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A metafísica de Mário Ferreira dos Santos,

um autodidata brasileiro
*Sidney Silveira

Pelo dedo se conhece o gigante, e pelas premissas se reconhece um filósofo. Mas, para revelar
as premissas às vezes é necessário percorrer o caminho inverso: partir das conclusões para chegar à
fonte do pensamento ou de um sistema, pelos efeitos remontar às causas, como fez Tomás de
Aquino quando, a partir do movimento, demonstrou, nas famosas cinco vias, a impossibilidade da
inexistência da Causa Primeira: Deus.

O horizonte de uma filosofia é prefigurado pelas idéias básicas do filósofo, e os escolásticos


sabiam disso. Infelizmente, a sua lição credo ut intelligam ("creio para saber") foi desprezada pelos
modernos, cujas suposições céticas só poderiam culminar na visão esquizóide de Wittgenstein, que
nos garante: o homem não pode ter certeza objetiva, nem mesmo de que tem duas mãos; neste
caso, haveria uma "certeza subjetiva", mas esta, incrivelmente, não lhe facultaria "conhecer" o fato
de ter duas mãos. Em palavras simples: estraga o fubá, mas poupa o farelo.

Para além desse ceticismo hoje imperante, há o silêncio em torno de pensadores como Mário
Ferreira dos Santos, tão desconhecido quanto fulgurante. A trajetória deste autodidata brasileiro nos
remete, por analogia, à tradição judaica do "santo oculto" (nistar), que vem dos tempos talmúdicos
e segundo a qual existem, em cada geração, 36 homens justos que são os fundamentos do mundo;
se o seu anonimato fosse rompido, eles não seriam nada. Nas palavras de Gershom Scholem,
estudioso da mística hebraica, um deles pode até ser o Messias, mantido em segredo porque a época
não está à sua altura. Mal comparando, o tempo de Mário Ferreira não esteve à altura dele. Esse
homem cumpriu a sua vocação à sombra do período em que viveu.

É verdade que na "História da Filosofia no Brasil", da Vozes, Jorge Jaime, da Academia


Brasileira de Filosofia, dedicara 20 páginas ao "portentoso criador da filosofia concreta". Mas, se
avaliarmos a dimensão do trabalho a que se refere Jorge Jaime, o reconhecimento soa tímido. Em
sua "Filosofia concreta" (1957), Mário Ferreira parte de um "ponto arquimédico" para demonstrar
cerca de 260 teses, num trabalho de gigante. Esse ponto seria a verdade auto-evidente "alguma coisa
há", e não o nada absoluto. Demonstrado o postulado inicial, ele nos leva a concluir, na segunda
tese, que "o nada absoluto nada pode", pois se pudesse não seria o nada e sim alguma coisa. O
filósofo então envereda pelas mais diferentes vias demonstrativas, até chegar a uma excelsa verdade:
a existência do Ser Supremo em ato. Nada menos que isso.

Agora, com o lançamento de "A sabedoria das leis eternas", um texto inédito (com introdução
e notas de Olavo de Carvalho), Mário Ferreira dos Santos reaparece em trabalho cuja leitura será
difícil para quem não tenha familiaridade com o filósofo. No livro, imprimindo o habitual sentido
matematizante à filosofia (Mário era pitagórico), ele estuda as dez leis ontológicas que, "descendo
do plano dos princípios ao da manifestação, imperam efetivamente em todas as ordens de
realidade". A essas leis chega-se por vias especulativas, e Mário - precavido contra os dogmas do
ceticismo e do agnosticismo - expusera e refutara teses contrárias em trabalhos anteriores, por
diferentes sistemas lógicos e uma dialética inventada por ele: a "decadialética".

A filosofia de Mário Ferreira se parece com a Escolástica, mas em questões escolásticas ante as
quais filósofos modernos tomaram atalhos de conseqüências esterilizantes, que acabaram por
resultar na negação do estatuto da verdade. Algumas teses da "Filosofia concreta" são idênticas às
do "Tractatus de primo principio", de Duns Scot, como nesta questão: "O que não é causado por
causas extrínsecas não é causado por causas intrínsecas". Há tanto demérito nesta igualdade de
enunciados quanto haveria em constatar que, nos triângulos retângulos, o quadrado da hipotenusa é
igual à soma dos quadrados dos catetos. Ora, a verdade desse teorema não é verdadeira porque
Pitágoras a descobriu, mas Pitágoras a descobriu porque ela é verdadeira. Ademais, ninguém pode
ser "dono" de nenhuma verdade; ao contrário, por seu poder transformador, a verdade é a dona de
quem a consegue contemplar.

O amor de Mário Ferreira à sabedoria deixa-nos uma lição. Ou o homem procura enxergar,
com humildade, os dados da realidade que a ele se apresentam, cotidianamente, ou os transtornos
da personalidade decorrentes desse erro o transformam num caso psiquiátrico, cujo diagnóstico
pode estar na raiz do seu ceticismo: a crença na inexistência de Deus, primeiro motor da negação da
verdade como baliza dos conceitos humanos e, também, da violência de um sujeito contra si e
contra o seu próximo.

Pergunte-se a um filósofo se Deus existe, para que se conheça, de antemão, o horizonte de


suas especulações. Em 99% dos casos, o ateu e o agnóstico viram céticos em filosofia, materialistas
em política e amoralistas em estética. Mas, neste último caso, quando a beleza não mais se identifica
com o bem e a verdade, uma civilização começa a se autodestruir.

* Sidney Silveira é jornalista no Rio de Janeiro. Colaborador da "Sociedade Amigos do Professor


Mário Ferreira dos Santos". Artigo publicado no jornal "O Globo", em 13/07/2002.

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