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Phone Number: (407) 745-1558
e-mail: cedetusa@cedet.com.br
Editor:
Thomaz Perroni
Tradução:
Murilo Resende Ferreira
Revisão:
José Lima
Preparação:
Beatriz Mancilha
Diagramação:
Mariana Kunii
Conselho editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo
ECCLESIAE – www.ecclesiae.com.br
Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por
qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica, mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio
de reprodução, sem permissão expressa do editor.
FICHA CATALOGRÁFICA
Chesterton, G. K.
Ortodoxia / G. K. Chesterton;
3ª edição, tradução de Murilo Resende Ferreira — Campinas, sp: Ecclesiae, 2019.
ISBN: 978-85-8491-139-4
Introdução
EM DEFESA DE TUDO MAIS
CAPÍTULO 1
O lunático
CAPÍTULO 2
O suicídio do pensamento
CAPÍTULO 3
A ética do país das fadas
CAPÍTULO 4
O estandarte do mundo
CAPÍTULO 5
Os paradoxos do cristianismo
CAPÍTULO 6
A eterna revolução
CAPÍTULO 7
O romance da ortodoxiao
CAPÍTULO 8
A autoridade e o aventureiro
Prefácio
1 George Slythe Street (1867–31 de outubro de 1936) foi um crítico literário, jornalista e novelista
britânico. Associou-se aos antidecadentes (oposição ao decadentismo centrado ao redor de Oscar
Wilde) na redação do National Observer. É mais conhecido pelo romance The Autobiography of a
Boy, onde satirizava estetas contemporâneos como Oscar Wilde e Lord Alfred Douglas. A sua crítica
pode ser encontrada na internet: “Mr. Chesterton”, The Outlook, 17 de junho de 1905.
2 Suntuoso monumento em estilo indiano que o Rei George iv mandou construir no sul da Inglaterra.
3 Estado da Austrália.
4 Região do País de Gales que faz divisa com a Inglaterra.
5 George Bernard Shaw (1856–1950), escritor de teatro, crítico e polemista irlandês. Tornou-se o
principal dramaturgo de sua geração e recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1925. Foi, ao mesmo
tempo, o antagonista favorito e grande amigo de Chesterton.
6 Chesterton se refere às sociedades ocultistas das quais participou.
CAPÍTULO 1
O lunático
AS PESSOAS EXCESSIVAMENTE MUNDANAS NUNCA ENTENDEM nem mesmo
o mundo; dependem de algumas poucas máximas cínicas e falsas. Lembro-
me de certa vez caminhar com um rico editor, que fez uma consideração
que já ouvira muitas vezes; ela é, de fato, quase um lema do mundo
moderno. Mas já a ouvira vezes demais, e subitamente notei que nada
significava. O editor disse sobre alguém: “Aquele homem subirá na vida;
ele acredita em si mesmo”. Lembro-me que enquanto levantava minha
cabeça para ouvir, meu olhar se deparou com um ônibus onde estava escrito
“Hanwel”.1 Disse-lhe: “O senhor me permitiria dizer onde estão os homens
que mais acreditam em si mesmos? Pois tenho a resposta; conheço homens
que acreditam em si mesmos de uma forma mais veemente que Napoleão
ou César. Sei onde flameja a estrela fixa da certeza e do sucesso. Posso
guiá-lo aos tronos dos super-homens. Os homens que realmente acreditam
em si mesmos estão todos nos manicômios”. Respondeu de forma amena
que houve muitos homens que acreditavam em si mesmos e que não eram
lunáticos. “Sim, eles existem”, respondi, “e você especialmente deveria
conhecê-los. Aquele poeta bêbado, do qual não seria possível extrair nem
mesmo uma abominável tragédia, acreditava em si mesmo. Aquele pastor
idoso que queria escrever um grande épico, do qual você se esconderia em
um quartinho, acreditava em si mesmo. Se tivesse consultado sua
experiência empresarial em vez de sua disforme filosofia individualista,
saberia que acreditar em si mesmo é um dos sinais mais comuns de um
pulha. Atores que não sabem atuar acreditam em si mesmos, assim como
devedores que não pagam suas contas. Seria muito mais verdadeiro dizer
que um homem irá certamente falhar, precisamente porque acredita em si
mesmo. A autoconfiança completa não é meramente um pecado; é uma
fraqueza. Acreditar totalmente em si mesmo é uma crença tão histérica e
supersticiosa quanto acreditar em Joanna Southcott:2 semelhante ególatra
tem a palavra ‘Hanwell’ escrita em sua testa tão claramente quanto estava
escrita naquele ônibus”. E a tudo isso meu amigo, o editor, deu esta resposta
efetiva e profunda: “Bem, se um homem não deve acreditar em si mesmo,
no que deve acreditar?”. Depois de uma longa pausa respondi: “Voltarei
para casa e escreverei um livro em resposta a essa questão”. Este é o livro
que escrevi em resposta.
Mas penso que este livro poderia muito bem começar onde começou
nosso argumento — na vizinhança de um manicômio. Os modernos mestres
da ciência muitíssimo se impressionam com a necessidade de começar toda
investigação com um fato. Os antigos mestres da religião igualmente se
impressionavam com essa necessidade. Começavam com o fato do pecado
— tão prático quanto as batatas. Pouco importando se o homem pudesse ser
limpo por águas milagrosas, não havia dúvida sobre a necessidade do
banho. Mas certos líderes religiosos de Londres, e não meros materialistas,
começaram, em nossos dias, não a negar a água miraculosa perfeitamente
questionável, mas a sujeira inquestionável. Alguns novos teólogos
questionam o pecado original, que é a única parte da teologia cristã que
pode ser realmente provada; seguidores do Reverendo R. J. Campbell,3 em
sua espiritualidade quase excessivamente irritante, admitem a pureza
divina, que não podem sequer imaginar em sonhos, mas essencialmente
negam o pecado humano, que podem ver no meio da rua. Os maiores santos
e céticos sempre tomaram o mal positivo como ponto de partida de seus
argumentos. Se é verdade (como certamente o é) que um homem pode
sentir uma felicidade requintada em esfolar um gato, então o filósofo
religioso só pode chegar a duas deduções: negar a existência de Deus, como
fazem todos os ateus; ou negar a união plena entre Deus e o homem, como
fazem todos os cristãos. O novo teólogo aparentemente pensa que negar o
gato esfolado é uma solução altamente racionalista.
Nesta extraordinária circunstância claramente não é mais possível (com
alguma esperança de apelo universal) começar, como faziam nossos pais,
com o fato do pecado. Esse fato, que para eles (e para mim) era claro como
a água, é o próprio fato que tem sido particularmente diluído ou negado.
Mas apesar dos modernos negarem a existência do pecado, penso que ainda
não negaram a existência do manicômio. Todos concordamos que há um
colapso do intelecto tão inconfundível quanto o desmoronamento de uma
casa. Os homens negam o inferno, mas não — ainda não — Hanwell. Para
os fins de nosso argumento primário, o último pode estar exatamente no
lugar onde estava o primeiro. Quero dizer que todos os pensamentos e
teorias já foram julgados um dia pela tendência de levar uma alma à
perdição, e que para nosso presente propósito todos os pensamentos e
teorias modernas podem ser julgados pela tendência de levar um homem à
loucura.
É verdade que alguns falam de forma leviana e vaga da insanidade como
se fosse algo em si mesmo atraente. Mas um breve raciocínio mostrará que
se a doença é bela, geralmente trata-se da doença alheia. Um homem cego
pode ser pitoresco; mas dois olhos são necessários para ver a pintura. Da
mesma forma, até mesmo a mais selvagem poesia de um louco só pode ser
apreciada pelo homem são. Para o louco sua insanidade é bem prosaica,
porque é bem verdadeira. Um homem que acredita ser uma galinha se
enxerga como algo tão ordinário quanto uma galinha. Aquele que acredita
ser um pedaço de vidro é para si mesmo tão pouco atraente quanto um
pedaço de vidro. É a homogeneidade da mente que o torna ao mesmo tempo
tedioso e louco. É somente porque enxergamos a ironia dessa idéia que o
consideramos interessante; e é somente porque ele não vê a ironia de sua
idéia que está em Hanwell. Em resumo, esquisitices só impressionam
pessoas comuns. Esquisitices nunca impressionam pessoas esquisitas. É por
isso que pessoas comuns podem se divertir tanto, enquanto os esquisitos
estão sempre reclamando do tédio da vida. Também é por isso que os novos
romances são esquecidos tão rapidamente, e os antigos contos de fadas
duram para sempre. Os antigos contos de fadas fazem do herói um rapaz
comum, pois são suas aventuras que são surpreendentes; e elas surpreendem
porque ele é comum. Mas no romance psicológico moderno o herói é
anormal; o centro não é central. Dessa forma, as mais ferozes aventuras
nunca o afetam adequadamente, e o livro é monótono. É possível criar a
estória de um herói entre dragões; mas não de dragões entre dragões. O
conto de fadas discute o que um homem são fará em um mundo louco. A
novela realista e sóbria dos dias atuais discute o que alguém essencialmente
lunático irá fazer em um mundo tedioso.
Comecemos então com o manicômio; façamos dessa hospedaria
maligna e fantástica a largada de nossa jornada intelectual. Se apelarmos
para a filosofia da sanidade, a primeira coisa a fazer é apagar um erro
enorme e comum. Vaga por aí a noção de que a imaginação, e
especialmente a imaginação mística, é perigosa para o equilíbrio mental.
Diz-se usualmente que os poetas não são psicologicamente confiáveis; e
geralmente há uma vaga associação entre coroas de louro na cabeça e
capacetes de bombril. Mas os fatos e a história contradizem completamente
essa visão. A maior parte dos grandes poetas foram não somente sãos, mas
verdadeiros homens de negócio; e se Shakespeare realmente cuidou de
cavalos, o fez porque era o homem mais confiável para fazê-lo. A
imaginação não gera a insanidade; é a razão que o faz. Não são os poetas
que enlouquecem, mas os enxadristas. Os matemáticos e os bancários
enlouquecem; mas raramente isso acontece com os artistas criativos. Não
estou, de forma alguma, atacando a lógica: só disse que o perigo reside na
lógica e não na imaginação. A paternidade artística é tão saudável quanto a
paternidade física. Além disso, é digno de consideração que quando surge
um poeta mórbido isso se dá usualmente porque ele tem um calcanhar de
Aquiles racionalista em seu cérebro. Poe,4 por exemplo, era realmente
mórbido; mas não por ser poeta, e sim porque era particularmente analítico.
Até o xadrez ele considerava excessivamente poético; desprezava-o porque
estava cheio de cavaleiros e castelos, como um poema. Declaradamente
preferia os negros discos do jogo de damas, porque se pareciam mais com
os pontos negros em um diagrama cartesiano. Talvez o maior exemplo seja
o seguinte: somente um grande poeta inglês, Cowper,5 enlouqueceu. E ele
foi definitivamente levado à loucura pela lógica, pela horrenda e estranha
lógica da predestinação. A poesia era o remédio e não a doença; ela o
manteve parcialmente saudável. Ele às vezes esquecia o inferno seco e
escarlate, a que seu horrível necessitarismo o arrastou, entre as margens e os
brancos lírios do Rio Ouse. João Calvino o condenou e John Gilpin6 quase
o salvou. E por todos os lados constatamos que os homens não
enlouquecem quando sonham. Os críticos são bem mais loucos que os
poetas. Homero é perfeitamente sereno e pleno; são seus críticos que o
dilaceram em farrapos extravagantes.7 Shakespeare é o que é; foram
somente seus críticos que descobriram que ele é uma outra pessoa.8 E
apesar de São João Evangelista ter visto muitos monstros estranhos em sua
visão, ele não viu nenhuma criatura mais selvagem que seus comentadores.
O fato geral é simples: a poesia é sã porque navega docemente em um mar
infinito; a razão busca cruzar esse mar e assim torná-lo finito. O resultado é
a exaustão mental, assim como a exaustão física do Sr. Holbein.9 Admitir
que tudo é um exercício é tudo compreender como um fardo. O poeta só
deseja exaltação e expansão, um mundo em que possa se estirar; só quer
elevar sua cabeça aos céus. É o lógico que busca colocar os céus em sua
cabeça. E é sua cabeça que se fende.
Trata-se de uma questão pequena, mas não irrelevante, que esse erro
notável seja usualmente defendido com um notável erro de citação. Todos já
ouvimos alguém recitando a célebre frase de Dryden10 com o seguinte
sentido: “O grande gênio está sempre próximo da loucura”. Mas Dryden
não disse que o grande gênio estava próximo da loucura. Ele mesmo era um
gênio e sabia muito bem que as coisas não se passam assim. Seria difícil
encontrar um homem mais romântico ou mais sensível. O que Dryden
realmente disse foi: “Uma grande mente está sempre próxima da loucura”; e
isso é verdadeiro. É a pura prontidão do intelecto que está sempre prestes a
colapsar. É preciso também lembrar do tipo de homem de que Dryden
falava. Não se tratava de um visionário ascético como Vaughan11 ou George
Herbert;12 falava do homem cínico do mundo, do cético, do diplomata, do
político pragmático. Tais homens de fato estão sempre próximos da loucura.
O calculismo incessante de seus cérebros e de muitos outros cérebros é uma
profissão perigosa. Sempre é perigoso para a mente acertar as contas com a
mente. Um engraçadinho perguntou-me por que dizemos “tão louco quanto
um chapeleiro”. Alguém ainda mais engraçadinho poderia responder que o
chapeleiro é maluco porque tem de medir a cabeça humana.
E se os grandes homens da lógica são muitas vezes maníacos, é
igualmente verdadeiro que os maníacos muitas vezes são grandes lógicos.
Quando me envolvi em uma controvérsia com o The Clarion13 sobre a
questão do livre-arbítrio, aquele bom escritor de nome R. B. Suthers14 disse
que o livre-arbítrio é uma loucura, pois implicava ações sem causa, e as
ações de um lunático não tinham causa. Não me concentrarei aqui sobre o
lapso desastroso na lógica determinista. É claro que se qualquer ação,
mesmo a de um lunático, pode não ter causa, podemos dizer adeus ao
determinismo. Se a cadeia causal pode ser quebrada por um homem louco,
também o pode ser por um homem comum. Mas meu objetivo é apontar
algo mais prático. É natural, talvez, que um marxista moderno nada saiba
sobre o livre-arbítrio. Mas é certamente notável que um marxista moderno
nada saiba sobre os lunáticos. A última coisa que pode ser dita de um deles
é que suas ações não têm causa. Se alguns atos humanos podem vagamente
ser chamados de incausados, só podem ser aqueles mais corriqueiros de um
homem saudável: assobiar enquanto caminha; cortar a grama com um
graveto afiado; chutar seu próprio calcanhar ou esfregar suas mãos. É o
homem feliz que faz coisas sem sentido; o doente é fraco demais para o
ócio. São exatamente essas ações despreocupadas e desinteressadas que o
louco não pode compreender; pois (como o determinista) geralmente vê
causas demais em tudo. Leria uma conspiração nessas atividades vazias.
Pensaria que cortar grama era um ataque à propriedade privada e que o
chute no calcanhar era um sinal para um cúmplice. Se pudesse por um
instante se tornar despreocupado, também se tornaria são. Todos que
tiveram a infelicidade de falar com alguém à beira ou bem no centro de uma
desordem mental sabem que sua qualidade mais sinistra é uma horrenda
clareza nos detalhes; uma conexão de tudo com tudo em um mapa mais
elaborado que um labirinto. Ao argumentar com um louco é extremamente
provável que você leve a pior; pois em muitos sentidos sua mente se move
mais rapidamente, pois não é atrasada pelas coisas que estão implicadas no
bom julgamento. Ele não é atrapalhado pelo senso de humor ou de caridade,
ou pelas tolas certezas da experiência; torna-se mais lógico por ter perdido
suas afeições saudáveis. De fato, o dito comum sobre a insanidade é
enganador: o louco não é o homem que perdeu sua razão, mas sim aquele
que perdeu tudo exceto a razão.
A explicação de um louco para uma coisa é sempre completa e muitas
vezes satisfatória em um sentido puramente racional. Ou melhor, a
explicação insana, se não conclusiva, é ao menos irrespondível; isso pode
ser observado nas duas ou três formas mais comuns de insanidade. Se um
homem diz, por exemplo, que os homens conspiram contra ele, não é
possível argumentar exceto dizendo que todos os homens negam serem
conspiradores; precisamente o que os conspiradores fariam. A explicação
do lunático abarca o fenômeno tanto quanto a sua. E se um homem diz que
é o rei legítimo da Inglaterra? Não é suficiente dizer que as autoridades
existentes o chamam de louco; pois se ele fosse o rei da Inglaterra isso seria
a coisa mais sábia a ser feita pelas autoridades existentes. Para um homem
que diz ser Jesus Cristo, não se pode dizer que o mundo nega sua divindade,
já que o mundo negou a de Cristo.
Mas ele está errado. Se tentarmos rastrear seu erro em termos exatos,
não será tão fácil quanto supomos. Talvez o mais próximo que possamos
chegar é dizer isto: que a sua mente se move em um círculo perfeito, mas
estreito. Um pequeno círculo é tão infinito quanto um grande; mas apesar
de ser idêntico na infinitude, não o é na grandeza. Da mesma forma, a
explicação insana é tão completa quanto a sã, mas não é tão ampla. Uma
bala pode ser tão redonda quanto a Terra, mas não é o mundo. Há algo
como uma universalidade estreita; como uma eternidade estreita e apertada;
e é possível vê-la em muitas religiões modernas. E, falando bem
exteriormente e empiricamente, podemos dizer que a marca mais forte e
inconfundível da loucura é a combinação de completude lógica e contração
espiritual. A teoria do lunático explica muitas coisas, mas não as explica de
forma ampla. Isso significa que se estivermos lidando com uma mente que
está se tornando mórbida, devemos nos preocupar principalmente não em
dar argumentos, mas sim ar, em convencer que há algo mais limpo e fresco
fora da asfixia de um único argumento. Suponha, por exemplo, que seja este
primeiro caso que considero típico: o caso de um homem que a todos acusa
de conspirar contra ele. Se pudéssemos expressar nossos sentimentos mais
profundos de protesto e de apelo contra essa obsessão, suponho que
diríamos algo assim: “Sim, admito que você tem certa razão em sua
explicação, já a decorei e também sei que muitas coisas se encaixam nas
outras como você diz. Admito que a sua explicação explica muitas coisas;
mas quantas coisas deixa de fora! Não há outras estórias no mundo senão a
sua; e será que todos os homens realmente se preocupam com a sua vida?
Suponha que aceitemos os detalhes; talvez quando o homem na rua parecia
não o ver fosse somente por astúcia; talvez quando o policial perguntou seu
nome fosse somente porque ele já o sabia. Mas quão mais feliz você seria se
simplesmente soubesse que todas essas pessoas não se preocupam
minimamente com você! Quão maior seria sua vida se o ego se tornasse
menor nela; se você pudesse olhar os outros homens com um prazer e uma
curiosidade comuns; se pudesse ver-lhes andando em seu egoísmo solar e
sua indiferença viril! Começaria então a se interessar por eles, exatamente
porque não se interessam por você. Encerraria o seu pequeno e
espalhafatoso teatro no qual seu pequeno enredo é sempre encenado, e se
descobriria então sob a liberdade do céu, em uma rua cheia de esplêndidos
estranhos”. Ou suponha que seja o segundo tipo de loucura, de um homem
que exige sua coroa, diante do qual poderíamos dizer: “Tudo bem! Talvez
você seja o rei da Inglaterra, mas por que você se preocupa com isso?
Esforce-se de forma magnífica e será um ser humano capaz de se elevar
acima de todos os reis da terra”. E se fosse o terceiro caso, o do louco que
acredita ser o Cristo? Se disséssemos o que sentimos, diríamos: “Então
você é o Criador e o Redentor do mundo: mas que mundo pequeno! Que
céu pequeno você deve habitar, com anjos que são menores que borboletas!
Como deve ser triste ser Deus; e um Deus deficiente! Será que não há uma
vida mais plena e algum amor mais maravilhoso que o seu; e é em sua
misericórdia pequena e dolorosa que toda a carne deve ter fé? Quão mais
feliz você seria, quão mais de você existiria, se o martelo de um Deus
superior pudesse destruir o seu pequeno cosmos, espalhar as estrelas como
lamparinas, e deixá-lo aberto, livre como todos os outros homens para olhar
para cima e para baixo!”.
E deve-se lembrar que a mais prática das ciências não tem essa visão do
mal mental; não busca argumentar com ele como se fosse uma heresia, mas
simplesmente expulsá-lo como um feitiço. Nem a ciência moderna nem a
religião antiga acreditam na completa liberdade do pensamento. A teologia
rejeita certos pensamentos como blasfemos. A ciência rejeita certos
pensamentos como mórbidos. Por exemplo, algumas sociedades religiosas
moderadamente desencorajam os homens a pensar sobre o sexo. A nova
sociedade científica definitivamente desencoraja o homem a pensar sobre a
morte; é um fato, mas é considerado um fato mórbido. E ao lidar com
aqueles cuja morbidez tem um toque de loucura, a ciência moderna se
preocupa menos com a lógica pura que um dervixe rodopiante. Nesses
casos, não é suficiente que o homem infeliz deseje a verdade: deve desejar a
saúde. Nada pode salvá-lo senão uma fome cega pela normalidade, como a
de um animal. Um homem não pode pensar um caminho de fuga do mal
mental; pois é o órgão do pensamento que adoeceu, que se tornou
ingovernável e independente. Ele só pode ser salvo pela vontade ou pela fé.
No momento em que sua razão se mexer, ela se moverá na antiga rotina
circular; ele ficará girando em seu círculo lógico, assim como um homem
que viaja na terceira classe do trem do Círculo Interior irá girar pelo Círculo
Interior até que realize o ato místico, voluntário e vigoroso de sair para Rua
Gower.15 A decisão é a questão; uma porta deve ser fechada para sempre.
Todo remédio é um remédio desesperado. Toda cura é uma cura miraculosa.
Curar um louco não é argumentar como um filósofo: é exorcizar um
demônio. E não importa quão calmamente os doutores e psicólogos
trabalhem o assunto, sua atitude é profundamente intolerante — tão
intolerante quanto Maria, a Sangüinária.16 Esta é sua atitude: o homem deve
parar de pensar, se quer continuar a viver. O conselho é uma amputação
intelectual. Se sua cabeça te faz pecar, corte-a; pois é melhor, em vez de
simplesmente entrar no reino dos céus como uma criança, fazê-lo como um
imbecil, do que ser lançado com todo o seu intelecto no inferno — ou em
Hanwell.
Esse é o louco real; ele é usualmente um lógico e freqüentemente um
lógico de sucesso. Sem dúvida poderia ser derrotado no campo da simples
razão, e o argumento contra ele poderia ser exposto de forma lógica; mas
pode ser muito mais precisamente exposto em termos gerais e mesmo
estéticos: o louco está na prisão limpa e bem iluminada de uma só idéia,
aguçado por um único ponto doloroso. Não possui a hesitação e a
complexidade saudáveis. Como expliquei na introdução, estabeleci que
daria, nestes primeiros capítulos, não tanto um esquema de uma doutrina
quanto imagens de um ponto de vista. E descrevi extensamente minha visão
do maníaco por esta razão: sou afetado pelos pensadores modernos do
mesmo modo como sou afetado pelos loucos. Aquela atmosfera ou nota
inconfundível que ouço vindo de Hanwell, também ouço de metade das
cátedras de ciência e sabedoria contemporâneas; e muitos dos cientistas
loucos são cientistas loucos em muitos sentidos. Todos têm exatamente a
mesma combinação que observei: uma razão expansiva e exaustiva junto de
um senso comum reduzido. São universais somente no sentido de que
tomam uma explicação rarefeita e a levam ao extremo. Mas um padrão
pode ser expandido indefinidamente e ainda assim ser um pequeno padrão.
Eles enxergam um tabuleiro de xadrez branco no preto, e povoam o
universo com ele, mas ele não deixa de ser branco no preto. Como o
lunático, não podem alterar seu ponto de vista; não podem fazer um esforço
mental e subitamente ver o preto no branco.
Tomem primeiro o caso mais óbvio do materialismo. Como uma
explicação do mundo, ele tem certa simplicidade louca. Tem a justa
qualidade do argumento do lunático; temos ao mesmo tempo a impressão
de que tudo explica e que nada explica. Contemplem algum materialista
sincero e capaz, como por exemplo, o Sr. McCabe,17 e terão exatamente
essa sensação única. Ele compreende tudo, e essa totalidade não parece ser
digna de compreensão. Seu cosmos pode ser completo em cada mecanismo
e roldana, mas ainda é um cosmos menor que nosso mundo. De alguma
forma o seu esquema, como o lúcido esquema de um louco, parece
inconsciente das estranhas energias e da grande indiferença da terra; não
pensa sobre coisas reais desta terra, sobre povos que lutam e mães
orgulhosas, sobre o primeiro amor e sobre medo do mar. A terra é tão
grande e o cosmos tão pequeno quanto o menor buraco em que um homem
pode enfiar sua cabeça.
Deve-se compreender que não estou agora discutindo a relação daqueles
credos com a verdade; mas somente sua relação com a sanidade. Mais tarde
espero atacar a questão da verdade objetiva; aqui só falo do fenômeno
psicológico. Ainda não tentarei provar a Haeckel18 que o materialismo é
falso, não mais do que tentei provar ao homem que acreditava ser Cristo
que ele estava no erro. Simplesmente afirmo aqui que ambos os casos têm o
mesmo tipo de completude e de incompletude. É possível explicar a
detenção de um homem em Hanwell para um público indiferente dizendo
que se trata da crucificação de um deus do qual o mundo não é digno. A
explicação é suficiente. Similarmente, é possível explicar a ordem do
universo dizendo que todas as coisas, até mesmo as almas humanas, são
folhas que crescem inevitavelmente em uma árvore completamente
inconsciente — o destino cego da matéria. A explicação também é
suficiente, mas não, é claro, de forma tão completa quanto a do louco. Mas
o ponto é que a mente humana normal não somente rejeita ambas, mas
sente o mesmo tipo de rejeição. Sua afirmação é de que se o homem em
Hanwell é o Deus verdadeiro, este não é lá grande coisa. E, similarmente, se
o cosmos do materialista é o cosmos verdadeiro, não é lá grande coisa. A
coisa se encolheu. A divindade é menos divina que muitos homens; e (de
acordo com Haeckel) a totalidade do cosmos é algo mais cinza, estreito e
trivial do que muitos dos seus aspectos separados. As partes parecem maior
do que o todo.
Pois devemos lembrar que a filosofia materialista, verdadeira ou não, é
certamente muito mais limitadora do que qualquer religião. Em certo
sentido, é claro, todas as idéias inteligentes são estreitas. Não podem ser
infinitamente abertas. Um cristão é limitado no mesmo sentido que um ateu.
Não pode considerar o cristianismo falso e continuar a ser cristão; e o ateu
não pode considerar o ateísmo falso e continuar a ser ateu. Mas há um
sentido muito especial em que o materialismo tem mais restrições do que o
espiritualismo. O Sr. McCabe pensa que sou um escravo por não poder
acreditar no determinismo; e eu penso que o Sr. McCabe é um escravo
porque não pode acreditar em fadas. E se examinarmos os dois vetos
veremos que o dele é um veto muito mais puro do que o meu. O cristão está
livre para acreditar que há uma grande extensão de ordem definida e de
desenvolvimento inevitável no universo. Mas ao materialista não é
permitido admitir em sua imaculada máquina a menor mancha de
espiritualismo ou milagre. O pobre Sr. McCabe não pode conservar nem
mesmo o menor duende, mesmo que um deles possa estar escondido em
uma flor. O cristão admite que o universo é diverso e até mesmo uma
miscelânea, assim como o homem são sabe que é complexo; que tem algo
da Besta, do Demônio, do santo e do cidadão em si. Ele sabe até mesmo
que tem um toque de loucura. Mas o mundo materialista é bem simples e
sólido, assim como o lunático tem certeza de ser saudável. O materialista
está certo de que sua história foi simples e unicamente uma cadeia de
causação, assim como o interessante indivíduo já mencionado tinha toda a
certeza de que era simples e unicamente uma galinha. Os materialistas e os
loucos nunca têm dúvidas.
As doutrinas espirituais não são uma real limitação à mente como as
negações materialistas. Mesmo que acredite na imortalidade, não preciso
pensar sobre ela. Mas se não creio na imortalidade, não posso pensar nela.
No primeiro caso a estrada está aberta e posso andar o quanto quiser; no
segundo a estrada está fechada. Mas o argumento é ainda mais forte, e o
paralelo com a loucura ainda mais estranho. Pois nosso argumento contra a
teoria lógica e exaustiva do lunático é que, certa ou errada, ela
gradualmente destruiu sua humanidade. A acusação contra as principais
deduções do materialista também é que, certas ou erradas, gradualmente
destroem sua humanidade; e com isso não quero dizer somente a bondade,
mas também a esperança, a coragem, a poesia, a iniciativa, e tudo que é
humano. Por exemplo, quando o materialista arrasta os homens ao completo
fatalismo (como geralmente faz) é inútil simular que se trata de uma força
libertadora. É absurdo dizer que se está aumentando a liberdade quando se
usa o livre pensamento para destruir o livre-arbítrio. Os deterministas vêm
para aprisionar e não para libertar. Poderiam muito apropriadamente chamar
sua lei de a “cadeia” da causação — a pior cadeia que já aprisionou um
homem. Pode-se utilizar a linguagem da liberdade para falar do
ensinamento materialista, mas é óbvio que ela lhe é tão inaplicável quanto
para o homem preso no manicômio. Pode-se dizer que o homem é livre para
se imaginar um ovo frito. Mas é certamente um fato mais importante e
maciço que ele, se é um ovo frito, não está livre para comer, beber, dormir,
caminhar ou fumar um cigarro. Também é possível dizer que o audacioso
pensador determinista está livre para descrer da realidade da vontade. Mas é
certamente um fato mais importante e maciço que ele então não é livre para
se levantar, praguejar, agradecer, justificar, exortar, punir, resistir às
tentações, incitar multidões, fazer resoluções de ano novo, perdoar os
pecadores, admoestar os tiranos, ou até mesmo dizer um “obrigado” pela
mostarda.
Ao deixar este assunto posso acrescentar que há uma estranha falácia
que diz que o fatalismo materialista é de alguma forma favorável à
compaixão, à abolição das punições cruéis ou de qualquer tipo. Isso é
exatamente o inverso da verdade. É perfeitamente compreensível que a
doutrina da necessidade não faz diferença alguma; que deixa o carrasco em
paz com sua tortura e o amigo bondoso em paz com suas exortações. Mas
obviamente, se acaba com algo, é certamente com a exortação gentil. A
inevitabilidade dos pecados não evita a punição; e se evita algo, é
exatamente a persuasão. O determinismo é tão capaz de levar à crueldade
quanto certamente leva à covardia; não é inconsistente com o tratamento
cruel aos criminosos. Mas é, talvez, inconsistente com o tratamento
generoso dos criminosos; com qualquer apelo a seus sentimentos elevados
ou encorajamento à luta moral. O determinista não acredita no apelo à
vontade, mas acredita em mudar o ambiente. Ele não deve dizer ao pecador:
“Vá e não peque mais”, pois o pecador nada pode fazer; mas pode colocá-lo
no caldeirão de óleo fervente; pois o óleo fervente é um ambiente.
Considerado como uma imagem, portanto, o materialista tem o fantástico
delineamento do lunático. Ambos tomam uma posição ao mesmo tempo
irrespondível e intolerável.
É claro que tudo isso não é verdadeiro somente quanto ao materialista.
O mesmo se aplicaria ao outro extremo da lógica especulativa. Há um
cético bem mais terrível do que aquele que acredita que tudo começou na
matéria. É possível encontrar o cético que acredita que tudo começou por
ele mesmo. Não duvida da existência de anjos e demônios, mas dos homens
e das vacas. Para ele, seus próprios amigos são uma mitologia por ele
inventada. Ele cria seu pai e sua mãe. Essa horrenda fantasia tem algo de
decisivamente atrativa para o egoísmo místico de nossos dias. Aquele editor
que pensou que os homens subiriam na vida porque acreditam em si
mesmos, aqueles caçadores do super-homem que sempre o procuram no
espelho, aqueles escritores que falam sobre imprimir suas personalidades
em vez de criar vida para o mundo, todas essas pessoas estão somente a um
milímetro desse vazio monstruoso. E quando este gentil mundo ao redor
desse homem tiver se obscurecido como uma mentira; quando os amigos
desaparecerem como fantasmas, e as bases do mundo tremerem: aí nosso
homem, que duvida de tudo e todos, estará sozinho em seu pesadelo —
então o grande lema individualista estará escrito em sua testa com uma
ironia vingadora. As estrelas serão somente pontos de escuridão em seu
próprio cérebro; o rosto de sua mãe somente um esboço de seu louco lápis
nos muros de sua cela. Mas em sua cela estará escrita uma atroz verdade:
“Ele acredita em si mesmo”.
Tudo que nos interessa aqui, no entanto, é notar que esse extremo pan-
egoísmo do pensamento exibe o mesmo paradoxo do extremo materialismo.
É igualmente completo na teoria e igualmente paralisante na prática. Para
simplificar, é mais fácil afirmar o conceito dizendo que um homem pode
acreditar que está sempre num sonho. É óbvio que não pode existir prova
positiva de que não está, pela simples razão de que não se pode oferecer
nenhuma prova que não possa ser oferecida em um sonho. Mas se o homem
começasse a queimar Londres e dissesse que sua empregada logo o
chamaria para o café-da-manhã, nós o prenderíamos e o colocaríamos em
um lugar já muito aludido neste capítulo. O homem que não pode acreditar
em seus sentidos e o homem que não pode acreditar em nada mais estão
ambos insanos, mas sua insanidade é provada não por algum erro em seu
argumento, mas pelo erro manifesto de suas vidas inteiras. Ambos se
aprisionaram em duas caixas, pintadas no interior com o sol e as estrelas;
ambos são incapazes de sair, um para a saúde e a alegria do céu, o outro até
mesmo para a saúde e a alegria da terra. Sua posição é bem razoável e até
mais do que isso: em certo sentido é infinitamente razoável, assim como
uma moedinha é infinitamente circular. Mas há algo como uma infinitude
perversa, uma eternidade vulgar e servil. É impressionante notar que muitos
modernistas, sejam eles céticos ou místicos, tomaram por sinal um certo
símbolo oriental, que é o próprio símbolo dessa nulidade final. Quando
desejam representar a eternidade, representam-na pela serpente que engole
o seu próprio rabo.19 Há um assustador sarcasmo na imagem dessa refeição
pouco satisfatória. A eternidade dos fatalistas materiais, a eternidade dos
pessimistas orientais, a eternidade dos altivos teosofistas e cientistas de alto
escalão de hoje é, de fato, muito bem representada pela serpente que engole
o seu rabo, um animal degradado que destrói a si mesmo.
Este capítulo é puramente prático e se preocupa com o que é realmente a
marca e o elemento central da insanidade; podemos dizer em resumo que é
a razão sem raiz, a razão no vazio. O homem que começa a pensar sem os
primeiros princípios apropriados enlouquece; ele começa a pensar pelo lado
errado. Nas próximas páginas precisamos descobrir qual o lado certo. Mas
podemos perguntar como conclusão: se é isso que leva os homens à
loucura, o que é que os mantém sãos? Ao fim deste livro espero ter dado
uma resposta definitiva — talvez muito definitiva para alguns. Mas por
agora é possível dar, da mesma forma unicamente prática, uma resposta
geral a respeito do que na história humana real mantém os homens sãos. O
misticismo preserva a sua saúde. Enquanto há mistério, há saúde; quando o
mistério é destruído, surge a morbidez. O homem comum tem sido sempre
são porque tem sido sempre um místico. Ele permitiu o crepúsculo; teve
sempre um pé na terra e outro na terra das fadas. Ele sempre foi livre para
duvidar de seus deuses; mas, diferente do agnóstico moderno, também foi
livre para neles acreditar. Sempre se preocupou mais com a verdade do que
com a consistência. Se visse duas verdades que pareciam se contradizer, ele
aceitaria as duas verdades e junto com elas a contradição. Sua visão
espiritual é estereoscópica, como sua visão física: ele vê duas imagens
diferentes ao mesmo tempo e por isso enxerga melhor. Assim ele sempre
acreditou que existia o destino, mas também o livre-arbítrio; que as crianças
eram de fato o reino dos céus, mas que deveriam obedecer ao reino da terra.
Admirava a juventude porque era jovem e a velhice porque não era. É
exatamente esse equilíbrio de aparentes contradições que tem sido
responsável pela leveza do homem são. Este é todo o segredo do
misticismo: que o homem pode tudo compreender com a ajuda do que não
compreende. O lógico mórbido busca tornar tudo lúcido, e só consegue
tornar tudo misterioso. O místico permite que uma coisa seja misteriosa, e
tudo o mais se torna lúcido. O determinista torna a teoria da causação algo
muito claro, e depois descobre que não pode mais dizer “por favor” para a
empregada. O cristão permite que o livre-arbítrio continue um mistério
sagrado, e suas relações com a empregada se tornam de uma clareza
cristalina e cintilante. Ele coloca a semente do dogma em uma escuridão
central, mas ela então se ramifica em todas as direções com uma riqueza
natural e abundante. Assim como tomamos o círculo como símbolo da
razão e da loucura, tomamos a cruz como o símbolo do mistério e da saúde.
O budismo é centrípeto, mas o cristianismo é centrífugo: ele liberta. Pois o
círculo é perfeito e infinito em sua natureza, mas está eternamente fixado
em seu tamanho, nunca pode crescer ou diminuir. Mas a cruz, apesar de ter
em seu coração uma colisão e uma contradição, pode estender seus quatro
braços infinitamente sem mudar de forma. Por ter um paradoxo em seu
centro, pode crescer sem mudar. O círculo retorna sobre si mesmo e é
limitado. A cruz abre seus braços para os quatro ventos; é uma placa para os
viajantes livres.
Os símbolos isolados são de um valor nebuloso ao se falar desse
profundo assunto; e um outro símbolo da natureza física expressará
suficientemente bem a posição real do misticismo para a humanidade. A
única coisa criada para a qual não podemos olhar é aquela sob cuja luz
podemos olhar para todas as coisas. Como o sol do meio-dia, o misticismo
explica tudo pelo brilho de sua triunfante invisibilidade. O intelectualismo
desapegado é, no sentido exato do dito popular, um puro brilho lunar; pois é
a luz sem calor, e luz secundária, refletida de um mundo morto. E os gregos
tinham razão quando tornaram Apolo o deus tanto da imaginação quanto da
sanidade; ele era o patrono da poesia e da cura. Falarei depois de dogmas
necessários e de um credo particular. Mas o transcendentalismo pelo qual
todos os homens vivem tem primariamente a mesma posição que o sol no
céu. Somos dele conscientes como uma espécie de esplêndida confusão: é
algo brilhante e sem forma, ao mesmo tempo uma chama e um borrão. Mas
o círculo lunar é tão claro e inconfundível, tão recorrente e inevitável,
quanto o círculo euclidiano no quadro negro. Pois a lua é completamente
razoável: é a mãe de todos os lunáticos e lhes deu seu nome.
1 No original aparecem as expressões idiomáticas put out e off colour, que possuem respectivamente
o sentido de mostrar, expelir, apagar um fogo ou extinguir algo, e algo de mau gosto. Chesterton
procurava indicar o quanto expressões idiomáticas coloquiais têm força evocativa. Como o trecho é
intraduzível, incluímos, com certa liberdade, expressões da nossa língua que guardassem uma vaga
proximidade semântica com o original.
2 Henry James (1843–1916), escritor americano considerado figura de transição entre o realismo e o
modernismo literários.
3 Robert Peel Glanville Blatchford (1851–1943), propagandista socialista, jornalista e escritor
britânico. Ficou conhecido por seu ateísmo, sua oposição à eugenia e seu nacionalismo inglês. No
começo da década de 20, após a morte de sua esposa, voltou-se para o espiritismo.
4 Tomás de Torquemada (1420–1498), dominicano espanhol que ficou conhecido como um severo
inquisidor.
5 Émile Zola (1840–1902), célebre escritor francês. Destacou-se no Caso Dreyfus, com seu
manifesto J’accuse!, no qual tomou parte na defesa do oficial militar judeu Alfred Dreyfus,
falsamente acusado e condenado por traição à pátria.
6 Thomas Henry Huxley (1825–1895) foi um biólogo inglês que se especializou em anatomia
comparada. Ficou conhecido como “o buldogue de Darwin” por sua defesa apaixonada da teoria da
evolução. Foi central no desenvolvimento da educação científica na Grã-Bretanha e avô de Aldous
Huxley e Julian Huxley.
7 Clérigos anglicanos do século xvii, que eram extremamente tolerantes e liberais em relação às
formas divergentes de culto e de doutrina.
8 Herbert George Wells (1866–1946), escritor inglês famoso por seus romances de ficção científica.
Autor de A conspiração aberta, um dos primeiros a tratar da Nova Ordem Mundial.
9 “Scepticism of the instrument”, revista Mind, volume xiii, número 51 e apêndice do livro A Modern
Utopia, publicado por H. G. Wells em 1905.
10 John Milton (1608–1674), poeta inglês, autor do clássico Paraíso perdido.
11 Alfred Tennyson (1809–1892), poeta laureado da Grã-Bretanha e da Irlanda durante a maior parte
do reinado da Rainha Vitória. Inspirava-se majoritariamente em temas mitológicos clássicos e ainda é
um dos poetas mais populares da Grã-Bretanha.
12 No original: “Let the great world spin for ever down the ringing grooves of change”.
13 Samuel Langhorne Clemens (1835–1910), mais conhecido como Mark Twain. Escritor,
empreendedor, humorista e editor americano. Teve experiência nas indústrias de impressão e
mineração, e a sua primeira estória de sucesso foi uma visão cômica de uma narrativa ouvida nos
tempos de mineiro. Tinha grande interesse pela ciência e tecnologia, tendo mantido uma longa
amizade com Nikola Tesla.
14 John Davidson foi um poeta escocês, dramaturgo e romancista, mais conhecido por suas baladas.
Em 1909, devido a dificuldades financeiras combinadas com problemas mentais e físicos, se
suicidou. George Bernard Shaw tentou ajudá-lo financeiramente de todas as formas, mas não
conseguiu evitar a tragédia.
15 Bairro de Londres.
16 Distrito do sudoeste de Londres.
17 John Wilkes (1725–1797), jornalista, político e radical inglês. Introduziu em 1776 a primeira
moção de reforma parlamentar no Parlamento Britânico e apoiou os rebeldes americanos durante a
Guerra de Independência. Em 1774 se tornou prefeito de Londres. Teve uma virada conservadora no
fim da vida, semelhante à de Edmund Burke, associada à rejeição à violência da Revolução Francesa.
18 Nome figurativo para uma pessoa extremamente convencional ou pedante. Tornou-se uma figura
de linguagem encontrada em toda a literatura européia.
19 Anatole France (1844–1924), romancista, poeta e jornalista francês de característica irônica e
cética. Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1921. É considerado o modelo para o ídolo literário
do personagem principal de Em busca do tempo perdido de Marcel Proust.
20 Joseph Ernest Renan (1823–1892) foi um profundo conhecedor das línguas e civilizações semitas,
filósofo, historiador e escritor francês. Ficou conhecido por ser o autor do popular A vida de Jesus,
onde promoveu a noção do “Jesus histórico” que não realizou milagres.
CAPÍTULO 3
A ética do país das fadas
QUANDO UM HOMEM DE NEGÓCIOS CRITICA O IDEALISMO de seu
estagiário, esta é a fala usual: “Sim, quando somos jovens temos esses
ideais abstratos e esses castelos de areia; mas na maturidade tudo se
desmancha como as nuvens, e terminamos por acreditar na política
pragmática, no uso do maquinário que temos em mãos e na conformidade
ao mundo como ele é”. Era assim, ao menos, que os filantropos anciões e
veneráveis, que agora jazem em seus honrados túmulos, falavam a mim
quando era um garoto. Mas cresci e tenho descoberto que esses filantropos
anciões estavam a contar mentiras. Passou-se comigo exatamente o
contrário do que disseram que ocorreria. Disseram que perderia meus ideais
e começaria a acreditar nos métodos dos políticos pragmáticos. No entanto,
não perdi nada de meus ideais; minha fé no fundamental é o que sempre foi.
O que perdi foi minha fé antiga e infantil na política pragmática. Preocupo-
me mais do que nunca com a batalha do Armagedom; mas não penso como
outrora nas eleições gerais. Quando bebê saltava do colo de minha mãe a
uma mera menção do espetáculo eleitoral. Não; a visão ideal é sempre
sólida e confiável; é sempre um fato. A realidade é que muitas vezes não
passa de uma fraude. Creio mais do que nunca no liberalismo, mas houve
uma época de inocência rósea na qual acreditei nos liberais.
Tomo isso como exemplo de uma de minhas crenças duradouras porque,
tendo agora de traçar as raízes de minha especulação pessoal, considero que
esse é meu único viés positivo. Fui criado como um liberal, e sempre
acreditei na democracia, na elementar doutrina liberal do autogoverno. Se
alguém acha a frase vaga ou crua, posso somente parar por um momento
para explicar que o princípio da democracia, como o vejo, pode ser
afirmado em duas proposições. A primeira é esta: que as coisas comuns a
todos os homens são mais importantes que as peculiares a um só homem.
As coisas comuns são mais valiosas que as extraordinárias; minto: são mais
extraordinárias. O homem é algo mais terrível e estranho que os homens. O
senso do milagre da humanidade deveria estar sempre mais vívido em nós
do que as maravilhas do poder, do intelecto, da arte e da civilização. O
simples homem bípede, como tal, deveria tocar mais o coração do que
qualquer música e ser mais impressionante que qualquer caricatura. A
morte é mais trágica que a morte por inanição. Ter um nariz é mais cômico
do que ter um nariz normando.
Este é o primeiro princípio da democracia: as coisas essenciais nos
homens são as coisas que têm em comum, e não as coisas particulares. E o
segundo princípio é este: que o instinto ou desejo político é uma dessas
coisas comuns. Cair sob os encantos do amor é mais poético do que cair em
um sarau de poesia. A afirmação democrática é de que o governo (ajudando
a ordenar a tribo) é como cair sob os encantos do amor, e não como cair em
um sarau de poesia. Não é algo análogo a tocar o órgão na igreja, pintar
uma tela, descobrir o Pólo Norte (esse hábito insidioso), fazer acrobacias,
ser um astrônomo real e assim por diante. Pois queremos que um homem
realize esses feitos com excelência. É, por outro lado, algo análogo a
escrever suas próprias cartas de amor ou assoar seu nariz. Queremos que
um homem faça essas coisas por conta própria, mesmo que as faça muito
mal. Não discuto aqui a verdade dessas concepções; sei que muitos homens
modernos anseiam que suas esposas sejam escolhidas por cientistas, e
talvez logo anseiem, até onde sei, que as enfermeiras assoem seus narizes.
Digo simplesmente que a humanidade reconhece essas funções humanas
universais, e que a democracia coloca o governo entre elas. Em suma, esta é
a fé democrática: as coisas mais terrivelmente importantes devem ser da
alçada do homem comum — o cortejo amoroso, a educação dos jovens, as
leis do Estado. Isso é a democracia; e é nisso que sempre acreditei.
Mas há algo que não consigo entender desde a minha juventude. Nunca
entendi de onde tiraram a idéia de que a democracia se opõe de alguma
forma à tradição. É óbvio que a tradição é somente a democracia que se
estende no tempo. É confiar no consenso das vozes comuns da humanidade
e não em algum evento isolado ou arbitrário. Aquele que cita algum
historiador alemão contra a tradição da Igreja Católica, por exemplo, apela
à aristocracia. Busca a superioridade de um especialista contra a terrível
autoridade de uma multidão. É simples ver por que uma lenda é tratada, e
deve ser tratada, mais respeitosamente do que um livro de história. A lenda
é geralmente feita pela maioria da população de uma vila, que é sã. O livro
é geralmente escrito pelo único homem da vila que é louco. Aqueles que
clamam contra a tradição dizendo que nossos ancestrais eram ignorantes
podem bradá-lo no Carlton Club,1 junto com a afirmação de que os eleitores
dos bairros pobres são ignorantes. Não irão nos afetar. Se damos grande
importância à opinião unânime dos homens comuns quando lidamos com os
assuntos cotidianos, não há porque desconsiderá-la quando lidamos com a
história ou as fábulas. A tradição pode ser considerada como uma extensão
do sufrágio eleitoral. Significa dar o voto à mais obscura de todas as
classes, nossos ancestrais. É a democracia dos mortos. A tradição rejeita a
submissão à oligarquia arrogante e mesquinha daqueles que por hora
perambulam por aí. Todos os democratas rejeitam que os homens não
possam votar por um acidente de nascimento; a tradição rejeita que sejam
desqualificados pelo acidente da morte. A democracia diz que não devemos
desprezar a opinião de um homem bom, mesmo que seja nosso lacaio; a
tradição nos conclama a não negligenciar a opinião de um homem bom,
mesmo que seja nosso pai. Eu, ao menos, não posso separar as idéias da
democracia e da tradição; parece-me evidente que são a mesma idéia.
Teremos os mortos em nossas assembléias. Os gregos antigos votavam com
pedras; eles votarão com suas lápides. E tudo isso é muito regular e oficial,
pois a maior parte das lápides, como a maior parte das urnas, têm a marca
de uma cruz.
Devo primeiramente dizer, portanto, que se tenho um viés, é sempre um
viés em favor da democracia e conseqüentemente também da tradição.
Antes de chegarmos a qualquer princípio teorético ou lógico contento-me
com esta equação pessoal: sempre me inclinei mais a acreditar no grosso da
classe trabalhadora do que na distintíssima e complicada classe literária a
que pertenço. Prefiro até mesmo as fantasias e preconceitos do povo que
enxerga a vida do interior às mais cristalinas demonstrações daqueles que
enxergam a vida do exterior. Sempre confiarei nas fábulas das matronas em
detrimento dos fatos das coquetes. Enquanto a sabedoria for uma sabedoria
materna, ela pode ser tão louca e irracional quanto quiser.
Preciso agora sistematizar uma posição geral, e não finjo ter qualquer
treino nessas coisas. Proponho fazê-lo, portanto, elencando uma por uma as
três ou quatro idéias fundamentais que descobri por mim mesmo, e
praticamente da mesma forma que as descobri. Depois as sistematizarei
grosseiramente, resumindo minha filosofia pessoal ou religião natural; e
ainda depois descreverei minha impressionante descoberta de que tudo já
fora anteriormente descoberto pelo cristianismo. Mas destas descobertas
persuasivas que preciso elencar, a primeira diz respeito à questão da
tradição popular. E sem a explicação pregressa sobre a tradição e a
democracia dificilmente poderia clarificar algo sobre minha experiência
mental. Ainda não sei se poderei clarificá-la, mas proponho-me agora a
tentá-lo.
Minha primeira e última filosofia, na qual creio com uma certeza
inquebrantável, foi aprendida no berço. Aprendi-a de uma babá; isto é, da
sacerdotisa solene — e apontada pelas estrelas — da democracia e da
tradição. As coisas em que mais acredito, e ainda mais agora, são o que
chamamos de contos de fadas. Surgem diante de mim como coisas
inteiramente razoáveis. Não são fantasias: as outras coisas é que são
fantásticas em comparação. Comparadas a eles, a religião e o racionalismo
são ambos anormais, embora o racionalismo seja anormalmente errado e a
religião anormalmente verdadeira. O país das fadas é simplesmente a terra
ensolarada do senso comum. Não é a terra que julga o céu, mas o céu que
julga a terra; logo, para mim, não era a terra que criticava a terra dos elfos,
mas a terra dos elfos que criticava a terra. Conheci o pé de feijão mágico
antes de provar o feijão; tive certeza do homem que foi à lua antes de estar
certo da lua. E tudo isso está em consonância com a tradição popular. Os
poetas menores são naturalistas, e falam dos arbustos e riachos; mas os
bardos dos antigos épicos e fábulas eram transcendentais, e falavam dos
deuses dos riachos e dos arbustos. É a isso que se referem os modernos
quando dizem que os antigos não “apreciavam a natureza”, porque estes
diziam que a natureza era divina. As babás velhas não narram estórias sobre
a relva para as crianças, mas sim, sobre as fadas que dançam sobre a relva;
e os gregos antigos não trocariam as dríades pelas árvores.
Mas trato aqui da ética e da filosofia dos contos de fadas. Se fosse
descrevê-los em detalhes, poderia observar os muitos princípios nobres e
saudáveis que deles emergem. Há a lição cavalheiresca de “João e o pé de
feijão”: os gigantes devem morrer porque são gigantescos. É um motim
viril contra o orgulho, pois o rebelde é mais arcaico que todos os reinos, e o
jacobino mais tradicional que o jacobita.2 Há a lição de “Cinderela”, que é a
mesma do Magnificat — exaltavit humiles. Há a grande lição de “A Bela e
a Fera”: uma coisa deve ser amada antes de ser amável. Há a terrível
alegoria de “A Bela adormecida”, que nos narra como a criatura humana foi
abençoada com todos os dons, mas ainda assim foi amaldiçoada pela morte;
e como a própria morte pode, talvez, adormecer. Mas não me preocupo com
nenhuma das constituições separadas da terra dos elfos, e sim com o
espírito completo de sua lei, que aprendi antes de poder falar, e que estará
comigo quando não mais puder escrever. Preocupo-me com uma certa
forma de olhar a vida, que foi em mim gerada pelos contos de fadas e que
desde então foi humildemente ratificada pelos simples fatos.
Posso colocá-la da seguinte maneira: há certas seqüências ou
desenvolvimentos (casos de uma coisa que se segue à outra) que são
genuinamente razoáveis e verdadeiramente necessários, como as seqüências
matemáticas e puramente lógicas. Nós, os habitantes do país das fadas (de
todas as criaturas as mais razoáveis) admitimos essa razão e essa
necessidade. Por exemplo, se as irmãs feiosas são mais velhas que
Cinderela, é (num sentido férreo e terrível) necessário que Cinderela seja
mais nova que as irmãs feiosas. Não há como escapar disso. Haeckel pode
enxergar tanto fatalismo quanto quiser nesse fato: ele deve ser mesmo fatal.
Se João é o filho de um moleiro, um moleiro é o pai de João. A fria razão o
decreta de seu horrível trono: e nós, habitantes do país das fadas, nos
submetemos. Se todos os três irmãos cavalgam cavalos, há seis animais e
dezoito pernas na estória: isso é o verdadeiro racionalismo, de que o país
das fadas está cheio. Mas assim que coloquei minha cabeça acima das sebes
dos elfos e comecei a notar o mundo natural, percebi algo extraordinário: os
doutos homens de óculos estavam a falar dos eventos reais — a alvorada e a
morte, e tudo mais — como se fossem racionais e inevitáveis. Falam como
se o fato de que árvores dão frutos fosse tão necessário quanto o fato de que
uma árvore mais duas árvores são três árvores. Mas não é. Há uma grande
diferença de acordo com o teste do país das fadas, o teste da imaginação.
Não é possível imaginar dois mais um e não chegar a três. Mas é fácil
imaginar que as árvores possam não dar frutos, e sim candelabros de ouro
ou tigres pendurados pelos rabos. Esses homens de óculos glorificavam um
homem chamado Newton que, atingido por uma maçã, descobriu uma lei.
Mas não podiam ver a distinção entre uma lei verdadeira, uma lei racional,
e o simples fato da queda das maçãs. Se a maçã atingiu o nariz de Newton,
o nariz de Newton atingiu a maçã. Isso é uma verdadeira necessidade: uma
coisa não pode se dar sem a outra. Mas podemos perfeitamente conceber
que a maçã não tenha caído sobre o seu nariz; podemos fantasiá-la voando
ardentemente pelo ar para atingir outro nariz, pelo qual tinha uma antipatia
ainda maior. Sempre mantivemos em nossos contos de fadas essa clara
distinção entre a ciência das relações mentais, em que há realmente leis, e a
ciência dos fatos físicos, onde não há lei alguma, mas somente estranhas
repetições.3 Acreditamos em milagres corporais, mas não em
impossibilidades mentais. Acreditamos que o pé de feijão se ergue ao céu;
mas isso não nos confunde quanto à questão filosófica de quanto são cinco
feijões.
Eis a perfeição peculiar do tom e da verdade nas lendas de berço. O
cientista diz: “Corte o pé, e uma maçã cairá”; mas ele o diz calmamente,
como se uma idéia levasse à outra. A bruxa dos contos de fadas diz: “Sopre
a trombeta, e o castelo do ogro cairá”; mas ela não o diz como algo em que
o efeito obviamente emergiu da causa. Sem dúvida, ela deu o conselho a
muitos heróis, e viu muitos castelos caírem, mas não perdeu por isso sua
racionalidade e seu espanto. Não confunde sua cabeça até imaginar uma
conexão mental necessária entre uma trombeta e a queda da torre. Mas o
cientista se confunde até o ponto de imaginar uma conexão mental
necessária entre a maçã que deixa a árvore e sua chegada ao solo. Fala
realmente como se estivesse encontrando não somente um conjunto de fatos
maravilhosos, mas uma verdade que conecta esses fatos. Fala como se a
conexão de duas coisas fisicamente estranhas as ligasse filosoficamente.
Sente que se uma coisa incompreensível se segue constantemente à outra
coisa incompreensível, as duas juntas redundam em uma coisa
compreensível. Dois enigmas obscuros produzem uma resposta cristalina.
No país das fadas evitamos a palavra “lei”; mas na terra da ciência há
uma peculiar apreciação por ela. Dessa forma, uma conjectura interessante
sobre como povos esquecidos pronunciavam o alfabeto se torna a Lei de
Grimm.4 Mas a Lei de Grimm é bem menos intelectual que os contos de
fadas de Grimm. Os contos são, no fim das contas, certamente contos; mas
a lei não é uma lei. Uma lei implica que conhecemos a natureza da
generalização e de sua realização; e não simplesmente que notamos alguns
de seus efeitos. Se há uma lei que diz que ladrões de carteiras devem ir para
a prisão, ela implica que há uma conexão mental imaginável entre a idéia da
prisão e a idéia do roubo de carteiras. E sabemos qual é a idéia. Podemos
explicar por que tiramos a liberdade daqueles que se permitem certas
liberdades. Mas não podemos explicar por que um ovo pode se tornar uma
galinha mais do que podemos explicar por que um urso poderia se tornar
um príncipe encantado. Como idéias, o ovo e a galinha são ao menos tão
distantes quanto o urso e o príncipe, já que nenhum ovo sugere por si
mesmo uma galinha, enquanto alguns príncipes sugerem ursos. Dado,
então, que algumas transformações realmente acontecem, é essencial que as
consideremos ao modo filosófico dos contos de fadas, e não ao modo pouco
filosófico da ciência e das “leis da natureza”. Quando nos for questionado o
porquê de os ovos se tornarem pássaros ou de as frutas caírem no outono,
devemos responder exatamente como a fada-madrinha responderia se
Cinderela a perguntasse o porquê de os ratos se transformarem em cavalos
ou de sua roupa de princesa desaparecer à meia-noite. Devemos responder
que é magia. Não se trata de uma lei, pois não compreendemos sua fórmula
geral. Não é uma necessidade, pois apesar de podermos contar com sua
ocorrência na prática, não temos o direito de dizer que deve sempre ocorrer.
Não é possível argumentar a favor da inalterabilidade da lei (como
fantasiou Huxley com a tese de que podemos contar com o curso ordinário
das coisas); só podemos nela apostar. Arriscamos a possibilidade remota de
um milagre assim como a de uma panqueca envenenada ou de um cometa
apocalíptico. Mas não o mencionamos, não porque é um milagre, e,
portanto, uma impossibilidade, mas porque é um milagre, e, portanto, uma
exceção. Todos os termos dos livros científicos como “lei”, “necessidade”,
“ordem” e “tendência” são realmente anti-intelectuais, pois pressupõem
uma síntese interior que está ausente. As únicas palavras que já me
saciaram como uma descrição da natureza são os termos usados nos contos
de fadas, como “feitiço”, “encanto” e “magia”. Elas expressam a
arbitrariedade do fato e seu mistério. Uma árvore cresce porque é uma
árvore mágica. A água desce morro abaixo porque é encantada. O sol brilha
porque é encantado.
Nego veementemente que isso seja fantástico ou até mesmo místico.
Teremos algum misticismo mais tarde; mas essa linguagem de contos de
fadas sobre as coisas é perfeitamente racional e agnóstica. É a única forma
de expressar em palavras minha percepção clara e definida de que uma
coisa é bem distinta da outra; que não há nenhuma conexão lógica entre
voar e botar ovos. É o homem que fala sobre “uma lei” que não percebe
quem é o verdadeiro místico. O homem científico comum é estritamente um
sentimental, no sentido essencial de que se abandona e é levado a esmo por
simples associações. Ele viu tantas vezes os pássaros voarem e botarem
ovos que sente que deve existir alguma conexão cálida e sonhadora entre
essas duas idéias; mas não há nenhuma. Um amante rejeitado pode ser
incapaz de dissociar a lua do amor perdido; da mesma forma, o materialista
é incapaz de dissociar a lua da maré. Em ambos os casos não há conexão,
exceto que foram vistas juntas. Um sentimental pode se derreter em
lágrimas diante da simples fragrância de uma macieira, porque, por uma
obscura associação, ela o lembra de sua infância. Da mesma forma, o
professor materialista (apesar de esconder as lágrimas) é também um
sentimental, porque, por uma associação obscura, as macieiras o lembram
das maçãs. Mas o frio racionalista do país das fadas não vê por que, de
antemão, a macieira não poderia fazer crescer tulipas escarlates; e às vezes
elas o fazem em seu país.
Esse espanto elementar, no entanto, não é uma simples fantasia derivada
dos contos de fadas; ao contrário, toda a chama dos contos de fadas deriva
disso. Assim como todos gostamos de contos de amor porque há um
instinto sexual, também gostamos de contos surpreendentes porque tocam a
nervura do instinto arcaico de surpresa. Isso é provado pelo fato de que
quando éramos crianças bem jovens não precisávamos de contos de fadas;
somente de contos. A pura vida é suficientemente interessante. Uma criança
de sete anos se excita com uma narrativa em que Toninho abre a porta e vê
um dragão. Mas uma criança de três anos se excita ao ouvir que Toninho
abriu uma porta. Os garotos gostam de contos românticos, mas os bebês
gostam de contos realistas — porque os consideram românticos. De fato,
um bebê é praticamente a única pessoa para a qual, penso eu, um moderno
romance realista pode ser lido sem causar tédio. Isso prova que até mesmo
os contos do jardim-de-infância somente ecoam um fulgor quase que pré-
natal de interesse e espanto. Esses contos dizem que as maçãs eram
douradas somente para refrescar o momento esquecido no qual descobrimos
que eram verdes. Enchem os rios de vinho somente para que lembremos,
por um breve e louco momento, que estão cheios de água. Já disse que isso
é completamente razoável e agnóstico. E, na verdade, sou completamente a
favor de um agnosticismo superior quanto a esse ponto; o seu melhor
epíteto é o de ignorância. Todos lemos em livros científicos e em todos os
romances a estória do homem que esqueceu seu nome. Ele perambula pelas
ruas e pode tudo ver e apreciar; somente não pode lembrar quem é. Todos
nós somos o homem dessa estória. Todos esquecemos o que somos. É
possível compreender o cosmos, mas nunca o ego; o eu é mais distante que
qualquer estrela. Amarás o Senhor teu Deus; mas não conhecerás a ti
mesmo. Todos padecemos da mesma calamidade mental; esquecemos
nossos nomes e o que realmente somos. Tudo que chamamos de senso
comum, racionalidade, praticidade e positivismo significa somente que em
certas camadas mortas de nossas vidas esquecemos que esquecemos. Tudo
que chamamos de espírito, arte e êxtase somente significa que em um
terrível momento relembramos que esquecemos.
Mas apesar de (como o homem sem memória da novela) perambularmos
pelas ruas com uma espécie de vaga admiração, ela ainda é admiração. É
admiração em bom português e não somente em latim. O espanto tem um
elemento positivo de louvor. Esse é o próximo marco a ser definido em
nossa peregrinação pelo país das fadas. Falarei no próximo capítulo de
otimistas e pessimistas em seu aspecto intelectual, na medida em que o
possuem. Aqui só busco descrever as grandiosas emoções que não podem
ser descritas. E a mais poderosa das emoções é a de que a vida é tão
preciosa quanto confusa. É um êxtase porque é uma aventura; e uma
aventura porque é uma oportunidade. A bondade do conto de fadas não é
afetada pelo fato de que podem existir mais dragões do que princesas; é
bom estar em um conto de fadas. O teste de toda felicidade é a gratidão; e
senti-me grato, apesar de dificilmente saber a quem. As crianças ficam
gratas quando São Nicolau deixa em suas meias uma cornucópia de doces e
brinquedos. Será que não posso ser grato porque o Papai Noel colocou em
minhas meias a dádiva de duas pernas miraculosas? Agradecemos às
pessoas por cigarros e sapatos como presentes de aniversário. E não posso
agradecer alguém pela dádiva do nascimento?
Havia, então, esses dois sentimentos iniciais, indefensáveis e inegáveis.
O mundo era chocante, mas não simplesmente chocante; a existência era
uma surpresa, mas uma surpresa agradável. De fato, todas as minhas visões
iniciais foram proclamadas com exatidão por um enigma que perdurou em
minha mente desde a meninice. A pergunta era: “O que disse o primeiro
sapo?”. E a resposta era: “Senhor, como me fizeste saltar!”. Isso diz de
forma sucinta tudo que tenho dito. Deus fez o sapo pular; e o sapo prefere
pular. Mas quando essas coisas estão bem assentadas, entra em cena o
segundo grande princípio da filosofia das fadas.
Qualquer um que simplesmente leia os contos de fadas de Grimm ou as
belas coleções do Sr. Andrew Lang5 pode descobri-lo. Somente por
pedantismo irei chamá-lo de doutrina da alegria incondicional. Touchstone
falava da grande virtude de um “se”, e na ética dos elfos toda a virtude
reside em um “se”. O traço característico do encantamento de uma fada
sempre segue esta forma: “Você pode viver em um palácio de ouro e safiras,
se (e somente se) não disser a palavra vaca”; ou “você pode ser feliz para
sempre com a filha do rei, se não lhe mostrar uma cebola”. A visão está
sempre pelo fio de um veto. Todas as coisas colossais e excitantes
dependem de uma coisa pequena que é subtraída. Todas as coisas selvagens
e rodopiantes que são livres dependem de uma única coisa que é proibida.
O Sr. W. B. Yeats,6 em sua poesia élfica exótica e penetrante, descreve os
elfos como anarquistas; eles mergulham em uma anarquia inocente
montando os corcéis do ar:
Cavalgue a crista da caótica onda, e dance sobre as montanhas como uma chama.7
É terrível ter de dizer que o Sr. W. B. Yeats não compreende o país das
fadas. Mas é o que afirmo. Ele é um irlandês irônico, cheio de reações
intelectuais. Não é estúpido o suficiente para compreender o país das fadas.
As fadas preferem os caipiras como eu; aqueles que ficam boquiabertos,
sorriem e fazem o que lhes é ordenado. O Sr. Yeats vê na terra dos elfos
todas as justas insurreições de sua própria raça. Mas a anarquia irlandesa é
uma anarquia cristã, e se funda sobre a razão e a justiça. O feniano8 se
rebela contra algo que compreende perfeitamente bem, mas o verdadeiro
habitante do país das fadas obedece a algo que não compreende. No conto
de fadas uma felicidade incompreensível se sustenta sobre uma condição
incompreensível. Uma caixa se abre, e todos os males voam para dominar o
mundo. Uma palavra é esquecida, e as cidades perecem. Uma lamparina é
acesa, e o amor voa para longe. Uma flor é arrancada, e vidas humanas são
poupadas. Uma maçã é comida, e a esperança em Deus desaparece.
É esse o tom dos contos de fadas, onde não ressoa a anarquia e nem
mesmo a liberdade, apesar de o homem das perversas tiranias modernas
ouvir as notas da liberdade em comparação. Os homens do cárcere de
Portland podem considerar os da Rua Fleet9 livres; mas um estudo mais
detido provará que tanto as fadas quanto os jornalistas são escravos do
dever. As fadas-madrinhas parecem ser ao menos tão rigorosas quanto as
outras madrinhas. Cinderela recebeu uma carruagem do país das maravilhas
e um cocheiro do nada, mas recebeu uma ordem — que pode ter saído de
Brixton10 — de que deveria voltar antes da meia-noite. Ela também possuía
um sapatinho de cristal, e não pode ser coincidência que o cristal seja uma
substância tão comum no folclore. Esta princesa vive em um castelo de
cristal, aquela numa colina de cristal; uma outra vê todas as coisas em um
espelho de cristal; e todas podem viver em casas de cristal se não jogarem
pedras. Essa ubiqüidade do brilho rarefeito do cristal é a expressão do fato
de que a felicidade é luminosa, mas frágil, a substância que é mais
facilmente destruída por uma camareira ou um gato. E esse sentimento
élfico também se apoderou de mim e se tornou meu sentimento diante de
todo o mundo. Sinto e não canso de sentir que a própria vida brilha como o
diamante, mas é tão frágil quanto uma vidraça de cristal; e quando ouvi os
céus sendo comparados ao terrível cristal posso me lembrar de um calafrio.
Temi que Deus deixasse o cosmos se espatifar subitamente.
Lembrem-se, no entanto, que ser frágil não é o mesmo que ser perecível.
Bata em um vidro de cristal, e ele não durará um segundo; mas não o faça, e
ele durará um milênio. Assim era, parece, o deleite do homem, seja na terra
dos elfos ou nesta terra; a felicidade dependia de não se fazer uma coisa que
poderia ser feita a qualquer momento, uma proibição cuja obediência
muitas vezes não era óbvia. Mas o ponto é que para mim isso não parece
injusto. Se o terceiro filho do moleiro dissesse à fada: “Explique por que
não devo ficar de cabeça para baixo no palácio das fadas”, ela poderia
simplesmente responder, “bem, se é assim, explique o palácio das fadas”.
Se Cinderela diz: “Por que devo deixar o baile à meia-noite?”, sua fada-
madrinha poderia responder, “como é possível que fique lá até a meia-
noite?”. Se deixo como herança a um homem meus dez elefantes que falam
e uma centena de cavalos alados, ele não pode reclamar se as condições
forem tão excêntricas quanto a dádiva. A cavalo dado não se olha os dentes.
E a existência parecia-me ser um legado excêntrico a ponto de não me levar
a reclamar sobre minha incompreensão das limitações da visão, quando na
verdade não compreendia a visão que limitavam. A moldura era ao menos
tão estranha quanto a pintura. A proibição pode ser tão selvagem quanto a
visão, tão surpreendente quanto o sol, tão informe quanto as águas, tão
fantástica e terrível quanto as árvores majestosas.
Por essa razão (podemos chamá-la de filosofia da fada-madrinha) nunca
pude me juntar aos jovens de meu tempo e sentir o que eles chamavam de o
sentimento geral de revolta. Eu resistiria, com a graça de Deus, a quaisquer
regras que fossem más, e lidarei com esta definição em outro capítulo. Mas
não me sentia disposto a resistir a qualquer regra simplesmente porque era
misteriosa. As heranças são às vezes obtidas por formalidades tolas, como a
quebra de um graveto ou o pagamento de um grão de pimenta; e eu estava
disposto a obter a imensa herança dos céus e da terra por semelhante tipo de
fantasia feudal. Isto não poderia ser mais absurdo do que tomar posse dos
céus e da terra. Neste estágio, darei somente um exemplo ético do que
quero dizer. Nunca poderia me unir ao murmúrio geral daquela geração em
ascensão contra a monogamia, pois nenhuma restrição ao sexo parecia tão
estranha e inesperada quanto o próprio sexo. Poder, como Endimião,11 fazer
amor com a lua e então protestar que Júpiter mantinha suas próprias luas em
um harém parecia-me (criado como fui em contos de fadas, como
Endimião) um anticlímax vulgar. Ser fiel a uma mulher é um preço pequeno
por chegar a ver uma mulher. Reclamar que só poderia me casar uma vez
era como reclamar que só nasci uma vez. Era incomensurável com a
maravilha da dádiva, mesmo que esta fosse única. Demonstrava não uma
sensibilidade exagerada ao sexo, mas uma peculiar insensibilidade a ele. É
um tolo aquele que protesta não poder entrar no Éden por cinco portais
simultâneos. A poligamia é uma ausência da plenitude sexual; é como um
homem que colhe cinco pêras simplesmente para colher algo. Os estetas
tocaram as raias da loucura lingüística em seu elogio das coisas amáveis. A
lanugem do cardo os fez chorar; um besouro brilhante os colocava de
joelhos. No entanto, suas emoções nunca me impressionaram nem por um
instante, pela simples razão de que nunca lhes passou pela cabeça que
deveriam pagar pelo seu prazer com ao menos algum sacrifício simbólico.
Os homens (assim o sentia) poderiam jejuar por quarenta dias pelo prazer
de ouvir um melro. Os homens poderiam atravessar o fogo para encontrar
uma flor da primavera. No entanto, esses amantes da beleza sequer podiam
ficar sóbrios pelo prazer do canto do melro. Eles não passariam pelo
casamento cristão comum como um meio de chegar à recompensa da flor
da primavera. Certamente podemos pagar pelo deleite extraordinário com a
moral comum. Oscar Wilde disse que o crepúsculo não é valorizado porque
não podemos pagar por ele. Mas Oscar Wilde12 estava errado, pois
podemos pagar pelo crepúsculo; na verdade, basta não ser Oscar Wilde.
Deixei os contos de fadas aos pés do berço, e desde então não encontrei
livros tão sensatos. Deixei a babá guardiã da tradição e da democracia, e
ainda não descobri qualquer tipo moderno tão saudavelmente radical ou tão
saudavelmente conservador. Mas eis o que mais importa: quando primeiro
adentrei a atmosfera mental do mundo moderno, descobri que o mundo
moderno era positivamente oposto em dois pontos à minha babá e às
minhas lendas de berço. Levei muito tempo a descobrir que o mundo estava
errado e minha babá certa. O realmente curioso era o seguinte: o
pensamento moderno contradizia o credo básico de minha meninice em
suas duas doutrinas mais essenciais. Expliquei que os contos de fadas me
instalaram em duas convicções; primeiro, que o mundo é selvagem e
espantoso, mas poderia ser muito diferente — e isso o torna ainda mais
delicioso; segundo, que antes das loucuras e delícias é possível ser modesto
e se submeter às mais estranhas limitações de uma bondade tão estranha.
Mas descobri todo o mundo moderno correndo como a maré alta contra as
minhas duas afeições; e o choque dessa colisão criou dois sentimentos
súbitos e espontâneos, que carrego desde então e que, mesmo que
grosseiramente, têm se consolidado em verdadeiras convicções.
Primeiro, descobri todo o mundo moderno falando do fatalismo
científico, dizendo que tudo é como deveria ser, o cosmos se desdobrando
sem erros e incertezas desde o princípio. A folha da árvore é verde porque
nunca poderia ter sido outra coisa. Mas o filósofo do conto de fadas é grato
que a folha seja verde precisamente porque poderia ter sido escarlate. Ele
sente como se ela tivesse se tornado verde no exato instante em que a olhou.
Regozija-se com a brancura da neve sob o argumento estritamente razoável
de que poderia ter sido negra. Toda cor tem em si a ousada qualidade de
uma escolha; o vermelho das rosas de jardim é decisivo e dramático, como
o sangue há pouco derramado. Ele sente que algo foi feito. Mas os grandes
deterministas do século xix eram fortemente contrários ao sentimento
natural de que algo foi feito há apenas um instante. Na verdade, de acordo
com eles, nada aconteceu realmente desde o princípio do mundo. Nada
realmente aconteceu desde que a existência aconteceu; e mesmo sobre essa
data eles têm dúvidas.
O mundo moderno como o descobri estava pronto para o calvinismo
moderno, para a necessidade férrea das coisas serem o que são. Mas quando
cheguei a questioná-los, não tinham realmente prova alguma dessa
inevitável repetição das coisas, exceto o fato de que as coisas se repetiam.
Só que a simples repetição tornava as coisas, para mim, ainda mais
estranhas e não mais racionais. Era como se, tendo visto um nariz exótico
na rua e o rejeitado como um acidente, logo visse mais seis narizes com a
mesma forma exótica. Certamente entreteria por um instante a idéia de que
se tratava da obra de alguma sociedade secreta local. Que um elefante
tivesse uma tromba era estranho; mas que todos os elefantes tivessem
trombas começava a indicar um plano. Claro que se trata somente de uma
emoção, e uma emoção ao mesmo tempo sutil e persistente. Mas a repetição
na natureza parecia às vezes ser uma repetição excitada, como a de um
furioso diretor de escola que repetisse a mesma coisa indefinidamente. A
relva parecia sinalizar algo a mim com todos os seus dedos
simultaneamente; as estrelas pareciam determinadas a ser compreendidas. O
sol me obrigaria a vê-lo se nascesse mil vezes. As recorrências do universo
nasciam ao ritmo enlouquecedor de um encantamento, e comecei a entrever
uma idéia.
Todo o materialismo triunfante que domina a mente moderna se sustenta
em última instância sobre um pressuposto; e um falso pressuposto. Ele
supunha que se uma coisa se repete indefinidamente, ela é provavelmente
morta, é a engrenagem de um relógio. As pessoas sentem que se o universo
fosse pessoal ele mudaria constantemente; se o sol estivesse vivo, ele
dançaria. E isso é uma falácia até mesmo em relação aos fatos conhecidos.
Pois a variância nos assuntos humanos geralmente emerge, não da
vitalidade, mas da morte; pelo fenecer ou pela quebra da força e do desejo.
Um homem altera seus movimentos devido a algum leve elemento de
cansaço ou fracasso. Entra em um ônibus porque está cansado de andar; ou
anda porque está cansado de ficar sentado. Mas se sua vida e sua alegria
fossem gigantescas a ponto de nunca cansar de ir a Islington,13 ele poderia
ir a Islington tão regularmente quanto o Rio Tâmisa vai a Sheerness.14 A
própria velocidade e êxtase de sua vida teriam a quietude da morte. O sol
nasce todas as manhãs. Eu não me levanto todas as manhãs, mas a variação
não é devido à minha atividade, mas sim à minha prostração. Para colocar a
questão nos termos de um provérbio popular, pode ser que o sol nasça
regularmente porque nunca se cansa de nascer. Sua rotina pode emergir não
da falta de vida, mas de um ímpeto vital. Isso pode ser visto, por exemplo,
nas crianças, quando descobrem algum jogo ou piada que particularmente
apreciam. Uma criança move suas pernas ritmicamente pelo excesso e não
pela falta de vida. As crianças, porque têm uma vitalidade transbordante,
porque são de um espírito intenso e livre, desejam a repetição e a
imutabilidade das coisas. Elas sempre dizem: “De novo”; e o adulto repete a
brincadeira até praticamente desfalecer. Pois os adultos não têm força
suficiente para se regozijar na monotonia. Mas talvez Deus seja forte o
suficiente para nela se regozijar. É possível que Deus diga, a cada manhã,
“de novo” ao sol; e a cada anoitecer diga “de novo” à lua. Pode ser que as
margaridas não sejam semelhantes por uma necessidade automática; pode
ser que Deus faça cada margarida separadamente, mas que nunca se canse
de fazê-las. Pode ser que Ele tenha um apetite eterno e infantil; pois
pecamos e nos tornamos velhos, mas nosso Pai é eternamente jovem. A
repetição na natureza pode não ser uma mera recorrência; pode ser uma
repetição teatral. Os céus podem pedir bis ao pássaro que botou um ovo. Se
a mulher concebe uma criança humana em vez de um peixe, um morcego,
ou um grifo, não necessariamente isso se deve à condenação a um destino
animal morto e sem sentido. Pode ser que nossa pequena tragédia tenha
tocado os deuses, que eles a admirem de suas galerias estreladas, e que ao
fim de cada drama o homem seja convocado novamente para o palco. A
repetição pode atravessar milhões de anos, pela simples escolha, e pode
parar a qualquer instante. O homem pode residir sobre a terra geração após
geração, e ainda assim cada nascimento pode ser positivamente o último.
Essa foi minha primeira convicção, gerada pelo choque de minhas
emoções infantis com o credo moderno em minha maturidade. Sempre senti
vagamente que os fatos eram milagres por serem maravilhosos: desde então
passei a pensá-los como milagres por apresentarem um caráter voluntarista.
Eles eram, ou poderiam ser, os exercícios repetidos de alguma vontade. Em
suma, sempre acreditei que havia mágica no mundo: desde então pensei que
também havia um mágico. E isso apontou uma emoção profunda sempre
presente e subconsciente de que este mundo tinha um sentido; e se há um
sentido, há uma pessoa. Sempre senti a vida antes de tudo como uma
estória: e se há uma estória, há o contador de estórias.
Mas o pensamento moderno também atingiu minha segunda tradição
humana. Voltou-se contra o sentimento élfico sobre os limites e condições
rigorosas. Amava falar sobre o expansionismo e a grandiosidade. Herbert
Spencer15 ficaria bastante irritado se alguém o chamasse de imperialista,
mas é uma vergonha que ninguém o tenha dito. Ele era um imperialista do
tipo mais baixo. Popularizou a desprezível noção de que o tamanho do
sistema solar deveria silenciar o dogma espiritual do homem. Mas por que
um homem deveria entregar sua dignidade ao sistema solar e não a uma
baleia? Se o simples tamanho prova que o homem não é a imagem de Deus,
então a baleia pode ser uma imagem um tanto quanto informe de Deus, no
que poderíamos chamar de retrato impressionista. É absolutamente fútil
argumentar que o homem é pequeno comparado ao cosmos, pois ele sempre
foi pequeno comparado à árvore mais próxima. Mas Herbert Spencer, em
seu imperialismo precipitado, insistiria que fomos de alguma forma
conquistados e anexados pelo universo astronômico. Falava de homens e
seus ideais exatamente como o mais insolente defensor da união britânica
falava dos irlandeses e seus ideais. Transformou a humanidade em uma
pequena nacionalidade. E sua influência maligna pode ser vista nos mais
espirituosos e honoráveis dentre os divulgadores científicos mais recentes; e
particularmente nos primeiros romances do Sr. H. G. Wells. Muitos
moralistas exageraram o mal que grassa sobre a terra, mas o Sr. Wells e sua
escola tornaram o céu mau. Deveríamos erguer os olhos para as estrelas que
anunciam nossa ruína.
Mas o expansionismo de que falo era ainda mais perverso do que tudo
isso. Observei que o materialista, como o louco, está em uma prisão: a
prisão de seu próprio pensamento. Os expansionistas pareciam pensar que
era singularmente inspirador dizer repetidamente que a prisão era enorme.
Mas o tamanho desse universo científico não trazia nenhuma novidade ou
alívio. O cosmos marchava eternamente, mas nem na mais louca
constelação havia algo de realmente interessante; algo como, por exemplo,
o perdão e o livre-arbítrio. A grandiosidade ou infinitude secreta de seu
cosmos nada acrescentava. Era como dizer ao prisioneiro no cárcere de
Reading que ele ficaria feliz em ouvir que o cárcere agora cobria metade do
país. O carcereiro só poderia mostrar corredores de pedra cada vez mais
longos, iluminados por luzes macabras e vazios de tudo que é humano.
Esses expansionistas do universo nada tinham a mostrar senão corredores
infinitos de espaço iluminados por estrelas macabras e vazios de tudo que é
divino.
No país das fadas havia uma lei real, uma lei que poderia ser violada,
pois toda lei por definição o pode. Mas o maquinário dessa prisão cósmica
era algo que não poderia ser violado; pois nós mesmos éramos somente
parte do maquinário. Ou éramos incapazes de realizar o que quer que fosse,
ou estávamos destinados a fazê-lo. A idéia da condição mística
praticamente desaparece; não é possível manter nem a solidez da
manutenção das leis, nem a diversão de desafiá-las. A grandeza do universo
nada tinha do frescor e da leveza que elogiamos no universo do poeta. Esse
universo moderno é literalmente um império; isto é, ele era vasto, mas não
era livre. Havia quartos sem janelas cada vez maiores, quartos grandiosos
de uma perspectiva babilônica; mas era impossível encontrar a menor janela
ou a menor brisa do ar exterior.
Suas paralelas infernais pareciam se expandir com a distância; mas para
mim todas as coisas boas têm um ponto final, como as espadas. Ao perceber
que a celebração da imensidão do cosmos era tão pouco satisfatória para
minhas emoções, comecei a questioná-la timidamente; e logo descobri que
toda essa atitude era ainda mais rasa do que eu poderia imaginar. De acordo
com essas pessoas, o cosmos era uma unidade porque tinha uma única lei
inquebrantável. Somente acrescentavam que além de ser uma unidade, ele
era a única coisa que realmente existe. Por que, então, deveríamos nos
preocupar particularmente com sua grandeza? Não há nada a ser
comparado. Poderíamos também dizer que ele é pequeno. Um homem pode
dizer: “Amo esse vasto cosmos, com sua multidão de estrelas e de criaturas
as mais variadas”. Mas se é assim, por que um homem não poderia dizer:
“Amo este aconchegante cosmos, com seu número decente de estrelas e
tantas criaturas quanto posso desejar ver”? Tanto faz: ambos são
sentimentos. É um mero sentimento se regozijar com o fato de que o sol é
maior que a terra; e também é um sentimento tão saudável quanto se
regozijar com o fato de que o sol não é ainda maior. Um homem escolhe se
emocionar com a grandeza do mundo; mas por que ele não poderia escolher
se emocionar com sua pequenez?
Ocorre que carregava comigo essa emoção. Quando amamos algo o
chamamos por diminutivos, mesmo que seja um elefante ou um membro da
Guarda Real. A razão é que, tudo, não importa quão grande seja, pode ser
concebido como uma completude, e como algo pequeno em sua perfeição.
Se os bigodes militares não sugerissem uma espada ou as trombas um rabo,
então o objeto seria vasto por ser imensurável. Mas no momento em que se
imagina um guarda real é possível imaginar um que seja pequeno. No
momento em que se vê um elefante é possível chamá-lo de elefantinho. Se é
possível fazer a estátua de uma coisa, também é possível fazer uma
estatueta. Essas pessoas professavam que o universo era uma só coisa
coerente; não amavam o universo. Mas eu estava terrivelmente apaixonado
pelo universo e queria chamá-lo por um diminutivo. E muitas vezes o fiz, e
ele nunca pareceu se importar. Na verdade, tenho realmente sentido que
esses obscuros dogmas de vitalidade eram melhor expressos ao se chamar o
mundo de pequeno do que de grande. Pois a infinitude remete a uma
espécie de indiferença que é precisamente o inverso do cuidado piedoso e
impetuoso que eu sentia ser próprio ao perigo e valor inestimável da vida.
Os expansionistas mostravam somente uma planície abominável e erma;
mas eu sentia uma espécie de senso econômico sagrado. Pois a economia é
muito mais sagrada que a extravagância. Para eles, as estrelas eram uma
renda perpétua de meio centavo; mas eu me sentia, em relação ao sol
dourado e à lua prateada, como um estudante se sente quando tem uma nota
de cem reais na carteira.
Essas convicções subconscientes são melhor expressas pela tonalidade e
a coloração de certas lendas. Já disse que só estórias de magia podem
expressar meu senso de que a vida é, além de um prazer, um tipo de
privilégio excêntrico. Posso expressar esse sentimento de acolhimento
cósmico aludindo a outro livro que sempre lia durante a meninice, Robinson
Crusoé, o qual voltei a ler nessa época de confusão, e que deve sua
vivacidade eterna ao fato de celebrar a poesia dos limites, ou melhor, o
romance selvagem da prudência. Crusoé é um náufrago em uma pequena
ilha com poucos confortos recém-recuperados do mar: a melhor coisa no
livro é a lista de coisas recuperadas do naufrágio. O maior dos poemas é um
inventário. Todo utensílio de cozinha se torna ideal porque Crusoé poderia
tê-lo perdido no mar. Trata-se de um bom exercício, nas horas vazias e
tristes do dia, olhar para qualquer coisa, para o balde de carvão ou para a
estante de livros, e pensar como você ficaria feliz por tê-la resgatado do
navio que naufragou na ilha solitária. Mas é ainda melhor lembrar como
todas as coisas escaparam por um fio de cabelo: tudo foi salvo de um
naufrágio. Todo homem teve uma aventura horrível: poderia não ver a luz
por um parto inoportuno e infeliz. Os homens falavam muito em minha
infância de sujeitos geniais que se arruinaram; e era comum dizer que
muitos eram um grande “talvez”. Para mim é ainda mais sólido e
surpreendente o fato de que qualquer homem a andar pelas ruas é um
grande talvez.
Mas realmente senti (a fantasia pode parecer tola) como se toda a ordem
e seqüência de coisas fosse o remanescente romântico do navio de Crusoé.
A existência dos dois sexos e de um sol era como o resgate de duas armas e
um machado. Era de uma urgência comovente que nada fosse perdido; mas,
de algum modo, era assaz divertido que nada pudesse ser acrescentado. As
árvores e os planetas pareciam coisas salvas de um naufrágio; e quando vi o
Matterhorn16 fiquei grato por não o ter ignorado em meio à confusão. Senti-
me avaro quanto às estrelas, como se elas fossem safiras (assim são
chamadas no Éden de Milton): guardei as colinas num porquinho-da-índia.
Pois o universo é uma jóia única, e apesar de ser um lugar comum falar de
uma jóia como algo ímpar e inestimável, neste caso falo a verdade literal.
Este cosmos é de fato ímpar e inestimável; pois não pode existir outro.
Assim termina, com uma deficiência inevitável, a tentativa de dizer o
que não pode ser dito. Estas são minhas atitudes supremas acerca da vida; o
solo para a semente da doutrina. De uma maneira obscura nelas pensei antes
de poder escrevê-las, e as senti antes de poder pensá-las: para que possamos
prosseguir com mais facilidade, as recapitularei brevemente agora. Em
primeiro lugar, senti em meus ossos que o mundo não se auto-explicava.
Ele pode ser um milagre com uma explicação sobrenatural, ou um truque
mágico com uma explicação natural. Mas a explicação do truque, para me
satisfazer, deverá ser melhor do que as explicações naturais que tenho
ouvido. A coisa é mágica, seja ela verdadeira ou falsa. Em segundo lugar,
passei a sentir que a magia deve ter um sentido, e que o sentido depende de
uma pessoa que o apreenda. Há algo pessoal no mundo, como o há numa
obra de arte; e essa intencionalidade emerge de forma violenta. Em terceiro
lugar, vi que essa intenção era bela em seu primeiro modelo, a despeito dos
defeitos, como os dragões. Em quarto lugar, vi que o agradecimento
apropriado a essa dádiva é uma espécie de humildade e comedimento:
deveríamos agradecer a Deus pela cerveja e pelo vinho da Burgúndia17 não
exagerando na taberna. Somos também devedores de obediência ao ser que
nos criou, não importando o que ele é. E finalmente — e ainda mais
estranho — veio à minha mente uma impressão vaga e vasta de que de
alguma forma todo bem era um sobrevivente a ser guardado e adorado,
descoberto em meio a uma espécie de ruína primordial. O homem salvou o
seu bem como Crusoé salvou os seus bens: foram resgatados de um
naufrágio. Tudo isso senti, a despeito do desencorajamento de nosso tempo
a esse tipo de sensibilidade. E durante todo esse tempo não tinha ainda
sequer pensado na teologia cristã.
1 Clube exclusivo para homens em Londres que se descreve como “o mais antigo e o mais
importante de todos os clubes conservadores”. A escolha de novos membros só se dá por indicação e
eleição.
2 O jacobitismo foi um movimento político na Grã-Bretanha que buscou restaurar o Rei James ii, um
católico romano, e seus descendentes no trono de Grã-Bretanha. Seus partidários se rebelaram
diversas vezes contra o governo entre 1688 e 1746.
3 As assim chamadas “leis da natureza” só o são na medida em que são abstratas. Por exemplo, a lei
da queda dos corpos de Galileu só é válida com exatidão no vácuo absoluto, que é uma condição
impossível e uma mera abstração. O determinismo vale para a equação em seu modo de
universalidade e abstração, mas nunca para nosso mundo real e concreto.
4 Na lingüística histórica, dá-se o nome de Lei de Grimm a uma tendência fonética nas línguas
germânicas, descoberta em 1822 e descrita em detalhes por Jacob Grimm (autor, junto com seu irmão
Wilhelm, dos famosos contos dos irmãos Grimm). A lei explica as variações que sofreram várias
consoantes indo-européias, por uma mutação acontecida no período pré-histórico da evolução das
línguas germânicas.
5 Andrew Lang (1844–1912), poeta, romancista, crítico literário e estudioso da antropologia
escocesa. É mais conhecido como colecionador de folclore e de contos de fadas e pela publicação de
suas famosas coletâneas conhecidas como os “Livros coloridos das fadas de Lang”.
6 William Butler Yeats (1865–1939), poeta irlandês e uma das principais figuras da literatura do
século xx. Era fascinado pelas lendas irlandesas e pelo ocultismo. A partir de 1900 sua poesia se
torna mais física e realista. Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1923.
7 “Ride on the crest of the dishevelled tide, / And dance upon the mountains like a flame”.
8 “Movimento feniano” era um movimento político separatista da Irlanda surgido no século xix. Os
guerreiros irlandeses antibritânicos eram também conhecidos como fenianos.
9 Rua de Londres que era famosa por conter quase toda a indústria jornalística inglesa. Ainda é um
termo metonímico para a imprensa britânica.
10 Brixton é um distrito do sul de Londres proeminentemente residencial.
11 O poeta Apolônio de Rodes conta (em uma das variantes da lenda) que Selene, a deusa titânica da
lua, se apaixonou pelo mortal Endimião, filho de Zeus, e implorou ao deus supremo que concedesse a
juventude eterna ao amado, para que pudesse sempre estar ao seu lado. Teriam tido cinqüenta filhos
dessa união.
12 Oscar Fingal O’Flahertie Wills Wilde (1854–1900) foi um poeta e dramaturgo irlandês, famoso
principalmente por sua obra O retrato de Dorian Gray e seu homossexualismo aberto. Era um porta-
-voz do esteticismo e do decadentismo de sua época. Foi julgado e preso pela acusação de sodomia
entre 1895 e 1897. Ao fim da prisão escreveu à Sociedade de Jesus pedindo a oportunidade de um
retiro espiritual de seis meses. Chorou quando foi recusado, proclamando que “desejava pertencer à
Igreja Católica após tanto tempo”. Em 29 de novembro de 1900, um dia antes de sua morte, foi enfim
condicionalmente batizado na Igreja Católica, recebendo os últimos sacramentos e fazendo todo o
esforço possível para recitar as palavras junto com o sacerdote.
13 Islington é um distrito na Grande Londres.
14 É uma cidade localizada na foz do Rio Medway na ilha de Sheppey, Inglaterra.
15 Herbert Spencer (1820–1903) foi um filósofo, biólogo, antropólogo, sociólogo e liberal clássico
inglês. Tinha uma visão da teoria da evolução como uma explicação total do universo e de todo
desenvolvimento, e era um propagador do agnosticismo. Era considerado o intelectual mais influente
da Europa no final do século xix. Mais conhecido hoje pela expressão “a sobrevivência do mais
forte”, cunhada por ele em 1864, sendo considerado o maior representante do darwinismo social.
16 O Matterhorn, ou Monte Cervino, é uma montanha dos Alpes que se estende na fronteira entre a
Suíça e a Itália. Às vezes é chamada de Montanha das Montanhas, e se tornou um ícone dos Alpes
Suíços e dos Alpes em geral.
17 Território histórico da Europa e antiga região administrativa da França. Foi historicamente o nome
de muitas entidades, desde reinos a ducados que foram do Mediterrâneo até os Países Baixos.
CAPÍTULO 4
O estandarte do mundo
QUANDO ERA UM GAROTO, VAGAVAM PELO MUNDO DOIS tipos humanos
curiosos chamados de o otimista e o pessimista. Eu mesmo usava essas
palavras constantemente, mas de bom grado confesso que nunca tive idéia
muito precisa do que se tratava. A única coisa que poderia ser considerada
evidente era que não podiam significar o que diziam; pois a explicação
verbal comum era que o otimista acreditava que este mundo era tão bom
quanto poderia ser, enquanto o pessimista acreditava que era tão mau
quanto poderia ser. Como essas duas afirmações são obviamente absurdos
alucinantes, era preciso me lançar em busca de outras explicações. Um
otimista não poderia ser um homem que acredita que tudo vai bem, pois
isso carece de sentido; é como dizer que tudo está na direita e nada na
esquerda. Em suma, cheguei à conclusão de que o otimista acreditava que
tudo era bom exceto o pessimista, e que o pessimista acreditava que tudo
era mau, exceto ele mesmo. Seria injusto omitir completamente a
misteriosa, mas sugestiva definição que se diz ter sido dada por uma
garotinha: “Um otimista busca nossos olhos, enquanto um pessimista busca
nossos pés”. Não estou certo de que essa não seja a melhor definição. Tem
até mesmo uma espécie de verdade alegórica em si. Pois pode-se traçar,
talvez, uma útil distinção entre o pensador tristonho, que só pensa em nosso
contato com a terra a cada instante, e o pensador risonho que antes de tudo
considera nosso poder visionário de escolher caminhos.
Mas isso é um grande erro quando se trata da alternativa entre o otimista
e o pessimista. O pressuposto é que um homem critica este mundo como se
estivesse à caça de um apartamento, flanando pelas diferentes opções. Se
um homem viesse de um outro mundo para este em plena posse de suas
forças poderia discutir a vantagem de bosques de veraneio a despeito da
inevitável presença dos lobos, assim como um homem que busca
hospedagem pode pesar a vantagem de ter um telefone no estabelecimento
face à ausência de uma vista para o mar. Mas que homem está nessa
posição? Um homem pertence a este mundo antes de começar a se
perguntar se é bom lhe pertencer. Lutou pelo estandarte, e muitas vezes
conquistou vitórias heróicas antes de ter se alistado. Para resumir a essência
do assunto, ele é leal muito antes de ter qualquer admiração.
No último capítulo foi dito que o sentimento primário de que este
mundo é estranho, mas ainda assim atrativo, é maravilhosamente expresso
nos contos de fadas. O leitor pode, se assim desejar, atribuir o que se segue
àquela literatura ufanista e belicosa que usualmente é o próximo passo das
leituras e da vida de um garoto. Devemos muita moralidade sã aos antigos
gibis baratos.1 Seja lá qual for a razão, parecia-me, e ainda me parece, que
nossa atitude diante da vida pode ser melhor expressa nos termos de uma
lealdade militar do que nos da crítica e da aprovação. Minha aceitação do
universo não é otimismo: parece-se mais com um patriotismo. É uma
questão de lealdade primária. O mundo não é uma hospedaria em Brighton,
que podemos abandonar por ser miserável. É a fortaleza de nossa família,
com um estandarte esvoaçante sobre a torre, e quanto mais miserável for,
menos justificada é nossa deserção. O ponto não é que este mundo é triste
demais para ser amado ou alegre demais para não ser amado, mas sim, que
quando se ama algo, sua alegria é uma razão para o amor, e sua tristeza para
um amor ainda maior. Todos os pensamentos otimistas e pessimistas sobre a
Inglaterra são argumentos favoráveis para o patriota cósmico.
Suponhamos que estamos diante de algo desesperado — como Pimlico.1
Se pensarmos sobre o que é realmente melhor para Pimlico, descobriremos
que a trama do pensamento leva ao trono real, ao místico e ao arbitrário.
Não é suficiente que um homem desaprove Pimlico: ele simplesmente
cortaria sua garganta ou se mudaria para Chelsea. Muito menos é suficiente
que um homem aprove Pimlico: tudo permanecerá o mesmo, o que seria
terrível. A única saída parece ser que alguém ame Pimlico com um amor
transcendental carente de qualquer razão terrena. Se surgisse um homem
que amasse Pimlico, então veríamos a construção de torres de marfim e
pináculos de ouro; Pimlico se adornaria como uma mulher que é amada.
Pois a decoração não existe para ocultar o que é horrível, mas sim para
decorar o que já é adorável. Uma mãe não presenteia seu filho com um laço
azul porque ele é feio demais sem ele. Um namorado não presenteia sua
amada com um colar para ocultar seu pescoço. Se os homens amassem
Pimlico como as mães amam seus filhos, ou seja, arbitrariamente, porque
são seus, Pimlico seria talvez mais bela que Florença em um ou dois anos.
Alguns leitores dirão que isso é pura fantasia. Respondo que essa é a
verdadeira história da humanidade. Foi assim que foram erguidas as
grandes cidades. Remonte às raízes mais obscuras da civilização e as
encontrará atadas a algum monólito sacro ou circundando algum poço
sagrado. Os povos primeiro cultuaram um lugar e depois conquistaram a
glória para ele. Os homens não amaram Roma porque era grandiosa: ela se
tornou grandiosa porque os homens a amaram.
As teorias do contrato social do século xviii foram atacadas de forma
bastante estabanada em nossos dias; na medida em que diziam que por trás
de todo governo histórico há uma idéia de concordância e cooperação, tais
teorias eram demonstravelmente verdadeiras. Mas estavam realmente
erradas na medida que sugeriam que os homens buscaram a ordem ou a
ética diretamente numa negociação consciente de interesses. A moralidade
não começou com um homem dizendo a outro: “Não irei rachar sua cabeça
se você não rachar a minha”; não há menor evidência dessa transação. Mas
há evidência de que ambos disseram: “Não devemos nos atacar diante do
santuário”. Eles conquistaram sua moralidade protegendo sua religião. Não
cultivaram a coragem. Lutaram pelo santuário e descobriram que se
tornaram corajosos. Não cultivaram o asseio. Purificaram-se para o altar e
descobriram que estavam limpos. A história dos judeus é o único
documento primitivo conhecido pela maioria dos ingleses, e é suficiente
para um julgamento dos fatos. Os Dez Mandamentos, que se descobriu
serem substancialmente comuns a toda humanidade, eram meras ordens
militares; um código de ordens regimentais, criado para proteger certa arca
em sua passagem por um certo deserto. A anarquia era má porque ameaçava
a santidade. E somente quando criaram um dia consagrado a Deus
descobriram que tinham criado um feriado para os homens.
Se for admissível que essa devoção primária a um lugar ou coisa é uma
fonte de energia criativa, podemos passar para um fato muito peculiar.
Reiteremos por um instante que o único otimismo apropriado é um tipo de
patriotismo universal. Qual o problema com o pessimista? Acredito que
esteja no fato de que ele é um antipatriota cósmico. E qual o problema com
o antipatriota? Acredito que esteja no fato de que ele é um amigo sincero. E
qual o problema com o amigo sincero? E aqui tocamos a rocha da vida real
e a natureza humana imutável.
Ouso dizer que o mau no amigo sincero é simplesmente não ser sincero.
Ele esconde algo: seu próprio prazer sombrio em dizer coisas
desagradáveis. Tem um desejo secreto de ferir e não de ajudar. É isso,
penso, que torna certo tipo de antipatriota irritante aos bons cidadãos. Não
falo — é claro — do antipatriotismo que somente irrita corretores de bolsa
alucinados e atrizes da moda; ele é somente o patriotismo que diz a
verdade. Um homem que diz que nenhum patriota deveria criticar a Guerra
dos Bôeres2 antes do seu fim não merece ser respondido de forma
inteligente; está a dizer que nenhum bom filho deveria avisar à mãe do
perigo de um despenhadeiro antes da queda. Mas há um antipatriota que
realmente enfurece os homens honestos, e o que o explica é, penso eu, o
que sugeri: ele é o insincero amigo sincero, o homem que diz “entristece-
me dizer que estamos arruinados”, mas que não está triste de forma alguma.
E ele pode ser chamado, sem qualquer arroubo retórico, de traidor; pois ao
invés de usar as terríveis informações que lhe foram dadas para fortalecer o
exército, usa-as para desencorajar o alistamento. Se lhe é permitido ser
pessimista como conselheiro militar, ele passa a ser pessimista também
como sargento de recrutamento. Assim como o pessimista, que é o
antipatriota cósmico, usa a liberdade que a vida concede a seus conselheiros
para atrair as pessoas para longe do seu estandarte. Mesmo que somente
afirme fatos, ainda é essencial conhecer suas emoções e motivações. Pode
ser que mil e duzentos homens em Tottenham3 tenham desfalecido com a
varíola; mas queremos saber se isso é afirmado por algum grande filósofo
que busca amaldiçoar os deuses, ou se por algum clérigo comum que deseja
ajudar os homens.
O mal do pessimista não consiste, então, em castigar os deuses e os
homens, mas em não amar o que castiga — não possuir a lealdade primária
e sobrenatural às coisas. Qual o mal do homem usualmente chamado de
otimista? Sente-se, obviamente, que o otimista, ao buscar defender a honra
do mundo, irá defender o indefensável. Ele é o ufanista do universo; dirá:
“O meu cosmos, certo ou errado”. Será menos inclinado à reforma das
coisas e mais ao tipo de resposta oficial de gabinete: em todos os ataques e
perigos quer acalmar a multidão com falsas garantias. Não limpará o
mundo, mas encobrirá os seus erros. Tudo isso (que é verdadeiro para um
certo tipo de otimista) leva-nos a um ponto realmente interessante da
psicologia, inexplicável de outro modo.
Dissemos que deve existir uma lealdade primordial à vida: a única
questão é saber se ela deve ser natural ou sobrenatural. Se preferirem,
também podemos dizer: deve ser razoável ou irrazoável? O extraordinário é
que o mau otimismo (o disfarce, a fraca defesa de todas as coisas) anda ao
lado do otimismo razoável. O otimismo racional leva à estagnação: é o
otimismo irracional que leva à reforma. Deixem-me explicar usando uma
vez mais o paralelo do patriotismo. O homem mais fadado a arruinar o
lugar que ama é exatamente o que o ama por uma razão. O homem que
melhorará o lugar é aquele que o ama sem qualquer razão. Se um homem
ama algum traço de Pimlico (o que é improvável), ele pode acabar
defendendo esse traço contra a própria Pimlico. Mas se simplesmente ama
Pimlico, pode derrubá-la e reerguê-la como uma Nova Jerusalém. Não nego
que a reforma pode passar dos limites; somente afirmo que é o patriota
místico que reforma. O autocontentamento ufanista é mais comum entre
aqueles que têm algum motivo pedante para seu patriotismo. Os piores
ufanistas não amam a Inglaterra, mas uma teoria da Inglaterra. Se amamos a
Inglaterra por ser um império, podemos superestimar o sucesso do governo
sobre os hindus. Mas se a amamos por ser uma nação, podemos enfrentar
todos os eventos: pois continuaria uma nação mesmo que os hindus nos
governassem. Os únicos que permitirão que o patriotismo falsifique a
história são aqueles cujo patriotismo depende da história. Aquele que ama a
Inglaterra por ser anglo-saxã pode lutar contra todos os fatos por uma
simples fantasia. Pode terminar, como Carlyle4 e Freeman, defendendo que
a conquista normanda5 foi uma conquista saxônica. Pode terminar na
completa irracionalidade — porque tem uma razão. Aquele que ama a
França por ter um grande exército irá desprezar o exército de 1870.6 Mas
aquele que ama a França por ser a França irá melhorar o exército de 1870.
Foi precisamente o que a França fez, e ela é um bom exemplo do paradoxo
vivo. Em nenhum outro lugar o patriotismo é mais puramente abstrato e
arbitrário; e em nenhum outro lugar a reforma é tão drástica e completa.
Quanto mais transcendental é o seu patriotismo, mais prática é a sua
política.
Talvez o exemplo mais cotidiano desse ponto é a mulher e sua estranha
e poderosa lealdade. Certos imbecis espalharam a idéia de que o apoio
incondicional da mulher ao marido significa que as mulheres são cegas e
nada enxergam. Dificilmente conheceram alguma mulher. As mesmas
mulheres que estão prontas para defender seus homens na alegria e na
tristeza, em seu convívio pessoal, são quase morbidamente lúcidas a
respeito da vacuidade de suas desculpas e a dureza de suas cabeças.
O amigo de um homem gosta dele, mas o deixa como é: sua esposa
ama-o e sempre tenta transformá-lo. Mulheres que são completamente
místicas em seu credo são completamente cínicas em sua crítica.
Thackeray7 expressou isso perfeitamente quando fez a mãe de Pendennis,8
que o adorava como um deus, prever seu fracasso como um homem. Ela
subestimou sua virtude, apesar de superestimar seu valor. O devoto tem
toda a liberdade para criticar; o fanático pode ser um cético com toda a
segurança. O amor não é cego; esta é a última coisa que ele é. O amor é
obrigado; e quanto mais é obrigado, menos cego é.
Esta se tornou, ao menos, minha posição sobre tudo que era chamado de
otimismo, pessimismo e progresso. Antes de qualquer ato cósmico de
reforma devemos ter um juramento cósmico de fidelidade. Um homem deve
se interessar pela vida, e só depois pode se desinteressar por suas visões
sobre ela. “Dai-me vosso coração, meu filho”; o coração deve se fixar na
coisa certa: no momento em que nosso coração se fixa, nossa mão se
liberta. Devo fazer uma pausa para antecipar uma crítica óbvia. Será dito
que uma pessoa racional aceita o mundo como uma mistura do bem e do
mal, com uma dose decente de satisfação e sobrevivência. Mas essa é
exatamente a atitude que considero defeituosa. Sei que é muito comum em
nossa época; foi perfeitamente expressa naquelas calmas linhas de Matthew
Arnold9 que são mais penetrantemente blasfemas que os grunhidos de
Schopenhauer:
“Já muito vivemos — e uma vida, tão vazia de grandiosos feitos, apesar de suportável, parece
pouco digna desse palavrório pomposo, dessas dores de parto”.
Sei que esse sentimento domina nossa época, e penso que ele a paralisa.
Pois, para nossos objetivos titânicos de fé e revolução, não precisamos da
aceitação fria do mundo como um compromisso, mas um caminho pelo
qual possamos odiá-lo e amá-lo de todo o coração. Não queremos que a ira
e a alegria se neutralizem e produzam um contentamento grosseiro;
queremos uma ira e um deleite ainda mais impetuosos. Precisamos sentir o
universo como o castelo de um ogro a ser invadido, e ao mesmo tempo
como nosso próprio casebre, ao qual podemos retornar a cada noite.
Ninguém duvida que um homem comum pode se encaixar neste mundo:
mas não exigimos a força suficiente somente para a aceitação do mundo,
mas a força capaz de transformá-lo. Pode ele odiá-lo a ponto de mudá-lo,
mas ao mesmo tempo amá-lo o suficiente para considerá-lo digno da
mudança? Pode ele olhar para o seu bem colossal sem se acomodar? Pode
ele olhar para o seu mal colossal sem sentir desespero? Pode ele, em suma,
ser ao mesmo tempo, não somente um otimista e um pessimista, mas um
pessimista fanático e um otimista fanático? Será que ele é suficientemente
pagão para morrer pelo mundo, e suficientemente cristão para ser morto
pelas mãos do mundo? Nessa combinação, afirmo que é o otimista racional
que fracassa, e o otimista irracional que tem êxito. Ele está pronto para
esmagar todo o universo pelo seu próprio bem.
Não apresento essas coisas em sua seqüência lógica consolidada, mas
como vieram à minha mente: e essa visão foi esclarecida e aguçada por um
acidente típico dos tempos. Sob a crescente sombra de Ibsen,10 emergiu um
argumento sobre a bondade do suicídio. Modernistas cheios de gravidade
nos disseram que não devemos dizer nem mesmo “pobrezinho” de um
homem que estourou seus miolos, já que era um homem invejável e os
estourou somente por sua grandiosidade excepcional. O Sr. William
Archer11 sugeriu até mesmo que na era de ouro haveria máquinas caça-
níqueis nas quais um homem poderia se matar por um centavo. Sempre
senti uma hostilidade completa a todos que se diziam liberais e humanistas
nesse sentido. O suicídio não é somente um pecado: é o pecado. É o mal
absoluto e final, a recusa de se interessar pela existência, de fazer um
juramento de lealdade à vida. O homem que mata um homem matou
somente um homem; mas o suicida mata todos os homens; de sua
perspectiva ele destrói o mundo. Seu ato é pior (simbolicamente
considerado) que qualquer estupro ou qualquer explosão de dinamite. Pois
destrói todos os prédios e insulta todas as mulheres. O ladrão se satisfaz
com os diamantes, mas o suicida não: esse é o seu crime. Ele não pode ser
subornado, nem mesmo pelas pedras preciosas da Cidade Celestial. O
ladrão exalta aquilo que rouba, mesmo que não se possa dizer o mesmo do
proprietário. Mas o suicídio insulta os céus e a terra por não os roubar.
Corrompe cada flor ao se recusar a viver por elas. Não há criatura
minúscula no cosmos que não é escarnecida por essa morte. Quando um
homem se enforca em uma árvore, as folhas podem cair de raiva e os
pássaros voarem furiosos: pois todos foram afrontados pessoalmente. É
claro que podem existir desculpas emocionais patéticas para o ato. Elas
sempre existem para o estupro, e também quase sempre para a dinamite.
Mas se nos voltarmos para as idéias claras e o sentido inteligível das coisas,
há muito mais verdade racional e filosófica no enterro em uma encruzilhada
e na estaca que perfura o corpo do suicida, do que nas máquinas de suicídio
automático do Sr. Archer. Há um sentido em enterrar o suicida
isoladamente. O crime desse homem é diferente dos outros crimes — pois
torna os próprios crimes impossíveis.
Por volta da mesma época li uma solene impertinência de um desses
livres-pensadores: disse ele que o suicida era igual ao mártir. A falácia
gritante ajudou-me a clarificar a questão. É óbvio que um suicida é o oposto
do mártir. Um mártir é um homem que ama algo a ponto de esquecer sua
própria vida. Um suicida é alguém que não ama nada, e chega então a
desejar nada mais ver. Um deseja que algo comece: o outro que tudo
termine. Em outras palavras, o mártir é nobre, precisamente porque (não
importa o quanto tenha renunciado ao mundo ou execrado toda a
humanidade) confessa seu elo derradeiro com a vida; o seu coração o
transcende rumo ao que está lá fora: ele morre para que algo viva. O suicida
é ignóbil porque não tem esse elo com o ser: é um destruidor puro que
implode espiritualmente o universo. Lembrei-me então da estaca e da
encruzilhada, e o estranho fato de que o cristianismo demonstrara uma
estranha rispidez ao suicida. Pois o cristianismo demonstrara um violento
encorajamento ao mártir. O cristianismo histórico foi acusado, não sem
alguma razão, de elevar o martírio e o ascetismo ao extremo da desolação e
do pessimismo. Os primeiros mártires cristãos falavam da morte com uma
terrível alegria. Blasfemavam as belas obrigações do corpo: sentiam a
fragrância do túmulo como a de um jardim florido. Para muitos isso parecia
uma verdadeira poesia do pessimismo. No entanto, lá está a estaca na
encruzilhada para mostrar o que o cristianismo pensava do pessimista.
Esse foi o primeiro dos muitos enigmas nos quais o cristianismo tomou
parte na discussão. E junto com ele ia uma peculiaridade de que terei de
falar com mais insistência, como um traço de todas as noções cristãs, mas
que surgiu distintamente nesse primeiro enigma. A atitude cristã em relação
ao mártir e o suicida não era o que tantas vezes é afirmado na moral
moderna. Não era uma questão de grau. Não era uma linha a ser traçada em
algum lugar, com o sacrifício exaltado de um lado, e o sacrífico entristecido
do outro, mas ao seu lado. O sentimento cristão evidentemente não era de
que o suicida levava o martírio longe demais; ele era furiosamente a favor
de um e furiosamente contra o outro: essas duas coisas que se assemelham
tanto estavam nos opostos extremos do céu e do inferno. Um homem
entregava sua vida; ele era tão bom que seus ossos ressequidos poderiam
curar as pestilências das cidades. Um outro homem entregava sua vida; era
tão mau que seus ossos poderiam poluir a vida de seus irmãos. Não digo
que essa ferocidade era correta; mas por que era tão feroz?
Foi nesse ponto que pela primeira vez descobri que meus pés peregrinos
tinham chegado a uma trilha que já fora atravessada. O cristianismo
também sentira a oposição do mártir ao suicida: teria sido talvez pela
mesma razão? Teria o cristianismo sentido o que senti, mas não podia, e não
pode, expressá-lo — essa necessidade de uma lealdade primordial às coisas,
e de uma desastrosa reforma das coisas? E então lembrei-me que uma
grande acusação real contra o cristianismo foi a de combinar essas duas
coisas que eu tentava violentamente combinar. Ele foi acusado, ao mesmo
tempo, de ser excessivamente otimista sobre o universo e de ser
excessivamente pessimista sobre o mundo. A coincidência me paralisou
subitamente.
Tem emergido nas controvérsias modernas um hábito imbecil de dizer
que este ou aquele credo apropriado a uma época não o pode ser para outra.
Certo dogma, dizem-nos, foi verossímil no século xii, mas não é mais no
século xx. Seria possível, então, também dizer que nossa cosmovisão era
adequada para as três e meia da tarde, mas não para as quatro e meia da
tarde. Aquilo em que um homem pode acreditar depende de sua filosofia, e
não do relógio ou do século. Se um homem acredita na lei natural
inalterável, não pode acreditar em milagres em época nenhuma. Se um
homem acredita em uma vontade por trás da lei, pode acreditar em milagres
em qualquer época. Suponha, somente pelo argumento, que estejamos
lidando com um caso de cura taumatúrgica. Um materialista do século xii
não poderia acreditar nela tanto quanto o materialista do século xx. Mas um
cientista cristão do século xx pode acreditar tanto quanto um cristão do
século xii. É simplesmente uma questão da teoria que um homem tem sobre
as coisas. Portanto, ao lidar com qualquer resposta histórica, o ponto não é
saber se foi dada em nosso tempo, mas se é uma resposta à nossa questão. E
quanto mais pensei sobre como e quando o cristianismo veio ao mundo,
mais senti que veio para responder a essa questão.
São os cristãos frouxos e liberais que fazem elogios insustentáveis ao
cristianismo. Falam como se não tivesse havido piedade ou compaixão
antes do advento do cristianismo, um ponto em que poderiam ser corrigidos
por qualquer homem do medievo. Desconversam dizendo que o notável no
cristianismo é que ele foi a primeira religião a pregar a simplicidade e o
autocontrole, ou a interioridade e a sinceridade. Eles irão me considerar
muito bitolado — seja lá o que isso signifique — se disser que o mais
notável no cristianismo é ter sido a primeira religião a pregar o cristianismo.
Sua peculiaridade era ser peculiar, e a simplicidade e a sinceridade não são
peculiares, mas sim ideais óbvios para toda a humanidade. O cristianismo
era a resposta de um enigma, não o último truísmo proferido após uma
longa conversa. Há poucos dias vi em um excelente semanário de tom
puritano esta afirmação de que o cristianismo, quando privado da armadura
do dogma (como se falasse de um homem que fosse privado da armadura de
seus ossos), não era mais que uma doutrina Quaker12 da luz interior. Mas,
se eu dissesse que o cristianismo veio ao mundo especialmente para destruir
a doutrina da luz interior, seria certamente um exagero, mas um exagero
que se aproxima bastante da verdade. Os últimos estóicos,13 como Marco
Aurélio,14 eram exatamente aqueles que acreditavam na luz interior. Sua
dignidade, seu cansaço, seus tristes cuidados exteriores com o próximo,
seus cuidados interiores e incuráveis consigo mesmos, tudo isso tinha como
fonte a luz interior, e só existiam por essa sombria iluminação. Notem que
Marco Aurélio insiste, como fazem todos esses moralistas introspectivos,
sobre as pequenas coisas feitas ou desfeitas; é que ele não possui ódio ou
amor suficiente para realizar uma revolução moral. Desperta cedo pela
manhã, assim como nossos aristocratas, que vivem a “vida simples”, se
erguem pela manhã; pois semelhante altruísmo é bem mais fácil do que
parar os jogos no anfiteatro ou devolver a terra ao povo inglês. Marco
Aurélio é o mais intolerável dos tipos humanos. É um egoísta altruísta, um
homem que tem o orgulho sem a desculpa da paixão. De todas as formas
concebíveis de iluminação a pior é aquela que essas pessoas chamam de luz
interior. De todas as religiões horríveis a mais horrível é o culto do deus
interior. Todos que circulam pelas esferas mundanas sabem como isso
funciona; todos que conhecem o centro do pensamento superior também o
sabem. Conclamar João a adorar o deus interior é em última instância
conclamá-lo à auto-adoração. Que João adore o sol ou a lua — tudo menos
a luz interior; que adore gatos ou crocodilos, se pode encontrá-los em sua
rua, mas não o deus interior. O cristianismo veio ao mundo em primeiro
lugar para afirmar violentamente que um homem não tinha de olhar
somente para o interior, mas para o exterior, contemplar com admiração e
entusiasmo um companheiro e um comandante divino. A única graça de ser
cristão residia no fato de não se estar sozinho com a luz interior, e de se
reconhecer definitivamente uma luz exterior, bela como o sol, clara como a
lua, e terrível como um exército e seu estandarte.
Da mesma forma, tudo ficará bem se João não adorar o sol e a lua. Se o
fizer, há uma tendência de imitá-los; de dizer, por exemplo, que se o sol
queima os insetos vivos, ele também pode queimar os pobres insetos. Pensa
que já que o sol causa insolação, ele pode transmitir sarampo ao vizinho;
que já que a lua enlouquece os homens, ele pode enlouquecer sua esposa. O
lado obscuro do simples otimismo exterior também se mostrou no mundo
antigo. Próximo da época em que o idealismo estóico começou a mostrar as
fraquezas do pessimismo, a antiga adoração da natureza começou a mostrar
as enormes fraquezas do otimismo. A adoração da natureza é natural
quando uma sociedade é jovem, ou, em outras palavras, o panteísmo15 só é
bom enquanto é a adoração de Pã.16 Mas a natureza tem um outro lado que
a experiência e o pecado demoram a descobrir, e não é impertinente dizer
que logo o deus Pã mostra os seus cascos. A única objeção à religião natural
é que ela é algo que sempre se torna antinatural. Um homem ama a natureza
de manhã por sua inocência e amabilidade, e, ao cair da noite, se ainda a
ama, o faz por sua escuridão e crueldade. Lava-se durante a alvorada nas
frescas águas, como faziam os homens sábios do estoicismo, mas, de
alguma forma, no fim sombrio do dia, banha-se no sangue quente do touro,
como fez Juliano, o Apóstata.17 A simples busca da saúde sempre leva a
algo doentio. A natureza física não deve ser objeto direto de obediência;
deve ser apreciada, e não adorada. As estrelas e montanhas não devem ser
levadas a sério, caso contrário terminaremos onde terminou a adoração pagã
da natureza. Já que a terra é generosa, podemos imitá-la em todas as suas
crueldades. Já que a sexualidade é saudável, podemos nos enlouquecer em
orgias. O simples otimismo atingiu seu louco e apropriado fim. A teoria de
que tudo é bom se torna uma orgia de tudo que é mau.
Em oposição a isso estavam nossos pessimistas idealistas, representados
pela velha guarda dos estóicos. Marco Aurélio e seus amigos tinham
realmente abandonado a idéia de um deus do universo e só buscavam o
deus interior. Não tinham qualquer esperança de encontrar a virtude na
natureza, e uma esperança muito pequena de que ela fosse encontrada na
sociedade. Não tinham interesse suficiente no mundo exterior para destruí-
lo ou revolucioná-lo. Não amavam a cidade o suficiente para queimá-la. E
assim o mundo antigo se deparou exatamente com o nosso próprio dilema
desolador. As únicas pessoas que realmente apreciavam este mundo
estavam demasiado ocupadas destruindo-o; e os virtuosos não se
preocupavam suficientemente com eles a ponto de atacá-los. Esse dilema,
que é o nosso, foi subitamente invadido pelo cristianismo que brandia uma
resposta singular; uma resposta que o mundo eventualmente aceitou como a
resposta. Era a resposta naquela época, e considero que é a resposta agora.
Essa resposta foi como um golpe de espada; ela dividiu e de forma
alguma produziu uma união sentimental. Em poucas palavras, Deus e o
cosmos foram separados. A transcendência e a distinção da divindade que
alguns cristãos querem hoje extirpar do cristianismo era verdadeiramente a
única razão pela qual alguém queria ser um cristão. Era o ponto em questão
na resposta cristã ao pessimista infeliz e ao otimista ainda mais infeliz.
Como só me preocupo aqui com seu problema particular, irei indicar
brevemente essa grande sugestão metafísica. Todas as descrições sobre o
princípio criador ou fundamental das coisas devem ser metafóricas, pois
devem ser verbais. Assim, o panteísta é forçado a falar de Deus em todas as
coisas como se ele estivesse dentro de uma caixa; o evolucionista carrega,
em seu próprio nome, a idéia de algo que se desenrola como um carpete.
Todos os termos, religiosos e irreligiosos, estão abertos a essa acusação. A
única questão é saber se todos os termos são inúteis, ou se se pode, com
alguma frase, conotar uma idéia distinta sobre a origem das coisas. Acredito
que é sim possível, e o evolucionista também, pois, caso contrário, não
falaria sobre evolução. E a frase inaugural de todo o teísmo cristão era que
Deus é um criador, assim como um artista é um criador. Um poeta está tão
separado de seu poema que dele fala como algo pequeno que foi
“expelido”. Ao doá-lo ao mundo, ele também o jogou fora. Esse princípio
de que toda criação e procriação é uma separação mostra-se tão consistente
no interior do cosmos quanto o princípio evolucionista de que todo
crescimento é uma ramificação. Uma mulher perde uma criança no
momento do parto. Toda criação é separação. O nascimento é uma
separação tão solene quanto a morte.
O princípio filosófico primordial do cristianismo era que esse divórcio
no ato divino de criação (como o que separa o poeta de seu poema ou a mãe
do recém-nascido) era a descrição verdadeira do ato cuja energia absoluta
criou o mundo. De acordo com a maioria dos filósofos, Deus escravizou o
mundo ao criá-lo. De acordo com o cristianismo, ao criá-lo, Deus o tornou
livre. Mais do que um poema, Deus escreveu uma peça; uma peça que
planejou em sua perfeição, mas que foi necessariamente deixada a cargo
dos atores humanos e dos diretores de palco, que têm desde então feito uma
imensa bagunça. Discutirei a verdade desse teorema mais tarde. Aqui só
preciso apontar com quão impressionante suavidade ele ultrapassou o
dilema que discutimos neste capítulo. Por essa via é possível ser feliz e
revoltado sem se degradar às posições do otimista ou do pessimista; lutar
contra todas as forças da existência sem desertar do estandarte da
existência; estar em paz com o universo e em guerra com o mundo. São
Jorge ainda podia lutar contra o dragão, não importa quão grande fosse o
monstro cósmico, mesmo que fosse maior que as maiores metrópoles ou
que as montanhas eviternas. Se ele fosse tão grande quanto o mundo ainda
poderia ser destruído em nome do mundo. São Jorge não teve de considerar
qualquer probabilidade óbvia ou proporção de escala nas coisas, mas tão-
somente seu intento original e secreto. Ele pode brandir sua espada para o
dragão, mesmo se ele for tudo; mesmo que os céus vazios acima de sua
cabeça sejam o imenso arco de suas mandíbulas abertas.
E eis que se seguiu uma experiência impossível de ser descrita. Foi
como se estivesse flanando desde meu nascimento entre duas máquinas
enormes e ingovernáveis, de diferentes formas e sem conexão aparente — o
mundo e a tradição cristã. Tinha descoberto este furo no mundo: o fato de
que é preciso descobrir, de alguma forma, como amar o mundo sem nele
confiar; como é preciso amar o mundo sem ser mundano. Descobri essa
característica que se projeta da teologia cristã, como uma espécie de lança
rija: a insistência dogmática de que Deus é uma pessoa, e que tinha feito o
mundo separado d’Ele mesmo. A lança do dogma se encaixou
perfeitamente no furo do mundo — era o seu lugar designado — e eis que a
coisa estranha começou a acontecer. Assim que essas duas partes das duas
máquinas se conectaram, todas as outras partes, uma após a outra, se
encaixaram com uma exatidão misteriosa. Pude ouvir cada engrenagem se
encaixando como que em um clique de alívio. Ao ter acertado uma das
partes, todas as outras repetiram esse acerto, assim como os vários relógios
tocam ao meio-dia. Instinto após instinto foi correspondido por doutrina
após doutrina. Ou, para variar a metáfora, eu era como alguém que avança
em território inimigo para tomar uma fortaleza elevada. E, quando a
fortaleza caiu, todo o país se rendeu e se alistou solidamente ao meu redor.
Toda a terra foi iluminada, como nos campos abertos de minha infância.
Todas aquelas fantasias cegas da meninice que tentei traçar em meio à
escuridão no quarto capítulo se tornaram subitamente transparentes e sãs.
Estava certo quando senti que as rosas eram vermelhas por uma espécie de
escolha: era a escolha divina. Estava certo quando senti que praticamente
preferiria dizer que a grama era da cor errada do que dizer que sua cor era
uma necessidade: poderia muito bem ser outra. Meu sentimento de que a
felicidade pendia do louco fio de uma condição significava algo no fim das
contas: toda a doutrina da queda. Até mesmo aquelas noções de uma
monstruosidade informe e turva que não pude descrever, muito menos
defender, se encaixaram em seus lugares como colossais cariátides18 do
credo. A fantasia de que o cosmos não era vasto e vazio, mas pequeno e
aconchegante, tinha um significado pleno agora, pois toda obra de arte deve
ser pequena aos olhos do artista; para Deus as estrelas podem ser pequenas
e próximas, como os diamantes. E meu instinto assombrado de que o bem
não era simplesmente uma ferramenta a ser utilizada, mas uma relíquia a ser
guardada, como os bens do navio de Crusoé — até isso tinha sido o
sussurro selvagem de algo originalmente sábio, pois, de acordo com o
cristianismo, somos de fato os sobreviventes de um naufrágio, a tripulação
de um navio dourado que se afundou antes do começo do mundo.
Mas o mais importante é que toda a razão para o otimismo foi
completamente invertida. E no instante em que se realizou a inversão senti-
a como a simplicidade abrupta com a qual um osso é colocado de volta em
seu lugar. Muitas vezes dissera que era um otimista, para evitar a blasfêmia
evidente do pessimismo. Mas todo o otimismo de nossa época era falso e
desencorajador por sempre tentar provar que nos encaixamos no mundo. O
otimismo cristão se baseia no fato de que não nos encaixamos no mundo.
Tentei ser feliz dizendo a mim mesmo que o homem é um animal como
qualquer outro a buscar sua carne nas mãos de Deus. Mas agora estava
realmente feliz, pois aprendera que o homem é uma monstruosidade. Estava
certo em sentir todas as coisas como estranhas, pois eu era ao mesmo tempo
pior e melhor do que todas as coisas. O prazer do otimista era prosaico, pois
se sustentava na naturalidade de tudo; o prazer cristão era poético, pois se
sustentava na anormalidade de todas as coisas sob a luz do sobrenatural. O
filósofo moderno dissera-me repetidamente que eu estava no lugar certo, e
ainda assim sentia-me deprimido mesmo quando concordava. Mas ouvi que
estava no lugar errado, e minha alma cantou alegremente, como um pássaro
na primavera. O conhecimento desvelou e iluminou quartos esquecidos na
escura casa de minha infância. Agora sabia por que a grama sempre me
parecera tão esquisita quanto a barba verde de um gigante, e por que podia
sentir saudades de casa dentro de minha casa.
1 Pimlico é um distrito de Londres, na Inglaterra, que fica situado no borough conhecido como
Cidade de Westminster. Ao norte encontra-se a movimentada Estação Victoria e, ao sul, o Rio
Tâmisa.
2 A expressão Guerra dos Bôeres normalmente se refere à Segunda Guerra dos Bôeres (1899–1902),
que foi uma luta entre o Império Britânico e os dois estados bôeres (de colonização holandesa) da
África do Sul. A guerra terminou com a submissão dos bôeres e seu apoio ao novo sistema político
defendido pela Grã-Bretanha.
3 Distrito do norte de Londres.
4 Thomas Carlyle (1795–1881) foi um filósofo, escritor satírico, ensaísta, tradutor, historiador,
matemático e professor escocês. Defendia a tese de que a história é feita pelos grandes homens, pelos
“heróis”.
5 A conquista normanda da Inglaterra foi uma invasão do século xi em que um exército de
normandos, bretões e franceses liderados pelo Duque William ii da Normandia conquistou o trono
inglês para William.
6 Referência à Guerra Franco-Prussiana de 1870, que terminou com a vitória das forças prussianas e
a fundação do Império Germânico com a anexação da maior parte da Alsácia e alguns trechos da
Lorena ao território alemão.
7 William Makepeace Thackeray (1811–1863) foi um romancista britânico, famoso por sua obra A
fogueira das vaidades, um retrato panorâmico da sociedade inglesa.
8 Arthur Pendennis é o herói principal da obra A história de Pendennis: sua sorte e azar, seus amigos
e seu maior inimigo de Thackeray. Ele parte do campo rumo a Londres para vencer na vida e na
sociedade, oferecendo durante a jornada um panorama satírico da sociedade aristocrática da época.
9 Matthew Arnold (1822–1888) foi um poeta e crítico cultural inglês que trabalhou como inspetor de
escolas. Tem sido classificado como um escritor do tipo “sábio”, que instrui o leitor sobre as questões
sociais contemporâneas.
10 Henrik Johan Ibsen (1828–1906) foi um grande dramaturgo, diretor de teatro e poeta norueguês. É
considerado o pai do realismo e do modernismo no teatro e o segundo dramaturgo mais representado
no mundo (o primeiro é Shakespeare). Gostava de chocar os costumes familiares e a moral burguesa.
Influenciou George Bernard Shaw, Oscar Wilde, Arthur Miller, James Joyce, dentre muitos outros.
11 William Archer (1856–1924) foi um crítico literário e escritor escocês, responsável pela
introdução e tradução de Ibsen para o público inglês.
12 Os Quakers são membros de um grupo cristão histórico que tem como principal objetivo
experimentar a pequena luz interior ou o Deus que está em todos. Outra característica central do
grupo é o pacifismo radical.
13 O estoicismo foi uma escola de filosofia helenística que floresceu até o século iii d.C. Pregava a
resignação e aceitação do momento presente como fruto de um determinismo universal. A liberdade
humana consistiria nessa atitude de apatia distanciada e calma diante de tamanha inevitabilidade.
14 Marco Aurélio (121–180 d.C.) foi imperador romano de 161 a 180, famoso também por sua obra
Meditações, baseada em sua prática do estoicismo. Sua queda em 180 é vista como o fim da Pax
Romana e o começo da instabilidade que levaria à eventual queda o Império Romano do Ocidente.
15 O panteísmo é a crença de que a totalidade da realidade coincide com a divindade. Não há então
espaço para um deus pessoal ou antropomórfico.
16 Pã era o deus grego da natureza selvagem, dos rebanhos, das montanhas e da música rústica, e
companheiro das ninfas. Tinha a forma de um fauno ou de um sátiro e habitava a Arcádia. Foi uma
figura significante no movimento romântico na Europa ocidental.
17 Juliano, o Apóstata (331/332–363), foi imperador romano de 361 a 363. Era membro da dinastia
de Constantino. Inicialmente um cristão, acaba aderindo a um paganismo neoplatônico e busca
expurgar toda a burocracia superior de elementos cristãos, com o objetivo de reviver a religião
tradicional de Roma. Seu anticristianismo o levou a ser lembrado pela Igreja pelo título de o
Apóstata.
18 Uma cariátide é uma figura feminina esculpida que serve de suporte na arquitetura no lugar de
uma coluna ou de um pilar de sustentação. As cariátides mais famosas servem de colunas no templo
de Erecteion, construído na Acrópole de Atenas em v a.C.
CAPÍTULO 5
Os paradoxos do cristianismo
O VERDADEIRO PROBLEMA DESTE MUNDO NÃO CONSISTE EM sua
irracionalidade ou racionalidade. O problema mais comum é que ele é
quase racional, mas nem tanto. A vida não é ilógica, mas é uma armadilha
para os lógicos. Parece um pouco mais matemática e regular do que
realmente é; sua exatidão é óbvia, mas sua inexatidão é oculta; sua
exuberância repousa à espreita. Darei um exemplo grosseiro do que quero
dizer. Suponham que algum matemático, habitante da lua, buscasse
entender o corpo humano; imediatamente veria que o essencial está em seu
aspecto duplicado. Um homem é dois homens, o da direita sendo
exatamente simétrico ao da esquerda. Depois de notar que há um braço na
direita e outro na esquerda, uma perna na direita e outra na esquerda, ele
poderia continuar e ainda assim encontrar em cada lado o mesmo número
de dedos dos pés e das mãos, olhos, orelhas, narinas e até mesmo lóbulos
cerebrais gêmeos. Finalmente ele aceitaria isso como uma lei; e, então,
deduziria, depois de encontrar um coração em um lado, que encontraria um
coração no outro lado. E no momento triunfante em que se considerasse
dono da verdade é que mais erraria.
Esse silencioso desvio milimétrico da exatidão é o elemento misterioso
em todas as coisas. Parece uma espécie de traição secreta do universo. Uma
maçã ou uma laranja é suficientemente redonda para ser chamada de
redonda, porém, não é redonda afinal de contas. A própria Terra tem a
forma de uma laranja para induzir algum modesto astrônomo a chamá-la de
globo. Um fio de grama recebe o seu nome de uma analogia com o fio de
uma espada, pois termina em uma ponta; mas na verdade não termina. Em
tudo há esse elemento de quietude, e do incalculável que escapa aos
racionalistas, mas somente no último momento. Da enorme curvatura da
Terra poderia se inferir facilmente que cada centímetro seu seria curvo. A
existência de um coração em cada lado é tão racional quanto a existência de
dois hemisférios cerebrais. No entanto, os cientistas ainda estão
organizando expedições para encontrar o Pólo Norte,1 já que tanto apreciam
uma planície erma. Também continuam a organizar expedições para
descobrir o coração de um homem; e normalmente, quando tentam
encontrá-lo, chegam exatamente ao lado errado.
A intuição ou inspiração real é melhor testada em suas previsões sobre
as malformações ocultas ou surpreendentes. Se o matemático lunar visse
dois braços e duas orelhas, poderia deduzir os dois ombros e os dois
hemisférios cerebrais. Mas se adivinhasse o lugar correto do coração
humano, então seria mais do que um matemático. E é exatamente isso que
tenho defendido e proposto sobre o cristianismo: não simplesmente deduz
verdades lógicas, mas quando subitamente se torna ilógico, eis que
descobre uma verdade ilógica. Não somente está certo sobre as coisas, mas
se desvia, por assim dizer, exatamente onde as coisas também se desviam.
Seu plano se encaixa nas irregularidades secretas, e espera o inesperado. É
simples sobre a simples verdade; mas é teimoso sobre a verdade sutil.
Admite que o homem tem duas mãos, mas não admite, apesar de todos os
modernistas o lamentarem, a óbvia dedução de que tem dois corações. Meu
único objetivo neste capítulo é apontar isso; mostrar que sempre quando
sentimos que há algo estranho na teologia cristã, iremos geralmente
descobrir que há algo estranho na Verdade.
Aludi a uma frase descompromissada que dizia que determinado credo
não pode ser digno de fé em nossa era. Mas é claro que qualquer coisa pode
ser digna de fé em qualquer época. De maneira estranha, há realmente um
sentido no qual um credo, se é digno de alguma fé, pode sê-lo de forma
ainda mais fixa em uma sociedade complexa do que em uma simples. Se
um homem descobre que o cristianismo é verdadeiro em Birmingham,2
realmente tem razões mais claras para a fé do que se tivesse descoberto sua
verdade na Mércia.3 Pois quanto mais complicada é uma coincidência,
menos parece ser uma coincidência. Se flocos de neve caem sob a forma,
digamos, de um coração de Midlothian,4 pode se tratar de um acidente. Mas
se os flocos de neve caem no exato formato do labirinto de Hampton
Court,5 penso que podemos gritar “milagre!”. É exatamente como um
milagre deste tipo que tenho apreciado a filosofia do cristianismo. A
complexidade do nosso mundo moderno prova a verdade do credo mais
perfeitamente do que os problemas simples dos tempos da fé. Foi em
Notting Hill6 e Battersea7 que comecei a perceber que o cristianismo era
verdadeiro. É por isso que a fé tem aquela elaboração de doutrinas e
detalhes que tanto perturba aqueles que admiram o cristianismo sem nele
acreditar. Pois quando um homem passa a acreditar no credo, torna-se
orgulhoso de sua complexidade, como os cientistas se orgulham da
complexidade da ciência por mostrar como ela é rica em descobertas. Se o
credo está certo em última instância, é um elogio dizer que está certo de
forma elaborada. Um graveto e uma pedra podem se encaixar num buraco
por acidente, mas uma chave e uma fechadura são ambas complexas. E se
uma chave se encaixa em uma fechadura, sabemos que é a chave certa.
Mas essa precisão aqui implicada em nosso objeto torna muito difícil
fazer o que agora preciso fazer, isto é, descrever a acumulação da verdade.
É muito difícil para um homem defender algo de que está inteiramente
convencido. É comparativamente fácil quando ele só está parcialmente
convencido, por ter encontrado provas esparsas de uma coisa, sendo então
capaz de explicá-las para uma platéia. Mas um homem não está realmente
convencido de uma teoria filosófica quando descobre algo que a prova. Só
se convence realmente quando descobre que tudo a prova. E quanto mais
razões convergentes descobre apontando essa convicção, mais perdido
ficará quando lhe pedirem para resumir tudo. Dessa forma, se se
perguntasse subitamente a um homem de inteligência mediana “por que
você prefere a civilização à selvageria?”, ele olharia violentamente objeto
por objeto, e só seria capaz de murmurar: “Bem, há aquela estante... e o
carvão nos fogões... e os pianos... e os policiais”. Toda a melhor defesa da
civilização está no próprio fato de que esta defesa é complexa, pois a
civilização conquistou muitas coisas. Mas exatamente essa multiplicidade
de provas, que deveria tornar a resposta avassaladora, torna-a impossível.
Paira, portanto, sobre toda convicção plena, uma imensa espécie de
impotência. A fé é tão grandiosa que o tempo necessário para a colocar em
ação é longo. E essa hesitação emerge principalmente, e estranhamente, de
uma indiferença quanto ao ponto de partida. Todos os caminhos levam a
Roma; e essa é uma das razões por que muitos nunca lá chegam. Confesso
que nesta minha defesa da convicção cristã poderia ter começado o
argumento com qualquer coisa, até mesmo com um nabo ou um táxi. Mas
se desejo ser cuidadoso com a clareza de minha exposição, será, penso eu,
mais sábio continuar a argumentação presente a partir do último capítulo,
que se preocupou em trazer à tona a primeira dessas coincidências míticas,
ou melhor, dessas ratificações místicas. Tudo que ouvira até então de
teologia cristã alienara-me dela. Era um pagão aos doze, e um agnóstico
completo aos dezesseis; não posso compreender alguém que tenha superado
os dezessete sem ter feito esse questionamento tão simples. Mantive, sem
dúvida, uma reverência nebulosa por uma divindade cósmica e um grande
interesse histórico pelo fundador do cristianismo. Mas certamente o
considerava como um homem, apesar de pensar que, mesmo naquele
momento, Ele tinha a vantagem sobre alguns de seus críticos modernos. Li
a literatura cética e científica de meu tempo — ao menos tudo que pude
encontrar disponível em inglês; e nada mais li, isto é, não li sobre qualquer
outro tipo de filosofia. Os gibis que também li seguiam realmente uma
tradição saudável e heróica do cristianismo; mas naquele tempo eu não
notava. Não cheguei a ler sequer uma linha de apologética cristã. Hoje
busco ler o mínimo possível dela. Foram Huxley, Herbert Spencer e
Bradlaugh8 que me trouxeram de volta à teologia ortodoxa. Semearam em
minha mente as primeiras dúvidas violentas sobre a dúvida. Nossas avós
estavam certas quando diziam que Tom Paine9 e os livres-pensadores
inquietavam a mente. Sim, eles inquietaram a minha terrivelmente. O
racionalista levou-me a questionar se a razão tinha alguma utilidade; e
quando terminei Herbert Spencer cheguei (pela primeira vez) a duvidar da
validade do evolucionismo. Quando terminei a última das preleções ateístas
do Coronel Ingersoll10 um terrível pensamento cruzou minha mente:
“Quase me persuadistes a ser cristão”. E já o era de uma forma desesperada.
Essa estranha capacidade dos grandes agnósticos em despertar dúvidas
mais profundas do que as suas pode ser ilustrada de muitas maneiras.
Escolho somente uma. À medida que lia e relia todos os relatos cristãos e
não-cristãos sobre a fé, de Huxley a Bradlaugh, uma impressão lenta e
terrível cresceu gradualmente, mas de forma vívida, em minha mente — a
impressão de que o cristianismo deve ser algo extraordinário. Pois, como
compreendi, não somente tinha os vícios mais flamejantes; ele
aparentemente detinha um talento místico para combinar vícios que
pareciam contraditórios. Era atacado por todos os lados e por todas as
razões contraditórias. Assim que um racionalista demonstrava que ele
estava demasiado orientado para o oriente, um outro demonstrava com igual
clareza que estava demasiado orientado para o ocidente. Assim que minha
indignação arrefeceu em sua obtusidade angular e agressiva, fui novamente
convocado a observar e condenar sua curvatura sensual e enervante. Se um
leitor ainda não entendeu meu ponto, darei os exemplos que aleatoriamente
lembrar sobre essa autocontradição no ataque cético. Serão quatro ou cinco;
há mais de cinqüenta.
Fiquei, por exemplo, muito comovido pelo ataque eloqüente ao
cristianismo como portador de um desumano desespero; pois pensava — e
ainda penso — que o pessimismo sincero é o pecado imperdoável. O
pessimismo insincero é uma proeza social, mais agradável do que qualquer
outra coisa; e felizmente quase todo o pessimismo é insincero. Mas se o
cristianismo fosse, como diziam, algo puramente pessimista e oposto à vida,
então estaria disposto a explodir a Catedral de Saint Paul. Mas eis a coisa
extraordinária. Provaram-me no capítulo i — para minha inteira satisfação
— que o cristianismo era demasiado pessimista; e então, no capítulo ii,
começaram a me provar que era demasiado otimista. Uma das acusações
contra o cristianismo era de que impedia o homem, pelo uso de mórbidos
prantos e terrores, de buscar a alegria e a liberdade no seio da natureza. Mas
uma outra acusação dizia que ele confortava o homem com uma
providência fictícia, e os colocava em um berçário cor-de-rosa. Um grande
agnóstico questionou por que a natureza não era bela o suficiente, e por que
era tão difícil ser livre. Outro grande agnóstico objetou que o otimismo
cristão, “a túnica de faz-de-conta tecida por mãos piedosas”, nos ocultava o
fato de que a natureza era feia, e de que era impossível ser livre. Um
racionalista mal terminara de chamar o cristianismo de pesadelo antes que
outro começasse a chamá-lo de paraíso dos tolos. Isso me perturbou; as
acusações pareciam inconsistentes. O cristianismo não poderia ser ao
mesmo tempo uma máscara negra em um mundo branco, e uma máscara
branca em um mundo negro. O estado do cristão no mundo não poderia ser
ao mesmo tempo confortável a ponto de torná-lo um covarde, e
desconfortável a ponto de só um tolo ser capaz de suportá-lo. Se a visão
humana era por ele falsificada, deveria ser de uma forma ou de outra; não
poderia usar as lentes verdes e as rosas ao mesmo tempo. Eu tinha na ponta
da língua, cheio de uma terrível alegria, como todos os jovens daquela
época, as gozações que Swinburne11 lançou contra a tristeza do credo: “Vos
sóis vencedor, ó pálido Galileu; o mundo envelheceu com teu sopro”.
Mas quando li o relato do mesmo poeta sobre o paganismo (como em
Atalanta), captei que o mundo era, se isso é possível, mais cinzento antes
do Galileu espalhar seu sopro. O poeta defendia, de fato, e de forma
abstrata, que a vida era negra como o breu. E ainda assim, sabe-se lá como,
o cristianismo a obscureceu ainda mais. O mesmo homem que denunciava o
cristianismo pelo pessimismo era um pessimista. Algo estava errado. E por
um instante selvagem cruzou a minha mente o pensamento de que, talvez,
aqueles que, em seus próprios relatos, afirmam não possuir nem a religião
nem a felicidade... poderiam não ser os melhores juízes da relação entre
religião e felicidade.
Deve-se compreender que não concluí apressadamente que as acusações
eram falsas ou os acusadores tolos. Simplesmente deduzi que o cristianismo
deveria ser ainda mais esquisito e malvado do que diziam. É possível que
ele contenha esses dois vícios opostos; mas quão estranha deve ser essa
religião para que isso seja verdadeiro. Um homem pode ser gordo em um
lugar e magro no outro; mas certamente ele teria uma forma bem esquisita.
Neste ponto, meus pensamentos revolviam somente ao redor da estranha
forma da religião cristã; não aleguei que a mente racionalista tinha uma
forma estranha.
Eis um outro exemplo. Senti que um forte ponto contra o cristianismo
estava na acusação de que há algo tímido, monacal e afeminado em tudo
que recebe o nome de “cristão”, especialmente em sua atitude quanto à
resistência e a guerra. Os grandes céticos do século xix eram
majoritariamente viris. Bradlaugh, de forma expansiva, e Huxley, de forma
reticente, eram homens decididos. Em comparação, parecia realmente
existir verossimilhança na idéia de que havia algo fraco e excessivamente
paciente nos conselhos cristãos. O paradoxo evangélico sobre a outra face,
o fato de que os padres nunca lutavam, uma centena de coisas, tornavam
plausível a acusação de que o cristianismo era uma tentativa de tornar o
homem excessivamente parecido com uma ovelha. Li e acreditei nisso, e se
não tivesse lido nada diferente, continuaria acreditando. Mas li algo muito
diferente. Passei à próxima página do manual agnóstico, e o meu cérebro
virou de cabeça para baixo. Agora descobri que deveria odiar o cristianismo
não por não lutar, mas por lutar demais. A cristandade parecia ser a mãe de
todas as guerras. O cristianismo banhara o mundo com o sangue humano.
Tinha me enfurecido completamente com o cristão por ele nunca se
enfurecer; agora me era dito que deveria me enfurecer porque sua fúria
tinha manchado a terra e a fumaça de suas fogueiras chegado até o sol. As
mesmas pessoas que criticavam o cristianismo pela humildade e
passividade dos monastérios eram os mesmos que o criticavam pela
violência e coragem das Cruzadas. Tanto a paz de Eduardo, o Confessor,12
quanto a guerra de Ricardo13 Coração de Leão eram culpa do bom e velho
cristianismo. Os Quakers, diziam-nos, eram os únicos cristãos
característicos; no entanto, os massacres de Cromwell14 e Alba15 eram
crimes caracteristicamente cristãos. O que tudo isso poderia significar? O
que era esse cristianismo que sempre proibia as guerras e sempre as
produzia? Qual poderia ser a natureza de uma coisa que é anatematizada
primeiro por não lutar, e depois por sempre lutar? Em que mundo
enigmático nasceram essa fúria e essa humildade monstruosas? A forma do
cristianismo se tornava mais estranha a cada instante.
Apresento um terceiro caso, o mais estranho de todos, pois envolve a
única objeção real à fé: a religião cristã é somente uma religião. O mundo é
enorme, cheio dos mais diferentes tipos humanos. O cristianismo — é
razoável dizê-lo — está confinado a um povo; começou na Palestina e
praticamente parou na Europa. Impressionei-me com esse argumento em
minha juventude, e fui muito atraído pela doutrina freqüentemente pregada
nas Sociedades Éticas16 — a doutrina de que há uma grande igreja
inconsciente de toda a humanidade fundada sobre a onipresença da
consciência humana. Os credos, diziam, dividem os homens; mas a moral
os une. A alma poderia buscar as terras e épocas mais remotas e estranhas, e
ainda assim encontrar o senso comum ético essencial. Poderia encontrar
Confúcio sob as árvores orientais, e ele estaria a escrever “não roubarás”.
Poderia decifrar os obscuros hieróglifos do mais primitivo deserto, e o
sentido quando decifrado diria “os garotos devem dizer a verdade”.
Acreditei nessa doutrina da irmandade de todos os homens em posse de um
senso moral, e ainda nela creio — além de outras coisas. E fiquei
completamente irritado com o cristianismo por sugerir, como supus, que
eras e impérios inteiros tinham escapado inteiramente da luz da justiça e da
razão. Mas então descobri algo surpreendente. As mesmas pessoas que
diziam que a humanidade era uma única igreja de Platão a Emerson17 eram
exatamente aquelas que diziam que a moralidade tinha mudado totalmente,
que o que era certo em uma época se tornava errado em outra. Se clamava,
por exemplo, por um altar, era-me dito que não precisávamos de um, pois
os homens, nossos irmãos, davam-nos oráculos claros e um só credo em
seus costumes e ideais universais. Mas se apontasse calmamente que um
dos costumes universais dos homens era ter um altar, então meus
professores agnósticos abriam o jogo e diziam que os homens sempre
estiveram nas trevas e nas superstições dos selvagens. Descobri que sua
zombaria diária contra o cristianismo consistia em dizer que ele era a luz de
um povo e que deixara todos os outros nas trevas. Mas também descobri
que se vangloriavam especialmente de que a ciência e o progresso eram a
descoberta de um só povo, e que todos os outros pereceram nas trevas. Seu
principal insulto ao cristianismo era na verdade seu principal elogio a si
mesmos, e parecia haver uma estranha injustiça nessa relativa insistência
sobre as duas coisas. Quando vemos um pagão ou um agnóstico, devemos
nos lembrar que todos os homens têm uma religião; quando vemos um
místico ou espiritualista, devemos somente apontar as religiões absurdas
que o homem já teve. Poderíamos confiar na ética de Epicuro,18 pois a ética
nunca mudou. Mas não devemos confiar na ética de Bossuet,19 pois a ética
mudou. Mudou em duzentos anos, mas não em dois mil.
Isso começou a ser alarmante. Parecia não tanto que o cristianismo era
mau o suficiente para incluir quaisquer vícios, mas sim que qualquer
porrete era bom o suficiente para atacar o cristianismo. Novamente: o que
poderia ser essa coisa surpreendente que as pessoas estavam tão ansiosas
para contradizer, a ponto de não se preocuparem com sua autocontradição?
Vi a mesma coisa por todos os lados. Não posso conceder mais espaço para
uma discussão em detalhe; mas, a fim de que não suponham que escolhi
injustamente três casos acidentais, irei passar brevemente por mais casos.
Alguns céticos escreveram, por exemplo, que o grande crime do
cristianismo fora seu ataque à família; tinha arrastado a mulher para a
solidão e a contemplação do claustro, longe de seus lares e suas crianças.
Mas então, outros céticos, um pouco mais avançados, disseram que o
grande crime do cristianismo foi o de nos impingir a família e o casamento;
condenar a mulher à labuta de seus lares e suas crianças, proibindo-lhes a
solidão e a contemplação. A acusação foi realmente invertida. Novamente,
algumas frases das Epístolas ou da cerimônia do casamento foram
consideradas pelos anticristãos como um desprezo do intelecto feminino;
mas uma de suas maiores gozações contra a Igreja continental era de que
“somente mulheres” a freqüentavam. Mais uma vez: o cristianismo foi
criticado por seus hábitos comedidos e simplórios; por seus farrapos e
ervilhas secas. Mas no próximo minuto era criticado por sua pompa e
ritualismo; seus santuários de mármore e mantos de ouro. Era ultrajado por
ser simples demais e por ser colorido demais; também fora acusado de
limitar demais a sexualidade, até que Bradlaugh, o malthusiano, descobriu
que não a limitava de fato; era freqüentemente acusado na mesma diatribe
de buscar a respeitabilidade afetada e a extravagância religiosa. No interior
do mesmo panfleto ateísta descobri a fé sendo atacada por sua desunião,
“cada um pensa uma coisa”, e também por sua união, “é a diferença de
opinião que evita que o mundo vá para as cucuias”. Num mesmo diálogo
um livre-pensador, um amigo meu, culpou o cristianismo por desprezar os
judeus e depois se desprezou por ser judeu.
Queria ser justo naquele momento, e quero ser justo agora; por isso não
concluí que o ataque ao cristianismo estava de todo errado. Somente
cheguei à conclusão de que se o cristianismo estava errado, estava
realmente muito errado. Semelhantes horrores opostos poderiam se
combinar em uma só coisa, mas essa coisa deveria ser estranha e solitária.
Há homens que são avarentos e também perdulários, mas são raros; há
homens que são sensuais e também ascetas, mas são raros. Mas se essa
massa de loucas contradições realmente existisse, pacifista e sanguinolenta,
simplória e excessivamente bela, austera e luxuriosa, inimiga das mulheres
e seu tolo refúgio, pessimista solene e otimista insensata, se esse mal
existisse, teria de possuir algo supremo e único. Pois não encontrei em
meus professores racionalistas nenhuma explicação de tão excepcional
corrupção. O cristianismo, em teoria, era sob seus olhos um dos mitos e
erros comuns dos mortais. Eles não me deram qualquer chave para essa
maldade antinatural e deturpada. Semelhante paradoxo do mal se erguia à
estatura do sobrenatural. É, de fato, quase tão metafísico quanto a
infalibilidade papal. Uma instituição histórica que nunca acertou é quase tão
miraculosa quanto uma que não pode errar. A única explicação que veio
imediatamente à minha mente era que o cristianismo não veio do céu, mas
do inferno. Se Jesus de Nazaré não era o Cristo, Ele deve ter sido o
Anticristo.
E então, em um momento calmo, um estranho pensamento atingiu-me
como um raio. Subitamente emergiu em minha mente uma outra explicação.
Suponham que ouvimos sobre um homem desconhecido da boca de muitos
homens. Suponham que ficássemos intrigados em ouvir que alguns homens
disseram que ele era muito alto e outros que era muito baixo; alguns
criticavam-no por ser gordo, outros por ser magro; alguns o consideravam
negro demais, e outros branco demais. Uma forma bem estranha (como já
admitido) poderia ser uma explicação. Mas há outra. Ele pode ter a forma
correta. Os gigantes podem considerá-lo baixo; os baixinhos podem
percebê-lo como alto. Os esbeltos que acabaram se encorpando podem
achar que ele está um pouco seco demais; os robustos que emagreceram
podem considerar que ele se expandiu além dos rígidos limites da
elegância. Talvez os suecos, que tem os cabelos pálidos como a neve, o
chamem de negro, enquanto os negros o considerem distintamente loiro.
Talvez, em suma, essa coisa extraordinária é realmente a coisa mais
comum, ou ao menos o normal, o centro. Talvez, afinal, o cristianismo seja
são e todos os seus críticos loucos — das mais variadas formas. Testei essa
idéia perguntando-me se havia algo de mórbido nos acusadores que poderia
explicar a acusação. Surpreendi-me ao descobrir que a chave se encaixava
na fechadura. Por exemplo, era certamente estranho que o mundo moderno
acusasse o cristianismo ao mesmo tempo por sua austeridade material e sua
pompa artística. Mas também era estranho, muito estranho, que o próprio
mundo moderno combinasse a extrema luxúria material com a extrema
ausência da pompa artística. O homem moderno acreditava que as vestes de
Becket20 eram ricas demais e suas refeições pobres demais. Mas o homem
moderno era realmente excepcional em toda a história; nenhum homem do
passado comeu jantares tão elaborados com roupas tão feias. O homem
moderno considerava a Igreja simples demais exatamente onde a vida
moderna era complexa demais; considerava a Igreja deslumbrante demais
exatamente onde a vida moderna era pobre demais. O homem que
desprezava os jejuns e banquetes simples se enlouquecia por um couvert. O
homem que desprezava as vestes luxuosas usava uma estapafúrdia calça
comprida. E certamente, se havia alguma insanidade em tudo isso, ela
estava nas calças, e não simplesmente nos trajes cerimoniais. Se se tratava
de insanidade, ela estava nos banquetes extravagantes, não no pão e no
vinho.
Investiguei todos os casos, e descobri que a chave se encaixava. O fato
de que Swinburne se irritava com a tristeza dos cristãos e, no entanto, se
irritava ainda mais com sua alegria, poderia ser facilmente explicado. Não
era mais uma miríade de doenças no cristianismo, mas sim em Swinburne.
As restrições cristãs o entristeciam simplesmente porque era mais hedonista
do que um homem saudável deveria ser. A fé dos cristãos o enfurecia
porque era mais pessimista do que um homem saudável deve ser. Da mesma
forma, os malthusianos atacaram instintivamente o cristianismo; não porque
há algo de especialmente antimalthusiano no cristianismo, mas porque há
algo um tanto desumano no malthusianismo.
Entretanto, senti que não poderia ser inteiramente verdadeiro que o
cristianismo era simplesmente moderado e ficava em cima do muro. Havia
realmente nele um elemento enfático, e até mesmo um frenesi que
justificava os secularistas em sua crítica superficial. Ele pode ser sábio, e
nisso acreditei cada vez mais, mas não era uma sabedoria simplesmente
mundana; não era meramente comedido e respeitável. Seus ferozes
cruzados e humildes santos podiam se equilibrar mutuamente; ainda assim,
os cruzados eram ferocíssimos e os santos humilíssimos, humildes além dos
limites da decência. Foi precisamente neste ponto da especulação que
lembrei de meus pensamentos sobre o mártir e o suicida. Neles havia essa
combinação de duas posições quase insanas que, no entanto, resultava na
sanidade. Chegara agora a outra contradição desse tipo; já tinha descoberto
a verdade da primeira. Era exatamente o tipo de paradoxo onde os céticos
apontavam o erro do credo; e foi precisamente nele que descobri que o
credo estava certo. Não importa quão loucamente os cristãos pudessem
amar o mártir ou odiar o suicida, eles nunca sentiram essas paixões tão
loucamente quanto as senti muito antes de sonhar com o cristianismo.
Começou então a parte mais interessante e difícil do processo, e passei a
traçar obscuramente essa idéia por todos os grandiosos pensamentos de
nossa teologia. A idéia era a que delineei a respeito do otimista e do
pessimista: queremos não uma amálgama ou uma conciliação, mas ambos
os lados no auge de sua energia; um amor e uma ira flamejantes. Aqui só a
traçarei em sua conexão com a ética. Mas não preciso lembrar ao leitor que
essa idéia da combinação é central na teologia ortodoxa. Pois a teologia
ortodoxa insistiu especialmente que o Cristo não era um ser separado de
Deus e do homem, como um elfo, nem uma quimera, como um centauro,
mas ambos ao mesmo tempo, completamente Deus e homem. Agora
descreverei essa noção como a descobri.
Todos os homens sãos podem ver que a sanidade é um tipo de
equilíbrio; que é possível ser louco e ser guloso, ou ser louco e passar fome.
Alguns homens modernos de fato surgiram com versões vagas do progresso
e da evolução que buscam destruir o meson,21 o equilíbrio de Aristóteles.
Parecem sugerir que devemos ficar famintos progressivamente, ou comer
cada vez mais no café-da-manhã a cada dia. Mas o grande truísmo do meson
sobrevive para todos os homens que pensam, e esses modernos só acabaram
com seu próprio equilíbrio. Mas dado que todos precisamos manter um
equilíbrio, o verdadeiro interesse surge com a questão de como manter esse
equilíbrio. O paganismo tentou resolver esse problema: e creio que o
cristianismo o resolveu de uma forma bem estranha.
O paganismo declarou que a virtude era um equilíbrio; o cristianismo
declarou que era um conflito: a colisão de duas paixões aparentemente
opostas. É claro que não eram realmente inconsistentes; mas eram difíceis
de se sustentar simultaneamente. Sigamos por um momento a pista do
mártir e do suicida; tomemos o caso da coragem. Nenhuma qualidade
confundiu e enredou tanto as definições dos sábios puramente racionais. A
coragem é quase uma contradição em termos. Significa um forte desejo pela
vida que toma a forma de uma disposição para morrer. “Aquele que perder
a sua vida a encontrará” não é misticismo para santos e heróis. É um
conselho cotidiano para marinheiros e montanhistas. Poderia ser impresso
em um guia dos Alpes ou em um livro de alistamento para a Marinha. Esse
paradoxo é todo o princípio da coragem e até mesmo da coragem brutal e
demasiado terrena. Um homem perdido em meio ao mar revolto pode salvar
sua vida arriscando-a num abismo.
Ele só pode fugir da morte ficando a um passo dela. Um soldado
cercado de inimigos, se deseja escapar, precisa combinar um forte desejo
pela vida com uma estranha indiferença diante da morte. Não deve
simplesmente se agarrar à vida, pois então será um covarde e não escapará.
Não deve simplesmente esperar a morte, pois então será um suicida e não
escapará. Deve buscar sua vida com um espírito de furiosa indiferença;
deve desejar a vida como a água, porém beber a morte como o vinho.
Nenhum filósofo, imagino, expressou esse enigma romântico com a lucidez
apropriada, e eu certamente não o consegui. Mas o cristianismo foi além:
demarcou os seus limites nas terríveis sepulturas do suicida e do herói,
mostrando a distância entre aquele que morre pela vida e aquele que morre
simplesmente pela morte. E tem se erguido desde então, acima das lanças
européias, o estandarte de um misterioso cavalheirismo: a coragem cristã,
que é um desprezo pela morte, e não a coragem chinesa, que é um desprezo
pela vida.
E então comecei a descobrir que essa paixão dupla era a onipresente
chave cristã para a ética. Por todos os lados o credo produziu a moderação a
partir do choque de duas emoções impetuosas. Tomem, por exemplo, a
questão da modéstia, do equilíbrio entre o puro orgulho e a pura prostração.
O pagão médio, como o agnóstico médio, simplesmente diria estar contente
consigo mesmo, mas não insolentemente satisfeito; há muitos melhores ou
piores do que ele, seus louros são limitados, mas ele certamente os
conquistará. Em suma, andaria com a cabeça nas nuvens, mas não
necessariamente com o nariz empinado. Essa é uma posição viril e racional,
mas aberta à objeção que mencionamos contra um meio-termo entre
otimismo e pessimismo — a resignação de Matthew Arnold. Por ser uma
mistura das duas coisas também é uma diluição; nenhuma está presente em
toda a sua força ou contribui com todo o seu colorido. Esse orgulho
conveniente não eleva o coração como o soar das trombetas; não é possível
se ornamentar com o escarlate e o ouro por isso. Por outro lado, essa morna
modéstia racionalista não varre a alma com o fogo e a torna límpida como o
cristal; não torna o homem uma criancinha que pode se sentar aos pés da
relva, como o faz uma humildade rigorosa e intensa. Não faz com que erga
o olhar e veja maravilhas; pois Alice deve diminuir para se tornar Alice no
País das Maravilhas. Perde-se assim tanto a poesia do verdadeiro orgulho
quanto a poesia da verdadeira humildade. O cristianismo buscou pelo
mesmo estranho expediente salvar ambas. Separou as duas idéias e as
exacerbou. Por um lado, o homem deve ser mais soberbo do que jamais foi;
por outro, deve ser mais humilde do que jamais foi. Na medida em que sou
homem, sou a maior das criaturas. E na medida em que sou um homem, sou
o maior dos pecadores. Toda a humildade que significava pessimismo, que
significava que o homem tomava uma perspectiva mesquinha ou vaga de
todo o seu destino — tudo isso deveria desaparecer. Nunca mais
deveríamos ouvir as lamentações de Eclesiastes sobre como a humanidade
não era superior às bestas, ou o terrível brado homérico de que o homem era
a mais triste das bestas do campo. O homem era uma estátua de Deus a
caminhar pelo jardim. Tinha uma proeminência sobre todos os brutos; não
era triste por ser uma besta, mas por ser um deus estilhaçado. Os gregos
diziam que os homens rastejavam sobre a terra, como que se lhe agarrando.
Agora o homem deveria caminhar sobre a terra para dominá-la. O
cristianismo pensou a dignidade humana como algo que só poderia ser
expresso em coroas que irradiassem como o sol e em leques com plumas de
pavão. E eis a maravilha: ao mesmo tempo podia sustentar um pensamento
sobre a abjeta pequenez do homem, que só poderia ser manifestada no
jejum e numa fantástica submissão, nas cinzas de São Domingos22 e na
lividez de São Bernardo.23 No que dizia respeito ao pensamento sobre o seu
próprio ego, havia espaço e vazio suficiente para todo tipo de abnegação
lúgubre e verdade amarga. Nele o cavalheiro poderia se entregar — desde
que perdesse o seu próprio ego. Havia um campo aberto para o pessimista
exultante. Que ele diga o que quiser contra si mesmo, desde que não
blasfeme o objetivo original de seu ser; que se proclame um tolo e até
mesmo um tolo condenado (apesar disso ser calvinista); mas não deve dizer
que não vale a pena salvar os tolos. Não deve dizer que um homem, como
homem, pode não ter valor algum. Em suma, o cristianismo superou a
dificuldade de se combinar dois opostos furiosos, mantendo ambos e
mantendo-os furiosos. A Igreja foi positiva em ambos os pontos. Não há um
limite para o desprezo de si, mas também não há limite para o louvor à sua
própria alma.
Tomem um outro exemplo: a complicada questão da caridade, que
alguns idealistas pouco caridosos parecem pensar ser simples. A caridade é
um paradoxo, como a modéstia e a coragem. Dito de forma direta, a
caridade certamente significa uma de duas coisas — perdoar atos
imperdoáveis, ou amar os que não são amáveis. Mas se nos perguntarmos
(como fizemos no caso do orgulho) o que um pagão sensível pensaria sobre
tal assunto, provavelmente começaríamos do fundo do problema. Um pagão
sensível diria que há algumas pessoas que são perdoáveis, e outras que não;
pode-se rir de um escravo que roubou vinho, mas um escravo que traiu seu
benfeitor pode ser assassinado, e amaldiçoado mesmo depois de morto. Se o
ato era perdoável, o homem era perdoável. E repito: isso é racional, e até
mesmo restaurador; mas é uma diluição. Não deixa qualquer espaço para o
puro horror da injustiça, tal como é belo de se ver nos inocentes. E não
deixa lugar para a simples ternura de um homem com o outro, em que
consiste todo o fascínio dos caridosos. E o cristianismo aparece aqui da
mesma forma que em outras questões. Surge de forma surpreendente como
uma espada, e separa uma coisa da outra. Separa o crime do criminoso. O
criminoso dever ser perdoado setenta vezes sete. O crime nunca deve ser
perdoado. Não é suficiente que escravos que roubaram vinho inspirem um
pouco de raiva e um pouco de bondade. Devemos nos enfurecer muito mais
com o roubo, porém sermos muito mais bondosos com os ladrões do que
antes.
Havia espaço para que a ira e o amor se tornassem furiosos. E quanto
mais considerei o cristianismo, mais descobri que, apesar de ter
estabelecido um mando e uma ordem, o principal objetivo dessa ordem era
permitir que as coisas boas se tornassem fortes e vigorosas.
As liberdades mentais e emocionais não são tão simples quanto
parecem. Realmente exigem um equilíbrio quase tão cuidadoso das leis e
circunstâncias quanto a liberdade política e social. O anarquista estético
comum que busca tudo perceber livremente se vê preso em última instância
a um paradoxo que impede a sua percepção de qualquer coisa. Ele foge dos
limites do lar para seguir a poesia. Mas ao deixar de entender os limites do
lar, não mais entende a Odisséia. Está livre dos preconceitos nacionais e
longe do patriotismo. Mas ao estar distante do patriotismo, está distante de
Henrique v.24 Semelhante homem literário está simplesmente distante de
toda literatura: é mais prisioneiro que qualquer fanático. Pois se há um
muro entre você e o mundo, faz pouca diferença se descrever como alguém
dentro ou fora do muro. O que desejamos não é uma universalidade que
está longe de todos os sentimentos normais; queremos a universalidade que
se aproxima de todos os sentimentos normais. Faz toda a diferença estar
livre deles, como um homem está livre da prisão, e estar livre deles como
um homem está fora de uma cidade. Estou livre do Castelo de Windsor, isto
é, não estou forçosamente detido nele, mas não estou de forma alguma
liberto da presença daquele prédio. Como um homem pode estar quase livre
de certas emoções refinadas, mas ser capaz de equilibrá-las abertamente
sem erro e sem quebras? Foi essa a realização do paradoxo cristão das
paixões paralelas. Com a aceitação do dogma primário da guerra entre o
divino e o diabólico, da revolta e ruína do mundo, o seu otimismo e
pessimismo, como a poesia pura e simples, podem se desatar como as
cataratas.
São Francisco, ao louvar todo bem, poderia ser um otimista mais
clamoroso que Walt Whitman.25 São Jerônimo,26 ao denunciar todo mal,
poderia pintar o mundo mais negro que Schopenhauer. Ambas as paixões
estavam livres porque foram colocadas em seu devido lugar. O otimista
podia se extravasar em louvor à alegre música da marcha, às trombetas
douradas e aos estandartes purpúreos que avançam para a batalha. Mas não
podia dizer que a luta é desnecessária. O pessimista poderia esboçar, da
forma mais sombria que quisesse, as marchas mais repugnantes e as feridas
mais sangrentas. Mas não podia dizer que é uma luta perdida. E o mesmo se
dá com todos os outros problemas morais: com o orgulho, com o protesto,
com a compaixão. Ao definir sua doutrina principal, a Igreja não só
manteve coisas aparentemente inconsistentes lado a lado, mas, além disso,
permitiu que emergissem numa espécie de violência artística que antes só
seria possível aos anarquistas. A mansidão se tornou mais dramática que a
loucura. O cristianismo histórico se ergueu numa grande e estranha guinada
da moralidade — algo que é para a virtude o que os crimes de Nero são
para o vício. Os espíritos indignados e caridosos assumiram formas terríveis
e atrativas, indo da ferocidade monástica, que flagelou como um cão o
primeiro e o maior dos Plantagenetas,27 até a piedade sublime de Santa
Catarina, que beijou a cabeça ensangüentada do criminoso. A poesia pode
ser tanto encenada quanto composta. Essa atitude heróica e monumental na
ética desapareceu completamente junto com a religião sobrenatural. Eles,
sendo humildes, podiam se exibir; mas nós somos orgulhosos demais para
sermos proeminentes. Nossos professores de ética escrevem com muita
sensatez sobre a reforma das prisões, mas não é provável que vejamos o Sr.
Cadbury28 ou qualquer filantropo eminente adentrar o cárcere de Reading e
abraçar um cadáver estrangulado antes de ser lançado na cal viva.29 Nossos
professores de ética escrevem amenamente contra o poder dos milionários;
mas não é provável que vejamos o Sr. Rockefeller,30 ou qualquer tirano
moderno, sendo flagelado publicamente na Abadia de Westminster.
Assim, a dupla acusação dos secularistas, apesar de lançar somente
escuridão e confusão neles mesmos, lança uma verdadeira luz sobre a fé. É
verdade que a Igreja histórica enfatizou ao mesmo tempo o celibato e a
família; foi ao mesmo tempo ferozmente a favor e contra a procriação.
Manteve os extremos lado a lado como duas cores fortes, como o vermelho
e o branco no escudo de São Jorge. Sempre teve um ódio saudável ao rosa.
Odeia a combinação de duas cores que é o expediente covarde dos filósofos
e a evolução do preto e branco que é equivalente a um cinza sujo. De fato,
toda a teoria da Igreja sobre a virgindade pode ser simbolizada pela
afirmação de que o branco é uma cor: não simplesmente a ausência de toda
cor. Tudo que aqui afirmo pode ser expresso dizendo que o cristianismo
buscou na maior parte desses casos manter as duas cores coexistentes, mas
puras. Não é uma mistura como a púrpura e o marrom, mas algo mais
parecido com o vinco de um tafetá, pois este sempre está em um ângulo reto
e no padrão da cruz.
O mesmo se passa, é claro, com as acusações contraditórias dos
anticristãos sobre a submissão e o morticínio. É verdade que a Igreja disse a
alguns homens que lutassem e a outros que não; também é verdade que
aqueles que lutaram o fizeram como raios de trovão e os que não lutaram
eram como estátuas. Tudo isso simplesmente significa que a Igreja preferia
fazer uso de seus super-homens e de seus pacifistas tolstoianos.31 Deve
existir algum bem na vida do guerreiro, pois muitos homens bons gostam de
ser soldados. Deve existir algum bem na idéia da não-resistência, pois
muitos homens bons parecem apreciar serem Quakers. Tudo que a Igreja
fez — dentro dos seus limites — foi evitar que um desses dois bens
destruísse o outro: existiram lado a lado. Os pacifistas, tendo todos os
escrúpulos dos monges, simplesmente se tornaram monges. Os Quakers se
tornaram um clube em vez de uma seita. Os monges diziam tudo o que
Tolstói diz; bradavam lúcidos lamentos sobre a crueldade das batalhas e a
vaidade da vingança. Mas os pacifistas não estão certos a ponto de poderem
governar o mundo inteiro; e não lhes foi permitido que o fizessem na época
da fé. O mundo não perdeu a última investida de Sir James Douglas32 ou o
estandarte de Joana, a Donzela.33 E às vezes essa pura bondade e essa pura
ferocidade se encontraram e justificaram sua união; o paradoxo de todos os
profetas se encarnou, e, na alma de São Luís,34 o leão deitou com o
cordeiro. Mas lembrem-se que esse trecho do Evangelho é interpretado de
forma muito morna. Nossa tendência pacificista assegura constantemente
que, quando o leão se deita com o cordeiro, é o leão que se torna como o
cordeiro. Mas isso é uma anexação brutal e um imperialismo por parte do
cordeiro. O cordeiro simplesmente absorve o leão ao invés do leão comer o
cordeiro. O verdadeiro problema é: pode o leão se deitar com o cordeiro e
ainda reter sua majestosa ferocidade? Esse é o problema atacado pela
Igreja, e este o milagre que ela realizou.
É isso que chamo de adivinhar as excentricidades ocultas da vida. É
saber que o coração de um homem está na esquerda e não no meio; não
somente que a Terra é redonda, mas também onde é plana. A doutrina cristã
detectou as estranhezas da vida. Previu as exceções além de descobrir a lei.
Subestimam o cristianismo aqueles que dizem que ele descobriu a
misericórdia; qualquer um poderia descobri-la. E, na verdade, todos a
descobriram. Mas descobrir um plano para ser misericordioso e severo —
isso era antecipar uma estranha necessidade da natureza humana. Pois
ninguém deseja ser perdoado por um grande pecado como se ele fosse
pequeno. Qualquer um pode dizer que não devemos ser nem miseráveis
demais, nem felizes demais. Mas descobrir como é possível ser miserável
sem tornar impossível a felicidade — isso foi uma grande descoberta
psicológica. Qualquer um pode dizer “nem a arrogância, nem a
humilhação”; e isso seria um limite. Mas dizer que “aqui você pode se
orgulhar e ali você pode se humilhar” — isso seria uma emancipação.
Este era o grande fato sobre a ética cristã: a descoberta de um novo
equilíbrio. O paganismo tinha sido como um pilar de mármore, que
permanecia ereto por ser simetricamente proporcionado. O cristianismo era
como uma pedra enorme, falha e romântica, que, apesar de desviar do
pedestal com um simples toque, dadas as suas excrecências exageradas que
exatamente se equilibram, é ali entronizada por mil anos. Em uma catedral
gótica as colunas eram todas diferentes, mas todas eram necessárias. Todo
suporte parecia acidental e fantástico; cada arco era um arcobotante. Assim,
na cristandade os acidentes aparentes se equilibravam. Becket usava um
cilício debaixo de todo o escarlate e ouro. Isso é ao menos superior ao
costume do milionário moderno, que só veste o preto e branco para os
outros, mas mantém o ouro bem perto de seu coração. Mas o equilíbrio nem
sempre esteve no corpo de um só homem como Becket; muitas vezes o
equilíbrio se distribuiu por todo o corpo da cristandade. Porque um homem
orava e jejuava nas montanhas do norte, flores podiam ser exibidas nos
festivais das cidades sulistas; e porque os fanáticos bebiam água nas areias
da Síria, os homens podiam ainda beber cidra nos orquidários da Inglaterra.
É isso que torna o cristianismo simultaneamente tão mais surpreendente e
tão mais interessante que o império pagão; assim como a Catedral de
Amiens não é melhor, mas certamente é mais interessante que o Parthenon.
Se alguém desejar uma prova moderna disso, que considere o curioso fato
de que, sob o cristianismo, a Europa (apesar de permanecer uma unidade)
se estilhaçou em nações individuais. O patriotismo é um exemplo perfeito
do equilíbrio deliberado de uma ênfase contra a outra. O instinto do império
pagão diria: “Todos devem se tornar cidadãos romanos e se assemelharem;
que o alemão se torne menos reverente e prostrado; que o francês se torne
menos experimental e frenético”. Mas o instinto europeu diz: “Que o
alemão permaneça lento e reverente, para que o francês possa ser mais
seguramente frenético e experimental”. Faremos algo desses excessos. O
absurdo chamado Alemanha corrigirá a insanidade chamada França.
Resta dizer por último o mais importante: é exatamente isso que explica
o que é tão inexplicável para todos os críticos modernos da história do
cristianismo. Refiro-me às monstruosas guerras ao redor de pequenos
pontos teológicos, os terremotos emocionais ao redor de um gesto ou
palavra. Era somente questão de um centímetro; mas um centímetro é tudo
quando se trata de um equilíbrio. A Igreja não poderia se dar ao luxo de se
desviar por um fio de cabelo em algumas coisas, se devia continuar seu
grandioso e ousado experimento em busca de um equilíbrio irregular. Se
uma idéia se tornasse menos poderosa, uma outra se tornaria
excessivamente poderosa. Não era um rebanho de ovelhas que o pastor
cristão guiava, mas uma manada de touros e tigres, de terríveis ideais e
doutrinas devorantes, cada um forte o suficiente para se tornar uma falsa
religião e devastar o mundo. Lembrem-se que a Igreja se envolveu
especificamente com idéias perigosas; ela era uma domadora de leões. A
idéia do nascimento pelo Espírito Santo, da morte de um ser divino, do
perdão dos pecados, da realização das profecias, são idéias que, como todos
podem ver, só precisam de um toque para se tornarem algo blasfemo ou
feroz. O menor elo foi despedaçado pelos artífices do Mediterrâneo, e o
leão do pessimismo ancestral partiu seus grilhões nas florestas esquecidas
do norte. Dessas equalizações teológicas deverei falar posteriormente. Aqui
é suficiente notar que se algum pequeno erro fosse feito na doutrina,
grandes equívocos sobre a felicidade humana poderiam se espalhar. Uma
sentença erroneamente construída sobre a natureza do simbolismo teria
espatifado todas as melhores estátuas da Europa. Um pequeno lapso nas
definições poderia acabar com todas as danças e as árvores de Natal ou
quebrar todos os ovos de Páscoa. As doutrinas deveriam ser definidas
dentro de limites rígidos, mesmo que fosse para que o homem pudesse
desfrutar as liberdades humanas mais gerais. A Igreja precisava ser
cuidadosa para que o mundo pudesse ser despreocupado.
Esse é o romance excitante da ortodoxia. As pessoas caíram no tolo
hábito de falar da ortodoxia como algo pesado, monótono e seguro. Mas
nunca existiu algo tão perigoso ou tão excitante quanto a ortodoxia. Era a
sanidade: e ser são é mais dramático do que ser louco. Era o equilíbrio de
um homem em uma biga, com cavalos que avançam violentamente e que
parecem pender suas cabeças para um lado e se desviar para o outro, e que,
entretanto, apresenta em cada atitude a graça da estatuária e a precisão da
aritmética. A Igreja em seus primórdios se adornou com idéias que tinham a
bravura e a velocidade dos corcéis de guerra; mas seria completamente anti-
histórico dizer que ela meramente seguiu violentamente uma idéia, como
em um fanatismo vulgar. Ela se desviava para a esquerda e a direita na
exata medida necessária para evitar obstáculos enormes. Deixou para trás o
imenso rochedo do arianismo,35 sustentado por todos os poderes mundanos
para tornar o cristianismo demasiado mundano. No próximo instante já
estava a se desviar de um orientalismo que a teria tornado demasiado
transcendente. A Igreja ortodoxa nunca tomou um caminho domesticado ou
aceitou as convenções; nunca foi respeitável. Teria sido mais fácil aceitar o
poder terreno dos arianos; ter caído no abismo sem fim da predestinação
junto ao calvinismo do século xvii. É fácil ser louco e herético. É sempre
fácil deixar que o espírito da época prevaleça; o difícil é ir contra ele.
Também é sempre fácil ser modernista; tão simples quanto ser um esnobe.
Teria sido simples cair em uma dessas armadilhas abertas do erro e do
exagero que moda após moda, e seita após seita, colocam-se no meio da
trajetória histórica da cristandade. É sempre simples cair; há uma infinidade
de ângulos para a queda e somente um para o equilíbrio vertical. Ter caído
em alguma das novidades do gnosticismo36 à Ciência Cristã37 teria sido de
fato óbvio e lânguido. Mas evitar todas elas tem sido uma aventura
alucinante; e em minha visão a carruagem celeste voa como o trovão pelas
eras, deixando as tolas heresias prostradas e dispersas, enquanto a poderosa
verdade permanece de pé mesmo que abalada.
A dedução imediata e evidente a partir daí é que os tiranos são tão filhos
de Deus quanto os Garibaldi; e que o Rei Bomba9 de Nápoles tendo, com o
mais pleno sucesso, “encontrado a si mesmo”, torna-se então idêntico ao
bem último em todas as coisas. A verdade é que a energia ocidental que
destrona tiranos derivou diretamente da teologia ocidental que diz: “Eu sou
eu, tu és tu”. A mesma separação espiritual, que olhou para cima e viu um
bom rei no universo, olhou para cima e viu um rei perverso em Nápoles. Os
adoradores do deus Bomba destronaram Bomba. Os adoradores do deus de
Swinburne cobriram a Ásia por séculos e nunca destronaram um tirano. O
santo indiano pode com toda razão fechar seus olhos porque olha para
aquilo que é eu, tu, nós, eles e isto. É uma ocupação racional: mas não é
verdadeiro nem na teoria nem na prática que ela possa ajudar o indiano a se
manter vigilante diante de Lorde Curzon.10 Aquela vigilância externa que
sempre foi a marca do cristianismo — o comando de que devemos vigiar e
orar — se expressou tanto na típica ortodoxia ocidental quanto na típica
política ocidental: ambas dependem da idéia de uma divindade
transcendente, diferente de nós, uma divindade que se oculta. Certamente os
credos mais sagazes podem sugerir que busquemos Deus nos corredores
cada vez mais profundos do labirinto de nosso próprio ego. Mas somente
nós da cristandade dissemos que devemos caçar Deus como uma águia
sobre as montanhas: e matamos todos os monstros na caçada.
Aqui, novamente, descobrimos que à medida que valorizamos a
democracia e as energias de renovação do Ocidente, é bem mais provável
que as encontremos na antiga teologia do que na nova. Se queremos a
reforma, devemos aderir à ortodoxia: especialmente quanto à questão — tão
debatida nos conselhos do Sr. R. J. Campbell — da insistência sobre a
divindade imanente ou transcendente. Ao insistir especialmente na
imanência de Deus chegamos à introspecção, ao isolamento, ao quietismo e
à indiferença social — ao Tibet. Ao insistir especialmente na transcendência
de Deus temos o espanto, a curiosidade, a aventura moral e política, a
indignação justa — a cristandade. Ao insistir que Deus está no interior do
homem, o homem se volta para dentro. Ao insistir que Deus transcende o
homem, o homem se transcende.
Se abordarmos qualquer outra doutrina que foi chamada de antiquada,
descobriremos a mesma situação. O mesmo se passa, por exemplo, na
questão profunda da Trindade. Os unitários11 (uma seita que nunca deve ser
mencionada sem um respeito especial por sua distinta dignidade e elevada
honra intelectual) são muitas vezes reformadores por um acidente que lança
muitas seitas pequenas nessa atitude. Mas não há nada de liberal ou
próximo da reforma na substituição da Trindade pelo monoteísmo puro. O
Deus complexo do Credo Atanasiano pode ser um enigma para o intelecto;
mas é bem menos provável que Ele compreenda o mistério e a crueldade de
um sultão do que o deus solitário de Omar12 ou de Maomé. O Deus que é
somente uma terrível unidade não é somente um rei, mas um rei oriental. O
coração da humanidade, especialmente da humanidade européia, certamente
se satisfaz muito mais com as estranhas pistas e símbolos que se reúnem ao
redor da idéia trinitária, com a imagem de um concílio no qual a
misericórdia peticiona ao lado da justiça, e com a concepção de uma
espécie de liberdade e variedade que existe até mesmo na câmara mais
interior do mundo. Pois a religião ocidental sempre sentiu intensamente a
idéia de que “não é bom para o homem estar sozinho”. O instinto social se
afirmou por todos os lados, como quando a idéia oriental dos eremitas foi
expelida na prática pela idéia ocidental dos monges. Dessa forma, até
mesmo o asceticismo se tornou fraterno; e os trapistas eram sociáveis até
mesmo quando permaneciam em silêncio. Se esse amor por uma
complexidade viva for nosso teste, é certamente mais saudável ter uma
religião trinitária do que unitária. Pois, para nós trinitários, — se for dito
com toda a reverência — para nós o próprio Deus é uma sociedade. Trata-se
realmente de um mistério insondável da teologia, e mesmo que eu fosse
suficientemente teólogo para com ele lidar diretamente, não seria reverente
fazê-lo. Basta dizer aqui que esse triplo enigma é tão reconfortante quanto o
vinho, e tão convidativo quanto um lugar junto a uma lareira inglesa; que
essa coisa que atordoa o intelecto acalma completamente o coração: mas do
deserto, dos lugares secos e do sol escorchante vêm os filhos cruéis do Deus
solitário; os verdadeiros unitários que com suas cimitarras em mãos
devastaram o mundo. Pois não é bom que Deus esteja sozinho.
Novamente, o mesmo se aplica à difícil questão do perigo da alma, que
perturbou muitas mentes justas. Ter esperança por todas as almas é
imperativo; e é sustentável que sua salvação seja inevitável. É sustentável,
mas não é especialmente favorável à atividade e ao progresso. Nossa
sociedade criativa e guerreira deve, ao contrário, insistir no perigo que
todos correm, no fato de que cada homem pende por um fio ou se agarra a
um precipício. Dizer que tudo ficará bem de qualquer forma é uma
afirmação compreensível: mas não pode ser vista como o soar de uma
trombeta. A Europa deve na verdade enfatizar a possibilidade da perdição; e
a Europa sempre a enfatizou. Nisso sua religião superior se une com todos
os seus romances mais baratos. Para o budista ou para o fatalista oriental, a
existência é uma ciência ou um plano, que deve acabar de determinada
forma. Mas para um cristão a existência é uma estória, que pode acabar de
qualquer forma. Em uma novela emocionante (esse produto puramente
cristão) o herói não é devorado pelos canibais; mas é essencial para a
existência da emoção que ele possa ser comido pelos canibais. O herói
deve, por assim dizer, ser um herói comestível. Da mesma forma, a moral
cristã sempre disse ao homem não que ele perderia sua alma, mas que
deveria cuidar para que não a perdesse. Na moral cristã, em suma, é
perverso chamar um homem de “condenado ao inferno”: mas é estritamente
religioso e filosófico chamá-lo de condenável.
Todo o cristianismo se concentra no homem na encruzilhada. As
filosofias vastas e rasas, as grandes sínteses do embuste, falam sobre eras,
evolução e desenvolvimentos últimos. A filosofia verdadeira se preocupa
com o instante. Será que o homem tomará esta estrada ou aquela? Essa é a
única coisa a se pensar, se você aprecia pensar. É muito fácil pensar nas eras
e qualquer um pode fazê-lo. O instante é realmente terrível: e é porque
nossa religião sentiu intensamente o instante, que lidou bastante em sua
literatura com a batalha, e na teologia com o inferno. Está cheia de perigos,
como um livro de garotos: está numa crise imortal. Há grande similaridade
real entre a ficção popular e a religião dos povos ocidentais. Se você diz que
a ficção popular é vulgar e espalhafatosa, somente diz o que os chatos e
bem-informados dizem sobre as imagens nas igrejas católicas. A vida — de
acordo com a fé — é bem semelhante a uma estória seriada em uma revista:
termina com a promessa (ou ameaça) de “continuar no próximo capítulo”.
Com uma nobre vulgaridade, a vida também imita a novela seriada e acaba
no momento mais excitante. Pois a morte é distintivamente um momento
excitante. Mas o ponto é que uma estória é excitante porque tem em si um
elemento forte de vontade, daquilo que a teologia chama de livre-arbítrio.
Você não pode terminar uma soma como quiser, mas pode terminar uma
história como desejar. Quando alguém descobriu o cálculo diferencial,
havia somente um cálculo diferencial a ser descoberto. Mas no mesmo
trecho em que Shakespeare mata Romeu, ele poderia tê-lo casado com a
velha ama de Julieta se assim se sentisse inclinado. E a cristandade se
excedeu no romance narrativo exatamente porque insistiu sobre o livre-
arbítrio teológico. É um grande assunto, só que pende demais para um lado
da estrada para ser adequadamente discutido aqui; mas é a objeção real à
torrente do falatório moderno sobre tratar o crime como uma doença, sobre
tornar uma prisão meramente um ambiente higiênico como um hospital,
onde o pecado pode ser curado por lentos métodos científicos. A falácia da
coisa é que o mal é uma questão de escolha ativa, enquanto a doença não é.
Se você diz que curará um devasso como cura um asmático, minha resposta
ingênua e óbvia é: “Produza pessoas que querem ser asmáticas como tantos
querem ser devassos”. Um homem pode se deitar e se curar de uma
moléstia. Mas não pode se deitar se deseja se curar de um pecado; ao
contrário, ele deve levantar e saltar violentamente. O argumento completo é
de fato perfeitamente expresso na própria palavra que usamos para um
homem em um hospital; “paciente” está no modo passivo; “pecador” está
no ativo. Se um homem deve ser salvo da gripe, ele pode ser paciente. Mas
se deve ser salvo de uma farsa, ele só pode ser impaciente. Deve estar
pessoalmente impaciente com a farsa. Toda reforma moral deve começar na
vontade ativa e não na passiva.
Chegamos aqui novamente à mesma conclusão substancial. Na medida
que desejamos as reconstruções definidas e as revoluções perigosas que
distinguiram a civilização européia, não devemos desencorajar o
pensamento da possível ruína; devemos na verdade encorajá-lo. Se
quisermos, como os santos orientais, simplesmente contemplar o quanto as
coisas são perfeitas, só podemos, é claro, dizer que sempre estão certas.
Mas se queremos particularmente consertá-las, devemos insistir sobre a
forma como podem dar errado.
Por último, esta proposição é novamente verdadeira no caso das
tentativas modernas comuns de diminuir ou explicar de forma reducionista
a divindade do Cristo. A coisa pode ser verdadeira ou não; lidarei com isso
antes do fim. Mas se a divindade é verdadeira, ela é sem dúvida
terrivelmente revolucionária. Que um homem bom possa ser colocado
contra parede não é nada que já não conhecíamos; mas que Deus possa ser
colocado contra a parede é um estímulo perpétuo para os insurgentes. O
cristianismo é a única religião na terra que sentiu que a onipotência tornou
Deus incompleto. Somente o cristianismo sentiu que Deus, para ser
completamente Deus, deve ter sido tanto um rebelde quanto um rei. O
cristianismo foi o único dos credos que acrescentou a coragem às virtudes
do Criador. Pois a única coragem digna de ser chamada de coragem deve
necessariamente significar que a alma ultrapassa um ponto de ruptura — e
não se rompe. Com isso me aproximo de um assunto sinistro e terrível a
ponto de dificultar qualquer discussão; e me desculpo antecipadamente se
qualquer uma das minhas frases não cair bem ou parecer irreverente em
relação a um assunto de que os maiores santos e pensadores justamente
temeram se aproximar. Mas naquela terrível narrativa da Paixão há a
sugestão emocional distinta de que o autor de todas as coisas, de alguma
forma misteriosa, passou não somente pela agonia, mas também pela
dúvida. Está escrito: “Tu não tentarás o Senhor teu Deus”. Mas o Senhor
teu Deus pode tentar a si mesmo; e parece que foi isso que aconteceu em
Getsêmani. Em um jardim Satã tentou o homem: e em um jardim Deus
tentou Deus. Ele atravessou de uma forma sobre-humana nosso horror
humano pelo pessimismo. O mundo tremeu e o sol foi ocultado nos céus
durante o lamento na cruz, e não na crucificação: o lamento que confessou
que Deus foi abandonado por Deus. E agora deixemos que os
revolucionários escolham um credo entre todos os credos e um deus entre
todos os deuses do mundo, cuidadosamente avaliando todos os deuses da
recorrência inevitável e do poder inalterável. Não encontrarão um outro
deus que se revoltou. Deixemos — e o assunto se torna até difícil para a
fala humana — até mesmo que os ateístas escolham um deus. Descobrirão
somente uma divindade que bradou seu isolamento; somente uma religião
em que Deus pareceu por um instante ser ateu.
Isso pode ser chamado de a essência da antiga ortodoxia, cujo maior
mérito é ser a fonte natural da revolução e da reforma; e cujo maior defeito
é ser obviamente uma asserção abstrata. Sua principal vantagem é ser a
mais aventureira e viril das teologias. Sua principal desvantagem é
simplesmente ser uma teologia. Sempre se pode argumentar que é de
natureza arbitrária e aérea. Mas não está tão alto no céu a ponto de impedir
que grandes arqueiros gastem suas vidas inteiras lançando flechas nela —
sim, e suas últimas flechas; há homens que arruinariam a si mesmos e sua
civilização se pudessem arruinar também essa antiga narrativa fantástica.
Este é o último e mais impressionante fato sobre a fé: que seus inimigos
estão dispostos a usar qualquer arma contra ela, até mesmo espadas que
cortam seus próprios dedos e tochas que queimam suas próprias casas.
Homens que começam a combater a Igreja em prol da liberdade e da
humanidade terminam jogando fora a liberdade e a humanidade, desde que
isso ajude a combater a Igreja. Isso não é um exagero; poderia preencher
um livro inteiro com exemplos disso. O Sr. Blatchford se decidiu, como um
destruidor ordinário da Bíblia, a provar que Adão era inocente do pecado
contra Deus; nos malabarismos para sustentar sua tese admitiu, como uma
mera questão lateral, que todos os tiranos, de Nero ao Rei Leopoldo,13 eram
inocentes de qualquer pecado contra a humanidade. Conheço um homem
que tem tanta paixão por provar que não terá qualquer existência pessoal
após a morte que acabou caindo na convicção de que não possui qualquer
existência pessoal aqui e agora. Ele agora invoca o budismo e diz que todas
as almas se fundem umas com as outras; para provar que não pode ir ao céu
ele prova que não pode ir a Hartlepool.14 Conheci pessoas que protestaram
contra a educação religiosa com argumentos contra qualquer educação,
dizendo que a mente infantil deve crescer livre ou que os mais velhos não
devem ensinar os jovens. Conheci pessoas que mostraram que não poderia
existir um julgamento divino demonstrando que não pode existir um
julgamento humano, mesmo em assuntos práticos. Incendiaram seu próprio
milharal para incendiar a Igreja; destruíram suas próprias ferramentas para
destruí-la; qualquer pau era bom o suficiente para nela bater, mesmo que
fosse a última tábua de seu próprio mobiliário destroçado. Não admiramos,
e dificilmente desculpamos, o fanático que destrói este mundo pelo amor do
outro mundo. Mas o que dizer do fanático que destrói este mundo por ódio
do outro mundo? Ele sacrifica a própria existência da humanidade à não
existência de Deus. Oferece suas vítimas não ao altar, mas meramente para
afirmar a inutilidade do altar e o vazio do trono. Está pronto para arruinar
até mesmo a ética primária pela qual todas as coisas vivem, por sua
vingança eterna e estranha contra alguém que sequer chegou a viver.
E ainda assim a coisa permanece impávida no céu. Seus oponentes
somente têm sucesso em destruir tudo o que mais amam. Não destroem a
ortodoxia, destroem somente o senso comum e político de coragem. Não
provam que Adão não era responsável diante de Deus; pois como poderiam
prová-lo? Somente provam, a partir de suas premissas, que o czar não é
responsável diante da Rússia. Não provam que Adão não deveria ter sido
punido por Deus; somente provam que o explorador do trabalho do vizinho
não deve ser punido pelos homens. Com suas dúvidas orientais sobre a
personalidade não garantem como certo que não teremos uma vida após a
morte; somente garantem que não teremos uma vida muito alegre ou
completa nesta terra. Com suas sugestões paralisantes de que todas as
conclusões estão erradas, não destroem o livro do Anjo Anotador;15
somente tornam um pouco mais difícil manter os livros de Marshall &
Snelgrove.16 A fé não é somente a mãe de todas as energias mundanas: seus
inimigos são os pais de toda a confusão mundana. Os secularistas não
destruíram as coisas divinas; mas destruíram as coisas seculares, se isso os
conforta. Os titãs não escalaram os céus; mas destruíram o mundo.
1 Os pêlos dos camelos eram usados na China antiga para a fabricação de pincéis.
2 Menção ao episódio do sacrifício de Isaac em Gênesis 22.
3 Na mitologia grega, Ifigênia era filha do Rei Agamenon e da Rainha Clitemnestra. Por uma ofensa
de Agamenon, a deusa Ártêmis ordena que ele sacrifique sua filha Ifigênia para garantir a viagem
tranqüila dos navios gregos até Tróia. Em algumas versões Ifigênia é sacrificada em Aulis e em
outras é salva do sacrifício, encontrando depois disso seu irmão Orestes.
4 Alusão à lenda negra da Idade Média.
5 Referência ao Édito de Milão, no qual foi concedido aos cristãos um tratamento benevolente em
todo o Império Romano.
6 Na mitologia nórdica é uma série de eventos futuros que resultarão na morte dos grandes deuses,
em grandes desastres naturais e na definitiva submersão do mundo nas águas. Depois desse fim, o
mundo irá ressurgir com os deuses renascidos e os sobreviventes, e será repovoado por um casal
humano sobrevivente. Num ambiente moderno ou cristão tem o sentido do fim do mundo através do
fogo.
7 É um gênero de plantas florescentes, nativas da Europa, do noroeste da África e do sudeste da Ásia.
8 Banco Central inglês.
9 Benjamin Disraeli (1804–1881) foi um estadista britânico do Partido Conservador que serviu duas
vezes como primeiro-ministro do Reino Unido e teve papel central na criação do Partido
Conservador moderno. Seu grande antagonista liberal foi William Gladstone.
10 É uma rua em Westminster, Londres, famosa por seu intenso tráfego desde os tempos medievais.
11 Deusa grega da caça, dos animais selvagens, do parto, da virgindade, e protetora das moças
jovens. Era usualmente descrita como filha de Zeus e Leto.
12 Sir Oliver Joseph Lodge (1851–1940) foi um físico e escritor britânico que se envolveu no
desenvolvimento do rádio, adquirindo patentes chaves. Também é lembrado por seus estudos sobre o
espiritualismo e o paranormal (principalmente a telepatia), considerando-se um “espiritualista
cristão”.
13 Caio Valério Catulo (84–54 a.C.) foi um poeta latino da República Romana tardia que escreveu
sobre a vida pessoal em vez dos heróis clássicos. Influenciou fortemente Ovídio, Horácio e Virgílio,
sendo redescoberto na Idade Média tardia.
14 Teócrito (300–250 a.C.), o criador da antiga poesia bucólica grega, floresceu no século iii antes de
Cristo.
15 Eram três irmãs que na mitologia grega determinavam o destino dos deuses e dos homens. Faziam
uso da Roda da Fortuna ao tecer o fio da vida de todos os seres. Pertenciam à primeira geração
divina, sendo filhas de Moros e Ananque.
16 Eurípides (480–406 a.C.) foi um dramaturgo trágico da Atenas clássica. Na Era Helenística
tornou-se um pilar da antiga educação literária. Suas inovações afetaram todo o desenvolvimento do
drama, especialmente a idéia da representação de heróis míticos e tradicionais como pessoas comuns
em circunstâncias extraordinárias. Seus contemporâneos o associaram a Sócrates na liderança de um
intelectualismo decadente, e ambos foram ridicularizados por Aristófanes.