Metafísica – Caderno 1 – Da Antiguidade ao fim da Idade Média: a crítica antiga do conhecimento. (Joseph Marechal) Murilo Resende Ferreira 30 de maio de 2017
Resumido por Murilo Resende Ferreira
Livro 1 – O ceticismo antigo e a crítica da
afirmação
– Na base da primeira apreensão do mundo está o valor
da afirmação objetiva e positiva da existência. A tendência unificadora do espírito se exerce sobre todas as unidades parciais com as quais nos deparamos.
– Mas chega um dia no qual a partir dessas unidades
secundárias se destaca a unidade primordial e universal do ser. A afirmação necessária da existência de todos os objetos da apreensão entra em conflito com a unidade superior do ser.
– Heráclito abraça a multiplicidade do movimento,
renunciando à unidade imóvel do ser, e Parmênides abraça o ser homogêneo e imóvel, rejeitando o múltiplo como pura aparência.
– A origem dos sofistas se deu na luta política da
democracia nascente, que exigia professores na arte da retórica e da erística.
– O elemento sério e formal da sofística busca envolver a
legitimidade da afirmação original em uma incerteza radical; somente isso pode ser chamado de ceticismo total.
– Aristóteles propunha força o cético total a se refutar a si
mesmo e se afirmar como cético parcial. Todo cético precisa agir: ele discute? Aceita que a discussão e as palavras têm sentido? Faz escolhas afirmativas na vida? Cada um desses atos implica um julgamento sobre a realidade da existência de seu objeto. A afirmação objetiva é inevitável na ordem dos fins e só a total passividade inerte poderia negá-la.
– Mas a origem do questionamento cético está nos
excessos do dogmatismo das metafísicas correntes. Há céticos de boa-fé, para os quais a pedra de tropeço costuma ser o problema do movimento. O não-ser não pode se elevar ao ser, logo, tudo deve preexistir ao seu devir. No entanto, o devir manifesta opostos que não poderiam coexistir realmente e temporalmente mesmo em um único ser. Como conceber a coexistência dos contraditórios numa unidade superior da preexistência? – Aristóteles responde que eles têm parcialmente razão: o ser, objeto de minha afirmação, abarca o ato de ser e a potência de ser, a potencialidade que tem uma relação objetiva e uma tendência ao ato. O devir é uma associação complementar e progressiva de potência de ser e ato de ser.
– Outros céticos sinceros são aqueles que tem
preconceitos empiristas, os fenomenistas de antanho. Mas se tudo não passasse de aparências particulares, qualquer julgamento de unidade sobre um objeto seria ilusório e absurdo. Apesar dos erros de percepção e das ilusões, a percepção é de uma perfeição estonteante: a quase toda transformação subjetiva corresponde uma transformação real do objeto.
– No entanto, todos admitem que a sensação não pode
ser puramente passiva e receptiva, que há nela um agente distinto dos sentidos, que é de direito anterior ao que o afeta. Há uma sensível em potência, uma capacidade receptiva, que subsiste independente da sensação actual e subjetiva
– A sofística, apesar dos pesares, foi um progresso da
filosofia, um episódio na lenta evolução que transladou o foco especulativo do objeto para o sujeito. Uma metafísica do sujeito se impõe ao lado da metafísica do objeto exterior.
– Trata-se de uma lógica que começa a tomar
consciência de si mesma na maiêutica socrática, na dialética platônica e na silogística aristotélica, uma arte de pensar que se move sobre os delineamentos do ser.
– Platão e Aristóteles tem a consciência de que o
problema do conhecimento não admite soluções parciais e que só pode existir uma metafísica. E ela só pode emergir na existência através de uma sistematização filosófica até a unidade total de uma filosofia primeira.
– A primeira objeção a essa idéia é da completa falta de
necessidade de se afirmar uma metafísica; um ser humano pode ser completamente apático em relação ao mistério do ser. Ela se desenvolveu principalmente no Pirronismo e na Nova Academia. A segunda foi de que, mesmo que precisemos afirmar algo necessariamente para viver, nada posso dizer do valor objetivo absoluto da minha afirmação, de seu sucesso em atingir o ser. Esta objeção se apresenta vagamente no ceticismo antigo, mas só se desenvolve completamente no ceticismo moderno, no que chamamos de relativismo.
– À elevação súbita promovida por Platão e Aristóteles
segue-se uma fase descendente. As preocupações centrais na democracia grega, crescentemente demagógica, eram demasiado individualistas, apegadas demais aos problemas psicológicos e morais que interessam à felicidade pessoal. Assim vemos Teofrasto, discípulo de Aristóteles, considerar a vida como regida pela sorte e não pela sabedoria. O ideal passa a ser o da imperturbabilidade, da ataraxia.
– Como garantir esta ataraxia? As escolas filósoficas pós-
aristotélicas, epicurismo, estoicismo e pirronismo se dedicam a responde essa pergunta.
– Pirro afirmava que o mal na vida humana advinha
exatamente da necessidade que sentimos de um julgamento absoluto sobre as coisas, sobre sua bondade ou maldade. As aparências devem ser indiferentes para nós e nada devemos definir ou afirmar. Nunca devemos dizer isto é, mas sempre: parece ser.
– O grande nome da Nova Academia (Aristotélica) foi
Carneádes, cuja originalidade residia na sua teoria da probabilidade que rege os julgamentos práticos. Mas admitir uma escala e valores prováveis já é negar o ceticismo total e sério, pois a probabilidade que acompanha essa escala já é uma correspondência objetiva entre as aparências e a obtenção de uma finalidade real.
– Qual é então o vício original de todo ceticismo franco? É
a dúvida sobre o primeiro princípio e sua consequência prática, a suspensão de todo julgamento e afirmação. Há duas formas básicas de sua refutação na filosofia antiga: a resolução das antinomias e contradições aparentes que parecem destruir a afirmação, ou seja, o método de Sócrates, e a demonstração de que a própria vida do cético refuta seu pensamento, pois a vida seria impossível com a suspensão de todo julgamento e afirmação.
– Seria possível realmente encontrar no ponto de partida
da metafísica uma inteligência puramente passiva, totalmente indiferente ao sim ou ao não, uma pura superfície refletora, reduzida a constatar as belas imagens que nela se refletem? A resposta a esta questão só será possível ao fim desta obra e portanto inicialmente a via mais direta de refutação é a prática. Sua forma final é: a via cética é essencialmente afirmativa, pois requer uma resistência ativa aos movimentos do desejo e do intelecto, uma impassividade absoluta. Essa atitude é uma violência contra o nosso ser mais íntimo, que exige muita força de vontade.
– O cético seria o dogmático mais estreito e absoluto,
afirmando sempre um único fim: negar toda finalidade que não seja a passividade e ausência de julgamentos. O ceticismo absoluto é a descoberta da forma perfeita do egoísmo, pois recusa qualquer doação de si mesmo seja em um ato cognitivo ou voluntário de afirmação. É, em suma, a autolatria suprema, o culto do eu solipsista.
Livro II – A Antinomia do Um e do Múltiplo na filosofia
antiga. Vicissitudes de uma crítica do objeto da afirmação.
– Da crítica do ceticismo extraímos a conclusão de que a
afirmação é inevitável, logo, todo objeto (todo dado objetivo da consciência) pertence ao domínio do ser. Qual seria a negativa? Um objeto de meu pensamento não é ser, mas sim absoluto não-ser, o que é um absurdo lógico. Mas se o nada não é pensável, todo o pensável é.
– Mas se todo conteúdo do pensamento é objeto de uma
afirmação absoluta de ser, é preciso que eles se harmonizem na unidade do ser, sob pena de uma afirmação irrestrita de uma multiplicidade irracional. É preciso erigir uma metafísica onde todo conteúdo objetivo do pensamento humano encontre seu lugar definido.
– No dia em que todo conteúdo do pensamento tiver sido
devidamente hierarquizado, sem qualquer indeterminação, terá acabado a crítica metafísica do objeto. Mas não será este ideal um limite transcendente da razão humana?
– A busca desse limite já se manifestava nos primeiros
sistemas cosmológicos, que não buscavam senão introduzir a unidade na pluralidade. Foram dois os grandes pensadores que deram inicialmente livre curso a essa tendência do espírito humano: Xenófones e Parmênides.
– Heráclito afirma a predominância da multiplicidade, a
realidade experimental da mudança e do movimento: tudo é devir. Mas, por uma espécie de instinto metafísico, ele também afirmou os direitos da unidade, ao descobrir, na forma mesma do devir universal, uma harmonia superior, um verdadeiro Logos divino imanente às coisas. No entanto, essa unidade da harmonia é somente formal e tendencial.
– Os atomistas, por sua vez, buscaram reduzir a
diversidade indefinida das coisas à uma multiplicidade perfeitamente homogênea, isto é, eles confundiram unidade com homogeneidade. Toda o movimento e diferença seria fruto de movimentos de átomos homogêneos e simples, perfazendo uma unidade da quantidade e do movimento passivo, onde só é preciso um primeiro golpe que move o primeiro átomo, já que a pura materialidade homogênea é a pura inércia. A harmonia de Heráclito é substituída pela configuração espacial dos grupos atômicos e pelo agrupamento das sensações elementares no espírito humano.
– Os eleatas mantiveram de forma exagerada os direitos
da unidade. São perfeitamente realistas: o pensamento objetivo é perfeitamente coextensivo ao ser. E o ser é indivisível, imóvel e fixo. Se o ser é único, o pensamento objetivo só pode ser monista, isto é, afirmar uma única substância. A multiplicidade é pura ilusão. Percebe-se que eles fogem à antinomia do Um e do Múltiplo sacrificando a multiplicidade pelo lado do objeto e a realidade dos sentidos pelo lado do sujeito; trata-se de um realismo da inteligência pura, mas com uma dificuldade: a inteligência é a faculdade de recepção do ser, que é concebido então como uma plenitude que preenche o espaço geométrico absoluto, ou seja, é simplesmente a extensão contínua e indiferenciada.
– Foi a controvérsia com os sofistas que impôs a
necessidade de dosar rigorosamente a medida de afirmação de cada conteúdo da consciência em relação a esse primeiro realismo ingênuo. O realismo antigo exige a emergência de uma ontologia do conhecimento, isto é, de uma metafísica do sujeito conhecedor enquanto tal.
– Sócrates busca, sem abandonar o realismo objetivista,
amortecer a oscilação enganadora entre unidade intelectual e multiplicidade sensível. Seu instrumento é a criação de um sistema de conceitos onde as contribuições da inteligência e da sensibilidade devem se equilibrar em uma hierarquia de unidades intermediárias, nas quais os termos opostos se combinam em proporções diversas: as idéias gerais.
-Infelizmente, ele se preocupou antes de tudo com os
problemas morais e por isso não construiu nem uma metafísica geral nem uma cosmologia, o que tornou alguns de seus discípulos alvos fáceis da influência cética e nominalista. Mas um outro grupo de discípulos continuou a obra construtiva do mestre. À indução socrática, que permite construir corretamente as idéias gerais, Platão e Aristóteles acrescentaram visões mais amplas e mais precisas sobre a natureza e o valor objetivo dessas idéias. O realismo do pensamento grego tende a uma forma crítica. – Aristóteles diz que a epistemologia de Platão é uma tentativa de conciliação entre a teoria socrática dos conceitos gerais e o mobilismo de Heráclito. A dialética platônica estende o alcance da dialética socrática, ao desvelar para o espírito humano o meio de se elevar das aparências sensíveis à idéia geral que exprime sua essência inteligível, sua unidade universal. A dialética conduz então a um cume de idéias e formas por um procedimento semelhante à abstração de espécies e gêneros, rumo ao gênero supremo.
– A idéia platônica não é propriamente representável por
uma imagem comum, que a traduz em termos da similitude material com as coisas sensíveis. O paralelismo entre ser e pensamento não pode estabelecer então através da sensibilidade. Cada percepção sensível desperta em nós uma idéia correspondente, e a multiplicidade dessas idéias se organiza naturalmente em nosso pensamento; há uma dialética viva das idéias, presidida pelo amor divino. Devemos então percorrer esse caminho dialético de unificação das idéias até a contemplação direta e progressiva da hierarquia completa das idéias, e finalmente da Idéia primeira a que ela se subordina. É uma evolução teleológica no mundo das idéias.
– Consideradas ontologicamente e não psicologicamente,
as Idéias são subsistências exteriores a nosso pensamento, isto é, essências separadas (formas puras que tem um modo de individualidade estranho a toda multiplicação material) na terminologia aristotélica. Entre as aparências exteriores e as Idéias subsistentes existiria um elo mal definido de participação. O que fica claro é que, para Platão, as idéias subsistentes, objetos imediatos de nosso conhecimento intelectual, são ao mesmo tempo a unidade real – imanente ou transcendente – dos objetos sensíveis (unidade real da espécie).
– Não fica muito claro como as idéias podem se tornar
objetos para nossa inteligência. O que pode se divisar é uma tendência intuicionista, a afirmação de uma contemplação direta, mas que não pode ser reduzida a uma contemplação completamente extrínseca entre um objeto perfeitamente exterior e um sujeito perfeitamente interior e passivo. Há muito mais do que esse simplismo na teoria das idéias.
– A verdadeira pergunta que move Platão é: como posso
conhecer um objeto sem de fato já possuí-lo de alguma forma? A percepção, tanto sensível quanto inteligível, exige uma proporção entre conhecedor e conhecido. Trata-se, é claro, da teoria da anamnese. A forma mais profunda desta teoria foi desvelada pelos neo-platônicos: a alma decaída e unida a este corpo continua em contato com o plano das Idéias subsistentes, sua pátria de origem. As idéias seriam então imanentes, tanto ao espírito humano quanto ao espírito universal de onde ele emana. O processo teleológico do conhecimento tem o mesmo fim do Amor: a posse do Bem absoluto. No cume a inteligência se reúne fisicamente ao seu objeto, e o paralelismo das etapas inferiores se tornar identidade real, o que pressupõe um princípio de correlação e de harmonização sempre operando entre os dois lados.
– Quais os problemas desta bela perspectiva? O papel da
sensação no conhecimento não é reduzido excessivamente? Será correto tratar nossos conceitos abstratos como expressão adequada dos inteligíveis puros? Não acarretará isto uma mistura indevida de elementos da sensibilidade (aderentes às abstrações) e do inteligível?
– Mas algo foi certamente conquistado: depois de Platão,
a unidade suprema do conhecimento não poderia ser mais definida como forma representativa: só poderia ser, na verdade, um fim último. Com isso ele afirmou pela primeira vez o princípio da analogia metafísica ou, se assim se preferir, da transcendência do Ser. Esta conquista ainda é confusa no próprio Platão: ao perceber que aponta para algo que transcende o estado do ser tal como o conhecemos, ele afirma superioridade do Bem (causa final do conhecimento) ao Ser.
– Ao estabelecer esta hierarquia, Platão tem uma
concepção do Ser análoga a de Parmênides, isto é, a idéia suprema do Ser se confunde como nosso conceito supremo, ou seja, o ser é comensurável a nosso entendimento. Um escolástico diria que o Ser platônico é no fim das contas uma hipóstase do ser abstrato e nocional, que em pouco difere do pleno dos Eleatas. É possível então definir o platonismo como um realismo do entendimento, imperfeitamente corrigido pela perspectiva teleológica do Bem absoluto.
– Para muitos, Aristóteles continua Platão, adotando a
equação entre o inteligível humano e o universal. Mas eis a divergência: em Aristóteles o conceito universal não emerge de uma intuição ontológica das Idéias, mas sim é imanente às próprias coisas sensíveis. Há também certa continuidade aí: Platão já fora obrigado a admitir certa participação objetiva das formas sensíveis às Idéias.
– É o sujeito humano que, reagindo sobre a imagem
concreta deixada pelos sentidos, irá usar sua inteligência imaterial para separar o elemento formal do elemento material do percepto. E para Aristóteles, desmaterializar é também desindividualizar. É a famosa tese da individuação somente pela matéria: toda multiplicidade numérica no interior da espécie advém da matéria, princípio de multiplicidade pura.
– Nesta concepção, o universal não pode ser substância,
pois ele é somente potência de subsistir, que exige uma matéria adequada, assim como a matéria realmente subsistente é somente potência de universalidade e inteligibilidade, que exige uma informação. É necessário então separar no conceito o que é realmente significado e o modo abstrato de representação, ou seja, o lado do objeto e o lado sujeito no conceito objetivo. – Aristóteles afirma então, primeiramente, a necessidade de uma afirmação absoluta de todo objeto, isto é, da verdade absoluta do primeiro princípio (princípio de identidade) em sua aplicação a todo conteúdo da consciência. Em segundo lugar, ele afirma a necessidade de uma triagem do objeto metafísico assim afirmado (todo e qualquer objeto), sob a norma do princípio de identidade, ou seja, a afirmação ontológica deve se diversificar em acordo com os nexos lógicos de seu conteúdo. A unidade do ser só aparece para nós através de uma diversidade que a oculta. A preservação do primeiro princípio só pode se dar a partir da harmonização e da coerência lógica entre as diversas acepções do ser.
– A pura variedade é incompatível com o princípio de
identidade: Heráclito engendra necessariamente Protágoras e seu relativismo. Por sua vez, os eleatas exageram a unidade necessária do ser. Entre as noções extremas de ser puro e de puro não-ser, Aristóteles irá intercalar uma noção sintética, advinda de uma postura dinâmica: na descida do ser rumo ao não-ser ocorre a degradação, a limitação, que é síntese de ser e de não- ser; inversamente, o movimento do nada rumo ao ser leva ao encontro do devir positivo, síntese de não-ser e de ser. Qual direito tínhamos de encerrar nosso pensamento objeto na imobilidade estática? Ele também não é a forma própria de nossa atividade e se dá sempre em movimento? A homogeneidade imóvel do ser impede qualquer conciliação entre ser e conhecer.
– Aristóteles era também um médico(biólogo) no sentido
antigo, um estudioso da vida, e por isso encontrou a síntese de ser e de não ser na percepção viva do movimento, lei universal do mundo físico. Uma vez dotado da noção central de movimento como passagem da potência ao ato, ele chega à teoria geral das quatro causas do movimento: 1) a a essência, ou forma; 2) a matéria, ou sujeito; 3) o princípio e 4) o fim.
– Ergue-se ao lado do ato de ser, o não ato, a potência de
ser, o nada relativo que é a verdadeira negação do nada absoluto, já que implica sempre uma proporção positiva em relação ao ato de ser. Ela convoca e exige um ato positivo que a possa realizar, mas também resulta de um ato anterior que a sustém no ser. A potência passiva é somente a expressão de uma potência ativa anterior.
– Ora, todo devir – diz Aristóteles – procede de um ato
que é princípio motor e tende rumo a um ato no qual se encerra. Se qualquer devir particular é mistura de ato e potência, estes também são um “devir” que exige um ato como começo e um ato como fim. Ou seja, o ato e potência interiores às substâncias e ações diversas exigem dois atos extrínsecos que estabelecem um começo e um fim para todo o devir. A base do devir é a potência em todos seus graus, até o último, aquele que não pode existir isoladamente: a potência pura, a matéria-prima. – A metafísica aristotélica ordena assim em um sistema coerente todo objeto do conhecimento direto, a matéria prima e o primeiro motor imóvel, que é Ato Puro e Idéia Pura. Resta em Aristóteles certa obscuridade sobre a origem da matéria-prima, sobre a natureza do movimento criador, sobre a perfeita transcendência de Deus e sobre o destino final do homem.
– O objeto inteiro do conhecimento reflexivo também é
ordenado. A reflexão, ao encontrar o ato direto de conhecimento, percebe a oposição imanente entre o Sujeito ativo e o Objeto representado, ou seja, do Eu e do Não-Eu. Explica-se também o conhecimento considerado em si mesmo como relação de objeto e sujeito: a união de conhecimento direto e reflexivo mostra que o conhecimento objetivo tem uma parte do Eu e outra do Não-Eu, e que a consciência implica certa relação de identidade entre um sujeito real e um objeto real.
– Mas a perspectiva mais ampla de uma metafísica
perfeitamente racional deve abarcar estes três problemas gerais da determinação das condições ontológicas do conhecimento racional: a) visto como assimilação do objeto pelo sujeito; b) visto como oposição imanente do objeto ao sujeito e c) visto como afirmação absoluta do objeto pelo sujeito. Em sua teoria do conhecimento Aristóteles só trata explicitamente do primeiro desses problemas. – Um problema surge nesta perspectiva da assimilação do objeto pelo sujeito: se o objeto primeiro e imediato de nossa inteligência são as coisas materiais e extensas, como elas podem entrar em síntese com o espírito, essencialmente imaterial e inextenso, com o nous capaz da reflexão total sobre si mesmo?
– Sem dúvida os objetos agem fisicamente sobre nossos
sentidos, e é a imagem que resulta dessa ação que apresenta a forma do objeto material imediatamente apresentado à nossa inteligência. Mas esta forma permanece em nós imiscuída à matéria, pois o próprio fantasma (imagem da apreensão sensível) é um ato da faculdade orgânica. A forma trocou a matéria do objeto exterior pela matéria do sujeito conhecedor. Por outro lado, como não somos intuitivos puros, nosso espírito nunca está em posse de sua actualidade última: ele só conhece passando em cada intelecção da potência ao ato. Há então em nossa inteligência um intelecto passivo, uma potência de intelecção actual. Mas pode o fantasma despertar essa transição? Há incomensurabilidade entre uma atividade material e uma potência espiritual. A actualização será forçosamente feita por um agente imaterial, da mesma ordem que a inteligência passiva, e que é o intelecto ativo, capaz de imprimir objetivamente a totalidade do real na capacidade receptiva indefinida do intelecto passivo.
– A atividade pura de nosso espírito carece de um
conteúdo diverso sobre o qual possa operar. Ela precisa do fantasma com substrato, a partir do qual ela extrai a forma ao excluir a determinação material. É o que chamamos de operação de abstração. A forma universal, abstraída do fantasma, segue então uma longa cadeia contínua de causalidades ontológicas e e é capaz de representar na inteligência passiva a forma concreta do objeto exterior. A forma sensível desmaterializada se torna um inteligível em ato imanente ao sujeito.
– A crítica aristotélica do conhecimento pode ser
resumida em três pontos: 1) qualquer conteúdo da consciência, por respeitar o princípio de identidade, tem uma relação com o absoluto do ser, pois a pura relatividade dos conteúdos da consciência negaria o primeiro princípio. Quanto ao primeiro princípio em si mesmo, Aristóteles diria em linguagem moderna: “O primeiro princípio, em seu sentido absoluto, não é suscetível de demonstração analítica, mas sim de prova transcendental”. 2) Se todo conteúdo da consciência é, absolutamente, na medida de sua identidade consigo mesmo, a ciência da existência e a ciência da essência se confundem; ou seja, a ordem lógica ou ideal exprime a ordem ontológica. 3) As essências que ligamos todas à ordem absoluta do ser, e que chamamos de seres, são múltiplas e diversas, não somente em nossas representações, mas também em sua conexão com a existência concreta: elas só existem sob determinadas condições e mesmo que se liguem todas a uma subsistência, não são todas subsistentes por si mesmas. Um determinado objeto de nosso pensamento pode tomar a realidade de substância, de acidente, de potência, de ato, de relação e mesmo de devir, de movimento. Cada aspecto particular é avaliado em relação à participação na totalidade do ser.
– Em resumo, a realidade, em geral, é apanágio de todas
as essências, mas sob diferentes modalidades e não necessariamente em uma subsistência própria. O problema do conhecimento para Aristóteles não consiste em efetuar qualquer passagem da ordem lógica ou ideal à ordem ontológica: toda ordem lógica é ontológica. O problema real é o de encontrar a conexão inteligível de cada essência particular à subsistência actual, subjetiva ou objetiva, mediada ou imediata, que ela postula.
– Após Aristóteles, e até o renascimento platônico em
Alexandria, o sentido da grande metafísica se perde. A lógica e a dialética se separam como ciências por si mesmas, e se tornam puramente formais. Os conceitos se isolam do real, tornando-se cada vez mais um jogo de símbolos. A extensão toma o lugar da compreensão na lógica. Não era ainda o Nominalismo extremo dos empiristas modernos, que rejeita a unidade abstrata para o campo da irrealidade puramente linguística. Era mais um conceptualismo mal definido, que confinava a unidade universal na inteligência e a multiplicidade individual no mundo exterior, sem qualquer mediação.
Livro III – A antinomia do Um e do Múltiplo
na filosofia medieval.
– A desagregação do mundo romano sob as hordas
incessantes das invasões bárbaras foi fatal para a filosofia. Na penúria de obras e mestres, os raros comentadores antigos, salvos do naufrágio, foram um precioso apoio.
– A antinomia fundamental foi transmitida aos medievais
sob a forma do conflito entre realismo neo-platônico e o conceitualismo vazio de outras escolas pós-aristotélicas. Os primeiros filósofos medievais se deixaram encerrar entre os lados de um dilema que lhes forçava, acreditavam eles, a escolher a favor ou contra o valor real do pensamento abstrato.
– A consequência do realismo extremo foi sempre o
panteísmo: na filosofia grega, o platonismo conduz ao emanatismo neo-platônico; no século IX o realismo de João Escoto Erígena leva a uma metafísica aparentada ao emanatismo alexandrino; mais tarde, no século XII, o realismo platônico da Escola de Chartres leva novamente a um tipo de panteísmo em Bernard de Tours e Amaury de Bènes.
– O realismo moderado é a via que se consuma enfim em
São Tomás de Aquino. Para ele, a sensação, ou mais diretamente, a imagem derivada da sensação, é uma causa parcial, mas necessária, de nosso conhecimento intelectual. Mas o aporte dos sentidos é a multiplicidade de coisas individuais e cambiantes. Em contato com o entendimento, essa multiplicidade se unifica e se imobiliza. Da mobilidade a inteligência faz uma permanência: a substância. Da multiplicidade dos indivíduos, uma unidade: a espécie.
– Platão teria se iludido ao considerar todo o
conhecimento sob o tipo da similitude, o que o levou a crer que a forma do objeto conhecido deve necessariamente afetar o sujeito conhecedor conforme o mesmo modo de que se reveste no objeto conhecido. Mas o paralelismo total do conhecimento e das coisas é insustentável.
– A afirmação, para ser legítima e sem contradições, deve
separar seu objeto (a imagem) do modo subjetivo em que está encerrada. Mas não seria essa distinção entre um modo puramente subjetivo e um conteúdo objetivo já uma espécie de ceticismo? Em certo sentido sim, pois a verdade lógica não depende do conceito, mas sim do julgamento. A verdade ou o erro só surgem no momento em que o sujeito conhecedor se interessa pelo significado do conceito e o afirma em modo de composição e de divisão.
– São Tomás, assim como Aristóteles, faz a crítica do
objeto do conhecimento marchar junto com a construção metafísica, com a ontologia do sujeito conhecedor. Toda sua atitude filosófica se inspira em um duplo pressuposto: 1) Já que afirmo necessariamente meus conteúdos de consciência, também dou-me necessariamente uma imagem racional da realidade; 2) Não há duas imagens racionais do mundo: a verdade é única.
– Seu pensamento é sempre sistêmico, onde o valor das
partes está ligado ao acabamento do edifício. Desta forma, sua teoria dos universais tem ramificações em toda a metafísica e assume as vestes de uma crítica verdadeira do conhecimento. O universal direto dos tomistas, síntese de sensibilidade e de entendimento, supõe, na ordem dos objetos, a unidade sintética da forma inteligível e da matéria pura.
– O modus rei (o modo da coisa) é a essência individual,
a unidade numérica concreta, por exemplo, Pedro, Paulo e Mateus. O modus mentis (o modo mental) é a unidade universal, estritamente una, constituída, no espírito, pela abstração daquilo que gera a multiplicidade individual das coisas. Pedro, Paulo e Mateus possuem realmente e distributivamente tudo que expressa o conceito de humanidade, salvo a unidade universal, incompatível com sua unidade individual. A eles é atribuído o conteúdo do universal, mas não o modo próprio da universalidade.
– Partindo dessas considerações, precisamos de duas
condições para chegar ao realismo moderado: 1) uma condição psicológica, que o espírito seja capaz de desprover a imagem do objeto sensível de tudo que constitui a individualidade neste; 2) e uma condição ontológica dos objetos, que devem ser tais que sua única diferença relativamente a um conceito especificamente dado, seja sua diferença individual; eles devem responder, em sua constituição íntima e física a uma única lei objetiva, sendo assim homogêneos e semelhantes. Mas estas duas condições só são realizáveis se a individualidade do objeto sensível só se liga realmente à sua materialidade. Desmaterializar, ou desquantificar, deve ser igual a desindividuar. A quantidade deve ser um princípio necessário de individuação dos objetos sensíveis.
– Se esta identidade é relaxada, o realismo do
conhecimento conceitual se atenua e deixa de ser definível. Neste caso, a inteligência poderia encontrar imaterialmente o objeto sensível sem lhe desprover de sua determinação individual, tese cara aos escolásticos agostinianos e franciscanos: o conhecimento intelectual primitivo se opera por conceitos singulares e não por conceitos universais. Se o conceito universal não é primitivo, como ele se forma? De Pedro, Paulo e Mateus temos três conceitos individuais, como é possível a partir daí reduzir os três a um único conceito específico, aquele de “homem”? Somente separando empiricamente grupos de notas: um grupo homogêneo e outro diferencial.
– O que é o agrupamento de notas diferenciais? Existem
basicamente três interpretações: 1) uma visão que ninguém sustenta de fato, segundo a qual as notas individuantes são a expressão de puros acidentes diversamente agrupados. 2) Os tomistas defendem que toda forma de um objeto material é afetada por uma relação transcendental a uma quantidade concreta, a algo que não depende da ordem inteligível mas da intuição sensível. A forma de um objeto material está limitada por natureza a se realizar quantitativamente. O espaço é o lugar da multiplicidade homogênea, da multiplicação das espécies. Para os tomistas, a unidade específica da espécie é dada pela identidade absoluta das notas inteligíveis e a individualidade exprime as substâncias múltiplas na quantidade. 3) A negação da resposta tomista exige a atribuição de notas inteligíveis à individualidade por si mesma, sendo que a espécie será fruto de uma abstração refletida sobre uma série de conceitos singulares inteligíveis. Todos os escolásticos que rejeitaram a solução tomista seguiram esta via, que conduz diretamente a Ocam.
– A abstração que isola o conceito especifico dos
conceitos individuais seria então da mesma ordem que a que isola o gênero da espécie no tomismo: a espécie é o último gênero na escala descensional. A espécie não emerge mais por uma abstração natural e primitiva, fruto da imaterialidade do agente intelectual, mas sim por uma abstração refletida que opera sobre os conceitos singulares. A partir daí, o valor objetivo das abstrações intelectuais irá depender do valor objetivo de induções incompletas.
– A indução a partir de uma coleção de conceitos
individuais, seja ela genérica ou específica, é sempre incompleta, o que apaga a demarcação clara entre o indivíduo e a espécie. Suponha que temos os conceitos a,b,c,d, …? O que garante que o mínimo denominador comum a ser abstraído como diferença específica não é fruto de uma escolha arbitrária de elementos e de ponto de vista? O processo de indução pode se estender indefinidamente, sem que se esgote a possibilidade de novos indivíduos e novos agrupamentos. O conhecimento verdadeiramente objetivo só diria respeito em última instância aos indivíduos, desconhecendo o universal na coisa. O pensamento tomista ao menos oferece uma base ontológica segura para o pensamento abstrato, pois nele todo elemento inteligível transborda o indivíduo e se liga, como necessidade essencial ou possibilidade acidental, à forma específica.
– A elaboração puramente reflexiva dos universais,
fundada sobre a similitude dos indivíduos, também altera a realidade do objeto. Pedro, Paulo e Mateus não são mais somente essencialmente distintos, eles são essencialmente diferentes, pois possuem elementos de distinção inteligíveis que compõem uma essência específica diferente. “Homem” passa a ser um conceito residual e aproximadamente exato; não é unívoco dizer que Pedro e Paulo são homens.
– Há uma opção necessária entre o analogismo na
significação do predicado e a inexatidão objetiva da atribuição específica. Para o tomista, a homogeneidade completa da forma não impede sua multiplicação individual. A espécie é o universal natural e fechado, sendo o gênero algo incluído na própria captação da espécie. Ser homem já inclui ser vivo, a objetividade de atribuição da espécie sendo transmitida à atribuição de gênero, mas não de forma unívoca: o tucano não é animal no mesmo sentido que o homem é um animal. Esta mesma reserva que o tomista faz ao gênero, o não tomista deve necessariamente estender à passagem do conceito individual a qualquer conceito abstrato.
– A partir da forma, objeto próprio de nossa inteligência, a
solução tomista chega à raiz da multiplicidade: a pura matéria. Em São Tomás ela é conceitualmente, ao menos, uma condição de possibilidade existencial do universal abstrato. A operação natural do intelecto agente (entendimento) realiza um primeiro ato de unificação sobre o múltiplo daí derivado; resta à razão superior levar essas unidades abstratas a uma unidade absoluta. E, na verdade, o entendimento é a própria razão superior em contato direto com a pura matéria, através de uma sensibilidade. É a unidade absoluta subjacente (como causa eficiente e final) à operação do intelecto agente que influi no nascimento do conceito abstrato e sua integração em uma totalidade unificada. Da mesma forma, a vontade opera sob a impulsão de uma finalidade objetiva que é o Bem absoluto. A essa tese psicológica do intelecto agente se soma a tese da analogia geral do ser, isto é, todo objeto só é possível em nosso pensamento ligado à unidade total do ser, ao mesmo tempo que nenhum objeto particular pode se revestir da unidade absoluta do ser: a forma unificadora de cada um deles é uma relação finita com a unidade absoluta. Há um união e oposição irredutível entre os dois pólos: o Ser absoluto e a participação deficiente ao Ser absoluto.
– De São Tomás a Ocam a distância não pode ser coberta
por uma só etapa. Ocam irá desagregar profundamente todo realismo e inaugurar tendências estranhas a toda a filosofia antiga. No entanto, seu agnosticismo é uma reação crítica, inteiramente consciente, ao dogmatismo platonizante, em particular contra o formalismo realista de Duns Escoto.
– A pedra de toque das teses agostinianas opostas ao
tomismo é sempre o relaxamento da síntese conceitual tomista. Não há dúvida, por exemplo, que Duns Escoto era aristotélico e realista. Mas reconhece-se em seu sistema duas teses profundamente antirrealistas: 1) a individuação dos objetos sensíveis fundada exclusivamente sob a última diferença formal, a “haecceitas”; 2) a percepção intelectual, imediata e primitiva dos indivíduos materiais, uma espécie de intuição confusa do singular pela inteligência.
– Como será possível conciliar a individuação formal com
a univocidade dos conceitos específicos? A intelecção direta do singular material com o realismo do universal? Será está conciliação possível? A condição de abandono das doutrinas tomistas e de conciliação com o realismo é a admissão de uma unidade bem menos estreita da substância individual. Há em toda essência individual um escalonamento de graus metafísicos correspondentes à superposição de atributos gerais na definição. Esta é a famosa distinção formal que Duns Escoto coloca entre a distinção real e a distinção de razão dos outros escolásticos.
– O sistema de Duns Escoto pode ser descrito como uma
agostinianismo bonaventuriano corrigido pelo racionalismo de Aristóteles. Em suas obras autênticas ele se exime da teoria das razões seminais e da iluminação divina.
– A noção de matéria e de Ser perfeito ocupam os dois
pólos de toda metafísica humana. Em São Tomás a matéria não pode ter qualquer actualidade sem uma forma, e ela nunca é criada sem uma. Duns Escoto já começa em uma atmosfera anti-tomista: a matéria tem uma entidade positiva. Nada impede que se conceba a existência actual da matéria sem forma. Vemos os primeiros sinais de Descartes: a distinção do conceito de matéria e forma implica em uma dualidade de entidades reais; ou seja, todo conceito claro e distinto representa uma unidade objetiva de ser, uma entidade. Mais tarde este paralelismo estrito entre pensamento conceitual e realidade levará ao espinozismo.
– Fica evidente que o autor do Tratado do Primeiro
Princípio se esquece da verdadeira noção aristotélica de uma causalidade recíproca e de uma complementaridade irredutível no interior do ser. Dessa forma também se apaga a diferença radical entre a causalidade recíproca intra-substancial(material e formal), e a causalidade eficiente ativa e passiva. A forma se torna um agente que se imprime na matéria, que é um paciente que sofre essa ação; sendo o composto um resultante.
– Se matéria está em ato e a forma também em ato, qual
a diferença essencial entre elas? Nada mais que uma diferença de grau. No degrau inferior da actualidade está a matéria. Ela é tão pobre que não pode mais se comunicar a nada de mais pobre, ao contrário da série das formas, que deve sempre encadear até uma forma última cujo grau eminente de actualidade torna impossível toda actuação ulterior. Entre a forma primeira e a matéria se escalonam entidade que fazem as vezes de matéria para tudo que as supera. Matéria e forma são descrições de funções que diferentes entidades podem exercer e não mais potência e ato no interior de cada essência e substância.
– A matéria é universal: há uma matéria fundamental
subjacente a todo ser criado, corpóreo ou espiritual. A demonstração: todo ser finito apresenta, enquanto substância, certa indeterminação, que é precisamente o que chamamos de matéria. Todo ser criado contém, então, uma parte de potencialidade. Esta potência universal é simplesmente o ser como termo da criação: é a contingência do ser criado como um não-absoluto, totalmente dependente do Ser absoluto.
– A propriedade física de indeterminação não se encontra
nem na espécie, nem na individualidade do ser criado, mas somente na qualidade de criatura. Mas não seria esta indeterminação de todo composto criado uma função do caráter abstrato do ente criado enquanto tal? Não seria isto uma mera potencialidade lógica que é confundida com uma indeterminação real ou potência física? No entanto, Duns Escoto é perfeitamente consciente do que faz: para ele demonstrar a indeterminação lógica do ser criado composto de ato e potência é também demonstrar uma indeterminação física e real de todo ser criado. Assim ele se mantém coerente, mas à custa de implicar que o modo do ser seja estritamente o modo próprio do pensamento humano, isto é, a hierarquia abstrativa dos conceitos do entendimento. Toda essência criada seria indeterminada, não somente em relação à existência, mas também enquanto essência.
– Se toda essência é composta de ato e potência, então
também é composta de forma e matéria segundo esta tese. O Ato primeiro produz como termo inicial da criação a realidade a menos determinada possível, que corresponde à noção lógica de ser criado. Esta realidade já possui composição interna de ato e potência e exige determinações formais para formar novas substâncias, para as quais exerce a função de matéria. Conforme a união mais ou menos estreita desta matéria e das formas substanciais, a substância será corpórea ou espiritual.
– Para São Tomás, ao contrário, o termo imediato da
criação é o ser individual, inteiramente determinado como existência. A composição original é de ser (emanação do ser primeiro) e de essência (capacidade de recebê-la); se houver alguma indeterminação, a substância individual será corpórea e composta de forma e matéria, se não, será espiritual e forma pura. São Tomás só concede realidade ao conceito totalmente determinado.
– A noção de uma matéria prima de que comungam todas
as substâncias criadas, criada como uma substância que carece em si de qualquer matéria (e por isso é matéria- prima) leva à hipótese complicada de um ente que existiria (entidade formal) sem subsistir (como substância completa). Matéria e forma são duas entidades que exigem um concurso para formar uma substância. A substancialidade (subsistência) não é condição pura e simples do ser, mas algo cuja ausência pode ser suplementada miraculosamente pelo poder de Deus. A substância é, na verdade, um complexo natural de entidades, una por acidente e não por si mesma.
– Impõe-se uma pergunta: se a alma humana é também
composta de matéria e de forma, como ela pode ser forma do corpo? Mas para Escoto nada impede que uma forma informe várias matérias, assim como possam existir várias formas escalonadas no composto.
– A matéria-prima é um ser simples que deve sua
existência a Deus como causa eficiente e causa exemplar. Só para ser esta ou aquela coisa a matéria depende da comunicação da forma. Fica claro que Escoto multiplica o ser no seio das realidades individuais, mas seria também um erro imaginar que ele ensinava a unidade numérica dos graus metafísicos inferiores ao indivíduo (matéria-prima, gênero, espécie). No entanto, a matéria-prima, explicação da unidade física do mundo, deve ser ela também uma unidade física.
– Qual a ordem constante da natureza em seus mais
belos produtos? Ela sempre procede do imperfeito ao perfeito, do indeterminado ao determinado, da unidade material à diversidade de formas. Assim se dá o desenvolvimento da planta a partir de uma semente. O processo que se visualiza é incontestavelmente dinâmico, e vai da unidade física à diversidade física. A individualidade, ou unidade numérica, é a forma derradeira, a perfeição última, exigida pelos seres criados, e é claro que a matéria não pode ter essa unidade numérica. Mas será que essa matéria universal só tem uma existência “ideal”? Do ponto de vista do escotistas, excluir a unidade numérica ou individualidade não é excluir toda unidade real e física.
– Logo, o primeiro universal real é a própria matéria
prima, que se distribui em todos os gêneros, como o mais ínfimo dos atributos metafísicos. Uma coisa complica esta imagem em Duns Escoto: afora o Tratado do Primeiro Princípio, de autoria duvidosa, ele nunca fala de composição de forma e matéria nas criaturas espirituais (anjos e alma humana). Um possível motivo para essa ausência é sua rejeição da distinção real entre essência e existência, sempre associada à teoria da matéria-prima como entidade real. Vemos as seguintes afirmações em suas obras, de difícil conciliação: 1) o universal, enquanto universal, é um produto do espírito e só está em ato nele; 2) a natureza específica – e também o gênero – não é numericamente una de indivíduo a indivíduo; 3) a natureza específica, nas coisas criadas, se multiplica junto com os indivíduos e 4) ao universal corresponde, nos objetos, uma unidade real intermediária entre a unidade de razão e a unidade numérica. Essa unidade real sem individualidade não é formalmente um universal, mas algo que é comum a todos os objetos independentemente de todo pensamento abstrato.
– O que dá ao universal sua forma derradeira, fazendo
dele um universal em ato, é uma operação abstrativa intelectual. Assim define ele o universal em oposição ao comum, como um predicado deste. O verdadeiro universal não pode de fato subsistir nas coisas: a coincidência estrita da unidade com a multiplicidade, no mesmo plano do ser, só é possível para o pensamento objetivo. Logo, o problema da realidade actual dos universais só diz respeito a definir o modo de ser do “comum”, que, sem ser propriamente universal, corresponde nas coisas ao universal.
– São Tomás parte da individualidade como definidora da
existência; Duns Escoto atribui um valor entitativo e objetivo a cada uma das contrações sucessivas que a unidade universal sofre até se tornar individual. A individualidade deve ser considerada neste como a derradeira determinação formal que se sobrepõe às anteriores. Cada degrau real, inferior à individualidade, deve ter um tipo de unidade própria que corresponde à sua entidade. Se na essência física (comum), a entidade do gênero é realmente distinta da entidade da diferença, o gênero constitui então, nas coisas, uma unidade real, que ultrapassa a da espécie. É o mesmo tipo de problema que se passa com a matéria-prima: a existência de uma entidade actual mas imperfeita em sua actualidade. Longe dos graus do ser serem constituídos pela abstração do entendimento, são eles que determinam o objetivamente o grau de abstração do entendimento: o entendimento não é, no fundo, abstrativo, mas sim intuitivo. O escalonamento se passas nas próprias coisas, pois, diz Duns Escoto, se toda unidade comum é uma separação realizada pelo espírito, como poderia Sócrates ser realmente mais próximo de Platão do que de uma pedra?
– Essas considerações não devem ser confundidas com a
idéia da existência dos universais à parte das coisas e enquanto universais, algo admitido como impossível por Escoto. A essência comum (genérica ou específica) será intermediária entre o universal e a matéria. A unidade comum tem repugnância a existir isoladamente pela coesão indestrutível que na ordem das existências une os graus das naturezas específicas com a individualidade, e não, como o universal, pela essência dessa unidade comum. Mas, mesmo ligada indissoluvelmente aos indivíduos, a essência comum é constituída por um escalonamento de entidades reais ou formalidades que participam, em acordo com sua natureza, ao ato de ser.
– Mas como uma entidade real pode, antes de qualquer
intervenção do entendimento abstrativo, ser geral e individual, una e múltipla, homogênea em si e diversificada por contração extrínseca? Eis o mistério da distinção formal na coisa.
– Como se posiciona então Duns Scot na antinomia do
um e do múltiplo? Ela foi dividida nesta obra em dois grupos: antinomia do objeto da sensibilidade (multiplicidade quantitativa) e objeto do entendimento (unidades inteligíveis) e antinomia do objeto do entendimento (unidades inteligíveis) e objeto da razão (unidade absoluta). De forma resumida: antinomia da sensibilidade e do entendimento e antinomia do entendimento e da razão.
– São Tomás conciliava a multiplicidade radical da matéria
e a unidade imaterial do conceito pela unidade abstrata e sintética do número. Duns Escoto rejeita essa tese da individuação material. A individualidade é uma perfeição final e inteligível em si que se sobrepõe a outras entidades. Não somos capazes de “definir” a individualidade devido à imperfeição de nossa inteligência. No entanto, a apreensão intelectiva confusa dos singulares é o primeiro de nossos conhecimentos intelectuais na ordem da aquisição.
– Será esta doutrina escotista compatível com uma
solução radical da antinomia do Um e do Múltiplo? Marechal acredita que não. Segundo ele, a chave da solução aristotélico-tomista reside precisamente na irracionalidade ou ininteligibilidade dos indivíduos. A multiplicação numérica destes deve respeitar a univocidade da essência específica, mas não é logicamente explicável por qualquer diversidade formal. Mas se seguimos Duns Escoto, a inteligibilidade do singular exige que a multiplicidade seja explicável por uma diversidade formal. Sua solução não desce de fato a essa espécie de privação absoluta que é a pura multiplicidade.
– Suponhamos que os tomistas estejam certos: se a
individuação exige a ligação da forma à quantidade concreta, segue-se que Duns Escoto, ao adotar o singular como inteligível, teria introduzido a quantidade na inteligência. A verificação dessa hipótese se daria pela evolução lógica do racionalismo pré-kantiano a partir do escotismo, principalmente a partir da confusão parcial entre o quantitativo e o inteligível. Um outro corolário da individuação escotista: as inteligências subsistentes, como os anjos, também são submetidas à multiplicação numérica, tese que tem sua ancestralidade em Platão.
– Desconhecer o elemento irracional implicado no
número é já se expor à dificuldade que estaria no cerne do cartesianismo, isto é, a dificuldade de traçar um limite preciso entre o objeto primário da inteligência e os objetos do sentido. O modo quantitativo é o modo próprio de uma faculdade receptiva que sofre a ação dos agentes físicos. Ao isolá-lo da inteligência, São Tomás se exime de tratá-la como uma faculdade receptiva e passiva diante dos objetos exteriores. Duns Escoto segue uma via muito diferente: o entendimento recebe seu objeto em bloco, em uma intuição primeira que tem algo de inteligibilidade e de sensibilidade. Inteligência e sensibilidade encontram juntas a existência actual singular; em uma segunda fase, refletida, a inteligência conhece e detalha sua apreensão direta; finalmente, em uma terceira fase, comparativa, o objeto singular é formalmente conectado a um universal. Escoto percebe essa aproximação de sensibilidade e inteligência, pois afirma que a distinção só ocorre na segunda e na terceira fase, estranhas à sensibilidade. O modo de receptividade original é comum ao intelecto e à sensibilidade.
– O fantasma produzido pela receptividade é um
inteligível em potência, que é transformado em inteligível em ato pela reflexão; a operação da razão comparativa leva do inteligível em ato ao intelecto em ato, produto final da intelecção. O primeiro grau da abstração de Escoto sacrifica antes a existência actual do que a individualidade; a haceidade, a última determinação formal, permanece ali de forma confusa; é com o segundo grau de abstração que se elimina de todo a individualidade.
– Eis a descrição que Escoto faz da marcha do processo
abstrativo: a ação física dos objetos sobre nossos órgãos sensoriais suscita em nós o fantasma ou imagem. O fantasma faz a mediação entre as coisas exteriores e a inteligência: apesar de só representar qualidades sensíveis formalmente à imaginação, ele guarda virtualmente, sob o modo intencional, os elementos inteligíveis presentes no objeto exterior sob o modo da existência. O fantasma oferece então ao entendimento toda a hierarquia dos graus inteligíveis que Duns Escoto discerne na essência singular: entidades formais, unidades comuns, entrelaçadas umas às outras e coroadas pela haceidade. O papel do intelecto agente consiste em elevar à universalidade propriamente dita as unidades comuns; o intelecto agente faz passar ao ato o inteligível potencial presente no fantasma. A eficiência do intelecto agente se exerce exclusivamente sobre o intelecto possível, onde ele introduz uma determinação formal, uma espécie, portando os caracteres lógicos de um universal em ato. Assim, o universal propriamente dito, termo da operação do intelecto agente, será algo de intermediário entre a representação bruta das entidades comuns já formalmente distintas no objeto exterior, e o estado completamente refletido do universal lógico.
– A essência em relação à haceidade, e cada degrau
essencial em relação aos graus que o contraem (a espécie cachorro “contrai” o gênero animal), portam então, antes de qualquer intervenção do intelecto agente, um coeficiente de indeterminação que os torna aptos a subsistir disjuntivamente. A universalidade estrita conferida pelo intelecto agente é uma cognoscibilidade próxima de uma aptidão objetiva que Duns Escoto qualifica de universalidade negativa ou indeterminação privativa. A operação primária do intelecto agente é a recepção dessa universalidade negativa que reside na coisa. Tudo isso remete a Platão, mesmo que sob uma via aristotélica. Mas, sem o apoio da intelecção intelectual por espécies inatas ou iluminação transcendente, nossa inteligência deve ser, diante do objeto sensível, fisicamente passiva, como a sensibilidade.
– Ocam irá afirmar com muito menos reserva o
conhecimento intelectual por apreensão direta dos singulares materiais, raciocinando da seguinte forma: se a operação primária da inteligência é a recepção da essência individual, a abstração do universal é somente uma operação secundária, reflexiva, uma classificação ou triagem, em relação à qual nada garante uma relação com o objeto. Mas a teoria escotista dos universais realmente escapa a essa conclusão, pois não imputa a uma atividade refletiva e comparativa a constituição primeira do universal. Mas o faz à custa de um dogmatismo realista que sacrifica no próprio objeto a unidade estrita da substância individual. Ela gera a contradição entre a unidade entitativa de cada grau metafísico e a multiplicidade entitativa dos graus metafísicos menos universais que o determinam e fracionam intrinsicamente. Resta ao menos uma forma certa de se evitar essa contradição: renunciar completamente à unidade substancial do indivíduo, ou à unidade inteligível do conceito objetivo, para torna-las simples agrupamentos acidentais de notas individuais. Por essa via chega-se rapidamente a uma nova noção de substância em que todo elemento inteligível do ser actual é subsistente, numa clara tendência de pulverização empirista do ser.
– Em relação à antinomia do entendimento e da razão
transcendente parece a princípio que Duns Escoto tem mais sucesso. Entre os objetos da experiência e o objeto transcende está a univocidade do ser. A cooperação dos sentidos e do entendimento é no fundo acidental, fruto de nossa natureza decaída: em si o objeto individual pode se imprimir diretamente na faculdade intelectual. Mas entre o que há de positivo e singular no objeto da experiência há univocidade com o ser absoluto. Na integridade de nossa natureza deveríamos tanto ver a Deus quanto apreender diretamente os inteligíveis.
– Se o objeto próprio e primário da inteligência humana
não é a quididade dos objetos materiais, e não é mais nem o próprio Deus, nem a substância como tal, nem os atributos transcendentais do ser, só resta o que há de mais universal no ser, o ente como tal, ou a entidade, a existência unívoca em toda a escala dos seres. O conhecimento quiditativo é constituído por agrupamento de conceitos emprestados aos objetos criados, que representa diretamente, mesmo que sob forma imperfeita, a realidade transcendente. A condição desse conhecimento quididativo metaempírico é que os elementos conceituais recolhidos na experiência sejam unívocos e tenham o mesmo conteúdo inteligível em sua aplicação aos objetos transcendentes. O Ser, ou o Ente, se aplicaria de forma comum a Deus e à criatura. No entanto, Duns Escoto rejeita a aplicação dessa univocidade às ultimas diferenças das coisas, e fala da analogia do ser como um complemento necessário e possível à univocidade. Parece que com isso a univocidade de Escoto pode ser aproximada da relação mínima de identidade relacional subjacente à analogia tomista. Mas, na verdade, o ser unívoco de escoto é uma razão objetiva que resta após a abstração das diferenças, enquanto para os tomistas o ser análogo não pode ser positivamente abstraído das diferenciações do ser.
– O ser unívoco produto da abstração poderia ser visto
como o gênero supremo do qual todos os outros derivam por contração. Mas Duns Escoto rejeita essa consequência da univocidade. Segundo ele, a infinitude divina é incompatível com o fato de que o gênero é sempre em potência igual à integral de suas diferenças. Nenhuma soma do finito pode chegar ao infinito em ato. Como reconciliar a univocidade do ser com essa transcendência do ser? É preciso manter uma dualidade irredutível: por um lado, Deus e as criaturas têm um conceito objetivo comum, por outro, são incomensuráveis. É preciso preservar a univocidade, pois ela é o que garante realmente a objetividade de nossa inteligência: sem ela, o único caminho seria o agnosticismo, pois nada garantiria realmente que o que conhecemos é o que as coisas realmente são. Duns Escoto admite infinitos relativos, isto é, como o infinito potencial do número e de toda multidão indefinida. Da mesma forma, a espécie nunca pode ser esgotada pelos indivíduos que a compõem, o que seria uma espécie de infinito negativo. Mas Deus é o infinito absolutamente transcendente, intensivamente infinito.
– Ele procede então à prova da infinitude intensiva de
Deus. A demonstração parte das criaturas, ou seja, é a posteriori e tem duas grandes etapas. A primeira chega a estas três conclusões: deve existir um ser primeiro, tanto na ordem causal quanto na ordem dos fins e na ordem formal das perfeições; a prioridade em cada uma dessas ordens se estende às outras; essa tripla prioridade pertence a um único e mesmo ser. É este ser absolutamente primeiro infinito? Os preâmbulos desta prova são: o ser primeiro, cuja existência foi demonstrada, é inteligência e vontade; a intelecção e a volição do ser primeiro são idênticas a sua essência; a intelecção e a volição, pelo ser primeiro, de objetos distintos dele, não são acidentes seus, mas sua própria essência; e, finalmente, a inteligência primeira conhece, de um conhecimento permanente, distinto e necessário, todo objeto inteligível, antes mesmo da existência desse objeto. Deus tem então o conhecimento actual da multidão dos possíveis. Como essa intelecção é idêntica à essência divina, em nossa intelecção imperfeita, por estimativa do criado, podemos julgar indiretamente a perfeição ontológica da causa primeira.
– A primeira prova da infinitude divina advém da infinitude
dos possíveis que podem ser criados. Será que os verdadeiros possíveis se estendem além de todo limite concebível, como exige essa prova? Escoto mantém, na verdade, uma premissa oculta: a infinitude intensiva é compossível com o ser, logo seria uma limitação ao poder divino dizer que os possíveis criáveis são finitos. A segunda prova advém do conhecimento que Deus tem do conjunto dos termos possíveis de sua atividade, ou seja, de todos os possíveis absolutamente. Para isso ele supõe que nossa própria inteligência é fundada numa potência infinita de receber todos os inteligíveis, à qual corresponderia na linha de intensidade um ato infinito adequado. Mas esta segunda prova também exige o pressuposto de que a infinitude intensiva é compossível ao ser. Voltamos ao mesmo ponto. A terceira prova é tirada da amplitude dos fins da vontade. Nossos desejos, diz Duns Escoto, podem se estender além de todo objeto finito. Mas o bem também não rejeita a infinitude, assim como o ser, a existência. Logo, a transcendência de nossos desejos aponta para um infinito intensivo. Mas está realmente demonstrado que essa tendência transcendental não aponta somente a um infinito puramente ideal? A quarta prova é fundada sobre a perfeição de eminência do ser primeiro. A perfeição mais eminente exclui a possibilidade uma perfeição superior, logo Deus como perfeição última de todo possível deve ser ilimitação absoluta, já que todo limite aponta para algo que o transcende ( e que teria alguma perfeição ausente no ser primeiro). Escoto também dá razões para a evidência imediata do axioma que o infinito não repugna ao ser, ou seja, é compossível ao ser: se a noção do infinito é concebível e não possui contradição interna, a ela deve corresponder uma realidade, pois como poderia ser pensável aquilo que é impossível? Vemos algo de Descartes e Espinoza nesta explicação.
– O aporte de Duns Escoto ao argumento de Santo
Anselmo consiste em declarar expressamente que o sumamente cogitável, ao corresponder a exigência de nosso pensamento como noção, deve ser realmente possível; a partir daí se impõe a conclusão de Anselmo: se o sumamente cogitável, cuja definição inclui ser de sua essência existir, não existir, então também não seria realmente possível (haveria contradição lógica entre uma essência que deve existir necessariamente mas que pode existir ou não existir). Já vemos aí o primado do possível que será encontrado em Descartes e Wolff, o dogmatismo das idéias claras e distintas.
– O tratado anônimo dos Theoremata irá desenvolver o
fideísmo semi-agnóstico implícito nas aporias do sistema de Escoto. São três as articulações dos treze primeiros teoremas: 1) o inteligível tem uma prioridade em relação à intelecção,isto é, não pode ser primitivamente um efeito da intelecção; logo, a intelecção de um inteligível realmente primitivo exige um objeto real correspondente. 2) Quais são em nós os inteligíveis primitivos? São os universais quiditativos obtidos por um conhecimento imediato e primitivo. 3) Depois esquece-se essa multiplicidade material dos universais primitivos e busca- se analisar suas propriedades lógicas gerais de forma puramente a priori.
– O conceito quiditativo mais geral, o ente unívoco, não
abarca em sua extensão as diferenças irredutíveis dos seres individuais, preservando assim sua unidade em detrimento da explicação da diversidade dos seres. Há então uma linha quiditativa de graus essenciais e uma linha qualitativa de diferenças. Podemos seguir a última linha com a seguinte pergunta: quais são as distinções primitivas e irredutíveis dos conceitos? A mais geral se encontra na oposição relativa de determinante e determinado. Daí se seguem os outros pares diferenciais: “gênero e diferença”; “matéria e forma”; “diferença superior e inferior”, se escalonando até a “species specialissima”, designação formal do indivíduo.
– Como os conceitos quididativos se unem a estes
conceitos qualitativos? Do ponto de vista quididativo, a escala dos conceitos se resolve no conceito primeiro e único: o ente. E ele só pode se unir ao grau individual da escala qualitativa por intermédio de conceitos subordinados. Que sabemos a priori sobre estes? A rigor, só que devem ser muitos e que devem dividir o ser unívoco, como o fazem as tradicionais categorias aristotélicas. Há os conceitos absolutamente universais que se aplicam às duas ordens sempre: o bom, o belo e o verdadeiro. Cada conceito universal implica um degrau real de entidade nos objetos aos quais se aplica,
– Apesar de algumas dissonâncias aparentes, o realismo
dos Theoremata não difere sensivelmente do de Duns Escoto. Um aspecto importante é a estranha semelhança apresentada entre os modos do pensamento e da expressão, que prevaleceria mais tarde na escola cartesiana sob o rótulo das idéias claras e distintas. O conceito é definido por proximidade do objeto: ele é o próprio objeto na medida em que termina o ato de intelecção. O estado primitivo e intuitivo das idéias é aquele que precede toda separação analítica. É perfeito o conhecimento que atinge os predicados primeiros e irredutíveis que exprimem a essência do objeto, que não pode mais ser analisado. Para nós conduzir a conclusões metafísicas, a análise dos conceitos primitivos deve escapar a toda arbitrariedade subjetiva, ser comandada pela necessidade lógica mais rigorosa. Simplicidade e irredutibilidade passam a se identificar com a verdade.
– O agnosticismo emerge diante da impossibilidade
prática de se atingir essa simplicidade irredutível para a maior parte dos conceitos e objetos. Assim torna-se ainda mais difícil desse mundo de pouca inteligibilidade rumo à demonstração de uma existência transcendente. Uma nuance crítica é a idéia de que certas demonstrações exigem o conhecimento anterior da possibilidade do objeto de que se deseja provar a existência, como quando Duns Escoto supõe a compossibilidade real das noções de infinito intensivo e de ser unívoco. O autor do tratado é fiel a univocidade de Escoto, mas abandona completamente a pretensão de realizar a síntese racional das essências, isto é, afirmar a priori a compatibilidade real das diversas notas positivas dos seres.
– Duns Escoto, apesar de fazer empréstimos ao
aristotelismo, retoma então vários pontos de vista essenciais do agostinianismo medieval: o ser que mal se distingue da entidade; a inteligibilidade direta, ao menos confusa, da individualidade corpórea; a individuação sem ligação necessária com a matéria; a tendência a um empirismo intelectual seja intuitivo, seja receptivo, e todas as teses conexas. Ocam é, pode-se dizer, Duns Escoto menos o realismo dogmatista dos universais. A partir de Escoto, a antiga antinomia do Um e do Múltiplo, irá atravessar novas vias, tomando cada vez mais as aparências de um conflito entre a tendência ontologista ou racionalista e a tendência empirista.
Pe. Stanislavs Ladusãns - Significado e Ampliação Da Gnosiologia Pluridimensional (Revista Brasileira de Filosofia, V. 36, N. 147, P. 264-268, Jul.-Set., 1987)