o meio de nosso próprio de­
senvolvimento. A dor está sempre ligada à ideia de uma falta ou
de uma insuficiência. É a consciência que adquirimos de todas as
formas da nossa miséria: por isso, o maior elogio que podemos
fazer-lhe é dizer que a pior miséria seria, para nós, não senti-la.
No entanto, trata-se menos, para nós, de nos livrar da dor do que
de reparar a insuficiência de que ela é o sinal; ela se torna, então, a
condição de nosso progresso interior. De fato, a consciência nada
possui de maneira estável; não passa de transição e passagem. Ja­
mais pode contentar-se com nada. Mas tudo o que ela possui deve
ser-lhe dado por ela mesma.

80 1 O Mal e o Sofrimento
A pior ilusão em que se pode cair, quando se considera a dor
como um mal que se trata tão somente de abolir, é pensar que
uma única coisa importa: voltar a um estado no qual não se sofre,
isto é, ao próprio estado em que estávamos quando a dor come­
çou. Mas como isso seria possível? A consciência não pode tomar
como objeto do desejo um estado pelo qual já passou uma vez;
não pode orientar-se inteiramente para um objeto negativo, como
a não dor. Isso seria dar provas de que, nesse âmbito, se prefere
o nada ao ser. A dor só tem sentido para nós se nos obriga, pela
impossibilidade em que estamos de tolerá-la, a nos elevar a um
estado que a supere, mas que represente para nós um progresso
e não um recuo, e que não teria para nós tanta força nem tanta
riqueza se não a houvéssemos atravessado.
Pode-se dizer, por conseguinte, que a possibilidade de sofrer
mede, em certo sentido, a potência de ascensão da qual cada um
é capaz. No limite inferior, certos seres só conhecem o sofrimento
físico: não desejam nada além de evitá-lo; não fazem nada além
de padecê-lo. O sofrimento tem como limiares a sensação e a
própria resistência da vida. No outro extremo, existem seres que
estão dispostos a pensar que só as dores morais contam verdadei­
ramente. Ora, pode-se dizer que a possibilidade de sofrer moral­
mente é ilimitada: cresce com a própria consciência. Não existe
uma única região de nossa vida interior que o sofrimento não
possa um dia penetrar. Toda nova aquisição é ocasião para uma
nova ferida. É no intervalo entre o que temos e o que desejamos
que reside, aqui, a aptidão para sofrer, que é apenas o reverso de
nossa potência ascensional.

e. A comunhão
A mesma dor suscetível de produzir e agravar incessantemen­
te nosso isolamento e de nos separar cada vez mais dos outros
homens deve poder tornar-se, é evidente - assim que nossa liber­
dade dela se aposse, e visto que os contrários são sempre solidá­
rios -, um fator de comunhão que os reúne. A comunhão será até
mais estreita quanto mais radical a separação ameaçava ser. Isso
porque, se a separação for vencida, a comunhão deverá ocorrer
na parte mais íntima de nós mesmos, precisamente onde a dor

2 O Sofrimento 1 81
-
nos obrigava a recolher-nos. A dor, na medida em que interessa
à parte passiva de nosso ser, está sempre ligada a alguma ação
exercida em nós pelas coisas ou pelos homens. Por conseguinte,
quem sofre sempre sente sua ligação com o que o faz sofrer. Na
medida em que rompemos os vínculos que nos ligavam ao que
nos cerca, como se vê na indiferença, diminuímos também nossa
capacidade de sofrer. Se a dor nos afeta, demonstramos assim
nossa união - muito mais que nossa separação - com aquilo que
nos afeta. E esses dois efeitos não são contraditórios senão em
aparência; é no momento em que o ser se separa voluntariamen­
te do que o faz sofrer que ele dá à dor um caráter propriamente
egoísta: mas, quando esse desprendimento pode ocorrer, os laços
espirituais já estão rompidos e a dor perdeu sua acuidade. No en­
tanto, é pelos seres que mais amamos que experimentamos mais
dor, assim como é por eles que experimentamos mais alegria.
Existe uma infinidade de maneiras, para os diferentes seres, de
sofrer uns pelos outros. E esse sofrimento será maior quanto mais
eles se aproximarem. Tem seu fundamento não só na pluralidade
dos indivíduos, a qual deixa subsistir entre eles uma distância im­
possível de abolir, necessária para que se comuniquem, mas tam­
bém na diversidade deles, diversidade tal que o que existe neles
de mais original constitui também o obstáculo contra o qual seu
esforço de comunicação sempre se choca. É aquilo que gostaría­
mos de penetrar que é impenetrável. É o que gostaríamos de dar
que não pode ser recebido. Nosso sofrimento pelo que nos separa
é proporcional, portanto, ao desejo de união que existe em nós.
Sofremos pelo que nos une proporcionalmente à própria intensi­
dade dessa união, como mostra a simpatia que torna os sofrimen­
tos comuns. Sofremos por todos os sinais de imperfeição ou de
insuficiência, por todas essas marcas de fracasso que dão provas,
em nós, de nossa indignidade de ser amados e, em outro, da im­
potência de nosso amor.
A comunhão entre os seres só é possível se eles se sentirem
inicialmente separados. E só se inicia, inclusive, a partir do mo­
mento em que ambos estão seguros de estar, um e outro, encer­
rados na intimidade de sua própria solidão. Até então, nenhuma
comunicação entre eles poderia ser válida. Eles só podem agir

82 1 O Mal e o Sofrimento
verdadeiramente um sobre o outro na parte mais inviolável de si
mesmos, onde tudo o que se oferece, tudo o que se aceita, parece
romper igualmente o pudor. A individualidade dos diferentes se­
res é, de início, um efeito da matéria: e sabe-se que, para os mais
delicados, ser tocado já é sentir-se ferido. O que se deveria dizer
do contato que pode ocorrer entre duas vontades? Não podemos
pensar em nossa solidão, que alguém penetrará, e na solidão
alheia, que para nós se abrirá, sem experimentar uma espécie de
dolorosa ansiedade. Em todas as formas mais elevadas de comu­
nhão entre dois seres humanos, nas quais reinam uma confiança
e uma alegria quase contínuas, é preciso que essa ansiedade per­
maneça, uma ansiedade que é também a marca do caráter sagra­
do da solidão e do milagre que a supera. Isso basta para mostrar
como, no ápice da consciência, todos os estados que até então se
opunham e formavam a condição de sua ascensão se encontram
agora confundidos: a separação está unida à comunhão, e o sofri­
mento à alegria.

d. A purificação
Ao afirmarmos que a dor é um meio de aprofundamento, já
mostrávamos que é um meio de despojamento e de purificação.
Se um vínculo sempre foi estabelecido entre a vida espiritual e
o despojamento ou a purificação, se até foi possível confundi­
-los, é porque nossa vida espontânea nos entrega a todas as im­
pulsões da natureza, a todas as influências do meio, e porque
é próprio da vida espiritual, ao contrário, desviar-nos de tudo
isso para nos permitir reencontrar a nós mesmos no exercício
puramente interior da atividade que nos faz ser. No entanto,
quase sempre se admite que o caráter original da consciência
é produzir, à medida que ela se eleva, um enriquecimento de
nós mesmos. Mas será esse enriquecimento essencial? Pode-se
concordar que ele seja suscetível de ameaçar a unidade interior,
e até que toda nova aquisição crie, para nós, um novo perigo.
Em âmbito algum, mesmo o mais puro, a alma deve deixar-se
guiar pelo desejo de possuir: e é sempre deplorável falar de bens
espirituais como se fala de bens materiais. O que conta não é o
que temos, mas nossa atitude diante do que temos. Não se deve

2 · O Sofrimento 1 83
extrair disso uma satisfação de amor-próprio nem um motivo
de distração. Caso contrário nossa personalidade se dissolve, em
vez de crescer. Em todos os bens a que estamos apegados, existe
um objeto que pertence a nós, mas que não somos nós, que nos
faz sair de nós mesmos e que é, justamente, aquilo de que nos
envaidecemos. É difícil, decerto, realizar o desapossamento com
respeito ao que possuímos e, mais difícil ainda, com respeito aos
bens invisíveis, como o saber, a inteligência e a virtude, porque
deles se extrai um contentamento que parece mais desinteres­
sado, mas que não raro é apenas uma vaidade mais profunda e
mais sutil. O sentido do despojamento é sempre desviar o ser do
que ele tem para recolhê-lo no que ele é.
Ora, a dor é para nós um fator de despojamento. Esse, sem
dúvida, não é seu primeiro efeito, que é, ao contrário, de sentido
inverso. Pois ela é primeiro uma violência que nos é imposta e
na qual sentimos, mais vividamente do que jamais o havíamos
sentido, nosso apego ao bem que acaba de nos ser retirado. Mas a
purificação só pode ocorrer numa segunda etapa, que nos obriga
a exercer todas as potências de nossa alma para avaliar - e ressus­
citando em nós sua presença - o valor desse objeto que perdemos.
É aqui que a atividade espiritual começa a entrar em jogo.
Por vezes esse objeto nos parece insignificante: então a dor
cessa e temos a impressão de um livramento. Outras vezes, ao
contrário, seu valor não para de se multiplicar e de sobressair,
agora que estamos privados de sua presença sensível, como
acontece com a morte de um amigo. Parece-nos que só então co­
meçamos a conhecê-lo e que até então não o havíamos amado
verdadeiramente. Assim, nossa dor muda de natureza: aprofun­
da-se e espiritualiza-se. Não é uma nostalgia estéril; abala todas
as potências de nossa alma. Torna o amigo vivo em nós, realiza
com ele a união que havíamos buscado outrora e que relações
demasiado felizes ou demasiado fáceis haviam impedido, porque
faziam as vezes dessa união.
Desde sempre a consciência popular considerou a dor como
um meio de purificação. Isso se vê claramente na ligação imedia­
ta que estabelecemos entre o erro e a punição, sem que o valor
da punição jamais seja esgotado, quando se busca reduzi-lo seja

84 I O Mal e o Sofrimento
à vingança, seja à utilidade. Não é apenas em razão da unidade
indissolúvel da consciência que exigimos, quando a vontade fez o
mal, isto é, cometeu um erro, que a sensibilidade também experi­
mente um mal, isto é, padeça uma dor. Não vemos aí apenas um
restabelecimento, por uma espécie de compensação, da harmonia
quebrada. Acreditamos mais ou menos obscuramente, como os
primitivos - mas também como Platão, que ilustrou admiravel­
mente essa antiga crença -, que existe na dor uma virtude puri­
ficadora: é um movimento natural da alma que nos faz procurar,
quando a infelicidade chega, mesmo quando pensamos que só
existe nisso um resquício de superstição, o que pudemos ter feito
para merecê-lo. E parece-nos que, assim como existe um amargor
nos remédios que curam os males do corpo, assim também é pre­
ciso que a amargura da dor seja a cura dos males da alma.
Até isso, porém, exige explicação. Não deve haver aí um sim­
ples erro venerável que continue a nos iludir sem nos proporcio­
nar luz alguma. Se a dor nos purifica, devemos ver como é capaz
de fazê-lo e seguir os movimentos da alma pelos quais essa pu­
rificação se realiza. Primeiramente, porém, não é a dor em si que
purifica, assim como não é o amargor que cura. Toda purificação,
toda cura, se realiza por uma reação da alma ou do corpo, da qual
a dor é apenas a marca. Que não se imagine, ademais, quando a
consciência está em jogo, que a dor sofrida baste para apagar o
erro: de fato, ela pode agravar o mal, em vez de apagá-lo, ao pro­
vocar em nós raiva ou rancor. A dor só pode purificar-nos se for
aceita, se existir um vínculo real entre ela e o erro, se for o próprio
erro o que a provoca por uma reflexão que a isso se aplica e que a
transforma, enfim, se for desejada ao mesmo tempo que é sofrida:
nisso consiste a própria definição do arrependimento.
A partir daí, a punição do corpo, quando a alma cometeu um
erro, é apenas uma imagem: ela assinala muito bem o caráter de
limitação e passividade que é inseparável de toda dor. Mas não é
a punição do corpo o que cura. Esta é uma espécie de substitui­
ção temporária da dor que deve ser provocada, nele próprio, por
aquele que fez o mal; destina-se a chamá-la ou despertá-la, mas
não raro a impede de nascer. Ora, a dor só purifica se quem a sofre
é também quem a inflige.

2 - O Sofrimento 1 85
A cura é uma conversão interior da alma; e essa conversão
não pode ocorrer sem a lembrança do erro, cuja mera repre­
sentação basta para me fazer sofrer. Mas o sofrimento, então, é
indissociável da purificação. De fato, ninguém poderia livrar­
-se do mal se não sofresse por havê-lo cometido, e o sofrimen­
to é aqui um efeito da reflexão. Existe no arrependimento e no
remorso, assim como na reflexão, mesmo quando eles nascem
quase espontaneamente, um recolhimento em si, uma reava­
liação do que ocorreu e do que fizemos. Talvez seja verdadeiro
dizer que ninguém suporta a visão de seu passado sem sofrer.
Ao menos importa distinguir, nesse movimento retrospectivo,
o remorso, que nos deixa bloqueados na dor do erro passado e
fecha para nós todos os horizontes, e o arrependimento, que só
tem consideração pelo passado porque deseja que o futuro seja
diferente. Só o arrependimento é um sofrimento que nos trans­
forma, um sofrimento que está na origem de todo recomeço, de
todo renascimento.
O arrependimento nos mostra, aqui, uma ligação singular­
mente estreita entre a vontade e a sensibilidade. O erro foi outrora
um ato voluntário: pertence agora ao passado, sobre o qual já não
tenho influência. Só posso ter relação com ele, portanto, por sua
repercussão em minha sensibilidade, isto é, na parte passiva de
mim mesmo; só encontro em mim o traço que ele deixou. Mas
esse traço só é doloroso por minha vontade presente, que não
quer identificar-se com o que o erro fez de mim. Reconheço-me
em quem o cometeu, mas sofro porque não aceito continuar a sê­
-lo. E o sofrimento se confunde com o ato que me regenera; é um
sofrimento eficaz, que o malvado desconhece e o homem honesto
alimenta, em vez de extenuar.
No ponto a que chegamos, a dor deixa de ser o escândalo inin­
teligível que parecia no início. Tornou-se o sofrimento moral que,
longe de produzir o mal, nos livra dele, que, longe de ser imposto,
é, ao contrário, desejado. Aqui existe identidade entre a ideia do
erro e o sofrimento em si: ter consciência do erro, é isso o que é
sofrer. Não será motivo de surpresa, portanto, o caráter libertador
e purificador da ideia do erro, pois que ter consciência do erro já
é estar além.

86 I O Mal e o Sofrimento
6. Conclusão

É preciso antes de tudo situar-se no ápice da consciência, ali


onde nossa vontade se envolve inteiramente e onde a significação
profunda de nossa vida parece revelar-se a nós, para compreender
os estados inferiores que nos escravizam quando permanecem
isolados e só recebem uma luz quando são ultrapassados. Ora, só
o sofrimento moral pode ser compreendido, porque nós mesmos
o engendramos como o próprio meio de nosso progresso espiri­
tual. Mas talvez se possa considerar que ele se irradia em todas
as outras formas de dor, mesmo as mais obscuras e atrozes. Cada
homem e a humanidade inteira passam, por degraus, da dor físi­
ca, que expressa apenas nossa limitação, ao sofrimento espiritual,
que não suprime a dor física, mas cujo sentido e cujo valor ao
menos podemos ver. Não se pode considerar sem pavor a massa
de dores que preenche a história, mas o destino da consciência in­
teira esteve implicado em cada uma delas: foram elas que levaram
a consciência humana ao nível espiritual que ela alcançou. A mais
admirável coragem, para cada ser, não é desviar-se delas, mas
consentir nelas e assumi-las, porque foi formado por elas, porque
não pode concebê-las sem torná-las suas, porque ainda está ex­
posto a sofrê-las, porque ninguém é solitário no mundo e porque
todo mal e todo bem que nele ocorrem têm uma repercussão em
todos que vivem: é por meio desse calvário que a consciência vem
a crescer, que ela se aprimora e se aprofunda, que ela prossegue
sua purificação e sua libertação espirituais.

2 - O Sofrimento 1 87
PARTE II

TODOS OS SERES,
SEPARADOS E UNIDOS
INTRODUÇÃO

O problema da solidão das consciências e da comunhão que


pode estabelecer-se entre elas é a um só tempo o problema mais hu­
milde da vida cotidiana e o problema mais essencial da metafísica,
aquele que abarca todos os outros e o único que permite resolvê-los.
Nosso destino não para de se constituir por meio desses es­
tados tão miúdos que preenchem cada dia, não raro tão insig­
nificantes que passam despercebidos, e que não consideramos
capazes de deixar no mundo nenhum traço. Mas deixemos os
acontecimentos visíveis, os que só interessam à vida do corpo ou
são apenas marcas de uma realidade mais secreta: então já não
encontramos nada, no fundo de nós mesmos, além da tristeza de
sentir-nos abandonados, incompreendidos e impotentes, ou a es­
perança e já a alegria de perceber em nós potências que começam
a se exercer e que encontram, ao nosso redor, uma acolhida que as
encoraja ou uma resposta que as fortalece.
Ora sofremos por só encontrar no mundo rostos estranhos
ou indiferentes e por ser relegados a um isolamento que parece
revelar-nos esse estado de miséria em que nenhum olhar nos é
dirigido e jamais vem cruzar com o nosso: e nossa existência nos
parece um poço sem fundo em que estamos sepultados; ora, ao
contrário, faz-se uma luz: acabamos de descobrir outro ser, seme­
lhante a nós, outra consciência, cheia como a nossa de inquieta­
ção e desejo, e já estamos prontos para nos entender com ela, pelo
próprio receio de não consegui-lo: a mínima palavra de amizade,
aceita ou recebida, parece-nos então infinitamente mais real e
mais preciosa que todos os dons da fortuna e todos os sucessos
da ambição. Mas daí nascem novos sofrimentos: pois, assim que a
indiferença é rompida, as feridas se multiplicam. A solidão é agora
uma espécie de refúgio; e, no entanto, sofre-se ao mesmo tempo
por voltar a mergulhar nela e por ser incapaz de nela permane­
cer. Isso porque os seres individuais se opõem uns aos outros não
apenas pelo que desejam, mas também pelo que são; e existe entre
eles uma separação que não podem renegar nem suportar.
No entanto, quando se quer abraçar a totalidade do destino de
uma consciência, uma vez cumprido, e buscar o que lhe conferiu
sua realidade, seu valor e seu sentido, é preciso esquecer todos os
acontecimentos com os quais a consciência se misturou e pelos
quais se manifestou: isso foram apenas ocasiões, meios ou teste­
munhos pelos quais ela se criou interiormente a si mesma, ora es­
treitando e aprofundando sua existência solitária, ora dilatando-a
e enriquecendo-a graças à doação de si perpetuamente proposta e
prestada que fundava, com outras consciências particulares, suas
relações eternas. Estes dois milagres, o da solidão e o da comuni­
cação entre os seres, explicam, um sem o outro e um com o outro,
nossa alegria e nossa tristeza, nossa riqueza e nosso despojamen­
to, nossa confiança na vida ou nosso desespero.
Seria preciso ser cego para pensar que existem aí apenas aci­
dentes superficiais de nossa vida subjetiva, que não dizem res­
peito à própria essência do real. A verdadeira metafísica não nos
arranca deste mundo familiar no qual não paramos de agir, penar,
desejar e amar; busca apenas dar-nos uma consciência mais pe­
netrante e mais lúcida deste mundo, aprofundá-la até a raiz dele,
alcançar nele a atividade cujo exercício nos é incessantemente
proposto e que compete a nós, a cada instante, aceitar, implemen­
tar e promover. A metafísica apenas nos ensina a descobrir o sen­
tido, a dignidade e o valor dos sentimentos mais comuns: no mais
ínfimo deles, revela-nos uma realidade da qual participamos, que
nos liga a todos os outros seres e nos obriga a colaborar com eles
na criação do mundo.
Só um preconceito materialista que a experiência não para de
desmentir pode fazer-nos pensar que o próprio substrato do real

92 1 O Mal e o Sofrimento
reside nas coisas cegas e indiferentes que estão espalhadas à nos­
sa volta e contra as quais nosso corpo não para de se chocar; isso
porque as coisas só têm sentido pela inteligência que as ilumina
ou pela vontade que as transforma; elas testemunham uma ativi­
dade espiritual decaída, ou que ainda não se ocupou delas a fim
de animá-las e regenerá-las. Não existe existência além da que é
interior a si mesma, a que possui iniciativa criadora e consciência
de si. As coisas então se tornam os instrumentos sem os quais as
consciências não poderiam exercer e manifestar suas potências,
nem ser separadas umas das outras, nem atestar ao mesmo tem­
po sua presença uma para a outra.
Assim, é ao aprofundar o problema da solidão e da comunhão
que o próprio mistério do Ser poderá ser esclarecido, pois cada
consciência nasce perpetuamente para si mesma num universo
do qual, no entanto, é inseparável. É só nela que podemos espe­
rar captar a potência criadora mas, por assim dizer, retida e apri­
sionada em nossos próprios limites: ora, é nesses limites que a
solidão se revela a nós como um sofrimento, embora ela possa
multiplicar nossa força e nossa luz ao nos aproximar incessante­
mente da fonte de onde elas jorram. Mas, se temos limites e pode­
mos, contudo, atravessá-los, encontrando outras consciências que
podem tanto restringir a nossa quanto desenvolvê-la, é porque a
diversidade dos seres capazes de criar-se, de buscar-se uns aos
outros ou fugir uns dos outros, de prestar assistência mútua ou de
combater-se uns aos outros é um todo solidário no qual cada um
forma sua própria vocação espiritual ao contribuir para a forma­
ção dos outros.
Então se compreende por que, de todos os problemas que a
reflexão formula e a vida nos impõe, não exista outro mais cons­
tante, mais profundo e mais dramático que o da solidão em que
cada ser se encontra encerrado e da comunhão com outro, que
sempre é para ele objeto de esperança suprema e de supremo pu­
dor. O mundo se torna tenebroso para nós e a angústia se apodera
de nós assim que aplicamos a nós mesmos a verdade do antigo
adágio: todo homem está condenado a viver e a morrer sozinho.
E, no entanto, não existe homem que não tenha conhecido cer­
tos encontros, nos quais outro homem se revelava muito próximo

Introdução l 93
dele, já associado a ele no sentimento de um destino que lhes era
comum, de uma presença mútua impossível de abolir e que lhes
abria, a ambos, acesso a um mundo espiritual e luminoso do qual
a solidão os separava, mas que agora já não tem partes secretas,
que só encerra intenções e significações, onde só se encontram
atos de pensamento e de vontade que, buscando respectivamente
cumprir-se e sustentar-se, jamais deixam ser algum sem iniciati­
va nem socorro.

94 J O Mal e o Sofrimento
l . A SEPARAÇÃO

1. A célula secreta

A solidão nasce com a reflexão e, por assim dizer, cresce com


ela. De fato, inicialmente nossa vida se confunde com as coisas e
está inteiramente entregue ao instinto ou à distração. No entanto,
o ser que reflete busca tomar posse de si próprio; volta-se para si
mesmo; descobre em si um mundo que ninguém penetra, uma
atividade que só pertence a ele e cujo exercício só depende dele.
É inevitável que o movimento inicial pelo qual tomamos
consciência de nós mesmos nos revele nossa solidão: trata-se,
com efeito, de um movimento de separação, que nos desprende
dos seres ou das coisas que nos cercam e nos revela o mistério
da subjetividade, isto é, a célula secreta em que nossa vida pró­
pria transcorre. Não podemos pensar em nós mesmos sem que
nos encontremos sós. Essa brusca revelação provoca em nós uma
angústia metafísica, que a vida espiritual aprofunda e da qual
nos liberta. Pode-se julgar que essa angústia, por sua vez, é muito
primitiva, se é verdade que o grito mais desesperado da crian­
ça é o que ela dá não quando sente uma dor física, mas quando
se sente abandonada, quando não encontra à sua volta o contato
dos rostos familiares e quando todos os seus laços com o univer­
so de súbito lhe parecem rompidos. Não diminuamos o valor de
tal angústia pela afirmação de que ela é puramente orgânica: ela
é o próprio nascimento da consciência de si. Nos minutos mais
profundos da vida, constatamos seu reaparecimento. E não existe
filosofia que possa alcançar o próprio âmago do ser e da vida sem
tomá-la como ponto de partida.
Para muitos homens, o mundo é constituído apenas por fenô­
menos ou por acontecimentos, no meio dos quais sua consciência
se esquece e se perde. Para alguns, isso representa também uma
consolação que, ao desviá-los de si mesmos, lhes permite supor­
tar a vida. No entanto, perceber que existo é perceber que sou úni­
co, separado, solitário, que estou encerrado em limites que podem
ser afastados, mas não ultrapassados. E basta-me imaginar que
tenho uma existência própria, subjetiva, pessoal, desconhecida
de todos e que me é entregue para que eu sinta uma emoção tão
aguda e dilacerante que parece impossível que ela se prolongue.
É o pensamento o que me faz ser e é o pensamento o que me
encerra. Não se deve dizer que esse cerco me seja imposto, pois
não paro de impô-lo a mim mesmo. Cada um dos movimentos
de minha vida interior contribui para reforçá-lo. Nos seres mais
simples, ele oferece pouca resistência; nos seres mais delicados, é
imperceptível e, no entanto, sem fissura.

2. O risco da solidão

Pressente-se que não pode haver comunhão real entre os seres


antes que eles se tenham verdadeiramente tornado seres, isto é:
para ser capaz de fazer o dom de si, é preciso haver tomado posse
de si nessa solidão dolorosa fora da qual nada nos pertence e nada
temos a oferecer.
Talvez existam homens para os quais o sentimento de solidão
seja desconhecido. Não que eles tenham com algum ser relações
verdadeiras, isto é, íntimas e pessoais; mas não sentem necessi­
dade disso; ignoram a existência delas. Basta-lhes que sua vida
esteja implicada no meio da natureza, da qual recebem todas as
solicitações: sempre respondem a elas por um movimento ple­
no de espontaneidade e confiança. E decerto é preciso que haja

96 1 O Mal e o Sofrimento
também, em toda existência humana, momentos de descontração
e de entrega, nos quais a solidão deixa de ser sentida, nos quais o
homem reencontra em si, numa sorte de jogo, o instinto do ani­
mal e a inocência da criança: por meio deles voltamos à humilde
fonte da vida; por meio deles reencontramos a unidade e o equi­
líbrio, que a reflexão não para de romper, entre todas as forças in­
teriores. Mas só nos tornamos uma consciência, uma pessoa, um
foco autônomo de existência se nos separamos da natureza com
que estávamos de início confundidos, se o mundo inteiro acaba
por nos faltar, se temos força para romper com todos os objetos
circundantes que, até então, não paravam de nos sustentar e nos
comover. É preciso haver experimentado a miséria de um eu des­
provido de tudo e acuado na experiência da solidão absoluta, isto
é, na experiência de si próprio, para encontrar no recurso a si, isto
é, na descoberta de uma atividade cujo exercício depende de si, a
responsabilidade por seu próprio destino. É preciso haver corrido
o risco de permanecer sempre solitário, ansioso e impotente para
estabelecer, com o mundo do qual nos havíamos de início separa­
do, relações que, em vez de ser entregues à natureza, são efeito da
vontade e do amor.
Nossa vida só pode adquirir um caráter de profundidade no
momento em que pensamos que ela é bem nossa e em que, nessa
intimidade inefável em que podemos dizer "eu", estamos sós no
mundo e o mundo nada pode fazer por nós. Assim, a solidão é a
ferida em permanente carne viva pela qual desprendo, da existên­
cia do Todo, uma existência que me é própria e cuja simples cons­
ciência basta para me dar uma espécie de vertigem. Alguns dirão
que aí está a iminência de uma alegria que ainda não temos força
para suportar, e como que o inebriamento oscilante, inseparável
de nossos primeiros passos. Isso seria verdadeiro se a consciência
não nos revelasse, na presença da vida, nada além de um impul­
so conquistador. Mas a consciência é precisamente o contrário;
ela rompe esse impulso, volta-o contra si própria; obriga-me a
suspendê-lo para julgá-la. Entrega sua disposição e seu uso a um
ser que ainda não é nada, porque deve dar-se o ser a si mesmo, e
que avalia, no entanto, sua fraqueza e treme por sentir-se entregue
exclusivamente a seus recursos, nesse horizonte subjetivo em que
sabe estar encerrado e que ninguém penetrará.

1 - A Separação 1 97
Mas nossa solidão sempre é ainda mais inacessível do que
acreditamos. Isso porque o difícil para nós não é apenas formar
uma sociedade com outro, é antes de tudo formar uma verdadei­
ra sociedade com nós mesmos. De fato, é próprio da consciência
criar um diálogo, um debate interior no qual jamais consigo obter
uma perfeita coincidência comigo. Jamais chego a expressar, nem
sequer a encontrar, tudo o que sou. Nem sempre me reconheço
nos atos que realizo, nem nas palavras que pronuncio, nem na
ideia que concebo de mim mesmo. Minha atividade mais profun­
da tem obstáculos demais por superar antes de lograr emergir;
vem traçar na superfície de minha consciência uma imagem in­
certa de mim mesmo que eu jamais ratifico inteiramente.
Poder-se-ia até dizer que sempre começo a me comunicar com
os outros assim que começo a me comunicar comigo mesmo. Tan­
to é assim, que a solidão mais trágica é a que me impede de forçar
as barreiras que separam o que acredito ser daquilo que sou: nes­
te caso, minha consciência se tornou tão alheia a meu verdadeiro
ser e minha aflição é tão grande, que não posso dizer o que dese­
jo nem o que me falta. Solidão é sentir em si a presença de uma
potência que parece incapaz de exercer-se, mas que, assim que
começa a fazê-lo, me obriga a me realizar multiplicando minhas
relações comigo mesmo e com todos os seres.

3. O contato entre duas solidões

No entanto, essa solidão que acabamos de adentrar - que nos


dá o sentimento tão vivo de uma responsabilidade que só pertence
a nós e da impossibilidade em que nos encontramos de, contudo,
bastar-nos - só é experimentada como solidão porque, ao mesmo
tempo, é um chamado para solidões semelhantes à nossa com as
quais sentimos necessidade de comungar; pois é somente nessa
comunhão que cada consciência descobrirá o sentido de seu des­
tino, que não é perceber as coisas nem dominá-las, mas é viver,
isto é, encontrar fora de si outras consciências das quais não para
de receber e às quais não para de dar, num circuito ininterrupto
de luz, de alegria e de amor que é a única lei do universo espiritual.

98 1 O Mal e o Sofrimento
De início a solidão é apenas um refúgio em nós mesmos, sem
o qual nossa existência individual e subjetiva não poderia consti­
tuir-se. E pressentir ao redor de si outras consciências solitárias é
redobrar a própria solidão; já é, no entanto, superá-la. Isso porque,
assim que consciências diferentes começam a se encontrar, o sen­
timento da solidão se modifica e se define; deixa de ser puramente
metafísico: torna-se psicológico; sempre tem como contrapartida
a ideia de uma comunicação impossível ou malograda.
Não podemos encontrar em nosso caminho outros seres que
têm, como nós, um segredo e uma intimidade - que parecem ca­
pazes de se comunicar conosco, mas apenas até certo ponto, além
do qual nos martirizam e nos ferem, e que possuem uma iniciati­
va pela qual desmontam nossas previsões e nossos cálculos - sem
dirigir-lhes uma interrogação muda. O que vão proporcionar-nos
e o que somos capazes de entregar-lhes que eles estejam em con­
dições de acolher? Que riquezas permitirão que eu descubra seja
neles, onde poderei haurir por sua oferenda, seja em mim, onde
até então permaneciam ocultas? Que luz, que alegrias, que sofri­
mentos eles têm ocultos no olhar e nas mãos?
Por isso, o sentimento da solidão se torna para nós um fardo
intolerável quando, ao lançar o olhar para outros seres que nos cer­
cam e cujo destino é inseparável do nosso, nos damos conta de que
não podemos ter com nenhum deles senão relações exteriores e
aparentes: como evitar, então, que nos autocensuremos por uma
falta de abertura ou por uma falta de amor que os obriga a nos
repelir ou nos impede de encontrar acesso até eles? Os homens
passam uns ao lado dos outros, realizam certos movimentos, pro­
nunciam certas palavras, servem-se uns dos outros como de coisas,
mas guardam no fundo de si mesmos o segredo de seu ser próprio,
que por vezes procuram defender, quando, para eles, é tão difícil
revelá-lo. E, se nos sucede dirigir aos outros o mesmo olhar pro­
fundo que dirigimos a nós mesmos, enquanto pensamos que eles
têm, como nós, uma vida subjetiva e incomunicável, o sentimento
de nossa própria solidão redobra e se multiplica: estremecemos ao
evocar tantos refúgios misteriosos destinados a permanecer eter­
namente selados, embora já seja sair do nosso, pela imaginação e
pelo desejo, suspeitar uma infinidade de outros em torno de nós.

1 - A Separação 1 99
Na atitude do outro para conosco, se nenhum interesse estiver
em jogo, não raro só discernimos indiferença. Essa indiferença,
porém, é algo que suportamos muito diversamente. Algumas ve­
zes, ao vermos que nossa existência própria não atrai para si ne­
nhum olhar de atenção ou de amor, sentimo-nos rechaçados para
fora da existência, como se fôssemos incapazes de encontrar em
nós mesmos algo que pudesse sustentar-nos. Outras vezes essa
indiferença é aceita por nós como demonstração humilhante de
nossa tibieza, de nossa incapacidade para sair de nós mesmos,
de nossa falta de confiança e de impulso. E em certos casos, por
fim, ela nos parece uma segurança, um benefício pelo qual so­
mos reconhecidos aos que nos cercam, a um só tempo por certa
complacência amarga com nossos pensamentos solitários e pela
assunção de que toda relação viva com outro ser produz em nós
algum martírio.
A indiferença, porém, seja quando parte de nós, seja quando
parte dos outros, assemelha-se à inércia e à morte. Ou antes, é
uma morte viva, pior que a morte, pelo sentimento da presença
de uma oferta que nos é feita, que é a da vida, à qual nada em
nós nem fora de nós vem responder. No entanto, não é possível
ignorar que a indiferença aparentemente mais invencível não
raro esconde um desprezo, uma repulsa desmedida por todos os
contatos superficiais que bastam para a maioria dos homens, a
exigência ardente de uma doação de si que não encontra emprego
e na qual o ser não cessa de se consumir.
No entanto, embora a solidão da indiferença se assemelhe a
um deserto, ela não nos restringe, não nos contrai tão dolorosa­
mente dentro de nós mesmos quanto essa outra forma de solidão
que segue o movimento pelo qual todo o nosso ser se conduz para
outro e se vê repelido. Sucede porém que, enquanto a verdadeira
indiferença é sempre irremediável, aqui, ao contrário, podem dis­
tinguir-se graus. Quem me rejeita não me ignora; não faz de mim
um puro objeto; pode reconhecer em mim uma vocação que me é
própria, que não encontra a sua, embora ambas estejam inseridas
no vasto mundo. Quando sinto no outro uma hostilidade, ele já
está, ainda que não o pareça, mais próximo de mim; interessa-se
por minha própria vida, que ele só parece querer aniquilar porque

100 1 O Mal e o Sofrimento


receia não poder mudar-lhe a direção e reformá-la; já é solidário
de mim; e, na luta que trava contra mim, começa sempre por me
abraçar. Por fim, não se deve esquecer que, mesmo nas comuni­
cações mais reais e mais profundas, as coisas não se desenrolam
tão simplesmente como se imagina: sempre existe nelas timidez,
pudor; sempre se teme ver aí nossa sinceridade ameaçada ou a
vontade surpreendida; o consentimento está sempre à beira da
recusa, e a separação dos indivíduos subsiste no próprio cerne da
união pela qual a ultrapassam.

4. A solidão da impotência e da infelicidade

No entanto, basta que outros seres possuam, como eu, uma in­
timidade que lhes é própria para que, tão logo a menor abertura
me seja dada para ela, ela me pareça tão diferente da minha, que a
esperança de romper minha solidão se transmute numa decepção
que a torna mais amarga. Cada um se descobre como um indi­
víduo distinto de todos os outros: no mundo interior não existe
nada que possa ser tomado de empréstimo ou cedido em em­
préstimo; não existe território banal cujo uso possa ser comum
a várias pessoas. Cada um é obrigado a ter uma existência que só
pertence a ele, cujo valor inteiro provém do fato de ela ser sua e,
por conseguinte, única, e que em sua originalidade mais sublime
não pode ser assimilada nem compreendida por ninguém. Não
existe nada em minha consciência que possa aí fazer viver o es­
tado de outro. Todos nós temos disso o mais vívido sentimento;
e, quando alcançamos esse reduto inviolável da individualidade,
estamos sempre prontos para dizer a nosso amigo mais fiel: "Nes­
te ponto você já não pode entender-me:' Mesmo as palavras do
vocabulário comum pelas quais buscamos traduzir nossos movi­
mentos mais secretos têm para nós uma ressonância que jamais
terão para outro. Existe em cada ser uma realidade última que
não comporta nenhuma comparação. Daí o sentimento de que
nossa solidão é irremediável, pois existe uma essência irredutí­
vel da individualidade que jamais poderá fundir-se. Ao abdicar
dela, ao buscar aplaná-la, substitui-se uma comunicação viva e

1 - A Separação l 101
pessoal por uma comunicação superficial e anônima; é preciso
que ela esteja presente e seja respeitada, e não apagada e esque­
cida, para que as relações entre dois seres adquiram uma verda­
deira profundidade. Invocamos sempre a natureza inviolável da
individualidade para gemer melhor numa solidão que não temos
força para superar: mas não se deve desprezar seu segredo nem
deixar que ele seja forçado. O pudor é sua proteção mais delicada:
e, nos momentos em que o entendimento entre dois seres é mais
perfeito, o pudor se aguça, em vez de se perder.
No entanto, em presença de um ser radicalmente diferente de
nós, a dor da solidão a que nos sentimos relegados ainda é ape­
nas de primeiro grau. Na realidade, essa dor é sempre proporcio­
nal à esperança que tínhamos de encontrar uma pessoa a quem
acreditávamos poder unir-nos. Basta que ela não mostre nenhum
ponto de contato conosco para que a deixemos com o sentimento
de jamais havê-la encontrado. Por vezes ocorre, ao contrário, que
uma reaproximação e mesmo uma troca tenham começado a se
estabelecer entre ela e nós. Ora, de súbito medimos, em reações
imperceptíveis, o abismo que nos separa dela; sentimos, então,
uma mágoa que é difícil de curar, pois bem sabemos que o fun­
do de nosso ser se revela em detalhes insignificantes, mais graves
ainda porque escapam de seu olhar, e que acusam um dissenti­
mento absoluto na apreciação dos valores, um golpe involuntário
desferido contra a parte viva da consciência em que reside toda a
nossa delicadeza.
Será preciso aceitar agora a afirmação tão comum de que só
a dor nos dá a verdadeira experiência da solidão? É inegável que
se sofre sozinho. E também que a comiseração alheia, pela pró­
pria impotência que demonstra, apenas agrava essa solidão. Há
pouco minha consciência tendia para ti, inteiramente aberta e
acolhedora; o mínimo sofrimento que, de súbito, vem atingir­
-me, a mínima lembrança de um sofrimento antigo provocam
meu retraimento e desviam de ti minha atenção e meu interesse.
Assim, melhor que qualquer esforço de reflexão, a dor produz
um recolhimento do ser em si mesmo, pois o sofrimento é uma
limitação que lhe dá consciência de seus limites e o encerra neles
estreitamente. Pode-se dizer também a respeito da dor que ela

102 1 O Mal e o Sofrimento


impossibilita qualquer distração, se é verdade que ela monopoli­
za toda a nossa atenção e constitui uma distração absoluta; se é
verdade que ela paralisa a atenção e a torna indisponível. Daí se
pode concluir que nossa potência de solidão e nossa potência de
sofrimento crescem paralelamente.
No entanto, a dor física nos revela apenas a solidão de nosso
corpo. É a dor moral o que torna sensíveis todos os pontos vi­
tais de nossa alma; e a qualidade dessa dor traduz a qualidade
da consciência que a experimenta. Mas o que se deve entender
por dor moral senão a dor que experimentamos no contato com
outros seres? Não é ela ainda mais profunda quando nossas re­
lações com eles comportavam mais confiança e mais intimida­
de? Não é ela, sempre, expressão de uma comunicação ilusória,
interrompida ou rompida? Por conseguinte, ela cria em nós uma
forma de solidão que é, por assim dizer, de segundo grau, pois a
separação, desta vez, é ao mesmo tempo evidente e impossível.
Sofro por ti, isto é, por não poder desprender-me de ti, enquanto,
todavia, os sentimentos que experimento e o próprio sofrimento
que os acompanha me deixam sozinho diante de mim mesmo e
não criam passagem alguma entre ti e mim.
A solidão mais pavorosa, porém, é a solidão que nos resta ao
fim dessas falsas comunicações às quais nos entregamos durante
muito tempo, nas quais a dúvida se introduziu e cujo caráter de
inanidade um dia percebemos. Acontece que outro ser no qual
depositávamos nossa confiança se tenha servido de nós por inte­
resse ou por jogo. Entregava-nos uma parte de sua intimidade, de­
certo, e nós também lhe abríamos a nossa. Nem sempre perseguia
um fim egoísta: mas, fosse qual fosse a nobreza desse fim, este era
próprio dele, e nós apenas seu instrumento. Não podemos fazer
tal descoberta sem experimentar um sentimento de terror, pois
não queremos em absoluto ser uma coisa da qual alguém dispõe,
uma pedra num edifício estranho. Cada ser é um primeiro come­
ço: possui uma iniciativa que lhe é própria, que tem valor absoluto
e que o põe diretamente em relação com Deus. Para que essa ini­
ciativa seja respeitada, é preciso que ela jamais esteja subordinada
a outra: só então podem existir relações de pessoa a pessoa. Mas
essas relações são muito perigosas; são sempre passíveis de ser

1 A Separação l 103
-
pervertidas e de fato o são tão logo a liberdade sinta pesar sobre
si a mais imperceptível imposição. Tenho então a impressão de
que me torno uma coisa. Como, em tais condições, a comunicação
não desmoronaria? Como, nesse naufrágio interior, a parte viva
de mim mesmo encontraria porto e salvação noutro lugar senão
essa solidão que ela havia acreditado abandonar e que agora é seu
único refúgio?

5. A solidão do livre-arbítrio

No entanto, o mais profundo cerne da solidão não reside na


existência subjetiva, nem na indiferença dos outros seres, nem
no intervalo que me separa deles, nem sequer na dor que expe­
rimento por eles; está na própria iniciativa que me cabe exercer,
na decisão que só depende de mim, na possibilidade que me é
deixada, a cada instante, de realizar um ato de aceitação ou de
recusa, na obrigação que eu mesmo assumi inteiramente em cada
uma das iniciativas de minha vida. Posso pedir todos os reforços,
os da experiência, os da razão ou os da amizade: mas sempre é
preciso, em algum momento, mesmo nas menores coisas, que eu
faça uma escolha que é a minha e na qual é meu ser próprio que
se afirma e se fixa. A solidão é o livre-arbítrio, pois é ela que me dá
a responsabilidade metafísica por mim mesmo.
Mas é fácil ver que o que confere ao ato livre tal caráter de gra­
vidade é que, se for realizado na solidão, me obrigará precisamen­
te a rompê-la. Não basta dizer que é por meio dele que o eu se
constitui, pois bem sabemos que ele não pode ser tão interior a
nós mesmos que não tenha nos outros e no universo inteiro uma
repercussão invisível que apavora e paralisa as consciências mais
delicadas. Mas basta perceber que o ato que vou realizar é algo
que o universo espera e que ninguém pode fazer em meu lugar
para que, de súbito, a ideia de minha vocação se revele a mim;
e é a vocação que faz da liberdade possível uma liberdade real, e
que reconcilia a solidão em que o ato se origina com a sociedade
viva que lhe cabe criar. Aqui, cada um de nós está só por ser um
primeiro começo, uma potência criadora, uma faculdade de optar

104 1 O Mal e o Sofrimento


entre o sim e o não, da qual não pode abdicar sem desaparecer;
e cada um de nós para de estar só, pois agir é ultrapassar os pró­
prios limites, já é dar algo de si e aceitar receber uma resposta à
qual é impossível furtar-se.
A solidão do ser individual que se crê isolado no mundo e inca­
paz de se suster provoca nele um sentimento que é precisamente
o que denominamos desamparo. Mas o valor do indivíduo não
deve ser contestado, pois ele é sempre único no mundo, carrega
sozinho o peso e a responsabilidade de seu destino. No entan­
to, só pode ser bem-sucedido nisso se converter seu destino em
vocação, isto é, se considerar-se a si mesmo não como um Todo,
mas como um membro do Todo, no interior do qual haure seus
recursos e para cuja formação aceita cooperar. A solidão começa
por nos separar, mas de um universo que era exterior a nós e sus­
cetível de nos monopolizar e de nos distrair; revela-nos, primeira­
mente, a interioridade do eu individual: e provoca nessa ocasião a
crise de ansiedade do ser que se crê abandonado. Mas foi preciso
que ele se recolhesse em si para que se encontrasse; e só agora ele
pode ter esperança de encontrar os outros. Ele se havia separado
apenas de um mundo de aparências, que o separava dele mesmo
e de todos. Penetra um mundo que, de início, pertence exclusiva­
mente a ele, mas que pouco a pouco se abre diante de seu olhar,
um mundo ao qual os outros seres têm acesso como ele, e no qual
começa a descobri-los e a comungar com eles.
Essa é a interioridade universal que é a um só tempo a perfei­
ção da solidão e sua abolição; que os maiores solitários são ca­
pazes de conhecer; que eles sempre têm medo de perder; que, a
seus olhos, jamais é completa o suficiente; e que sempre lhes dá,
quando a encontram, uma superabundância de luz e alegria. Não
apenas eles já realizam nela uma espécie de sociedade espiritual
com todos os seres que estão no mundo; além disso, assim que
retornam ao meio dos homens, encontram força suficiente para
retirá-los também de seu egoísmo e de sua separação e para lhes
revelar uma solidão invisível que lhes é comum e na qual podem,
enfim, aproximar-se e unir-se. Não posso conceber outro ser se­
melhante a mim, isto é, solitário e miserável, sem fazer cair as bar­
reiras que nos separam, sem criar entre ele e mim uma espécie de

1 A Separação / 105
-
fraternidade da infelicidade. Nem sempre me dou conta, porém,
de que essa mesma fraternidade dissipa a infelicidade que a fez
nascer: conceber uma solidão que não é a própria é sair da pró­
pria, é penetrar a outra, é descobrir um mundo que é um Si uni­
versal em que cada um encontra o fundamento de seu próprio si
e de todos os outros sis.
Pode-se dizer, por conseguinte, que existem duas espécies de
solidão: uma solidão do eu individual, que não deve ser abando­
nada porque é a defesa das prerrogativas do ser secreto contra a
vulgaridade de um universo aparente e público, mas que provo­
ca o desespero se não ultrapassa a si mesma rumo ao interior e
se não descobre a solidão universal do espírito que permitirá ao
indivíduo enriquecer-se indefinidamente e comunicar-se com
todos os outros indivíduos, ao convidá-los, por sua vez, à mes­
ma superação. Nessas duas formas - como pudor ansioso do in­
divíduo que se sabe único no mundo e como conduta espiritual
pela qual me separo do mundo para me unir a Deus -, a solidão
deve ser mantida como a própria condição de nossa salvação inte­
rior. Mas será possível recear que ela esteja ameaçada? Villiers de
l'Isle-Adam dizia: "Sempre haverá solidão para os que são dignos
delà'; é que a solidão de cada um é justamente a que ele merece.

106 1 O Mal e o Sofrimento


2. A UNIÃO

1. A consciência aberta

É a consciência, ao menos aparentemente, que faz de cada in­


divíduo um ser invisível e solitário, pois ela é recolhimento em si e
cerco perfeito. Meu corpo, ao contrário, parece dar testemunho de
mim: é a figura de meu ser que é entregue aos outros seres; mos­
tra-lhes o que sou; é ele que, pela palavra e pela ação, me permite
alcançá-los e constituir sociedade com eles. É nele que é preciso
buscar os signos imperfeitos da realidade secreta que trago em
mim, que sou eu, e pela qual escapo ao olhar mais agudo.
No entanto, também é verdade que este corpo que faz parte do
mundo, e que oferece aos outros seres o espetáculo do que sou, é
ao mesmo tempo o que me encerra em mim e me individualiza;
já a consciência, que há pouco parecia tão fechada, sempre busca
ultrapassar os limites que o corpo lhe impõe, a fim de abarcar em
si a totalidade do mundo. É meu corpo que é só. É ele que faz de
mim um indivíduo. É ele que recria perpetuamente essa forma
de solidão na qual me comprazo e que é o egoísmo, enquanto é
próprio da consciência sofrer por isso e esforçar-se incessante­
mente por rompê-la. É por minhas ligações com meu corpo que se
forma em mim essa sensibilidade individual que não poderia ser
compreendida sem ele, que ninguém além de mim pode penetrar
e que também confere a todos os movimentos do pensamento e
do querer um eco inimitável que sou o único a perceber. E é ad­
mirável que o mesmo corpo que por sua superfície quase não é
meu e pertence aos outros mais que a mim possua, no entanto,
uma palpitação íntima e misteriosa, sem a qual não se concebe
de que maneira os atos mais profundos da consciência poderiam
também ser-me atribuídos e até dizer-me respeito.
O corpo decerto oprime a consciência, mas como todo instru­
mento que restringe a atividade e do qual, no entanto, ela não pode
prescindir. Constitui em si mesmo um instrumento vivo, que já
simboliza a atividade que ele está destinado a servir. De fato, não
basta dizer que é inteiramente visível por seu aspecto exterior, e
inteiramente secreto por suas reações mais íntimas; pode-se tam­
bém observar nele uma dupla tendência, a de se fechar em si, como
se vê no sofrimento, ou a de se lançar no mundo, como se vê nos
menores movimentos da mão e do olhar. Consideremos apenas o
olhar, que já é uma vitória do corpo sobre seus próprios limites,
uma saída de si pela qual é o mundo, e já não o corpo, que se torna
meu horizonte: esse mundo que abraço com o olhar é o mesmo
mundo que os outros contemplam; é composto dos mesmos obje­
tos, nos quais os mesmos olhares se cruzam e se comunicam.
Essa comparação, aliás, é singularmente instrutiva. Não é em
vão que falamos de uma luz que ilumina a consciência. Bem sabe­
mos que o próprio dessa luz é permitir ao eu descobrir o não eu e,
por conseguinte, abrir-se cada vez mais ao conhecimento de uma
realidade que é revelada a todos. A partir daí, se o papel da matéria
é separar os seres uns dos outros, o papel da consciência é uni-los,
fazendo desse mesmo obstáculo o meio de sua união; sua essên­
cia própria é ser capaz de penetrar em todas as partes. É ela que
cria em torno do corpo o espaço luminoso no qual se envolvem ao
mesmo tempo o olhar, o movimento e o desejo. Nesse espaço, todos
os seres estão situados, como nós; em torno de cada um se forma
um círculo de claridade cuja amplitude se mede pela potência de
seu pensamento e pela pureza de sua intenção. Todos esses círculos
se cruzam: possuem certas zonas comuns, que representam, por
assim dizer, os meios dos quais as diferentes consciências dispõem
para entrar em relação entre si, e certas zonas próprias de cada um,
que demonstram a irredutibilidade de cada consciência particular.

\�i \ G M.a\ e o �oíúmen\o


Assim, é a consciência o que permite ao eu sair de si e comunicar­
-se com outro eu, por intermédio de uma realidade que ambos
percebem, mas que não pertence propriamente a nenhum deles:
os objetos que preenchem o espaço, as lembranças que povoam
o tempo, as ideias que habitam a inteligência formam entre todos
os seres os veículos de uma comunicação viva que sempre deve
ser refeita e sempre está em risco. Obriga cada um deles a uma
apropriação pessoal do objeto, da lembrança e da ideia, que jamais
coincide exatamente com a de outro e deve ser confrontada com
ela para provar-se, definir-se e enriquecer-se indefinidamente.

2. A saída de si

No entanto, esses são apenas meios que as consciências em­


pregam quando buscam vencer sua solidão e interpenetrar-se.
Mas será que o conseguem de fato? E será que cada uma delas
pode fazer algo além de reconstruir com seus recursos pessoais,
por analogia, o que ocorre na outra? Será que cada uma penetra
verdadeiramente o coração da solidão alheia, para se comunicar
com ela e, por consequência, aboli-la?
É indiscutível que esse é o desejo profundo de nosso ser espiri­
tual. A potência que exercemos sobre as coisas, por si só, nunca é
capaz de nos satisfazer; mas o menor contato real que experimen­
tamos com a vida íntima de outro ser basta, de imediato, para nos
comover. É aí, com efeito, que nosso destino se implica, implican­
do indivisivelmente o do outro, do qual não pode dissociar-se, e
fixando com esse destino alheio suas relações eternas, segundo
o grau de egoísmo ou de amor. Em presença de tal fim, a alegria
que pode proporcionar-nos o conhecimento ou a posse das coisas
materiais parece singularmente frívola. Aqui, em contrapartida, o
mundo dos fenômenos é atravessado e a própria essência do real
se torna subitamente presente para nós, numa revelação que é,
ao mesmo tempo, uma criação. Enquanto permanecemos na so­
lidão, podemos temer que o universo seja um bloco de que não
somos senhores; mas, assim que uma comunhão se estabelece en­
tre nós e outro ser, o universo se torna uma imensa interioridade

2 A
- União / 109
que súbito nos é aberta e na qual jamais cessamos de fazer novos
progressos. Assim se explica que seja próprio da consciência ser
impelida por um movimento infinito, o que só pode assumir p ara
ela um sentido concreto e vivo se ela encontra em todas as par­
tes novos motivos de amar, isto é, se ela sempre encontra, em seu
caminho, outras consciências que a fecundam ao mesmo tempo
que a multiplicam. De fato, a impossibilidade em que estamos de
nos bastar não vem, como se acredita, desse sentimento de nossa
limitação que faz com que busquemos ultrapassar incessante­
mente nossos próprios limites, como se quiséssemos ampliar-nos
indefinidamente e tentar, enfim, igualar-nos ao Todo em que so­
mos chamados a viver. Não é engolfando o Todo em sua própria
natureza que o ser conseguirá romper sua solidão. E Deus mesmo,
fora do qual ser algum subsiste, e que concede a cada um a pró­
pria força que o anima, não pode ser considerado como o único
ser que se basta a si mesmo senão porque chama incessantemente
à existência uma infinidade de outros seres, aos quais entrega em
partilha a totalidade de sua essência e com os quais forma uma
sociedade real, na qual já não há diferença entre dispor de um
poder e pô-lo em obra, receber um dom e devolvê-lo.
Há, portanto, um preconceito evidente nos movimentos da
cupidez e da ambição pelos quais buscamos aumentar incessan­
temente nosso império sobre as coisas ou dilatar indefinidamente
a riqueza de nossa consciência separada. A solidão é até mais di­
fícil de carregar quando o ser desfruta de mais recursos que lhe
pertencem exclusivamente e quando não lhe falta nenhum dos
objetos aos quais o desejo costuma apegar-se. Quando a consciên­
cia já não encontra nada que desejar, experimenta a saciedade e
o desprezo por todos os bens que possui; sente-se mais separada
deles agora que dispõe deles do que antes, quando era destituída
deles. Quanto mais plenamente satisfeita, mais experimenta sua
penúria. É que nenhum ser pode realizar seu destino açambar­
cando, para encerrá-la em si, toda a riqueza do mundo, mas ape­
nas saindo de si, a fim de realizar fora de si uma ação que o liberte,
a fim de encontrar em torno de si outros seres que possam acolhê­
-lo. Minha existência só tem sentido a meus próprios olhos se, em
vez de se sentir entregue a si mesma, descobre seu parentesco com
outras existências às quais poderá unir-se e, graças a essa união,

l iO J O Mal e o Sofrimento
encontrar o princípio comum que proporciona a todas elas o im­
pulso e a vida. Assim, já não lhe faltará apoio; ela já não estará
separada do mundo por uma barreira de trevas. Perceberá que é
a um só tempo capaz de compreender e de ser compreendida. Ela
própria se tornará um meio a serviço de um fim que a ultrapassa,
e ao qual poderá consagrar-se e sacrificar-se.
Por conseguinte, nenhuma comunicação com outro deve ser
desprezada. Quando dois homens começam a descobrir entre si
um pensamento, uma emoção ou uma intenção que lhes é co­
mum, não sentem apenas uma semelhança fraterna: reconhecem
a identidade do princípio que os ilumina e do fim para o qual,
sem o saber, já colaboravam. É Deus que de súbito lhes mostra sua
face, pois só ele pode ser testemunha e fiador dessa união.
O homem que vive isolado no meio dos outros homens man­
tém uma existência secreta que escapa aos olhares de todos e não
passa de um sonho subjetivo: desse modo, como só ele pode pe­
netrar aí, ele naturalmente se habitua a olhar o mundo das coisas
passíveis de ser vistas e tocadas como ao único mundo real, em­
bora esse mundo, que é igualmente dado a todos, seja, no entanto,
estranho a cada um. Mas quando outra consciência nos dá o con­
tato de sua presença, quando seu olhar nos penetra e o nosso a pe­
netra, então a realidade das coisas materiais recua e se desvanece;
o sonho que trazíamos em nós adquire de súbito uma extraordi­
nária consistência; já não está exclusivamente em nós desde que
alguém nos mostrou que ele podia ser recebido. Por uma espécie
de paradoxo, em vez de nos encerrar em nós mesmos, esse sonho
nos faz sair de nós mesmos. Torna-se o verdadeiro mundo, onde
já não encontramos objetos que nos resistem, mas vontades que
respondem a nós, onde tudo é a um só tempo transparente, ativo
e comovente, onde só se podem então perceber significações que
se formam ou intenções vivas que se associam.
Por isso, nenhuma comunicação verdadeira, por mais tímida
que seja, é insuficiente. Ela suprime a própria possibilidade desse
desprezo que, desde que nasce e por mais imperceptível que possa
ser, já nos relega à solidão. De fato, ela é sempre uma abertura a
um infinito atual que a consciência já pressente, e que não cessa
de nutrir a esperança da consciência e de renovar seu movimento.

2 - A União l 111
Se ela for sincera, se ocorrer pelo interior e sacudir o próprio co­
ração da pessoa, já será um dom total, um acesso ao único mundo
que seja real, um mundo interior que as aparências manifestam, e
não um mundo exterior que elas dissimulam.

3. A independência entre os seres

De modo geral, o que conduz os filósofos a pensar que as cons­


ciências estão fechadas umas para as outras é a crença de que eu
não poderia atravessar o intervalo que me separa de outro ser
senão pelo conhecimento. No entanto, como foi reiteradamente
mostrado, só existe conhecimento do objeto, e por intermédio de
uma ideia que não pode confundir-se com o próprio ser e que, por
conseguinte, me distancia dele decisivamente no exato momento
em que o representa para mim. Isso é muito bem sentido quando
se considera o olhar pelo qual outro ser tenta conhecer-me. Esse
olhar costuma trair uma curiosidade indiscreta e até malvada, em
vez de um desejo de se comunicar comigo; relega-me ao plano dos
objetos que ele analisa, a fim de se apoderar deles e dominá-los.
Diante desse olhar, só penso em me esquivar; ele sempre produz
em mim uma ferida que obriga minha consciência a fechar-se.
O retrato que todos os moralistas franceses fazem do homem
só é tão cruel por ser efeito de uma lucidez puramente intelectu­
al, pela qual logram destrinçar com assombrosa precisão o que o
indivíduo menos sutil esconde de si mesmo. Tal atitude impede
a comunicação, em vez de propiciá-la; não permite alcançar em
outro ser senão um egoísmo separado. Regozija-se de desvendar
os meios secretos pelos quais ele tenta enganar; é incapaz de apre­
ender e refreia, em vez de suscitar, o impulso pelo qual cada um de
nós sempre tenta vencer ou superar esse egoísmo. A comunhão,
ao contrário, põe em presença mútua os próprios seres por uma
interpenetração de suas respectivas vidas, e não apenas de seus
respectivos pensamentos. Mas compreende-se sem dificuldade
que ela não é possível quando cada um se põe diretamente adian­
te do outro, em vez de primeiro se voltar, junto com ele, para a
fonte de sua inspiração comum.

112 1 O Mal e o Sofrimento


Decerto não se está totalmente equivocado ao pensar que eu
só poderia captar a natureza de outro ser transformando-me nele,
realizando, assim, um início de metamorfose. Mas tal ideia não
deve ser levada muito longe; pois essa metamorfose é, ela própria,
uma obra da imaginação: aliena-me de mim mesmo no momento
em que penso que ela me une ao outro. Toda verdadeira união
deixa subsistir a independência entre dois seres: ela quer essa
independência, sem a qual suas respectivas vocações pessoais e
mútuas se perderiam, em vez de ser fundadas e justificadas. Se­
ria falso, portanto, pensar que a comunhão entre as consciências
suprime tal diversidade. Poder-se-ia dizer, em vez disso, que ela
leva essa diversidade a seu extremo e lhe confere sua verdadei­
ra significação. Nunca me sinto mais eu mesmo do que quando
minha ação se concilia com a sua, sem, no entanto, se assemelhar
a ela, nem se confundir com ela. É um erro muito grave acredi­
tar que, ao abdicar dessa originalidade individual que me atribui
uma missão única no mundo, conseguirei aproximar-me de você
num âmbito anônimo, feito de repetições e de imitação. Para estar
unido a você, para compreendê-lo, para ajudá-lo, preciso sentir
que sua vida lhe pertence, que ela não é uma réplica da minha,
que ela se destaca em outro ponto do tronco comum da existência,
mas é percorrida pela mesma seiva.
Além disso, eu só poderia comunicar-me com você pelo co­
nhecimento se a realidade que é você mesmo já estivesse formada
e, por assim dizer, acabada. Mas, quando estamos um diante do
outro, os sentimentos que experimentamos ultrapassam o puro
desejo de nos conhecer um ao outro. Existe de você para mim e
de mim para você uma espécie de chamado mútuo, uma dupla
interrogação sobre a significação da vida, a esperança de uma re­
velação recíproca que nos será dada, a expectativa de um socorro
miraculoso que ofereceremos um ao outro. Mesmo nas relações
mais sinceras e mais profundas sempre subsiste, é verdade, uma
hesitação, uma desconfiança, que não deixam de ser acompanha­
das da ideia subjacente de que estas serão desmentidas. Isso prova
que, se a criação de um ser é a possibilidade que lhe foi dada de
criar-se a si mesmo, cada um de nós sente muito bem que só pode­
rá criar-se com a colaboração de todos os seres que são postos em
seu caminho. Só existe comunhão no exercício de uma atividade a

2 A União l 1 13
-
um só tempo pessoal e comum. Toda comunhão é uma cocriação
de si e do outro, pelo outro e por si indivisivelmente.

4. A realização recíproca

Assim, as diferentes consciências são capazes, graças a uma


espécie de intermediação mútua, de reconhecer em cada uma
delas uma infinidade de potências não exercidas. De fato, ne­
nhuma potência existente em nós pode revelar-se a nós se não
for sacudida por uma solicitação externa. Pode-se até dizer que
não busca, como se acredita, abolir-se na posse de um fim que a
satisfaça por completo, mas ressuscitar incessantemente graças
ao contato de uma presença que a arranca do mundo da pura
virtualidade. Ora, se todo objeto desempenha esse papel com
relação à faculdade de conhecer e de agir, o que dizer de outra
pessoa, com quem o mero encontro, assim que consigo superar
as aparências corporais, já basta para me comover? Acontece, é
verdade, que ela desperte em mim todos os tormentos do amor­
-próprio e da inveja se me comparo a ela no que respectivamen­
te possuímos; mas ela deve engendrar promessas infinitas de
força e de alegria se penso naquela inevitável solidariedade que
obriga todos os seres a formar por si mesmos seus destinos, pe­
los dons que recebem e pelos dons que fazem. Existe em mim
(quando estou só) apenas um feixe de potências que, para se
exercer - algo de que sempre me esqueço - precisam de um
convite e de uma ajuda. Ser solitário é ser incapaz de exercê-las,
porque elas não recebem nenhum chamado. Ora, esse chamado
é algo que elas só podem receber de outro ser; e não posso res­
ponder sem que se produza, entre esse ser e mim, uma comu­
nhão que, em vez de limitar nossa independência, faz com que
ela desabroche numa colaboração consentida e amada. E ela tal­
vez se realize em sua forma mais espiritual e mais pura quando
a presença sensível já não nos é concedida, como na morte, ou
jamais nos foi dada, como em certas leituras, nas quais parece
abolido esse sentimento de separação que o corpo sempre con­
tribui para manter entre os seres mais unidos.

1 14 I O M� e o Sofrimento
Assim, todos os seres têm um destino por realizar; em cada um
deles se encontram as mesmas potências, ainda que desigualmen­
te desenvolvidas. A beleza do mundo, a unidade admirável que
reina nele decorrem precisamente do fato de que cada indivíduo
é para todos os que encontra um mediador. É por isso que, com
respeito a todo ser diante de mim, sempre estou em atitude de es­
pera e de demanda, ansioso, aliás, por dever responder à espera
e à demanda que já desperto nele. Isso já é ultrapassar a solidão.
Não que ela jamais possa ser definitivamente superada, pois é pre­
ciso que eu possa, a cada instante, vencê-la e recair nela. E toda
comunhão consiste, de fato, em duas solidões unidas. Mas a con­
fiança que alguém deposita em mim obriga-me a me elevar aci­
ma de mim mesmo para não decepcioná-la. O sentimento de que
cada um de nós pode proporcionar ao outro um benefício que não
ousamos recusar-lhe é a causa de nosso mútuo desenvolvimento.
Os indivíduos cessam de estar separados assim que percebem esta
lei fundamental da consciência: estamos fadados à solidão quando
ficamos reduzidos ao estado de potências puras, mas essas potên­
cias são algo que só podemos exercer uns pelos outros.
O problema da comunhão envolve o da consciência inteira.
A origem da crença de que a consciência sempre permanece
enclausurada em si mesma está em definir a consciência como
simples poder de conhecer as coisas pelas ideias; desse modo se
compreende bem que, seja qual for o volume de ideias que a cons­
ciência seja capaz de conter, as ideias permanecerão suas e ela
jamais sairá de sua própria esfera. Mas, falando rigorosamente,
já não é a ideia que é nossa, mas apenas o pensamento que temos
dela; e por meio dele cada consciência participa de um mundo
que é comum a todas, no interior do qual se pode distinguir uma
infinidade de perspectivas particulares, mas convergentes. Assim,
a inteligência abre, diante de todos os seres, um campo infinito
em que se descobrem e se ramificam sem cessar novas vias de
comunicação que os convidam a se aproximar e a se unir.
Mas, além disso, no ato pelo qual penso minha própria so­
lidão eu a ultrapasso. Ao circunscrever meu ser próprio, situo­
-me num ser incircunscrito; mas aí situo você também. Assim,
minha consciência individual e a sua haurem a mesma luz de

2 A União
- l 115
uma consciência universal, que é o meio comum onde elas
prosseguem sua vida própria, onde se separam e onde se unem:
é nele que penso meus limites e os seus, e que nós dois pode­
mos ultrapassá-los.
Tal comunicação não basta, porém, para criar entre dois se­
res uma comunhão verdadeira: de fato, a comunhão verdadeira
só pode residir na vontade, pois a vontade busca o ser por trás
da ideia e jamais se serve da ideia senão como meio. Não se pode
negar, quanto a ela, que seja uma saída de si: em sua forma mais
elevada, ela é criação, isto é, generosidade pura. Mas o único ter­
mo digno dela é outra vontade que, quando, por sua vez, se livra
do egoísmo, comunga com a primeira no exercício de uma ativi­
dade.que tem a mesma fonte e o mesmo fim, que é a um só tempo
pessoal e recíproca, e que sempre confere à consciência o impulso
interior que chamamos amizade ou amor. Cada consciência não
para de oscilar entre o egoísmo e o amor: mas o primeiro a encer­
ra em sua miséria, não em sua riqueza, ao passo que o segundo a
liberta de toda propriedade particular, para lhe dar a posse de um
bem infinito do qual lhe é impossível desfrutar sem compartilhar.
É por isso que, quando se estabelece, a comunhão possui valor
por si mesma, que ela não extrai em absoluto do valor próprio dos
indivíduos que comungam. É preciso até dizer o contrário: a saber,
que cada indivíduo recebe o valor que lhe é próprio justamente da
comunhão à qual ele aceita se abrir. E, ao que parece, quem mais
dá é que mais recebe: isso porque, para a consciência, não existe
graça mais perfeita que a que a põe em condições de agir, isto é,
de oferecer. Assim, quando estou mais próximo de você, sinto que
seu ser nasce em mim, mas se desenvolve em você; não existe co­
munhão mais estreita que a que, no mesmo momento, lhe dá um
sentimento idêntico com respeito a mim.

5. O despojamento do individual

Ser capaz de comungar com os outros seres é ser reduzido a uma


atividade perfeitamente nua e despojada que, arrancando-nos

1 16 1 O Mal e o Sofrimento
sempre de nós mesmos, nos dá acesso à totalidade do real, da qual
a existência individual nos havia primeiramente separado. É reen­
contrar em si a fonte profunda da vida e fazer com que os outros
a encontrem. É haver renunciado a tudo o que nos separava deles,
isto é, a todos os objetos privilegiados de nosso apego, a todas as
vantagens materiais ou individuais, a todas as emoções demasia­
do delicadas em que nosso amor-próprio podia comprazer-se.
Esses são estados ou coisas que apenas nos acorrentam, quando a
questão, ao contrário, é nossa libertação. Por isso, o corpo, que nos
pertence mais estreitamente que qualquer outra coisa no mundo,
e somente a nós, é o princípio supremo de todo fechamento, de
toda separação e de toda solidão: esse, ao menos, é seu papel em
todos os que fazem dele o objeto e não o veículo de sua atenção
e de seu amor. Mas é preciso ir mais longe, pois bem sabemos
. . .

que Jamais consegmremos comungar com um ser que reserva e


guarda para si a menor parcela do real. Não que lhe peçamos que
a compartilhe conosco, pois é dele, e não dela, que precisamos. E
só podemos alcançá-lo se ele se oferecer a nós tal como é, ou seja,
'Sem interesse nem passado, pronto a cada instante a se sacrificar
por inteiro, para renascer inteiramente.
Assim, todo homem que ainda pretende guardar algo somente
para si forja para si mesmo sua própria solidão. É preciso estar
desprendido de tudo e, por conseguinte, conhecer essa extremi­
dade da pobreza na qual se desvia o olhar de si - a fim de abri-lo
para a totalidade do mundo, com um coração inteiramente puro
e mãos perfeitamente livres - para conhecer essa extremidade da
riqueza que nos permite, a cada instante, ao abolir em nós quais­
quer segundas intenções, entrar de fato em relação com todos os
seres que Deus põe em nosso caminho.
O segredo de cada ser impede que algum dia ele venha a se
tornar um objeto; mas o universo inteiro não passa de um imen­
so segredo, no qual nosso segredo próprio nos faz entrar. Assim,
poder-se-ia dizer que os homens permanecem separados na exa­
ta medida em que, ao se recolher em si mesmos, não estabelecem
contato senão com a parte individual de seu próprio ser, isto é,
com os frêmitos de seu corpo e de seu amor-próprio; mas, se esse
recolhimento se aprofunda, vemos tais frêmitos apaziguar-se; o

2 - A União l 117
intervalo que opunha esses dois seres é preenchido, e estabelece­
-se uma comunhão entre eles, fundada na presença reconhecida e
vivida de um princípio idêntico que os sustém e anima.
A amizade com tudo o que vive é a um só tempo o dever de
cada ser e seu próprio ser. É Deus mesmo que se torna presente
ao ser e que lhe desvenda, juntamente com o princípio que o faz
viver, o fim que suscita sua atividade e o obriga incessantemente
a ultrapassar-se.

1 18 1 O Mal e o Sofrimento
3. A INFLUÊNCIA

1. A presença de todo pura

Com muita frequência se acredita encontrar, ali onde se


trata apenas de uma influência mútua entre os seres, uma co­
munhão entre eles. Mas a influência pode ser o contrário da
comunhão: pode subjugar os seres uns aos outros, em vez de
livrá-los de seus limites e permitir-lhes ultrapassá-los. Alguns
dirão, sem dúvida, que é quando ela consegue fazê-lo que al­
cança sua forma mais perfeita: então, com efeito, ela se torna
indissociável da comunhão. Esse é, por assim dizer, o ápice da
influência, cujas formas inferiores é preciso saber discernir,
pois elas ameaçam fazer-se passar por comunhão e impedi-la,
em vez de produzi-la.
A palavra influência, de uso tão corrente, tem, contudo, uma
ressonância misteriosa e quase mística. Não se admite facilmente
a influência sofrida nem a exercida, embora por vezes se experi­
mente reconhecimento pela primeira e orgulho pela segunda: é
que sempre existe na influência, aparentemente, uma espécie de
atentado à independência da pessoa e, por conseguinte, uma ví­
tima e um culpado. Para os antigos, a influência designava a ação
que os astros exerciam em nossa vida; não era possível defini-la
nem escapar dela; ela fixava o sentido de nosso destino. No en­
tanto, os astros só estavam lá para fazer as vezes das pessoas, e
serviam para representar o caráter a um só tempo obscuro e irre­
sistível das influências que emanam delas. A influência só é real
quando é ignorada tanto por quem a exerce quanto por quem a
recebe: forçosamente, é sempre involuntária. Não podemos expli­
cá-la por razões, pois ela contradiz as mais verossímeis. Penetra
regiões ocultas em que nem sempre é reconhecida; e, onde parece
mais visível, não tem, por vezes, profundidade alguma. Aquele de
quem parece se irradiar não raro apenas reflete a que ele próprio
recebeu. A influência é sempre frágil e receia uma luz viva demais:
quando se começa a tomar consciência dela, começa-se também a
sair de seu domínio.
Na realidade, o problema da influência nos põe em presença de
uma espécie de contradição, cuja origem se percebe muito bem.
Isso porque as influências mais verdadeiras nos revelam a nós
mesmos: longe de provocar em nós o sentimento de uma sujeição
a outro ser ou de nos convidar a imitá-lo, livram-nos de súbito de
todas as imposições e nos proporcionam a consciência de nossa
autêntica originalidade. Assim, não podemos reconhecê-las senão
para negá-las.
Nem sempre são os homens que mais admiramos e amamos
que exercem sobre nós influência maior. No entanto, o aconteci­
mento mais significativo para a maioria de nós quase sempre foi
o encontro com outro homem que, de súbito, deu à nossa vida
uma nova luz, mudou sua orientação e seu sentido, lhe assegu­
rou um equilíbrio e, por assim dizer, uma inflexão que ela não
soubera obter até então. Não é necessário, para que esse resul­
tado seja alcançado, que tenhamos convivido com ele em longa
familiaridade: um contato muito breve pôde bastar-nos. Sucede
que sejamos capazes de nomear o ser que soube assim imprimir
à nossa vida sua curva decisiva; mas podemos tê-lo esquecido.
Certas influências se assemelham a uma impregnação, e, quan­
to mais insensíveis, mais decisivas. Ficaríamos surpresos, por
vezes, se nomeassem diante de nós quem as exerce. Elas pare­
cem confundir-se com o jogo das forças naturais. A influência
de um livro, a de uma pessoa falecida cuja lembrança e cujo
exemplo guardamos não raro têm mais perfeição e força que
a de uma pessoa que vive perto de nós, cujo encanto nos seduz

120 J O Mal e o Sofrimento


e cuja autoridade nos impele. Seria um grande equívoco ver na
influência apenas uma espécie de eficácia causal, produzida por
palavras ou ações; palavras e ações são apenas seus instrumen­
tos e seus signos. A influência verdadeira é a da presença de todo
pura, e tem alcance metafísico: é uma descoberta do próprio ser
pelo contato de outro ser.
Assim que tomamos consciência dela, a influência começa a
se dissipar, pois nos desvia de nós mesmos e atrai nosso olhar
para um ser distinto de nós, cuja vida parece invadir-nos e subs­
tituir a nossa. Dispomo-nos, então, a nos defender. É quase im­
possível reconhecer a influência que sofremos sem nos afligir
com isso. Quem procura e ama essa influência a cria com forças
que lhe pertencem autenticamente; quem a ratifica a julga e, por
conseguinte, a domina. Mas quem suspeita que ela age sobre sua
pessoa malgrado seu sente de súbito que sua consciência e sua
liberdade estão em perigo; revolta-se a um só tempo contra ela e
contra sua própria fraqueza. Teme haver abdicado, haver cedido
a outro a existência cuja responsabilidade e cujo encargo eram
seus. A consciência mais vasta é a mais acolhedora: realiza, com
respeito a todos os seres que encontra em seu caminho, um ato
de confiança que já é um dom dela mesma. Por isso ela corre o
risco de se deixar surpreender: acredita, por vezes, que se oferece,
quando se deixou raptar.
As influências mais puras e mais benfazejas ·não são as que
nos dão menos preocupação: a facilidade, a alegria com que ce­
demos a elas nos mostram, no fundo de nós mesmos, uma es­
pécie de passividade complacente, uma sugestão diante da qual
nos tornamos dóceis. Por vezes é a presença alheia o que desco­
brimos em nós, e não a nossa. Não podemos entregar a ninguém
nosso destino e nossa conduta. É belo que, ao perceber a vocação
alheia, percebamos a nossa: mas toda atividade de imitação ou
de substituição arruína a alma que ela acredita edificar. Por isso,
existe um drama, o da influência que ora nos devolve a nós mes­
mos, ora nos retira de nós mesmos; ora se apodera de nós de
uma só vez, ora se insinua em nós por insensíveis toques; ora
permanece ignorada, sem nos sujeitar, ora penetra a consciência
e de imediato a divide e perturba.

3 A Influência j 121
-
2. O prestígio

Existem, portanto, diferentes graus de influência: no grau mais


baixo, dois seres estão em presença um do outro e agem um so­
bre o outro pela parte puramente individual de sua natureza. Um
deles possui sobre o outro um prestígio que se impõe. O motivo
desse prestígio não intervém aqui e pode ser o mais nobre ou o
mais vil: a única coisa que conta é uma relação entre forças, que
faz com que uma atividade mais intensa, ao encontrar diante de si
uma atividade mais fraca e que lhe cede facilmente, suprima sua
independência e a arraste atrás de si.
No prestígio individual, a influência é unilateral; produz-se
sempre no mesmo sentido: é sempre o mesmo que a impõe e o
mesmo que a recebe. É ora ignorada e sofrida, ora aceita e amada.
É a marca de certa potência daquele que a exerce, mas nem sempre
de uma superioridade real. Isso porque encontramos todos os dias
seres superiores a nós que não exercem sobre nós ação alguma,
e outros seres que valem menos que nós, cujo prestígio sofremos
sem conseguir defender-nos. O prestígio pressupõe, no entanto,
certa correspondência entre os seres: só pode mostrar-se sensível
a ele quem sente em si um vazio interior que alguém vem preen­
cher, um chamado a que alguém responde, ou apenas o despertar
de certa emulação admirativa, pela qual busca assemelhar-se ao
objeto que o seduziu. Isso é, ao mesmo tempo, uma demonstra­
ção de humildade, um desafio natural diante das próprias forças
e um movimento da vaidade e do amor-próprio, que se dispõem a
igualar-se, ao menos em aparência, àquele que os ultrapassa.
E mais: o homem isolado hesita diante de seus pensamentos
mais secretos; não ousa acabar de fazê-los seus. Precisa ser tran­
quilizado quanto a eles, encontrar à sua volta alguém que os iden­
tifique e tenha coragem de assumir a responsabilidade por eles.
Não existe homem cuja consciência não tenha sido atravessada
por certas claridades, certos desejos de que não ousou apropriar­
-se; para isso precisaria de uma espécie de excesso de intimida­
de consigo mesmo de que era incapaz, o que tornava todos esses
estados suspeitos. Mas o prestígio de um homem ou de um autor

122 1 O M� e o Sofrimento
de renome lhes dará de súbito um valor inesperado, que por um
momento lisonjeará seu orgulho. Essa fascinação material, contu­
do, não o transforma em profundidade.
A influência só pode nascer quando encontramos fora de nós
não a imagem fiel do que somos, mas o remate de uma tentativa
que nós mesmos começamos logo a esboçar. Sucede porém que,
ao reconhecermos que ela se rematou alhures, não raro acredita­
mos estar dispensados de rematá-la por conta própria. Assim, esse
mesmo acordo com quem age sobre nós é nocivo para nós, em vez
de nos servir: tal influência, ao contrário da comunhão, em vez de
desenvolver as tendências existentes em nós, cria em nós um si­
mulacro de nosso próprio ser. No prestígio, é sempre o indivíduo
que se mostra. É sempre ele que é procurado. Por isso, ele sempre
me parece excepcional e único, diferente de todos os outros e di­
ferente de mim, alguém que ultrapassa a eles e a mim, que realiza
sem esforço tudo o que desejo e que amo, diante de quem per­
maneço impotente, alguém que possui uma riqueza da qual não
paro de haurir, que suscita todos os meus desejos e se adianta a
todos eles. A qualidade do que ele nos proporciona logo se torna
indiferente, pois nos apegamos a ele pelo que ele é e não pelo que
nos oferece. Como seria possível indagar se o que vem dele é um
bem, já que, a nossos olhos, um bem só é um bem porque provém
dele? E em pouco tempo nos tornamos cegos às suas disposições
espirituais mais profundas, que não despertam em nós nenhum
impulso capaz de responder a elas. O espírito crítico é destruído:
a consciência se vangloria de seu apagamento e de sua docilidade.
No entanto, ela não pode invocar o exemplo do amor que, ele tam­
bém, mede o valor dos dons pelo próprio ser que os dá, mas funda
a pessoa em vez de aboli-la, e sempre restitui o cêntuplo.
O prestígio intelectual é aquele que exerce em nós o maior fas­
cínio. Não há deslumbramento que possa superar o do surgimento
em nós de um pensamento que não provém de nós e, no entanto,
torna-se nosso assim que outro ser consegue suscitá-lo em nós
pela magia da palavra. Por isso, é difícil pensar diferentemente de
quem nos ensinou a pensar: nos homens mais maduros se encon­
tram certas formas de pensamento que lhes foram impostas por
seu primeiro mestre. Também neste caso é quase impossível levar

3 - A Influência l 123
em consideração a verdade, independentemente de quem a ensi­
na: e a aderência da verdade à pessoa com frequência nos conduz a
submeter-nos a uma autoridade externa, em vez de nos convidar a
aprofundar as razões pessoais de nosso próprio consentimento. Pois
nenhuma proposição pode ter o mesmo preço para nós segundo seja
expressa pela boca de um homem que admiramos ou pela boca de
alguém que nos é indiferente. Seguramente, com efeito, se a verdade
não é um objeto, é então inseparável da própria consciência que a
concebe e sempre condizente com ela em valor: assim, as mais belas
formulações assumem o aspecto mais trivial, e as mais comuns uma
nobreza singular, conforme a qualidade da alma de quem as profere.
Mas sucede que o prestígio, ao se ligar à aparência da pessoa mais
que à pessoa em si, nos esconda a fonte pessoal de onde a verdade
deve jorrar; ele a esgota em nós; só deixa subsistir uma forma que
nos deslumbra e que nos contentamos em reproduzir.

3. A influência individual

Muitos homens consideram a influência que exercem sobre al­


guém como o maior de todos os seus bens, como um bem diante
do qual todos os outros empalidecem, tanto os do conhecimento
quanto os da fortuna: nela está, para eles, a própria condição da
atividade e da alegria. É que nem nossa ação sobre as coisas nem
nossa ação sobre as ideias multiplicam nosso poder tanto quanto
nossa ação sobre os seres. O desejo de despertar o interesse alheio
pelo que pensamos e sentimos e de fazer os outros participar disso
pode depender de vários motivos, conforme busquemos em sua
aprovação uma confirmação de nossa vida própria, ou um prolon­
gamento e um aumento de nossa consciência individual, ou o des­
pertar de um movimento interior que os liberte dos obstáculos que
os freavam e lhes permita desenvolver sua personalidade. E esses
motivos diversos sempre se associam de alguma maneira, como se
vê no mestre que se regozija em ter numerosos discípulos.
Mas não há influência que não seja plena de perigos: não há
homem, mesmo quando busca dar aos outros o que tem de me­
lhor, que esteja absolutamente seguro de não querer reinar sobre

124 J O Mal e o Sofrimento


eles. Que dizer dos que detêm a menor parcela de autoridade tem­
poral e que se servem dela, não raro sem estar conscientes disto,
para obter um assentimento cuja aparência é muito fácil dar-lhes?
Os mais exigentes não se contentam com isso: reivindicam um
dom do coração, que é a única coisa no mundo que não se pode
reivindicar. Os mais delicados tremem diante da influência que
exercem assim que começam a suspeitá-la: põem-se a duvidar do
valor dos bens a que estão mais apegados no momento em que
veem os outros persegui-los por causa de seu exemplo.
Quanto àquele que se presta complacentemente à influência, na
maioria das vezes é para se desobrigar de uma iniciativa que não
tem coragem de exercer, para encontrar outro ser que agirá em seu
lugar e assumirá uma responsabilidade que ele próprio não tem
força para carregar, a fim de sentir a volúpia de ser atravessado
por uma força que o supera e parece elevá-lo, por assim dizer, aci­
ma de si mesmo. Uns procuram uma influência silenciosa e quase
insensível, na qual possam consentir com humildade, inocência e
doçura. Outros precisam de uma ascendência mais imperiosa e
brutal, que força todas as suas resistências e os arrasta apesar deles.
O perigo é sempre deixar sem uso uma atividade interior da qual
se desconfia, acreditando reanimá-la por uma atividade de substi­
tuição; é também buscar a si mesmo por meio de outro; é glorificar
o amor-próprio pela imitação, que não pode ser senão material, de
certas condutas que não têm lugar no curso natural de nossa vida.
O mais grave é que essa imitação pode ser espontânea e perma­
necer despercebida; ela então confere um ar de empréstimo a todo
o nosso ser. Insinua-se nas ideias e nos sentimentos e produz uma
sorte de admiração diante de nós mesmos, até mais fácil de expli­
car nesses estados que nos parecem ainda mais notáveis por não
nos serem totalmente familiares. No mundo secreto e movente da
consciência, que balança de precisão nos permitirá discernir o que
acreditamos experimentar do que experimentamos realmente?
Não percebemos em nós o que nos pertence de maneira mais ín­
tima: o que não é inteiramente nosso é o que retém nossa atenção
e capta nosso interesse. Mas esses sentimentos imitados aos quais
acreditávamos poder nos alçar nem sempre têm longa duração, e
por vezes uma crise de sinceridade é suficiente para dissolvê-los.

3 A Influência J !25
-
É próprio do prestígio criar entre duas consciências uma rela­
ção de causalidade comparável à que rege o mundo dos corpos.
Mas a lei da causalidade é inseparável da inércia; só intervém
entre as almas quando elas começam a se materializar. As comu­
nicações espirituais são de outra ordem: sempre suscitam a ini­
ciativa, em vez de aboli-la; excluem a necessidade e se reduzem a
um dom sempre renascente de luz e de amor.

4. A influência interindividual

Quando a influência, em vez de ser um efeito do prestígio in­


dividual, é recíproca e, por assim dizer, interindividual, é menos
notada, pois quase sempre é mesclada de simpatia, amizade ou
amor. Parece que implica, então, um entendimento e um duplo
consentimento em que a igualdade entre os seres se restabelece,
em que já não há lugar para força nem para surpresa. Não seria
isso supor que existe, então, um acordo real entre duas consci­
ências, que deve permitir-lhes comunicar-se? Cada uma delas
não encontrará na outra um prolongamento e uma ampliação
dela mesma? Assim, a única influência real e profunda não seria
a influência recíproca?
Não se poderia negar que existem em cada ser momentos
de inércia e esterilidade. Nem sempre estamos atentos aos de­
sejos presentes em nós, nem sequer aos objetos diante de nós;
e podemos estar, ao mesmo tempo, ausentes do mundo e de
nós mesmos. A consciência é débil e está sempre sob ameaça;
precisa encontrar em torno de si outras consciências que a des­
pertem, que sejam capazes de nela ressuscitar seus movimentos
mais familiares, mas que se amortecem com demasiada rapidez.
Assim, o estado natural de cada consciência é ser continuamen­
te, diante de todos os seres, a um só tempo ativa e passiva. Não
seria isso a demonstração de que uma potência idêntica anima
a todas elas, à qual buscam responder numa espécie de emula­
ção e cooperação? E, assim, essa forma de influência não reali­
zaria uma transição entre o prestígio individual e a comunhão
no mesmo ideal?

126 1 O Mal e o Sofrimento


No entanto, importa precaver-se contra certos perigos que lhe
são próprios, pois com frequência ela não passa de uma espécie
de complacência mútua dos indivíduos por si mesmos, que os
encerra em seus próprioslimites enquanto lhes dá a ilusão de ul­
trapassá-los. Sempre acreditamos que ela cria uma comunicação
real entre as consciências, por oposição ao prestígio, que só produz
uma ação inteiramente exterior e destrói a intimidade ou nos im­
pede de penetrar até ela. Mas sucede que tomemos por um vínculo
vivo entre duas consciências uma dupla imitação, pela qual cada
uma delas se fortalece em seu sentimento próprio e se tranquiliza
quanto à sua independência. Quando a influência é recíproca, não
tememos exercê-la nem sofrê-la; e os prejuízos opostos do pres­
tígio se acumulam: estabelece-se entre eles uma espécie de com­
pensação que os dissimula de nós. Mesmo quando essa forma de
influência é a expressão de uma simpatia espontânea e instintiva,
ainda imaginamos que resulte de uma escolha; que seja possível
interrompê-la; que contenha uma aceitação voluntária pela qual
nossa iniciativa se implica e repele toda coação. Mas isso nem sem­
pre é verdadeiro, pois todo desejo satisfeito e todo hábito exercido
também produzem na consciência aparências de liberdade.
Bem mais que isso: nessa ação mútua é cada indivíduo, toma­
do como tal, que desfruta com respeito ao outro de um privilégio
excepcional e inconteste. Ambos se procuram, apreciam viver um
perto do outro, julgar juntos das mesmas coisas, comunicar um
ao outro os sentimentos que experimentam. Desse modo acabam
por constituir uma sociedade fechada, que tende a se separar da
sociedade dos outros homens, em vez de servi-la. Essa sociedade
fechada obedece a leis próprias. Assume pouco a pouco uma for­
ma secreta, na qual todas as relações se transformam em alusões,
que sugerem a existência de uma comunicação evidente e tácita,
com respeito à qual é possível enganar-se porque sua realização
é negligenciada. É preciso dizer, por conseguinte, que, se os dois
seres entre os quais reina uma influência mútua permanecem um
diante do outro como indivíduos puros, se eles se deixam levar
apenas por essa simpatia natural e fácil que os une, se não bus­
cam superar-se, se se comprazem um no outro, mas apenas para
aumentar e multiplicar a complacência que cada um experimen­
ta por si mesmo, então todos os perigos do prestígio individual

3 - A Influência l 127
aumentam, em vez de atenuar-se. Pois cada um deles sai de si para
sofrer a influência do outro; mas, porque esse outro lhe devolve
sua imagem e exerce sobre ele uma ação na qual ele reconhece a
espontaneidade de seus próprios movimentos, vê-se que, quando
ele abdica, é em proveito de si próprio, mas de maneira que não
precisa assumir a responsabilidade por sua própria natureza e lhe
basta reconhecê-la na ação de uma força exterior a ele, à qual a
partir daí se entrega. Assim, experimenta uma dupla satisfação por
sentir que exerce e sofre uma influência que permanece a mesma:
suas démarches mais pessoais adquirem maior força e segurança
pela própria resposta que provocam, pelo sucesso que obtêm, pela
impressão que lhe dão de romper, enfim, as barreiras de sua so­
lidão. E, ao mesmo tempo, ele se sente dispensado do esforço de
sustentá-las e regenerá-las; basta-lhe, para que renasçam, que ele
se deixe levar por uma ação cujo toque se tornou familiar para ele
e que ele próprio já não precisa cumprir. Estabelece-se entre esses
dois seres uma sorte de negócio inconsciente, que anula qualquer
despesa onerosa demais, pois ambos experimentam prazer em re­
ceber aquilo que já lhes era prazeroso fazer com que fosse acolhido.
Assim, sempre subsiste na influência interindividual uma am­
biguidade que nos parece deliciosa; imaginamos que o prestígio
esteja destruído e, no entanto, experimentamos uma dupla satis­
fação: a de impor prestígio e a de ceder a ele. Em nossas relações
com outro, redobramos, ao dar-lhes mais amplitude e relevo, as
relações constantes que não param de se produzir entre a parte
ativa e a parte passiva de nós mesmos; e então temos a ilusão de
penetrar um mundo que ultrapassa nossos dois seres individuais
e lhes permite comunicar-se. Mas é preciso que a influência in­
terindividual nos conduza até lá; caso contrário ela não passa de
falsa aparência: aviva o amor-próprio, em vez de superá-lo; esmo­
rece a atividade, em vez de aumentar seu ímpeto.

5. A influência transindividual

Qualquer comunhão real entre os indivíduos só pode operar­


-se por uma mediação mútua. Esse é o grau mais elevado da

128 1 O Mal e o Sofrimento


influência. Nesse caso, os dois seres já não tentam aproximar-se
pela parte individual de sua natureza; tornam-se veículos de uma
atividade que os ultrapassa: um proporciona ao outro uma reve­
lação, mas recebe-a de novo ao vê-la acolhida. Cada um deles se
esquece de si, não em proveito do outro, mas na própria mensa­
gem que os une. O indivíduo se transforma em pessoa. Entra em
si mesmo, mas para logo sair; não percebe seus limites senão para
ultrapassá-los; descobre, enfim, sua vocação, mas que só dá sen­
tido à sua própria vida porque a insere no interior de um Todo do
qual ele faz parte e ao qual a partir daí se associa.
Essa terceira espécie de influência, que não vai de indivíduo a
indivíduo, seja no mesmo sentido, seja em sentido recíproco, mas
que revela aos indivíduos uma fonte universal de que cada um
haure a um só tempo a luz que o ilumina e a promessa de um
infinito desenvolvimento, essa influência, de que o indivíduo é
instrumento e não agente, pode ser denominada transindividual.
De certa maneira, realiza a síntese das duas anteriores e confere a
cada uma delas seu valor e sua significação. Pois o prestígio de um
indivíduo sempre subjuga a quem está submetido a ele, enquanto
a ascendência de um ideal do qual o indivíduo é o intérprete liber­
ta, por seu intermédio, aquele que o contempla e se obriga a fazê­
-lo viver em si, com uma vida que é também a sua. E a influência
mútua dos indivíduos só enriquece e dilata cada um deles, em vez
de encerrá-los mais estreitamente em suas próprias fronteiras, se
toma os recursos de que dispõe de um princípio do qual ambos os
indivíduos dependem e ao qual devem unir-se antes de tudo para
tornar-se capazes de unir-se entre si.
Ao dizermos que os bens espirituais não podem ser dissocia­
dos da própria pessoa que os possui e os aplica, queríamos dizer
que eles jamais podem ser considerados coisas prontas, que pu­
dessem ser-nos dadas e que só precisássemos receber: é preciso
conquistá-las incessantemente. Aquele que consideramos capaz
de nos transmitir esses bens se fez a si mesmo ao torná-los seus;
ao compartilhá-los, convida-nos a fazer-nos a nós mesmos. Desse
modo, uma influência só é boa se permite à pessoa constituir-se,
em vez de obrigá-la a se apagar e a abdicar. Afirmar o valor de al­
guém não é reconhecer nele uma individualidade que a natureza

3 · A Influência l 129
cumulou com seus dons: é admirar o emprego que ele faz desses
dons e que nos convida a fazer dos que recebemos um uso igual­
mente belo. O valor não está encerrado nos limites da individuali­
dade: reside em seu emprego, que sempre a ultrapassa, que cria a
própria originalidade da vida espiritual. Não existe pessoa que já
tenha nascido como deve ser, e tampouco existe pessoa que algum
dia se tenha tornado no que deve ser, isto é, que tenha chegado a
sê-lo. Mas ninguém progride de outro modo que não seja saindo
de si, isto é, triunfando sobre o apego a si mesmo que o separa
dos outros seres. E todos, ao se evadirem de si mesmos, quebram
igualmente os muros de sua prisão; encontram, assim, a imensi­
dão do céu livre sob o qual se comunicam.
Quem sempre busca acumular novos bens e sempre tem medo
de perdê-los mede a cada instante sua própria miséria. Os bens
espirituais, no entanto, não podem ser confiscados. Ao contrário,
quem se despoja de todas as posses particulares descobre em tor­
no de si uma abundância infinita. Dispõe de toda a riqueza do
mundo, cuja fruição não para de se ampliar para ele quando ele
faz com que seja compartilhada. Quando a influência se torna su­
ficientemente profunda, quem a exerce é apenas o mensageiro de
uma boa nova; e o mensageiro se faz esquecer em prol da mensa­
gem. Sendo assim, pode-se dizer a um só tempo que o indivíduo
para de nos seduzir porque renunciou a si mesmo, e que nada nos
interessa, no entanto, além da fundação da pessoa que se realizou
tanto nele como em nós, e que nos descobre na mesma ocasião a
diversidade e a harmonia de nossas vocações particulares.
A influência perde aqui todo caráter material; exclui todo es­
pírito de dominação; repele toda passividade. É a revelação de
nossa iniciativa própria, o chamado de uma graça à qual somos
os únicos a poder responder e que abre para nós, no interior do
mundo, o caminho de um destino que é posto em nossas mãos.
É preciso parar de pensar em si para ser quem se é. É preciso
afastar-se de todas as preocupações que nos limitam e nos iso­
lam para encontrar, numa participação comum da atividade
criadora, o único meio que permite que todos os indivíduos se
unam, ao se ultrapassarem.

130 1 O Mal e o Sofrimento


EPÍLOGO

Será possível, agora, abarcar numa única visão de conjunto


todo o caminho que percorremos? Se é preciso que toda consciên­
cia humana atravesse o Mal e o Sofrimento para que possa descer
até o último substrato dela mesma, no qual a solidão que ela ex­
perimenta lhe revela sua comunhão com as outras consciências,
é decerto porque existe um princípio supremo que, ao residir no
fundo de cada solidão, constitui ao mesmo tempo o centro em que
elas se unem. Esse é o princípio que encontramos no momento
em que, buscando reconhecer na própria comunhão o jogo das
influências que aí vêm cruzar-se, distinguimos uma influência
individual, ainda vizinha do prestígio, uma influência interindivi­
dual que não raro basta para a amizade, e, por fim, a mais bela de
todas as influências, a transindividual, sem a qual talvez não haja
comunhão verdadeira.
Se o espírito não fosse senão nossa própria vida secreta, ele
não nos traria força alguma nem consolação alguma. Se ele não
passasse, para nós, de um refúgio em que esquecêssemos nossas
tribulações da vida temporal, não nos permitiria compreendê-las
nem suportá-las e assumi-las. Se não passasse de uma ilha de
tranquilidade num mar agitado, separaria todos os seres uns dos
outros, sem permitir que se unissem. Mas o Espírito está em nós
e além de nós. É uma presença sempre oferecida, à qual nem sem­
pre respondemos. Só a descobrimos no âmago da solidão: e assim
a solidão é miraculosamente rompida. Quem sempre parece só
nunca está só. Encontrou em si uma luz que o ilumina, uma fonte
que o alimenta. Alguns dirão que ele se compraz em si mesmo.
No entanto, deixa longe, atrás de si, todas aquelas preocupações
individuais que não paravam de agitá-lo quando a vida era ainda
toda exterior. Para ele, os tormentos do amor-próprio estão apazi­
guados. É ao se tornar estranho para si mesmo que ele entrou em
sua verdadeira pátria.
Não que ele se desvie, então, da existência na qual está implica­
do: ao contrário, só ele é capaz de contemplá-la com lucidez e de
aceitá-la. Adquiriu uma sorte de docilidade à vida, que é preciso
compreender não como uma resignação ao inevitável, mas como
uma apropriação das exigências que ela lhe impõe e das quais ele
já não se esquiva. Pois o espírito nos torna partícipes da própria
obra da criação e nos atribui, em cada um de seus pontos, uma
responsabilidade que só pertence a nós. Assim, o mundo só é o
que é por nossas infidelidades e nossas falhas. Mas viver segundo
o espírito é zelar incessantemente por não sucumbir a elas: é bus­
car repará-las incessantemente.
Ora, essa tarefa é a mesma para cada um de nós, segundo a
função que lhe é própria e o lugar em que está situado: cada um
de nós, nesse sentido, é insubstituível. Isso deveria curar todos os
homens da inclinação a comparar-se, que sempre os torna invejo­
sos uns dos outros e sempre infelizes. Mas não é assemelhando-se
que os homens conseguirão unir-se melhor.
Tampouco o conseguirão aproximando seus respectivos corpos
numa espécie de existência comum e pública, em que a alma de
cada um, desorientada, só sabe calar-se. Consegui-lo-ão, isso sim, é
reconhecendo o caráter não apenas privilegiado mas único de sua
situação e de sua vocação, que lhes permite entrar em contato com
o Absoluto exatamente ali onde são chamados a agir; e descobrin­
do que todos os outros seres à sua volta, únicos eles também, a um
só tempo pela originalidade de sua natureza e pela liberdade que
dela dispõe, são, como eles, missionários do Absoluto.
Assim, não basta dizer que o que une os homens, no próprio
cerne da solidão, é a consciência que eles têm de cooperar para
uma mesma obra. Nenhum esforço de um indivíduo entregue a

132 1 O Mal e o Sofrimento


si mesmo lhe permitirá ultrapassar o intervalo que o separa de
outro indivíduo: numa tarefa comum, cada um deles, como por
vezes acontece, poderia permanecer eternamente encerrado no
interior da tarefa que lhe é própria, pois a comunhão só pode
ocorrer entre eles se ocorrer antes de tudo acima deles. Ela não
resulta, conquanto isto tenha sido dito com frequência, de uma
convergência das vontades. E até se recusa amiúde à vontade que
a procura. É que a comunhão reside num âmbito mais elevado,
no qual a vontade se assombra de encontrá-la realizada antes de
ela mesma, a vontade, ter começado a agir: só tem, então, de se
inclinar e consentir.
Isso explica muito bem por que, se o Espírito é uma presença
de todo pura, mas uma presença à qual depende de nós estar­
mos atentos, a ação que os homens exercem uns sobre os outros
é inteiramente diferente da que eles por vezes imaginam: ela é
também uma ação de presença, e de tal natureza, que parece que
jamais fazemos o que quer que seja para produzi-la e que todos
os meios de que nos servimos, todos os motivos que invocamos
demonstram sua impotência para engendrá-la ou explicá-la, pois
que ela pode faltar ali onde eles se encontram reunidos. A ação
que um homem exerce sobre os outros deriva, acredita-se, de sua
superioridade, que criaria à sua volta uma espécie de potência de
irradiação: no entanto, como se mostrou, se ele age pelo que é e
não pelo que faz, é porque a presença que sentimos nele já é uma
presença que o ultrapassa, da qual ele participa e à qual, por seu
exemplo, convida todos os outros seres a participar. E sabemos
que o mesmo vale para aquela ação mútua em que, como se acre­
dita com frequência, uma boa vontade comum, uma simpatia e
uma interação recíproca, um parentesco entre aspirações indivi­
duais que se sustêm seriam suficientes para satisfazer-nos. Mas
esses são apenas efeitos. Toda amizade humana começa com o
sentimento não apenas de uma dupla presença de dois seres um
para o outro, mas com o sentimento de outra Presença que é o
alicerce dela, que é a mesma para ambos, à qual eles podem re­
cusar-se, embora ela não se recuse jamais, da qual não cessam de
haurir, mas que, em si mesma, é inesgotável, da qual não deixam
de ser, um para o outro, testemunhas e instrumentos, e na qual se
descobrem a um só tempo separados e unidos. Quando a amizade

Epilogo [ 133
começa a declinar, não é, como se pensa, porque as duas almas
se tenham cansado uma da outra, pois elas só se cansam uma da
outra quando reconheceram seus limites, e isso ocorre quando a
Presença espiritual da qual a amizade havia vivido até então se
tornou para elas mais obscura e mais longínqua.
A solidão não deve ser suportada como uma infelicidade inse­
parável de nossa condição, nem buscada como um abrigo contra a
hostilidade do universo. É preciso recear e não desejar a distração
com que por vezes contamos para escapar dela; de fato, nossa soli­
dão jamais é suficientemente perfeita, e sempre estamos divididos
entre o interior e o exterior. Ora, é o extremo da solidão, por assim
dizer, é seu aprofundamento absoluto (no momento em que, com
relação ao mundo que abandonamos, já não existe nostalgia nem
segundas intenções) o que nos livra dela: seu excesso é o que pro­
voca sua explosão. E é então que reencontramos o mundo, como
se jamais tivéssemos olhado para ele, sob uma luz que nos entrega
sua significação, um mundo que não está livre do mal e do sofri­
mento que de início nos pareciam preenchê-lo, mas que continua
a trazê-los em si como uma condição de sua existência, como uma
prova pela qual todos temos de passar, como as marcas de um de­
ver que nos pertence. Ninguém neste mundo duvidaria que só po­
demos entrar na vida do espírito pela vida do corpo: esta sustém
aquela, mas não cessa de lhe opor obstáculos. Sem a vida do cor­
po, todavia, sem as misérias e a condição temporal em que ela nos
envolve, sem a separação em que nos encerra, sem a necessidade
à qual nos submete, sem a dor à qual nos expõe, que ser no mundo
poderia esperar ter uma existência individual, uma existência que
fosse verdadeiramente sua e que lhe permitisse dizer eu?
Ora, é justamente nessa existência individual que se enxerta
a liberdade, de que se pode dizer que ultrapassa a existência in­
dividual sem, no entanto, ser capaz de prescindir dela. A liberda­
de está precisamente no ponto de encontro da vida do corpo e
da vida do espírito, ali onde uma sempre deve ser convertida na
outra. Pois a vida do espírito jamais pode ser dada: sempre nos
é preciso adquiri-la - o que só é possível por uma operação de
desapego diante de tudo o que até então nos escravizava. Mas só
se é livre quando se tem a possibilidade de não sê-lo, de voltar a

134 1 O Mal e o Sofrimento


liberdade contra si mesma, de ser um escravo voluntário. Então
vemos a liberdade pôr-se a serviço do corpo, aumentar a separa­
ção entre os seres, buscar dominá-los ao reduzi-los ao estado de
coisas e até impor-lhes, como na maldade e na crueldade, o sofri­
mento que não desejamos para nós mesmos, mas que deixa os
outros à nossa mercê. A possibilidade do sofrimento é, portanto,
inseparável dos limites naturais sem os quais não teríamos exis­
tência individual. E a possibilidade do mal é inseparável de nossa
liberdade, sem a qual não teríamos existência espiritual e jamais
entraríamos no reino do Bem.
Mas, se é verdade que somos seres mistos, feitos de um corpo
e de um espírito tão estreitamente unidos que só os distingui­
mos pela preeminência que atribuímos, em nossa vida, ora a
um, ora a outro, é possível compreender claramente que o Mal e
o Sofrimento jamais possam ser esquecidos nem abolidos. Eles
nos lembram nossa condição humana. Pelo escândalo que é in­
separável deles, pela impossibilidade em que nos encontramos
de compreendê-los e de tolerá-los, são como testemunhas que
nos relembram que nossa verdadeira vida está noutro lugar. Não
existe vida espiritual real além daquela que os atravessou e con­
verteu. Ainda assim, ela sempre mantém a presença deles ao seu
lado e à sua volta. O pior sofrimento é não podermos arrancar­
-nos ao mal, que sempre nos tenta. Se nossa salvação decerto
está fora do mundo, é no mundo que ela se realiza. Por isso a
vida do espírito, em sua forma mais ativa e mais eficaz, exige
que retornemos ao mundo que havíamos deixado, a fim de ten­
tar dar remédio ao sofrimento que o martiriza. Pois é próprio
do espírito não deixar nenhum sofrimento sem consolação: mas
não se deve ignorar que só os mais fortes são capazes de acei­
tar o sofrimento como o próprio sinal do sacrifício pelo qual
se renuncia ao corpo e ao amor de si. É também no mundo que
é preciso combater e vencer o Mal, esse Mal que parece fazer
de tudo para corrompê-lo e destruí-lo, não, é verdade, para nos
livrar, mas, ao contrário, para nos fixar nele por uma sorte de
hedionda maldição. Desse modo, compreende-se que o Mal e o
Sofrimento, pesando sobre todos os seres e impondo-lhes deve­
res mútuos, constituam o que os obriga a descobrir o princípio
comum que os separa e os une.

Epilogo f 135
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE L I VROS , RJ

L429m

Lavelle, Louis, 1 883- 1 95 1


O mal e o sofrimento I Louis Lavelle ; tradução Lara Christina de
Malimpensa. - 1 . ed. - São Paulo : É Realizações, 2014.
1 36 p. ; 24 cm. (Filosofia atual)

Tradução de: Le mal et la souffrance


ISBN 978-85-8033- 1 80-6

1. Filosofia. 2. Bem e mal. !. Título. II. Série.

1 1 4- 1 7266 CDD: 1 00
CDU: !

29/ 1 0/20 1 4 29/ 1 0/20 1 4

E s t e l i v r o fo i i m p r e s s o
p e l a E d i ç õ e s Loyola p a r a
É Real izações, em out ubro
d e 2 0 1 4 . Os t i p o s u s a d o s
são Minion Condensed e
Adobe Garamond Regular.
O papel do miolo é pólen bold
90g, e o da capa, cordenons
s tardream copper 2 8 5g.

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