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Ortodoxia

Gilbert Keith Chesterton


3ª edição — dezembro de 2019 — CEDET

Título original: Orthodoxy


Publicação original: London, UK: The Bodley Head, 1908

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Editor:
Thomaz Perroni

Tradução:
Murilo Resende Ferreira

Revisão:
José Lima

Preparação:
Beatriz Mancilha

Capa & Projeto gráfico:


Laura Barreto

Diagramação:
Mariana Kunii

Conselho editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo
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de reprodução, sem permissão expressa do editor.

FICHA CATALOGRÁFICA

Chesterton, G. K.
Ortodoxia / G. K. Chesterton;
3ª edição, tradução de Murilo Resende Ferreira — Campinas, sp: Ecclesiae, 2019.

Título original: Orthodoxy

ISBN: 978-85-8491-139-4

1. Literatura inglesa. 2. Cristianismo.


I. Título. II. Autor.
CDD – 828.91209
230

Índices para Catálogo Sistemático

1. Literatura inglesa – 828.91209


2. Cristianismo – 230
Sumário
Prefácio

Introdução
EM DEFESA DE TUDO MAIS

CAPÍTULO 1
O lunático

CAPÍTULO 2
O suicídio do pensamento
CAPÍTULO 3
A ética do país das fadas

CAPÍTULO 4
O estandarte do mundo

CAPÍTULO 5
Os paradoxos do cristianismo
CAPÍTULO 6
A eterna revolução
CAPÍTULO 7
O romance da ortodoxiao

CAPÍTULO 8
A autoridade e o aventureiro
Prefácio

Este livro deve acompanhar Hereges, acrescentando um lado positivo à


tendência negativa do livro anterior. Muitos críticos reclamaram que em
Hereges limitei-me a criticar as filosofias correntes sem oferecer uma
filosofia alternativa. Este livro é uma tentativa de responder ao desafio. É
inequivocamente afirmativo e autobiográfico. O autor se deparou com a
mesma dificuldade que acometeu Newman ao escrever sua Apologia: foi
forçado a ser egoísta para ser sincero. Tudo mais pode ser diferente, mas a
motivação é a mesma em ambos os casos. Trata-se de buscar uma
explicação, não quanto à possibilidade de se crer na fé cristã, mas de como
o autor chegou à crença. O livro é, portanto, organizado sobre o princípio
positivo de um enigma e sua resposta. Trata em primeiro lugar das próprias
especulações solitárias e sinceras do escritor e, logo em seguida, da maneira
surpreendente com que todas elas foram subitamente satisfeitas pela
teologia cristã, levando à percepção, por parte do autor, de que estava diante
de um credo realmente convincente. E se não o é, ao menos se trata de uma
coincidência admirável e reiterada.
Gilbert Keith Chesterton
Introdução
EM DEFESA DE TUDO MAIS

A única desculpa possível para este livro é a de ser uma resposta a um


desafio. Mesmo um mau atirador se torna digno quando aceita um duelo.
Quando, algum tempo atrás, publiquei uma série de artigos apressados, mas
sinceros, sob o nome de Hereges, vários críticos por cujo intelecto tenho o
maior respeito (posso mencionar o Sr. G. S. Street)1 disseram que tudo ia
muito bem quanto à defesa de que todos devem afirmar sua própria
cosmologia, mas que eu evitara cuidadosamente sustentar meus preceitos
com exemplos. “Começarei a me preocupar com a minha filosofia”, disse o
Sr. Street, “quando o Sr. Chesterton nos tiver oferecido a sua”. Sugestão
descuidada para quem está pronto a escrever livros após a menor
provocação. Mas, apesar de ter inspirado e criado este livro, o Sr. Street não
precisa lê-lo. E se efetivamente o ler, descobrirá em suas páginas que tentei
de uma forma vaga e pessoal, através de um conjunto de imagens mentais e
não de uma série de deduções, afirmar a filosofia na qual enfim passei a
acreditar. Não a chamarei minha filosofia, pois não a fiz. Deus e a
humanidade a fizeram, e ela me fez.
Muitas vezes me imaginei a escrever um romance onde um velejador
inglês errasse ligeiramente os cálculos de sua trajetória e viesse descobrir a
Inglaterra sob a impressão de que era uma nova ilha nos mares do sul.
Sempre descubro, no entanto, que sou muito ocupado ou muito preguiçoso
para esse belo trabalho, e por isso não há motivo para não revelar o roteiro a
título de ilustração filosófica. Haverá provavelmente uma impressão geral
de que o homem que desembarcou (armado até os dentes e falando por
sinais) com a missão de cravar a bandeira britânica no templo bárbaro, que
era, na verdade, o Pavilhão de Brighton,2 se sentiu um belo tolo. Não me
preocupo aqui em negar que parecia um tolo. Mas imaginar que ele se
sentiu como um tolo, ou ao menos que o sentimento de insensatez era sua
emoção preponderante, prova que o leitor não estudou com suficiente
delicadeza a rica natureza romântica do herói de nossa fábula. Seu erro era
realmente um erro invejável; e ele o sabia, se era o homem que imagino. O
que seria mais encantador do que combinar em poucos minutos o terror da
terra absolutamente estrangeira e a segurança cálida de voltar à pátria e ao
lar? O que seria melhor do que experimentar todo o prazer da descoberta da
África do Sul sem a necessidade repugnante de lá desembarcar? O que seria
mais glorioso que se preparar para descobrir a Nova Gales do Sul3 e então
perceber, com uma efusão de lágrimas de júbilo, que se tratava realmente da
velha Gales do Sul?4 Ao menos esse me parece ser o problema principal
para os filósofos, e também em certo sentido o principal problema deste
livro. Como podemos evocar um espírito de espanto diante do mundo, mas
que nele também encontre o seu lar? Como a peculiar aldeia cósmica, com
seus cidadãos bípedes, quadrúpedes e afins, suas lamparinas monstruosas e
ancestrais, pode nos dar a fascinação de uma cidade estrangeira e o conforto
e a honra de estar em nossa própria pátria?
Mostrar que uma fé ou filosofia é verdadeira sob todos os pontos de
vista seria uma tarefa imensa mesmo para um livro bem maior do que este;
faz-se necessário seguir uma linha de argumentação; e é a seguinte linha
que aqui me proponho a seguir: quero defender minha fé à maneira de
resposta particular a essa dupla necessidade espiritual — a necessidade da
perfeita harmonização do familiar e do desconhecido, uma composição que
a cristandade corretamente chamou de romance. Pois a própria palavra
“romance” sorve seu sentido misterioso e arcaico de Roma. Quem discute
algo deve primeiro dizer aquilo que não discute. Além de afirmar aquilo
que deseja provar, deve sempre afirmar o que não se propõe a provar.
Aquilo que não busco provar, que tomo como algo que partilho com o leitor
médio, é a atratividade de uma vida ativa e plena de imaginação, pitoresca e
cheia de curiosidade poética, uma vida tal como o homem ocidental parece
ter sempre desejado. Se um homem diz que a aniquilação é melhor que a
existência ou a existência vazia melhor que a variedade e a aventura, ele
não é o tipo de pessoa comum a que me dirijo. Se um homem prefere o
nada, nada posso lhe dar. Mas praticamente todos que conheci no Ocidente
que habito concordariam com a proposição geral de que precisamos dessa
vida de romance prático; da combinação de estranheza e segurança.
Precisamos enxergar no mundo uma combinação da idéia do espanto e da
idéia do acolhimento. Precisamos ser felizes nesta terra de maravilhas sem
nos instalar no mero conforto; e buscarei mostrar nestas páginas que esse é
acima de tudo o triunfo do meu credo.
Mas tenho uma razão peculiar para ter mencionado o homem que
descobriu a Inglaterra num iate: sou esse homem. Descobri a Inglaterra e
não vejo como este livro pode evitar o egocentrismo; também não vejo
(para ser sincero) como evitar que seja maçante. O tédio me libertará, no
entanto, da acusação de irreverência. O mero sofisma leve e sem
conseqüências é o que mais desprezo, e é talvez significativo que seja
aquilo de que geralmente mais me acusam. Nada conheço de tão
desprezível quanto um mero paradoxo; uma mera defesa engenhosa do
indefensável. Se fosse verdade (como se tem dito) que o Sr. Bernard Shaw5
vive de paradoxos, ele deveria ser somente um milionário comum, já que
um homem capaz de semelhante atividade mental inventaria um sofisma a
cada seis minutos. É fácil como mentir; pois é o mesmo que mentir. A
verdade é que o Sr. Shaw é cruelmente limitado pelo fato de que não pode
contar uma mentira que não tenha visto como uma verdade. Encontro-me
sob a égide da mesma servidão intolerável. Nunca em minha vida disse algo
simplesmente engraçado; apesar de ter sido tomado, naturalmente, pela
típica vanglória humana e ter acreditado que algo era engraçado por sair de
minha boca. Uma coisa é descrever uma entrevista com uma górgona ou um
grifo, criaturas inexistentes; outra é descobrir que os rinocerontes existem e
se deleitar com o fato de que parecem inverossímeis. Buscamos a verdade,
mas pode ser que busquemos instintivamente as verdades mais
extraordinárias. E ofereço este livro com os mais caros sentimentos a todos
os alegres companheiros que odeiam o que escrevo, e consideram (com
muita justiça até onde sei) toda minha obra uma imensa palhaçada insossa
ou uma única piada cansativa.
Pois se este livro é uma piada, o feitiço se volta contra o feiticeiro. Sou
eu o homem que com a mais completa ousadia descobriu o que já fora
descoberto. Se há um elemento farsesco no que se segue, a farsa deverá ser
debitada de minha conta; pois este livro explica como tive o devaneio de ser
o primeiro homem a colocar os pés em Brighton, somente para depois
descobrir que fui o último; narra minhas pantagruélicas aventuras em busca
do óbvio. Ninguém pode considerá-las mais patéticas do que eu; nenhum
leitor pode acusar-me de tentar fazê-lo de tolo; sou eu o bobo da corte da
estória, e nenhum rebelde poderá me tirar desse trono. Confesso livremente
todas as ambições idiotas do fim do século xix. Tentei, como todos os
outros rapazotes solenes, estar à frente do meu tempo. Como eles, tentei
estar alguns minutos adiante da verdade. E descobri que estava mil e
oitocentos anos atrasado; afetei uma voz de exagero dolorosamente juvenil
ao proferir minhas verdades, e fui punido da forma mais justa e irônica, pois
mantive minhas verdades: só que descobri, não que não eram verdades, mas
que simplesmente não eram minhas. Quando imaginei que estava sozinho,
na verdade encontrava-me na ridícula posição de ser sustentado por toda a
cristandade. Pode ser, e os céus me perdoem por isto, que tenha de fato
tentado ser original; mas só consegui inventar uma cópia inferior das
tradições já existentes da religião civilizada. O homem do iate pensou que
era o primeiro a descobrir a Inglaterra; eu pensei que era o primeiro a
descobrir a Europa. Tentei realmente fundar a minha própria heresia; e
quando tinha dado os últimos retoques a essa obra, descobri que era a
ortodoxia.
Talvez alguém se divirta com a narrativa desse feliz fiasco. Pode ser
divertido para um amigo ou um inimigo ler como gradualmente aprendi da
verdade de uma lenda perdida, ou do erro de alguma filosofia dominante,
coisas que poderia ter aprendido no meu catecismo — se o tivesse estudado.
Pode existir — ou não — algo de divertido em ler como finalmente
descobri em algum clube anarquista ou templo babilônico6 aquilo que
poderia ter encontrado na paróquia da vizinhança. Se alguém se divertir
com a descoberta de como as flores do campo ou as frases em um ônibus,
os acidentes da política ou os sofrimentos da juventude se uniram em uma
certa ordem para produzir uma certa convicção sobre a ortodoxia cristã,
possivelmente lerá este livro. Mas em tudo existe uma divisão razoável do
trabalho. Escrevi o livro, e nada neste mundo me induziria a lê-lo.
Acrescento uma nota puramente pedante que aparece, como deve ser a
uma nota, no começo do livro. Estes ensaios se preocupam somente em
discutir o fato concreto de que a teologia central do cristianismo
(suficientemente resumida no Credo dos Apóstolos) é a melhor fonte da
vitalidade e da ética sólida. Não há a intenção de discutir a questão muito
fascinante, mas bem distinta, de qual é o presente assento da autoridade
responsável pela proclamação do credo. Quando a palavra “ortodoxia” é
aqui utilizada, ela significa o Credo dos Apóstolos, como compreendido por
todos que se diziam cristãos até pouco tempo atrás, e a conduta histórica
geral daqueles que sustentaram esse credo. Fui forçado por questões de
espaço a confinar-me ao que recebi desse credo; não toco na questão muito
debatida pelos cristãos modernos sobre a autoridade que o originou e o
sustenta. Isto não é um tratado eclesiástico, mas um tipo muito desleixado
de autobiografia. Mas se alguém desejar conhecer minhas opiniões sobre a
natureza atual e real da autoridade, o Sr. G. S. Street só precisa me lançar
um novo desafio, e escreverei um novo livro.

1 George Slythe Street (1867–31 de outubro de 1936) foi um crítico literário, jornalista e novelista
britânico. Associou-se aos antidecadentes (oposição ao decadentismo centrado ao redor de Oscar
Wilde) na redação do National Observer. É mais conhecido pelo romance The Autobiography of a
Boy, onde satirizava estetas contemporâneos como Oscar Wilde e Lord Alfred Douglas. A sua crítica
pode ser encontrada na internet: “Mr. Chesterton”, The Outlook, 17 de junho de 1905.
2 Suntuoso monumento em estilo indiano que o Rei George iv mandou construir no sul da Inglaterra.
3 Estado da Austrália.
4 Região do País de Gales que faz divisa com a Inglaterra.
5 George Bernard Shaw (1856–1950), escritor de teatro, crítico e polemista irlandês. Tornou-se o
principal dramaturgo de sua geração e recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1925. Foi, ao mesmo
tempo, o antagonista favorito e grande amigo de Chesterton.
6 Chesterton se refere às sociedades ocultistas das quais participou.
CAPÍTULO 1
O lunático
AS PESSOAS EXCESSIVAMENTE MUNDANAS NUNCA ENTENDEM nem mesmo
o mundo; dependem de algumas poucas máximas cínicas e falsas. Lembro-
me de certa vez caminhar com um rico editor, que fez uma consideração
que já ouvira muitas vezes; ela é, de fato, quase um lema do mundo
moderno. Mas já a ouvira vezes demais, e subitamente notei que nada
significava. O editor disse sobre alguém: “Aquele homem subirá na vida;
ele acredita em si mesmo”. Lembro-me que enquanto levantava minha
cabeça para ouvir, meu olhar se deparou com um ônibus onde estava escrito
“Hanwel”.1 Disse-lhe: “O senhor me permitiria dizer onde estão os homens
que mais acreditam em si mesmos? Pois tenho a resposta; conheço homens
que acreditam em si mesmos de uma forma mais veemente que Napoleão
ou César. Sei onde flameja a estrela fixa da certeza e do sucesso. Posso
guiá-lo aos tronos dos super-homens. Os homens que realmente acreditam
em si mesmos estão todos nos manicômios”. Respondeu de forma amena
que houve muitos homens que acreditavam em si mesmos e que não eram
lunáticos. “Sim, eles existem”, respondi, “e você especialmente deveria
conhecê-los. Aquele poeta bêbado, do qual não seria possível extrair nem
mesmo uma abominável tragédia, acreditava em si mesmo. Aquele pastor
idoso que queria escrever um grande épico, do qual você se esconderia em
um quartinho, acreditava em si mesmo. Se tivesse consultado sua
experiência empresarial em vez de sua disforme filosofia individualista,
saberia que acreditar em si mesmo é um dos sinais mais comuns de um
pulha. Atores que não sabem atuar acreditam em si mesmos, assim como
devedores que não pagam suas contas. Seria muito mais verdadeiro dizer
que um homem irá certamente falhar, precisamente porque acredita em si
mesmo. A autoconfiança completa não é meramente um pecado; é uma
fraqueza. Acreditar totalmente em si mesmo é uma crença tão histérica e
supersticiosa quanto acreditar em Joanna Southcott:2 semelhante ególatra
tem a palavra ‘Hanwell’ escrita em sua testa tão claramente quanto estava
escrita naquele ônibus”. E a tudo isso meu amigo, o editor, deu esta resposta
efetiva e profunda: “Bem, se um homem não deve acreditar em si mesmo,
no que deve acreditar?”. Depois de uma longa pausa respondi: “Voltarei
para casa e escreverei um livro em resposta a essa questão”. Este é o livro
que escrevi em resposta.
Mas penso que este livro poderia muito bem começar onde começou
nosso argumento — na vizinhança de um manicômio. Os modernos mestres
da ciência muitíssimo se impressionam com a necessidade de começar toda
investigação com um fato. Os antigos mestres da religião igualmente se
impressionavam com essa necessidade. Começavam com o fato do pecado
— tão prático quanto as batatas. Pouco importando se o homem pudesse ser
limpo por águas milagrosas, não havia dúvida sobre a necessidade do
banho. Mas certos líderes religiosos de Londres, e não meros materialistas,
começaram, em nossos dias, não a negar a água miraculosa perfeitamente
questionável, mas a sujeira inquestionável. Alguns novos teólogos
questionam o pecado original, que é a única parte da teologia cristã que
pode ser realmente provada; seguidores do Reverendo R. J. Campbell,3 em
sua espiritualidade quase excessivamente irritante, admitem a pureza
divina, que não podem sequer imaginar em sonhos, mas essencialmente
negam o pecado humano, que podem ver no meio da rua. Os maiores santos
e céticos sempre tomaram o mal positivo como ponto de partida de seus
argumentos. Se é verdade (como certamente o é) que um homem pode
sentir uma felicidade requintada em esfolar um gato, então o filósofo
religioso só pode chegar a duas deduções: negar a existência de Deus, como
fazem todos os ateus; ou negar a união plena entre Deus e o homem, como
fazem todos os cristãos. O novo teólogo aparentemente pensa que negar o
gato esfolado é uma solução altamente racionalista.
Nesta extraordinária circunstância claramente não é mais possível (com
alguma esperança de apelo universal) começar, como faziam nossos pais,
com o fato do pecado. Esse fato, que para eles (e para mim) era claro como
a água, é o próprio fato que tem sido particularmente diluído ou negado.
Mas apesar dos modernos negarem a existência do pecado, penso que ainda
não negaram a existência do manicômio. Todos concordamos que há um
colapso do intelecto tão inconfundível quanto o desmoronamento de uma
casa. Os homens negam o inferno, mas não — ainda não — Hanwell. Para
os fins de nosso argumento primário, o último pode estar exatamente no
lugar onde estava o primeiro. Quero dizer que todos os pensamentos e
teorias já foram julgados um dia pela tendência de levar uma alma à
perdição, e que para nosso presente propósito todos os pensamentos e
teorias modernas podem ser julgados pela tendência de levar um homem à
loucura.
É verdade que alguns falam de forma leviana e vaga da insanidade como
se fosse algo em si mesmo atraente. Mas um breve raciocínio mostrará que
se a doença é bela, geralmente trata-se da doença alheia. Um homem cego
pode ser pitoresco; mas dois olhos são necessários para ver a pintura. Da
mesma forma, até mesmo a mais selvagem poesia de um louco só pode ser
apreciada pelo homem são. Para o louco sua insanidade é bem prosaica,
porque é bem verdadeira. Um homem que acredita ser uma galinha se
enxerga como algo tão ordinário quanto uma galinha. Aquele que acredita
ser um pedaço de vidro é para si mesmo tão pouco atraente quanto um
pedaço de vidro. É a homogeneidade da mente que o torna ao mesmo tempo
tedioso e louco. É somente porque enxergamos a ironia dessa idéia que o
consideramos interessante; e é somente porque ele não vê a ironia de sua
idéia que está em Hanwell. Em resumo, esquisitices só impressionam
pessoas comuns. Esquisitices nunca impressionam pessoas esquisitas. É por
isso que pessoas comuns podem se divertir tanto, enquanto os esquisitos
estão sempre reclamando do tédio da vida. Também é por isso que os novos
romances são esquecidos tão rapidamente, e os antigos contos de fadas
duram para sempre. Os antigos contos de fadas fazem do herói um rapaz
comum, pois são suas aventuras que são surpreendentes; e elas surpreendem
porque ele é comum. Mas no romance psicológico moderno o herói é
anormal; o centro não é central. Dessa forma, as mais ferozes aventuras
nunca o afetam adequadamente, e o livro é monótono. É possível criar a
estória de um herói entre dragões; mas não de dragões entre dragões. O
conto de fadas discute o que um homem são fará em um mundo louco. A
novela realista e sóbria dos dias atuais discute o que alguém essencialmente
lunático irá fazer em um mundo tedioso.
Comecemos então com o manicômio; façamos dessa hospedaria
maligna e fantástica a largada de nossa jornada intelectual. Se apelarmos
para a filosofia da sanidade, a primeira coisa a fazer é apagar um erro
enorme e comum. Vaga por aí a noção de que a imaginação, e
especialmente a imaginação mística, é perigosa para o equilíbrio mental.
Diz-se usualmente que os poetas não são psicologicamente confiáveis; e
geralmente há uma vaga associação entre coroas de louro na cabeça e
capacetes de bombril. Mas os fatos e a história contradizem completamente
essa visão. A maior parte dos grandes poetas foram não somente sãos, mas
verdadeiros homens de negócio; e se Shakespeare realmente cuidou de
cavalos, o fez porque era o homem mais confiável para fazê-lo. A
imaginação não gera a insanidade; é a razão que o faz. Não são os poetas
que enlouquecem, mas os enxadristas. Os matemáticos e os bancários
enlouquecem; mas raramente isso acontece com os artistas criativos. Não
estou, de forma alguma, atacando a lógica: só disse que o perigo reside na
lógica e não na imaginação. A paternidade artística é tão saudável quanto a
paternidade física. Além disso, é digno de consideração que quando surge
um poeta mórbido isso se dá usualmente porque ele tem um calcanhar de
Aquiles racionalista em seu cérebro. Poe,4 por exemplo, era realmente
mórbido; mas não por ser poeta, e sim porque era particularmente analítico.
Até o xadrez ele considerava excessivamente poético; desprezava-o porque
estava cheio de cavaleiros e castelos, como um poema. Declaradamente
preferia os negros discos do jogo de damas, porque se pareciam mais com
os pontos negros em um diagrama cartesiano. Talvez o maior exemplo seja
o seguinte: somente um grande poeta inglês, Cowper,5 enlouqueceu. E ele
foi definitivamente levado à loucura pela lógica, pela horrenda e estranha
lógica da predestinação. A poesia era o remédio e não a doença; ela o
manteve parcialmente saudável. Ele às vezes esquecia o inferno seco e
escarlate, a que seu horrível necessitarismo o arrastou, entre as margens e os
brancos lírios do Rio Ouse. João Calvino o condenou e John Gilpin6 quase
o salvou. E por todos os lados constatamos que os homens não
enlouquecem quando sonham. Os críticos são bem mais loucos que os
poetas. Homero é perfeitamente sereno e pleno; são seus críticos que o
dilaceram em farrapos extravagantes.7 Shakespeare é o que é; foram
somente seus críticos que descobriram que ele é uma outra pessoa.8 E
apesar de São João Evangelista ter visto muitos monstros estranhos em sua
visão, ele não viu nenhuma criatura mais selvagem que seus comentadores.
O fato geral é simples: a poesia é sã porque navega docemente em um mar
infinito; a razão busca cruzar esse mar e assim torná-lo finito. O resultado é
a exaustão mental, assim como a exaustão física do Sr. Holbein.9 Admitir
que tudo é um exercício é tudo compreender como um fardo. O poeta só
deseja exaltação e expansão, um mundo em que possa se estirar; só quer
elevar sua cabeça aos céus. É o lógico que busca colocar os céus em sua
cabeça. E é sua cabeça que se fende.
Trata-se de uma questão pequena, mas não irrelevante, que esse erro
notável seja usualmente defendido com um notável erro de citação. Todos já
ouvimos alguém recitando a célebre frase de Dryden10 com o seguinte
sentido: “O grande gênio está sempre próximo da loucura”. Mas Dryden
não disse que o grande gênio estava próximo da loucura. Ele mesmo era um
gênio e sabia muito bem que as coisas não se passam assim. Seria difícil
encontrar um homem mais romântico ou mais sensível. O que Dryden
realmente disse foi: “Uma grande mente está sempre próxima da loucura”; e
isso é verdadeiro. É a pura prontidão do intelecto que está sempre prestes a
colapsar. É preciso também lembrar do tipo de homem de que Dryden
falava. Não se tratava de um visionário ascético como Vaughan11 ou George
Herbert;12 falava do homem cínico do mundo, do cético, do diplomata, do
político pragmático. Tais homens de fato estão sempre próximos da loucura.
O calculismo incessante de seus cérebros e de muitos outros cérebros é uma
profissão perigosa. Sempre é perigoso para a mente acertar as contas com a
mente. Um engraçadinho perguntou-me por que dizemos “tão louco quanto
um chapeleiro”. Alguém ainda mais engraçadinho poderia responder que o
chapeleiro é maluco porque tem de medir a cabeça humana.
E se os grandes homens da lógica são muitas vezes maníacos, é
igualmente verdadeiro que os maníacos muitas vezes são grandes lógicos.
Quando me envolvi em uma controvérsia com o The Clarion13 sobre a
questão do livre-arbítrio, aquele bom escritor de nome R. B. Suthers14 disse
que o livre-arbítrio é uma loucura, pois implicava ações sem causa, e as
ações de um lunático não tinham causa. Não me concentrarei aqui sobre o
lapso desastroso na lógica determinista. É claro que se qualquer ação,
mesmo a de um lunático, pode não ter causa, podemos dizer adeus ao
determinismo. Se a cadeia causal pode ser quebrada por um homem louco,
também o pode ser por um homem comum. Mas meu objetivo é apontar
algo mais prático. É natural, talvez, que um marxista moderno nada saiba
sobre o livre-arbítrio. Mas é certamente notável que um marxista moderno
nada saiba sobre os lunáticos. A última coisa que pode ser dita de um deles
é que suas ações não têm causa. Se alguns atos humanos podem vagamente
ser chamados de incausados, só podem ser aqueles mais corriqueiros de um
homem saudável: assobiar enquanto caminha; cortar a grama com um
graveto afiado; chutar seu próprio calcanhar ou esfregar suas mãos. É o
homem feliz que faz coisas sem sentido; o doente é fraco demais para o
ócio. São exatamente essas ações despreocupadas e desinteressadas que o
louco não pode compreender; pois (como o determinista) geralmente vê
causas demais em tudo. Leria uma conspiração nessas atividades vazias.
Pensaria que cortar grama era um ataque à propriedade privada e que o
chute no calcanhar era um sinal para um cúmplice. Se pudesse por um
instante se tornar despreocupado, também se tornaria são. Todos que
tiveram a infelicidade de falar com alguém à beira ou bem no centro de uma
desordem mental sabem que sua qualidade mais sinistra é uma horrenda
clareza nos detalhes; uma conexão de tudo com tudo em um mapa mais
elaborado que um labirinto. Ao argumentar com um louco é extremamente
provável que você leve a pior; pois em muitos sentidos sua mente se move
mais rapidamente, pois não é atrasada pelas coisas que estão implicadas no
bom julgamento. Ele não é atrapalhado pelo senso de humor ou de caridade,
ou pelas tolas certezas da experiência; torna-se mais lógico por ter perdido
suas afeições saudáveis. De fato, o dito comum sobre a insanidade é
enganador: o louco não é o homem que perdeu sua razão, mas sim aquele
que perdeu tudo exceto a razão.
A explicação de um louco para uma coisa é sempre completa e muitas
vezes satisfatória em um sentido puramente racional. Ou melhor, a
explicação insana, se não conclusiva, é ao menos irrespondível; isso pode
ser observado nas duas ou três formas mais comuns de insanidade. Se um
homem diz, por exemplo, que os homens conspiram contra ele, não é
possível argumentar exceto dizendo que todos os homens negam serem
conspiradores; precisamente o que os conspiradores fariam. A explicação
do lunático abarca o fenômeno tanto quanto a sua. E se um homem diz que
é o rei legítimo da Inglaterra? Não é suficiente dizer que as autoridades
existentes o chamam de louco; pois se ele fosse o rei da Inglaterra isso seria
a coisa mais sábia a ser feita pelas autoridades existentes. Para um homem
que diz ser Jesus Cristo, não se pode dizer que o mundo nega sua divindade,
já que o mundo negou a de Cristo.
Mas ele está errado. Se tentarmos rastrear seu erro em termos exatos,
não será tão fácil quanto supomos. Talvez o mais próximo que possamos
chegar é dizer isto: que a sua mente se move em um círculo perfeito, mas
estreito. Um pequeno círculo é tão infinito quanto um grande; mas apesar
de ser idêntico na infinitude, não o é na grandeza. Da mesma forma, a
explicação insana é tão completa quanto a sã, mas não é tão ampla. Uma
bala pode ser tão redonda quanto a Terra, mas não é o mundo. Há algo
como uma universalidade estreita; como uma eternidade estreita e apertada;
e é possível vê-la em muitas religiões modernas. E, falando bem
exteriormente e empiricamente, podemos dizer que a marca mais forte e
inconfundível da loucura é a combinação de completude lógica e contração
espiritual. A teoria do lunático explica muitas coisas, mas não as explica de
forma ampla. Isso significa que se estivermos lidando com uma mente que
está se tornando mórbida, devemos nos preocupar principalmente não em
dar argumentos, mas sim ar, em convencer que há algo mais limpo e fresco
fora da asfixia de um único argumento. Suponha, por exemplo, que seja este
primeiro caso que considero típico: o caso de um homem que a todos acusa
de conspirar contra ele. Se pudéssemos expressar nossos sentimentos mais
profundos de protesto e de apelo contra essa obsessão, suponho que
diríamos algo assim: “Sim, admito que você tem certa razão em sua
explicação, já a decorei e também sei que muitas coisas se encaixam nas
outras como você diz. Admito que a sua explicação explica muitas coisas;
mas quantas coisas deixa de fora! Não há outras estórias no mundo senão a
sua; e será que todos os homens realmente se preocupam com a sua vida?
Suponha que aceitemos os detalhes; talvez quando o homem na rua parecia
não o ver fosse somente por astúcia; talvez quando o policial perguntou seu
nome fosse somente porque ele já o sabia. Mas quão mais feliz você seria se
simplesmente soubesse que todas essas pessoas não se preocupam
minimamente com você! Quão maior seria sua vida se o ego se tornasse
menor nela; se você pudesse olhar os outros homens com um prazer e uma
curiosidade comuns; se pudesse ver-lhes andando em seu egoísmo solar e
sua indiferença viril! Começaria então a se interessar por eles, exatamente
porque não se interessam por você. Encerraria o seu pequeno e
espalhafatoso teatro no qual seu pequeno enredo é sempre encenado, e se
descobriria então sob a liberdade do céu, em uma rua cheia de esplêndidos
estranhos”. Ou suponha que seja o segundo tipo de loucura, de um homem
que exige sua coroa, diante do qual poderíamos dizer: “Tudo bem! Talvez
você seja o rei da Inglaterra, mas por que você se preocupa com isso?
Esforce-se de forma magnífica e será um ser humano capaz de se elevar
acima de todos os reis da terra”. E se fosse o terceiro caso, o do louco que
acredita ser o Cristo? Se disséssemos o que sentimos, diríamos: “Então
você é o Criador e o Redentor do mundo: mas que mundo pequeno! Que
céu pequeno você deve habitar, com anjos que são menores que borboletas!
Como deve ser triste ser Deus; e um Deus deficiente! Será que não há uma
vida mais plena e algum amor mais maravilhoso que o seu; e é em sua
misericórdia pequena e dolorosa que toda a carne deve ter fé? Quão mais
feliz você seria, quão mais de você existiria, se o martelo de um Deus
superior pudesse destruir o seu pequeno cosmos, espalhar as estrelas como
lamparinas, e deixá-lo aberto, livre como todos os outros homens para olhar
para cima e para baixo!”.
E deve-se lembrar que a mais prática das ciências não tem essa visão do
mal mental; não busca argumentar com ele como se fosse uma heresia, mas
simplesmente expulsá-lo como um feitiço. Nem a ciência moderna nem a
religião antiga acreditam na completa liberdade do pensamento. A teologia
rejeita certos pensamentos como blasfemos. A ciência rejeita certos
pensamentos como mórbidos. Por exemplo, algumas sociedades religiosas
moderadamente desencorajam os homens a pensar sobre o sexo. A nova
sociedade científica definitivamente desencoraja o homem a pensar sobre a
morte; é um fato, mas é considerado um fato mórbido. E ao lidar com
aqueles cuja morbidez tem um toque de loucura, a ciência moderna se
preocupa menos com a lógica pura que um dervixe rodopiante. Nesses
casos, não é suficiente que o homem infeliz deseje a verdade: deve desejar a
saúde. Nada pode salvá-lo senão uma fome cega pela normalidade, como a
de um animal. Um homem não pode pensar um caminho de fuga do mal
mental; pois é o órgão do pensamento que adoeceu, que se tornou
ingovernável e independente. Ele só pode ser salvo pela vontade ou pela fé.
No momento em que sua razão se mexer, ela se moverá na antiga rotina
circular; ele ficará girando em seu círculo lógico, assim como um homem
que viaja na terceira classe do trem do Círculo Interior irá girar pelo Círculo
Interior até que realize o ato místico, voluntário e vigoroso de sair para Rua
Gower.15 A decisão é a questão; uma porta deve ser fechada para sempre.
Todo remédio é um remédio desesperado. Toda cura é uma cura miraculosa.
Curar um louco não é argumentar como um filósofo: é exorcizar um
demônio. E não importa quão calmamente os doutores e psicólogos
trabalhem o assunto, sua atitude é profundamente intolerante — tão
intolerante quanto Maria, a Sangüinária.16 Esta é sua atitude: o homem deve
parar de pensar, se quer continuar a viver. O conselho é uma amputação
intelectual. Se sua cabeça te faz pecar, corte-a; pois é melhor, em vez de
simplesmente entrar no reino dos céus como uma criança, fazê-lo como um
imbecil, do que ser lançado com todo o seu intelecto no inferno — ou em
Hanwell.
Esse é o louco real; ele é usualmente um lógico e freqüentemente um
lógico de sucesso. Sem dúvida poderia ser derrotado no campo da simples
razão, e o argumento contra ele poderia ser exposto de forma lógica; mas
pode ser muito mais precisamente exposto em termos gerais e mesmo
estéticos: o louco está na prisão limpa e bem iluminada de uma só idéia,
aguçado por um único ponto doloroso. Não possui a hesitação e a
complexidade saudáveis. Como expliquei na introdução, estabeleci que
daria, nestes primeiros capítulos, não tanto um esquema de uma doutrina
quanto imagens de um ponto de vista. E descrevi extensamente minha visão
do maníaco por esta razão: sou afetado pelos pensadores modernos do
mesmo modo como sou afetado pelos loucos. Aquela atmosfera ou nota
inconfundível que ouço vindo de Hanwell, também ouço de metade das
cátedras de ciência e sabedoria contemporâneas; e muitos dos cientistas
loucos são cientistas loucos em muitos sentidos. Todos têm exatamente a
mesma combinação que observei: uma razão expansiva e exaustiva junto de
um senso comum reduzido. São universais somente no sentido de que
tomam uma explicação rarefeita e a levam ao extremo. Mas um padrão
pode ser expandido indefinidamente e ainda assim ser um pequeno padrão.
Eles enxergam um tabuleiro de xadrez branco no preto, e povoam o
universo com ele, mas ele não deixa de ser branco no preto. Como o
lunático, não podem alterar seu ponto de vista; não podem fazer um esforço
mental e subitamente ver o preto no branco.
Tomem primeiro o caso mais óbvio do materialismo. Como uma
explicação do mundo, ele tem certa simplicidade louca. Tem a justa
qualidade do argumento do lunático; temos ao mesmo tempo a impressão
de que tudo explica e que nada explica. Contemplem algum materialista
sincero e capaz, como por exemplo, o Sr. McCabe,17 e terão exatamente
essa sensação única. Ele compreende tudo, e essa totalidade não parece ser
digna de compreensão. Seu cosmos pode ser completo em cada mecanismo
e roldana, mas ainda é um cosmos menor que nosso mundo. De alguma
forma o seu esquema, como o lúcido esquema de um louco, parece
inconsciente das estranhas energias e da grande indiferença da terra; não
pensa sobre coisas reais desta terra, sobre povos que lutam e mães
orgulhosas, sobre o primeiro amor e sobre medo do mar. A terra é tão
grande e o cosmos tão pequeno quanto o menor buraco em que um homem
pode enfiar sua cabeça.
Deve-se compreender que não estou agora discutindo a relação daqueles
credos com a verdade; mas somente sua relação com a sanidade. Mais tarde
espero atacar a questão da verdade objetiva; aqui só falo do fenômeno
psicológico. Ainda não tentarei provar a Haeckel18 que o materialismo é
falso, não mais do que tentei provar ao homem que acreditava ser Cristo
que ele estava no erro. Simplesmente afirmo aqui que ambos os casos têm o
mesmo tipo de completude e de incompletude. É possível explicar a
detenção de um homem em Hanwell para um público indiferente dizendo
que se trata da crucificação de um deus do qual o mundo não é digno. A
explicação é suficiente. Similarmente, é possível explicar a ordem do
universo dizendo que todas as coisas, até mesmo as almas humanas, são
folhas que crescem inevitavelmente em uma árvore completamente
inconsciente — o destino cego da matéria. A explicação também é
suficiente, mas não, é claro, de forma tão completa quanto a do louco. Mas
o ponto é que a mente humana normal não somente rejeita ambas, mas
sente o mesmo tipo de rejeição. Sua afirmação é de que se o homem em
Hanwell é o Deus verdadeiro, este não é lá grande coisa. E, similarmente, se
o cosmos do materialista é o cosmos verdadeiro, não é lá grande coisa. A
coisa se encolheu. A divindade é menos divina que muitos homens; e (de
acordo com Haeckel) a totalidade do cosmos é algo mais cinza, estreito e
trivial do que muitos dos seus aspectos separados. As partes parecem maior
do que o todo.
Pois devemos lembrar que a filosofia materialista, verdadeira ou não, é
certamente muito mais limitadora do que qualquer religião. Em certo
sentido, é claro, todas as idéias inteligentes são estreitas. Não podem ser
infinitamente abertas. Um cristão é limitado no mesmo sentido que um ateu.
Não pode considerar o cristianismo falso e continuar a ser cristão; e o ateu
não pode considerar o ateísmo falso e continuar a ser ateu. Mas há um
sentido muito especial em que o materialismo tem mais restrições do que o
espiritualismo. O Sr. McCabe pensa que sou um escravo por não poder
acreditar no determinismo; e eu penso que o Sr. McCabe é um escravo
porque não pode acreditar em fadas. E se examinarmos os dois vetos
veremos que o dele é um veto muito mais puro do que o meu. O cristão está
livre para acreditar que há uma grande extensão de ordem definida e de
desenvolvimento inevitável no universo. Mas ao materialista não é
permitido admitir em sua imaculada máquina a menor mancha de
espiritualismo ou milagre. O pobre Sr. McCabe não pode conservar nem
mesmo o menor duende, mesmo que um deles possa estar escondido em
uma flor. O cristão admite que o universo é diverso e até mesmo uma
miscelânea, assim como o homem são sabe que é complexo; que tem algo
da Besta, do Demônio, do santo e do cidadão em si. Ele sabe até mesmo
que tem um toque de loucura. Mas o mundo materialista é bem simples e
sólido, assim como o lunático tem certeza de ser saudável. O materialista
está certo de que sua história foi simples e unicamente uma cadeia de
causação, assim como o interessante indivíduo já mencionado tinha toda a
certeza de que era simples e unicamente uma galinha. Os materialistas e os
loucos nunca têm dúvidas.
As doutrinas espirituais não são uma real limitação à mente como as
negações materialistas. Mesmo que acredite na imortalidade, não preciso
pensar sobre ela. Mas se não creio na imortalidade, não posso pensar nela.
No primeiro caso a estrada está aberta e posso andar o quanto quiser; no
segundo a estrada está fechada. Mas o argumento é ainda mais forte, e o
paralelo com a loucura ainda mais estranho. Pois nosso argumento contra a
teoria lógica e exaustiva do lunático é que, certa ou errada, ela
gradualmente destruiu sua humanidade. A acusação contra as principais
deduções do materialista também é que, certas ou erradas, gradualmente
destroem sua humanidade; e com isso não quero dizer somente a bondade,
mas também a esperança, a coragem, a poesia, a iniciativa, e tudo que é
humano. Por exemplo, quando o materialista arrasta os homens ao completo
fatalismo (como geralmente faz) é inútil simular que se trata de uma força
libertadora. É absurdo dizer que se está aumentando a liberdade quando se
usa o livre pensamento para destruir o livre-arbítrio. Os deterministas vêm
para aprisionar e não para libertar. Poderiam muito apropriadamente chamar
sua lei de a “cadeia” da causação — a pior cadeia que já aprisionou um
homem. Pode-se utilizar a linguagem da liberdade para falar do
ensinamento materialista, mas é óbvio que ela lhe é tão inaplicável quanto
para o homem preso no manicômio. Pode-se dizer que o homem é livre para
se imaginar um ovo frito. Mas é certamente um fato mais importante e
maciço que ele, se é um ovo frito, não está livre para comer, beber, dormir,
caminhar ou fumar um cigarro. Também é possível dizer que o audacioso
pensador determinista está livre para descrer da realidade da vontade. Mas é
certamente um fato mais importante e maciço que ele então não é livre para
se levantar, praguejar, agradecer, justificar, exortar, punir, resistir às
tentações, incitar multidões, fazer resoluções de ano novo, perdoar os
pecadores, admoestar os tiranos, ou até mesmo dizer um “obrigado” pela
mostarda.
Ao deixar este assunto posso acrescentar que há uma estranha falácia
que diz que o fatalismo materialista é de alguma forma favorável à
compaixão, à abolição das punições cruéis ou de qualquer tipo. Isso é
exatamente o inverso da verdade. É perfeitamente compreensível que a
doutrina da necessidade não faz diferença alguma; que deixa o carrasco em
paz com sua tortura e o amigo bondoso em paz com suas exortações. Mas
obviamente, se acaba com algo, é certamente com a exortação gentil. A
inevitabilidade dos pecados não evita a punição; e se evita algo, é
exatamente a persuasão. O determinismo é tão capaz de levar à crueldade
quanto certamente leva à covardia; não é inconsistente com o tratamento
cruel aos criminosos. Mas é, talvez, inconsistente com o tratamento
generoso dos criminosos; com qualquer apelo a seus sentimentos elevados
ou encorajamento à luta moral. O determinista não acredita no apelo à
vontade, mas acredita em mudar o ambiente. Ele não deve dizer ao pecador:
“Vá e não peque mais”, pois o pecador nada pode fazer; mas pode colocá-lo
no caldeirão de óleo fervente; pois o óleo fervente é um ambiente.
Considerado como uma imagem, portanto, o materialista tem o fantástico
delineamento do lunático. Ambos tomam uma posição ao mesmo tempo
irrespondível e intolerável.
É claro que tudo isso não é verdadeiro somente quanto ao materialista.
O mesmo se aplicaria ao outro extremo da lógica especulativa. Há um
cético bem mais terrível do que aquele que acredita que tudo começou na
matéria. É possível encontrar o cético que acredita que tudo começou por
ele mesmo. Não duvida da existência de anjos e demônios, mas dos homens
e das vacas. Para ele, seus próprios amigos são uma mitologia por ele
inventada. Ele cria seu pai e sua mãe. Essa horrenda fantasia tem algo de
decisivamente atrativa para o egoísmo místico de nossos dias. Aquele editor
que pensou que os homens subiriam na vida porque acreditam em si
mesmos, aqueles caçadores do super-homem que sempre o procuram no
espelho, aqueles escritores que falam sobre imprimir suas personalidades
em vez de criar vida para o mundo, todas essas pessoas estão somente a um
milímetro desse vazio monstruoso. E quando este gentil mundo ao redor
desse homem tiver se obscurecido como uma mentira; quando os amigos
desaparecerem como fantasmas, e as bases do mundo tremerem: aí nosso
homem, que duvida de tudo e todos, estará sozinho em seu pesadelo —
então o grande lema individualista estará escrito em sua testa com uma
ironia vingadora. As estrelas serão somente pontos de escuridão em seu
próprio cérebro; o rosto de sua mãe somente um esboço de seu louco lápis
nos muros de sua cela. Mas em sua cela estará escrita uma atroz verdade:
“Ele acredita em si mesmo”.
Tudo que nos interessa aqui, no entanto, é notar que esse extremo pan-
egoísmo do pensamento exibe o mesmo paradoxo do extremo materialismo.
É igualmente completo na teoria e igualmente paralisante na prática. Para
simplificar, é mais fácil afirmar o conceito dizendo que um homem pode
acreditar que está sempre num sonho. É óbvio que não pode existir prova
positiva de que não está, pela simples razão de que não se pode oferecer
nenhuma prova que não possa ser oferecida em um sonho. Mas se o homem
começasse a queimar Londres e dissesse que sua empregada logo o
chamaria para o café-da-manhã, nós o prenderíamos e o colocaríamos em
um lugar já muito aludido neste capítulo. O homem que não pode acreditar
em seus sentidos e o homem que não pode acreditar em nada mais estão
ambos insanos, mas sua insanidade é provada não por algum erro em seu
argumento, mas pelo erro manifesto de suas vidas inteiras. Ambos se
aprisionaram em duas caixas, pintadas no interior com o sol e as estrelas;
ambos são incapazes de sair, um para a saúde e a alegria do céu, o outro até
mesmo para a saúde e a alegria da terra. Sua posição é bem razoável e até
mais do que isso: em certo sentido é infinitamente razoável, assim como
uma moedinha é infinitamente circular. Mas há algo como uma infinitude
perversa, uma eternidade vulgar e servil. É impressionante notar que muitos
modernistas, sejam eles céticos ou místicos, tomaram por sinal um certo
símbolo oriental, que é o próprio símbolo dessa nulidade final. Quando
desejam representar a eternidade, representam-na pela serpente que engole
o seu próprio rabo.19 Há um assustador sarcasmo na imagem dessa refeição
pouco satisfatória. A eternidade dos fatalistas materiais, a eternidade dos
pessimistas orientais, a eternidade dos altivos teosofistas e cientistas de alto
escalão de hoje é, de fato, muito bem representada pela serpente que engole
o seu rabo, um animal degradado que destrói a si mesmo.
Este capítulo é puramente prático e se preocupa com o que é realmente a
marca e o elemento central da insanidade; podemos dizer em resumo que é
a razão sem raiz, a razão no vazio. O homem que começa a pensar sem os
primeiros princípios apropriados enlouquece; ele começa a pensar pelo lado
errado. Nas próximas páginas precisamos descobrir qual o lado certo. Mas
podemos perguntar como conclusão: se é isso que leva os homens à
loucura, o que é que os mantém sãos? Ao fim deste livro espero ter dado
uma resposta definitiva — talvez muito definitiva para alguns. Mas por
agora é possível dar, da mesma forma unicamente prática, uma resposta
geral a respeito do que na história humana real mantém os homens sãos. O
misticismo preserva a sua saúde. Enquanto há mistério, há saúde; quando o
mistério é destruído, surge a morbidez. O homem comum tem sido sempre
são porque tem sido sempre um místico. Ele permitiu o crepúsculo; teve
sempre um pé na terra e outro na terra das fadas. Ele sempre foi livre para
duvidar de seus deuses; mas, diferente do agnóstico moderno, também foi
livre para neles acreditar. Sempre se preocupou mais com a verdade do que
com a consistência. Se visse duas verdades que pareciam se contradizer, ele
aceitaria as duas verdades e junto com elas a contradição. Sua visão
espiritual é estereoscópica, como sua visão física: ele vê duas imagens
diferentes ao mesmo tempo e por isso enxerga melhor. Assim ele sempre
acreditou que existia o destino, mas também o livre-arbítrio; que as crianças
eram de fato o reino dos céus, mas que deveriam obedecer ao reino da terra.
Admirava a juventude porque era jovem e a velhice porque não era. É
exatamente esse equilíbrio de aparentes contradições que tem sido
responsável pela leveza do homem são. Este é todo o segredo do
misticismo: que o homem pode tudo compreender com a ajuda do que não
compreende. O lógico mórbido busca tornar tudo lúcido, e só consegue
tornar tudo misterioso. O místico permite que uma coisa seja misteriosa, e
tudo o mais se torna lúcido. O determinista torna a teoria da causação algo
muito claro, e depois descobre que não pode mais dizer “por favor” para a
empregada. O cristão permite que o livre-arbítrio continue um mistério
sagrado, e suas relações com a empregada se tornam de uma clareza
cristalina e cintilante. Ele coloca a semente do dogma em uma escuridão
central, mas ela então se ramifica em todas as direções com uma riqueza
natural e abundante. Assim como tomamos o círculo como símbolo da
razão e da loucura, tomamos a cruz como o símbolo do mistério e da saúde.
O budismo é centrípeto, mas o cristianismo é centrífugo: ele liberta. Pois o
círculo é perfeito e infinito em sua natureza, mas está eternamente fixado
em seu tamanho, nunca pode crescer ou diminuir. Mas a cruz, apesar de ter
em seu coração uma colisão e uma contradição, pode estender seus quatro
braços infinitamente sem mudar de forma. Por ter um paradoxo em seu
centro, pode crescer sem mudar. O círculo retorna sobre si mesmo e é
limitado. A cruz abre seus braços para os quatro ventos; é uma placa para os
viajantes livres.
Os símbolos isolados são de um valor nebuloso ao se falar desse
profundo assunto; e um outro símbolo da natureza física expressará
suficientemente bem a posição real do misticismo para a humanidade. A
única coisa criada para a qual não podemos olhar é aquela sob cuja luz
podemos olhar para todas as coisas. Como o sol do meio-dia, o misticismo
explica tudo pelo brilho de sua triunfante invisibilidade. O intelectualismo
desapegado é, no sentido exato do dito popular, um puro brilho lunar; pois é
a luz sem calor, e luz secundária, refletida de um mundo morto. E os gregos
tinham razão quando tornaram Apolo o deus tanto da imaginação quanto da
sanidade; ele era o patrono da poesia e da cura. Falarei depois de dogmas
necessários e de um credo particular. Mas o transcendentalismo pelo qual
todos os homens vivem tem primariamente a mesma posição que o sol no
céu. Somos dele conscientes como uma espécie de esplêndida confusão: é
algo brilhante e sem forma, ao mesmo tempo uma chama e um borrão. Mas
o círculo lunar é tão claro e inconfundível, tão recorrente e inevitável,
quanto o círculo euclidiano no quadro negro. Pois a lua é completamente
razoável: é a mãe de todos os lunáticos e lhes deu seu nome.

1 Cidade onde foi construído o primeiro manicômio público da Grã-Bretanha, em 1831.


2 Joanna Southcott (1750–1814) declarava receber mensagens do além. Dizia-se a mulher de que se
fala no Apocalipse, a que combate o dragão. Chegou a reunir muitos seguidores que esperavam pelo
parto virginal de seu filho, conforme narra o Apocalipse. Mas a espera foi em vão: Joanna morreu
antes do milagre que anunciava e das profecias que profetizava. Por algum tempo, alguns seguidores
mais fiéis aguardaram sua ressurreição — profecia que também não se cumpriu.
3 Teólogo anglicano, contemporâneo de Chesterton, para o qual o homem não tinha liberdade e,
portanto, não podia pecar.
4 Edgar Allan Poe (1809–1849), escritor, editor e crítico literário americano, famoso por sua poesia e
por seus contos misteriosos e macabros. Figura central do gênero romântico e gótico.
5 William Cowper (1731–1800), poeta e compositor de hinos inglês; um dos mais populares de seu
tempo.
6 John Gilpin é um personagem utilizado na balada cômica de Cowper intitulada The Diverting
History of John Gilpin. As aventuras de Gilpin começam quando ele se separa de sua esposa e filhos
em uma viagem para o Bell Inn em Edmonton, devido a um cavalo descontrolado.
7 Referência à teoria segundo a qual Homero não seria um indivíduo, mas uma série de bardos e
colagens de canções antigas.
8 Referência à controvérsia sobre a identidade de Shakespeare.
9 Hans Holbein, o Jovem (1497–1543), retratista e impressor famoso que participou das convulsões
da propaganda inicial da Reforma Protestante.
10 John Dryden (1631–1700), poeta e dramaturgo inglês; o primeiro laureado (posição oficial que dá
direito a uma pensão estatal) do país em 1668. A vida literária da restauração monárquica após a
República de Cromwell foi tão dominada por ele que chegou a ser chamada de a Era de Dryden.
11 Henry Vaughan (1622–1695), poeta metafísico galês, tendo ancestralidade em comum com
George Herbert. Escolheu o epíteto de “o Silurista” em homenagem à tribo celta que resistiu
bravamente às investidas dos romanos.
12 George Herbert (1593–1633), poeta, orador e sacerdote anglicano galês. Sua poesia é associada
aos poetas metafísicos.
13 Jornal socialista inglês.
14 Robert Bentley Suthers nasceu na Inglaterra em 1871, e após a morte de seu filho na Primeira
Guerra Mundial se tornou um escritor no The Clarion, envolvendo-se em uma longa controvérsia
com Chesterton sobre a natureza do livre-arbítrio.
15 Rua no centro de Londres.
16 Maria i (1516–1558) foi rainha da Inglaterra e da Irlanda de 1553 até sua morte. Ficou conhecida
por sua tentativa sangüinária e agressiva de restaurar o catolicismo na Inglaterra e na Irlanda.
17 Joseph Martin McCabe (1867–1955), escritor e orador inglês que passou a se considerar um livre-
pensador após ter abandonado o sacerdócio católico. Foi um crítico feroz da Igreja Católica, unindo-
se a grupos como a Associação Racionalista e a Sociedade Secularista Nacional e sendo precursor do
humanismo secular moderno. Defendeu a tese de que o cristianismo é simplesmente uma cópia de
antigas crenças pagãs.
18 Ernst Heinrich Philipp August Haeckel (1834–1919), famoso biólogo e filósofo materialista
alemão. Descobriu, descreveu e nomeou muitas espécies de seres vivos. Foi um popularizador do
trabalho de Charles Darwin e propositor da tese de que o desenvolvimento de um organismo, ou
ontogenia, repetia a evolução da espécie, ou filogenia.
19 O ourobouros, famoso símbolo gnóstico e hermético.
CAPÍTULO 2
O suicídio do pensamento
O LINGUAJAR DAS RUAS NÃO É SOMENTE FLEXÍVEL E SUTIL: uma figura de
linguagem pode freqüentemente se enfiar num buraco pequeno demais para
uma definição. Expressões como “pôr as cartas na mesa” ou “fazer nas
coxas”1 poderiam ter sido cunhadas pelo Sr. Henry James2 em uma busca
desesperada pela precisão verbal. E não há verdade mais sutil do que o dito
popular sobre um homem “ter o seu coração no lugar certo”. Ele implica a
idéia da proporção normal; há uma certa função e ela está corretamente
relacionada a outras funções. De fato, a negação dessa frase descreveria
com uma peculiar precisão a misericórdia, algo mórbida, e a ternura
perversa dos homens modernos mais representativos. Se, por exemplo,
tivesse de descrever com justiça o caráter do Sr. Bernard Shaw, não poderia
ser mais exato do que dizendo que ele tem um coração generoso e
heroicamente grande; mas não é um coração que está no lugar correto. Algo
bem típico da sociedade atual.
O mundo moderno não é mau; em muitos sentidos é exageradamente
bom. Está cheio de virtudes loucas e desperdiçadas. Quando um sistema
religioso é estilhaçado (como se passou com o cristianismo na Reforma)
não são somente os vícios que vagam a esmo. Os vícios o fazem, sem
dúvida: vagam por aí causando muitas chagas. Mas as virtudes também
vagam; de forma, porém, mais selvagem e causando chagas ainda mais
terríveis. O mundo moderno está cheio de antigas virtudes cristãs que
enlouqueceram. E enlouqueceram porque foram isoladas umas das outras,
vagando sozinhas. Assim, alguns cientistas se preocupam com a verdade; e
sua verdade carece de compaixão. Alguns humanitários só se preocupam
com a compaixão, e sua compaixão (infelizmente tenho de dizê-lo) é
freqüentemente falsa. Por exemplo, o Sr. Blatchford3 ataca o cristianismo
porque sofre a obsessão de uma única virtude cristã: a virtude meramente
mística e quase irracional da caridade. Foi possuído pela estranha idéia de
que será mais fácil perdoar os pecados dizendo que não há pecados a serem
perdoados. O Sr. Blatchford não é somente um cristão primitivo: é o único
cristão primitivo que deveria realmente ter sido devorado pelos leões. No
seu caso, a acusação pagã é verdadeira: tal misericórdia significaria a pura
anarquia. Ele realmente é o inimigo da raça humana — porque é demasiado
humano. No outro extremo podemos tomar o realista mordaz, que matou
deliberadamente em si mesmo todo gosto humano por belas lendas e pela
cura do coração. Torquemada4 torturava as pessoas fisicamente em proveito
da verdade moral; Zola5 torturava pessoas moralmente em proveito da
verdade física. Mas no tempo de Torquemada havia ao menos um sistema
que pudesse fazer com que a paz e a justiça se beijassem. Agora elas nem
mesmo se cumprimentam. Mas um caso bem mais significativo do que este
da verdade e da compaixão pode ser descoberto no incrível processo de
deslocamento da humildade.
Só nos interessa aqui um aspecto da humildade. Ela significava
principalmente uma limitação da arrogância e da infinitude do apetite do
homem, já que ele sempre ultrapassava as dádivas recebidas com suas
necessidades recém-inventadas. O poder de fruição destruía metade de suas
alegrias. Ao pedir o prazer, perdia o prazer principal que é a surpresa.
Desde então se tornou evidente que se um homem quer tornar seu mundo
grande, deve sempre tornar a si mesmo pequeno. Até mesmo as grandiosas
visões, as cidades elevadas e os pináculos que raiam o céu são criações da
humildade. Os gigantes que atravessam florestas como se fossem um
gramado são criações da humildade. As torres que desaparecem no céu
acima da estrela mais solitária são criações da humildade. Pois as torres só
são altas se olharmos para cima; e gigantes só são gigantes se forem
maiores do que nós. Toda imaginação gigantesca, que é, talvez, o maior dos
prazeres humanos, no fundo, é completamente humilde. É impossível
apreciar qualquer coisa sem a humildade — até mesmo o orgulho.
Mas o que nos faz sofrer hoje é a humildade nos lugares errados. A
modéstia se moveu do órgão da ambição e se instalou no órgão da
convicção, onde nunca deveria estar. Um homem deveria duvidar de si
mesmo e não da verdade; mas isso foi perfeitamente invertido. Nos dias de
hoje, um homem afirma aquilo que não deveria ser afirmado — ele mesmo.
Duvida do que não deveria ser duvidado — a razão divina. Huxley6 pregou
uma humildade que se contentava em aprender da natureza, mas o novo
cético é tão humilde que chega a duvidar se pode, enfim, aprender alguma
coisa. Portanto, estaríamos errados se apressadamente disséssemos que não
há uma humildade típica de nosso tempo. A verdade é que ela existe; mas
ocorre que é na prática uma humildade mais venenosa que a mais violenta
prostração do asceta. A antiga humildade era um incentivo que evitava a
inércia do homem, e não uma pedra no sapato que impedisse sua
progressão. Pois a antiga humildade tornava um homem cético sobre seus
esforços, o que poderia fazer com que se esforçasse mais. Mas a nova
humildade torna um homem cético sobre seus objetivos, o que o levará a
abandonar completamente todo esforço.
Em qualquer esquina podemos nos deparar com o homem que brada a
afirmação frenética e blasfema de que pode estar errado. Todos os dias
encontramos alguém que diz que seu ponto de vista pode estar errado. E é
claro que seu ponto de vista deve ser correto, caso contrário não seria seu
ponto de vista. Estamos a ponto de produzir uma raça humana tão
mentalmente modesta que chegará a duvidar da lei da gravidade,
classificando-a como uma simples imaginação particular. Os gozadores de
outrora eram orgulhosos demais para serem convencidos; mas os céticos
modernos são humildes demais até para exigir sua herança. É esse desatino
intelectual que constitui nosso segundo problema.
O capítulo anterior se preocupou com um fato observável: que todo
perigo de morbidez advém da razão e não da imaginação. Não tinha a
intenção de atacar a autoridade da razão, mas sim de defendê-la em última
instância. E ela precisa ser defendida, já que todo o mundo moderno está
em guerra contra a razão; e a torre já vacila.
Os sábios, como se diz usualmente, não podem responder ao enigma da
religião. Mas o problema com nossos sábios não é que não possam ver a
resposta: é que não podem ver o enigma. São como crianças estúpidas que
não chegam a ver nada de paradoxal na assertiva jocosa de que uma porta
não é uma porta. Os adeptos do laxismo7 moderno, por exemplo, falam da
autoridade religiosa não só como se ela não tivesse qualquer razão, mas
também como se nunca tivesse tido qualquer razão. Além de não
enxergarem sua base filosófica, não podem ver nem mesmo sua causa
histórica. A autoridade religiosa foi muitas vezes, sem dúvida, opressiva e
irracional, assim como todo sistema legal — especialmente o presente — é
usualmente insensível e cheio de uma cruel apatia. É racional atacar a
polícia; minto: é glorioso. Mas os críticos modernos da autoridade religiosa
são como homens que atacam a polícia sem ter a menor idéia de quem são
os ladrões. Pois há uma grande e provável ameaça à mente humana, tão
prática quanto os roubos. Foi contra ela que se ergueu, justa ou
injustamente, como uma barreira, a autoridade religiosa. E se nossa raça
deseja evitar a ruína, algo deve ser erguido contra esta ameaça.
A ameaça consiste no fato de que o intelecto humano é livre para se
autodestruir. Assim como uma geração pode evitar a existência da próxima
geração, bastando que todos entrem em monastérios ou pulem no mar,
também um conjunto de pensadores pode, em certa medida, impedir todo
pensamento posterior ao ensinar à próxima geração que não há qualquer
validade no pensamento humano. É ocioso sempre falar da escolha entre fé
e razão. A própria razão é questão de fé. É um ato de fé afirmar que nossos
pensamentos têm qualquer relação com a realidade. Se você é meramente
um cético, deve, mais dia menos dia, se perguntar: “Por que algo deveria
dar certo, inclusive a observação e a dedução? Por que a boa lógica não
pode ser tão enganadora quanto a má lógica? Não são ambas movimentos
no cérebro de um macaco perplexo?”. O jovem cético diria: “Tenho o
direito de pensar com meus próprios miolos”. Mas o antigo cético, o cético
completo, diria: “Não tenho o direito de pensar com meus próprios miolos.
Não tenho sequer o direito de pensar”.
Há um pensamento que paralisa todo pensamento, e esse é o único
pensamento que deve ser detido. É o mal definitivo contra o qual toda a
autoridade religiosa se voltou. Só aparece em tempos decadentes como o
nosso; e o Sr. H. G. Wells8 já ergueu esse estandarte maldito ao escrever
uma pequena iguaria cética chamada “Dúvidas sobre o instrumento
cognitivo”,9 onde questiona o próprio cérebro, e busca eliminar toda a
realidade de suas próprias asserções, passadas, presentes e futuras. Mas foi
contra essa maldição remota que todos os sistemas militares na religião
foram originalmente hierarquizados e administrados. Os credos e cruzadas,
as hierarquias e as horríveis perseguições não foram organizadas, como
dizem os ignorantes, para a supressão da razão; foram organizadas para a
dificílima defesa da razão. O homem, por um instinto cego, sabia que,
assim que as coisas começassem a ser loucamente questionadas, a própria
razão poderia ser questionada em primeiro lugar. A autoridade dos
sacerdotes para perdoar, a autoridade dos papas para definir a autoridade,
até mesmo a dos inquisidores para aterrorizar: eram todas sombrias
barreiras erigidas ao redor de uma única autoridade central, mais
indemonstrável e sobrenatural que tudo mais — a autoridade de um homem
para pensar. E sabemos que é assim; não temos desculpa para ignorá-lo. Já
podemos ouvir o rufar dos tambores e lanças do ceticismo a atacar o antigo
círculo de autoridades; e ao mesmo tempo podemos ver a razão vacilar em
seu trono. Quando a religião se vai, a razão está prestes a se esvair. Pois
ambas são fontes primárias e autoritárias. Ambas são métodos de prova que
não podem ser provados. Com o ato de destruir a idéia da autoridade divina
destruímos principalmente a idéia da autoridade humana, pela qual fazemos
uma longa conta de divisão. Em uma longa e empedernida luta buscamos
arrancar a mitra do homem pontífice; e com ela arrancamos a cabeça do
homem.
A fim de que isso não seja chamado de asserção vaga, é talvez
desejável, apesar de tedioso, passar rapidamente pelas principais modas
intelectuais modernas que possuem esse efeito de paralisar o próprio
pensamento. O materialismo e a visão de tudo como uma ilusão pessoal
possuem algo desse efeito; pois se a mente é mecânica, o pensamento não
pode ser algo muito excitante, e se o cosmos é irreal, não há nada para
pensar. Mas, nesses casos, o efeito é indireto e duvidoso; em outros é direto
e claro, especialmente no caso do que é geralmente chamado de evolução.
A evolução é um bom exemplo daquela inteligência moderna que só
consegue se autodestruir. Ou é uma inocente descrição científica de como
certas coisas terrenas surgiram, ou, se for algo além disso, só pode ser um
ataque contra o próprio pensamento. Se a evolução destrói algo é
precisamente o racionalismo, e não a religião. Se simplesmente significa
que uma coisa positiva chamada macaco se transformou lentamente em
uma coisa positiva chamada homem, então é inofensiva para o ortodoxo;
pois um Deus pessoal pode fazer as coisas tanto lenta quanto rapidamente,
especialmente se, como o Deus cristão, estiver acima do tempo. Mas se
significa algo mais, só pode ser que não há algo como um macaco para ser
transformado, e nem algo como um homem para ser termo da
transformação. Significa que não há coisa alguma. Na melhor das hipóteses
existe uma só coisa: o fluxo total e ininterrupto. Não se trata de um ataque à
fé, mas à mente; não é possível pensar sem coisas a serem pensadas. Não é
possível pensar sem estar separado do objeto do pensamento. Descartes
disse: “Penso, logo existo”. O evolucionista filosófico inverte e transforma
o epigrama em negação. Ele diz: “Não existo; logo não posso pensar”.
Há também o ataque oposto ao pensamento: aquele instigado pelo Sr. H.
G. Wells, quando insiste que cada coisa separada é “única”, e que não existe
qualquer categoria universal. Isso também é puramente destrutivo. Pensar
significa conectar coisas, e este ato deixa de ocorrer quando elas não podem
ser conectadas. Não é preciso dizer que esse ceticismo proibitivo ao
pensamento necessariamente proíbe a fala; um homem não pode abrir a
boca sem contradizê-lo. Portanto, quando o Sr. Wells diz (como disse
alhures) que “todas as cadeiras são completamente diferentes”, profere não
somente uma falsidade, mas uma contradição em termos. Se todas as
cadeiras fossem completamente diferentes, não seria possível dizer “todas
as cadeiras”.
A falsa teoria do progresso é do mesmo feitio; ela afirma que devemos
alterar o teste em vez de tentar ser nele aprovado. Freqüentemente ouvimos
que, por exemplo, “o que é certo em uma época é errado em outra”. Isso é
bem sensato, se significa que existe um objetivo fixo, e que certos métodos
o atingem em certas épocas e não em outras. Se as mulheres desejam ser
elegantes, pode ser que o consigam sendo gordas ontem e mais magras
hoje. Mas não se pode dizer que consigam atingir o objetivo deixando de
desejar a elegância e começando a desejar a forma retangular. Se o padrão
se altera, como pode existir uma melhoria, que implica um padrão?
Nietzsche deu início à idéia absurda de que os homens outrora acharam
bom aquilo que hoje chamamos de mau; se assim fosse, não poderíamos
falar em superá-los ou estar abaixo de seu padrão. Como ultrapassar João
caminhando na direção oposta? Não é possível, então, discutir se um povo é
mais miserável e outro mais feliz. Seria como discutir se Milton10 é mais
puritano do que um porco é gordo.
É verdade que um homem — um homem tolo — pode fazer da própria
mudança o seu objeto ou ideal. Mas como um ideal, a mudança mesma se
torna imutável. Se o adorador do dinamismo deseja estimar seu progresso,
deve ser austeramente fiel à idéia de mudança; não deve flertar furtivamente
com o ideal da monotonia. O progresso em si mesmo não pode progredir. É
digno de nota que quando Tennyson,11 de forma canhestra e violenta, deu
boas-vindas à idéia da infinita transformação social, instintivamente
escolheu uma metáfora que sugere um tédio encarcerado. Eis o que
escreveu:

Que o grande mundo gire eternamente pelas rodas palpitantes da mudança.12

Ele pensou a própria mudança como uma rotina imutável; e ela o é. A


mudança perpétua é a rotina mais limitada e pesada em que um homem
pode viver.
O ponto em questão é, no entanto, que essa idéia de uma mudança
essencial do padrão é uma das coisas que torna o pensamento sobre o
passado ou o futuro simplesmente impossível. A teoria de uma mudança
completa dos padrões na história humana não meramente rouba-nos o
prazer de honrar nossos antepassados; rouba-nos até mesmo o prazer mais
moderno e mais aristocrático de desprezá-los.
Este resumo grosseiro das forças que em nosso tempo guerreiam contra
o pensamento não estaria completo sem alguma referência ao pragmatismo;
pois apesar de ser um defensor do método pragmático como um guia
preliminar rumo à verdade, há uma aplicação extremista dele que implica a
ausência completa da verdade. Eis o que quero dizer: junto-me aos
pragmatistas na afirmação de que a verdade objetiva aparente não é tudo;
que há uma necessidade forçosa de crer em coisas que são necessárias à
mente humana; mas digo que uma dessas necessidades é precisamente a
crença na verdade objetiva. O pragmatista diz a um homem que ele deve
pensar somente o estritamente necessário e nunca se preocupar com o
absoluto; mas uma das coisas estritamente necessárias é precisamente o
absoluto. Essa filosofia é, de fato, um tipo de paradoxo verbal. O
pragmatismo diz respeito às necessidades humanas; e uma das primeiras
necessidades humanas é ser algo mais que um pragmatista. O pragmatismo
extremo é tão desumano quanto o determinismo que ele tão fortemente
ataca. O determinista que, sejamos justos, ao menos não finge ser um ser
humano, torna a noção de escolha um contra-senso. O pragmatista, que se
diz demasiado humano, torna um contra-senso o senso humano do fato real.
Para resumir nossa contenda até agora, podemos dizer que as mais
características filosofias atuais não somente possuem um toque de loucura,
mas também um toque de loucura suicida. O mero questionador bateu sua
cabeça contra os limites do pensamento humano até rachá-la. E é isso que
torna tão fúteis os avisos dos ortodoxos e a vanglória dos progressistas
sobre a perigosa jovialidade do livre pensamento. Não nos deparamos aqui
com semelhante coisa, mas sim, com a velhice, a dissolução final do livre
pensamento. Quão imensa é a tolice desses bispos e mandachuvas piedosos
que discutem as terríveis coisas que acontecerão se o ceticismo violento
seguir o seu curso! E ainda mais imensa é a tolice dos ateus que falam das
grandes verdades que se revelarão quando enfim começar o livre
pensamento. Já vimos o seu fim. Ele não tem mais perguntas a fazer, pois já
questionou até a si mesmo. Não é possível conjurar uma visão mais insana
do que a de uma cidade em que os homens se perguntam se realmente
existem. Não é possível fantasiar um mundo mais cético do aquele em que
os homens duvidam se há um mundo. O livre pensamento poderia ter
chegado à bancarrota de forma mais clara e rápida se não tivesse sido
debilmente inibido por leis sobre a blasfêmia e pelo absurdo fingimento de
que a Inglaterra moderna é cristã. Mas chegaria à bancarrota de qualquer
forma. Os ateus militantes ainda são injustamente perseguidos; mas muito
mais por serem uma velha minoria do que uma nova. O livre pensamento
exauriu sua própria liberdade. Cansou-se de seu próprio sucesso. Se algum
livre pensador ainda aplaude a liberdade filosófica como uma aurora, ele é
como o homem em Mark Twain13 que levanta enrolado em seus lençóis
para ver o sol nascer, mas que chega bem a tempo de vê-lo se pôr. Se algum
vigário amedrontado ainda diz que será terrível o dia em que as trevas do
livre pensamento se espalharem, só podemos responder com as grandiosas e
poderosas palavras do Sr. Belloc: “Imploro que não se preocupem com o
crescimento das forças de dissolução. Vocês confundiram a hora da noite: já
é quase manhã”. Não temos mais perguntas a fazer; já as procuramos nos
cantos mais tenebrosos e nos mais elevados picos. Encontramos todas as
questões que podem ser encontradas. Já é tempo de parar de buscar
questões e começar a procurar por respostas.
Mas uma palavra ainda precisa ser dita. No começo deste esquema
negativo e preliminar disse que nossa ruína mental foi forjada pela razão
enlouquecida, e não pela imaginação. Um homem não enlouquece por
construir uma estátua de um quilômetro de altura, mas pode enlouquecer
pensando-a milímetro por milímetro. Uma escola de pensadores atual
percebeu isso e acreditou ter descoberto uma forma de renovar a saúde pagã
do mundo. Eles percebem que a razão destrói; mas a vontade, dizem, cria.
A autoridade final, dizem, é a vontade, e não a razão. O ponto supremo não
é saber por que um homem exige uma coisa, mas o fato mesmo de exigi-la.
Careço de espaço para traçar ou expor a filosofia da vontade. Ela surgiu,
suponho, através de Nietzsche, que pregou algo chamado de egoísmo. Isso
já era, de fato, bastante simplório; pois Nietzsche negou o egoísmo no
simples ato de pregá-lo. Pregar é sempre uma doação. Primeiro, o egoísta
diz que a vida é uma guerra sem misericórdia, somente para depois se dar
ao incrível trabalho de convocar seus inimigos para a guerra. Pregar o
egoísmo é praticar o altruísmo. A principal defesa desses pensadores é que
não são pensadores, mas sim, homens de ação. Dizem que a escolha é em si
mesma divina. Dessa forma, o Sr. Bernard Shaw atacou a velha idéia de que
os atos de um homem devem ser julgados nos termos da busca pela
felicidade. Diz ele que o homem não age pela felicidade, mas por pura
vontade: não diz “a geléia me fará feliz”, mas “quero geléia”. E nisso
muitos outros seguem o Sr. Shaw com ainda mais entusiasmo. O Sr. John
Davidson,14 um insigne poeta, está tão apaixonadamente entusiasmado por
essa idéia que se viu obrigado a escrever em prosa. Publicou, então, uma
pequena peça com vários e longos prefácios. Isso é bastante natural no Sr.
Shaw, pois todas as suas peças são prefácios: o Sr. Shaw, suspeito, é o único
homem na terra que nunca escreveu poesia. Mas que o Sr. Davidson —
capaz de escrever uma excelente poesia — tenha passado a escrever uma
metafísica laboriosa em defesa de sua doutrina da vontade, mostra, de fato,
que a doutrina da vontade se apossou dos homens. Até mesmo o Sr. H. G.
Wells falou timidamente nessa linguagem ao dizer que os atos não devem
ser testados da perspectiva de um pensador, mas de um artista: “Sinto que
esta curva está correta” ou “aquela linha deve ser assim traçada”. Estão
todos entusiasmados; e talvez isso lhes seja bom. Pois através dessa
doutrina da autoridade divina da vontade pensam que podem escapar da
fortaleza condenada do racionalismo. Pensam que podem escapar.
Mas não podem. Essa pura ode à volição termina na mesma destruição e
vazio que a simples busca da lógica. Assim como o livre pensamento
implica a dúvida sobre o próprio pensamento, também a aceitação da pura
“vontade” realmente paralisa a vontade. O Sr. Bernard Shaw não percebeu a
diferença real entre o antigo teste utilitário do prazer (claramente confuso e
facilmente equivocado) e aquele que propõe. A verdadeira diferença entre o
teste da felicidade e o teste da vontade é simplesmente que o teste da
felicidade é um teste, e o outro não. É possível discutir se o salto de um
homem no abismo busca a felicidade; mas não é possível discutir se deriva
da vontade, pois é claro que deriva. É possível louvar a ação dizendo que
ela é calculada para produzir o prazer ou a dor, para descobrir a verdade ou
salvar a alma. Mas não é possível louvar a ação porque demonstra vontade;
pois é o mesmo que dizer que se trata de uma ação. Com essa ode à vontade
não é possível considerar um caminho melhor que o outro. E, no entanto,
escolher um caminho como melhor que o outro é a própria definição da
vontade que é louvável.
A adoração da vontade é a negação da vontade. Admirar em si mesma a
possibilidade de escolher é se negar a escolher. Se o Sr. Bernard Shaw
viesse até mim e dissesse “deseje algo”, isso seria equivalente a dizer “não
me importo com o que você deseja”, que é equivalente a dizer “não tenho
qualquer interesse (vontade, desejo) no assunto”. Não é possível admirar a
vontade em geral, pois a essência da vontade é o fato de ser particular. Um
anarquista brilhante como o Sr. John Davidson sente-se irritado com a
moralidade comum, e invoca a vontade... de fazer qualquer coisa. Só quer
que a humanidade deseje algo. Mas a humanidade deseja algo: a moralidade
comum. Ele se rebela contra a lei e conclama-nos a desejar qualquer coisa.
Mas desejamos algo: a lei contra a qual ele se rebela.
Todos os adoradores da vontade, de Nietzsche ao Sr. Davidson, são, na
verdade, completamente carentes de toda volição. Não podem desejar, e mal
podem pedir e aspirar. E se for exigida uma prova disso, ela pode ser
facilmente encontrada no fato de que sempre falam da vontade como algo
que se expande e que se liberta. Mas a verdade é precisamente o oposto.
Todo ato da vontade é um ato de autolimitação. Desejar agir é desejar a
limitação. Nesse sentido, todo ato é um ato de sacrifício. Quando algo é
escolhido, tudo mais é rejeitado. Essa objeção, que os homens dessa escola
levantavam contra o casamento, é, na verdade, uma objeção contra qualquer
ato. Todo ato é uma seleção e exclusão irrevogável. Assim como no
casamento uma mulher é escolhida e todas as outras abandonadas, seguir
um curso de ação é abandonar todos os outros. Se você se torna o rei da
Inglaterra, deve abandonar o cargo de sacristão em Brompton;15 se vai a
Roma, precisa sacrificar uma vida rica e sugestiva em Wimbledon.16 É a
existência desse lado negativo ou limitador da vontade que torna quase tudo
que dizem os anárquicos adoradores da vontade pouco melhor que o
absurdo puro e simples. Por exemplo: o Sr. John Davidson diz não aceitar o
“não” à vontade; mas é óbvio que esse não é somente um dos corolários
necessários para se ter uma vontade. “Quero ir à festa anual do prefeito e
ninguém poderá me deter”. O anarquismo roga-nos que sejamos artistas
criativos e audaciosos, que rejeitemos todas as leis e limites. Mas é
impossível ser um artista e rejeitar todas as leis e limites. A arte é limitação;
a essência de toda pintura é a moldura. Se você desenhar uma girafa, é
preciso desenhá-la com um longo pescoço. Se, em sua ânsia criativa e
audaciosa, você se considera livre para desenhar uma girafa com um
pescoço curto, irá, na verdade, descobrir que não é livre para desenhar uma
girafa. No momento em que se adentra o mundo dos fatos, adentra-se num
mundo de limites. É possível libertar as coisas de leis estrangeiras ou
acidentais, mas não das leis de sua própria natureza; pode-se libertar um
tigre de sua jaula, mas não de suas listras. Não liberte um camelo de sua
corcunda: você pode estar libertando-o de ser um camelo. Não perambule
por aí como um demagogo, incitando que os triângulos se libertem da
prisão de seus três lados. Se um triângulo se liberta de seus três lados, sua
vida termina de forma lamentável. Alguém escreveu uma obra intitulada Os
amores dos triângulos; nunca a li, mas estou certo de que se os triângulos já
foram amados, o foram por sua triangularidade. Este é, certamente, o caso
em toda criação artística, que é talvez o exemplo mais acabado da pura
vontade. O artista ama suas limitações: elas constituem a coisa que ele
realiza. O pintor se compraz no fato de que a tela é plana.
E se este ponto não estiver claro, um exemplo histórico pode ilustrá-lo.
A Revolução Francesa foi realmente algo heróico e decisivo, pois os
jacobinos desejaram algo definido e limitado. Desejaram as liberdades
democráticas, mas também os vetos democráticos. Desejaram votar e não
ter títulos. O republicanismo teve um lado ascético em Franklin ou
Robespierre, e um lado expansivo em Danton ou Wilkes.17 Dessa forma
eles criaram algo com uma substância e uma forma sólida: a igualdade
social geométrica e a riqueza campesina da França. Mas, desde então, a
mente revolucionária ou especulativa da Europa se enfraqueceu ao evitar
qualquer afirmação devido aos limites de toda afirmação. O liberalismo se
degradou em liberalidade. Os homens têm se dedicado a tornar o
“revolucionar” em verbo intransitivo. O jacobino seria capaz de dizer não
somente o sistema contra o qual se rebelava, mas também o sistema contra
o qual não se rebelaria, no qual confiaria. Mas o novo rebelde é um cético, e
nunca confiará em nada inteiramente. Não tem lealdade; e, portanto, não
pode revolucionar realmente nada. Por duvidar de tudo, tem dificuldades
em denunciar qualquer coisa. Pois toda denúncia implica uma doutrina
moral; e o revolucionário moderno duvida, não somente da instituição que
denuncia, mas da doutrina pela qual a denuncia. Escreve um livro onde se
queixa que a opressão imperial insulta a pureza da mulher, e depois escreve
outro livro (sobre a questão sexual) em que insulta a própria pureza.
Amaldiçoa o sultão porque moças cristãs perdem sua virgindade, e depois
amaldiçoa a Sra. Grundy18 por preservá-la. Como político clamará que a
guerra é um desperdício de vidas, e depois, como um filósofo, dirá que toda
vida é uma perda de tempo. Um pessimista russo denunciará um policial
por matar um camponês, e depois provará pelos mais excelsos princípios
filosóficos que o camponês deveria ter se suicidado. O mesmo homem
denuncia o casamento como uma farsa, e depois denuncia os aristocratas
devassos por tratarem-no como uma farsa; diz que uma bandeira é uma
futilidade, e depois culpa os opressores da Polônia e da Irlanda por tomarem
de um povo sua futilidade. O homem dessa escola vai primeiro a um
encontro político, onde se queixa que os selvagens são tratados como
animais; depois tira seu chapéu e seu guarda-chuva e vai a um encontro
científico onde prova que são praticamente animais. Em resumo: o
revolucionário moderno, por ser um cético ilimitado, está sempre engajado
em minar suas próprias minas. No seu livro sobre política, ataca os homens
por esmagarem a moralidade; no seu livro sobre ética, ataca a moralidade
por esmagar os homens. Em conseqüência, o homem moderno revoltado se
tornou praticamente inútil para qualquer revolta. Ao rebelar-se contra tudo,
perdeu o direito de se rebelar contra qualquer coisa.
Pode-se acrescentar que o mesmo vazio e bancarrota pode ser observado
em todos os tipos ferozes e medonhos de literatura, especialmente na sátira.
Ela pode ser louca e anárquica; mas pressupõe uma superioridade tácita de
algumas coisas, pressupõe um padrão. Quando os garotos riem na rua das
formas pantagruélicas de um distinto jornalista, estão inconscientemente
pressupondo o padrão da escultura grega e apelando ao mármore de Apolo.
E o curioso desaparecimento da sátira de nossa literatura é o exemplo de
uma ferocidade que desaparece pela ausência de qualquer princípio pelo
qual se possa ser feroz. Nietzsche tinha certo talento natural para o
sarcasmo; era um gozador, mas não podia rir; e há sempre algo descarnado
e pouco grave em sua sátira, pois ela não tem o sustentáculo da moralidade
comum. Ele é mais estapafúrdio do que tudo que denuncia. Mas, de fato,
Nietzsche representa admirável e completamente o fracasso da violência
abstrata. A loucura que o acometeu não foi um acidente. Se Nietzsche não
tivesse se tornado um imbecil, o nietzschianismo o teria feito. O
pensamento isolado e orgulhoso termina na idiotice. Todo homem cujo
coração não se abranda acabará perdendo os miolos.
A última tentativa de fugir do intelectualismo termina no intelectualismo
e, portanto, na morte. A saída falhou. A louca adoração da anarquia e a
adoração materialista do determinismo terminam no mesmo vazio.
Nietzsche escala imensas montanhas, mas termina por chegar ao Tibet.
Senta-se ao lado de Tolstói na terra do nada e do nirvana. Ambos estão
desamparados: um porque é incapaz de apreender algo, e o outro porque se
apega a tudo. A vontade de Tolstói é congelada por um instinto budista de
que todas as ações particulares são más. A vontade de Nietzsche é
igualmente paralisada pela visão de que todas as ações particulares são
boas; pois se todas são boas, nenhuma é particularmente boa. Estão na
encruzilhada: um odeia todos os caminhos, o outro ama-os todos. O
resultado é que — bem, algumas coisas não são difíceis de antecipar... —
eles permanecem na encruzilhada.
Aqui encerro (louvado seja o Senhor) a primeira e mais tediosa tarefa
deste livro — uma revisão grosseira do pensamento recente. Começo,
então, a esboçar uma visão da vida que pode não interessar ao leitor, mas
que ao menos me interessa. À minha frente, assim que encerro esta página,
está uma pilha de livros modernos que tenho revirado pelo prazer de revirar
— uma pilha de engenhosas ingenuidades e futilidades. Por ocasião de meu
presente desapego, posso ver a inevitável colisão das filosofias de
Schopenhauer e Tolstói, Nietzsche e Shaw, tão claramente quanto a
inevitável colisão de dois trens poderia ser vista de um balão. Estão todos
no caminho da vacuidade de um manicômio. Pois a loucura pode ser
definida como o uso da atividade mental até o ponto do abandono mental; e
eles já estão quase lá. Aquele que pensa ser feito de vidro, pensa a
destruição do pensamento; pois o vidro não pode pensar. Aquele que deseja
nada rejeitar, deseja a destruição da vontade; pois a vontade não é somente
a escolha de algo, mas a rejeição de tudo mais. E eis que enquanto reviro os
livros modernos astutos, maravilhosos, cansativos e inúteis, um título se
fixa diante de meus olhos. Trata-se de Joana D’Arc de Anatole France.19
Somente o vislumbrei, mas isso foi suficiente para me lembrar da Vida de
Jesus de Renan,20 que tinha o mesmo estranho método do cético reverente.
Ele desacredita estórias sobrenaturais que têm algum fundamento,
simplesmente contando estórias naturais que não têm o menor fundamento.
Por não podermos acreditar no que um santo fez, devemos fingir que
sabemos exatamente o que sentiu. Mas não menciono ambos os livros para
os criticar, mas sim, porque a combinação acidental de nomes conjurou
duas imagens surpreendentes da sanidade que varreram todos os livros para
bem longe de mim. Joana D’Arc não estava aferrada à encruzilhada, não
rejeitou todos os caminhos como Tolstói, nem aceitou a todos como
Nietzsche. Escolheu um caminho, e o percorreu como um trovão. E, ainda
assim, Joana, quando nela pensei, tinha em si tudo que é verdadeiro e até
mesmo tolerável em Tolstói e Nietzsche. Pensei em tudo que há de nobre
em Tolstói, o prazer nas coisas comuns, especialmente na piedade comum,
as realidades da terra, a reverência pelos pobres, a dignidade das costas
curvadas. Joana D’Arc tinha tudo isso e muito mais: suportou a pobreza,
além de admirá-la, enquanto Tolstói é somente um típico aristocrata que
busca descobrir seu segredo. E depois pensei em tudo que há de corajoso,
orgulhoso e patético no pobre Nietzsche, e em seu motim contra o vazio e a
timidez de nosso tempo. Pensei em seu clamor pelo equilíbrio extático do
perigo, em sua fome pelo abalar dos grandes corcéis, em seu grito pela
guerra. Mas Joana D’Arc tinha tudo isso e muito mais: não exaltou a luta,
mas sim, lutou. Sabemos que não temia um exército, enquanto Nietzsche,
pelo que sabemos, temia uma vaca. Tolstói somente exaltou o camponês;
ela era a camponesa. Nietzsche somente exaltou o guerreiro; ela era a
guerreira. Ela os derrotou em seus próprios ideais antagonistas: era mais
doce que o primeiro e mais violenta que o segundo. E, no entanto, era uma
pessoa perfeitamente prática que realizou algo, enquanto eles eram
especuladores desordenados que nada fizeram. Era impossível que não
cruzasse a minha mente o pensamento de que ela e sua fé tinham talvez
alguma unidade moral e utilidade secreta que foram perdidas. E com esse
pensamento veio um maior, e a figura colossal do seu Mestre também
cruzou o teatro dos meus pensamentos. A mesma dificuldade moderna que
obscureceu o tema de Anatole France, também obscureceu o de Ernest
Renan. Renan também separou a misericórdia da combatividade de seu
herói. Chegou a apresentar a ira justa em Jerusalém como um simples
colapso nervoso após as esperanças idílicas da Galiléia. Como se houvesse
alguma inconsistência entre ter amor pela humanidade e ódio pela
desumanidade! Certos altruístas, de vozes esganiçadas e fracas, denunciam
Cristo como um egoísta. Os egoístas, com vozes ainda mais esganiçadas e
fracas, o denunciam como um altruísta. O amor de um herói é mais terrível
que o ódio de um tirano. O ódio de um herói é mais generoso que o amor de
um filantropo. Há uma sanidade heróica e colossal da qual os modernos só
podem coletar os fragmentos. Há um gigante de que vemos somente os
braços e pernas desbastados a caminharem. Eles rasgaram a alma do Cristo
em farrapos imbecis, chamados egoísmo e altruísmo, e quedaram atônitos
diante de Sua louca magnificência e Sua louca mansidão. Dividiram Sua
veste, e com ela lançaram a sorte; mas a túnica estava perfeitamente
entretecida de cima a baixo.

1 No original aparecem as expressões idiomáticas put out e off colour, que possuem respectivamente
o sentido de mostrar, expelir, apagar um fogo ou extinguir algo, e algo de mau gosto. Chesterton
procurava indicar o quanto expressões idiomáticas coloquiais têm força evocativa. Como o trecho é
intraduzível, incluímos, com certa liberdade, expressões da nossa língua que guardassem uma vaga
proximidade semântica com o original.
2 Henry James (1843–1916), escritor americano considerado figura de transição entre o realismo e o
modernismo literários.
3 Robert Peel Glanville Blatchford (1851–1943), propagandista socialista, jornalista e escritor
britânico. Ficou conhecido por seu ateísmo, sua oposição à eugenia e seu nacionalismo inglês. No
começo da década de 20, após a morte de sua esposa, voltou-se para o espiritismo.
4 Tomás de Torquemada (1420–1498), dominicano espanhol que ficou conhecido como um severo
inquisidor.
5 Émile Zola (1840–1902), célebre escritor francês. Destacou-se no Caso Dreyfus, com seu
manifesto J’accuse!, no qual tomou parte na defesa do oficial militar judeu Alfred Dreyfus,
falsamente acusado e condenado por traição à pátria.
6 Thomas Henry Huxley (1825–1895) foi um biólogo inglês que se especializou em anatomia
comparada. Ficou conhecido como “o buldogue de Darwin” por sua defesa apaixonada da teoria da
evolução. Foi central no desenvolvimento da educação científica na Grã-Bretanha e avô de Aldous
Huxley e Julian Huxley.
7 Clérigos anglicanos do século xvii, que eram extremamente tolerantes e liberais em relação às
formas divergentes de culto e de doutrina.
8 Herbert George Wells (1866–1946), escritor inglês famoso por seus romances de ficção científica.
Autor de A conspiração aberta, um dos primeiros a tratar da Nova Ordem Mundial.
9 “Scepticism of the instrument”, revista Mind, volume xiii, número 51 e apêndice do livro A Modern
Utopia, publicado por H. G. Wells em 1905.
10 John Milton (1608–1674), poeta inglês, autor do clássico Paraíso perdido.
11 Alfred Tennyson (1809–1892), poeta laureado da Grã-Bretanha e da Irlanda durante a maior parte
do reinado da Rainha Vitória. Inspirava-se majoritariamente em temas mitológicos clássicos e ainda é
um dos poetas mais populares da Grã-Bretanha.
12 No original: “Let the great world spin for ever down the ringing grooves of change”.
13 Samuel Langhorne Clemens (1835–1910), mais conhecido como Mark Twain. Escritor,
empreendedor, humorista e editor americano. Teve experiência nas indústrias de impressão e
mineração, e a sua primeira estória de sucesso foi uma visão cômica de uma narrativa ouvida nos
tempos de mineiro. Tinha grande interesse pela ciência e tecnologia, tendo mantido uma longa
amizade com Nikola Tesla.
14 John Davidson foi um poeta escocês, dramaturgo e romancista, mais conhecido por suas baladas.
Em 1909, devido a dificuldades financeiras combinadas com problemas mentais e físicos, se
suicidou. George Bernard Shaw tentou ajudá-lo financeiramente de todas as formas, mas não
conseguiu evitar a tragédia.
15 Bairro de Londres.
16 Distrito do sudoeste de Londres.
17 John Wilkes (1725–1797), jornalista, político e radical inglês. Introduziu em 1776 a primeira
moção de reforma parlamentar no Parlamento Britânico e apoiou os rebeldes americanos durante a
Guerra de Independência. Em 1774 se tornou prefeito de Londres. Teve uma virada conservadora no
fim da vida, semelhante à de Edmund Burke, associada à rejeição à violência da Revolução Francesa.
18 Nome figurativo para uma pessoa extremamente convencional ou pedante. Tornou-se uma figura
de linguagem encontrada em toda a literatura européia.
19 Anatole France (1844–1924), romancista, poeta e jornalista francês de característica irônica e
cética. Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1921. É considerado o modelo para o ídolo literário
do personagem principal de Em busca do tempo perdido de Marcel Proust.
20 Joseph Ernest Renan (1823–1892) foi um profundo conhecedor das línguas e civilizações semitas,
filósofo, historiador e escritor francês. Ficou conhecido por ser o autor do popular A vida de Jesus,
onde promoveu a noção do “Jesus histórico” que não realizou milagres.
CAPÍTULO 3
A ética do país das fadas
QUANDO UM HOMEM DE NEGÓCIOS CRITICA O IDEALISMO de seu
estagiário, esta é a fala usual: “Sim, quando somos jovens temos esses
ideais abstratos e esses castelos de areia; mas na maturidade tudo se
desmancha como as nuvens, e terminamos por acreditar na política
pragmática, no uso do maquinário que temos em mãos e na conformidade
ao mundo como ele é”. Era assim, ao menos, que os filantropos anciões e
veneráveis, que agora jazem em seus honrados túmulos, falavam a mim
quando era um garoto. Mas cresci e tenho descoberto que esses filantropos
anciões estavam a contar mentiras. Passou-se comigo exatamente o
contrário do que disseram que ocorreria. Disseram que perderia meus ideais
e começaria a acreditar nos métodos dos políticos pragmáticos. No entanto,
não perdi nada de meus ideais; minha fé no fundamental é o que sempre foi.
O que perdi foi minha fé antiga e infantil na política pragmática. Preocupo-
me mais do que nunca com a batalha do Armagedom; mas não penso como
outrora nas eleições gerais. Quando bebê saltava do colo de minha mãe a
uma mera menção do espetáculo eleitoral. Não; a visão ideal é sempre
sólida e confiável; é sempre um fato. A realidade é que muitas vezes não
passa de uma fraude. Creio mais do que nunca no liberalismo, mas houve
uma época de inocência rósea na qual acreditei nos liberais.
Tomo isso como exemplo de uma de minhas crenças duradouras porque,
tendo agora de traçar as raízes de minha especulação pessoal, considero que
esse é meu único viés positivo. Fui criado como um liberal, e sempre
acreditei na democracia, na elementar doutrina liberal do autogoverno. Se
alguém acha a frase vaga ou crua, posso somente parar por um momento
para explicar que o princípio da democracia, como o vejo, pode ser
afirmado em duas proposições. A primeira é esta: que as coisas comuns a
todos os homens são mais importantes que as peculiares a um só homem.
As coisas comuns são mais valiosas que as extraordinárias; minto: são mais
extraordinárias. O homem é algo mais terrível e estranho que os homens. O
senso do milagre da humanidade deveria estar sempre mais vívido em nós
do que as maravilhas do poder, do intelecto, da arte e da civilização. O
simples homem bípede, como tal, deveria tocar mais o coração do que
qualquer música e ser mais impressionante que qualquer caricatura. A
morte é mais trágica que a morte por inanição. Ter um nariz é mais cômico
do que ter um nariz normando.
Este é o primeiro princípio da democracia: as coisas essenciais nos
homens são as coisas que têm em comum, e não as coisas particulares. E o
segundo princípio é este: que o instinto ou desejo político é uma dessas
coisas comuns. Cair sob os encantos do amor é mais poético do que cair em
um sarau de poesia. A afirmação democrática é de que o governo (ajudando
a ordenar a tribo) é como cair sob os encantos do amor, e não como cair em
um sarau de poesia. Não é algo análogo a tocar o órgão na igreja, pintar
uma tela, descobrir o Pólo Norte (esse hábito insidioso), fazer acrobacias,
ser um astrônomo real e assim por diante. Pois queremos que um homem
realize esses feitos com excelência. É, por outro lado, algo análogo a
escrever suas próprias cartas de amor ou assoar seu nariz. Queremos que
um homem faça essas coisas por conta própria, mesmo que as faça muito
mal. Não discuto aqui a verdade dessas concepções; sei que muitos homens
modernos anseiam que suas esposas sejam escolhidas por cientistas, e
talvez logo anseiem, até onde sei, que as enfermeiras assoem seus narizes.
Digo simplesmente que a humanidade reconhece essas funções humanas
universais, e que a democracia coloca o governo entre elas. Em suma, esta é
a fé democrática: as coisas mais terrivelmente importantes devem ser da
alçada do homem comum — o cortejo amoroso, a educação dos jovens, as
leis do Estado. Isso é a democracia; e é nisso que sempre acreditei.
Mas há algo que não consigo entender desde a minha juventude. Nunca
entendi de onde tiraram a idéia de que a democracia se opõe de alguma
forma à tradição. É óbvio que a tradição é somente a democracia que se
estende no tempo. É confiar no consenso das vozes comuns da humanidade
e não em algum evento isolado ou arbitrário. Aquele que cita algum
historiador alemão contra a tradição da Igreja Católica, por exemplo, apela
à aristocracia. Busca a superioridade de um especialista contra a terrível
autoridade de uma multidão. É simples ver por que uma lenda é tratada, e
deve ser tratada, mais respeitosamente do que um livro de história. A lenda
é geralmente feita pela maioria da população de uma vila, que é sã. O livro
é geralmente escrito pelo único homem da vila que é louco. Aqueles que
clamam contra a tradição dizendo que nossos ancestrais eram ignorantes
podem bradá-lo no Carlton Club,1 junto com a afirmação de que os eleitores
dos bairros pobres são ignorantes. Não irão nos afetar. Se damos grande
importância à opinião unânime dos homens comuns quando lidamos com os
assuntos cotidianos, não há porque desconsiderá-la quando lidamos com a
história ou as fábulas. A tradição pode ser considerada como uma extensão
do sufrágio eleitoral. Significa dar o voto à mais obscura de todas as
classes, nossos ancestrais. É a democracia dos mortos. A tradição rejeita a
submissão à oligarquia arrogante e mesquinha daqueles que por hora
perambulam por aí. Todos os democratas rejeitam que os homens não
possam votar por um acidente de nascimento; a tradição rejeita que sejam
desqualificados pelo acidente da morte. A democracia diz que não devemos
desprezar a opinião de um homem bom, mesmo que seja nosso lacaio; a
tradição nos conclama a não negligenciar a opinião de um homem bom,
mesmo que seja nosso pai. Eu, ao menos, não posso separar as idéias da
democracia e da tradição; parece-me evidente que são a mesma idéia.
Teremos os mortos em nossas assembléias. Os gregos antigos votavam com
pedras; eles votarão com suas lápides. E tudo isso é muito regular e oficial,
pois a maior parte das lápides, como a maior parte das urnas, têm a marca
de uma cruz.
Devo primeiramente dizer, portanto, que se tenho um viés, é sempre um
viés em favor da democracia e conseqüentemente também da tradição.
Antes de chegarmos a qualquer princípio teorético ou lógico contento-me
com esta equação pessoal: sempre me inclinei mais a acreditar no grosso da
classe trabalhadora do que na distintíssima e complicada classe literária a
que pertenço. Prefiro até mesmo as fantasias e preconceitos do povo que
enxerga a vida do interior às mais cristalinas demonstrações daqueles que
enxergam a vida do exterior. Sempre confiarei nas fábulas das matronas em
detrimento dos fatos das coquetes. Enquanto a sabedoria for uma sabedoria
materna, ela pode ser tão louca e irracional quanto quiser.
Preciso agora sistematizar uma posição geral, e não finjo ter qualquer
treino nessas coisas. Proponho fazê-lo, portanto, elencando uma por uma as
três ou quatro idéias fundamentais que descobri por mim mesmo, e
praticamente da mesma forma que as descobri. Depois as sistematizarei
grosseiramente, resumindo minha filosofia pessoal ou religião natural; e
ainda depois descreverei minha impressionante descoberta de que tudo já
fora anteriormente descoberto pelo cristianismo. Mas destas descobertas
persuasivas que preciso elencar, a primeira diz respeito à questão da
tradição popular. E sem a explicação pregressa sobre a tradição e a
democracia dificilmente poderia clarificar algo sobre minha experiência
mental. Ainda não sei se poderei clarificá-la, mas proponho-me agora a
tentá-lo.
Minha primeira e última filosofia, na qual creio com uma certeza
inquebrantável, foi aprendida no berço. Aprendi-a de uma babá; isto é, da
sacerdotisa solene — e apontada pelas estrelas — da democracia e da
tradição. As coisas em que mais acredito, e ainda mais agora, são o que
chamamos de contos de fadas. Surgem diante de mim como coisas
inteiramente razoáveis. Não são fantasias: as outras coisas é que são
fantásticas em comparação. Comparadas a eles, a religião e o racionalismo
são ambos anormais, embora o racionalismo seja anormalmente errado e a
religião anormalmente verdadeira. O país das fadas é simplesmente a terra
ensolarada do senso comum. Não é a terra que julga o céu, mas o céu que
julga a terra; logo, para mim, não era a terra que criticava a terra dos elfos,
mas a terra dos elfos que criticava a terra. Conheci o pé de feijão mágico
antes de provar o feijão; tive certeza do homem que foi à lua antes de estar
certo da lua. E tudo isso está em consonância com a tradição popular. Os
poetas menores são naturalistas, e falam dos arbustos e riachos; mas os
bardos dos antigos épicos e fábulas eram transcendentais, e falavam dos
deuses dos riachos e dos arbustos. É a isso que se referem os modernos
quando dizem que os antigos não “apreciavam a natureza”, porque estes
diziam que a natureza era divina. As babás velhas não narram estórias sobre
a relva para as crianças, mas sim, sobre as fadas que dançam sobre a relva;
e os gregos antigos não trocariam as dríades pelas árvores.
Mas trato aqui da ética e da filosofia dos contos de fadas. Se fosse
descrevê-los em detalhes, poderia observar os muitos princípios nobres e
saudáveis que deles emergem. Há a lição cavalheiresca de “João e o pé de
feijão”: os gigantes devem morrer porque são gigantescos. É um motim
viril contra o orgulho, pois o rebelde é mais arcaico que todos os reinos, e o
jacobino mais tradicional que o jacobita.2 Há a lição de “Cinderela”, que é a
mesma do Magnificat — exaltavit humiles. Há a grande lição de “A Bela e
a Fera”: uma coisa deve ser amada antes de ser amável. Há a terrível
alegoria de “A Bela adormecida”, que nos narra como a criatura humana foi
abençoada com todos os dons, mas ainda assim foi amaldiçoada pela morte;
e como a própria morte pode, talvez, adormecer. Mas não me preocupo com
nenhuma das constituições separadas da terra dos elfos, e sim com o
espírito completo de sua lei, que aprendi antes de poder falar, e que estará
comigo quando não mais puder escrever. Preocupo-me com uma certa
forma de olhar a vida, que foi em mim gerada pelos contos de fadas e que
desde então foi humildemente ratificada pelos simples fatos.
Posso colocá-la da seguinte maneira: há certas seqüências ou
desenvolvimentos (casos de uma coisa que se segue à outra) que são
genuinamente razoáveis e verdadeiramente necessários, como as seqüências
matemáticas e puramente lógicas. Nós, os habitantes do país das fadas (de
todas as criaturas as mais razoáveis) admitimos essa razão e essa
necessidade. Por exemplo, se as irmãs feiosas são mais velhas que
Cinderela, é (num sentido férreo e terrível) necessário que Cinderela seja
mais nova que as irmãs feiosas. Não há como escapar disso. Haeckel pode
enxergar tanto fatalismo quanto quiser nesse fato: ele deve ser mesmo fatal.
Se João é o filho de um moleiro, um moleiro é o pai de João. A fria razão o
decreta de seu horrível trono: e nós, habitantes do país das fadas, nos
submetemos. Se todos os três irmãos cavalgam cavalos, há seis animais e
dezoito pernas na estória: isso é o verdadeiro racionalismo, de que o país
das fadas está cheio. Mas assim que coloquei minha cabeça acima das sebes
dos elfos e comecei a notar o mundo natural, percebi algo extraordinário: os
doutos homens de óculos estavam a falar dos eventos reais — a alvorada e a
morte, e tudo mais — como se fossem racionais e inevitáveis. Falam como
se o fato de que árvores dão frutos fosse tão necessário quanto o fato de que
uma árvore mais duas árvores são três árvores. Mas não é. Há uma grande
diferença de acordo com o teste do país das fadas, o teste da imaginação.
Não é possível imaginar dois mais um e não chegar a três. Mas é fácil
imaginar que as árvores possam não dar frutos, e sim candelabros de ouro
ou tigres pendurados pelos rabos. Esses homens de óculos glorificavam um
homem chamado Newton que, atingido por uma maçã, descobriu uma lei.
Mas não podiam ver a distinção entre uma lei verdadeira, uma lei racional,
e o simples fato da queda das maçãs. Se a maçã atingiu o nariz de Newton,
o nariz de Newton atingiu a maçã. Isso é uma verdadeira necessidade: uma
coisa não pode se dar sem a outra. Mas podemos perfeitamente conceber
que a maçã não tenha caído sobre o seu nariz; podemos fantasiá-la voando
ardentemente pelo ar para atingir outro nariz, pelo qual tinha uma antipatia
ainda maior. Sempre mantivemos em nossos contos de fadas essa clara
distinção entre a ciência das relações mentais, em que há realmente leis, e a
ciência dos fatos físicos, onde não há lei alguma, mas somente estranhas
repetições.3 Acreditamos em milagres corporais, mas não em
impossibilidades mentais. Acreditamos que o pé de feijão se ergue ao céu;
mas isso não nos confunde quanto à questão filosófica de quanto são cinco
feijões.
Eis a perfeição peculiar do tom e da verdade nas lendas de berço. O
cientista diz: “Corte o pé, e uma maçã cairá”; mas ele o diz calmamente,
como se uma idéia levasse à outra. A bruxa dos contos de fadas diz: “Sopre
a trombeta, e o castelo do ogro cairá”; mas ela não o diz como algo em que
o efeito obviamente emergiu da causa. Sem dúvida, ela deu o conselho a
muitos heróis, e viu muitos castelos caírem, mas não perdeu por isso sua
racionalidade e seu espanto. Não confunde sua cabeça até imaginar uma
conexão mental necessária entre uma trombeta e a queda da torre. Mas o
cientista se confunde até o ponto de imaginar uma conexão mental
necessária entre a maçã que deixa a árvore e sua chegada ao solo. Fala
realmente como se estivesse encontrando não somente um conjunto de fatos
maravilhosos, mas uma verdade que conecta esses fatos. Fala como se a
conexão de duas coisas fisicamente estranhas as ligasse filosoficamente.
Sente que se uma coisa incompreensível se segue constantemente à outra
coisa incompreensível, as duas juntas redundam em uma coisa
compreensível. Dois enigmas obscuros produzem uma resposta cristalina.
No país das fadas evitamos a palavra “lei”; mas na terra da ciência há
uma peculiar apreciação por ela. Dessa forma, uma conjectura interessante
sobre como povos esquecidos pronunciavam o alfabeto se torna a Lei de
Grimm.4 Mas a Lei de Grimm é bem menos intelectual que os contos de
fadas de Grimm. Os contos são, no fim das contas, certamente contos; mas
a lei não é uma lei. Uma lei implica que conhecemos a natureza da
generalização e de sua realização; e não simplesmente que notamos alguns
de seus efeitos. Se há uma lei que diz que ladrões de carteiras devem ir para
a prisão, ela implica que há uma conexão mental imaginável entre a idéia da
prisão e a idéia do roubo de carteiras. E sabemos qual é a idéia. Podemos
explicar por que tiramos a liberdade daqueles que se permitem certas
liberdades. Mas não podemos explicar por que um ovo pode se tornar uma
galinha mais do que podemos explicar por que um urso poderia se tornar
um príncipe encantado. Como idéias, o ovo e a galinha são ao menos tão
distantes quanto o urso e o príncipe, já que nenhum ovo sugere por si
mesmo uma galinha, enquanto alguns príncipes sugerem ursos. Dado,
então, que algumas transformações realmente acontecem, é essencial que as
consideremos ao modo filosófico dos contos de fadas, e não ao modo pouco
filosófico da ciência e das “leis da natureza”. Quando nos for questionado o
porquê de os ovos se tornarem pássaros ou de as frutas caírem no outono,
devemos responder exatamente como a fada-madrinha responderia se
Cinderela a perguntasse o porquê de os ratos se transformarem em cavalos
ou de sua roupa de princesa desaparecer à meia-noite. Devemos responder
que é magia. Não se trata de uma lei, pois não compreendemos sua fórmula
geral. Não é uma necessidade, pois apesar de podermos contar com sua
ocorrência na prática, não temos o direito de dizer que deve sempre ocorrer.
Não é possível argumentar a favor da inalterabilidade da lei (como
fantasiou Huxley com a tese de que podemos contar com o curso ordinário
das coisas); só podemos nela apostar. Arriscamos a possibilidade remota de
um milagre assim como a de uma panqueca envenenada ou de um cometa
apocalíptico. Mas não o mencionamos, não porque é um milagre, e,
portanto, uma impossibilidade, mas porque é um milagre, e, portanto, uma
exceção. Todos os termos dos livros científicos como “lei”, “necessidade”,
“ordem” e “tendência” são realmente anti-intelectuais, pois pressupõem
uma síntese interior que está ausente. As únicas palavras que já me
saciaram como uma descrição da natureza são os termos usados nos contos
de fadas, como “feitiço”, “encanto” e “magia”. Elas expressam a
arbitrariedade do fato e seu mistério. Uma árvore cresce porque é uma
árvore mágica. A água desce morro abaixo porque é encantada. O sol brilha
porque é encantado.
Nego veementemente que isso seja fantástico ou até mesmo místico.
Teremos algum misticismo mais tarde; mas essa linguagem de contos de
fadas sobre as coisas é perfeitamente racional e agnóstica. É a única forma
de expressar em palavras minha percepção clara e definida de que uma
coisa é bem distinta da outra; que não há nenhuma conexão lógica entre
voar e botar ovos. É o homem que fala sobre “uma lei” que não percebe
quem é o verdadeiro místico. O homem científico comum é estritamente um
sentimental, no sentido essencial de que se abandona e é levado a esmo por
simples associações. Ele viu tantas vezes os pássaros voarem e botarem
ovos que sente que deve existir alguma conexão cálida e sonhadora entre
essas duas idéias; mas não há nenhuma. Um amante rejeitado pode ser
incapaz de dissociar a lua do amor perdido; da mesma forma, o materialista
é incapaz de dissociar a lua da maré. Em ambos os casos não há conexão,
exceto que foram vistas juntas. Um sentimental pode se derreter em
lágrimas diante da simples fragrância de uma macieira, porque, por uma
obscura associação, ela o lembra de sua infância. Da mesma forma, o
professor materialista (apesar de esconder as lágrimas) é também um
sentimental, porque, por uma associação obscura, as macieiras o lembram
das maçãs. Mas o frio racionalista do país das fadas não vê por que, de
antemão, a macieira não poderia fazer crescer tulipas escarlates; e às vezes
elas o fazem em seu país.
Esse espanto elementar, no entanto, não é uma simples fantasia derivada
dos contos de fadas; ao contrário, toda a chama dos contos de fadas deriva
disso. Assim como todos gostamos de contos de amor porque há um
instinto sexual, também gostamos de contos surpreendentes porque tocam a
nervura do instinto arcaico de surpresa. Isso é provado pelo fato de que
quando éramos crianças bem jovens não precisávamos de contos de fadas;
somente de contos. A pura vida é suficientemente interessante. Uma criança
de sete anos se excita com uma narrativa em que Toninho abre a porta e vê
um dragão. Mas uma criança de três anos se excita ao ouvir que Toninho
abriu uma porta. Os garotos gostam de contos românticos, mas os bebês
gostam de contos realistas — porque os consideram românticos. De fato,
um bebê é praticamente a única pessoa para a qual, penso eu, um moderno
romance realista pode ser lido sem causar tédio. Isso prova que até mesmo
os contos do jardim-de-infância somente ecoam um fulgor quase que pré-
natal de interesse e espanto. Esses contos dizem que as maçãs eram
douradas somente para refrescar o momento esquecido no qual descobrimos
que eram verdes. Enchem os rios de vinho somente para que lembremos,
por um breve e louco momento, que estão cheios de água. Já disse que isso
é completamente razoável e agnóstico. E, na verdade, sou completamente a
favor de um agnosticismo superior quanto a esse ponto; o seu melhor
epíteto é o de ignorância. Todos lemos em livros científicos e em todos os
romances a estória do homem que esqueceu seu nome. Ele perambula pelas
ruas e pode tudo ver e apreciar; somente não pode lembrar quem é. Todos
nós somos o homem dessa estória. Todos esquecemos o que somos. É
possível compreender o cosmos, mas nunca o ego; o eu é mais distante que
qualquer estrela. Amarás o Senhor teu Deus; mas não conhecerás a ti
mesmo. Todos padecemos da mesma calamidade mental; esquecemos
nossos nomes e o que realmente somos. Tudo que chamamos de senso
comum, racionalidade, praticidade e positivismo significa somente que em
certas camadas mortas de nossas vidas esquecemos que esquecemos. Tudo
que chamamos de espírito, arte e êxtase somente significa que em um
terrível momento relembramos que esquecemos.
Mas apesar de (como o homem sem memória da novela) perambularmos
pelas ruas com uma espécie de vaga admiração, ela ainda é admiração. É
admiração em bom português e não somente em latim. O espanto tem um
elemento positivo de louvor. Esse é o próximo marco a ser definido em
nossa peregrinação pelo país das fadas. Falarei no próximo capítulo de
otimistas e pessimistas em seu aspecto intelectual, na medida em que o
possuem. Aqui só busco descrever as grandiosas emoções que não podem
ser descritas. E a mais poderosa das emoções é a de que a vida é tão
preciosa quanto confusa. É um êxtase porque é uma aventura; e uma
aventura porque é uma oportunidade. A bondade do conto de fadas não é
afetada pelo fato de que podem existir mais dragões do que princesas; é
bom estar em um conto de fadas. O teste de toda felicidade é a gratidão; e
senti-me grato, apesar de dificilmente saber a quem. As crianças ficam
gratas quando São Nicolau deixa em suas meias uma cornucópia de doces e
brinquedos. Será que não posso ser grato porque o Papai Noel colocou em
minhas meias a dádiva de duas pernas miraculosas? Agradecemos às
pessoas por cigarros e sapatos como presentes de aniversário. E não posso
agradecer alguém pela dádiva do nascimento?
Havia, então, esses dois sentimentos iniciais, indefensáveis e inegáveis.
O mundo era chocante, mas não simplesmente chocante; a existência era
uma surpresa, mas uma surpresa agradável. De fato, todas as minhas visões
iniciais foram proclamadas com exatidão por um enigma que perdurou em
minha mente desde a meninice. A pergunta era: “O que disse o primeiro
sapo?”. E a resposta era: “Senhor, como me fizeste saltar!”. Isso diz de
forma sucinta tudo que tenho dito. Deus fez o sapo pular; e o sapo prefere
pular. Mas quando essas coisas estão bem assentadas, entra em cena o
segundo grande princípio da filosofia das fadas.
Qualquer um que simplesmente leia os contos de fadas de Grimm ou as
belas coleções do Sr. Andrew Lang5 pode descobri-lo. Somente por
pedantismo irei chamá-lo de doutrina da alegria incondicional. Touchstone
falava da grande virtude de um “se”, e na ética dos elfos toda a virtude
reside em um “se”. O traço característico do encantamento de uma fada
sempre segue esta forma: “Você pode viver em um palácio de ouro e safiras,
se (e somente se) não disser a palavra vaca”; ou “você pode ser feliz para
sempre com a filha do rei, se não lhe mostrar uma cebola”. A visão está
sempre pelo fio de um veto. Todas as coisas colossais e excitantes
dependem de uma coisa pequena que é subtraída. Todas as coisas selvagens
e rodopiantes que são livres dependem de uma única coisa que é proibida.
O Sr. W. B. Yeats,6 em sua poesia élfica exótica e penetrante, descreve os
elfos como anarquistas; eles mergulham em uma anarquia inocente
montando os corcéis do ar:

Cavalgue a crista da caótica onda, e dance sobre as montanhas como uma chama.7

É terrível ter de dizer que o Sr. W. B. Yeats não compreende o país das
fadas. Mas é o que afirmo. Ele é um irlandês irônico, cheio de reações
intelectuais. Não é estúpido o suficiente para compreender o país das fadas.
As fadas preferem os caipiras como eu; aqueles que ficam boquiabertos,
sorriem e fazem o que lhes é ordenado. O Sr. Yeats vê na terra dos elfos
todas as justas insurreições de sua própria raça. Mas a anarquia irlandesa é
uma anarquia cristã, e se funda sobre a razão e a justiça. O feniano8 se
rebela contra algo que compreende perfeitamente bem, mas o verdadeiro
habitante do país das fadas obedece a algo que não compreende. No conto
de fadas uma felicidade incompreensível se sustenta sobre uma condição
incompreensível. Uma caixa se abre, e todos os males voam para dominar o
mundo. Uma palavra é esquecida, e as cidades perecem. Uma lamparina é
acesa, e o amor voa para longe. Uma flor é arrancada, e vidas humanas são
poupadas. Uma maçã é comida, e a esperança em Deus desaparece.
É esse o tom dos contos de fadas, onde não ressoa a anarquia e nem
mesmo a liberdade, apesar de o homem das perversas tiranias modernas
ouvir as notas da liberdade em comparação. Os homens do cárcere de
Portland podem considerar os da Rua Fleet9 livres; mas um estudo mais
detido provará que tanto as fadas quanto os jornalistas são escravos do
dever. As fadas-madrinhas parecem ser ao menos tão rigorosas quanto as
outras madrinhas. Cinderela recebeu uma carruagem do país das maravilhas
e um cocheiro do nada, mas recebeu uma ordem — que pode ter saído de
Brixton10 — de que deveria voltar antes da meia-noite. Ela também possuía
um sapatinho de cristal, e não pode ser coincidência que o cristal seja uma
substância tão comum no folclore. Esta princesa vive em um castelo de
cristal, aquela numa colina de cristal; uma outra vê todas as coisas em um
espelho de cristal; e todas podem viver em casas de cristal se não jogarem
pedras. Essa ubiqüidade do brilho rarefeito do cristal é a expressão do fato
de que a felicidade é luminosa, mas frágil, a substância que é mais
facilmente destruída por uma camareira ou um gato. E esse sentimento
élfico também se apoderou de mim e se tornou meu sentimento diante de
todo o mundo. Sinto e não canso de sentir que a própria vida brilha como o
diamante, mas é tão frágil quanto uma vidraça de cristal; e quando ouvi os
céus sendo comparados ao terrível cristal posso me lembrar de um calafrio.
Temi que Deus deixasse o cosmos se espatifar subitamente.
Lembrem-se, no entanto, que ser frágil não é o mesmo que ser perecível.
Bata em um vidro de cristal, e ele não durará um segundo; mas não o faça, e
ele durará um milênio. Assim era, parece, o deleite do homem, seja na terra
dos elfos ou nesta terra; a felicidade dependia de não se fazer uma coisa que
poderia ser feita a qualquer momento, uma proibição cuja obediência
muitas vezes não era óbvia. Mas o ponto é que para mim isso não parece
injusto. Se o terceiro filho do moleiro dissesse à fada: “Explique por que
não devo ficar de cabeça para baixo no palácio das fadas”, ela poderia
simplesmente responder, “bem, se é assim, explique o palácio das fadas”.
Se Cinderela diz: “Por que devo deixar o baile à meia-noite?”, sua fada-
madrinha poderia responder, “como é possível que fique lá até a meia-
noite?”. Se deixo como herança a um homem meus dez elefantes que falam
e uma centena de cavalos alados, ele não pode reclamar se as condições
forem tão excêntricas quanto a dádiva. A cavalo dado não se olha os dentes.
E a existência parecia-me ser um legado excêntrico a ponto de não me levar
a reclamar sobre minha incompreensão das limitações da visão, quando na
verdade não compreendia a visão que limitavam. A moldura era ao menos
tão estranha quanto a pintura. A proibição pode ser tão selvagem quanto a
visão, tão surpreendente quanto o sol, tão informe quanto as águas, tão
fantástica e terrível quanto as árvores majestosas.
Por essa razão (podemos chamá-la de filosofia da fada-madrinha) nunca
pude me juntar aos jovens de meu tempo e sentir o que eles chamavam de o
sentimento geral de revolta. Eu resistiria, com a graça de Deus, a quaisquer
regras que fossem más, e lidarei com esta definição em outro capítulo. Mas
não me sentia disposto a resistir a qualquer regra simplesmente porque era
misteriosa. As heranças são às vezes obtidas por formalidades tolas, como a
quebra de um graveto ou o pagamento de um grão de pimenta; e eu estava
disposto a obter a imensa herança dos céus e da terra por semelhante tipo de
fantasia feudal. Isto não poderia ser mais absurdo do que tomar posse dos
céus e da terra. Neste estágio, darei somente um exemplo ético do que
quero dizer. Nunca poderia me unir ao murmúrio geral daquela geração em
ascensão contra a monogamia, pois nenhuma restrição ao sexo parecia tão
estranha e inesperada quanto o próprio sexo. Poder, como Endimião,11 fazer
amor com a lua e então protestar que Júpiter mantinha suas próprias luas em
um harém parecia-me (criado como fui em contos de fadas, como
Endimião) um anticlímax vulgar. Ser fiel a uma mulher é um preço pequeno
por chegar a ver uma mulher. Reclamar que só poderia me casar uma vez
era como reclamar que só nasci uma vez. Era incomensurável com a
maravilha da dádiva, mesmo que esta fosse única. Demonstrava não uma
sensibilidade exagerada ao sexo, mas uma peculiar insensibilidade a ele. É
um tolo aquele que protesta não poder entrar no Éden por cinco portais
simultâneos. A poligamia é uma ausência da plenitude sexual; é como um
homem que colhe cinco pêras simplesmente para colher algo. Os estetas
tocaram as raias da loucura lingüística em seu elogio das coisas amáveis. A
lanugem do cardo os fez chorar; um besouro brilhante os colocava de
joelhos. No entanto, suas emoções nunca me impressionaram nem por um
instante, pela simples razão de que nunca lhes passou pela cabeça que
deveriam pagar pelo seu prazer com ao menos algum sacrifício simbólico.
Os homens (assim o sentia) poderiam jejuar por quarenta dias pelo prazer
de ouvir um melro. Os homens poderiam atravessar o fogo para encontrar
uma flor da primavera. No entanto, esses amantes da beleza sequer podiam
ficar sóbrios pelo prazer do canto do melro. Eles não passariam pelo
casamento cristão comum como um meio de chegar à recompensa da flor
da primavera. Certamente podemos pagar pelo deleite extraordinário com a
moral comum. Oscar Wilde disse que o crepúsculo não é valorizado porque
não podemos pagar por ele. Mas Oscar Wilde12 estava errado, pois
podemos pagar pelo crepúsculo; na verdade, basta não ser Oscar Wilde.
Deixei os contos de fadas aos pés do berço, e desde então não encontrei
livros tão sensatos. Deixei a babá guardiã da tradição e da democracia, e
ainda não descobri qualquer tipo moderno tão saudavelmente radical ou tão
saudavelmente conservador. Mas eis o que mais importa: quando primeiro
adentrei a atmosfera mental do mundo moderno, descobri que o mundo
moderno era positivamente oposto em dois pontos à minha babá e às
minhas lendas de berço. Levei muito tempo a descobrir que o mundo estava
errado e minha babá certa. O realmente curioso era o seguinte: o
pensamento moderno contradizia o credo básico de minha meninice em
suas duas doutrinas mais essenciais. Expliquei que os contos de fadas me
instalaram em duas convicções; primeiro, que o mundo é selvagem e
espantoso, mas poderia ser muito diferente — e isso o torna ainda mais
delicioso; segundo, que antes das loucuras e delícias é possível ser modesto
e se submeter às mais estranhas limitações de uma bondade tão estranha.
Mas descobri todo o mundo moderno correndo como a maré alta contra as
minhas duas afeições; e o choque dessa colisão criou dois sentimentos
súbitos e espontâneos, que carrego desde então e que, mesmo que
grosseiramente, têm se consolidado em verdadeiras convicções.
Primeiro, descobri todo o mundo moderno falando do fatalismo
científico, dizendo que tudo é como deveria ser, o cosmos se desdobrando
sem erros e incertezas desde o princípio. A folha da árvore é verde porque
nunca poderia ter sido outra coisa. Mas o filósofo do conto de fadas é grato
que a folha seja verde precisamente porque poderia ter sido escarlate. Ele
sente como se ela tivesse se tornado verde no exato instante em que a olhou.
Regozija-se com a brancura da neve sob o argumento estritamente razoável
de que poderia ter sido negra. Toda cor tem em si a ousada qualidade de
uma escolha; o vermelho das rosas de jardim é decisivo e dramático, como
o sangue há pouco derramado. Ele sente que algo foi feito. Mas os grandes
deterministas do século xix eram fortemente contrários ao sentimento
natural de que algo foi feito há apenas um instante. Na verdade, de acordo
com eles, nada aconteceu realmente desde o princípio do mundo. Nada
realmente aconteceu desde que a existência aconteceu; e mesmo sobre essa
data eles têm dúvidas.
O mundo moderno como o descobri estava pronto para o calvinismo
moderno, para a necessidade férrea das coisas serem o que são. Mas quando
cheguei a questioná-los, não tinham realmente prova alguma dessa
inevitável repetição das coisas, exceto o fato de que as coisas se repetiam.
Só que a simples repetição tornava as coisas, para mim, ainda mais
estranhas e não mais racionais. Era como se, tendo visto um nariz exótico
na rua e o rejeitado como um acidente, logo visse mais seis narizes com a
mesma forma exótica. Certamente entreteria por um instante a idéia de que
se tratava da obra de alguma sociedade secreta local. Que um elefante
tivesse uma tromba era estranho; mas que todos os elefantes tivessem
trombas começava a indicar um plano. Claro que se trata somente de uma
emoção, e uma emoção ao mesmo tempo sutil e persistente. Mas a repetição
na natureza parecia às vezes ser uma repetição excitada, como a de um
furioso diretor de escola que repetisse a mesma coisa indefinidamente. A
relva parecia sinalizar algo a mim com todos os seus dedos
simultaneamente; as estrelas pareciam determinadas a ser compreendidas. O
sol me obrigaria a vê-lo se nascesse mil vezes. As recorrências do universo
nasciam ao ritmo enlouquecedor de um encantamento, e comecei a entrever
uma idéia.
Todo o materialismo triunfante que domina a mente moderna se sustenta
em última instância sobre um pressuposto; e um falso pressuposto. Ele
supunha que se uma coisa se repete indefinidamente, ela é provavelmente
morta, é a engrenagem de um relógio. As pessoas sentem que se o universo
fosse pessoal ele mudaria constantemente; se o sol estivesse vivo, ele
dançaria. E isso é uma falácia até mesmo em relação aos fatos conhecidos.
Pois a variância nos assuntos humanos geralmente emerge, não da
vitalidade, mas da morte; pelo fenecer ou pela quebra da força e do desejo.
Um homem altera seus movimentos devido a algum leve elemento de
cansaço ou fracasso. Entra em um ônibus porque está cansado de andar; ou
anda porque está cansado de ficar sentado. Mas se sua vida e sua alegria
fossem gigantescas a ponto de nunca cansar de ir a Islington,13 ele poderia
ir a Islington tão regularmente quanto o Rio Tâmisa vai a Sheerness.14 A
própria velocidade e êxtase de sua vida teriam a quietude da morte. O sol
nasce todas as manhãs. Eu não me levanto todas as manhãs, mas a variação
não é devido à minha atividade, mas sim à minha prostração. Para colocar a
questão nos termos de um provérbio popular, pode ser que o sol nasça
regularmente porque nunca se cansa de nascer. Sua rotina pode emergir não
da falta de vida, mas de um ímpeto vital. Isso pode ser visto, por exemplo,
nas crianças, quando descobrem algum jogo ou piada que particularmente
apreciam. Uma criança move suas pernas ritmicamente pelo excesso e não
pela falta de vida. As crianças, porque têm uma vitalidade transbordante,
porque são de um espírito intenso e livre, desejam a repetição e a
imutabilidade das coisas. Elas sempre dizem: “De novo”; e o adulto repete a
brincadeira até praticamente desfalecer. Pois os adultos não têm força
suficiente para se regozijar na monotonia. Mas talvez Deus seja forte o
suficiente para nela se regozijar. É possível que Deus diga, a cada manhã,
“de novo” ao sol; e a cada anoitecer diga “de novo” à lua. Pode ser que as
margaridas não sejam semelhantes por uma necessidade automática; pode
ser que Deus faça cada margarida separadamente, mas que nunca se canse
de fazê-las. Pode ser que Ele tenha um apetite eterno e infantil; pois
pecamos e nos tornamos velhos, mas nosso Pai é eternamente jovem. A
repetição na natureza pode não ser uma mera recorrência; pode ser uma
repetição teatral. Os céus podem pedir bis ao pássaro que botou um ovo. Se
a mulher concebe uma criança humana em vez de um peixe, um morcego,
ou um grifo, não necessariamente isso se deve à condenação a um destino
animal morto e sem sentido. Pode ser que nossa pequena tragédia tenha
tocado os deuses, que eles a admirem de suas galerias estreladas, e que ao
fim de cada drama o homem seja convocado novamente para o palco. A
repetição pode atravessar milhões de anos, pela simples escolha, e pode
parar a qualquer instante. O homem pode residir sobre a terra geração após
geração, e ainda assim cada nascimento pode ser positivamente o último.
Essa foi minha primeira convicção, gerada pelo choque de minhas
emoções infantis com o credo moderno em minha maturidade. Sempre senti
vagamente que os fatos eram milagres por serem maravilhosos: desde então
passei a pensá-los como milagres por apresentarem um caráter voluntarista.
Eles eram, ou poderiam ser, os exercícios repetidos de alguma vontade. Em
suma, sempre acreditei que havia mágica no mundo: desde então pensei que
também havia um mágico. E isso apontou uma emoção profunda sempre
presente e subconsciente de que este mundo tinha um sentido; e se há um
sentido, há uma pessoa. Sempre senti a vida antes de tudo como uma
estória: e se há uma estória, há o contador de estórias.
Mas o pensamento moderno também atingiu minha segunda tradição
humana. Voltou-se contra o sentimento élfico sobre os limites e condições
rigorosas. Amava falar sobre o expansionismo e a grandiosidade. Herbert
Spencer15 ficaria bastante irritado se alguém o chamasse de imperialista,
mas é uma vergonha que ninguém o tenha dito. Ele era um imperialista do
tipo mais baixo. Popularizou a desprezível noção de que o tamanho do
sistema solar deveria silenciar o dogma espiritual do homem. Mas por que
um homem deveria entregar sua dignidade ao sistema solar e não a uma
baleia? Se o simples tamanho prova que o homem não é a imagem de Deus,
então a baleia pode ser uma imagem um tanto quanto informe de Deus, no
que poderíamos chamar de retrato impressionista. É absolutamente fútil
argumentar que o homem é pequeno comparado ao cosmos, pois ele sempre
foi pequeno comparado à árvore mais próxima. Mas Herbert Spencer, em
seu imperialismo precipitado, insistiria que fomos de alguma forma
conquistados e anexados pelo universo astronômico. Falava de homens e
seus ideais exatamente como o mais insolente defensor da união britânica
falava dos irlandeses e seus ideais. Transformou a humanidade em uma
pequena nacionalidade. E sua influência maligna pode ser vista nos mais
espirituosos e honoráveis dentre os divulgadores científicos mais recentes; e
particularmente nos primeiros romances do Sr. H. G. Wells. Muitos
moralistas exageraram o mal que grassa sobre a terra, mas o Sr. Wells e sua
escola tornaram o céu mau. Deveríamos erguer os olhos para as estrelas que
anunciam nossa ruína.
Mas o expansionismo de que falo era ainda mais perverso do que tudo
isso. Observei que o materialista, como o louco, está em uma prisão: a
prisão de seu próprio pensamento. Os expansionistas pareciam pensar que
era singularmente inspirador dizer repetidamente que a prisão era enorme.
Mas o tamanho desse universo científico não trazia nenhuma novidade ou
alívio. O cosmos marchava eternamente, mas nem na mais louca
constelação havia algo de realmente interessante; algo como, por exemplo,
o perdão e o livre-arbítrio. A grandiosidade ou infinitude secreta de seu
cosmos nada acrescentava. Era como dizer ao prisioneiro no cárcere de
Reading que ele ficaria feliz em ouvir que o cárcere agora cobria metade do
país. O carcereiro só poderia mostrar corredores de pedra cada vez mais
longos, iluminados por luzes macabras e vazios de tudo que é humano.
Esses expansionistas do universo nada tinham a mostrar senão corredores
infinitos de espaço iluminados por estrelas macabras e vazios de tudo que é
divino.
No país das fadas havia uma lei real, uma lei que poderia ser violada,
pois toda lei por definição o pode. Mas o maquinário dessa prisão cósmica
era algo que não poderia ser violado; pois nós mesmos éramos somente
parte do maquinário. Ou éramos incapazes de realizar o que quer que fosse,
ou estávamos destinados a fazê-lo. A idéia da condição mística
praticamente desaparece; não é possível manter nem a solidez da
manutenção das leis, nem a diversão de desafiá-las. A grandeza do universo
nada tinha do frescor e da leveza que elogiamos no universo do poeta. Esse
universo moderno é literalmente um império; isto é, ele era vasto, mas não
era livre. Havia quartos sem janelas cada vez maiores, quartos grandiosos
de uma perspectiva babilônica; mas era impossível encontrar a menor janela
ou a menor brisa do ar exterior.
Suas paralelas infernais pareciam se expandir com a distância; mas para
mim todas as coisas boas têm um ponto final, como as espadas. Ao perceber
que a celebração da imensidão do cosmos era tão pouco satisfatória para
minhas emoções, comecei a questioná-la timidamente; e logo descobri que
toda essa atitude era ainda mais rasa do que eu poderia imaginar. De acordo
com essas pessoas, o cosmos era uma unidade porque tinha uma única lei
inquebrantável. Somente acrescentavam que além de ser uma unidade, ele
era a única coisa que realmente existe. Por que, então, deveríamos nos
preocupar particularmente com sua grandeza? Não há nada a ser
comparado. Poderíamos também dizer que ele é pequeno. Um homem pode
dizer: “Amo esse vasto cosmos, com sua multidão de estrelas e de criaturas
as mais variadas”. Mas se é assim, por que um homem não poderia dizer:
“Amo este aconchegante cosmos, com seu número decente de estrelas e
tantas criaturas quanto posso desejar ver”? Tanto faz: ambos são
sentimentos. É um mero sentimento se regozijar com o fato de que o sol é
maior que a terra; e também é um sentimento tão saudável quanto se
regozijar com o fato de que o sol não é ainda maior. Um homem escolhe se
emocionar com a grandeza do mundo; mas por que ele não poderia escolher
se emocionar com sua pequenez?
Ocorre que carregava comigo essa emoção. Quando amamos algo o
chamamos por diminutivos, mesmo que seja um elefante ou um membro da
Guarda Real. A razão é que, tudo, não importa quão grande seja, pode ser
concebido como uma completude, e como algo pequeno em sua perfeição.
Se os bigodes militares não sugerissem uma espada ou as trombas um rabo,
então o objeto seria vasto por ser imensurável. Mas no momento em que se
imagina um guarda real é possível imaginar um que seja pequeno. No
momento em que se vê um elefante é possível chamá-lo de elefantinho. Se é
possível fazer a estátua de uma coisa, também é possível fazer uma
estatueta. Essas pessoas professavam que o universo era uma só coisa
coerente; não amavam o universo. Mas eu estava terrivelmente apaixonado
pelo universo e queria chamá-lo por um diminutivo. E muitas vezes o fiz, e
ele nunca pareceu se importar. Na verdade, tenho realmente sentido que
esses obscuros dogmas de vitalidade eram melhor expressos ao se chamar o
mundo de pequeno do que de grande. Pois a infinitude remete a uma
espécie de indiferença que é precisamente o inverso do cuidado piedoso e
impetuoso que eu sentia ser próprio ao perigo e valor inestimável da vida.
Os expansionistas mostravam somente uma planície abominável e erma;
mas eu sentia uma espécie de senso econômico sagrado. Pois a economia é
muito mais sagrada que a extravagância. Para eles, as estrelas eram uma
renda perpétua de meio centavo; mas eu me sentia, em relação ao sol
dourado e à lua prateada, como um estudante se sente quando tem uma nota
de cem reais na carteira.
Essas convicções subconscientes são melhor expressas pela tonalidade e
a coloração de certas lendas. Já disse que só estórias de magia podem
expressar meu senso de que a vida é, além de um prazer, um tipo de
privilégio excêntrico. Posso expressar esse sentimento de acolhimento
cósmico aludindo a outro livro que sempre lia durante a meninice, Robinson
Crusoé, o qual voltei a ler nessa época de confusão, e que deve sua
vivacidade eterna ao fato de celebrar a poesia dos limites, ou melhor, o
romance selvagem da prudência. Crusoé é um náufrago em uma pequena
ilha com poucos confortos recém-recuperados do mar: a melhor coisa no
livro é a lista de coisas recuperadas do naufrágio. O maior dos poemas é um
inventário. Todo utensílio de cozinha se torna ideal porque Crusoé poderia
tê-lo perdido no mar. Trata-se de um bom exercício, nas horas vazias e
tristes do dia, olhar para qualquer coisa, para o balde de carvão ou para a
estante de livros, e pensar como você ficaria feliz por tê-la resgatado do
navio que naufragou na ilha solitária. Mas é ainda melhor lembrar como
todas as coisas escaparam por um fio de cabelo: tudo foi salvo de um
naufrágio. Todo homem teve uma aventura horrível: poderia não ver a luz
por um parto inoportuno e infeliz. Os homens falavam muito em minha
infância de sujeitos geniais que se arruinaram; e era comum dizer que
muitos eram um grande “talvez”. Para mim é ainda mais sólido e
surpreendente o fato de que qualquer homem a andar pelas ruas é um
grande talvez.
Mas realmente senti (a fantasia pode parecer tola) como se toda a ordem
e seqüência de coisas fosse o remanescente romântico do navio de Crusoé.
A existência dos dois sexos e de um sol era como o resgate de duas armas e
um machado. Era de uma urgência comovente que nada fosse perdido; mas,
de algum modo, era assaz divertido que nada pudesse ser acrescentado. As
árvores e os planetas pareciam coisas salvas de um naufrágio; e quando vi o
Matterhorn16 fiquei grato por não o ter ignorado em meio à confusão. Senti-
me avaro quanto às estrelas, como se elas fossem safiras (assim são
chamadas no Éden de Milton): guardei as colinas num porquinho-da-índia.
Pois o universo é uma jóia única, e apesar de ser um lugar comum falar de
uma jóia como algo ímpar e inestimável, neste caso falo a verdade literal.
Este cosmos é de fato ímpar e inestimável; pois não pode existir outro.
Assim termina, com uma deficiência inevitável, a tentativa de dizer o
que não pode ser dito. Estas são minhas atitudes supremas acerca da vida; o
solo para a semente da doutrina. De uma maneira obscura nelas pensei antes
de poder escrevê-las, e as senti antes de poder pensá-las: para que possamos
prosseguir com mais facilidade, as recapitularei brevemente agora. Em
primeiro lugar, senti em meus ossos que o mundo não se auto-explicava.
Ele pode ser um milagre com uma explicação sobrenatural, ou um truque
mágico com uma explicação natural. Mas a explicação do truque, para me
satisfazer, deverá ser melhor do que as explicações naturais que tenho
ouvido. A coisa é mágica, seja ela verdadeira ou falsa. Em segundo lugar,
passei a sentir que a magia deve ter um sentido, e que o sentido depende de
uma pessoa que o apreenda. Há algo pessoal no mundo, como o há numa
obra de arte; e essa intencionalidade emerge de forma violenta. Em terceiro
lugar, vi que essa intenção era bela em seu primeiro modelo, a despeito dos
defeitos, como os dragões. Em quarto lugar, vi que o agradecimento
apropriado a essa dádiva é uma espécie de humildade e comedimento:
deveríamos agradecer a Deus pela cerveja e pelo vinho da Burgúndia17 não
exagerando na taberna. Somos também devedores de obediência ao ser que
nos criou, não importando o que ele é. E finalmente — e ainda mais
estranho — veio à minha mente uma impressão vaga e vasta de que de
alguma forma todo bem era um sobrevivente a ser guardado e adorado,
descoberto em meio a uma espécie de ruína primordial. O homem salvou o
seu bem como Crusoé salvou os seus bens: foram resgatados de um
naufrágio. Tudo isso senti, a despeito do desencorajamento de nosso tempo
a esse tipo de sensibilidade. E durante todo esse tempo não tinha ainda
sequer pensado na teologia cristã.

1 Clube exclusivo para homens em Londres que se descreve como “o mais antigo e o mais
importante de todos os clubes conservadores”. A escolha de novos membros só se dá por indicação e
eleição.
2 O jacobitismo foi um movimento político na Grã-Bretanha que buscou restaurar o Rei James ii, um
católico romano, e seus descendentes no trono de Grã-Bretanha. Seus partidários se rebelaram
diversas vezes contra o governo entre 1688 e 1746.
3 As assim chamadas “leis da natureza” só o são na medida em que são abstratas. Por exemplo, a lei
da queda dos corpos de Galileu só é válida com exatidão no vácuo absoluto, que é uma condição
impossível e uma mera abstração. O determinismo vale para a equação em seu modo de
universalidade e abstração, mas nunca para nosso mundo real e concreto.
4 Na lingüística histórica, dá-se o nome de Lei de Grimm a uma tendência fonética nas línguas
germânicas, descoberta em 1822 e descrita em detalhes por Jacob Grimm (autor, junto com seu irmão
Wilhelm, dos famosos contos dos irmãos Grimm). A lei explica as variações que sofreram várias
consoantes indo-européias, por uma mutação acontecida no período pré-histórico da evolução das
línguas germânicas.
5 Andrew Lang (1844–1912), poeta, romancista, crítico literário e estudioso da antropologia
escocesa. É mais conhecido como colecionador de folclore e de contos de fadas e pela publicação de
suas famosas coletâneas conhecidas como os “Livros coloridos das fadas de Lang”.
6 William Butler Yeats (1865–1939), poeta irlandês e uma das principais figuras da literatura do
século xx. Era fascinado pelas lendas irlandesas e pelo ocultismo. A partir de 1900 sua poesia se
torna mais física e realista. Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1923.
7 “Ride on the crest of the dishevelled tide, / And dance upon the mountains like a flame”.
8 “Movimento feniano” era um movimento político separatista da Irlanda surgido no século xix. Os
guerreiros irlandeses antibritânicos eram também conhecidos como fenianos.
9 Rua de Londres que era famosa por conter quase toda a indústria jornalística inglesa. Ainda é um
termo metonímico para a imprensa britânica.
10 Brixton é um distrito do sul de Londres proeminentemente residencial.
11 O poeta Apolônio de Rodes conta (em uma das variantes da lenda) que Selene, a deusa titânica da
lua, se apaixonou pelo mortal Endimião, filho de Zeus, e implorou ao deus supremo que concedesse a
juventude eterna ao amado, para que pudesse sempre estar ao seu lado. Teriam tido cinqüenta filhos
dessa união.
12 Oscar Fingal O’Flahertie Wills Wilde (1854–1900) foi um poeta e dramaturgo irlandês, famoso
principalmente por sua obra O retrato de Dorian Gray e seu homossexualismo aberto. Era um porta-
-voz do esteticismo e do decadentismo de sua época. Foi julgado e preso pela acusação de sodomia
entre 1895 e 1897. Ao fim da prisão escreveu à Sociedade de Jesus pedindo a oportunidade de um
retiro espiritual de seis meses. Chorou quando foi recusado, proclamando que “desejava pertencer à
Igreja Católica após tanto tempo”. Em 29 de novembro de 1900, um dia antes de sua morte, foi enfim
condicionalmente batizado na Igreja Católica, recebendo os últimos sacramentos e fazendo todo o
esforço possível para recitar as palavras junto com o sacerdote.
13 Islington é um distrito na Grande Londres.
14 É uma cidade localizada na foz do Rio Medway na ilha de Sheppey, Inglaterra.
15 Herbert Spencer (1820–1903) foi um filósofo, biólogo, antropólogo, sociólogo e liberal clássico
inglês. Tinha uma visão da teoria da evolução como uma explicação total do universo e de todo
desenvolvimento, e era um propagador do agnosticismo. Era considerado o intelectual mais influente
da Europa no final do século xix. Mais conhecido hoje pela expressão “a sobrevivência do mais
forte”, cunhada por ele em 1864, sendo considerado o maior representante do darwinismo social.
16 O Matterhorn, ou Monte Cervino, é uma montanha dos Alpes que se estende na fronteira entre a
Suíça e a Itália. Às vezes é chamada de Montanha das Montanhas, e se tornou um ícone dos Alpes
Suíços e dos Alpes em geral.
17 Território histórico da Europa e antiga região administrativa da França. Foi historicamente o nome
de muitas entidades, desde reinos a ducados que foram do Mediterrâneo até os Países Baixos.
CAPÍTULO 4
O estandarte do mundo
QUANDO ERA UM GAROTO, VAGAVAM PELO MUNDO DOIS tipos humanos
curiosos chamados de o otimista e o pessimista. Eu mesmo usava essas
palavras constantemente, mas de bom grado confesso que nunca tive idéia
muito precisa do que se tratava. A única coisa que poderia ser considerada
evidente era que não podiam significar o que diziam; pois a explicação
verbal comum era que o otimista acreditava que este mundo era tão bom
quanto poderia ser, enquanto o pessimista acreditava que era tão mau
quanto poderia ser. Como essas duas afirmações são obviamente absurdos
alucinantes, era preciso me lançar em busca de outras explicações. Um
otimista não poderia ser um homem que acredita que tudo vai bem, pois
isso carece de sentido; é como dizer que tudo está na direita e nada na
esquerda. Em suma, cheguei à conclusão de que o otimista acreditava que
tudo era bom exceto o pessimista, e que o pessimista acreditava que tudo
era mau, exceto ele mesmo. Seria injusto omitir completamente a
misteriosa, mas sugestiva definição que se diz ter sido dada por uma
garotinha: “Um otimista busca nossos olhos, enquanto um pessimista busca
nossos pés”. Não estou certo de que essa não seja a melhor definição. Tem
até mesmo uma espécie de verdade alegórica em si. Pois pode-se traçar,
talvez, uma útil distinção entre o pensador tristonho, que só pensa em nosso
contato com a terra a cada instante, e o pensador risonho que antes de tudo
considera nosso poder visionário de escolher caminhos.
Mas isso é um grande erro quando se trata da alternativa entre o otimista
e o pessimista. O pressuposto é que um homem critica este mundo como se
estivesse à caça de um apartamento, flanando pelas diferentes opções. Se
um homem viesse de um outro mundo para este em plena posse de suas
forças poderia discutir a vantagem de bosques de veraneio a despeito da
inevitável presença dos lobos, assim como um homem que busca
hospedagem pode pesar a vantagem de ter um telefone no estabelecimento
face à ausência de uma vista para o mar. Mas que homem está nessa
posição? Um homem pertence a este mundo antes de começar a se
perguntar se é bom lhe pertencer. Lutou pelo estandarte, e muitas vezes
conquistou vitórias heróicas antes de ter se alistado. Para resumir a essência
do assunto, ele é leal muito antes de ter qualquer admiração.
No último capítulo foi dito que o sentimento primário de que este
mundo é estranho, mas ainda assim atrativo, é maravilhosamente expresso
nos contos de fadas. O leitor pode, se assim desejar, atribuir o que se segue
àquela literatura ufanista e belicosa que usualmente é o próximo passo das
leituras e da vida de um garoto. Devemos muita moralidade sã aos antigos
gibis baratos.1 Seja lá qual for a razão, parecia-me, e ainda me parece, que
nossa atitude diante da vida pode ser melhor expressa nos termos de uma
lealdade militar do que nos da crítica e da aprovação. Minha aceitação do
universo não é otimismo: parece-se mais com um patriotismo. É uma
questão de lealdade primária. O mundo não é uma hospedaria em Brighton,
que podemos abandonar por ser miserável. É a fortaleza de nossa família,
com um estandarte esvoaçante sobre a torre, e quanto mais miserável for,
menos justificada é nossa deserção. O ponto não é que este mundo é triste
demais para ser amado ou alegre demais para não ser amado, mas sim, que
quando se ama algo, sua alegria é uma razão para o amor, e sua tristeza para
um amor ainda maior. Todos os pensamentos otimistas e pessimistas sobre a
Inglaterra são argumentos favoráveis para o patriota cósmico.
Suponhamos que estamos diante de algo desesperado — como Pimlico.1
Se pensarmos sobre o que é realmente melhor para Pimlico, descobriremos
que a trama do pensamento leva ao trono real, ao místico e ao arbitrário.
Não é suficiente que um homem desaprove Pimlico: ele simplesmente
cortaria sua garganta ou se mudaria para Chelsea. Muito menos é suficiente
que um homem aprove Pimlico: tudo permanecerá o mesmo, o que seria
terrível. A única saída parece ser que alguém ame Pimlico com um amor
transcendental carente de qualquer razão terrena. Se surgisse um homem
que amasse Pimlico, então veríamos a construção de torres de marfim e
pináculos de ouro; Pimlico se adornaria como uma mulher que é amada.
Pois a decoração não existe para ocultar o que é horrível, mas sim para
decorar o que já é adorável. Uma mãe não presenteia seu filho com um laço
azul porque ele é feio demais sem ele. Um namorado não presenteia sua
amada com um colar para ocultar seu pescoço. Se os homens amassem
Pimlico como as mães amam seus filhos, ou seja, arbitrariamente, porque
são seus, Pimlico seria talvez mais bela que Florença em um ou dois anos.
Alguns leitores dirão que isso é pura fantasia. Respondo que essa é a
verdadeira história da humanidade. Foi assim que foram erguidas as
grandes cidades. Remonte às raízes mais obscuras da civilização e as
encontrará atadas a algum monólito sacro ou circundando algum poço
sagrado. Os povos primeiro cultuaram um lugar e depois conquistaram a
glória para ele. Os homens não amaram Roma porque era grandiosa: ela se
tornou grandiosa porque os homens a amaram.
As teorias do contrato social do século xviii foram atacadas de forma
bastante estabanada em nossos dias; na medida em que diziam que por trás
de todo governo histórico há uma idéia de concordância e cooperação, tais
teorias eram demonstravelmente verdadeiras. Mas estavam realmente
erradas na medida que sugeriam que os homens buscaram a ordem ou a
ética diretamente numa negociação consciente de interesses. A moralidade
não começou com um homem dizendo a outro: “Não irei rachar sua cabeça
se você não rachar a minha”; não há menor evidência dessa transação. Mas
há evidência de que ambos disseram: “Não devemos nos atacar diante do
santuário”. Eles conquistaram sua moralidade protegendo sua religião. Não
cultivaram a coragem. Lutaram pelo santuário e descobriram que se
tornaram corajosos. Não cultivaram o asseio. Purificaram-se para o altar e
descobriram que estavam limpos. A história dos judeus é o único
documento primitivo conhecido pela maioria dos ingleses, e é suficiente
para um julgamento dos fatos. Os Dez Mandamentos, que se descobriu
serem substancialmente comuns a toda humanidade, eram meras ordens
militares; um código de ordens regimentais, criado para proteger certa arca
em sua passagem por um certo deserto. A anarquia era má porque ameaçava
a santidade. E somente quando criaram um dia consagrado a Deus
descobriram que tinham criado um feriado para os homens.
Se for admissível que essa devoção primária a um lugar ou coisa é uma
fonte de energia criativa, podemos passar para um fato muito peculiar.
Reiteremos por um instante que o único otimismo apropriado é um tipo de
patriotismo universal. Qual o problema com o pessimista? Acredito que
esteja no fato de que ele é um antipatriota cósmico. E qual o problema com
o antipatriota? Acredito que esteja no fato de que ele é um amigo sincero. E
qual o problema com o amigo sincero? E aqui tocamos a rocha da vida real
e a natureza humana imutável.
Ouso dizer que o mau no amigo sincero é simplesmente não ser sincero.
Ele esconde algo: seu próprio prazer sombrio em dizer coisas
desagradáveis. Tem um desejo secreto de ferir e não de ajudar. É isso,
penso, que torna certo tipo de antipatriota irritante aos bons cidadãos. Não
falo — é claro — do antipatriotismo que somente irrita corretores de bolsa
alucinados e atrizes da moda; ele é somente o patriotismo que diz a
verdade. Um homem que diz que nenhum patriota deveria criticar a Guerra
dos Bôeres2 antes do seu fim não merece ser respondido de forma
inteligente; está a dizer que nenhum bom filho deveria avisar à mãe do
perigo de um despenhadeiro antes da queda. Mas há um antipatriota que
realmente enfurece os homens honestos, e o que o explica é, penso eu, o
que sugeri: ele é o insincero amigo sincero, o homem que diz “entristece-
me dizer que estamos arruinados”, mas que não está triste de forma alguma.
E ele pode ser chamado, sem qualquer arroubo retórico, de traidor; pois ao
invés de usar as terríveis informações que lhe foram dadas para fortalecer o
exército, usa-as para desencorajar o alistamento. Se lhe é permitido ser
pessimista como conselheiro militar, ele passa a ser pessimista também
como sargento de recrutamento. Assim como o pessimista, que é o
antipatriota cósmico, usa a liberdade que a vida concede a seus conselheiros
para atrair as pessoas para longe do seu estandarte. Mesmo que somente
afirme fatos, ainda é essencial conhecer suas emoções e motivações. Pode
ser que mil e duzentos homens em Tottenham3 tenham desfalecido com a
varíola; mas queremos saber se isso é afirmado por algum grande filósofo
que busca amaldiçoar os deuses, ou se por algum clérigo comum que deseja
ajudar os homens.
O mal do pessimista não consiste, então, em castigar os deuses e os
homens, mas em não amar o que castiga — não possuir a lealdade primária
e sobrenatural às coisas. Qual o mal do homem usualmente chamado de
otimista? Sente-se, obviamente, que o otimista, ao buscar defender a honra
do mundo, irá defender o indefensável. Ele é o ufanista do universo; dirá:
“O meu cosmos, certo ou errado”. Será menos inclinado à reforma das
coisas e mais ao tipo de resposta oficial de gabinete: em todos os ataques e
perigos quer acalmar a multidão com falsas garantias. Não limpará o
mundo, mas encobrirá os seus erros. Tudo isso (que é verdadeiro para um
certo tipo de otimista) leva-nos a um ponto realmente interessante da
psicologia, inexplicável de outro modo.
Dissemos que deve existir uma lealdade primordial à vida: a única
questão é saber se ela deve ser natural ou sobrenatural. Se preferirem,
também podemos dizer: deve ser razoável ou irrazoável? O extraordinário é
que o mau otimismo (o disfarce, a fraca defesa de todas as coisas) anda ao
lado do otimismo razoável. O otimismo racional leva à estagnação: é o
otimismo irracional que leva à reforma. Deixem-me explicar usando uma
vez mais o paralelo do patriotismo. O homem mais fadado a arruinar o
lugar que ama é exatamente o que o ama por uma razão. O homem que
melhorará o lugar é aquele que o ama sem qualquer razão. Se um homem
ama algum traço de Pimlico (o que é improvável), ele pode acabar
defendendo esse traço contra a própria Pimlico. Mas se simplesmente ama
Pimlico, pode derrubá-la e reerguê-la como uma Nova Jerusalém. Não nego
que a reforma pode passar dos limites; somente afirmo que é o patriota
místico que reforma. O autocontentamento ufanista é mais comum entre
aqueles que têm algum motivo pedante para seu patriotismo. Os piores
ufanistas não amam a Inglaterra, mas uma teoria da Inglaterra. Se amamos a
Inglaterra por ser um império, podemos superestimar o sucesso do governo
sobre os hindus. Mas se a amamos por ser uma nação, podemos enfrentar
todos os eventos: pois continuaria uma nação mesmo que os hindus nos
governassem. Os únicos que permitirão que o patriotismo falsifique a
história são aqueles cujo patriotismo depende da história. Aquele que ama a
Inglaterra por ser anglo-saxã pode lutar contra todos os fatos por uma
simples fantasia. Pode terminar, como Carlyle4 e Freeman, defendendo que
a conquista normanda5 foi uma conquista saxônica. Pode terminar na
completa irracionalidade — porque tem uma razão. Aquele que ama a
França por ter um grande exército irá desprezar o exército de 1870.6 Mas
aquele que ama a França por ser a França irá melhorar o exército de 1870.
Foi precisamente o que a França fez, e ela é um bom exemplo do paradoxo
vivo. Em nenhum outro lugar o patriotismo é mais puramente abstrato e
arbitrário; e em nenhum outro lugar a reforma é tão drástica e completa.
Quanto mais transcendental é o seu patriotismo, mais prática é a sua
política.
Talvez o exemplo mais cotidiano desse ponto é a mulher e sua estranha
e poderosa lealdade. Certos imbecis espalharam a idéia de que o apoio
incondicional da mulher ao marido significa que as mulheres são cegas e
nada enxergam. Dificilmente conheceram alguma mulher. As mesmas
mulheres que estão prontas para defender seus homens na alegria e na
tristeza, em seu convívio pessoal, são quase morbidamente lúcidas a
respeito da vacuidade de suas desculpas e a dureza de suas cabeças.
O amigo de um homem gosta dele, mas o deixa como é: sua esposa
ama-o e sempre tenta transformá-lo. Mulheres que são completamente
místicas em seu credo são completamente cínicas em sua crítica.
Thackeray7 expressou isso perfeitamente quando fez a mãe de Pendennis,8
que o adorava como um deus, prever seu fracasso como um homem. Ela
subestimou sua virtude, apesar de superestimar seu valor. O devoto tem
toda a liberdade para criticar; o fanático pode ser um cético com toda a
segurança. O amor não é cego; esta é a última coisa que ele é. O amor é
obrigado; e quanto mais é obrigado, menos cego é.
Esta se tornou, ao menos, minha posição sobre tudo que era chamado de
otimismo, pessimismo e progresso. Antes de qualquer ato cósmico de
reforma devemos ter um juramento cósmico de fidelidade. Um homem deve
se interessar pela vida, e só depois pode se desinteressar por suas visões
sobre ela. “Dai-me vosso coração, meu filho”; o coração deve se fixar na
coisa certa: no momento em que nosso coração se fixa, nossa mão se
liberta. Devo fazer uma pausa para antecipar uma crítica óbvia. Será dito
que uma pessoa racional aceita o mundo como uma mistura do bem e do
mal, com uma dose decente de satisfação e sobrevivência. Mas essa é
exatamente a atitude que considero defeituosa. Sei que é muito comum em
nossa época; foi perfeitamente expressa naquelas calmas linhas de Matthew
Arnold9 que são mais penetrantemente blasfemas que os grunhidos de
Schopenhauer:
“Já muito vivemos — e uma vida, tão vazia de grandiosos feitos, apesar de suportável, parece
pouco digna desse palavrório pomposo, dessas dores de parto”.

Sei que esse sentimento domina nossa época, e penso que ele a paralisa.
Pois, para nossos objetivos titânicos de fé e revolução, não precisamos da
aceitação fria do mundo como um compromisso, mas um caminho pelo
qual possamos odiá-lo e amá-lo de todo o coração. Não queremos que a ira
e a alegria se neutralizem e produzam um contentamento grosseiro;
queremos uma ira e um deleite ainda mais impetuosos. Precisamos sentir o
universo como o castelo de um ogro a ser invadido, e ao mesmo tempo
como nosso próprio casebre, ao qual podemos retornar a cada noite.
Ninguém duvida que um homem comum pode se encaixar neste mundo:
mas não exigimos a força suficiente somente para a aceitação do mundo,
mas a força capaz de transformá-lo. Pode ele odiá-lo a ponto de mudá-lo,
mas ao mesmo tempo amá-lo o suficiente para considerá-lo digno da
mudança? Pode ele olhar para o seu bem colossal sem se acomodar? Pode
ele olhar para o seu mal colossal sem sentir desespero? Pode ele, em suma,
ser ao mesmo tempo, não somente um otimista e um pessimista, mas um
pessimista fanático e um otimista fanático? Será que ele é suficientemente
pagão para morrer pelo mundo, e suficientemente cristão para ser morto
pelas mãos do mundo? Nessa combinação, afirmo que é o otimista racional
que fracassa, e o otimista irracional que tem êxito. Ele está pronto para
esmagar todo o universo pelo seu próprio bem.
Não apresento essas coisas em sua seqüência lógica consolidada, mas
como vieram à minha mente: e essa visão foi esclarecida e aguçada por um
acidente típico dos tempos. Sob a crescente sombra de Ibsen,10 emergiu um
argumento sobre a bondade do suicídio. Modernistas cheios de gravidade
nos disseram que não devemos dizer nem mesmo “pobrezinho” de um
homem que estourou seus miolos, já que era um homem invejável e os
estourou somente por sua grandiosidade excepcional. O Sr. William
Archer11 sugeriu até mesmo que na era de ouro haveria máquinas caça-
níqueis nas quais um homem poderia se matar por um centavo. Sempre
senti uma hostilidade completa a todos que se diziam liberais e humanistas
nesse sentido. O suicídio não é somente um pecado: é o pecado. É o mal
absoluto e final, a recusa de se interessar pela existência, de fazer um
juramento de lealdade à vida. O homem que mata um homem matou
somente um homem; mas o suicida mata todos os homens; de sua
perspectiva ele destrói o mundo. Seu ato é pior (simbolicamente
considerado) que qualquer estupro ou qualquer explosão de dinamite. Pois
destrói todos os prédios e insulta todas as mulheres. O ladrão se satisfaz
com os diamantes, mas o suicida não: esse é o seu crime. Ele não pode ser
subornado, nem mesmo pelas pedras preciosas da Cidade Celestial. O
ladrão exalta aquilo que rouba, mesmo que não se possa dizer o mesmo do
proprietário. Mas o suicídio insulta os céus e a terra por não os roubar.
Corrompe cada flor ao se recusar a viver por elas. Não há criatura
minúscula no cosmos que não é escarnecida por essa morte. Quando um
homem se enforca em uma árvore, as folhas podem cair de raiva e os
pássaros voarem furiosos: pois todos foram afrontados pessoalmente. É
claro que podem existir desculpas emocionais patéticas para o ato. Elas
sempre existem para o estupro, e também quase sempre para a dinamite.
Mas se nos voltarmos para as idéias claras e o sentido inteligível das coisas,
há muito mais verdade racional e filosófica no enterro em uma encruzilhada
e na estaca que perfura o corpo do suicida, do que nas máquinas de suicídio
automático do Sr. Archer. Há um sentido em enterrar o suicida
isoladamente. O crime desse homem é diferente dos outros crimes — pois
torna os próprios crimes impossíveis.
Por volta da mesma época li uma solene impertinência de um desses
livres-pensadores: disse ele que o suicida era igual ao mártir. A falácia
gritante ajudou-me a clarificar a questão. É óbvio que um suicida é o oposto
do mártir. Um mártir é um homem que ama algo a ponto de esquecer sua
própria vida. Um suicida é alguém que não ama nada, e chega então a
desejar nada mais ver. Um deseja que algo comece: o outro que tudo
termine. Em outras palavras, o mártir é nobre, precisamente porque (não
importa o quanto tenha renunciado ao mundo ou execrado toda a
humanidade) confessa seu elo derradeiro com a vida; o seu coração o
transcende rumo ao que está lá fora: ele morre para que algo viva. O suicida
é ignóbil porque não tem esse elo com o ser: é um destruidor puro que
implode espiritualmente o universo. Lembrei-me então da estaca e da
encruzilhada, e o estranho fato de que o cristianismo demonstrara uma
estranha rispidez ao suicida. Pois o cristianismo demonstrara um violento
encorajamento ao mártir. O cristianismo histórico foi acusado, não sem
alguma razão, de elevar o martírio e o ascetismo ao extremo da desolação e
do pessimismo. Os primeiros mártires cristãos falavam da morte com uma
terrível alegria. Blasfemavam as belas obrigações do corpo: sentiam a
fragrância do túmulo como a de um jardim florido. Para muitos isso parecia
uma verdadeira poesia do pessimismo. No entanto, lá está a estaca na
encruzilhada para mostrar o que o cristianismo pensava do pessimista.
Esse foi o primeiro dos muitos enigmas nos quais o cristianismo tomou
parte na discussão. E junto com ele ia uma peculiaridade de que terei de
falar com mais insistência, como um traço de todas as noções cristãs, mas
que surgiu distintamente nesse primeiro enigma. A atitude cristã em relação
ao mártir e o suicida não era o que tantas vezes é afirmado na moral
moderna. Não era uma questão de grau. Não era uma linha a ser traçada em
algum lugar, com o sacrifício exaltado de um lado, e o sacrífico entristecido
do outro, mas ao seu lado. O sentimento cristão evidentemente não era de
que o suicida levava o martírio longe demais; ele era furiosamente a favor
de um e furiosamente contra o outro: essas duas coisas que se assemelham
tanto estavam nos opostos extremos do céu e do inferno. Um homem
entregava sua vida; ele era tão bom que seus ossos ressequidos poderiam
curar as pestilências das cidades. Um outro homem entregava sua vida; era
tão mau que seus ossos poderiam poluir a vida de seus irmãos. Não digo
que essa ferocidade era correta; mas por que era tão feroz?
Foi nesse ponto que pela primeira vez descobri que meus pés peregrinos
tinham chegado a uma trilha que já fora atravessada. O cristianismo
também sentira a oposição do mártir ao suicida: teria sido talvez pela
mesma razão? Teria o cristianismo sentido o que senti, mas não podia, e não
pode, expressá-lo — essa necessidade de uma lealdade primordial às coisas,
e de uma desastrosa reforma das coisas? E então lembrei-me que uma
grande acusação real contra o cristianismo foi a de combinar essas duas
coisas que eu tentava violentamente combinar. Ele foi acusado, ao mesmo
tempo, de ser excessivamente otimista sobre o universo e de ser
excessivamente pessimista sobre o mundo. A coincidência me paralisou
subitamente.
Tem emergido nas controvérsias modernas um hábito imbecil de dizer
que este ou aquele credo apropriado a uma época não o pode ser para outra.
Certo dogma, dizem-nos, foi verossímil no século xii, mas não é mais no
século xx. Seria possível, então, também dizer que nossa cosmovisão era
adequada para as três e meia da tarde, mas não para as quatro e meia da
tarde. Aquilo em que um homem pode acreditar depende de sua filosofia, e
não do relógio ou do século. Se um homem acredita na lei natural
inalterável, não pode acreditar em milagres em época nenhuma. Se um
homem acredita em uma vontade por trás da lei, pode acreditar em milagres
em qualquer época. Suponha, somente pelo argumento, que estejamos
lidando com um caso de cura taumatúrgica. Um materialista do século xii
não poderia acreditar nela tanto quanto o materialista do século xx. Mas um
cientista cristão do século xx pode acreditar tanto quanto um cristão do
século xii. É simplesmente uma questão da teoria que um homem tem sobre
as coisas. Portanto, ao lidar com qualquer resposta histórica, o ponto não é
saber se foi dada em nosso tempo, mas se é uma resposta à nossa questão. E
quanto mais pensei sobre como e quando o cristianismo veio ao mundo,
mais senti que veio para responder a essa questão.
São os cristãos frouxos e liberais que fazem elogios insustentáveis ao
cristianismo. Falam como se não tivesse havido piedade ou compaixão
antes do advento do cristianismo, um ponto em que poderiam ser corrigidos
por qualquer homem do medievo. Desconversam dizendo que o notável no
cristianismo é que ele foi a primeira religião a pregar a simplicidade e o
autocontrole, ou a interioridade e a sinceridade. Eles irão me considerar
muito bitolado — seja lá o que isso signifique — se disser que o mais
notável no cristianismo é ter sido a primeira religião a pregar o cristianismo.
Sua peculiaridade era ser peculiar, e a simplicidade e a sinceridade não são
peculiares, mas sim ideais óbvios para toda a humanidade. O cristianismo
era a resposta de um enigma, não o último truísmo proferido após uma
longa conversa. Há poucos dias vi em um excelente semanário de tom
puritano esta afirmação de que o cristianismo, quando privado da armadura
do dogma (como se falasse de um homem que fosse privado da armadura de
seus ossos), não era mais que uma doutrina Quaker12 da luz interior. Mas,
se eu dissesse que o cristianismo veio ao mundo especialmente para destruir
a doutrina da luz interior, seria certamente um exagero, mas um exagero
que se aproxima bastante da verdade. Os últimos estóicos,13 como Marco
Aurélio,14 eram exatamente aqueles que acreditavam na luz interior. Sua
dignidade, seu cansaço, seus tristes cuidados exteriores com o próximo,
seus cuidados interiores e incuráveis consigo mesmos, tudo isso tinha como
fonte a luz interior, e só existiam por essa sombria iluminação. Notem que
Marco Aurélio insiste, como fazem todos esses moralistas introspectivos,
sobre as pequenas coisas feitas ou desfeitas; é que ele não possui ódio ou
amor suficiente para realizar uma revolução moral. Desperta cedo pela
manhã, assim como nossos aristocratas, que vivem a “vida simples”, se
erguem pela manhã; pois semelhante altruísmo é bem mais fácil do que
parar os jogos no anfiteatro ou devolver a terra ao povo inglês. Marco
Aurélio é o mais intolerável dos tipos humanos. É um egoísta altruísta, um
homem que tem o orgulho sem a desculpa da paixão. De todas as formas
concebíveis de iluminação a pior é aquela que essas pessoas chamam de luz
interior. De todas as religiões horríveis a mais horrível é o culto do deus
interior. Todos que circulam pelas esferas mundanas sabem como isso
funciona; todos que conhecem o centro do pensamento superior também o
sabem. Conclamar João a adorar o deus interior é em última instância
conclamá-lo à auto-adoração. Que João adore o sol ou a lua — tudo menos
a luz interior; que adore gatos ou crocodilos, se pode encontrá-los em sua
rua, mas não o deus interior. O cristianismo veio ao mundo em primeiro
lugar para afirmar violentamente que um homem não tinha de olhar
somente para o interior, mas para o exterior, contemplar com admiração e
entusiasmo um companheiro e um comandante divino. A única graça de ser
cristão residia no fato de não se estar sozinho com a luz interior, e de se
reconhecer definitivamente uma luz exterior, bela como o sol, clara como a
lua, e terrível como um exército e seu estandarte.
Da mesma forma, tudo ficará bem se João não adorar o sol e a lua. Se o
fizer, há uma tendência de imitá-los; de dizer, por exemplo, que se o sol
queima os insetos vivos, ele também pode queimar os pobres insetos. Pensa
que já que o sol causa insolação, ele pode transmitir sarampo ao vizinho;
que já que a lua enlouquece os homens, ele pode enlouquecer sua esposa. O
lado obscuro do simples otimismo exterior também se mostrou no mundo
antigo. Próximo da época em que o idealismo estóico começou a mostrar as
fraquezas do pessimismo, a antiga adoração da natureza começou a mostrar
as enormes fraquezas do otimismo. A adoração da natureza é natural
quando uma sociedade é jovem, ou, em outras palavras, o panteísmo15 só é
bom enquanto é a adoração de Pã.16 Mas a natureza tem um outro lado que
a experiência e o pecado demoram a descobrir, e não é impertinente dizer
que logo o deus Pã mostra os seus cascos. A única objeção à religião natural
é que ela é algo que sempre se torna antinatural. Um homem ama a natureza
de manhã por sua inocência e amabilidade, e, ao cair da noite, se ainda a
ama, o faz por sua escuridão e crueldade. Lava-se durante a alvorada nas
frescas águas, como faziam os homens sábios do estoicismo, mas, de
alguma forma, no fim sombrio do dia, banha-se no sangue quente do touro,
como fez Juliano, o Apóstata.17 A simples busca da saúde sempre leva a
algo doentio. A natureza física não deve ser objeto direto de obediência;
deve ser apreciada, e não adorada. As estrelas e montanhas não devem ser
levadas a sério, caso contrário terminaremos onde terminou a adoração pagã
da natureza. Já que a terra é generosa, podemos imitá-la em todas as suas
crueldades. Já que a sexualidade é saudável, podemos nos enlouquecer em
orgias. O simples otimismo atingiu seu louco e apropriado fim. A teoria de
que tudo é bom se torna uma orgia de tudo que é mau.
Em oposição a isso estavam nossos pessimistas idealistas, representados
pela velha guarda dos estóicos. Marco Aurélio e seus amigos tinham
realmente abandonado a idéia de um deus do universo e só buscavam o
deus interior. Não tinham qualquer esperança de encontrar a virtude na
natureza, e uma esperança muito pequena de que ela fosse encontrada na
sociedade. Não tinham interesse suficiente no mundo exterior para destruí-
lo ou revolucioná-lo. Não amavam a cidade o suficiente para queimá-la. E
assim o mundo antigo se deparou exatamente com o nosso próprio dilema
desolador. As únicas pessoas que realmente apreciavam este mundo
estavam demasiado ocupadas destruindo-o; e os virtuosos não se
preocupavam suficientemente com eles a ponto de atacá-los. Esse dilema,
que é o nosso, foi subitamente invadido pelo cristianismo que brandia uma
resposta singular; uma resposta que o mundo eventualmente aceitou como a
resposta. Era a resposta naquela época, e considero que é a resposta agora.
Essa resposta foi como um golpe de espada; ela dividiu e de forma
alguma produziu uma união sentimental. Em poucas palavras, Deus e o
cosmos foram separados. A transcendência e a distinção da divindade que
alguns cristãos querem hoje extirpar do cristianismo era verdadeiramente a
única razão pela qual alguém queria ser um cristão. Era o ponto em questão
na resposta cristã ao pessimista infeliz e ao otimista ainda mais infeliz.
Como só me preocupo aqui com seu problema particular, irei indicar
brevemente essa grande sugestão metafísica. Todas as descrições sobre o
princípio criador ou fundamental das coisas devem ser metafóricas, pois
devem ser verbais. Assim, o panteísta é forçado a falar de Deus em todas as
coisas como se ele estivesse dentro de uma caixa; o evolucionista carrega,
em seu próprio nome, a idéia de algo que se desenrola como um carpete.
Todos os termos, religiosos e irreligiosos, estão abertos a essa acusação. A
única questão é saber se todos os termos são inúteis, ou se se pode, com
alguma frase, conotar uma idéia distinta sobre a origem das coisas. Acredito
que é sim possível, e o evolucionista também, pois, caso contrário, não
falaria sobre evolução. E a frase inaugural de todo o teísmo cristão era que
Deus é um criador, assim como um artista é um criador. Um poeta está tão
separado de seu poema que dele fala como algo pequeno que foi
“expelido”. Ao doá-lo ao mundo, ele também o jogou fora. Esse princípio
de que toda criação e procriação é uma separação mostra-se tão consistente
no interior do cosmos quanto o princípio evolucionista de que todo
crescimento é uma ramificação. Uma mulher perde uma criança no
momento do parto. Toda criação é separação. O nascimento é uma
separação tão solene quanto a morte.
O princípio filosófico primordial do cristianismo era que esse divórcio
no ato divino de criação (como o que separa o poeta de seu poema ou a mãe
do recém-nascido) era a descrição verdadeira do ato cuja energia absoluta
criou o mundo. De acordo com a maioria dos filósofos, Deus escravizou o
mundo ao criá-lo. De acordo com o cristianismo, ao criá-lo, Deus o tornou
livre. Mais do que um poema, Deus escreveu uma peça; uma peça que
planejou em sua perfeição, mas que foi necessariamente deixada a cargo
dos atores humanos e dos diretores de palco, que têm desde então feito uma
imensa bagunça. Discutirei a verdade desse teorema mais tarde. Aqui só
preciso apontar com quão impressionante suavidade ele ultrapassou o
dilema que discutimos neste capítulo. Por essa via é possível ser feliz e
revoltado sem se degradar às posições do otimista ou do pessimista; lutar
contra todas as forças da existência sem desertar do estandarte da
existência; estar em paz com o universo e em guerra com o mundo. São
Jorge ainda podia lutar contra o dragão, não importa quão grande fosse o
monstro cósmico, mesmo que fosse maior que as maiores metrópoles ou
que as montanhas eviternas. Se ele fosse tão grande quanto o mundo ainda
poderia ser destruído em nome do mundo. São Jorge não teve de considerar
qualquer probabilidade óbvia ou proporção de escala nas coisas, mas tão-
somente seu intento original e secreto. Ele pode brandir sua espada para o
dragão, mesmo se ele for tudo; mesmo que os céus vazios acima de sua
cabeça sejam o imenso arco de suas mandíbulas abertas.
E eis que se seguiu uma experiência impossível de ser descrita. Foi
como se estivesse flanando desde meu nascimento entre duas máquinas
enormes e ingovernáveis, de diferentes formas e sem conexão aparente — o
mundo e a tradição cristã. Tinha descoberto este furo no mundo: o fato de
que é preciso descobrir, de alguma forma, como amar o mundo sem nele
confiar; como é preciso amar o mundo sem ser mundano. Descobri essa
característica que se projeta da teologia cristã, como uma espécie de lança
rija: a insistência dogmática de que Deus é uma pessoa, e que tinha feito o
mundo separado d’Ele mesmo. A lança do dogma se encaixou
perfeitamente no furo do mundo — era o seu lugar designado — e eis que a
coisa estranha começou a acontecer. Assim que essas duas partes das duas
máquinas se conectaram, todas as outras partes, uma após a outra, se
encaixaram com uma exatidão misteriosa. Pude ouvir cada engrenagem se
encaixando como que em um clique de alívio. Ao ter acertado uma das
partes, todas as outras repetiram esse acerto, assim como os vários relógios
tocam ao meio-dia. Instinto após instinto foi correspondido por doutrina
após doutrina. Ou, para variar a metáfora, eu era como alguém que avança
em território inimigo para tomar uma fortaleza elevada. E, quando a
fortaleza caiu, todo o país se rendeu e se alistou solidamente ao meu redor.
Toda a terra foi iluminada, como nos campos abertos de minha infância.
Todas aquelas fantasias cegas da meninice que tentei traçar em meio à
escuridão no quarto capítulo se tornaram subitamente transparentes e sãs.
Estava certo quando senti que as rosas eram vermelhas por uma espécie de
escolha: era a escolha divina. Estava certo quando senti que praticamente
preferiria dizer que a grama era da cor errada do que dizer que sua cor era
uma necessidade: poderia muito bem ser outra. Meu sentimento de que a
felicidade pendia do louco fio de uma condição significava algo no fim das
contas: toda a doutrina da queda. Até mesmo aquelas noções de uma
monstruosidade informe e turva que não pude descrever, muito menos
defender, se encaixaram em seus lugares como colossais cariátides18 do
credo. A fantasia de que o cosmos não era vasto e vazio, mas pequeno e
aconchegante, tinha um significado pleno agora, pois toda obra de arte deve
ser pequena aos olhos do artista; para Deus as estrelas podem ser pequenas
e próximas, como os diamantes. E meu instinto assombrado de que o bem
não era simplesmente uma ferramenta a ser utilizada, mas uma relíquia a ser
guardada, como os bens do navio de Crusoé — até isso tinha sido o
sussurro selvagem de algo originalmente sábio, pois, de acordo com o
cristianismo, somos de fato os sobreviventes de um naufrágio, a tripulação
de um navio dourado que se afundou antes do começo do mundo.
Mas o mais importante é que toda a razão para o otimismo foi
completamente invertida. E no instante em que se realizou a inversão senti-
a como a simplicidade abrupta com a qual um osso é colocado de volta em
seu lugar. Muitas vezes dissera que era um otimista, para evitar a blasfêmia
evidente do pessimismo. Mas todo o otimismo de nossa época era falso e
desencorajador por sempre tentar provar que nos encaixamos no mundo. O
otimismo cristão se baseia no fato de que não nos encaixamos no mundo.
Tentei ser feliz dizendo a mim mesmo que o homem é um animal como
qualquer outro a buscar sua carne nas mãos de Deus. Mas agora estava
realmente feliz, pois aprendera que o homem é uma monstruosidade. Estava
certo em sentir todas as coisas como estranhas, pois eu era ao mesmo tempo
pior e melhor do que todas as coisas. O prazer do otimista era prosaico, pois
se sustentava na naturalidade de tudo; o prazer cristão era poético, pois se
sustentava na anormalidade de todas as coisas sob a luz do sobrenatural. O
filósofo moderno dissera-me repetidamente que eu estava no lugar certo, e
ainda assim sentia-me deprimido mesmo quando concordava. Mas ouvi que
estava no lugar errado, e minha alma cantou alegremente, como um pássaro
na primavera. O conhecimento desvelou e iluminou quartos esquecidos na
escura casa de minha infância. Agora sabia por que a grama sempre me
parecera tão esquisita quanto a barba verde de um gigante, e por que podia
sentir saudades de casa dentro de minha casa.

1 Pimlico é um distrito de Londres, na Inglaterra, que fica situado no borough conhecido como
Cidade de Westminster. Ao norte encontra-se a movimentada Estação Victoria e, ao sul, o Rio
Tâmisa.
2 A expressão Guerra dos Bôeres normalmente se refere à Segunda Guerra dos Bôeres (1899–1902),
que foi uma luta entre o Império Britânico e os dois estados bôeres (de colonização holandesa) da
África do Sul. A guerra terminou com a submissão dos bôeres e seu apoio ao novo sistema político
defendido pela Grã-Bretanha.
3 Distrito do norte de Londres.
4 Thomas Carlyle (1795–1881) foi um filósofo, escritor satírico, ensaísta, tradutor, historiador,
matemático e professor escocês. Defendia a tese de que a história é feita pelos grandes homens, pelos
“heróis”.
5 A conquista normanda da Inglaterra foi uma invasão do século xi em que um exército de
normandos, bretões e franceses liderados pelo Duque William ii da Normandia conquistou o trono
inglês para William.
6 Referência à Guerra Franco-Prussiana de 1870, que terminou com a vitória das forças prussianas e
a fundação do Império Germânico com a anexação da maior parte da Alsácia e alguns trechos da
Lorena ao território alemão.
7 William Makepeace Thackeray (1811–1863) foi um romancista britânico, famoso por sua obra A
fogueira das vaidades, um retrato panorâmico da sociedade inglesa.
8 Arthur Pendennis é o herói principal da obra A história de Pendennis: sua sorte e azar, seus amigos
e seu maior inimigo de Thackeray. Ele parte do campo rumo a Londres para vencer na vida e na
sociedade, oferecendo durante a jornada um panorama satírico da sociedade aristocrática da época.
9 Matthew Arnold (1822–1888) foi um poeta e crítico cultural inglês que trabalhou como inspetor de
escolas. Tem sido classificado como um escritor do tipo “sábio”, que instrui o leitor sobre as questões
sociais contemporâneas.
10 Henrik Johan Ibsen (1828–1906) foi um grande dramaturgo, diretor de teatro e poeta norueguês. É
considerado o pai do realismo e do modernismo no teatro e o segundo dramaturgo mais representado
no mundo (o primeiro é Shakespeare). Gostava de chocar os costumes familiares e a moral burguesa.
Influenciou George Bernard Shaw, Oscar Wilde, Arthur Miller, James Joyce, dentre muitos outros.
11 William Archer (1856–1924) foi um crítico literário e escritor escocês, responsável pela
introdução e tradução de Ibsen para o público inglês.
12 Os Quakers são membros de um grupo cristão histórico que tem como principal objetivo
experimentar a pequena luz interior ou o Deus que está em todos. Outra característica central do
grupo é o pacifismo radical.
13 O estoicismo foi uma escola de filosofia helenística que floresceu até o século iii d.C. Pregava a
resignação e aceitação do momento presente como fruto de um determinismo universal. A liberdade
humana consistiria nessa atitude de apatia distanciada e calma diante de tamanha inevitabilidade.
14 Marco Aurélio (121–180 d.C.) foi imperador romano de 161 a 180, famoso também por sua obra
Meditações, baseada em sua prática do estoicismo. Sua queda em 180 é vista como o fim da Pax
Romana e o começo da instabilidade que levaria à eventual queda o Império Romano do Ocidente.
15 O panteísmo é a crença de que a totalidade da realidade coincide com a divindade. Não há então
espaço para um deus pessoal ou antropomórfico.
16 Pã era o deus grego da natureza selvagem, dos rebanhos, das montanhas e da música rústica, e
companheiro das ninfas. Tinha a forma de um fauno ou de um sátiro e habitava a Arcádia. Foi uma
figura significante no movimento romântico na Europa ocidental.
17 Juliano, o Apóstata (331/332–363), foi imperador romano de 361 a 363. Era membro da dinastia
de Constantino. Inicialmente um cristão, acaba aderindo a um paganismo neoplatônico e busca
expurgar toda a burocracia superior de elementos cristãos, com o objetivo de reviver a religião
tradicional de Roma. Seu anticristianismo o levou a ser lembrado pela Igreja pelo título de o
Apóstata.
18 Uma cariátide é uma figura feminina esculpida que serve de suporte na arquitetura no lugar de
uma coluna ou de um pilar de sustentação. As cariátides mais famosas servem de colunas no templo
de Erecteion, construído na Acrópole de Atenas em v a.C.
CAPÍTULO 5
Os paradoxos do cristianismo
O VERDADEIRO PROBLEMA DESTE MUNDO NÃO CONSISTE EM sua
irracionalidade ou racionalidade. O problema mais comum é que ele é
quase racional, mas nem tanto. A vida não é ilógica, mas é uma armadilha
para os lógicos. Parece um pouco mais matemática e regular do que
realmente é; sua exatidão é óbvia, mas sua inexatidão é oculta; sua
exuberância repousa à espreita. Darei um exemplo grosseiro do que quero
dizer. Suponham que algum matemático, habitante da lua, buscasse
entender o corpo humano; imediatamente veria que o essencial está em seu
aspecto duplicado. Um homem é dois homens, o da direita sendo
exatamente simétrico ao da esquerda. Depois de notar que há um braço na
direita e outro na esquerda, uma perna na direita e outra na esquerda, ele
poderia continuar e ainda assim encontrar em cada lado o mesmo número
de dedos dos pés e das mãos, olhos, orelhas, narinas e até mesmo lóbulos
cerebrais gêmeos. Finalmente ele aceitaria isso como uma lei; e, então,
deduziria, depois de encontrar um coração em um lado, que encontraria um
coração no outro lado. E no momento triunfante em que se considerasse
dono da verdade é que mais erraria.
Esse silencioso desvio milimétrico da exatidão é o elemento misterioso
em todas as coisas. Parece uma espécie de traição secreta do universo. Uma
maçã ou uma laranja é suficientemente redonda para ser chamada de
redonda, porém, não é redonda afinal de contas. A própria Terra tem a
forma de uma laranja para induzir algum modesto astrônomo a chamá-la de
globo. Um fio de grama recebe o seu nome de uma analogia com o fio de
uma espada, pois termina em uma ponta; mas na verdade não termina. Em
tudo há esse elemento de quietude, e do incalculável que escapa aos
racionalistas, mas somente no último momento. Da enorme curvatura da
Terra poderia se inferir facilmente que cada centímetro seu seria curvo. A
existência de um coração em cada lado é tão racional quanto a existência de
dois hemisférios cerebrais. No entanto, os cientistas ainda estão
organizando expedições para encontrar o Pólo Norte,1 já que tanto apreciam
uma planície erma. Também continuam a organizar expedições para
descobrir o coração de um homem; e normalmente, quando tentam
encontrá-lo, chegam exatamente ao lado errado.
A intuição ou inspiração real é melhor testada em suas previsões sobre
as malformações ocultas ou surpreendentes. Se o matemático lunar visse
dois braços e duas orelhas, poderia deduzir os dois ombros e os dois
hemisférios cerebrais. Mas se adivinhasse o lugar correto do coração
humano, então seria mais do que um matemático. E é exatamente isso que
tenho defendido e proposto sobre o cristianismo: não simplesmente deduz
verdades lógicas, mas quando subitamente se torna ilógico, eis que
descobre uma verdade ilógica. Não somente está certo sobre as coisas, mas
se desvia, por assim dizer, exatamente onde as coisas também se desviam.
Seu plano se encaixa nas irregularidades secretas, e espera o inesperado. É
simples sobre a simples verdade; mas é teimoso sobre a verdade sutil.
Admite que o homem tem duas mãos, mas não admite, apesar de todos os
modernistas o lamentarem, a óbvia dedução de que tem dois corações. Meu
único objetivo neste capítulo é apontar isso; mostrar que sempre quando
sentimos que há algo estranho na teologia cristã, iremos geralmente
descobrir que há algo estranho na Verdade.
Aludi a uma frase descompromissada que dizia que determinado credo
não pode ser digno de fé em nossa era. Mas é claro que qualquer coisa pode
ser digna de fé em qualquer época. De maneira estranha, há realmente um
sentido no qual um credo, se é digno de alguma fé, pode sê-lo de forma
ainda mais fixa em uma sociedade complexa do que em uma simples. Se
um homem descobre que o cristianismo é verdadeiro em Birmingham,2
realmente tem razões mais claras para a fé do que se tivesse descoberto sua
verdade na Mércia.3 Pois quanto mais complicada é uma coincidência,
menos parece ser uma coincidência. Se flocos de neve caem sob a forma,
digamos, de um coração de Midlothian,4 pode se tratar de um acidente. Mas
se os flocos de neve caem no exato formato do labirinto de Hampton
Court,5 penso que podemos gritar “milagre!”. É exatamente como um
milagre deste tipo que tenho apreciado a filosofia do cristianismo. A
complexidade do nosso mundo moderno prova a verdade do credo mais
perfeitamente do que os problemas simples dos tempos da fé. Foi em
Notting Hill6 e Battersea7 que comecei a perceber que o cristianismo era
verdadeiro. É por isso que a fé tem aquela elaboração de doutrinas e
detalhes que tanto perturba aqueles que admiram o cristianismo sem nele
acreditar. Pois quando um homem passa a acreditar no credo, torna-se
orgulhoso de sua complexidade, como os cientistas se orgulham da
complexidade da ciência por mostrar como ela é rica em descobertas. Se o
credo está certo em última instância, é um elogio dizer que está certo de
forma elaborada. Um graveto e uma pedra podem se encaixar num buraco
por acidente, mas uma chave e uma fechadura são ambas complexas. E se
uma chave se encaixa em uma fechadura, sabemos que é a chave certa.
Mas essa precisão aqui implicada em nosso objeto torna muito difícil
fazer o que agora preciso fazer, isto é, descrever a acumulação da verdade.
É muito difícil para um homem defender algo de que está inteiramente
convencido. É comparativamente fácil quando ele só está parcialmente
convencido, por ter encontrado provas esparsas de uma coisa, sendo então
capaz de explicá-las para uma platéia. Mas um homem não está realmente
convencido de uma teoria filosófica quando descobre algo que a prova. Só
se convence realmente quando descobre que tudo a prova. E quanto mais
razões convergentes descobre apontando essa convicção, mais perdido
ficará quando lhe pedirem para resumir tudo. Dessa forma, se se
perguntasse subitamente a um homem de inteligência mediana “por que
você prefere a civilização à selvageria?”, ele olharia violentamente objeto
por objeto, e só seria capaz de murmurar: “Bem, há aquela estante... e o
carvão nos fogões... e os pianos... e os policiais”. Toda a melhor defesa da
civilização está no próprio fato de que esta defesa é complexa, pois a
civilização conquistou muitas coisas. Mas exatamente essa multiplicidade
de provas, que deveria tornar a resposta avassaladora, torna-a impossível.
Paira, portanto, sobre toda convicção plena, uma imensa espécie de
impotência. A fé é tão grandiosa que o tempo necessário para a colocar em
ação é longo. E essa hesitação emerge principalmente, e estranhamente, de
uma indiferença quanto ao ponto de partida. Todos os caminhos levam a
Roma; e essa é uma das razões por que muitos nunca lá chegam. Confesso
que nesta minha defesa da convicção cristã poderia ter começado o
argumento com qualquer coisa, até mesmo com um nabo ou um táxi. Mas
se desejo ser cuidadoso com a clareza de minha exposição, será, penso eu,
mais sábio continuar a argumentação presente a partir do último capítulo,
que se preocupou em trazer à tona a primeira dessas coincidências míticas,
ou melhor, dessas ratificações místicas. Tudo que ouvira até então de
teologia cristã alienara-me dela. Era um pagão aos doze, e um agnóstico
completo aos dezesseis; não posso compreender alguém que tenha superado
os dezessete sem ter feito esse questionamento tão simples. Mantive, sem
dúvida, uma reverência nebulosa por uma divindade cósmica e um grande
interesse histórico pelo fundador do cristianismo. Mas certamente o
considerava como um homem, apesar de pensar que, mesmo naquele
momento, Ele tinha a vantagem sobre alguns de seus críticos modernos. Li
a literatura cética e científica de meu tempo — ao menos tudo que pude
encontrar disponível em inglês; e nada mais li, isto é, não li sobre qualquer
outro tipo de filosofia. Os gibis que também li seguiam realmente uma
tradição saudável e heróica do cristianismo; mas naquele tempo eu não
notava. Não cheguei a ler sequer uma linha de apologética cristã. Hoje
busco ler o mínimo possível dela. Foram Huxley, Herbert Spencer e
Bradlaugh8 que me trouxeram de volta à teologia ortodoxa. Semearam em
minha mente as primeiras dúvidas violentas sobre a dúvida. Nossas avós
estavam certas quando diziam que Tom Paine9 e os livres-pensadores
inquietavam a mente. Sim, eles inquietaram a minha terrivelmente. O
racionalista levou-me a questionar se a razão tinha alguma utilidade; e
quando terminei Herbert Spencer cheguei (pela primeira vez) a duvidar da
validade do evolucionismo. Quando terminei a última das preleções ateístas
do Coronel Ingersoll10 um terrível pensamento cruzou minha mente:
“Quase me persuadistes a ser cristão”. E já o era de uma forma desesperada.
Essa estranha capacidade dos grandes agnósticos em despertar dúvidas
mais profundas do que as suas pode ser ilustrada de muitas maneiras.
Escolho somente uma. À medida que lia e relia todos os relatos cristãos e
não-cristãos sobre a fé, de Huxley a Bradlaugh, uma impressão lenta e
terrível cresceu gradualmente, mas de forma vívida, em minha mente — a
impressão de que o cristianismo deve ser algo extraordinário. Pois, como
compreendi, não somente tinha os vícios mais flamejantes; ele
aparentemente detinha um talento místico para combinar vícios que
pareciam contraditórios. Era atacado por todos os lados e por todas as
razões contraditórias. Assim que um racionalista demonstrava que ele
estava demasiado orientado para o oriente, um outro demonstrava com igual
clareza que estava demasiado orientado para o ocidente. Assim que minha
indignação arrefeceu em sua obtusidade angular e agressiva, fui novamente
convocado a observar e condenar sua curvatura sensual e enervante. Se um
leitor ainda não entendeu meu ponto, darei os exemplos que aleatoriamente
lembrar sobre essa autocontradição no ataque cético. Serão quatro ou cinco;
há mais de cinqüenta.
Fiquei, por exemplo, muito comovido pelo ataque eloqüente ao
cristianismo como portador de um desumano desespero; pois pensava — e
ainda penso — que o pessimismo sincero é o pecado imperdoável. O
pessimismo insincero é uma proeza social, mais agradável do que qualquer
outra coisa; e felizmente quase todo o pessimismo é insincero. Mas se o
cristianismo fosse, como diziam, algo puramente pessimista e oposto à vida,
então estaria disposto a explodir a Catedral de Saint Paul. Mas eis a coisa
extraordinária. Provaram-me no capítulo i — para minha inteira satisfação
— que o cristianismo era demasiado pessimista; e então, no capítulo ii,
começaram a me provar que era demasiado otimista. Uma das acusações
contra o cristianismo era de que impedia o homem, pelo uso de mórbidos
prantos e terrores, de buscar a alegria e a liberdade no seio da natureza. Mas
uma outra acusação dizia que ele confortava o homem com uma
providência fictícia, e os colocava em um berçário cor-de-rosa. Um grande
agnóstico questionou por que a natureza não era bela o suficiente, e por que
era tão difícil ser livre. Outro grande agnóstico objetou que o otimismo
cristão, “a túnica de faz-de-conta tecida por mãos piedosas”, nos ocultava o
fato de que a natureza era feia, e de que era impossível ser livre. Um
racionalista mal terminara de chamar o cristianismo de pesadelo antes que
outro começasse a chamá-lo de paraíso dos tolos. Isso me perturbou; as
acusações pareciam inconsistentes. O cristianismo não poderia ser ao
mesmo tempo uma máscara negra em um mundo branco, e uma máscara
branca em um mundo negro. O estado do cristão no mundo não poderia ser
ao mesmo tempo confortável a ponto de torná-lo um covarde, e
desconfortável a ponto de só um tolo ser capaz de suportá-lo. Se a visão
humana era por ele falsificada, deveria ser de uma forma ou de outra; não
poderia usar as lentes verdes e as rosas ao mesmo tempo. Eu tinha na ponta
da língua, cheio de uma terrível alegria, como todos os jovens daquela
época, as gozações que Swinburne11 lançou contra a tristeza do credo: “Vos
sóis vencedor, ó pálido Galileu; o mundo envelheceu com teu sopro”.
Mas quando li o relato do mesmo poeta sobre o paganismo (como em
Atalanta), captei que o mundo era, se isso é possível, mais cinzento antes
do Galileu espalhar seu sopro. O poeta defendia, de fato, e de forma
abstrata, que a vida era negra como o breu. E ainda assim, sabe-se lá como,
o cristianismo a obscureceu ainda mais. O mesmo homem que denunciava o
cristianismo pelo pessimismo era um pessimista. Algo estava errado. E por
um instante selvagem cruzou a minha mente o pensamento de que, talvez,
aqueles que, em seus próprios relatos, afirmam não possuir nem a religião
nem a felicidade... poderiam não ser os melhores juízes da relação entre
religião e felicidade.
Deve-se compreender que não concluí apressadamente que as acusações
eram falsas ou os acusadores tolos. Simplesmente deduzi que o cristianismo
deveria ser ainda mais esquisito e malvado do que diziam. É possível que
ele contenha esses dois vícios opostos; mas quão estranha deve ser essa
religião para que isso seja verdadeiro. Um homem pode ser gordo em um
lugar e magro no outro; mas certamente ele teria uma forma bem esquisita.
Neste ponto, meus pensamentos revolviam somente ao redor da estranha
forma da religião cristã; não aleguei que a mente racionalista tinha uma
forma estranha.
Eis um outro exemplo. Senti que um forte ponto contra o cristianismo
estava na acusação de que há algo tímido, monacal e afeminado em tudo
que recebe o nome de “cristão”, especialmente em sua atitude quanto à
resistência e a guerra. Os grandes céticos do século xix eram
majoritariamente viris. Bradlaugh, de forma expansiva, e Huxley, de forma
reticente, eram homens decididos. Em comparação, parecia realmente
existir verossimilhança na idéia de que havia algo fraco e excessivamente
paciente nos conselhos cristãos. O paradoxo evangélico sobre a outra face,
o fato de que os padres nunca lutavam, uma centena de coisas, tornavam
plausível a acusação de que o cristianismo era uma tentativa de tornar o
homem excessivamente parecido com uma ovelha. Li e acreditei nisso, e se
não tivesse lido nada diferente, continuaria acreditando. Mas li algo muito
diferente. Passei à próxima página do manual agnóstico, e o meu cérebro
virou de cabeça para baixo. Agora descobri que deveria odiar o cristianismo
não por não lutar, mas por lutar demais. A cristandade parecia ser a mãe de
todas as guerras. O cristianismo banhara o mundo com o sangue humano.
Tinha me enfurecido completamente com o cristão por ele nunca se
enfurecer; agora me era dito que deveria me enfurecer porque sua fúria
tinha manchado a terra e a fumaça de suas fogueiras chegado até o sol. As
mesmas pessoas que criticavam o cristianismo pela humildade e
passividade dos monastérios eram os mesmos que o criticavam pela
violência e coragem das Cruzadas. Tanto a paz de Eduardo, o Confessor,12
quanto a guerra de Ricardo13 Coração de Leão eram culpa do bom e velho
cristianismo. Os Quakers, diziam-nos, eram os únicos cristãos
característicos; no entanto, os massacres de Cromwell14 e Alba15 eram
crimes caracteristicamente cristãos. O que tudo isso poderia significar? O
que era esse cristianismo que sempre proibia as guerras e sempre as
produzia? Qual poderia ser a natureza de uma coisa que é anatematizada
primeiro por não lutar, e depois por sempre lutar? Em que mundo
enigmático nasceram essa fúria e essa humildade monstruosas? A forma do
cristianismo se tornava mais estranha a cada instante.
Apresento um terceiro caso, o mais estranho de todos, pois envolve a
única objeção real à fé: a religião cristã é somente uma religião. O mundo é
enorme, cheio dos mais diferentes tipos humanos. O cristianismo — é
razoável dizê-lo — está confinado a um povo; começou na Palestina e
praticamente parou na Europa. Impressionei-me com esse argumento em
minha juventude, e fui muito atraído pela doutrina freqüentemente pregada
nas Sociedades Éticas16 — a doutrina de que há uma grande igreja
inconsciente de toda a humanidade fundada sobre a onipresença da
consciência humana. Os credos, diziam, dividem os homens; mas a moral
os une. A alma poderia buscar as terras e épocas mais remotas e estranhas, e
ainda assim encontrar o senso comum ético essencial. Poderia encontrar
Confúcio sob as árvores orientais, e ele estaria a escrever “não roubarás”.
Poderia decifrar os obscuros hieróglifos do mais primitivo deserto, e o
sentido quando decifrado diria “os garotos devem dizer a verdade”.
Acreditei nessa doutrina da irmandade de todos os homens em posse de um
senso moral, e ainda nela creio — além de outras coisas. E fiquei
completamente irritado com o cristianismo por sugerir, como supus, que
eras e impérios inteiros tinham escapado inteiramente da luz da justiça e da
razão. Mas então descobri algo surpreendente. As mesmas pessoas que
diziam que a humanidade era uma única igreja de Platão a Emerson17 eram
exatamente aquelas que diziam que a moralidade tinha mudado totalmente,
que o que era certo em uma época se tornava errado em outra. Se clamava,
por exemplo, por um altar, era-me dito que não precisávamos de um, pois
os homens, nossos irmãos, davam-nos oráculos claros e um só credo em
seus costumes e ideais universais. Mas se apontasse calmamente que um
dos costumes universais dos homens era ter um altar, então meus
professores agnósticos abriam o jogo e diziam que os homens sempre
estiveram nas trevas e nas superstições dos selvagens. Descobri que sua
zombaria diária contra o cristianismo consistia em dizer que ele era a luz de
um povo e que deixara todos os outros nas trevas. Mas também descobri
que se vangloriavam especialmente de que a ciência e o progresso eram a
descoberta de um só povo, e que todos os outros pereceram nas trevas. Seu
principal insulto ao cristianismo era na verdade seu principal elogio a si
mesmos, e parecia haver uma estranha injustiça nessa relativa insistência
sobre as duas coisas. Quando vemos um pagão ou um agnóstico, devemos
nos lembrar que todos os homens têm uma religião; quando vemos um
místico ou espiritualista, devemos somente apontar as religiões absurdas
que o homem já teve. Poderíamos confiar na ética de Epicuro,18 pois a ética
nunca mudou. Mas não devemos confiar na ética de Bossuet,19 pois a ética
mudou. Mudou em duzentos anos, mas não em dois mil.
Isso começou a ser alarmante. Parecia não tanto que o cristianismo era
mau o suficiente para incluir quaisquer vícios, mas sim que qualquer
porrete era bom o suficiente para atacar o cristianismo. Novamente: o que
poderia ser essa coisa surpreendente que as pessoas estavam tão ansiosas
para contradizer, a ponto de não se preocuparem com sua autocontradição?
Vi a mesma coisa por todos os lados. Não posso conceder mais espaço para
uma discussão em detalhe; mas, a fim de que não suponham que escolhi
injustamente três casos acidentais, irei passar brevemente por mais casos.
Alguns céticos escreveram, por exemplo, que o grande crime do
cristianismo fora seu ataque à família; tinha arrastado a mulher para a
solidão e a contemplação do claustro, longe de seus lares e suas crianças.
Mas então, outros céticos, um pouco mais avançados, disseram que o
grande crime do cristianismo foi o de nos impingir a família e o casamento;
condenar a mulher à labuta de seus lares e suas crianças, proibindo-lhes a
solidão e a contemplação. A acusação foi realmente invertida. Novamente,
algumas frases das Epístolas ou da cerimônia do casamento foram
consideradas pelos anticristãos como um desprezo do intelecto feminino;
mas uma de suas maiores gozações contra a Igreja continental era de que
“somente mulheres” a freqüentavam. Mais uma vez: o cristianismo foi
criticado por seus hábitos comedidos e simplórios; por seus farrapos e
ervilhas secas. Mas no próximo minuto era criticado por sua pompa e
ritualismo; seus santuários de mármore e mantos de ouro. Era ultrajado por
ser simples demais e por ser colorido demais; também fora acusado de
limitar demais a sexualidade, até que Bradlaugh, o malthusiano, descobriu
que não a limitava de fato; era freqüentemente acusado na mesma diatribe
de buscar a respeitabilidade afetada e a extravagância religiosa. No interior
do mesmo panfleto ateísta descobri a fé sendo atacada por sua desunião,
“cada um pensa uma coisa”, e também por sua união, “é a diferença de
opinião que evita que o mundo vá para as cucuias”. Num mesmo diálogo
um livre-pensador, um amigo meu, culpou o cristianismo por desprezar os
judeus e depois se desprezou por ser judeu.
Queria ser justo naquele momento, e quero ser justo agora; por isso não
concluí que o ataque ao cristianismo estava de todo errado. Somente
cheguei à conclusão de que se o cristianismo estava errado, estava
realmente muito errado. Semelhantes horrores opostos poderiam se
combinar em uma só coisa, mas essa coisa deveria ser estranha e solitária.
Há homens que são avarentos e também perdulários, mas são raros; há
homens que são sensuais e também ascetas, mas são raros. Mas se essa
massa de loucas contradições realmente existisse, pacifista e sanguinolenta,
simplória e excessivamente bela, austera e luxuriosa, inimiga das mulheres
e seu tolo refúgio, pessimista solene e otimista insensata, se esse mal
existisse, teria de possuir algo supremo e único. Pois não encontrei em
meus professores racionalistas nenhuma explicação de tão excepcional
corrupção. O cristianismo, em teoria, era sob seus olhos um dos mitos e
erros comuns dos mortais. Eles não me deram qualquer chave para essa
maldade antinatural e deturpada. Semelhante paradoxo do mal se erguia à
estatura do sobrenatural. É, de fato, quase tão metafísico quanto a
infalibilidade papal. Uma instituição histórica que nunca acertou é quase tão
miraculosa quanto uma que não pode errar. A única explicação que veio
imediatamente à minha mente era que o cristianismo não veio do céu, mas
do inferno. Se Jesus de Nazaré não era o Cristo, Ele deve ter sido o
Anticristo.
E então, em um momento calmo, um estranho pensamento atingiu-me
como um raio. Subitamente emergiu em minha mente uma outra explicação.
Suponham que ouvimos sobre um homem desconhecido da boca de muitos
homens. Suponham que ficássemos intrigados em ouvir que alguns homens
disseram que ele era muito alto e outros que era muito baixo; alguns
criticavam-no por ser gordo, outros por ser magro; alguns o consideravam
negro demais, e outros branco demais. Uma forma bem estranha (como já
admitido) poderia ser uma explicação. Mas há outra. Ele pode ter a forma
correta. Os gigantes podem considerá-lo baixo; os baixinhos podem
percebê-lo como alto. Os esbeltos que acabaram se encorpando podem
achar que ele está um pouco seco demais; os robustos que emagreceram
podem considerar que ele se expandiu além dos rígidos limites da
elegância. Talvez os suecos, que tem os cabelos pálidos como a neve, o
chamem de negro, enquanto os negros o considerem distintamente loiro.
Talvez, em suma, essa coisa extraordinária é realmente a coisa mais
comum, ou ao menos o normal, o centro. Talvez, afinal, o cristianismo seja
são e todos os seus críticos loucos — das mais variadas formas. Testei essa
idéia perguntando-me se havia algo de mórbido nos acusadores que poderia
explicar a acusação. Surpreendi-me ao descobrir que a chave se encaixava
na fechadura. Por exemplo, era certamente estranho que o mundo moderno
acusasse o cristianismo ao mesmo tempo por sua austeridade material e sua
pompa artística. Mas também era estranho, muito estranho, que o próprio
mundo moderno combinasse a extrema luxúria material com a extrema
ausência da pompa artística. O homem moderno acreditava que as vestes de
Becket20 eram ricas demais e suas refeições pobres demais. Mas o homem
moderno era realmente excepcional em toda a história; nenhum homem do
passado comeu jantares tão elaborados com roupas tão feias. O homem
moderno considerava a Igreja simples demais exatamente onde a vida
moderna era complexa demais; considerava a Igreja deslumbrante demais
exatamente onde a vida moderna era pobre demais. O homem que
desprezava os jejuns e banquetes simples se enlouquecia por um couvert. O
homem que desprezava as vestes luxuosas usava uma estapafúrdia calça
comprida. E certamente, se havia alguma insanidade em tudo isso, ela
estava nas calças, e não simplesmente nos trajes cerimoniais. Se se tratava
de insanidade, ela estava nos banquetes extravagantes, não no pão e no
vinho.
Investiguei todos os casos, e descobri que a chave se encaixava. O fato
de que Swinburne se irritava com a tristeza dos cristãos e, no entanto, se
irritava ainda mais com sua alegria, poderia ser facilmente explicado. Não
era mais uma miríade de doenças no cristianismo, mas sim em Swinburne.
As restrições cristãs o entristeciam simplesmente porque era mais hedonista
do que um homem saudável deveria ser. A fé dos cristãos o enfurecia
porque era mais pessimista do que um homem saudável deve ser. Da mesma
forma, os malthusianos atacaram instintivamente o cristianismo; não porque
há algo de especialmente antimalthusiano no cristianismo, mas porque há
algo um tanto desumano no malthusianismo.
Entretanto, senti que não poderia ser inteiramente verdadeiro que o
cristianismo era simplesmente moderado e ficava em cima do muro. Havia
realmente nele um elemento enfático, e até mesmo um frenesi que
justificava os secularistas em sua crítica superficial. Ele pode ser sábio, e
nisso acreditei cada vez mais, mas não era uma sabedoria simplesmente
mundana; não era meramente comedido e respeitável. Seus ferozes
cruzados e humildes santos podiam se equilibrar mutuamente; ainda assim,
os cruzados eram ferocíssimos e os santos humilíssimos, humildes além dos
limites da decência. Foi precisamente neste ponto da especulação que
lembrei de meus pensamentos sobre o mártir e o suicida. Neles havia essa
combinação de duas posições quase insanas que, no entanto, resultava na
sanidade. Chegara agora a outra contradição desse tipo; já tinha descoberto
a verdade da primeira. Era exatamente o tipo de paradoxo onde os céticos
apontavam o erro do credo; e foi precisamente nele que descobri que o
credo estava certo. Não importa quão loucamente os cristãos pudessem
amar o mártir ou odiar o suicida, eles nunca sentiram essas paixões tão
loucamente quanto as senti muito antes de sonhar com o cristianismo.
Começou então a parte mais interessante e difícil do processo, e passei a
traçar obscuramente essa idéia por todos os grandiosos pensamentos de
nossa teologia. A idéia era a que delineei a respeito do otimista e do
pessimista: queremos não uma amálgama ou uma conciliação, mas ambos
os lados no auge de sua energia; um amor e uma ira flamejantes. Aqui só a
traçarei em sua conexão com a ética. Mas não preciso lembrar ao leitor que
essa idéia da combinação é central na teologia ortodoxa. Pois a teologia
ortodoxa insistiu especialmente que o Cristo não era um ser separado de
Deus e do homem, como um elfo, nem uma quimera, como um centauro,
mas ambos ao mesmo tempo, completamente Deus e homem. Agora
descreverei essa noção como a descobri.
Todos os homens sãos podem ver que a sanidade é um tipo de
equilíbrio; que é possível ser louco e ser guloso, ou ser louco e passar fome.
Alguns homens modernos de fato surgiram com versões vagas do progresso
e da evolução que buscam destruir o meson,21 o equilíbrio de Aristóteles.
Parecem sugerir que devemos ficar famintos progressivamente, ou comer
cada vez mais no café-da-manhã a cada dia. Mas o grande truísmo do meson
sobrevive para todos os homens que pensam, e esses modernos só acabaram
com seu próprio equilíbrio. Mas dado que todos precisamos manter um
equilíbrio, o verdadeiro interesse surge com a questão de como manter esse
equilíbrio. O paganismo tentou resolver esse problema: e creio que o
cristianismo o resolveu de uma forma bem estranha.
O paganismo declarou que a virtude era um equilíbrio; o cristianismo
declarou que era um conflito: a colisão de duas paixões aparentemente
opostas. É claro que não eram realmente inconsistentes; mas eram difíceis
de se sustentar simultaneamente. Sigamos por um momento a pista do
mártir e do suicida; tomemos o caso da coragem. Nenhuma qualidade
confundiu e enredou tanto as definições dos sábios puramente racionais. A
coragem é quase uma contradição em termos. Significa um forte desejo pela
vida que toma a forma de uma disposição para morrer. “Aquele que perder
a sua vida a encontrará” não é misticismo para santos e heróis. É um
conselho cotidiano para marinheiros e montanhistas. Poderia ser impresso
em um guia dos Alpes ou em um livro de alistamento para a Marinha. Esse
paradoxo é todo o princípio da coragem e até mesmo da coragem brutal e
demasiado terrena. Um homem perdido em meio ao mar revolto pode salvar
sua vida arriscando-a num abismo.
Ele só pode fugir da morte ficando a um passo dela. Um soldado
cercado de inimigos, se deseja escapar, precisa combinar um forte desejo
pela vida com uma estranha indiferença diante da morte. Não deve
simplesmente se agarrar à vida, pois então será um covarde e não escapará.
Não deve simplesmente esperar a morte, pois então será um suicida e não
escapará. Deve buscar sua vida com um espírito de furiosa indiferença;
deve desejar a vida como a água, porém beber a morte como o vinho.
Nenhum filósofo, imagino, expressou esse enigma romântico com a lucidez
apropriada, e eu certamente não o consegui. Mas o cristianismo foi além:
demarcou os seus limites nas terríveis sepulturas do suicida e do herói,
mostrando a distância entre aquele que morre pela vida e aquele que morre
simplesmente pela morte. E tem se erguido desde então, acima das lanças
européias, o estandarte de um misterioso cavalheirismo: a coragem cristã,
que é um desprezo pela morte, e não a coragem chinesa, que é um desprezo
pela vida.
E então comecei a descobrir que essa paixão dupla era a onipresente
chave cristã para a ética. Por todos os lados o credo produziu a moderação a
partir do choque de duas emoções impetuosas. Tomem, por exemplo, a
questão da modéstia, do equilíbrio entre o puro orgulho e a pura prostração.
O pagão médio, como o agnóstico médio, simplesmente diria estar contente
consigo mesmo, mas não insolentemente satisfeito; há muitos melhores ou
piores do que ele, seus louros são limitados, mas ele certamente os
conquistará. Em suma, andaria com a cabeça nas nuvens, mas não
necessariamente com o nariz empinado. Essa é uma posição viril e racional,
mas aberta à objeção que mencionamos contra um meio-termo entre
otimismo e pessimismo — a resignação de Matthew Arnold. Por ser uma
mistura das duas coisas também é uma diluição; nenhuma está presente em
toda a sua força ou contribui com todo o seu colorido. Esse orgulho
conveniente não eleva o coração como o soar das trombetas; não é possível
se ornamentar com o escarlate e o ouro por isso. Por outro lado, essa morna
modéstia racionalista não varre a alma com o fogo e a torna límpida como o
cristal; não torna o homem uma criancinha que pode se sentar aos pés da
relva, como o faz uma humildade rigorosa e intensa. Não faz com que erga
o olhar e veja maravilhas; pois Alice deve diminuir para se tornar Alice no
País das Maravilhas. Perde-se assim tanto a poesia do verdadeiro orgulho
quanto a poesia da verdadeira humildade. O cristianismo buscou pelo
mesmo estranho expediente salvar ambas. Separou as duas idéias e as
exacerbou. Por um lado, o homem deve ser mais soberbo do que jamais foi;
por outro, deve ser mais humilde do que jamais foi. Na medida em que sou
homem, sou a maior das criaturas. E na medida em que sou um homem, sou
o maior dos pecadores. Toda a humildade que significava pessimismo, que
significava que o homem tomava uma perspectiva mesquinha ou vaga de
todo o seu destino — tudo isso deveria desaparecer. Nunca mais
deveríamos ouvir as lamentações de Eclesiastes sobre como a humanidade
não era superior às bestas, ou o terrível brado homérico de que o homem era
a mais triste das bestas do campo. O homem era uma estátua de Deus a
caminhar pelo jardim. Tinha uma proeminência sobre todos os brutos; não
era triste por ser uma besta, mas por ser um deus estilhaçado. Os gregos
diziam que os homens rastejavam sobre a terra, como que se lhe agarrando.
Agora o homem deveria caminhar sobre a terra para dominá-la. O
cristianismo pensou a dignidade humana como algo que só poderia ser
expresso em coroas que irradiassem como o sol e em leques com plumas de
pavão. E eis a maravilha: ao mesmo tempo podia sustentar um pensamento
sobre a abjeta pequenez do homem, que só poderia ser manifestada no
jejum e numa fantástica submissão, nas cinzas de São Domingos22 e na
lividez de São Bernardo.23 No que dizia respeito ao pensamento sobre o seu
próprio ego, havia espaço e vazio suficiente para todo tipo de abnegação
lúgubre e verdade amarga. Nele o cavalheiro poderia se entregar — desde
que perdesse o seu próprio ego. Havia um campo aberto para o pessimista
exultante. Que ele diga o que quiser contra si mesmo, desde que não
blasfeme o objetivo original de seu ser; que se proclame um tolo e até
mesmo um tolo condenado (apesar disso ser calvinista); mas não deve dizer
que não vale a pena salvar os tolos. Não deve dizer que um homem, como
homem, pode não ter valor algum. Em suma, o cristianismo superou a
dificuldade de se combinar dois opostos furiosos, mantendo ambos e
mantendo-os furiosos. A Igreja foi positiva em ambos os pontos. Não há um
limite para o desprezo de si, mas também não há limite para o louvor à sua
própria alma.
Tomem um outro exemplo: a complicada questão da caridade, que
alguns idealistas pouco caridosos parecem pensar ser simples. A caridade é
um paradoxo, como a modéstia e a coragem. Dito de forma direta, a
caridade certamente significa uma de duas coisas — perdoar atos
imperdoáveis, ou amar os que não são amáveis. Mas se nos perguntarmos
(como fizemos no caso do orgulho) o que um pagão sensível pensaria sobre
tal assunto, provavelmente começaríamos do fundo do problema. Um pagão
sensível diria que há algumas pessoas que são perdoáveis, e outras que não;
pode-se rir de um escravo que roubou vinho, mas um escravo que traiu seu
benfeitor pode ser assassinado, e amaldiçoado mesmo depois de morto. Se o
ato era perdoável, o homem era perdoável. E repito: isso é racional, e até
mesmo restaurador; mas é uma diluição. Não deixa qualquer espaço para o
puro horror da injustiça, tal como é belo de se ver nos inocentes. E não
deixa lugar para a simples ternura de um homem com o outro, em que
consiste todo o fascínio dos caridosos. E o cristianismo aparece aqui da
mesma forma que em outras questões. Surge de forma surpreendente como
uma espada, e separa uma coisa da outra. Separa o crime do criminoso. O
criminoso dever ser perdoado setenta vezes sete. O crime nunca deve ser
perdoado. Não é suficiente que escravos que roubaram vinho inspirem um
pouco de raiva e um pouco de bondade. Devemos nos enfurecer muito mais
com o roubo, porém sermos muito mais bondosos com os ladrões do que
antes.
Havia espaço para que a ira e o amor se tornassem furiosos. E quanto
mais considerei o cristianismo, mais descobri que, apesar de ter
estabelecido um mando e uma ordem, o principal objetivo dessa ordem era
permitir que as coisas boas se tornassem fortes e vigorosas.
As liberdades mentais e emocionais não são tão simples quanto
parecem. Realmente exigem um equilíbrio quase tão cuidadoso das leis e
circunstâncias quanto a liberdade política e social. O anarquista estético
comum que busca tudo perceber livremente se vê preso em última instância
a um paradoxo que impede a sua percepção de qualquer coisa. Ele foge dos
limites do lar para seguir a poesia. Mas ao deixar de entender os limites do
lar, não mais entende a Odisséia. Está livre dos preconceitos nacionais e
longe do patriotismo. Mas ao estar distante do patriotismo, está distante de
Henrique v.24 Semelhante homem literário está simplesmente distante de
toda literatura: é mais prisioneiro que qualquer fanático. Pois se há um
muro entre você e o mundo, faz pouca diferença se descrever como alguém
dentro ou fora do muro. O que desejamos não é uma universalidade que
está longe de todos os sentimentos normais; queremos a universalidade que
se aproxima de todos os sentimentos normais. Faz toda a diferença estar
livre deles, como um homem está livre da prisão, e estar livre deles como
um homem está fora de uma cidade. Estou livre do Castelo de Windsor, isto
é, não estou forçosamente detido nele, mas não estou de forma alguma
liberto da presença daquele prédio. Como um homem pode estar quase livre
de certas emoções refinadas, mas ser capaz de equilibrá-las abertamente
sem erro e sem quebras? Foi essa a realização do paradoxo cristão das
paixões paralelas. Com a aceitação do dogma primário da guerra entre o
divino e o diabólico, da revolta e ruína do mundo, o seu otimismo e
pessimismo, como a poesia pura e simples, podem se desatar como as
cataratas.
São Francisco, ao louvar todo bem, poderia ser um otimista mais
clamoroso que Walt Whitman.25 São Jerônimo,26 ao denunciar todo mal,
poderia pintar o mundo mais negro que Schopenhauer. Ambas as paixões
estavam livres porque foram colocadas em seu devido lugar. O otimista
podia se extravasar em louvor à alegre música da marcha, às trombetas
douradas e aos estandartes purpúreos que avançam para a batalha. Mas não
podia dizer que a luta é desnecessária. O pessimista poderia esboçar, da
forma mais sombria que quisesse, as marchas mais repugnantes e as feridas
mais sangrentas. Mas não podia dizer que é uma luta perdida. E o mesmo se
dá com todos os outros problemas morais: com o orgulho, com o protesto,
com a compaixão. Ao definir sua doutrina principal, a Igreja não só
manteve coisas aparentemente inconsistentes lado a lado, mas, além disso,
permitiu que emergissem numa espécie de violência artística que antes só
seria possível aos anarquistas. A mansidão se tornou mais dramática que a
loucura. O cristianismo histórico se ergueu numa grande e estranha guinada
da moralidade — algo que é para a virtude o que os crimes de Nero são
para o vício. Os espíritos indignados e caridosos assumiram formas terríveis
e atrativas, indo da ferocidade monástica, que flagelou como um cão o
primeiro e o maior dos Plantagenetas,27 até a piedade sublime de Santa
Catarina, que beijou a cabeça ensangüentada do criminoso. A poesia pode
ser tanto encenada quanto composta. Essa atitude heróica e monumental na
ética desapareceu completamente junto com a religião sobrenatural. Eles,
sendo humildes, podiam se exibir; mas nós somos orgulhosos demais para
sermos proeminentes. Nossos professores de ética escrevem com muita
sensatez sobre a reforma das prisões, mas não é provável que vejamos o Sr.
Cadbury28 ou qualquer filantropo eminente adentrar o cárcere de Reading e
abraçar um cadáver estrangulado antes de ser lançado na cal viva.29 Nossos
professores de ética escrevem amenamente contra o poder dos milionários;
mas não é provável que vejamos o Sr. Rockefeller,30 ou qualquer tirano
moderno, sendo flagelado publicamente na Abadia de Westminster.
Assim, a dupla acusação dos secularistas, apesar de lançar somente
escuridão e confusão neles mesmos, lança uma verdadeira luz sobre a fé. É
verdade que a Igreja histórica enfatizou ao mesmo tempo o celibato e a
família; foi ao mesmo tempo ferozmente a favor e contra a procriação.
Manteve os extremos lado a lado como duas cores fortes, como o vermelho
e o branco no escudo de São Jorge. Sempre teve um ódio saudável ao rosa.
Odeia a combinação de duas cores que é o expediente covarde dos filósofos
e a evolução do preto e branco que é equivalente a um cinza sujo. De fato,
toda a teoria da Igreja sobre a virgindade pode ser simbolizada pela
afirmação de que o branco é uma cor: não simplesmente a ausência de toda
cor. Tudo que aqui afirmo pode ser expresso dizendo que o cristianismo
buscou na maior parte desses casos manter as duas cores coexistentes, mas
puras. Não é uma mistura como a púrpura e o marrom, mas algo mais
parecido com o vinco de um tafetá, pois este sempre está em um ângulo reto
e no padrão da cruz.
O mesmo se passa, é claro, com as acusações contraditórias dos
anticristãos sobre a submissão e o morticínio. É verdade que a Igreja disse a
alguns homens que lutassem e a outros que não; também é verdade que
aqueles que lutaram o fizeram como raios de trovão e os que não lutaram
eram como estátuas. Tudo isso simplesmente significa que a Igreja preferia
fazer uso de seus super-homens e de seus pacifistas tolstoianos.31 Deve
existir algum bem na vida do guerreiro, pois muitos homens bons gostam de
ser soldados. Deve existir algum bem na idéia da não-resistência, pois
muitos homens bons parecem apreciar serem Quakers. Tudo que a Igreja
fez — dentro dos seus limites — foi evitar que um desses dois bens
destruísse o outro: existiram lado a lado. Os pacifistas, tendo todos os
escrúpulos dos monges, simplesmente se tornaram monges. Os Quakers se
tornaram um clube em vez de uma seita. Os monges diziam tudo o que
Tolstói diz; bradavam lúcidos lamentos sobre a crueldade das batalhas e a
vaidade da vingança. Mas os pacifistas não estão certos a ponto de poderem
governar o mundo inteiro; e não lhes foi permitido que o fizessem na época
da fé. O mundo não perdeu a última investida de Sir James Douglas32 ou o
estandarte de Joana, a Donzela.33 E às vezes essa pura bondade e essa pura
ferocidade se encontraram e justificaram sua união; o paradoxo de todos os
profetas se encarnou, e, na alma de São Luís,34 o leão deitou com o
cordeiro. Mas lembrem-se que esse trecho do Evangelho é interpretado de
forma muito morna. Nossa tendência pacificista assegura constantemente
que, quando o leão se deita com o cordeiro, é o leão que se torna como o
cordeiro. Mas isso é uma anexação brutal e um imperialismo por parte do
cordeiro. O cordeiro simplesmente absorve o leão ao invés do leão comer o
cordeiro. O verdadeiro problema é: pode o leão se deitar com o cordeiro e
ainda reter sua majestosa ferocidade? Esse é o problema atacado pela
Igreja, e este o milagre que ela realizou.
É isso que chamo de adivinhar as excentricidades ocultas da vida. É
saber que o coração de um homem está na esquerda e não no meio; não
somente que a Terra é redonda, mas também onde é plana. A doutrina cristã
detectou as estranhezas da vida. Previu as exceções além de descobrir a lei.
Subestimam o cristianismo aqueles que dizem que ele descobriu a
misericórdia; qualquer um poderia descobri-la. E, na verdade, todos a
descobriram. Mas descobrir um plano para ser misericordioso e severo —
isso era antecipar uma estranha necessidade da natureza humana. Pois
ninguém deseja ser perdoado por um grande pecado como se ele fosse
pequeno. Qualquer um pode dizer que não devemos ser nem miseráveis
demais, nem felizes demais. Mas descobrir como é possível ser miserável
sem tornar impossível a felicidade — isso foi uma grande descoberta
psicológica. Qualquer um pode dizer “nem a arrogância, nem a
humilhação”; e isso seria um limite. Mas dizer que “aqui você pode se
orgulhar e ali você pode se humilhar” — isso seria uma emancipação.
Este era o grande fato sobre a ética cristã: a descoberta de um novo
equilíbrio. O paganismo tinha sido como um pilar de mármore, que
permanecia ereto por ser simetricamente proporcionado. O cristianismo era
como uma pedra enorme, falha e romântica, que, apesar de desviar do
pedestal com um simples toque, dadas as suas excrecências exageradas que
exatamente se equilibram, é ali entronizada por mil anos. Em uma catedral
gótica as colunas eram todas diferentes, mas todas eram necessárias. Todo
suporte parecia acidental e fantástico; cada arco era um arcobotante. Assim,
na cristandade os acidentes aparentes se equilibravam. Becket usava um
cilício debaixo de todo o escarlate e ouro. Isso é ao menos superior ao
costume do milionário moderno, que só veste o preto e branco para os
outros, mas mantém o ouro bem perto de seu coração. Mas o equilíbrio nem
sempre esteve no corpo de um só homem como Becket; muitas vezes o
equilíbrio se distribuiu por todo o corpo da cristandade. Porque um homem
orava e jejuava nas montanhas do norte, flores podiam ser exibidas nos
festivais das cidades sulistas; e porque os fanáticos bebiam água nas areias
da Síria, os homens podiam ainda beber cidra nos orquidários da Inglaterra.
É isso que torna o cristianismo simultaneamente tão mais surpreendente e
tão mais interessante que o império pagão; assim como a Catedral de
Amiens não é melhor, mas certamente é mais interessante que o Parthenon.
Se alguém desejar uma prova moderna disso, que considere o curioso fato
de que, sob o cristianismo, a Europa (apesar de permanecer uma unidade)
se estilhaçou em nações individuais. O patriotismo é um exemplo perfeito
do equilíbrio deliberado de uma ênfase contra a outra. O instinto do império
pagão diria: “Todos devem se tornar cidadãos romanos e se assemelharem;
que o alemão se torne menos reverente e prostrado; que o francês se torne
menos experimental e frenético”. Mas o instinto europeu diz: “Que o
alemão permaneça lento e reverente, para que o francês possa ser mais
seguramente frenético e experimental”. Faremos algo desses excessos. O
absurdo chamado Alemanha corrigirá a insanidade chamada França.
Resta dizer por último o mais importante: é exatamente isso que explica
o que é tão inexplicável para todos os críticos modernos da história do
cristianismo. Refiro-me às monstruosas guerras ao redor de pequenos
pontos teológicos, os terremotos emocionais ao redor de um gesto ou
palavra. Era somente questão de um centímetro; mas um centímetro é tudo
quando se trata de um equilíbrio. A Igreja não poderia se dar ao luxo de se
desviar por um fio de cabelo em algumas coisas, se devia continuar seu
grandioso e ousado experimento em busca de um equilíbrio irregular. Se
uma idéia se tornasse menos poderosa, uma outra se tornaria
excessivamente poderosa. Não era um rebanho de ovelhas que o pastor
cristão guiava, mas uma manada de touros e tigres, de terríveis ideais e
doutrinas devorantes, cada um forte o suficiente para se tornar uma falsa
religião e devastar o mundo. Lembrem-se que a Igreja se envolveu
especificamente com idéias perigosas; ela era uma domadora de leões. A
idéia do nascimento pelo Espírito Santo, da morte de um ser divino, do
perdão dos pecados, da realização das profecias, são idéias que, como todos
podem ver, só precisam de um toque para se tornarem algo blasfemo ou
feroz. O menor elo foi despedaçado pelos artífices do Mediterrâneo, e o
leão do pessimismo ancestral partiu seus grilhões nas florestas esquecidas
do norte. Dessas equalizações teológicas deverei falar posteriormente. Aqui
é suficiente notar que se algum pequeno erro fosse feito na doutrina,
grandes equívocos sobre a felicidade humana poderiam se espalhar. Uma
sentença erroneamente construída sobre a natureza do simbolismo teria
espatifado todas as melhores estátuas da Europa. Um pequeno lapso nas
definições poderia acabar com todas as danças e as árvores de Natal ou
quebrar todos os ovos de Páscoa. As doutrinas deveriam ser definidas
dentro de limites rígidos, mesmo que fosse para que o homem pudesse
desfrutar as liberdades humanas mais gerais. A Igreja precisava ser
cuidadosa para que o mundo pudesse ser despreocupado.
Esse é o romance excitante da ortodoxia. As pessoas caíram no tolo
hábito de falar da ortodoxia como algo pesado, monótono e seguro. Mas
nunca existiu algo tão perigoso ou tão excitante quanto a ortodoxia. Era a
sanidade: e ser são é mais dramático do que ser louco. Era o equilíbrio de
um homem em uma biga, com cavalos que avançam violentamente e que
parecem pender suas cabeças para um lado e se desviar para o outro, e que,
entretanto, apresenta em cada atitude a graça da estatuária e a precisão da
aritmética. A Igreja em seus primórdios se adornou com idéias que tinham a
bravura e a velocidade dos corcéis de guerra; mas seria completamente anti-
histórico dizer que ela meramente seguiu violentamente uma idéia, como
em um fanatismo vulgar. Ela se desviava para a esquerda e a direita na
exata medida necessária para evitar obstáculos enormes. Deixou para trás o
imenso rochedo do arianismo,35 sustentado por todos os poderes mundanos
para tornar o cristianismo demasiado mundano. No próximo instante já
estava a se desviar de um orientalismo que a teria tornado demasiado
transcendente. A Igreja ortodoxa nunca tomou um caminho domesticado ou
aceitou as convenções; nunca foi respeitável. Teria sido mais fácil aceitar o
poder terreno dos arianos; ter caído no abismo sem fim da predestinação
junto ao calvinismo do século xvii. É fácil ser louco e herético. É sempre
fácil deixar que o espírito da época prevaleça; o difícil é ir contra ele.
Também é sempre fácil ser modernista; tão simples quanto ser um esnobe.
Teria sido simples cair em uma dessas armadilhas abertas do erro e do
exagero que moda após moda, e seita após seita, colocam-se no meio da
trajetória histórica da cristandade. É sempre simples cair; há uma infinidade
de ângulos para a queda e somente um para o equilíbrio vertical. Ter caído
em alguma das novidades do gnosticismo36 à Ciência Cristã37 teria sido de
fato óbvio e lânguido. Mas evitar todas elas tem sido uma aventura
alucinante; e em minha visão a carruagem celeste voa como o trovão pelas
eras, deixando as tolas heresias prostradas e dispersas, enquanto a poderosa
verdade permanece de pé mesmo que abalada.

1 Referência à busca do verdadeiro Pólo Norte, tanto o geográfico quanto o magnético.


2 É uma cidade e região metropolitana da Inglaterra.
3 Foi um dos reinos da era anglo-saxã do Reino Unido e durou de 527 a 918.
4 Coração feito com ladrilhos de granito desenhado sobre o pavimento próximo à Catedral de St.
Giles, em Edimburgo, na Escócia.
5 Famoso labirinto de sebes situado no palácio de Hampton Court, na capital britânica.
6 Distrito do oeste de Londres.
7 Distrito do sudoeste de Londres.
8 Charles Bradlaugh (1833–1891) foi um ativista político e ateu inglês. Em 1880 foi eleito membro
do parlamento pelo Partido Liberal. Foi parceiro de Annie Besant na Sociedade Secularista Nacional
e militou pela causa do controle contraceptivo dos nascimentos.
9 Thomas Paine (1736–1809) foi um ativista político, filósofo e revolucionário americano nascido na
Inglaterra. É um dos pais fundadores dos Estados Unidos. Suas idéias seguiam uma tendência
iluminista de direitos humanos universais. Envolveu-se também ativamente na Revolução Francesa,
combatendo os escritos de Edmund Burke contra a revolução. Advogava o deísmo e o fim de toda
religião institucionalizada, assim como da doutrina cristã.
10 Robert Green Ingersoll (1833–1899) foi um advogado, veterano da Guerra Civil, político e orador
americano, conhecido por sua ampla cultura e defesa do agnosticismo.
11 Algernon Charles Swinburne (1837–1909) foi um poeta, dramaturgo, romancista e crítico literário
inglês. Escreveu sobre uma série de assuntos tabus, como o canibalismo, o antiteísmo, o lesbianismo
e o sadomasoquismo. Gostava de chocar, a ponto de exagerar e talvez até simular seu pretenso
homossexualismo e bestialismo.
12 Eduardo, o Confessor (1003–1066), também conhecido como Santo Eduardo, foi um dos últimos
reis anglo-saxões da Inglaterra, tendo reinado de 1042 a 1066. O título de confessor reflete sua
reputação como um santo que não sofreu o martírio, diferente do Rei Eduardo, o Mártir.
13 Ricardo i (1157–1199) foi rei da Inglaterra de 6 de julho de 1189 até sua morte. Ficou conhecido
por Ricardo Coração de Leão devido a sua reputação como um grande guerreiro e líder militar. Foi
um importante comandante cristão na Terceira Cruzada, liderando a campanha após a partida de
Filipe ii da França.
14 Oliver Cromwell (1599–1658) foi um líder político e militar inglês que serviu como lorde protetor
da comunidade de Inglaterra, Escócia e Irlanda de 1653 até sua morte. Com a vitória das forças
republicanas na Guerra Civil Inglesa tornou-se o chefe-máximo da nação (lorde protetor). Como
puritano, passou uma série de leis penais contra os católicos romanos, confiscando boa parte de suas
terras e executando ações que são consideradas praticamente genocidas, inclusive o famoso massacre
de Cromwell durante a conquista da Irlanda.
15 Fernando Álvarez de Toledo y Pimentel (1507–1582), mais conhecido como o terceiro duque de
Alba, foi um nobre, general e diplomata espanhol. É considerado um dos melhores generais de sua
geração e um dos maiores da história. É mais conhecido por suas ações contra a revolta holandesa,
incluindo a fúria espanhola em Mechelen, quando em 2 de outubro de 1572 as forças espanholas
brutalmente saquearam aquela cidade. A população era majoritariamente católica e se entregou às
tropas, mas ainda assim foi dada a ordem pelo duque de Alba para três dias de assassinatos, estupros
e saques.
16 O movimento ético ou humanismo ético é usualmente traçado a Felix Adler (1851–1933), e é um
desenvolvimento das tradições morais do secularismo do século xix. Houve uma tendência de criação
de congregações de cunho religioso sem Deus ou qualquer noção de teísmo. Viver de acordo com
princípios éticos universais seria suficiente para o bem-estar da humanidade.
17 Ralph Waldo Emerson (1803–1882) foi um ensaísta e poeta americano que liderou o movimento
transcendentalista do meio do século xix. Afastou-se das crenças sociais e religiosas reinantes em sua
filosofia do transcendentalismo de 1836. Defendia a liberdade individual e tinha uma visão de mundo
panteísta, na qual era impossível realmente separar Deus do mundo.
18 Epicuro (341–270 a.C.) foi um filósofo grego antigo que fundou o epicurismo. Para ele, o objetivo
da filosofia era atingir uma vida tranqüila e feliz, caracterizada pela ataraxia, ou a paz e libertação de
todo medo. Suas crenças centrais eram: o prazer e a dor seriam as medidas do bem e do mal; a morte
seria o fim tanto do corpo quanto da alma; os deuses são indiferentes aos homens e não punem nem
recompensam; o universo é infinito e eterno e tudo no mundo pode ser enfim explicado pelos
movimentos e interações de átomos que se movem no espaço vazio.
19 Jacques-Bénigne Lignel Bossuet (1627–1704) foi um bispo e teólogo francês, reconhecido por
seus grandes sermões e conferências. Era um árduo defensor do absolutismo político e do direito
divino dos reis. Sua obra Discurso sobre a história universal é considerada por muitos católicos
como uma espécie de segunda edição da Cidade de Deus de Santo Agostinho.
20 Thomas Becket (1119–1170) foi arcebispo de Canterbury de 1162 a 1170. É venerado como santo
e mártir tanto na Igreja Católica quanto na Igreja Anglicana. Antes de sua confirmação como
arcebispo era um grande amigo do Rei Henrique ii e amante da vida luxuosa da corte real. Após a
nomeação abandonou o estilo de vida luxuoso e por baixo das roupas elegantes de arcebispo utilizava
sempre o cilício. Como ele mesmo previu, sua amizade com o rei se transformou em ódio. Em 1170,
Becket acabou sendo assassinado por seguidores do rei, no interior da Catedral de Canterbury, devido
a um conflito sobre os privilégios da Igreja.
21 Doutrina aristotélica segundo a qual todo ato moral e ético comporta um excesso e uma carência,
e que a boa ação reside então no meio, num ponto de equilíbrio entre esses extremos. Por exemplo, a
verdadeira coragem é um meio termo entre a covardia e a temeridade.
22 São Domingos (1170–1221) foi um padre da Castilha e fundador da Ordem Dominicana. A ordem
foi fundada pela percepção de que era preciso um novo tipo de organização para as crescentes
cidades da época, que combinasse a educação sistemática com uma flexibilidade organizacional
inexistente nas antigas ordens monásticas e no clero secular. Atribui-se à pregação de São Domingos
a disseminação do Rosário. É associado erroneamente à Inquisição, apesar de ter falecido em 1221 e
o primeiro escritório da Inquisição em sua região só ter sido estabelecido em 1231. É verdade que
muitos dominicanos posteriores se tornaram inquisidores, mas a associação com São Domingos é
apócrifa e mais uma das mentiras e imagens lendárias da lenda negra da Idade Média.
23 São Bernardo de Claraval (1090–1153) foi um abade francês e o primeiro reformador da Ordem
Cisterciense. Em 1128 traçou as linhas da Regra dos Cavaleiros Templários, que logo se tornaria o
ideal da nobreza cristã. Encerrou praticamente sozinho um cisma dentro da Igreja e combateu
avidamente as heresias que pululavam no sul da França. Foi convocado pelo papa para pregar a
Segunda Cruzada, e passou os últimos anos de sua vida entristecido pelo fracasso desta, que foi
inteiramente lançado em suas costas. Em ١٨٣٠, o Papa Pio viii concedeu a São Bernardo o título de
“Doutor da Igreja”.
24 Henrique v (1386–1422), rei da Inglaterra de 1413 até sua morte em 1422. Em 1415 embarcou
para lutar na França na Guerra dos Cem Anos (1337–1453), na qual conquistou vitórias militares que
culminaram na famosa vitória na Batalha de Agincourt (1415) e na quase conquista completa da
França, encerrada em 1420 com a declaração de Henrique v como regente e herdeiro aparente do
trono francês após Carlos vi. Sua morte inesperada em 1422 e a regência de seu filho Henrique vi

minaram o domínio inglês sobre a França.


25 Walt Whitman (1819–1892), poeta, ensaísta e jornalista americano. É usualmente chamado de pai
do verso livre e teve alguns livros considerados controversos em seu tempo pela apresentação crua da
sexualidade. Sua obra foi importante na juventude de Chesterton: o otimismo de Whitman era um
antídoto contra a atmosfera decadente e pessimista da Inglaterra da época.
26 São Jerônimo (347–420), intrépido padre, confessor, teólogo e historiador. Tornou-se conhecido
por sua tradução da Bíblia para o latim, conhecida como a Vulgata, por seus comentários sobre o
Evangelho e, sobretudo, por ardentes discussões em defesa da fé.
27 Plantageneta é o sobrenome de um conjunto de monarcas ingleses, conhecidos como dinastia
Plantageneta ou Angevina, que reinaram na Inglaterra entre 1154 e 1399.
28 William Adlington Cadbury (1867–1957) foi um empresário inglês ligado à empresa de sua
família, a Cadbury. Foi educado em escolas Quakers e contribuiu amplamente para a filantropia.
29 Quicklime no original. Antigamente era comum jogar cal viva (óxido de cálcio) durante o
sepultamento para acelerar a decomposição dos corpos e minimizar o mau cheiro.
30 John Davidson Rockefeller (1839–1937), magnata norte-americano que chegou a controlar 90%
do mercado de petróleo.
31 Seguidores do filósofo e romancista russo Tólstoi.
32 Sir James Douglas (1289–1330) foi um cavaleiro e senhor feudal escocês, e um dos principais
comandantes das guerras de independência da Escócia.
33 Joana D’Arc (1412–1431), apelidada de “a Donzela de Orléans”, foi uma heroína e santa francesa
que teve papel decisivo na Guerra dos Cem Anos. Suas vitórias militares abriram o caminho para a
coroação de Carlos vii e a vitória final dos franceses sobre a dominação inglesa.
34 Luís ix (1214–1270), conhecido como São Luís, foi um rei e santo francês. Foi um grande
reformador e desenvolveu a justiça real francesa, na qual todo súdito poderia apelar ao rei para
corrigir um julgamento injusto. Teve papel central na Sétima e na Oitava Cruzadas, e tudo em sua
vida foi inspirado por um zelo cristão e pela devoção católica, tendo construído a belíssima Saint-
Chapelle para abrigar pretensas relíquias de Cristo. Foi importante na expansão da Inquisição. É o
único rei francês canonizado.
35 A teoria também conhecida como subordinacionismo, defendida por Ário (256–336), um
presbítero de Alexandria que, não entendendo a consubstancialidade da Santíssima Trindade,
acreditava estar defendendo o monoteísmo quando afirmava haver um só Deus, que se tornou Pai
somente depois de criar o Filho, que, junto com o Espírito Santo, seriam algo como semideuses. O
Concílio de Nicéia (325) condenou a doutrina de Ário e reafirmou a consubstancialidade da
Santíssima Trindade, isto é, Deus uno em três pessoas.
36 Os gnósticos mantêm desde a Antigüidade uma crença comum, que assume diversas formas,
segundo a qual o mundo material foi criado por uma emanação do Deus superior, que prendeu a
fagulha divina no corpo humano. O conhecimento dessa fagulha poderia então nos libertar da prisão
corpórea.
37 Foi desenvolvida no século xix por Mary Baker Eddy, que argumentava que a doença é uma
ilusão que só pode ser corrigida pela oração. Seus membros defendem uma forma radical de
idealismo filosófico, acreditando que a realidade é puramente espiritual e o mundo material uma
ilusão.
CAPÍTULO 6
A eterna revolução
AS SEGUINTES PROPOSIÇÕES FORAM DEFENDIDAS: PRIMEIRO, que alguma
fé em nossa vida é exigida, até mesmo para melhorá-la; segundo, que
alguma insatisfação com as coisas tal como são é necessária até mesmo
para ser contente; terceiro, que para ter esse contentamento e esse
descontentamento necessários, o equilíbrio óbvio do estóico não é
suficiente. Pois a mera resignação não tem nem a gigantesca leveza do
prazer, nem a suprema intolerância da dor. Há uma objeção vital ao
conselho de simplesmente sorrir e suportar tudo. A objeção é que se
simplesmente suportamos a vida, não sorrimos. Os heróis gregos não
sorriem: mas as gárgulas sim — porque são cristãs. E quando um cristão
está satisfeito, está, no sentido mais exato, espantosamente satisfeito; seu
prazer é tremendo. O Cristo profetizou toda a arquitetura gótica no exato
momento em que pessoas nervosas e respeitáveis (como os que hoje se
revoltam contra os órgãos de cilindros) criticavam o grito da ralé de
Jerusalém. Ele disse: “Se estes se calarem, as próprias pedras clamarão”.
Sob o impulso do Seu espírito surgiram como um coro clamoroso as
fachadas das catedrais medievais, apinhadas de faces ululantes e bocarras
abertas. A profecia se cumpriu: as próprias pedras clamam.
Se tudo isso for aceito, mesmo que somente pelo argumento, podemos
retomar de onde deixamos o fio do pensamento sobre o homem natural,
chamado pelo escocês — com lamentável familiaridade — de “o homem
velho”. Podemos nos fazer a próxima questão, que paira tão óbvia diante de
nós. Alguma satisfação é exigida mesmo para melhorar as coisas. Mas o
que quer dizer melhorar as coisas? A maior parte do falatório moderno
sobre o assunto é um argumento circular — o círculo que já transformamos
no símbolo da loucura e do racionalismo puro. A evolução só é boa se
produz o bem; o bem só é bom se ajuda a evolução. O elefante se sustenta
na tartaruga, e a tartaruga no elefante.
É óbvio que não poderemos extrair nosso ideal de princípios naturais,
pela simples razão — exceto por alguma teoria humana ou divina — de que
não há princípios na natureza. Por exemplo, o antidemocrata vulgar de
nossos dias dirá solenemente que não há igualdade na natureza. Está
correto, mas não percebe o adendo lógico. Não há igualdade na natureza,
mas também não há desigualdade nela. A desigualdade, assim como a
igualdade, implica um padrão de valor. Enxergar uma aristocracia na
anarquia animal é tão sentimental quanto enxergar uma democracia. Tanto a
aristocracia quanto a democracia são ideais humanos; uma diz que todos os
homens têm valor, a outra que alguns homens são mais valiosos. Mas a
natureza não diz que os gatos são mais valiosos que os ratos; ela não faz
qualquer consideração sobre o assunto. Nem sequer diz que o gato é
invejável e o rato digno de pena. Vemos o gato como superior porque temos
(ou a maior parte tem) uma filosofia particular que supõe que a vida é
melhor que a morte. Mas se o rato fosse um pessimista alemão, poderia não
acreditar que o gato realmente o derrotou. Poderia pensar que venceu o gato
por chegar primeiro ao túmulo. Ou poderia achar que havia realmente
infligido uma terrível punição ao gato mantendo-o vivo. Assim como um
micróbio pode se sentir orgulhoso por espalhar uma pestilência, também o
rato pessimista pode exultar em pensar que renovou para o gato a tortura da
existência consciente. Tudo depende da filosofia do rato. Não é possível
dizer que existe o triunfo ou a superioridade na natureza sem uma doutrina
sobre o que é superior, ou que os gatos venceram sem um sistema de
pontuação, ou que o gato ficou com a melhor parte, se não houver uma
melhor parte.
Não podemos, então, extrair nosso conceito de ideal da natureza, e como
seguimos aqui a especulação primeira e natural, deixaremos de fora, por
enquanto, a idéia de recebê-lo de Deus. Devemos ter nossa própria visão,
mas as tentativas da maioria dos modernos em expressá-la tem sido muito
vaga.
Alguns se apóiam simplesmente no relógio: falam como se a mera
passagem do tempo trouxesse alguma superioridade; de tal forma que até
mesmo um homem do mais alto calibre mental usa despreocupadamente a
afirmação de que a moralidade humana nunca está atualizada. Mas como
algo pode ser atual? Uma data não tem caráter. Como alguém pode dizer
que as celebrações de Natal não são adequadas para o dia vinte e cinco de
um mês? O que o escritor quis dizer, claramente, era que a maioria estava
atrasada em relação à sua minoria favorita — ou adiantada. Outras pessoas
modernas e vagas se refugiam nas metáforas materiais; e essa é de fato a
principal marca das pessoas modernas e vagas. Já que não ousam definir
sua doutrina do bem, usam figuras de linguagem físicas sem restrição ou
vergonha, e, o que é ainda pior, parecem acreditar que essas analogias
baratas são refinadamente espirituais e superiores à velha moralidade.
Acreditam então que é muito intelectual dizer que as coisas são
“superiores”. Isso é no mínimo o inverso de intelectual, é apenas um clichê.
“Tom era um bom menino” é uma afirmação puramente filosófica, digna de
Platão ou São Tomás de Aquino. “Tom viveu a vida superior” é uma
metáfora grosseira em relação a uma régua de três metros.
Isso, incidentalmente, é quase que toda a fraqueza de Nietzsche, a quem
alguns têm representado como um pensador forte e audacioso. Ninguém
pode negar que era um pensador poético e sugestivo; mas era exatamente o
inverso da força. Não era de forma alguma corajoso. Nunca expressou sua
própria filosofia em palavras abstratas e claras: como fizeram homens de
um pensamento forte e destemido como Aristóteles, Calvino e até mesmo
Karl Marx. Nietzsche sempre fugia de uma questão com uma metáfora
física, como um divertido poeta menor. Disse “além do bem e do mal”
porque não teve a coragem de dizer “melhor do que o bem e o mal” ou
“pior do que o bem e o mal”. Tivesse ele enfrentado seu pensamento sem
metáforas, teria visto que era absurdo. Assim, quando descreve seu herói,
não ousa dizer “o mais puro dos homens”, ou “o mais feliz dos homens”, ou
“o mais triste dos homens”, pois são todas idéias; e as idéias são alarmantes.
Ele diz o “homem superior” ou “super-homem”, uma metáfora física
apropriada para acrobatas e montanhistas. Nietzsche é verdadeiramente um
pensador muito tímido. Não tem a menor idéia de que tipo de homem
deseja que a evolução produza. E se não sabe, certamente os evolucionistas
comuns, que falam sobre as coisas que são “superiores”, também não
sabem.
Outros caem novamente na completa submissão e passividade. A
natureza fará algo algum dia; ninguém sabe o quê e quando. Não temos a
menor razão para agir ou para não agir. O que acontece é verdadeiro: se
algo falha em ocorrer, estava errado. Algumas pessoas tentam antecipar a
natureza fazendo qualquer coisa; porque talvez possamos ter asas, eles
cortam suas pernas. Mas e se a natureza estiver tentando transformá-los em
centípedes? Seria perfeitamente possível.
Por último, há uma quarta classe de pessoas que tomam o que desejam
no momento, e dizem que se trata do objetivo último da evolução. E estes
são os únicos sensatos em toda essa linha de argumentação. É a única coisa
saudável a se fazer com a palavra evolução: trabalhar pelo que se deseja, e
chamar isso de evolução. O único sentido inteligível que o progresso ou
avanço pode ter entre os homens consiste em ter uma visão definida, e
desejar transformar o mundo inteiro à imagem dessa visão. Se preferirmos,
podemos dizer que a essência da doutrina é afirmar que o que temos ao
nosso redor é um simples método e preparação para algo que devemos criar.
Este não é um mundo, mas sim o material para um mundo. Deus não nos
deu as cores de uma pintura, mas as cores de uma palheta. Porém, Ele
também nos deu um assunto, um modelo, uma visão fixa. Deve estar bem
claro o que queremos pintar. Isso acrescenta mais um princípio à nossa
prévia lista de princípios. Dissemos que devemos amar o mundo, mesmo
que para mudá-lo. Agora acrescentamos que devemos amar um outro
mundo, real ou imaginário, para ter algo como meta da transformação.
Não precisamos debater somente sobre as meras palavras evolução ou
progresso: pessoalmente prefiro chamar o fenômeno de reforma. Pois
reforma implica forma; que estamos tentando modelar o mundo em uma
imagem particular; que o estamos transformando em algo que já vemos em
nossas mentes. A evolução é uma metáfora a partir do simples desenrolar
automático. O progresso é uma metáfora a partir do simples caminhar por
uma estrada — e muito provavelmente a estrada errada. Mas a reforma é
uma metáfora para homens determinados e razoáveis: significa que vemos
algo disforme e desejamos lhe dar uma forma. E sabemos o que é a forma.
Chegamos aqui ao colapso completo e ao erro crasso de nossa época.
Misturamos duas coisas diferentes e opostas. O progresso deveria significar
que estamos sempre mudando o mundo para adequá-lo a uma visão. Mas
nos tempos atuais significa que estamos sempre mudando a visão. Deveria
significar que estamos lentamente, mas continuamente, trazendo a justiça e
a misericórdia aos homens; mas significa que somos bem ligeiros em
duvidar da atratividade da justiça e da misericórdia: uma louca página de
algum sofista prussiano espalha a dúvida entre os homens. Deveria
significar que estamos sempre caminhando rumo à Nova Jerusalém; mas na
verdade significa que a Nova Jerusalém está sempre se distanciando de nós.
Não estamos mudando o real para que se conforme ao ideal: é mais fácil
alterar o ideal.
Os exemplos bobos são sempre os mais simples; suponhamos que um
homem desejasse um tipo particular de mundo; digamos que um mundo
azul. Ele não teria motivos para reclamar da pequenez ou rapidez de sua
tarefa; poderia labutar por muito tempo em sua transformação; poderia se
esforçar (em todos os sentidos) até que tudo fosse azul. Poderia ter
aventuras heróicas como os últimos toques de azul em um tigre; sonhos
encantados como o nascer de uma lua azul. Mas se trabalhasse duro, esse
reformador de elevadíssimas intenções iria certamente (do seu ponto de
vista) deixar o mundo melhor e mais azul do que o encontrou. Se alterasse
uma lâmina de grama para sua cor favorita todo dia, evoluiria lentamente.
Mas se alterasse sua cor favorita todo dia, nunca avançaria. Se, depois de
ler um novo filósofo, começasse a pintar tudo de vermelho e amarelo, seu
trabalho seria jogado fora: não haveria nada a mostrar exceto alguns poucos
tigres azuis perambulantes, espécimes produzidos por seus maus modos
anteriores. Essa é exatamente a posição do pensador médio moderno. Será
dito que este é declaradamente um exemplo absurdo. Mas é literalmente um
fato da história recente. Todas as grandes e graves mudanças em nossa
civilização política pertenceram ao século xix, e não ao seguinte.
Pertenceram ao tempo preto e branco em que os homens acreditavam
fixamente no conservadorismo, no protestantismo, no calvinismo, na
Reforma, e não pouco freqüentemente na Revolução. E não importava o
que cada homem acreditava, pois todos lutavam continuamente, sem
ceticismo: e houve um tempo em que a Igreja estabelecida poderia ter
caído, e que a Câmara dos Lordes quase caiu. Isso ocorreu porque os
radicais eram sábios a ponto de serem constantes e consistentes; porque os
radicais eram sábios a ponto de serem conservadores. Mas na atmosfera
presente não há tempo e tradição suficientes para realizar algo pelo
radicalismo. Há muita verdade na sugestão de Lorde Hugh Cecil1 de que a
era da mudança acabou, e que a nossa é uma era de conservação e repouso.
Mas provavelmente incomodaria Lorde Hugh Cecil perceber (o que é
certamente o caso) que a nossa só é uma era de conservação por ser uma era
de completa descrença. Deixe que as crenças murchem rápida e
freqüentemente, se desejar manter as instituições como estão. Quanto mais
a vida intelectual for abalada, mais o maquinário material será deixado por
si mesmo. O resultado líquido de todas as nossas sugestões políticas, como
o coletivismo, o tolstoianismo, o neo-feudalismo, o comunismo, a anarquia,
a burocracia científica — o fruto direto de tudo isso será que a monarquia e
a Câmara dos Lordes permanecerão intactas. O resultado líquido de todas as
novas religiões será que a Igreja da Inglaterra permanecerá muito bem
estabelecida. Foram Karl Marx, Nietzsche, Tolstói, Cunninghame Graham,1
Bernard Shaw e Auberon Herbert2 que, entre si, com suas costas
profundamente dobradas, sustentaram o trono do arcebispo de Canterbury.
Podemos dizer que em geral o livre pensamento é a melhor salvaguarda
contra a liberdade. Administrada no estilo moderno, a emancipação da
mente do escravo é a melhor forma de evitar sua emancipação. Ensine-o a
se preocupar com o fato de ele querer ou não a liberdade, e ele jamais irá se
libertar. Novamente, pode-se dizer que esse caso é remoto ou extremo. Mas,
novamente, isso diz a verdade do homem que vaga pelas ruas ao nosso
redor. É verdade que o escravo negro, sendo um bárbaro degradado,
provavelmente nunca terá ou uma afeição humana pela lealdade, ou uma
afeição humana pela liberdade. Mas o homem que vemos diariamente — o
trabalhador na fábrica do Sr. Gradgrind,3 o pequeno funcionário no
escritório do Sr. Gradgrind — sua mente está ocupada demais para acreditar
em liberdade. Ele é mantido quieto com literatura revolucionária. Ele é
acalmado e mantido em seu lugar por uma sucessão constante de loucas
filosofias. É um marxista hoje, um nietzschiano amanhã, um super-homem,
provavelmente, depois de amanhã, mas um escravo todos os dias. A única
coisa que resta após todas as filosofias é o empreendedorismo. O único
homem que ganha com todas as filosofias é Gradgrind. Seria válido o seu
esforço para manter a sua exploração comercial da ignorância abastecida
com literatura cética. E acabo de me lembrar que, obviamente, Gradgrind é
famoso por organizar bibliotecas. Isto já demonstra a sua intenção. Todos os
livros modernos estão do seu lado. Enquanto a visão do céu estiver sempre
mudando, a visão da terra permanecerá exatamente a mesma. Nenhum ideal
sobreviverá tempo suficiente para ser realizado, ou até mesmo parcialmente
realizado. O jovem moderno jamais mudará o seu ambiente; por causa dele
sempre mudará suas idéias.
Esta é então nossa primeira exigência sobre o ideal a que o progresso se
dirige: deve ser fixo. Whistler4 costumava fazer vários estudos de pessoas
sentadas; não se importava em destruir vinte retratos. Mas se importaria se
olhasse vinte vezes para cima, e a cada olhada visse uma nova pessoa
placidamente sentada para seu retrato. Portanto não importa,
comparativamente falando, quantas vezes a humanidade falha em imitar seu
ideal; pois então todos os seus antigos fracassos são frutíferos. Mas importa
terrivelmente quantas vezes a humanidade muda seu ideal; pois então todos
os seus antigos fracassos são infrutíferos. A questão então se coloca nos
seguintes termos: como podemos manter o artista descontente com suas
pinturas ao mesmo tempo que evitamos que se torne vitalmente descontente
com sua arte? Como podemos tornar um homem sempre insatisfeito com
seu trabalho, porém sempre satisfeito com o ato de trabalhar? Como
podemos ter certeza que o pintor irá jogar a pintura pela janela ao invés de
tomar o caminho mais natural e humano de lançar o retratado pela janela?
Uma regra estrita não é necessária somente para o mando; também é
necessária para a rebelião. O ideal fixo e familiar é necessário para qualquer
tipo de revolução. O homem às vezes agirá lentamente a partir de novas
idéias; mas só agirá rapidamente a partir de idéias antigas. Se devo
simplesmente flanar, desaparecer ou evoluir, pode ser rumo a algo
anárquico; mas se devo protestar, deve ser por algo respeitável. Nisto
consiste toda a fraqueza de certas escolas do progresso e da evolução moral:
sugerem que houve um lento movimento rumo à moralidade, com uma
mudança ética imperceptível a cada ano ou a cada instante. Só há uma
grande desvantagem nessa teoria. Fala de um lento movimento rumo à
justiça; mas não permite um movimento rápido. Não permite que um
homem salte e declare que certo estado de coisas é intrinsicamente
intolerável. Para tornar a questão clara, é melhor dar um exemplo
específico. Alguns dos vegetarianos idealistas, como o Sr. Salt,5 dizem que
chegou o tempo de não se comer mais carne; fica implícito que assumem
que já foi correto comer carne, e sugerem — em palavras que poderiam ser
citadas — que algum dia poderá ser errado beber leite e comer ovos. Não
discuto aqui o que é a justiça para os animais. Somente digo que seja lá o
que essa justiça for, sob as condições dadas, deve ser uma justiça rápida. Se
o animal é injustiçado, devemos correr a seu socorro. Mas como podemos
correr se estamos, talvez, à frente de nosso tempo? Como podemos correr
para pegar um trem que só irá chegar em alguns séculos? Como posso
denunciar um homem por escalpelar gatos, se ele é agora o que posso talvez
me tornar por beber um copo de leite? Uma esplêndida e insana seita russa
perambulou por este mundo libertando o gado de todas as carroças. Como
posso criar coragem para libertar o cavalo de minha carruagem, quando não
sei se meu relógio evolucionário está um pouco rápido demais ou se é o
condutor que está um pouco devagar? Suponham que eu diga a um
explorador de operários: “A escravidão se ajustou a um estágio da
evolução”. E suponham que ele responda: “E a exploração do operário se
ajusta a este estágio da evolução”. Como posso responder se não há
qualquer teste eterno? Se os exploradores podem se defender por trás da
moralidade corrente, por que os filantropos não deveriam estar à sua frente?
O que diabos é a moralidade corrente senão o seu sentido literal — a
moralidade que está sempre fugindo?
Podemos então dizer que um ideal permanente é tão necessário ao
inovador quanto ao conservador; é necessário se queremos que as ordens do
rei sejam rapidamente executadas ou se queremos que o rei seja
rapidamente executado. A guilhotina carrega muitos pecados, mas para ser
justo é preciso dizer que não tem nada de evolucionária. O argumento
favorito dos evolucionários encontra sua melhor resposta no machado. O
evolucionário diz: “Onde podemos traçar um limite?”. O revolucionário
responde: “Aqui o traço: exatamente entre sua cabeça e seu tronco”. Deve
sempre existir um certo e errado abstrato se alguma execução deve se
realizar; deve existir algo eterno para que exista algo súbito. Portanto, para
todos os objetivos humanos inteligíveis, para alterar ou manter as coisas
como são, para fundar um sistema eviternamente, como na China, ou para
alterá-lo a cada semana como nos primórdios da Revolução Francesa, é
igualmente necessário que a visão seja uma visão fixa. Essa é nossa
primeira exigência.
Quando terminei de escrever isso, senti novamente a presença de algo
mais nessa discussão, tal como um homem que ouve um sino de igreja
insinuar-se no meio do som da rua. Algo parecia dizer: “Ao menos meu
ideal está fixado; pois o foi antes da fundação do mundo. Minha visão da
perfeição seguramente não pode ser alterada; pois é chamada de Éden. Você
pode alterar o lugar para onde está indo; mas não o lugar de onde veio. Para
o ortodoxo sempre existe um argumento a favor da revolução, pois nos
corações humanos Deus foi colocado sob os pés de Satanás. No mundo
superior o inferno se rebelou contra o céu. Mas neste mundo o céu está se
rebelando contra o inferno. Para o ortodoxo uma revolução sempre pode
acontecer; pois uma revolução é uma restauração. A qualquer instante é
possível acertar um golpe favorável a uma perfeição que nenhum homem
viu desde Adão. Nenhum costume imutável e nenhuma evolução cambiante
podem tornar o bem original algo diferente do bem. O homem pode ter tido
concubinas desde que as vacas têm chifres: ainda assim, se é algo
pecaminoso, não faz parte dele. Os homens podem ter vivido sob a opressão
desde que os peixes começaram a vagar pelas águas; mas não deveriam
estar, se a opressão é pecaminosa. O grilhão pode parecer tão natural ao
escravo, ou a maquiagem à rameira, quanto a pluma para o pássaro ou a
toca para a raposa; ainda não o são, se são pecaminosos. Ergo minha lenda
pré-histórica para desafiar toda a sua história. Sua visão não é simplesmente
algo fixo: é um fato”. Detive-me para notar a nova coincidência do
cristianismo: mas segui adiante.
Passei à próxima necessidade de qualquer ideal de progresso. Algumas
pessoas, como dissemos, parecem acreditar em um progresso automático e
impessoal na natureza das coisas. Mas é claro que nenhuma atividade
política pode ser encorajada dizendo que o progresso é natural e inevitável;
isso não é motivo para ser ativo, mas sim para ser preguiçoso. Se estamos
fadados a melhorar, não precisamos nos preocupar em melhorar. A pura
doutrina do progresso é a melhor das razões para não ser um progressista.
Mas não é a nenhum desses comentários óbvios que desejo primariamente
chamar a atenção.
O único ponto a considerar é este: se supomos que o progresso é natural,
ele deve ser bastante simples. O mundo possivelmente pode estar
trabalhando rumo a uma consumação, mas dificilmente rumo a um arranjo
particular de muitas qualidades. Retomando nossa comparação original: a
natureza pode estar se tornando mais azul por si mesma; isto é, em um
processo tão simples que pode ser impessoal. Mas a natureza não pode estar
fazendo uma pintura cuidadosa a partir de muitas cores delicadamente
escolhidas, a não ser que a natureza seja pessoal. Se a finalidade do mundo
fosse a simples escuridão ou a simples luz, ela poderia emergir tão lenta e
inevitavelmente quanto a alvorada ou o crepúsculo. Mas se o fim do mundo
deve ser uma obra de arte elaborada em chiaroscuro,6 então deve existir um
plano, seja ele humano ou divino. O mundo, através do mero tempo, pode
se tornar negro como uma pintura antiga, ou branco como um casaco
antigo; mas se é transformado em uma obra de arte particular em preto e
branco — então há um artista.
Se a distinção não ficou evidente, darei um exemplo simples.
Constantemente ouvimos uma convicção particularmente cósmica vindo
dos modernos humanitários. Uso a palavra humanitário no sentido comum
de alguém que defende os direitos de todas as criaturas contra os da
humanidade. Eles sugerem que era após era temos nos tornado mais
humanos, isto é, um após o outro, grupos ou tipos de seres, escravos,
crianças, mulheres, vacas, e tudo mais, têm sido gradualmente admitidos
como objetos de compaixão ou justiça. Dizem que já consideramos certo
comer outros homens (o que não é verdade); mas não me preocupo aqui
com sua história altamente anti-histórica. E, na verdade, a antropofagia é
certamente algo decadente e não primitivo. É bem mais provável que o
homem moderno coma carne humana por afetação do que o homem
primitivo a ter comido por ignorância. Sigo aqui somente o esboço de seus
argumentos, que consistem em sustentar que o homem se tornou
progressivamente mais leniente, primeiro com seus cidadãos, depois com
seus escravos, depois com os animais, e então, presumivelmente, com as
plantas. Acho errado sentar sobre um homem: logo considerarei errado
sentar sobre um cavalo. Eventualmente, suponho, considerarei errado sentar
em uma cadeira. É esse o trajeto do argumento, e é então possível falar de
evolução ou de progresso inevitável. Uma tendência perpétua para tocar
cada vez menos coisas pode ser, perceptivelmente, uma mera tendência
bruta inconsciente, como a de uma espécie que produz cada vez menos
crianças. Esse movimento pode ser realmente evolucionário, porque é
estúpido.
O darwinismo pode ser utilizado para sustentar duas moralidades loucas,
mas não para sustentar uma única que seja sã. O parentesco e a competição
de todas as criaturas vivas podem ser usados como razão para a crueldade
insana ou o sentimentalismo insano; mas não para o amor saudável aos
animais. Sob uma base evolucionária é possível ser desumano ou
absurdamente humano; mas não é possível ser humano. Ser uma só coisa
com o tigre pode ser uma razão para ser sensível com o tigre; mas também
pode ser uma razão para ser cruel como ele. Um dos caminhos é treinar o
tigre para nos imitar, mas imitar o tigre é um caminho mais curto. Em
nenhum dos casos a evolução nos diz como tratar um tigre razoavelmente,
isto é, como admirá-lo por suas listras evitando suas garras.
Se você deseja tratar um tigre razoavelmente, é preciso voltar ao Jardim
do Éden. Pois o lembrete obstinado continuou a ocorrer: somente o
sobrenatural permite uma visão sã sobre a natureza. A essência de todo
panteísmo, evolucionismo, e da religião cósmica moderna está realmente
nesta proposição: que a natureza é nossa mãe. Infelizmente, se você
considera a natureza como uma mãe, descobre que ela é uma madrasta. O
principal ponto do cristianismo era este: a natureza não é nossa mãe, mas
sim nossa irmã. Podemos nos orgulhar de sua beleza, pois temos o mesmo
Pai; mas ela não tem autoridade sobre nós; devemos admirar, mas não
imitar. Isso dá ao cristão típico nesta terra um estranho toque de leveza que
é quase uma frivolidade. A natureza era uma mãe solene para os adoradores
de Isis e Cibele, para Wordsworth7 ou Emerson. Mas não é solene para
Francisco de Assis ou George Herbert. Para São Francisco, a natureza é
uma irmã, e até mesmo uma irmã mais nova: uma pequena irmã que dança,
da qual podemos rir, mas também devemos amar.
Isso, no entanto, dificilmente é nosso ponto principal no presente; só
admiti esse ponto para mostrar o quão constantemente, e como que
acidentalmente, a chave se encaixava nas menores portas. Nosso ponto
principal é que, se houver uma mera tendência de melhoria impessoal na
natureza, deve presumivelmente ser uma tendência simples rumo a um
simples triunfo. Pode-se imaginar que alguma tendência automática na
biologia pode nos levar a ter narizes cada vez maiores. Mas eis a questão:
queremos ter narizes cada vez maiores? Acredito que não, e que a maioria
de nós deseja dizer a nossos narizes — “este é seu limite, não o ultrapasse;
e aqui ficará demarcado o seu orgulhoso fim”: queremos um nariz de um
comprimento que garanta um rosto interessante. Mas não podemos
imaginar uma mera tendência biológica rumo à produção de rostos
interessantes; pois um rosto interessante é um arranjo particular dos olhos,
nariz e boca, em uma complexa relação mútua. A proporção não pode ser
um movimento a esmo; ou é um acidente, ou é um plano. O mesmo se passa
com o ideal da moralidade humana e sua relação com os humanitários e
anti-humanitários. É concebível que vamos cada vez mais tirar nossas mãos
das coisas: não montaremos mais a cavalo e não colheremos flores.
Eventualmente podemos chegar a não perturbar a mente de um homem nem
mesmo com um só argumento; a não perturbar o sono dos pássaros com a
menor tosse. A apoteose última seria um homem sentado em repouso, não
ousando se mexer por medo de perturbar o vôo de uma ave, nem comer por
medo de incomodar um micróbio. Podemos sem dúvida alguma vagar
inconscientemente rumo a uma consumação tão tosca como essa. Mas
queremos uma consumação tosca como essa? Similarmente, podemos
inconscientemente evoluir pelo caminho oposto, que pode ser chamado de
linha nietzschiana de desenvolvimento — super-homens que esmagam
super-homens em uma imensa torre de tiranos até que o universo seja
destruído por mera diversão. Mas queremos que o universo seja destruído
por mera diversão? Não está realmente claro que o que realmente
desejamos é um tipo particular de administração e proposição dessas duas
coisas; um certo quantum de restrição e respeito, de energia e maestria? Se
nossa vida chega realmente a ser tão bela quanto um conto de fadas,
devemos lembrar que toda a beleza dos contos de fadas está nisto: que o
príncipe guarda em si um espanto que está bem próximo de se tornar um
medo. Se tiver medo do gigante, será o seu fim; mas se estiver
excessivamente maravilhado será o fim do conto de fadas. Tudo depende de
o príncipe ser suficientemente humilde para o espanto, e suficientemente
soberbo para a batalha. Assim, nossa atitude perante o gigante do mundo
não deve ser meramente uma crescente delicadeza ou um crescente
desprezo: deve ser uma proporção particular dos dois — que é exatamente
correta. Devemos ter em nós suficiente reverência por todas as coisas
exteriores para nos levar a pisar temerosamente na relva. Também devemos
ter suficiente desdém por todas as coisas, para nos levar, na ocasião devida,
a escarrar nas estrelas. Essas duas coisas (se devemos ser bons ou felizes),
porém, devem ser combinadas, não em qualquer combinação, mas em uma
combinação particular. A perfeita felicidade do homem na terra, se de fato
existe, não será algo sólido e plano, como a satisfação dos animais. Será um
equilíbrio exato e periclitante; como o de um romance desesperado. O
homem deve ter fé suficiente em si para ter aventuras, e dúvida suficiente
para se deleitar nelas.
Essa é, portanto, nossa segunda exigência para o ideal do progresso.
Primeiro ele deve ser fixo; em segundo lugar deve ser composto. Não deve
(se deve satisfazer nossas almas) ser a simples vitória em que uma coisa
engole tudo mais, ou o amor ou o orgulho, ou a paz ou a aventura: deve ser
uma imagem definida composta desses elementos em sua melhor proporção
e relação. Não me preocupo neste momento em negar que alguma bela
culminância pode, pela constituição das coisas, ser reservada à raça
humana. Somente afirmo que se essa feliz composição estiver fixada para
nós, deve estar fixada por alguma mente; pois somente uma mente pode
distribuir as proporções exatas de uma felicidade complexa. Se a
beatificação do mundo é um mero trabalho da natureza, então deve ser algo
tão simples quanto o esfriamento ou o aquecimento global. Mas se a
beatificação do mundo não é um trabalho da natureza, mas sim, uma obra
de arte, então ela envolve um artista. E aqui novamente minha
contemplação foi capturada pela arcaica voz que disse: “Poderia ter lhe dito
tudo isso há muito tempo. Se há algum progresso certo só pode ser meu tipo
de progresso, rumo a uma cidade plena de virtudes e dominações onde a
justiça e a paz se beijam. Uma força impessoal pode estar nos levando para
um matagal de perfeita planura ou a um pico de perfeita altura. Mas
somente um Deus pessoal pode possivelmente estar a nos guiar — se
estamos de fato sendo guiados — a uma cidade de ruas adequadas e
proporções arquitetônicas, a uma cidade em que cada um de nós pode
contribuir na medida correta de sua própria cor ao casaco multicolorido de
José”.8
O cristianismo novamente deu de forma dupla a exata resposta que
exigi. Eu disse que “o ideal deve ser fixo”, e a Igreja respondeu “o meu é
literalmente fixo, pois existiu antes de tudo mais”. Disse logo depois que “o
ideal deve ser artisticamente composto, como uma pintura”; e a Igreja
respondeu que “o meu é quase que literalmente uma pintura, pois sei quem
a pintou”. Passei então à terceira coisa, que, como me pareceu, era
necessária para uma utopia ou meta para o progresso. E de todas as três é a
mais difícil de expressar. Talvez possa ser assim expressa: precisamos de
vigilância até mesmo na utopia, para que não caiamos da utopia como
caímos do Éden.
Afirmamos que uma das razões oferecidas para ser um progressista é
que as coisas naturalmente tendem a melhorar. Mas a única razão para se
ser um progressista é que as coisas tendem naturalmente a piorar. A
corrupção não é somente o único argumento para ser progressista; é
também o único argumento contra ser conservador. A teoria conservadora
seria realmente dramática e irrespondível se não fosse por esse fato. Mas
todo o conservadorismo é baseado na idéia de que se deixarmos as coisas
sozinhas elas permanecem o que são. Mas as coisas não se passam assim.
Se deixarmos algo sozinho o abandonamos a uma torrente de mudança. Se
deixarmos um poste branco sozinho, logo ele será um poste negro. Se se
deseja que ele seja branco, é preciso sempre pintá-lo novamente; isto é, uma
revolução é sempre necessária. Em suma, se se deseja o antigo poste branco
é preciso um novo poste branco. Mas isso que é verdadeiro até mesmo das
coisas inanimadas é, em um sentido muito especial e terrível, verdadeiro
para todas as coisas humanas. Uma vigilância quase antinatural é realmente
exigida do cidadão devido à horrível rapidez com que as instituições
humanas envelhecem. É costume no romance e jornalismo ligeiro falar dos
homens que sofrem sob antigas tiranias. Mas, de fato, os homens quase
sempre sofreram sob novas tiranias; sob tiranias que tinham defendido as
liberdades públicas há menos de vinte anos. Foi assim que a Inglaterra se
encheu de júbilo sobre a monarquia patriótica de Elizabete;9 e então, quase
que imediatamente após o júbilo, caiu cheia de fúria na armadilha tirânica
do primeiro Carlos. 10 Da mesma forma, na França a monarquia se tornou
intolerável, não simplesmente depois de ter sido tolerada, mas logo após ter
sido adorada. O neto de Luís, o Amado,11 se tornou Luís, o guilhotinado.12
Na Inglaterra do século xix, o industrial radical recebeu a inteira confiança
como um simples tribuno do povo, até que subitamente ouvimos o brado
socialista de que era um tirano a devorar o povo como pão. Nós também
confiamos até o último instante nos jornais como órgão da opinião pública.
E só muito recentemente alguns de nós viram — não lentamente, mas como
num súbito esclarecimento — que obviamente não são nada disso. São, por
natureza, os hobbies de alguns poucos bilionários. Não temos a menor
necessidade de nos rebelar contra a antigüidade; a rebelião deve se erguer
contra a novidade. São os novos reis, o capitalista ou o editor, que
realmente atrasam o mundo moderno. Não há o menor temor de que um rei
moderno irá se sobrepor à constituição; é bem mais possível que ele a
ignore e trabalhe nos bastidores contra ela; ele não irá se aproveitar de seu
poder real, mas sim, ao contrário, de sua impotência real, do fato de estar
livre da crítica e da publicidade. Pois esse novo rei é a figura mais privada
de nosso tempo. Não será necessário que alguém lute contra a proposta de
censura da imprensa. Não precisamos da censura da imprensa, pois já temos
a censura pela imprensa.
A surpreendente rapidez com que os sistemas populares se tornam
opressivos é o terceiro fato que nossa teoria perfeita do progresso deve
admitir. Ela deve estar sempre atenta a todo privilégio que é abusado, a cada
direito do trabalhador que é injustiçado. Nesse assunto estou inteiramente
ao lado dos revolucionários. Eles estão certos em sempre suspeitarem das
instituições humanas e em não colocar sua confiança nos príncipes ou em
qualquer filho do homem. O soberano escolhido para ser o amigo do povo
se torna o inimigo do povo; o jornal aberto para dizer a verdade agora existe
para evitar que a verdade seja dita. Nisso realmente senti que enfim ficaria
ao lado do revolucionário. Mas contive novamente minha respiração: pois
lembrei que novamente estava ao lado do ortodoxo.
O cristianismo falou novamente e disse: “Sempre afirmei que os homens
são naturalmente regressivos; que a virtude humana tende por sua própria
natureza a enferrujar ou apodrecer; sempre disse que os seres humanos
erram, especialmente os seres humanos felizes, os particularmente
orgulhosos e prósperos. Essa eterna revolução, essa suspeita sustentada
pelos séculos, você (sendo um moderno adepto de tudo que é vago) chama
de doutrina do progresso. Se fosse um filósofo a chamaria, como faço, de
doutrina do pecado original. Pode chamá-la o quanto quiser de avanço
cósmico; eu a chamo pelo que ela é — a queda”.
Falei da ortodoxia que vem como uma espada; aqui confesso que veio
como um machado de batalha. Pois realmente o cristianismo é a única coisa
que tem algum direito real de questionar o poder dos bem-nascidos e bem-
educados. Já ouvi suficientemente os socialistas, ou mesmo os democratas
dizendo que as condições físicas dos pobres devem necessariamente torná-
los mentalmente e moralmente degradados. Ouvi homens de ciência — e
ainda há cientistas que não se opõem à democracia — dizendo que se
dermos aos pobres condições mais saudáveis, o vício e o erro
desaparecerão. Ouvi-lhes com uma horrível atenção, com uma fascinação
terrível. Pois foi como assistir um homem energicamente serrando da árvore
o galho em que está sentado. Se esses alegres democratas pudessem provar
seu ponto, destruiriam a democracia. Se os pobres estão tão completamente
desmoralizados, talvez seja prático elevá-los. Mas certamente é bastante
prático tirar-lhes o voto. Se o homem em um quarto infecto não pode votar
bem, então a primeira e mais rápida dedução é que ele não deve votar. A
classe governante pode dizer com bastante razão: “Pode levar algum tempo
para reformar seu quarto. Mas se é o bruto que dizem, ele levará muito
pouco tempo para arruinar nosso país. Portanto seguiremos o aviso e não
lhe daremos qualquer chance”. É uma horrífica diversão ver a forma com
que o socialista sincero lança industriosamente as bases de toda aristocracia,
perorando suavemente sobre a evidente incompetência dos pobres para o
governo. É como ouvir alguém em uma festa noturna se desculpando por
entrar sem o vestido de gala, explicando que há pouco estava drogado, tinha
um hábito pessoal de tirar as roupas no meio da rua, e tinha, além disso,
acabado de tirar o uniforme de presidiário. Sente-se que o anfitrião diria, a
qualquer momento, que se a situação era realmente tão ruim, ele não
deveria sequer entrar. O mesmo se passa com o socialista comum, que com
uma face radiante, prova que o pobre, depois de suas experiências
destrutivas, não pode ser realmente confiável. A qualquer momento o rico
pode dizer “tudo bem, então não iremos confiar nele”, e bater a porta em
sua cara. Sob a base da visão do Sr. Blatchford a respeito da hereditariedade
e o ambiente, o ponto a favor da aristocracia é bastante esmagador. Se as
casas limpas e o ar limpo produzem as almas puras, por que não dar o poder
— no presente ao menos — àqueles que sem dúvida desfrutam do ar limpo?
Se melhores condições tornarão os pobres mais capazes do autogoverno,
por que as melhores condições não tornam os atuais ricos mais aptos a
governá-los? Quanto ao argumento comum sobre o ambiente, o problema é
bem claro. A classe confortável deve ser simplesmente nossa vanguarda na
utopia.
Há alguma resposta à proposição de que aqueles que tiveram as
melhores oportunidades serão provavelmente nossos melhores guias? Ao
argumento de que aqueles que respiraram o ar limpo devem decidir por
aqueles que respiraram o ar infecto? No que me toca, só há uma resposta: o
cristianismo. Somente a Igreja Cristã pode oferecer uma objeção racional à
completa confiança nos ricos. Pois ela defendeu desde o princípio que o
perigo não estava no ambiente do homem, mas no próprio homem.
Ademais, ela sustentou que se podemos falar de um ambiente perigoso, o
mais perigoso de todos é o ambiente confortável. Sei que a mais moderna
manufatura tem realmente se ocupado com a tentativa de produzir uma
agulha anormalmente grande. Sei que os mais recentes biólogos têm estado
ansiosos principalmente para descobrir um camelo bem pequeno. Mas se
reduzirmos o camelo ao menor tamanho possível, ou abrirmos o buraco da
agulha ao máximo — se, em suma, pressupormos que as palavras do Cristo
significaram o mínimo que poderiam significar, ao menos elas significaram
isto: que os ricos muito provavelmente não são moralmente confiáveis. O
cristianismo, até mesmo quando dissolvido, é quente o suficiente para fazer
ferver toda a sociedade moderna até às cinzas e os farrapos. O simples
mínimo da Igreja seria um ultimato mortal ao mundo. Pois todo o mundo
moderno é absolutamente baseado no pressuposto, não de que os ricos são
necessários — o que é sustentável —, mas de que os ricos são confiáveis, o
que, para um cristão, não é sustentável. É possível escutar perpetuamente,
em todas as discussões sobre jornais, empresas, aristocracias, ou política
partidária, o argumento de que o rico não pode ser subornado. O fato é que,
obviamente, o rico é subornável; e já foi muitas vezes subornado. É por isso
que é um homem rico. Toda a defesa do cristianismo nessa questão se
sustenta no fato de que um homem que depende dos luxos desta vida é
corrupto, espiritualmente corrupto, politicamente corrupto, financeiramente
corrupto. Há algo que Cristo e todos os santos cristãos repetiram com uma
violenta monotonia. Disseram simplesmente que ser rico é correr um risco
peculiar de naufrágio moral. Não é demonstravelmente anticristão matar os
ricos como violadores de uma justiça definível. Não é demonstravelmente
anticristão coroar os ricos como governantes convenientes da sociedade.
Certamente não é anticristão se rebelar contra os ricos ou se lhes submeter.
Mas é certamente anticristão confiar nos ricos, considerá-los como mais
moralmente confiáveis que os pobres. Um cristão pode consistentemente
dizer: “Respeito a posição daquele homem, apesar de ele receber propinas”.
Mas um cristão não pode dizer, como todos os homens modernos estão
dizendo no almoço e no desjejum, que “um homem daquela posição não
aceitaria propinas”. Pois faz parte do dogma cristão a afirmação de que
homens de todos os níveis sociais podem aceitar propinas. É parte do
dogma cristão; e também, por uma curiosa coincidência, é parte da óbvia
história humana. Quando alguém diz que um homem “naquela posição”
seria incorruptível, não é preciso trazer o cristianismo para a discussão. Era
Lorde Bacon13 um engraxate? Era o duque de Marlborough14 um gari?
Devo estar preparado, na melhor das utopias, para a queda moral de
qualquer homem, em qualquer posição, a qualquer momento; especialmente
para minha queda de minha posição neste momento.
Já se publicou muito jornalismo vago e sentimental sobre o tema de que
o cristianismo é semelhante à democracia, e muito pouco desse jornalismo
tem força ou clareza suficiente para refutar o fato de que as duas coisas
muitas vezes estiveram em conflito. A verdadeira base sobre a qual o
cristianismo e a democracia se unem é bem mais profunda. A idéia
especialmente e peculiarmente anticristã é a de Carlyle — a idéia de que o
homem que deveria governar é o homem que sente que pode governar.
Tudo o mais em sua obra pode ser cristão, mas isso é pagão. Se nossa fé
tem algo a comentar sobre o governo, deve ser o seguinte: que deve
governar quem não acredita que pode governar. O herói de Carlyle pode
dizer “serei rei”; mas o santo cristão deve dizer: nolo episcopari. Se o
grande paradoxo do cristianismo significa algo, significa isto: que devemos
tirar a coroa de nossas mãos, e sair à caça em lugares secos e nos cantos
obscuros da terra até que achemos o homem singular que se considera
incapacitado para usá-la. Carlyle estava muito errado; não devemos coroar
o homem excepcional que sabe que pode governar. Na verdade, devemos
coroar o homem bem mais excepcional que sabe que não pode.
Essa é uma das duas ou três defesas vitais da democracia que realmente
funciona. O mero maquinário de votação não é democracia, apesar de não
ser fácil realizar no presente qualquer outro método democrático mais
simples. Mas mesmo o maquinário de votação é profundamente cristão,
neste sentido prático de ser uma tentativa de obter a opinião daqueles que
seriam modestos demais para oferecê-la. É uma aventura mística; confia
especialmente naqueles que não são autoconfiantes. Esse enigma é
estritamente peculiar à cristandade. Não há nada de realmente humilde na
abnegação do budista; o moderado hindu é moderado, mas não é manso.
Mas há algo psicologicamente cristão na idéia de buscar a opinião dos
obscuros ao invés de tomar o caminho óbvio da aceitação da opinião dos
proeminentes. Dizer que votar é particularmente cristão pode parecer algo
curioso. Dizer que a disputa por votos é cristã pode parecer bastante louco.
Mas a campanha eleitoral é muito cristã em sua idéia primária. Encoraja os
humildes; diz ao homem modesto: “Erga-se, meu amigo”. E se há algum
defeito menor na disputa eleitoral, em sua piedade perfeita e equilibrada, é
somente porque pode possivelmente negligenciar o encorajamento à
modéstia do político em campanha.
A aristocracia não é uma instituição; é um pecado, e geralmente bem
venial. É o mero vagar ou desvio do homem em uma espécie de
pomposidade natural e elogio dos poderosos, que é o comportamento mais
óbvio e fácil deste mundo.
Uma das centenas de respostas à fugidia perversão da “força” moderna é
que os agentes mais corajosos e dispostos são também os mais frágeis ou
plenos de sensibilidade. As coisas mais rápidas são as mais suaves. O
pássaro é ativo por ser suave. Uma pedra queda sempre indefesa, pois a
dureza é uma fraqueza. O pássaro pode naturalmente se elevar, pois a
fragilidade é força. Na perfeita força há um tipo de frivolidade, um caráter
aéreo que pode se manter no ar. Os investigadores modernos da história
miraculosa admitiram solenemente que o poder de “levitação” é uma das
características dos grandes santos. Poderiam acrescentar: a leveza é umas
das características dos grandes santos. Os anjos podem voar porque
consideram a si mesmos com leveza. Esse sempre foi o instinto da
cristandade, e especialmente da arte cristã. Lembrem-se de como Fra
Angelico15 representou seus anjos não somente como pássaros, mas quase
como borboletas. Lembrem-se de como a arte medieval mais intensa estava
cheia de luz e de tecidos esvoaçantes, de pés velozes e travessos. Essa era a
única coisa que os pré-rafaelitas modernos16 não conseguiam imitar dos
pré-rafaelitas verdadeiros.17 Burne-Jones18 nunca pôde recuperar a
profunda leveza da Idade Média. Nas antigas pinturas cristãs o céu acima de
toda figura é como um pára-quedas azul ou dourado. Toda figura parece
prestes a voar e flutuar pelos céus. A capa esfarrapada do mendigo o
suspenderá como as plumas em raio dos anjos. Mas os reis com seu ouro
pesado, e os orgulhosos com seus mantos de púrpura, afundarão
naturalmente, pois o orgulho não pode se alçar à leveza ou à levitação. Ele
nos “instala” em uma espécie de seriedade egoísta; mas é preciso se elevar a
um alegre auto-esquecimento. Um homem cai em uma mesa de estudo
marrom; mas se eleva ao céu azul. A seriedade não é uma virtude. Seria
uma heresia, mas uma heresia bem mais sensível, dizer que a seriedade é
um vício. É realmente uma tendência natural ou um lapso se levar muito a
sério, pois é a coisa mais fácil de se fazer. É bem mais fácil escrever um
bom artigo de manchete para o Times do que uma boa piada para o Punch.19
Pois a solenidade flui do homem naturalmente, enquanto a gargalhada é um
salto. É fácil ser pesado e difícil ser leve. Satã caiu pela força da gravidade.
A Europa tem tido a honra peculiar, desde que se tornou cristã, de,
apesar de ter uma aristocracia, sempre tratá-la como uma fraqueza —
geralmente como uma fraqueza que deve ser tolerada. Se alguém deseja
apreciar esse ponto, que saia do cristianismo para outra atmosfera
filosófica. Que compare, por exemplo, as classes européias com as castas
indianas. Ali a aristocracia é muito mais terrível, porque é muito mais
intelectual. Sente-se seriamente que a hierarquia das classes é uma
hierarquia de valores espirituais; que o padeiro é melhor do que o
açougueiro em um sentido sacro e invisível. Mas nenhum cristianismo, nem
mesmo o mais ignorante e perverso, chegou a sugerir que uma baronesa era
melhor que um açougueiro em um sentido sacro. Nenhum cristianismo, não
importa quão ignorante e extravagante, chegou a sugerir que um duque não
poderia ser condenado ao inferno. Na sociedade pagã pode ter existido (não
sei de fato) semelhante divisão rígida entre o homem livre e o escravo. Mas
na sociedade cristã sempre pensamos o nobre como uma espécie de piada,
apesar de admitirmos que em algumas cruzadas e concílios grandiosos ele
conquistou o direito de ser chamado uma piada prática. Mas nós na Europa
nunca levamos realmente a aristocracia a sério, não no fundo de nossas
almas. Somente um não-europeu ocasional, como o Dr. Oscar Levy,20 o
único nietzschiano inteligente, que pode conseguir levar a aristocracia a
sério por um algum tempo. Pode ser um simples viés patriótico, apesar de
acreditar que não, mas me parece que a aristocracia inglesa não é somente o
tipo, mas o coroamento e flor de todas as aristocracias atuais; tem todas as
virtudes oligárquicas e todos os seus defeitos. É casual, educada e corajosa
nos assuntos óbvios; mas tem um grande mérito que se sobrepõe até mesmo
a esses. O grande e óbvio mérito da aristocracia inglesa consiste em que
ninguém poderia possivelmente levá-la a sério.
Em suma, enunciei lentamente, como é usual, a necessidade de lei
igualitária na utopia; e, como é usual, descobri que o cristianismo esteve lá
antes de mim. Toda história de minha utopia tem a mesma tristeza
agradável. Estava sempre correndo de meu estudo arquitetural com planos
para uma nova torre, somente para descobri-la erguida sob o sol, brilhando
e com mil anos de idade. Para mim, no sentido antigo e parcialmente no
moderno, Deus respondeu a prece: “Proteja-nos, ó Senhor, em todas as
nossas realizações”. Penso realmente, sem qualquer vaidade, que houve um
momento em que poderia ter inventado o voto nupcial, como uma
instituição, com meus próprios miolos; mas descobri, com um suspiro de
alívio, que já fora inventado. Mas, já que seria muito trabalhoso mostrar
como, fato por fato, centímetro por centímetro, minha própria concepção da
utopia foi respondida somente na Nova Jerusalém, tomarei este único
exemplo da questão do casamento como indicador do movimento
convergente, e posso até dizer da colisão convergente de tudo mais.
Quando todos os oponentes usuais do socialismo falam sobre
impossibilidades e alterações na natureza humana sempre esquecem uma
importante distinção. Nas modernas concepções ideais de sociedade há
alguns desejos que não são possivelmente atingíveis: mas há alguns desejos
que não são desejáveis. Que todos os homens devam viver em casas
igualmente belas é um sonho que pode ou não ser atingido; mas que todos
os homens devam viver na mesma bela casa não é um sonho de forma
alguma: é um pesadelo. Que um homem deva amar todas as mulheres
maduras é um ideal que talvez não seja atingível. Mas que um homem deva
considerar todas as mulheres maduras exatamente como considera sua mãe
não é um ideal inatingível, mas um ideal que não deve ser atingido. Não sei
se o leitor concorda comigo nesses exemplos; mas acrescentarei o exemplo
que sempre mais me afetou. Nunca pude conceber ou tolerar qualquer
utopia que não me permitisse a liberdade que me é mais cara, a de poder me
comprometer com algo. A anarquia completa não tornaria simplesmente
impossível ter qualquer disciplina ou fidelidade; também tornaria
impossível qualquer diversão. Um exemplo óbvio: não valeria a pena
apostar se a aposta não fosse vinculante. E as apostas e semelhantes
esportes são somente as formas distorcidas e atrofiadas do instinto original
do homem pela aventura e o romance, de que muito se tem falado nestas
páginas. E os perigos, recompensas, punições e realizações de uma aventura
devem ser reais, caso contrário a aventura é somente um pesadelo
cambiante e desalmado. Se aposto, devo ser obrigado a pagar, ou não há
poesia na aposta. Se faço um desafio devo ser obrigado a lutar, ou não há
poesia no desafio. Se juro ser fiel devo ser amaldiçoado quando sou infiel,
ou não há alegria no juramento. Sequer seria possível fazer um conto de
fadas das experiências do homem que, quando engolido por uma baleia, se
acreditasse no topo da Torre Eiffel, ou que quando transformado em um
sapo começasse a se comportar como um flamingo. Para os fins até mesmo
dos romances mais loucos os resultados devem ser reais e irrevogáveis. O
casamento cristão é o maior exemplo de um resultado real e irrevogável; e é
por isso que ele é o tema principal e o centro de todos os nossos escritos
românticos. E este é meu último exemplo de coisas que deveria pedir, e
pedir imperativamente, de qualquer paraíso social: pediria que fosse
obrigado a manter minha parte da barganha, que meus juramentos e
compromissos fossem levados a sério e que a utopia vingasse minha honra
em minha própria pessoa.
Todos os meus modernos amigos utopistas se entreolham de forma bem
receosa, pois sua esperança última é a dissolução de todos os laços
especiais. Mas novamente pareço ouvir, como uma espécie de eco, uma
resposta que transcende este mundo. “Você terá obrigações reais, e,
portanto, aventuras reais quando chegar à minha utopia. Mas a mais difícil
obrigação e a mais exorbitante aventura consiste em chegar lá”.

1 Robert Bontine Cunninghame Graham (1852–1936) foi um político, escritor, jornalista e


aventureiro escocês. Foi o primeiro membro socialista do parlamento do Reino Unido.
2 Auberon Edward William Molyneux Herbert (1839–1906) foi um escritor, filósofo e individualista
inglês. Foi membro do Parlamento Britânico e promoveu uma filosofia do liberalismo clássico, indo
além de Herbert Spencer e defendendo que o governo deveria ser voluntariamente financiado.
3 O Sr. Thomas Gradgrind é o notório superintendente escolar no romance Tempos difíceis de
Charles Dickens, que se dedicava unicamente à busca do lucro. Seu nome é hoje utilizado para se
referir a alguém que só se preocupa com os fatos “objetivos” e os números.
4 James Abbott McNeill Whistler (1834–1903), pintor norte-americano, ativo durante a Era Dourada
americana (1870–1900). Foi um grande defensor da “arte pela arte” e do desprezo a toda
sentimentalidade e alusão moral na pintura.
5 Henry Stephens Salt (1851–1939), escritor e ativista social inglês. Era vegetariano, socialista,
pacifista e contrário à vivissecção dos animais. Considera-se que foi o primeiro a defender os direitos
dos animais.
6 Técnica de pintura desenvolvida na Renascença, que emprega o contraste de luz e sombas para
expressar um efeito dramático. É bastante característico nas pinturas de Caravaggio.
7 William Wordsworth (1779–1850) foi um grande poeta romântico inglês que, junto com Samuel
Taylor Coleridge, ajudou a dar início à Era Romântica da literatura inglesa. Foi poeta laureado da
Grã-Bretanha de 1843 até sua morte em 1850.
8 Cf. Gn 37, 3. Era o nome da vestimenta usada por José do Egito, que lhe foi dada por seu pai, Jacó.
9 Elizabete i (1533–1603), rainha da Inglaterra e Irlanda de 17 de novembro de 1558 até sua morte
em março de 1603. Filha de Henrique viii e Ana Bolena, foi a última monarca Tudor. Seu reinado
ficou conhecido como a Era Elizabetana, prodigiosa pelo florescimento do teatro de Shakespeare e
Marlowe e pelas aventuras marítimas de Francis Drake. Seus quarenta e quatro anos de reinado
forneceram grande estabilidade ao reino e ajudaram a forjar um senso de identidade nacional.
10 Carlos i (1600–1649), rei da Inglaterra, Irlanda e Escócia de março de 1625 até sua execução em
1649. Depois de sua ascensão ao trono, lutou contra o parlamento que buscava limitar o poder do rei.
Carlos acreditava no direito divino dos reis, e que deveria governar somente de acordo com sua
consciência. Suas ações foram consideradas tirânicas e absolutistas pela população. A partir de 1642
inicia-se uma guerra de Carlos contra os parlamentos inglês e escocês na Guerra Civil Inglesa.
Depois de sua derrota em 1645 é entregue ao Parlamento Britânico, consegue fugir em 1647, mas
acaba capturado e executado por alta traição em 1649.
11 Luís xv (1710–1774), o monarca da Casa de Bourbon que reinou de 1715 a 1774. Seu reinado de
58 anos foi o segundo mais longo da história francesa. Apesar de ter engrandecido o prestígio
político francês, suas guerras drenaram o Tesouro do Reino e abriram o caminho para o colapso da
monarquia na Revolução Francesa.
12 Luís xvi (1754–1793) foi o último rei da França antes da Revolução. Foi guilhotinado em 21 de
janeiro de 1793. Iniciou seu reinado com algumas reformas iluministas que geraram grande revolta e
hostilidade na nobreza francesa. Seu conservadorismo tardio levou a população a vê-lo como um
símbolo da pretensa tirania de todo o Antigo Regime.
13 Francis Bacon (1561–1626), filósofo, homem de Estado, cientista, jurista e escritor inglês. Foi
chanceler da Inglaterra e ganhou proeminência post mortem como um precursor do método científico
e do empirismo. A carreira pública de Bacon terminou em 1621, quando, após adquirir uma enorme
dívida, foi julgado e condenado por mais de vinte e três acusações diferentes de corrupção.
14 John Churchill (1650–1722), primeiro duque de Marlborough, foi um soldado e homem de Estado
inglês que serviu a cinco monarcas diferentes. Tinha uma ambição insaciável, satisfeita pelo fato de
que suas conexões familiares o colocaram sempre no centro da política européia. Foi através de sua
liderança que a Grã-Bretanha se consolidou como uma potência de primeira ordem.
15 Giovanni de Fiesole (1387–1455), monge dominicano e talvez o mais famoso pintor do início da
Renascença italiana. Notabilizou-se como o pintor dos anjos, por isso ficou conhecido como Fra
Angelico (Beato Angélico), quando beatificado.
16 A Irmandade Pré-Rafaelita foi um grupo de pintores, poetas e críticos ingleses fundada em 1848.
Seu principal objetivo era reformar a arte eliminando o que consideravam ser a abordagem
mecanicista dos artistas maneiristas e suas poses clássicas. A inspiração positiva veio da intensidade
e complexidade das pinturas do Quattrocento italiano.
17 Os verdadeiros pré-rafaelitas são os artistas do Quattrocento italiano, período que vai de 1400 a
1499, e que abarca os estilos da Idade Média tardia e do começo da Renascença.
18 Sir Edward Coley Burne-Jones (1833–1898), artista britânico intimamente associado com a fase
tardia do movimento pré-rafaelita. Participou ativamente do rejuvenescimento da arte dos vitrais na
Inglaterra.
19 Punch, ou The London Charivari, foi uma revista semanal britânica de humor e sátira criada em
1841, que ajudou a cunhar o termo cartoon no sentido moderno de ilustração humorística.
20 Oscar Ludwig Levy (1867–1946), médico e escritor alemão, conhecido principalmente como
estudioso de Nietzsche, e pelas primeiras traduções de sua obra para a língua inglesa.
CAPÍTULO 7
O romance da ortodoxia
É COSTUMEIRO RECLAMAR DA PRESSA E EXAUSTÃO DE NOSSA época. Mas,
na verdade, a principal marca de nossa época é a fadiga e a preguiça
profundas; e o fato é que a verdadeira preguiça é a causa da pressa. Tomem
um exemplo bem exterior: as ruas se enchem do barulho de táxis e carros de
passeio, mas devido ao repouso e não à atividade humana. Haveria menos
pressa se houvesse mais atividade, se as pessoas estivessem simplesmente
caminhando. Nosso mundo seria mais silencioso e menos extenuante. E o
que é verdadeiro da aparente pressa física também o é da aparente pressa do
intelecto. A maior parte do maquinário moderno da linguagem busca
economizar tempo e trabalho; e economiza o trabalho mental muito mais do
que deveria. As frases científicas são usadas como rodas e pistões para
tornar ainda mais rápido e suave o caminho do conforto. Longas palavras
passam ruidosamente por nós como longos vagões de trem. Sabemos que
carregam milhares que estão cansados ou indolentes demais para caminhar
e pensar por si mesmos. Trata-se de um bom exercício tentar encontrar ao
menos uma vez uma forma de expressar qualquer opinião nossa em
palavras de uma sílaba. Se você diz “a utilidade social da sentença
indeterminada é reconhecida por todos os criminologistas como uma parte
da evolução sociológica rumo a uma visão mais humana e científica da
punição”, pode passar horas falando disso sem qualquer movimento da
massa cinzenta em seu crânio. Mas se começar com “desejo que João vá
para a prisão e que José diga quando João deve sair”, descobrirá, com um
arrepio de horror, que é obrigado a pensar. As palavras longas não são as
palavras difíceis; são as palavras curtas que o são. Há muito mais sutileza
metafísica na palavra “merda” do que na palavra “degeneração”.
Mas essas longas e confortáveis palavras que salvam os modernos da
labuta do raciocínio têm um aspecto particular no qual são especialmente
ruinosas e confusas. Essa dificuldade ocorre quando a mesma palavra longa
é usada em diferentes conexões para significar coisas muito diferentes.
Assim, para tomar um bem conhecido exemplo, a palavra “idealista” tem
um significado na filosofia e outro na retórica moral. Da mesma forma, os
materialistas científicos tinham razão em reclamar das pessoas que
misturavam o termo “materialista” no sentido cosmológico com o
“materialista” no sentido de escárnio moral. Um exemplo ainda mais
simples: o homem que odeia os “progressistas” em Londres sempre se diz
“progressista” na África do Sul.
Uma confusão quase tão boba como essa emergiu em conexão com a
palavra “liberal”, tal como aplicada à religião ou aplicada à política e a
sociedade. Muitas vezes se sugere que todos os liberais devem ser livres-
pensadores, porque devem amar tudo que é livre. Você poderia muito bem
dizer que todos os idealistas devem ser homens da Alta Igreja,1 porque
devem amar tudo que é elevado. Você poderia muito bem dizer também que
os homens da Baixa Igreja2 devem gostar da Missa Baixa, e que os homens
da Igreja tolerante devem gostar de piadas de tolerância. Tudo é um mero
acidente de palavras. Na Europa moderna e real, um livre-pensador não
significa um homem que pensa por si mesmo, mas um homem que, tendo
pensado por si mesmo, chegou a uma classe particular de conclusões, como
a origem material dos fenômenos, a impossibilidade dos milagres, a
improbabilidade da imortalidade pessoal, e assim por diante. E nenhuma
dessas idéias é particularmente liberal. Mais do que isso: de fato a maior
parte dessas idéias é definitivamente despótica, como mostrará este
capítulo.
Nas poucas páginas que se seguem proponho-me a apontar, tão
rapidamente quanto possível, que cada um dos temas mais fortemente
ressaltados pelos liberais teológicos possuem um efeito sobre a prática
social que seria definitivamente despótico. Quase toda proposta
contemporânea de levar a liberdade à Igreja é simplesmente uma proposta
de levar a tirania para o mundo. Pois libertar a Igreja hoje não significa nem
mesmo libertá-la em todos os sentidos. Significa libertar aquele conjunto
peculiar de dogmas vagamente chamados de científicos, monistas,
panteístas, arianistas, ou da necessidade universal. E cada um desses (e
serão abordados um por um) pode ser exposto como um aliado natural da
opressão. Só há uma coisa que nunca pode ultrapassar certo ponto em sua
aliança com a opressão — trata-se da ortodoxia. Posso, é verdade, distorcer
a ortodoxia e justificar parcialmente um tirano. Mas também posso
facilmente criar uma filosofia alemã para justificá-lo inteiramente.
Agora devemos abordar ordenadamente as inovações que são
características da nova teologia ou da Igreja modernista. Concluímos o
último capítulo com a descoberta de uma delas. A própria doutrina que é
considerada a mais antiquada foi desvelada como a única proteção das
jovens democracias da terra. A doutrina aparentemente mais impopular se
mostrou como a única força do povo. Em suma, descobrimos que a única
negação da oligarquia residia na afirmação do pecado original. E o mesmo
se passa em todos os outros casos.
Tomo primeiro o exemplo mais óbvio, o caso dos milagres. Por alguma
razão extraordinária, há uma noção fixa que é mais liberal descrer dos
milagres do que neles acreditar. Não posso imaginar o porquê, e ninguém
pode me dizê-lo. Por alguma causa inconcebível, um clérigo “liberal” ou
“tolerante” sempre significa um homem que deseja ao menos diminuir o
número dos milagres; nunca um homem que deseja aumentar seu número.
Significa sempre que um homem está livre para descrer que o Cristo se
ergueu de seu túmulo; nunca significa que um homem tem a liberdade de
acreditar que sua tia se ergueu de seu túmulo. É comum encontrar
confusões em uma paróquia porque um pároco não admite que São Pedro
tenha caminhado sobre a água; mas quão raramente surgem confusões
porque um clérigo diz que seu pai caminhou sobre o Rio Serpentine? E isso
não se dá porque — como o veloz debatedor secularista imediatamente
retrucaria — não é possível acreditar em milagres em nossa experiência.
Não é porque “milagres não acontecem”, como no dogma que Matthew
Arnold recitava com uma fé ingênua. Os casos alegados de coisas
sobrenaturais são muito maiores em nosso tempo do que seria possível
oitenta anos atrás. Os cientistas acreditam muito mais nessas maravilhas do
que antes: os prodígios mais desconcertantes, e até mesmo horríveis, da
mente e do espírito, estão sendo desvelados na psicologia moderna. Coisas
que a antiga ciência teria ao menos rejeitado francamente como milagres
estão a cada hora sendo afirmadas pela nova ciência. A única coisa que
ainda é antiquada o suficiente para rejeitar os milagres é a Nova Teologia.
Mas, na verdade, essa noção de que ela se encontra “livre” para negar os
milagres não tem relação alguma com a evidência contra ou a favor dos
fatos miraculosos. Trata-se de um preconceito verbal morto, cujo começo e
vida original não consistia na liberdade de pensamento, mas simplesmente
no dogma do materialismo. O homem do século xix não descreu da
Ressurreição porque seu cristianismo liberal lhe permitiu a dúvida. Tornou-
se incrédulo porque seu materialismo excessivamente rígido não lhe
permitia a crença. Tennyson, um típico homem do século xix, proferiu um
dos truísmos instintivos de seus contemporâneos quando disse que havia fé
na dúvida honesta do século. Em sua dúvida sobre milagres havia uma fé no
destino fixo e ateu; uma fé sincera e profunda na rotina incurável do
cosmos. As dúvidas do agnóstico eram somente os dogmas do monista.
Sobre os fatos e as evidências do sobrenatural falarei mais tarde. Aqui
só nos importamos com este ponto claro: mesmo que a idéia liberal de
liberdade possa ser usada em ambos os lados da discussão sobre os
milagres, ela está obviamente do lado dos milagres. A reforma e — no
único sentido tolerável — o progresso significam simplesmente o controle
gradual da matéria pela mente. Um milagre significa simplesmente o
controle veloz da matéria pela mente. Se você deseja alimentar o povo,
pode pensar que alimentá-los miraculosamente no deserto é impossível —
mas não pode considerá-lo despótico. Se realmente deseja que as crianças
possam ir ver o mar, não pode considerar despótico que sejam transportadas
em dragões voadores: só pode considerá-lo pouco provável. Um feriado,
assim como o liberalismo, significa somente a liberdade do homem. Um
milagre significa somente a liberdade de Deus. Você pode negar
conscientemente qualquer um dos dois, mas não pode chamar isso de
triunfo da idéia liberal. A Igreja Católica acreditava que o homem e Deus
possuem ambos uma espécie de liberdade espiritual. O calvinismo tirou a
liberdade do homem, mas manteve a de Deus. O materialismo científico
aprisiona o próprio Criador; acorrenta Deus assim como o Apocalipse
acorrentou o Demônio. Não deixa restar qualquer liberdade no universo. E
aqueles que apóiam esse processo são chamados de “teólogos liberais”.
Isso, como digo, é o caso mais leve e evidente. O pressuposto de que há
algo no ceticismo quanto aos milagres que é semelhante à liberalidade ou a
reforma é literalmente o oposto da verdade. Se um homem não pode
acreditar em milagres, o assunto está encerrado; ele não é particularmente
liberal, mas é perfeitamente honorável e lógico, que são qualidades bem
superiores. Mas se pode acreditar em milagres, ele certamente se torna mais
liberal por isso; pois eles significam primeiramente a liberdade da alma, e,
em segundo lugar, seu controle sobre a tirania da circunstância. Às vezes
isso é ignorado de uma forma singularmente ingênua, até mesmo pelos
homens mais capazes. O Sr. Bernard Shaw, por exemplo, fala com um
desprezo sincero e antiquado sobre a idéia dos milagres, como se fosse uma
espécie de ruptura de contrato por parte da natureza: ele parece ser
estranhamente inconsciente de que os milagres são somente as derradeiras
flores de sua própria árvore favorita, a doutrina da onipotência da vontade.
Assim como chama o desejo pela imortalidade de “egoísmo insignificante”,
esquecendo que acabou de chamar o desejo pela vida de altruísmo saudável
e heróico. Como pode ser nobre o desejo de fazer a vida infinita, porém
vulgar desejá-la imortal? Se é desejável que um homem deva triunfar sobre
a crueldade da natureza ou dos costumes, então os milagres são certamente
desejáveis; discutiremos posteriormente se são possíveis.
Mas devo passar aos maiores exemplos desse curioso erro; a noção de
que a “liberalização” da religião ajuda de alguma forma a libertação do
mundo. O segundo exemplo disso pode ser encontrado na questão do
panteísmo — ou, na verdade, de certa atitude moderna que é muitas vezes
chamada de imanentismo, e muitas vezes de budismo. Mas esse é um
assunto tão mais complicado que devo abordá-lo com uma preparação
maior.
As coisas ditas mais confiantemente por pessoas avançadas para
audiências lotadas são geralmente o oposto dos fatos; são na verdade nossos
truísmos que são falsos. Eis um exemplo: há uma frase de uma liberalidade
superficial proferida repetidamente nas sociedades éticas e nos parlamentos
da religião:3 “As religiões terrestres diferem em rituais e formas, mas o
ensinamento é o mesmo”. Isso é falso e o oposto dos fatos. As religiões
terrestres não diferem grandemente em ritos e formas; mas diferem
grandemente no que ensinam. É como se um homem dissesse: “Não se
engane pelo fato de que o Church Times e o Freethinker parecem
completamente diferentes, que um seja impresso no papel e o outro no
mármore, que um é triangular e o outro heptagonal; leia-os e verá que
dizem a mesma coisa”. A verdade é que, obviamente, são semelhantes em
tudo, exceto no fato de que não dizem a mesma coisa. Um corretor ateísta
em Surbiton4 tem exatamente a mesma aparência que um corretor
swendeborgiano5 em Wimbledon. Você pode perscrutá-los e sujeitá-los ao
estudo mais pessoal e ofensivo sem ver nada de swendeborgiano no chapéu
ou algo de particularmente profano no guarda-chuva. É exatamente em suas
almas que estão divididos. A verdade é que a dificuldade dos credos
terrestres não é esta que está alegada naquela tola máxima: que concordam
em seu significado, mas diferem em seu maquinário. É exatamente o
oposto. Concordam no maquinário; quase toda grande religião terrestre
trabalha com os mesmos métodos exteriores, com sacerdotes, escrituras,
altares, irmandades de juramento, festividades especiais. Concordam no
modo de ensinar e diferem sobre o que é ensinado. Os otimistas pagãos e os
pessimistas orientais têm templos assim como os liberais e os
conservadores têm jornais. Os credos que existem para destruir um ao outro
têm escrituras, assim como exércitos que existem para destruir um ao outro
têm armas.
O grande exemplo dessa alegada identidade de todas as religiões
humanas é a alegada identidade espiritual do budismo e do cristianismo.
Aqueles que adotam essa teoria geralmente evitam a ética da maior parte
dos credos, exceto o confucionismo, o qual apreciam por não ser um credo.
Mas são cuidadosos em seus elogios ao maometanismo, geralmente se
confinando a apreciar sua moralidade como um alívio para as classes
inferiores. Raramente sugerem a visão maometana do casamento (de que
muito se poder dizer), e quando o assunto é a ordem dos assassinos e seus
adoradores fétidos sua atitude chega a ser de frieza. Mas no caso da grande
religião de Gautama sentem sinceramente uma similaridade.
Os estudantes da ciência popular, como o Sr. Blatchford, estão sempre
insistindo que o cristianismo e o budismo são muito parecidos,
especialmente o budismo. Acredita-se nisso de forma bem geral, e eu
também acreditava até que li um livro que explicava as razões da
semelhança. Eram de dois tipos: semelhanças que nada significavam porque
eram comuns a toda a humanidade, e semelhanças que não eram
semelhanças de forma alguma. O autor solenemente explicou que os dois
credos eram semelhantes naquilo que todos os credos têm de semelhante,
ou então os descreveu como semelhantes em um ponto em que são
obviamente diferentes. Assim, como um exemplo da primeira classe, ele
disse que tanto o Cristo quanto o Buda foram chamados por uma voz divina
que veio do céu, como se esperássemos que a voz divina viesse de uma
carvoeira. Ou, novamente, seriamente defendeu que esses dois mestres
orientais, por uma coincidência singular, tinham uma relação com a lavação
dos pés. Também poderia ser dito que era uma notável coincidência que
ambos pudessem lavar seus pés. E a outra classe de similaridades se referia
a coisas que simplesmente não eram similares. Esse reconciliador das duas
religiões lança intensa atenção para o fato de que em certas festividades
religiosas o manto do Lama é feito em pedaços por respeito, e os pedaços
são altamente valorizados. Mas isso é o inverso de uma semelhança, pois as
vestes do Cristo não foram feitas em pedaço por respeito, mas por escárnio;
e os pedaços não foram altamente valorizados, exceto pelo que se poderia
obter com eles em um brechó da época. É como aludir à óbvia conexão
entre as duas cerimônias da espada: quando toca no ombro de um homem, e
quando corta sua cabeça. Não é de forma alguma similar para o homem.
Essas migalhas de pedantismo pueril importariam muito pouco se também
não fosse alegadamente verdadeiro que as alegadas semelhanças filosóficas
são também desses dois tipos, ou provando demais, ou nada provando.
Dizer que o budismo aprova a misericórdia e o autocontrole não é dizer que
ele é especialmente semelhante ao cristianismo; é somente dizer que não é
completamente diferente de toda a existência humana. Os budistas
desaprovam em teoria a crueldade ou o excesso porque todos os humanos
saudáveis desaprovam em teoria a crueldade e o excesso. Mas dizer que o
budismo e o cristianismo transmitem a mesma filosofia sobre essas coisas é
simplesmente falso. Toda a humanidade concorda que fomos enredados
pelo pecado. A maior parte da humanidade concorda que há uma rota de
fuga. Mas quanto ao que é essa rota de fuga, não penso que há duas
instituições no universo que se contradigam mais diretamente do que o
budismo e o cristianismo.
Mesmo quando pensava, junto da maior parte dos bem-informados (que
também eram um tanto quanto incultos), que o budismo e o cristianismo
eram semelhantes, havia uma coisa em todos eles que sempre me deixava
perplexo; refiro-me à surpreendente diferença em seus tipos de arte
religiosa. Não quero dizer o estilo técnico de representação, mas as coisas
que deveriam manifestamente representar. Não há dois ideais que possam
ser mais opostos do que um santo cristão em uma catedral gótica e um santo
budista em um templo chinês. A oposição está em cada ponto; mas talvez a
afirmação mais sumária desta oposição se encontre no fato de que o santo
budista sempre tem seus olhos fechados, enquanto os santos cristãos sempre
os têm bem abertos. O santo budista tem um corpo magro e harmonioso,
mas seus olhos estão pesados e selados pelo sono. O corpo do santo
medieval está destruído até a medula dos ossos, mas seus olhos são
terrivelmente vivos. Não pode existir qualquer comunidade real de espírito
entre forças que produziram símbolos tão diferentes. Dado que ambas as
imagens são extravagâncias, perversões do credo puro, só uma divergência
real poderia produzir essas extravagâncias opostas. O budista olha com
peculiar intenção para o interior. O cristão olha fixamente com uma
intenção frenética para fora. Se seguirmos essa pista descobriremos
regularmente coisas interessantes.
Algum tempo atrás a Sra. Besant,6 em um interessante ensaio, anunciou
que havia somente uma religião no mundo, que todas as fés eram somente
versões ou perversões dela, e que ela estava preparada para dizer o que era
essa religião. De acordo com a Sra. Besant, essa igreja universal é
simplesmente o eu universal. Trata-se da doutrina de que no fundo somos
somente uma pessoa; que não há muros verdadeiros de individualidade
entre os homens. Podemos dizer que ela não nos incita a amar o próximo,
mas a ser o próximo. Essa é a descrição sugestiva e séria da Sra. Besant
quanto à religião sobre a qual todos os homens devem concordar. E nunca
ouvi em toda a minha vida uma sugestão com a qual discordei tão
violentamente. Quero amar meu próximo não porque sou ele, mas sim
porque somos diferentes. Quero adorar o mundo, não como quem olha por
um espelho, ou seja, porque ele é minha própria imagem, mas como um
homem ama uma mulher, ou seja, porque ela é inteiramente diferente. Se as
almas estiverem separadas o amor é possível. Se estiverem unidas é
obviamente impossível. Pode-se dizer vagamente que um homem ama a si
mesmo, mas ele dificilmente pode se apaixonar por si mesmo, ou, se o
pode, deve se tratar de um cortejo bastante monótono. Se o mundo está
cheio de egos reais, eles podem realmente ser egos altruístas. Mas, sob o
princípio da Sra. Besant, todo o cosmos é somente uma única pessoa
enormemente egoísta.
É exatamente neste ponto que o budismo se encontra ao lado do
panteísmo moderno e da imanência. E é também neste ponto que o
cristianismo se encontra ao lado da humanidade, da liberdade e do amor. O
amor deseja a personalidade; quer, portanto, a divisão. Faz parte do instinto
do cristianismo se regozijar com o fato de que Deus fragmentou o universo
em pequenos pedaços, pois são pedaços vivos; dizer “amai-vos uns aos
outros, pequeninos” em vez de ordenar a uma pessoa imensa que ame a si
mesma. É esse o abismo intelectual entre o budismo e o cristianismo: para o
budista ou teosofista,7 a personalidade é a queda do homem, enquanto para
o cristão é a vontade de Deus, o sentido completo de sua idéia cósmica. A
alma do mundo do teosofista pede ao homem que a ame somente para que o
homem se lance em seu interior. Mas o centro divino do cristianismo
realmente expulsou o homem para que este pudesse amá-lo. A divindade
oriental é como um gigante que tivesse perdido sua perna ou mão e
estivesse sempre a procurá-la; mas a onipotência cristã é como um gigante
que, com uma estranha generosidade, cortou sua mão direita para que ela
pudesse por sua própria vontade cumprimentá-lo. Voltamos à mesma nota
incansável no tocante à natureza do cristianismo: todas as filosofias
modernas são grilhões que atam e refreiam, mas o cristianismo é uma
espada que separa e liberta. Nenhuma outra filosofia mostra Deus se
regozijando com a separação do universo em almas vivas. Mas de acordo
com a ortodoxia cristã essa separação entre Deus e o homem é sagrada, pois
é eterna. Para que um homem ame Deus é necessário que exista não
somente um Deus para ser amado, mas também um homem que possa amá-
lo. Todas aquelas vagas mentes teosóficas para as quais o universo é um
imenso caldeirão onde tudo se mistura são exatamente as mentes que fogem
instintivamente daquela afirmação retumbante do Evangelho, que diz que o
Filho de Deus não veio para trazer a paz, mas uma espada que separa. O
dito soa inteiramente verdadeiro até mesmo quando considerado como o
que realmente é: a afirmação de que quem prega o amor verdadeiro está
fadada a despertar o ódio. Isso é uma verdade tanto da autêntica
fraternidade democrática quanto do amor divino; o amor simulado termina
na tibieza e na filosofia medíocre; mas o amor verdadeiro sempre terminou
na carnificina. E ainda há uma outra e mais terrível verdade por trás do
sentido óbvio das palavras de Nosso Senhor. O próprio Filho de Deus diz
que Ele é uma espada que separa o irmão do irmão, em um ódio que irá
perdurar pelas eras. Mas o Pai também foi uma espada, que nos primórdios
obscuros separou o irmão do irmão, para que pudessem finalmente se amar.
É esse o sentido daquela felicidade quase insana nos olhos do santo
medieval na pintura. É esse o sentido dos olhos fechados na maravilhosa
imagem budista. O santo cristão se alegra porque foi realmente separado do
mundo; ele está separado das coisas e as observa com espanto. Mas por que
o santo budista deveria se espantar com as coisas, já que só há realmente
uma coisa impessoal que dificilmente poderia se espantar consigo mesma?
Existiram muitos poemas panteístas que sugeriram o espanto, mas nenhum
teve realmente sucesso. O panteísta não pode se maravilhar, pois não pode
louvar a Deus ou qualquer outra coisa como realmente distinta de si. Nossa
questão principal aqui é, no entanto, o efeito dessa admiração cristã — que
golpeia para fora, rumo a uma divindade distinta do adorador — sobre a
necessidade geral da atividade ética e da reforma social. E certamente seu
efeito é suficientemente óbvio. Não há nenhuma possibilidade real de
transcendência no panteísmo, nenhum impulso especial para ação moral.
Pois o panteísmo implica na sua natureza que tudo é igual e indiferente;
enquanto a ação exige em sua natureza que alguma coisa seja imensamente
preferida à outra. Swinburne, no verão ensolarado de seu ceticismo tentou
em vão lutar contra essa dificuldade. No Prelúdio ao nascer do sol, escrito
sob a inspiração de Garibaldi8 e da revolta italiana, proclamou a mais nova
religião e o Deus mais puro que iria exterminar todos os sacerdotes deste
mundo:
O que tu fazes agora olhando rumo a Deus para clamar que eu sou eu, tu és tu, que eu sou baixo
e tu és alto? Eu sou aquele que buscais encontrar: buscai a si mesmo, pois eu sou tu.

A dedução imediata e evidente a partir daí é que os tiranos são tão filhos
de Deus quanto os Garibaldi; e que o Rei Bomba9 de Nápoles tendo, com o
mais pleno sucesso, “encontrado a si mesmo”, torna-se então idêntico ao
bem último em todas as coisas. A verdade é que a energia ocidental que
destrona tiranos derivou diretamente da teologia ocidental que diz: “Eu sou
eu, tu és tu”. A mesma separação espiritual, que olhou para cima e viu um
bom rei no universo, olhou para cima e viu um rei perverso em Nápoles. Os
adoradores do deus Bomba destronaram Bomba. Os adoradores do deus de
Swinburne cobriram a Ásia por séculos e nunca destronaram um tirano. O
santo indiano pode com toda razão fechar seus olhos porque olha para
aquilo que é eu, tu, nós, eles e isto. É uma ocupação racional: mas não é
verdadeiro nem na teoria nem na prática que ela possa ajudar o indiano a se
manter vigilante diante de Lorde Curzon.10 Aquela vigilância externa que
sempre foi a marca do cristianismo — o comando de que devemos vigiar e
orar — se expressou tanto na típica ortodoxia ocidental quanto na típica
política ocidental: ambas dependem da idéia de uma divindade
transcendente, diferente de nós, uma divindade que se oculta. Certamente os
credos mais sagazes podem sugerir que busquemos Deus nos corredores
cada vez mais profundos do labirinto de nosso próprio ego. Mas somente
nós da cristandade dissemos que devemos caçar Deus como uma águia
sobre as montanhas: e matamos todos os monstros na caçada.
Aqui, novamente, descobrimos que à medida que valorizamos a
democracia e as energias de renovação do Ocidente, é bem mais provável
que as encontremos na antiga teologia do que na nova. Se queremos a
reforma, devemos aderir à ortodoxia: especialmente quanto à questão — tão
debatida nos conselhos do Sr. R. J. Campbell — da insistência sobre a
divindade imanente ou transcendente. Ao insistir especialmente na
imanência de Deus chegamos à introspecção, ao isolamento, ao quietismo e
à indiferença social — ao Tibet. Ao insistir especialmente na transcendência
de Deus temos o espanto, a curiosidade, a aventura moral e política, a
indignação justa — a cristandade. Ao insistir que Deus está no interior do
homem, o homem se volta para dentro. Ao insistir que Deus transcende o
homem, o homem se transcende.
Se abordarmos qualquer outra doutrina que foi chamada de antiquada,
descobriremos a mesma situação. O mesmo se passa, por exemplo, na
questão profunda da Trindade. Os unitários11 (uma seita que nunca deve ser
mencionada sem um respeito especial por sua distinta dignidade e elevada
honra intelectual) são muitas vezes reformadores por um acidente que lança
muitas seitas pequenas nessa atitude. Mas não há nada de liberal ou
próximo da reforma na substituição da Trindade pelo monoteísmo puro. O
Deus complexo do Credo Atanasiano pode ser um enigma para o intelecto;
mas é bem menos provável que Ele compreenda o mistério e a crueldade de
um sultão do que o deus solitário de Omar12 ou de Maomé. O Deus que é
somente uma terrível unidade não é somente um rei, mas um rei oriental. O
coração da humanidade, especialmente da humanidade européia, certamente
se satisfaz muito mais com as estranhas pistas e símbolos que se reúnem ao
redor da idéia trinitária, com a imagem de um concílio no qual a
misericórdia peticiona ao lado da justiça, e com a concepção de uma
espécie de liberdade e variedade que existe até mesmo na câmara mais
interior do mundo. Pois a religião ocidental sempre sentiu intensamente a
idéia de que “não é bom para o homem estar sozinho”. O instinto social se
afirmou por todos os lados, como quando a idéia oriental dos eremitas foi
expelida na prática pela idéia ocidental dos monges. Dessa forma, até
mesmo o asceticismo se tornou fraterno; e os trapistas eram sociáveis até
mesmo quando permaneciam em silêncio. Se esse amor por uma
complexidade viva for nosso teste, é certamente mais saudável ter uma
religião trinitária do que unitária. Pois, para nós trinitários, — se for dito
com toda a reverência — para nós o próprio Deus é uma sociedade. Trata-se
realmente de um mistério insondável da teologia, e mesmo que eu fosse
suficientemente teólogo para com ele lidar diretamente, não seria reverente
fazê-lo. Basta dizer aqui que esse triplo enigma é tão reconfortante quanto o
vinho, e tão convidativo quanto um lugar junto a uma lareira inglesa; que
essa coisa que atordoa o intelecto acalma completamente o coração: mas do
deserto, dos lugares secos e do sol escorchante vêm os filhos cruéis do Deus
solitário; os verdadeiros unitários que com suas cimitarras em mãos
devastaram o mundo. Pois não é bom que Deus esteja sozinho.
Novamente, o mesmo se aplica à difícil questão do perigo da alma, que
perturbou muitas mentes justas. Ter esperança por todas as almas é
imperativo; e é sustentável que sua salvação seja inevitável. É sustentável,
mas não é especialmente favorável à atividade e ao progresso. Nossa
sociedade criativa e guerreira deve, ao contrário, insistir no perigo que
todos correm, no fato de que cada homem pende por um fio ou se agarra a
um precipício. Dizer que tudo ficará bem de qualquer forma é uma
afirmação compreensível: mas não pode ser vista como o soar de uma
trombeta. A Europa deve na verdade enfatizar a possibilidade da perdição; e
a Europa sempre a enfatizou. Nisso sua religião superior se une com todos
os seus romances mais baratos. Para o budista ou para o fatalista oriental, a
existência é uma ciência ou um plano, que deve acabar de determinada
forma. Mas para um cristão a existência é uma estória, que pode acabar de
qualquer forma. Em uma novela emocionante (esse produto puramente
cristão) o herói não é devorado pelos canibais; mas é essencial para a
existência da emoção que ele possa ser comido pelos canibais. O herói
deve, por assim dizer, ser um herói comestível. Da mesma forma, a moral
cristã sempre disse ao homem não que ele perderia sua alma, mas que
deveria cuidar para que não a perdesse. Na moral cristã, em suma, é
perverso chamar um homem de “condenado ao inferno”: mas é estritamente
religioso e filosófico chamá-lo de condenável.
Todo o cristianismo se concentra no homem na encruzilhada. As
filosofias vastas e rasas, as grandes sínteses do embuste, falam sobre eras,
evolução e desenvolvimentos últimos. A filosofia verdadeira se preocupa
com o instante. Será que o homem tomará esta estrada ou aquela? Essa é a
única coisa a se pensar, se você aprecia pensar. É muito fácil pensar nas eras
e qualquer um pode fazê-lo. O instante é realmente terrível: e é porque
nossa religião sentiu intensamente o instante, que lidou bastante em sua
literatura com a batalha, e na teologia com o inferno. Está cheia de perigos,
como um livro de garotos: está numa crise imortal. Há grande similaridade
real entre a ficção popular e a religião dos povos ocidentais. Se você diz que
a ficção popular é vulgar e espalhafatosa, somente diz o que os chatos e
bem-informados dizem sobre as imagens nas igrejas católicas. A vida — de
acordo com a fé — é bem semelhante a uma estória seriada em uma revista:
termina com a promessa (ou ameaça) de “continuar no próximo capítulo”.
Com uma nobre vulgaridade, a vida também imita a novela seriada e acaba
no momento mais excitante. Pois a morte é distintivamente um momento
excitante. Mas o ponto é que uma estória é excitante porque tem em si um
elemento forte de vontade, daquilo que a teologia chama de livre-arbítrio.
Você não pode terminar uma soma como quiser, mas pode terminar uma
história como desejar. Quando alguém descobriu o cálculo diferencial,
havia somente um cálculo diferencial a ser descoberto. Mas no mesmo
trecho em que Shakespeare mata Romeu, ele poderia tê-lo casado com a
velha ama de Julieta se assim se sentisse inclinado. E a cristandade se
excedeu no romance narrativo exatamente porque insistiu sobre o livre-
arbítrio teológico. É um grande assunto, só que pende demais para um lado
da estrada para ser adequadamente discutido aqui; mas é a objeção real à
torrente do falatório moderno sobre tratar o crime como uma doença, sobre
tornar uma prisão meramente um ambiente higiênico como um hospital,
onde o pecado pode ser curado por lentos métodos científicos. A falácia da
coisa é que o mal é uma questão de escolha ativa, enquanto a doença não é.
Se você diz que curará um devasso como cura um asmático, minha resposta
ingênua e óbvia é: “Produza pessoas que querem ser asmáticas como tantos
querem ser devassos”. Um homem pode se deitar e se curar de uma
moléstia. Mas não pode se deitar se deseja se curar de um pecado; ao
contrário, ele deve levantar e saltar violentamente. O argumento completo é
de fato perfeitamente expresso na própria palavra que usamos para um
homem em um hospital; “paciente” está no modo passivo; “pecador” está
no ativo. Se um homem deve ser salvo da gripe, ele pode ser paciente. Mas
se deve ser salvo de uma farsa, ele só pode ser impaciente. Deve estar
pessoalmente impaciente com a farsa. Toda reforma moral deve começar na
vontade ativa e não na passiva.
Chegamos aqui novamente à mesma conclusão substancial. Na medida
que desejamos as reconstruções definidas e as revoluções perigosas que
distinguiram a civilização européia, não devemos desencorajar o
pensamento da possível ruína; devemos na verdade encorajá-lo. Se
quisermos, como os santos orientais, simplesmente contemplar o quanto as
coisas são perfeitas, só podemos, é claro, dizer que sempre estão certas.
Mas se queremos particularmente consertá-las, devemos insistir sobre a
forma como podem dar errado.
Por último, esta proposição é novamente verdadeira no caso das
tentativas modernas comuns de diminuir ou explicar de forma reducionista
a divindade do Cristo. A coisa pode ser verdadeira ou não; lidarei com isso
antes do fim. Mas se a divindade é verdadeira, ela é sem dúvida
terrivelmente revolucionária. Que um homem bom possa ser colocado
contra parede não é nada que já não conhecíamos; mas que Deus possa ser
colocado contra a parede é um estímulo perpétuo para os insurgentes. O
cristianismo é a única religião na terra que sentiu que a onipotência tornou
Deus incompleto. Somente o cristianismo sentiu que Deus, para ser
completamente Deus, deve ter sido tanto um rebelde quanto um rei. O
cristianismo foi o único dos credos que acrescentou a coragem às virtudes
do Criador. Pois a única coragem digna de ser chamada de coragem deve
necessariamente significar que a alma ultrapassa um ponto de ruptura — e
não se rompe. Com isso me aproximo de um assunto sinistro e terrível a
ponto de dificultar qualquer discussão; e me desculpo antecipadamente se
qualquer uma das minhas frases não cair bem ou parecer irreverente em
relação a um assunto de que os maiores santos e pensadores justamente
temeram se aproximar. Mas naquela terrível narrativa da Paixão há a
sugestão emocional distinta de que o autor de todas as coisas, de alguma
forma misteriosa, passou não somente pela agonia, mas também pela
dúvida. Está escrito: “Tu não tentarás o Senhor teu Deus”. Mas o Senhor
teu Deus pode tentar a si mesmo; e parece que foi isso que aconteceu em
Getsêmani. Em um jardim Satã tentou o homem: e em um jardim Deus
tentou Deus. Ele atravessou de uma forma sobre-humana nosso horror
humano pelo pessimismo. O mundo tremeu e o sol foi ocultado nos céus
durante o lamento na cruz, e não na crucificação: o lamento que confessou
que Deus foi abandonado por Deus. E agora deixemos que os
revolucionários escolham um credo entre todos os credos e um deus entre
todos os deuses do mundo, cuidadosamente avaliando todos os deuses da
recorrência inevitável e do poder inalterável. Não encontrarão um outro
deus que se revoltou. Deixemos — e o assunto se torna até difícil para a
fala humana — até mesmo que os ateístas escolham um deus. Descobrirão
somente uma divindade que bradou seu isolamento; somente uma religião
em que Deus pareceu por um instante ser ateu.
Isso pode ser chamado de a essência da antiga ortodoxia, cujo maior
mérito é ser a fonte natural da revolução e da reforma; e cujo maior defeito
é ser obviamente uma asserção abstrata. Sua principal vantagem é ser a
mais aventureira e viril das teologias. Sua principal desvantagem é
simplesmente ser uma teologia. Sempre se pode argumentar que é de
natureza arbitrária e aérea. Mas não está tão alto no céu a ponto de impedir
que grandes arqueiros gastem suas vidas inteiras lançando flechas nela —
sim, e suas últimas flechas; há homens que arruinariam a si mesmos e sua
civilização se pudessem arruinar também essa antiga narrativa fantástica.
Este é o último e mais impressionante fato sobre a fé: que seus inimigos
estão dispostos a usar qualquer arma contra ela, até mesmo espadas que
cortam seus próprios dedos e tochas que queimam suas próprias casas.
Homens que começam a combater a Igreja em prol da liberdade e da
humanidade terminam jogando fora a liberdade e a humanidade, desde que
isso ajude a combater a Igreja. Isso não é um exagero; poderia preencher
um livro inteiro com exemplos disso. O Sr. Blatchford se decidiu, como um
destruidor ordinário da Bíblia, a provar que Adão era inocente do pecado
contra Deus; nos malabarismos para sustentar sua tese admitiu, como uma
mera questão lateral, que todos os tiranos, de Nero ao Rei Leopoldo,13 eram
inocentes de qualquer pecado contra a humanidade. Conheço um homem
que tem tanta paixão por provar que não terá qualquer existência pessoal
após a morte que acabou caindo na convicção de que não possui qualquer
existência pessoal aqui e agora. Ele agora invoca o budismo e diz que todas
as almas se fundem umas com as outras; para provar que não pode ir ao céu
ele prova que não pode ir a Hartlepool.14 Conheci pessoas que protestaram
contra a educação religiosa com argumentos contra qualquer educação,
dizendo que a mente infantil deve crescer livre ou que os mais velhos não
devem ensinar os jovens. Conheci pessoas que mostraram que não poderia
existir um julgamento divino demonstrando que não pode existir um
julgamento humano, mesmo em assuntos práticos. Incendiaram seu próprio
milharal para incendiar a Igreja; destruíram suas próprias ferramentas para
destruí-la; qualquer pau era bom o suficiente para nela bater, mesmo que
fosse a última tábua de seu próprio mobiliário destroçado. Não admiramos,
e dificilmente desculpamos, o fanático que destrói este mundo pelo amor do
outro mundo. Mas o que dizer do fanático que destrói este mundo por ódio
do outro mundo? Ele sacrifica a própria existência da humanidade à não
existência de Deus. Oferece suas vítimas não ao altar, mas meramente para
afirmar a inutilidade do altar e o vazio do trono. Está pronto para arruinar
até mesmo a ética primária pela qual todas as coisas vivem, por sua
vingança eterna e estranha contra alguém que sequer chegou a viver.
E ainda assim a coisa permanece impávida no céu. Seus oponentes
somente têm sucesso em destruir tudo o que mais amam. Não destroem a
ortodoxia, destroem somente o senso comum e político de coragem. Não
provam que Adão não era responsável diante de Deus; pois como poderiam
prová-lo? Somente provam, a partir de suas premissas, que o czar não é
responsável diante da Rússia. Não provam que Adão não deveria ter sido
punido por Deus; somente provam que o explorador do trabalho do vizinho
não deve ser punido pelos homens. Com suas dúvidas orientais sobre a
personalidade não garantem como certo que não teremos uma vida após a
morte; somente garantem que não teremos uma vida muito alegre ou
completa nesta terra. Com suas sugestões paralisantes de que todas as
conclusões estão erradas, não destroem o livro do Anjo Anotador;15
somente tornam um pouco mais difícil manter os livros de Marshall &
Snelgrove.16 A fé não é somente a mãe de todas as energias mundanas: seus
inimigos são os pais de toda a confusão mundana. Os secularistas não
destruíram as coisas divinas; mas destruíram as coisas seculares, se isso os
conforta. Os titãs não escalaram os céus; mas destruíram o mundo.

1 Refere-se a práticas e crenças na eclesiologia, liturgia e teologia que enfatizam a formalidade e a


resistência à modernização. O termo se originou nos meios anglicanos que usavam uma série de
práticas rituais associadas ao catolicismo romano. O seu contrário é a Baixa Igreja, mas hoje os
termos mais usados são os de evangélicos para a “Baixa Igreja” e de anglo-católicos para a “Alta
Igreja”.
2 O contrário de “Alta Igreja”. Usado para designar igrejas que dão pouca importância ao ritual,
sacramentos e à autoridade do clero.
3 A referência mais direta é o das Religiões Mundiais, que teve sua primeira edição em 1893 e foi
uma tentativa de criar um diálogo global das diversas fés. O evento foi realizado em Chicago por
iniciativa do juiz e seguidor de Swedenborg, Charles Carroll Bonney.
4 Área suburbana do sudeste de Londres.
5 Emanuel Swedenborg (1688–1772) foi um cientista, filósofo, teólogo e místico sueco. É mais
conhecido por seu livro sobre a vida após a morte de 1758, o Céu e o inferno. Dedicou-se
inicialmente à pesquisa científica, mas em 1744 teria recebido uma revelação do próprio Jesus Cristo
de que teria livre permissão para visitar o céu e o inferno e falar com anjos, demônios e outros
espíritos. Também teria recebido a informação de que o Juízo Final já tinha ocorrido em 1757 no
mundo dos espíritos, na metade do caminho entre o céu e o inferno. A segunda vinda de Cristo não
seria a presença pessoal de Cristo, mas a revelação interior do Verbo dada ao próprio Swedenborg.
Alegava também conversar com espíritos de diversos planetas, inclusive fora do sistema solar.
6 Annie Besant (1847–1933) foi uma socialista, teosofista, feminista, escritora e oradora britânica
que defendeu a independência irlandesa e indiana. Inicialmente se casou com um clérigo em 1867,
mas sua visão de mundo crescentemente anti-religiosa levou-os a uma separação legal em 1873.
Participou ativamente da Sociedade Secularista Nacional e foi parceira do escritor Charles Bradlaugh
na defesa do controle contraceptivo dos nascimentos. Também fez parte da Sociedade Fabiana. Em
1890 conheceu Helena Blavatsky, tornando-se membro da Sociedade Teosófica e eventual sucessora
de Blavatsky na presidência da sociedade. No fim da década de xx viajou para os eua com seu filho
adotivo Jiddu Krishnamurti, que ela afirmava ser o Messias e reencarnação do Buda. O próprio
Krishnamurti rejeitou essas alegações em 1929.
7 Do final do século xix em diante o termo “teosofia” tem sido utilizado para designar as doutrinas
religiosas e filosóficas da Sociedade Teosófica, fundada em 1875 por Helena Blavatsky, William
Quan Judge e Henry Steel Olcott. Tanto a teosofia tradicional quanto a teosofia moderna propagam
doutrinas gnósticas segundo as quais há uma revelação ou conhecimento oculto que supera em muito
a Revelação judaico-cristã, e que pode dar ao homem o caminho da libertação desta vida terrestre.
8 Giuseppe Garibaldi (1807–1882), general, político e nacionalista italiano que teve papel central na
unificação italiana e foi considerado um dos maiores generais de seu tempo. Era anticatólico e
mobilizou esforços para destruir o papado.
9 Ferdinando ii (1810–1859), o rei das Duas Sicílias de 1830 até sua morte em 1859. Em 1837
suprimiu violentamente uma demonstração política dos sicilianos, ganhando o ódio dos intelectuais
progressistas. Depois de uma série de rebeliões e tentativas revolucionárias, as políticas de
Ferdinando entre 1848 e 1851 forçaram muitos cidadãos ao exílio. Passou a ser conhecido como Rei
Bomba devido ao bombardeio de Messina em 1848.
10 George Nathaniel Curzon (1859–1925), estadista britânico pertencente ao Partido Conservador.
Foi vice-rei da Índia entre 1899 e 1905.
11 Movimento esotérico que, como o arianismo, nega a Santíssima Trindade na expectativa de
afirmar o monoteísmo. Por isso, classificam Jesus como apenas um mestre moral inspirado por Deus.
12 Omar (586–644) foi um dos califas mais poderosos e influente da história islâmica e companheiro
do profeta Maomé. É reverenciado pelos sunitas, mas visto de forma negativa pelos xiitas.
13 Leopoldo ii (1835–1909) reinou como o segundo rei dos belgas de 1865 a 1909. Tornou-se
conhecido pela fundação e exploração brutal do Congo belga como um projeto privado. O consenso
atual estima que ele realizou um genocídio de cerca de dez milhões de congoleses.
14 Cidade no condado de Durham, Inglaterra.
15 Ap 10, 1.
16 Famosa loja de departamento londrina da época.
CAPÍTULO 8
A autoridade e o aventureiro
O ÚLTIMO CAPÍTULO SE PREOCUPOU COM A ASSERÇÃO DE que a ortodoxia
não é somente — como muitas vezes alardeado — o único guardião seguro
da moralidade ou da ordem, mas também o único guardião lógico da
liberdade, da inovação e do avanço. Se queremos derrubar o opressor
próspero, não podemos fazê-lo com a nova doutrina da perfectibilidade
humana, mas o podemos com a antiga doutrina do pecado original. Se
queremos desenraizar crueldades costumeiras ou elevar populações
degeneradas, não podemos fazê-lo com a teoria de que a matéria precede a
mente; mas o podemos com a teoria sobrenatural de que a mente precede a
matéria. Se queremos especialmente despertar as pessoas para a vigilância
social e a incansável busca da prática caridosa, não podemos ajudar muito
insistindo sobre o Deus imanente e a luz interior: pois essas são as melhores
razões para o contentamento; mas podemos ajudar muito insistindo sobre o
Deus transcendente e seu brilho esvoaçante e fugidio; pois isso indica o
descontentamento divino. Se desejamos afirmar a idéia do equilíbrio
generoso contra a terrível aristocracia devemos ser instintivamente
trinitários e não unitários. Se desejamos que a civilização européia seja a
um só tempo ataque e resgate devemos insistir que as almas estão em perigo
real, e não dizer que o perigo é irreal em última instância. E se desejamos
exaltar os párias e os crucificados, devemos preferir pensar que um Deus
verdadeiro foi crucificado em vez de um mero sábio ou herói. Acima de
tudo, se queremos proteger os pobres devemos defender regras fixas e
dogmas claros. As regras da casa ocasionalmente jogam a favor do membro
pobre. O arbítrio da casa está sempre do lado do membro rico.
E chegamos agora à questão crucial que verdadeiramente encerra todo o
assunto. Um agnóstico razoável, se chegou a concordar comigo até agora,
pode com justiça se voltar para mim e dizer: “Você descobriu uma filosofia
prática na doutrina da queda; muito bem. Descobriu um lado da
democracia, que hoje é perigosamente negligenciado, sabiamente afirmado
no pecado original; muito bem. Descobriu uma verdade na doutrina do
inferno; cumprimento-o. Está convencido que os adoradores do Deus
pessoal olham para fora e são progressistas; cumprimento-os. Mas mesmo
supondo que essas doutrinas realmente incluem essas verdades, por que não
pode ficar com as verdades e abandonar as doutrinas? Dado que toda a
sociedade moderna confia demais nos ricos, por que não aceita a fraqueza
humana? Dado que as grandes eras ortodoxas tiveram uma grande
vantagem acreditando na queda, porque tinham espaço para a fraqueza
humana, por que você não pode simplesmente dar esse espaço sem acreditar
na queda? Se descobriu que a idéia de condenação eterna representa uma
idéia saudável de perigo, por que não ficar simplesmente com a idéia do
perigo e deixar de lado a idéia da condenação eterna? Se você enxerga o
núcleo de senso comum na casca da ortodoxia cristã, por que não pode ficar
com o núcleo e abandonar a casca? Por que não pode, para usar a cantilena
dos jornais que eu, como um estudioso altamente agnóstico, tenho um
pouco de vergonha de usar, simplesmente ficar com o que é bom no
cristianismo, o que pode definir como valioso, o que pode compreender, e
abandonar todo resto, todos os dogmas absolutos que são por sua própria
natureza incompreensíveis?”. Essa é a verdadeira questão, a última questão;
e é um prazer tentar respondê-la.
A primeira resposta consiste simplesmente em dizer que sou um
racionalista. Gosto de ter alguma justificativa intelectual para minhas
intuições. Se trato o homem como um ser decaído, é intelectualmente
conveniente acreditar que ele caiu; e descobri, por alguma estranha razão
psicológica, que consigo lidar melhor com o exercício do livre-arbítrio de
um homem se acredito que ele o possui. Mas sobre esse assunto sou ainda
mais definitivamente racionalista. Não proponho transformar este livro em
uma apologética cristã comum; contentar-me-ia em encontrar os inimigos
do cristianismo nessa arena mais óbvia em qualquer outra ocasião. Aqui só
forneço um relato do crescimento da minha própria certeza espiritual. Mas
posso fazer uma pausa para observar que quanto mais investiguei os meros
argumentos abstratos contra a cosmologia cristã, mais passei a vê-los sob
uma luz negativa. Quero dizer que, tendo descoberto que a atmosfera moral
da Encarnação era parte do senso comum, olhei então para os argumentos
intelectuais bem estabelecidos contra a Encarnação, e descobri que todos
eram parte do nonsense comum. Para que não se considere que o argumento
sofre pela ausência da apologética comum irei resumir aqui muito
brevemente meus próprios argumentos e conclusões sobre a verdade
puramente objetiva ou científica do assunto.
Se me for perguntado, como uma questão puramente intelectual, o
porquê de minha crença no cristianismo, só posso responder: “Pela mesma
razão que um agnóstico inteligente descrê do cristianismo”. Acredito
racionalmente através das evidências. Mas as evidências, tanto em meu
caso como no do agnóstico inteligente, não estão nesta ou naquela
demonstração alegada, mas sim, numa enorme acumulação de fatos
pequenos, mas unânimes. O secularista não deve ser culpado porque suas
objeções ao cristianismo são uma miscelânea, e até mesmo uma miscelânea
contraditória; é precisamente essa evidência confusa que convence a mente.
Quero dizer que um homem pode ficar bem mais convencido de uma
filosofia por um livro, uma batalha, uma paisagem e um velho amigo do
que por quatro livros. O próprio fato de que as coisas são de tipos diferentes
aumenta a importância de sua convergência em uma mesma conclusão.
Agora, a rejeição ao cristianismo do homem educado médio de nossos
tempos é quase sempre, para lhe fazer justiça, feita dessas experiências
soltas, mas vivas. Só posso dizer que minhas evidências para o cristianismo
são do mesmo tipo vívido, mas variado, das evidências contra ele. Pois
quando olho para essas várias verdades anticristãs, simplesmente descubro
que nenhuma delas é verdadeira. Descubro que a verdadeira onda e força
dos fatos flui para o outro caminho. Tomemos os exemplos. Muitos homens
modernos sensíveis abandonaram o cristianismo sob a pressão de três
convicções convergentes: primeiro, que os homens, com sua forma,
estrutura e sexualidade, são, no fim das contas, muito semelhantes às bestas,
uma mera variedade do reino animal; segundo, que a religião primitiva
emergiu da ignorância e do medo; terceiro, que os sacerdotes frustraram as
sociedades com sua amargura e tristeza. Esses três argumentos anticristãos
são muito diferentes; mas são todos bastante lógicos e legítimos; e todos
convergem. A única objeção a eles — descobri — é que são todos falsos. Se
você deixa de olhar para livros sobre bestas e homens, e começa a olhar
para bestas e homens (se você tiver algum humor ou imaginação, algum
senso do farsesco e do frenético) observará o fato surpreendente do quanto
o homem é diferente das bestas, e não o quanto são semelhantes. É a escala
monstruosa dessa divergência que exige uma explicação. Que os homens e
bestas sejam semelhantes é, em certo sentido, um truísmo; mas que sendo
tão semelhantes sejam também tão insanamente diferentes é um choque e
um enigma. Que um macaco tenha mãos é bem menos interessante para o
filósofo do que o fato de que tendo mãos ele nada faz com elas; não joga
dominó ou toca o violino; não esculpe o mármore ou tosa o carneiro. As
pessoas falam da arquitetura bárbara e da arte degradada. Mas os elefantes
não constroem templos colossais de marfim, nem mesmo num estilo
rococó; os camelos não pintam nem mesmo quadros ruins, apesar de
estarem equipados com material para muitos pincéis.1 Certos sonhadores
modernos dizem que as formigas e as abelhas têm uma sociedade superior à
nossa. Eles têm de fato uma civilização; mas essa mesma verdade só nos
lembra que é uma civilização inferior. Quem já descobriu um formigueiro
decorado com estátuas de formigas celebradas? Quem já viu uma colméia
esculpida com imagens das estátuas das belíssimas rainhas de outrora? O
grande abismo entre os homens e as outras criaturas pode ter uma
explicação natural, mas é um abismo. Falamos de animais selvagens; mas o
homem é o único animal selvagem. Foi o homem que se rebelou. Todos os
outros animais são domesticados; seguem a severa respeitabilidade da tribo
ou do tipo. Todos os outros animais são domésticos; somente o homem
sempre não o é, seja como um devasso ou um monge. Dessa forma, essa
primeira razão superficial para o materialismo, se se trata de alguma coisa,
é uma razão para o oposto; é exatamente onde a biologia termina que
começa toda religião.
O mesmo se passa se examino o segundo dos três argumentos
racionalistas: o argumento de que tudo o que chamamos de divino começa
nas trevas e no terror. Quando realmente tentei examinar o fundamento
dessa idéia moderna, simplesmente descobri que ele não existia. A ciência
nada conhece sobre o homem pré-histórico, pela excelente razão de que ele
é pré-histórico. Alguns poucos professores escolheram conjecturar que
coisas como o sacrifício humano já foram um dia inocentes e gerais e que
gradualmente diminuíram; mas não há evidência direta disso, e a pequena
quantidade de evidência indireta leva para o caminho contrário. Nas lendas
mais primitivas que temos, como as lendas de Isaac2 e de Ifigênia,3 o
sacrifício humano não é introduzido como algo antigo, mas sim, como algo
novo; uma estranha e horrível exceção obscuramente exigida pelos deuses.
A história nada diz; e todas as lendas dizem que a terra era mais gentil nos
tempos primitivos. Não há nenhuma tradição do progresso; mas toda a raça
humana tem uma tradição da queda. Mas, de forma realmente divertida, a
própria disseminação da idéia é usada contra sua autenticidade. Homens
instruídos literalmente dizem que essa calamidade pré-histórica não pode
ser verdadeira porque toda a raça humana guarda sua memória. Não posso
acompanhar a velocidade desses paradoxos.
E se tomarmos o terceiro exemplo, a visão de que os sacerdotes
obscurecem e amarguram o mundo, o mesmo se passa: não há fundamento.
Olho para o mundo e simplesmente descubro que eles não fazem isso.
Aqueles países na Europa que ainda são influenciados por sacerdotes, são
exatamente os países onde ainda há canto, dança, vestidos coloridos e arte
ao ar livre. A doutrina e a disciplina católica podem ser muros; mas são os
muros de um jardim festivo. O cristianismo é a única moldura que
preservou o prazer do paganismo. Podemos imaginar algumas crianças
brincando no topo plano e gramado de alguma ilha montanhosa dos mares.
Enquanto houver um muro ao redor do precipício, elas poderiam se lançar
em cada jogo frenético e tornar o lugar o mais barulhento dos jardins-de-
infância. Mas os muros foram derrubados, deixando exposto o perigo do
precipício. Elas não caíram; mas quando seus amigos retornaram, estavam
todos reunidos e aterrorizados no centro da ilha; e sua canção havia
cessado.
Assim, esses três fatos da experiência, fatos que produzem um
agnóstico, são, nesta visão, totalmente virados pelo avesso. Sou obrigado a
dizer: “Dê-me uma explicação, primeiro, da destacada excentricidade do
homem entre as bestas; segundo, da vasta tradição humana de uma antiga
felicidade; terceiro, da parcial perpetuação dessa alegria pagã nos países
católicos”. Uma explicação, no entanto, cobre todas as três: a teoria de que
a ordem natural foi duas vezes interrompida por uma explosão ou revelação
que os povos agora chamam de “psíquica”. Um dia o céu desceu sobre a
terra com um poder ou um emblema chamado imagem de Deus, pelo qual
tomou o comando da natureza; e mais uma vez, quando império após
império o homem se provou deficiente, o céu veio salvar a humanidade sob
a terrível forma de um homem. Isso explicaria por que a grande massa dos
homens olha para trás; e o único recinto em que de alguma forma olham
para frente é o pequeno continente onde Cristo instalou Sua Igreja. Sei que
dirão que o Japão se tornou progressista. Mas como isso pode ser uma
resposta quando até mesmo ao dizer que “o Japão se tornou progressista” só
queremos dizer que “o Japão se tornou europeu”? Mas desejo aqui nem
tanto insistir em minha explicação, mas sim, em minha consideração
original. Concordo com o comum homem ímpio das ruas em ser guiado por
três ou quatro fatos estranhos que apontam conjuntamente para algo; mas
quando cheguei a examinar os fatos sempre descobri que apontavam para
uma outra coisa.
Pensei uma tríade imaginária de tais argumentos ordinários contra o
cristianismo; se essa for uma base muito estreita, fornecerei outra no calor
do momento. Estes são os tipos de pensamento que em conjunto criam a
impressão de que o cristianismo é algo fraco e doente. Em primeiro lugar,
por exemplo, está a afirmação de que Jesus era uma criatura gentil, cordata
e alheia, fazendo um mero apelo sem efetividade ao mundo; em segundo
lugar, a idéia de que o cristianismo emergiu e floresceu em uma idade das
trevas da ignorância,4 e que a Igreja nos arrastaria de volta para ela; em
terceiro lugar, está a idéia de que os povos que ainda são fortemente
religiosos ou (se preferirem) supersticiosos — povos como os irlandeses —
são fracos, pouco práticos, e ultrapassados. Só menciono essas idéias para
afirmar a mesma coisa: que quando as investiguei independentemente
descobri, não que as conclusões não eram filosóficas, mas simplesmente
que os fatos não eram fatos. Em vez de investigar livros e imagens sobre o
Novo Testamento, investiguei o Novo Testamento. Ali encontrei um relato,
não de uma pessoa com seu cabelo partido ao meio e com as mãos unidas
em clamor, mas de um ser extraordinário com lábios de trovão e atos de
uma sensacional imperatividade, derrubando mesas, expulsando demônios,
passando dos selvagens segredos dos ventos no isolamento das montanhas
para uma espécie de terrível demagogia; um ser que muitas vezes agia
como um deus irado — e sempre como um deus. Cristo tinha até mesmo
um estilo literário próprio, que não pode ser encontrado em qualquer outro
lugar; ele consiste no uso quase furioso do a fortiori. Os seus “quanto mais”
são empilhados uns sobre os outros como castelos sobre castelos nas
nuvens. A dicção usada para falar sobre o Cristo tem sido, talvez
sabiamente, doce e submissa. Mas a dicção usada pelo Cristo é
curiosamente grandiosa; está cheia de camelos que passam pelo buraco de
uma agulha e montanhas que são lançadas ao mar. Ela é igualmente terrível
em seu sentido moral: Ele se intitulou espada de divisão, e disse aos
homens que comprassem espadas e vendessem seus casacos. Que tenha
usado palavras ainda mais violentas a favor da não-resistência aumenta
ainda mais o mistério; mas essas palavras também aumentam a violência do
discurso. Nós também não podemos explicar o mistério dizendo que esse
ser era louco; pois a insanidade se desenvolve usualmente através de uma
linha consistente. O maníaco é geralmente um monomaníaco. Aqui
devemos lembrar a difícil definição do cristianismo já dada: o cristianismo
é o paradoxo sobre-humano pelo qual duas paixões opostas podem brilhar
lado a lado. A única explicação da linguagem dos Evangelhos que
realmente a explica é que se trata de uma observação d’Aquele que de uma
altura sobrenatural contempla alguma surpreendente síntese.
Enfrentarei agora o próximo exemplo oferecido: a idéia de que o
cristianismo pertence à Idade das Trevas. Aqui não me satisfiz em ler as
generalizações modernas: li um pouco da história. E na história descobri
que o cristianismo, longe de pertencer à Idade das Trevas, foi o único
caminho na Idade das Trevas que não era escuro. Foi uma ponte brilhante
conectando duas civilizações brilhantes. Se alguém disser que a fé emergiu
na ignorância e na selvageria, a resposta é simples: isso não ocorreu. Ela
emergiu na civilização mediterrânea no alto verão do Império Romano. O
mundo estava infestado de céticos, e o panteísmo era tão claro quanto o sol
no momento em que Constantino uniu a cruz ao mastro romano.5 É
perfeitamente verdadeiro que logo depois a nau afundou; mas é bem mais
extraordinário que tenha voltado a emergir na superfície: com nova pintura
e brilhando, e com a cruz ainda no topo. Foi essa a incrível realização da
religião: transformou um naufrágio em um submarino. A arca sobreviveu
sob a pressão das águas; depois de termos sido enterrados sob os escombros
das dinastias e clãs, emergimos e lembramos Roma. Se nossa fé tivesse sido
uma simples moda do império decadente, moda teria seguido moda no
crepúsculo, e se a civilização tivesse algum dia reemergido (e muitas nunca
o fizeram) teria sido sob algum novo estandarte bárbaro. Mas a Igreja Cristã
foi a última vida da antiga sociedade e também a primeira vida da nova
sociedade. Ela se acercou dos povos que estavam esquecendo como fazer
um arco e os ensinou a inventar um arco gótico. Em uma palavra, a coisa
mais absurda que poderia ser dita da Igreja é aquela que todos já ouvimos
sendo dita. Como podemos dizer que a Igreja deseja nos levar de volta à
Idade das Trevas? A Igreja foi a única coisa que de fato nos tirou dela.
Acrescentei a essa segunda trindade de objeções um exemplo ocioso
tirado daqueles que sentem que povos como os irlandeses são enfraquecidos
ou estagnados pela superstição. Só o acrescentei por ser um caso peculiar de
uma afirmação factual que comprovadamente é a afirmação de uma
falsidade. Diz-se constantemente dos irlandeses que não são práticos. Mas
se nos abstermos por um momento de olhar para o que é dito sobre eles e
olharmos para o que é feito por eles, veremos que os irlandeses não
somente são práticos, mas são bastante exitosos. A pobreza de seu país e a
tutela de seus membros são simplesmente as condições de trabalho que
receberam; mas nenhum outro grupo no Império Britânico fez tanto em
semelhantes condições. Os nacionalistas irlandeses foram a única minoria
que já teve êxito em desviar fortemente todo o Parlamento Britânico de seu
caminho usual. Os camponeses da Irlanda foram os únicos miseráveis das
ilhas que forçaram a expulsão de seus mestres. Esse povo, que dizemos
estar infestado de sacerdotes, é o único povo da Grã-Bretanha que não será
desinfetado de suas terras. E quando passei a olhar para o real caráter
irlandês, o caso era o mesmo. Eles têm o melhor desempenho nas profissões
especialmente duras — a metalurgia, a advocacia e o exército. Em todos
esses casos, portanto, voltei à mesma conclusão: o cético estava certo em
seguir os fatos, mas não tinha olhado para os fatos. O cético é crédulo
demais; acredita nos jornais ou até mesmo nas enciclopédias. Novamente as
três questões me deixaram com três questões bastante antagônicas. O cético
médio desejava saber como expliquei a nota adocicada nos Evangelhos, a
conexão do credo com as trevas medievais e a impraticabilidade política
dos cristãos celtas. Mas eu queria perguntar, e perguntar com uma
intensidade que beira a urgência, o seguinte: “O que é essa energia
incomparável que primeiro aparece, em sua passagem pela terra, como um
julgamento vivo; essa energia que pode morrer com uma civilização
decadente e ainda assim forçar sua ressurreição dos mortos; essa energia
que além de tudo pode inflamar um campesinato falido com uma fé tão fixa
na justiça que o leva a conquistar o que pede, enquanto outros voltam para
casa de mãos abanando; de tal forma que a mais indefesa das ilhas do
Império pode até salvar a si mesma?”.
Há uma resposta: a energia é verdadeiramente algo que vem de fora
deste mundo; ela é psíquica, ou ao menos um dos resultados de uma
perturbação psíquica real. A mais elevada gratidão e respeito são devidos às
grandes civilizações humanas, como os antigos egípcios e os chineses
atuais. Todavia, não é uma injustiça dizer que somente a Europa moderna
exibiu incessantemente um poder de renovação que se repete nos menores
intervalos de tempo e desce aos fatos mais minuciosos da vestimenta e da
construção. Todas as outras sociedades enfim morrem com dignidade. Nós
morremos diariamente. Estamos sempre nascendo novamente com uma
obstetrícia quase indecente. Dificilmente é um exagero dizer que há na
cristandade histórica uma espécie de vida antinatural: ela poderia ser
explicada como sendo uma vida sobrenatural, como um terrível galvanismo
operando no que de outra forma seria um cadáver. Pois nossa civilização
deveria ter morrido, de acordo com todos os paralelos e pela probabilidade
sociológica, no Ragnarok6 do fim de Roma. Esta é a esquisita inspiração de
nosso estado: não temos o menor direito de estar aqui. Somos todos zumbis;
todos os cristãos vivos são pagãos mortos que ainda perambulam por aí. E
justamente quando a Europa estava prestes a se reunir ao silêncio da Assíria
e da Babilônia, algo entrou em seu corpo. E a Europa tem tido uma estranha
vida — não é demais dizer que sempre sobressaltada — desde então.
Abordei amplamente tais tríades típicas da dúvida para transmitir a
asserção principal — que a minha própria defesa do cristianismo é racional;
mas não é simples. É uma acumulação de fatos variados, como a atitude do
agnóstico comum. Mas o agnóstico comum errou em todos os seus fatos.
Ele é um descrente por uma multidão de razões; mas são todas razões
falsas. Duvida porque a Idade Média foi bárbara, mas ela não foi; porque os
milagres não acontecem, mas eles acontecem; porque os monges são
preguiçosos, mas eles eram grandes trabalhadores; porque as freiras são
infelizes, mas elas são particularmente alegres; porque a arte cristã era triste
e pálida, mas ela era traçada nas cores mais peculiarmente brilhantes e
esbanjava a exuberância do ouro; porque a ciência moderna está se
distanciando do sobrenatural, mas ela está se movendo rumo ao
sobrenatural com a rapidez de um trem.
Mas dentre esses milhões de fatos que fluem por um só caminho há, é
claro, uma questão suficientemente sólida e separada que deve ser tratada
brevemente, mas por si mesma; refiro-me à ocorrência objetiva do
sobrenatural. Em outro capítulo indiquei a falácia da suposição comum de
que o mundo deve ser impessoal porque é ordenado. Uma pessoa pode
desejar tanto a ordem quanto a desordem. Mas minha própria convicção
positiva de que uma criação pessoal é mais concebível que o destino
material é, admito, em certo sentido indiscutível. Não chamarei isso de fé
ou de intuição, pois essas palavras estão misturadas com a mera emoção, e
se trata de uma convicção estritamente intelectual; mas é uma convicção
intelectual primária como a certeza do eu e do valor da existência. Quem
assim desejar pode, portanto, chamar minha crença em Deus de
simplesmente mística; não vale a pena brigar por essa frase. Mas minha
crença de que os milagres aconteceram na história humana não é de forma
alguma uma crença mística; neles acredito baseado em evidências humanas,
da mesma forma que acredito na descoberta da América. Sobre esse ponto
há um fato lógico simples que somente exige ser afirmado e esclarecido. De
alguma forma surgiu uma idéia extraordinária de que os incréus consideram
os milagres de forma fria e justa, enquanto os crentes os aceitam somente
em conexão com algum dogma. A realidade é precisamente inversa. Os
crentes em milagres os aceitam — com razão ou não — porque possuem
evidências para eles. Os incréus os negam porque possuem uma doutrina
que lhes é contrária. A coisa óbvia, aberta e democrática é acreditar em uma
velha vendedora de maçãs quando ela dá testemunho de um milagre, assim
como acreditamos na velha vendedora de maçãs quando ela dá testemunho
de um assassinato. O caminho popular e direto consiste em confiar na
palavra do camponês sobre o fantasma exatamente na medida em que
confiamos na sua palavra sobre o proprietário de terras. Sendo um
camponês, ele provavelmente terá uma grande dose de agnosticismo
saudável sobre ambos. Ainda assim seria possível encher o Museu Britânico
com evidências proclamadas pelos camponeses, e dadas em favor do
fantasma. No que toca ao testemunho humano, há uma catarata
estranguladora de testemunhos em favor do sobrenatural. Se você os rejeita,
só pode querer dizer duas coisas. A estória do camponês sobre o fantasma é
rejeitada ou porque o homem é um camponês ou porque a estória é uma
estória de fantasma. Isto é, ou você nega o mais importante princípio da
democracia, ou afirma o princípio central do materialismo — a
impossibilidade abstrata do milagre. Você tem o direito de fazê-lo; mas
nesse caso você é um dogmático. São os cristãos que aceitam a evidência
real — são vocês, os racionalistas, que recusam a evidência real devido às
limitações de seu credo. Mas não estou limitado por qualquer credo no que
se refere a esse assunto, e ao olhar com imparcialidade certos milagres dos
tempos modernos e medievais, cheguei à conclusão de que aconteceram.
Todos os argumentos contra esses simples fatos são sempre argumentos em
círculo. Se digo que “os documentos medievais atestam certos milagres
tanto quanto atestam certas batalhas”, eles respondem que “os medievais
eram muito supersticiosos”; se desejo saber em que sentido eram
supersticiosos, a única resposta em última instância é que acreditavam em
milagres. Se digo que “um camponês viu um fantasma”, me é dito que “os
camponeses são crédulos demais”. Se questiono “por que são crédulos?” a
única resposta é que enxergam fantasmas. A Islândia é impossível porque
somente marinheiros estúpidos a viram; e os marinheiros só são estúpidos
porque disseram que viram a Islândia. É questão de justiça acrescentar que
há outro argumento que o descrente pode racionalmente usar contra os
milagres, apesar de geralmente esquecer de usá-lo.
Ele pode dizer que houve em muitas estórias miraculosas uma noção de
aceitação e preparação espiritual: em suma, que o milagre só viria para os
que nele acreditassem. E assim pode ser, e se o for, como poderemos
elaborar um teste? Se nós estamos questionando se certos resultados se
seguem à fé, é inútil repetir aborrecidamente que, se ocorrem, eles de fato
seguem a fé. Se a fé é uma das condições, aqueles sem fé têm um direito
completamente saudável de rir. Mas não têm o direito de julgar. Ser um
crente pode ser, se assim quiserem, tão ruim quanto estar bêbado; ainda
assim, se estamos extraindo fatos psicológicos dos bêbados, seria absurdo
deles zombar por terem estado bêbados. Suponham que estivéssemos
investigando se homens nervosos realmente viram uma névoa vermelha
diante de seus olhos. Suponham que sessenta excelentes pais de família
jurassem que quando estavam irados viram uma nuvem escarlate:
certamente seria absurdo dizer “você admite que estava irado no momento”.
Eles poderiam com toda razão replicar (em um coro retumbante) que “como
diabos poderíamos descobrir, sem estarmos irados, se pessoas iradas vêem
uma nuvem vermelha?”. Da mesma forma os santos e ascetas poderia
racionalmente responder: “Suponham que a questão é saber se os crentes
podem ter visões — mesmo assim, se estiver interessado em visões, não faz
sentido objetar ao testemunho dos crentes”. O argumento ainda é circular —
o antigo e louco círculo com o qual este livro começou.
A questão de se saber se os milagres ocorrem é uma questão de senso
comum e de imaginação histórica ordinária: nunca uma questão de
experimento físico definitivo. Pode-se certamente rejeitar aquele tipo de
exibição pedante bastante estúpida que fala sobre a necessidade de
“condições científicas” em conexão com fenômenos alegadamente
espirituais. Se estamos questionando se uma alma morta pode se comunicar
com os vivos é ridículo insistir que seja sob condições em que duas almas
vivas e em plena posse de seus juízos nunca se comunicariam a sério. O
fato de que os fantasmas preferem o escuro não refuta mais a existência de
fantasmas do que o fato de que os amantes preferirem a escuridão refuta a
existência do amor. Se você escolhe dizer, “acreditarei que a Sra. Brown
chamou seu noivo de pervinca,7 ou qualquer outro termo simpático, se ele
repetir a palavra diante de dezessete psicólogos”, então responderei, “muito
bem, se essas são suas condições, nunca chegará à verdade, pois ela
certamente não o dirá”. É tanto anticientífico quanto antifilosófico se
surpreender com o fato de que em uma atmosfera pouco simpática certas
simpatias extraordinárias não surjam. É como se eu dissesse que não
poderia dizer se havia neblina por que não estava suficientemente claro;
como se insistisse na perfeita luz do sol para ver um eclipse solar.
Como uma conclusão do senso comum, como aquelas a que chegamos
sobre o sexo ou a meia-noite — sabendo muito bem que muitos detalhes
devem por sua própria natureza ser escondidos —, concluo que os milagres
realmente acontecem. Sou forçado a isso pela conspiração dos fatos: o fato
de que os homens que encontram elfos ou anjos não são os místicos e os
sonhadores mórbidos, mas pescadores, fazendeiros, e todos os homens que
são ao mesmo tempo ressabiados e ásperos; o fato de que todos nós
conhecemos homens que dão testemunho de acidentes espiritualistas, mas
não são espiritualistas, o fato de que a própria ciência admite essas coisas
mais e mais a cada dia. A ciência admitirá até mesmo a Ascensão se for
chamada de levitação, e até mesmo a Ressureição será aceita quando surgir
outra palavra para ela. Sugiro regalvanização. Mas o mais forte dos dilemas
é o acima mencionado, de que essas coisas sobrenaturais nunca são
negadas, exceto sob a base da antidemocracia ou do dogmatismo
materialista — ou melhor, do misticismo materialista. O cético sempre toma
uma dessas duas posições; ou um homem comum não merece crédito, ou
um evento extraordinário não o merece. Pois espero que possamos rejeitar o
argumento contra o maravilhoso retirado da mera recapitulação de fraudes,
médiuns trapaceiros ou truques de magia. Isso não é um argumento de
forma alguma, nem bom nem mau. Um falso fantasma refuta a realidade
dos fantasmas tanto quanto uma nota bancária falsificada refuta a existência
do Banco da Inglaterra8 — e se prova algo, trata-se da existência do banco.
Dado essa convicção de que os fenômenos espirituais ocorrem —
minhas evidências são complexas, mas racionais —, colidimos então com
um dos maiores males mentais de nossa época. Este foi o grande desastre
do século xix: os homens começaram a usar a palavra “espiritual” como
sinônimo da palavra “bom”. Pensaram que crescer em refinamento e
imaterialidade era crescer em virtude. Quando a evolução científica foi
anunciada, alguns temeram que ela encorajaria a mera animalidade. Fez
muito pior: encorajou a mera espiritualidade. Ensinou os homens a pensar
que tinham vindo do macaco e que estavam avançando rumo aos anjos. Mas
é possível vir do macaco e ir rumo ao Demônio. Um homem de gênio, bem
típico daquela época de confusão, o expressou perfeitamente. Benjamin
Disraeli9 estava certo quando disse estar do lado dos anjos. E ele o estava;
mas do lado dos anjos caídos. Não estava do lado do mero apetite ou da
brutalidade animal; mas estava do lado do imperialismo dos príncipes do
abismo; do lado da arrogância e do mistério, do desprezo de todo bem
óbvio. Entre este orgulho náufrago e as elevadas humildades do céu há,
deve-se supor, espíritos das mais variadas formas e tamanhos. O homem, ao
encontrá-los, deve cometer os mesmos erros que comete ao encontrar
quaisquer novos tipos de seres em um continente distante. Deve ser difícil a
princípio saber quem manda e quem obedece. Se uma sombra emergisse do
submundo, e olhasse para o Picadilly,10 essa sombra não entenderia muito
bem a idéia da carruagem fechada usual. Suporia que o condutor era um
conquistador triunfante, arrastando um cativo aprisionado. Assim, se
presenciamos fatos espirituais pela primeira vez, podemos errar sobre quem
é superior. Não é suficiente descobrir os deuses; eles são óbvios; devemos
descobrir Deus, que é o verdadeiro chefe dos deuses. Devemos ter uma
longa experiência histórica em fenômenos sobrenaturais para descobrir os
que são realmente naturais. Sob essa luz considero a história do
cristianismo, e até mesmo de suas origens hebraicas, bem clara e prática.
Não me perturbo quando me dizem que o deus hebraico era um dentre
muitos. Sei que ele era, sem a necessidade de qualquer pesquisa dizê-lo.
Jeová e Baal pareciam igualmente importantes, assim como o sol e a lua
pareciam ser do mesmo tamanho. É só bem lentamente que aprendemos que
o sol é nosso mestre imensurável, e a pequena lua somente nosso satélite.
Se acredito que há um mundo dos espíritos, devo caminhar por ele como
faço no mundo dos homens, procurando por aquilo que aprecio e que
acredito ser bom. Assim como procuraria água fresca no deserto, ou lenha
para uma fogueira confortável no Pólo Norte, também devo investigar a
terra do vazio e da visão até que encontre algo fresco como a água, e
confortante como o fogo; até que encontre algum lugar na eternidade, onde
estou literalmente em casa. E só há um lugar como esse a ser descoberto.
Já disse o suficiente para mostrar — a qualquer um que considere uma
explicação essencial — que tenho, na arena comum da apologética, uma
base para a crença. Nos registros puros da experiência (se forem avaliados
democraticamente sem desprezo ou favorecimento) há evidência, primeiro,
de que milagres acontecem, e, segundo, de que os milagres mais nobres
pertencem à nossa tradição. Mas não pretenderei que esta curta discussão
seja minha verdadeira razão para aceitar o cristianismo em vez de
simplesmente me apropriar da bondade moral do cristianismo, como faria
com a do confucionismo.
Tenho uma base muito mais sólida e central para me submeter ao
cristianismo como uma fé, em lugar de meramente escolher suas pequenas
pílulas de sabedoria como se se tratasse de um método. E trata-se do
seguinte: que a Igreja Cristã em sua relação prática com minha alma é como
uma professora viva e não algo morto. Não somente me ensinou ontem,
mas certamente irá me ensinar amanhã. Um dia subitamente vi o sentido da
forma da cruz; algum dia verei subitamente o sentido da forma da mitra.
Numa bela manhã vi por que as janelas eram protuberantes; em alguma bela
manhã poderei ver por que os padres faziam a barba. Platão disse uma
verdade; mas Platão está morto. Shakespeare nos maravilhou com uma
imagem; mas Shakespeare não mais nos maravilhará. Mas imagine o que
seria viver com esses homens ainda vivos, saber que Platão poderia surgir
com uma conferência original amanhã, ou que a qualquer momento
Shakespeare poderia tudo despedaçar com uma única canção. O homem que
vive em contato com o que acredita ser uma Igreja viva é um homem que
sempre espera encontrar Platão e Shakespeare no próximo café-da-manhã.
Só existe um outro paralelo dessa posição; e é o paralelo da vida em que
todos começamos. Quando o seu pai dizia, caminhando pelo jardim, que as
abelhas picavam e que as rosas tinham uma doce fragrância, você não
falava em extrair o que havia de bom em sua filosofia. Quando as abelhas
picavam, não dizia que era uma coincidência divertida. Quando a rosa
exalava sua doçura, você não dizia: “Meu pai é um símbolo bárbaro e rude,
que conserva (talvez inconscientemente) a verdade delicada e profunda de
que as flores têm deliciosas fragrâncias”. Não: você acreditou no seu pai,
porque descobriu que ele era uma fonte viva de fatos, algo que realmente
sabia mais do que você; que diria a verdade amanhã, assim como hoje. E se
isso era verdadeiro de seu pai, era ainda mais verdadeiro de sua mãe; ao
menos era verdadeiro da minha, a quem esse livro é dedicado. Hoje, quando
a sociedade se agita futilmente sobre a sujeição das mulheres, ninguém ousa
dizer o quanto cada homem deve à tirania e ao privilégio das mulheres, ao
fato de que elas dominam completamente a educação até o dia em que a
educação se torna fútil: pois um rapaz só é mandado para a escola quando já
é tarde demais para lhe ensinar algo. A educação real já se realizou, e
graças a Deus ela é quase sempre feita por mulheres. Todo homem é
afeminado, pelo simples fato de ter nascido. Fala-se muito de mulheres
masculinizadas; mas todo homem é um homem afeminado. E se algum dia
os homens marcharem para Westminster para protestar contra esse
privilégio feminino, não me juntarei à sua procissão.
Pois lembro com plena certeza deste fato psicológico fixo: no preciso
tempo em que mais estive sob a autoridade de uma mulher, mais plena era
minha vida de aventuras e de paixão. Exatamente porque quando minha
mãe dizia que as formigas mordem elas realmente mordiam, e porque a
neve realmente vinha no inverno (como ela disse); por isso e muito mais o
mundo inteiro era para mim uma terra encantada cheia de deleites
maravilhosos: era como viver na época dos antigos hebreus, em que
profecia após profecia se realizava. Quando criança saí para o jardim, e, na
minha perspectiva, se tratava de um lugar terrível precisamente porque
tinha recebido orientações sobre ele: se não tivesse qualquer orientação, ele
não seria terrível, mas sim insípido. Um simples sertão ermo e sem sentido
não é nem mesmo impressionante. Mas o jardim-de-infância era fascinante,
exatamente porque tudo tinha um sentido fixo que poderia ser descoberto
no tempo devido. Eu poderia descobrir centímetro por centímetro qual era o
objetivo da feiosa forma chamada “enxada”; ou formar uma nebulosa
conjectura sobre o porquê de meus pais terem um gato.
Dessa forma, desde que aceitei a cristandade como uma mãe, e não
meramente como um exemplo fortuito, descobri a Europa e o mundo uma
vez mais como o pequeno jardim onde fitei as formas simbólicas do gato e
da enxada; voltei a olhar para tudo com a antiga ignorância élfica, cheio de
expectativas. Determinado rito ou doutrina pode parecer tão feio e
extraordinário quanto uma enxada; mas descobri pela experiência que essas
coisas levam de alguma forma à relva e às flores. Um clérigo pode
aparentemente ser tão inútil quanto um gato, mas também é tão fascinante
quanto, pois deve existir uma estranha razão para sua existência. Dou um
exemplo dentre cem: não tenho qualquer apreço instintivo pelo entusiasmo
com a virgindade física, que tem certamente sido uma nota do cristianismo
histórico. Mas quando deixo de olhar para mim e olho para o mundo,
percebo que esse entusiasmo não é somente uma nota do cristianismo, mas
também do paganismo, uma nota da natureza humana superior em muitas
esferas. Os gregos sentiram o valor da virgindade quando esculpiram
Ártemis,11 os romanos quando cobriram as vestais, e as piores e mais
selvagens das grandes peças elizabetanas se aferraram à pureza literal da
mulher como um dos pilares centrais do mundo. Acima de tudo, o mundo
moderno (mesmo quando ridiculariza a inocência sexual) se lançou numa
generosa idolatria da inocência sexual — na grande adoração moderna das
crianças. Pois qualquer homem que ama as crianças concordará que sua
beleza peculiar é ferida por qualquer traço do sexo físico. Diante de toda
essa experiência humana, aliada à autoridade cristã, simplesmente concluo
que estou errado, e a Igreja certa; ou melhor, que eu sou um desertor,
enquanto a Igreja é universal. A Igreja exige todos os tipos; ela não pede ou
exige que eu seja celibatário. Mas aceito o fato de que não tenho qualquer
apreciação pelos celibatários como aceito o fato de que não tenho ouvido
para a música. A melhor experiência humana se volta contra mim, assim
como se passa no tocante à Bach. O celibato é uma flor no jardim de meu
pai, cujo nome doce ou terrível não me foi dito. Mas algum dia isso pode
acontecer.
Essa é, portanto, finalmente, minha razão para aceitar a religião e não
simplesmente as verdades seculares e esparsas extraídas da religião.
Cheguei a esse ponto não simplesmente porque a religião disse esta ou
aquela verdade, mas porque se revelou como uma coisa que sempre diz
verdades. Todas as outras filosofias dizem coisas que claramente parecem
ser verdadeiras; mas somente esta filosofia disse repetidamente o que é
verdadeiro, e não aquilo que simplesmente parece ser verdadeiro. É o único
dentre todos os credos que convence onde não é atrativo; mostra-se cheio
de razão, como meu pai no jardim. Os teosofistas, por exemplo, pregarão
uma idéia obviamente atrativa como a reencarnação; mas, se aguardamos
por seus resultados lógicos, chegamos à arrogância espiritual e à crueldade
das castas. Pois se um homem é um mendigo devido a seus pecados pré-
natais, as pessoas tenderão a desprezar o mendigo. O cristianismo prega
uma idéia obviamente pouco atrativa, como o pecado original; mas quando
aguardamos por seus resultados, vemos que são o pathos e a irmandade, e
uma trovoada de alegria e compaixão; pois é somente com o pecado
original que podemos novamente ter compaixão do mendigo e desconfiar
do rei. Os cientistas oferecem-nos a saúde, um benefício óbvio; é somente
depois que descobrimos que por saúde eles querem dizer a escravidão ao
corpo e o tédio espiritual. A ortodoxia faz com que saltemos à beira do
inferno; é somente depois que percebemos que o salto foi um exercício
atlético altamente benéfico à nossa saúde. É só tardiamente que percebemos
que o perigo é raiz de todo drama e romance. O mais forte argumento para a
graça divina é simplesmente sua indelicadeza. As partes impopulares do
cristianismo se mostram, após um exame mais detido, como os esteios do
povo. O anel exterior do cristianismo é uma rígida guarda de abnegações
éticas e sacerdotes profissionais; mas no interior dessa guarda desumana
descobre-se a velha e boa vida humana dançando como uma criança, e
bebendo vinho como os homens; pois o cristianismo é a única moldura para
a liberdade pagã. Mas na filosofia pagã o caso é o oposto: é o anel exterior
que é obviamente artístico e emancipado, e o desespero está no interior.
E o seu desespero consiste em não acreditar realmente na existência de
algum sentido no universo; portanto, não pode esperar descobrir qualquer
romance, pois eles não teriam enredos. Um homem não pode esperar
aventuras na terra da anarquia. Mas pode esperar muitas aventuras se viajar
pela terra da autoridade. Não é possível encontrar sentidos numa selva de
ceticismo; mas um homem que caminhar por uma floresta de doutrina e
planos irá descobrir cada vez mais sentidos. Nela tudo tem uma estória por
trás, como as ferramentas ou pinturas na casa de meu pai; pois é a casa de
meu pai. Começo onde terminei — no fim certo. Adentrei enfim o portão de
toda boa filosofia. Cheguei à minha segunda infância. Mas esse universo
cristão mais amplo e mais aventureiro tem uma última marca que é difícil
de ser expressa; todavia, tentarei expressá-la como uma conclusão de todo o
assunto. Todos os argumentos reais sobre a religião giram ao redor da
questão de saber se um homem que nasceu de cabeça para baixo poderá
reconhecer que se encontra de pé. O paradoxo primário do cristianismo é
que a condição ordinária do homem não é sua condição sã ou razoável; que
a própria normalidade é uma anormalidade. Essa é a filosofia interior da
queda. No interessante novo catecismo de Sir Oliver Lodge,12 as primeiras
duas questões são: “O que você é?” e “Qual é, então, o sentido da queda do
homem?”. Lembro-me de me entreter escrevendo minhas próprias respostas
a essas questões; mas logo descobri que eram respostas defeituosas e
agnósticas. À questão, “o que você é” só podia responder, “só Deus sabe”.
E à questão, “o que se quer dizer com a queda?” só poderia responder com
completa sinceridade que, “seja lá o que eu for, não sou eu mesmo”. Este é
o paradoxo primário de nossa religião; algo que nunca conhecemos de
forma completa não é somente melhor do que nós, mas até mais natural do
que nós mesmos. E não há qualquer teste para isso exceto o puramente
experimental, com o qual estas páginas começaram, o teste do quarto
acolchoado e da porta aberta. Foi só depois que conheci a ortodoxia que
vim a conhecer a emancipação mental. Mas, para concluir, mostrarei sua
aplicação especial à idéia definitiva da alegria.
Diz-se que o paganismo é uma religião da alegria e o cristianismo da
tristeza; seria também fácil provar que o paganismo é pura tristeza e o
cristianismo pura alegria. Semelhantes conflitos nada significam e a nada
levam. Tudo que é humano deve ter em si a alegria e a tristeza; o que
interessa é a forma em que as duas coisas são equilibradas e divididas. E o
verdadeiramente interessante é que o pagão (na maior parte dos casos) se
tornava cada vez mais feliz à medida que se aproximava da terra, e cada vez
mais triste à medida que se aproximava dos céus. A exuberância do melhor
paganismo, como na jovialidade de Catulo13 ou de Teócrito,14 é, de fato,
uma exuberância eterna que nunca será esquecida por uma humanidade
agradecida. Mas é uma alegria sobre os fatos da vida, não sobre sua origem.
Para o pagão as pequenas coisas são tão doces quanto os pequenos ribeirões
que jorram das montanhas; mas as coisas mais amplas são tão amargas
quanto o mar. Quando o pagão olha para o próprio núcleo do cosmos, ele
congela. Por trás dos deuses, que são meramente despóticos, sentam-se as
moiras,15 que são mortais. Na verdade, as moiras são mais que mortais;
estão mortas. E quando os racionalistas dizem que o mundo antigo era mais
iluminado que o cristão, do seu ponto de vista estão certos. Pois quando
dizem “iluminado” querem dizer obscurecido por um desespero incurável.
É profundamente verdadeiro que o mundo antigo era mais moderno que o
cristão. O elo comum reside no fato de que tanto os antigos quanto os
modernos falaram e agiram de forma miserável sobre a existência, sobre o
todo, enquanto os medievais pelo menos se alegravam com o simples
existir. Concedo livremente que os pagãos, como os modernos, só eram
miseráveis a respeito do todo; eram bastante alegres sobre tudo mais.
Concedo que os cristãos da Idade Média só encontravam a paz no todo —
estavam em guerra sobre tudo mais. Mas se a questão revolve sobre o eixo
do cosmos, então havia mais contentamento cósmico nas ruas estreitas e
sangrentas de Florença do que no anfiteatro de Atenas ou no jardim aberto
de Epicuro. Giotto viveu em uma cidade mais escura que Eurípides,16 mas
em um universo mais alegre.
A grande massa dos homens foi forçada a ser alegre sobre as coisas
pequenas, mas triste sobre as grandes. No entanto — ofereço
desafiadoramente meu último dogma —, não é natural ao homem ser assim.
O homem é mais ele mesmo, mais viril, quando a sua posse fundamental é a
alegria, e quando o pesar é superficial. A melancolia deveria ser um
interlúdio inocente, um estado de espírito tenro e fugidio; o louvor deveria
ser a pulsação permanente da alma. O pessimismo é na melhor das
hipóteses um feriado emocional pela metade; a alegria é o trabalho
tumultuoso pelo qual todas as coisas vivem. No entanto, de acordo com o
estado aparente do homem como visto pelo pagão ou pelo agnóstico, essa
necessidade primária da natureza humana nunca pode se realizar. A alegria
deve ser expansiva; mas para o agnóstico dever ser contraída, deve se
aferrar a um canto do mundo. O pesar deve ser uma concentração; mas para
o agnóstico sua desolação se espalha por uma eternidade impensável. É isso
que chamo nascer de cabeça para baixo. O cético pode verdadeiramente se
dizer de pernas para o ar; pois seus pés estão dançando para cima em
êxtases inúteis, enquanto seu cérebro se encontra no abismo. Para o homem
moderno, os céus estão realmente abaixo da terra. A explicação é simples:
ele está de ponta cabeça; e ela é um pedestal muito frágil para o sustentar.
Mas quando consegue ficar novamente de pé, ele sabe o que fez. O
cristianismo satisfaz subitamente e perfeitamente o instinto ancestral do
homem por estar de pé; e o satisfaz supremamente nisto: através do seu
credo a alegria se torna algo gigantesco e a tristeza algo específico e
pequeno. A abóboda acima de nós não é surda porque o universo é um
idiota; o silêncio não é o silêncio desalmado de um mundo sem fim e sem
objetivo. Na verdade, o silêncio ao nosso redor é uma quietude pequena e
lamentável como a quietude pontual de uma enfermaria. Talvez a tragédia
nos seja permitida como uma espécie de comédia misericordiosa: já que a
energia frenética das coisas divinas nos nocautearia como uma farsa
embriagante. Podemos suportar nossas lágrimas com mais leveza do que
suportaríamos as tremendas levezas dos anjos. Por isso talvez estejamos
sentados em uma câmara estrelada de silêncio, enquanto a gargalhada dos
céus é alta demais para que possamos escutá-la.
A alegria, que era a pequena publicidade do pagão, é o gigantesco
segredo do cristão. E no momento em que encerro este volume caótico,
abro novamente o estranho e pequeno livro do qual brotou todo o
cristianismo; e novamente sou assombrado por uma espécie de
confirmação. A tremenda figura que preenche os Evangelhos paira, a esse
respeito, como em todos os outros, acima de todos os pensadores que
sempre se acreditaram grandiosos. Seu pathos era natural, quase casual. Os
estóicos, antigos e modernos, tinham orgulho em esconder suas lágrimas.
Ele nunca escondeu Suas lágrimas; Ele as mostrou abertamente em Sua face
aberta à luz do dia, mesmo nas ruas de sua cidade natal. Mas Ele escondeu
alguma coisa. Os super-homens solenes e os diplomatas imperiais se
orgulham em controlar sua ira. Mas Ele nunca controlou a sua ira. Lançou
móveis escada abaixo no templo, e perguntou aos homens como esperavam
escapar da condenação ao inferno. Mas Ele guardou algo para si. Digo isso
com reverência; havia naquela personalidade arrasadora um fio que deve
ser chamado de timidez. Houve algo que Ele ocultou de todos os homens
quando subiu à montanha para orar. Houve algo que Ele cobriu
constantemente pelo silêncio abrupto ou o isolamento impetuoso. Houve
algo que era grande demais para Deus nos mostrar quando caminhou sobre
a terra; e por vezes tenho imaginado que era Sua alegria.

1 Os pêlos dos camelos eram usados na China antiga para a fabricação de pincéis.
2 Menção ao episódio do sacrifício de Isaac em Gênesis 22.
3 Na mitologia grega, Ifigênia era filha do Rei Agamenon e da Rainha Clitemnestra. Por uma ofensa
de Agamenon, a deusa Ártêmis ordena que ele sacrifique sua filha Ifigênia para garantir a viagem
tranqüila dos navios gregos até Tróia. Em algumas versões Ifigênia é sacrificada em Aulis e em
outras é salva do sacrifício, encontrando depois disso seu irmão Orestes.
4 Alusão à lenda negra da Idade Média.
5 Referência ao Édito de Milão, no qual foi concedido aos cristãos um tratamento benevolente em
todo o Império Romano.
6 Na mitologia nórdica é uma série de eventos futuros que resultarão na morte dos grandes deuses,
em grandes desastres naturais e na definitiva submersão do mundo nas águas. Depois desse fim, o
mundo irá ressurgir com os deuses renascidos e os sobreviventes, e será repovoado por um casal
humano sobrevivente. Num ambiente moderno ou cristão tem o sentido do fim do mundo através do
fogo.
7 É um gênero de plantas florescentes, nativas da Europa, do noroeste da África e do sudeste da Ásia.
8 Banco Central inglês.
9 Benjamin Disraeli (1804–1881) foi um estadista britânico do Partido Conservador que serviu duas
vezes como primeiro-ministro do Reino Unido e teve papel central na criação do Partido
Conservador moderno. Seu grande antagonista liberal foi William Gladstone.
10 É uma rua em Westminster, Londres, famosa por seu intenso tráfego desde os tempos medievais.
11 Deusa grega da caça, dos animais selvagens, do parto, da virgindade, e protetora das moças
jovens. Era usualmente descrita como filha de Zeus e Leto.
12 Sir Oliver Joseph Lodge (1851–1940) foi um físico e escritor britânico que se envolveu no
desenvolvimento do rádio, adquirindo patentes chaves. Também é lembrado por seus estudos sobre o
espiritualismo e o paranormal (principalmente a telepatia), considerando-se um “espiritualista
cristão”.
13 Caio Valério Catulo (84–54 a.C.) foi um poeta latino da República Romana tardia que escreveu
sobre a vida pessoal em vez dos heróis clássicos. Influenciou fortemente Ovídio, Horácio e Virgílio,
sendo redescoberto na Idade Média tardia.
14 Teócrito (300–250 a.C.), o criador da antiga poesia bucólica grega, floresceu no século iii antes de
Cristo.
15 Eram três irmãs que na mitologia grega determinavam o destino dos deuses e dos homens. Faziam
uso da Roda da Fortuna ao tecer o fio da vida de todos os seres. Pertenciam à primeira geração
divina, sendo filhas de Moros e Ananque.
16 Eurípides (480–406 a.C.) foi um dramaturgo trágico da Atenas clássica. Na Era Helenística
tornou-se um pilar da antiga educação literária. Suas inovações afetaram todo o desenvolvimento do
drama, especialmente a idéia da representação de heróis míticos e tradicionais como pessoas comuns
em circunstâncias extraordinárias. Seus contemporâneos o associaram a Sócrates na liderança de um
intelectualismo decadente, e ambos foram ridicularizados por Aristófanes.

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