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Rev. Pe. Fr. Thomas Pègues, O.P.

Mestre em Teologia
Professor do Angelicum

SOBRE O PERNICIOSÍSSIMO
ERRO DO LAICISMO
(Discurso pronunciado na Academia Romana de Santo Tomás
de Aquino, Revue thomiste, 1925)

Tradução ao espanhol por Pe. Shaw


Tradução ao português por Gabriel Mota

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PRÍNCIPES EMINENTÍSSIMOS,

ILUSTRES ACADÊMICOS,

OUVINTES SELETÍSSIMOS,

Devemos tratar hoje de um tema que a princípio poderia parecer estranho


aos temas que costumamos ouvir nesta ilustre assembleia. Com efeito, as
eruditas e notáveis dissertações que já nos foram expostas, se referiam a
matérias de filosofia ou até mais especialmente da metafísica, e apontavam
muito precisamente a expor ou defender nestas matérias o pensamento genuíno
de Santo Tomás de Aquino. Hoje a minha intenção é tratar de examinar de
perto e resolver, segundo seja possível, uma questão relativa a ordem moral e
que até pareceria referir-se a um certo estado de ânimo no qual devia-se pouca
atenção do pensamento filosófico tomista. No entanto - será fácil convencer-se
disso - se trata de uma questão importantíssima e de suprema atualidade, cuja
solução depende em sua totalidade dos princípios do doutor Angélico.

Tão logo como alguém qualifica algo de pernicioso, em seguida se


elucida que se trata de algo nocivo. E se alguém diz de uma coisa que é
perniciosíssima, obviamente entende significar que esta coisa é extremamente
nociva. E o será em grau sumo se o mal que causa é o máximo mal que se
possa causar. Agora vejamos, quando se trata do homem seu mal consiste em
ser privado de seu bem ou do que é a sua perfeição. Este mal será supremo
para ele se o bem de que se vê privado não é um bem qualquer, mas seu bem
supremo e último, cuja privação constitui para ele a suprema miséria. Por outra
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parte, aos olhos da fé o bem supremo do homem é sua felicidade eterna
constituída pela visão mesma de Deus no céu. Logo, se há algo que priva ao
homem desta felicidade ou compromete sua aquisição, aquele algo será para o
homem sumamente nocivo ou pernicioso. E o será em proporciones sem
medida se quando sua ação tem por efeito comprometer ou arruinar esse bem
não somente em relação a um só indivíduo, mas a vários e, de certo modo, a
todos.

Isto é exatamente o que afirmamos sobre o erro do laicismo.

Nossa afirmação se baseia na razão de que o erro do laicismo priva o


homem do bem de sua inteligência, que é a verdade, no aspecto de que esta
verdade, de ordem eminentemente prática ao mesmo tempo em que é
especulativa, dirige o homem em sua vida inteira com vistas a seu fim último
por alcançar. E isto não somente como indivíduo, mas ainda mais em sua
comunidade familiar, nacional e inclusive mundial.

O que é importante observar em relação ao laicismo é que ele não é


simplesmente uma falta ou deficiência da vontade, mas é essencialmente um
erro, uma doutrina que pretende sobretudo tomar posse da inteligência e ali
mandar como soberana, ao ponto que seus partidários declaram que por ela as
coisas humanas não somente se ordenariam de forma mais razoável, mas que
não podem ordenar-se razoavelmente senão por ela.

Qual é, pois, esta doutrina e em que consiste exatamente? É o que


devemos verificar com o maior cuidado.

Considerado o nome laicismo, ainda que esta forma seja algo novo e que
constitua um verdadeiro barbarismo, não deixa, no entanto, de apresentar por
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si mesmo um significado bastante claro. Designará, com efeito, algo referente
aos leigos, enquanto leigos se distinguem propriamente dos clérigos. Daqui se
segue que no termo se evoca de imediato certa oposição às coisas que são
próprio da Igreja: e precisamente, segundo esta oposição vai aumentando e
manifestando-se cada vez mais, teremos no sentido mais formal, como
veremos, o laicismo em sua acepção última e perfeita.

Os graus desta oposição dos homens que não fazem parte do clero da
Igreja às coisas da Igreja se distinguem bastante claramente na continuação
desta narrativa.

Os primeiros que se reivindicaram certa independência tinham em vista


mais precisamente o governo da Igreja e contra ele lutavam principalmente.
Eles não queriam, ao menos pelo que diziam, separar-se da Igreja formal e
totalmente, sequer mesmo quanto a seu governo e, com efeito, se diziam
católicos e filhos da Igreja. Mas para tudo no tocante ao governo civil ou
secular reivindicavam uma plena independência e, mais ainda, sendo simples
leigos, tinham a audácia de exigir para si alguma parte, e uma parte cada dia
maior, ainda no governo da Igreja mesmo nas coisas que eram de seu âmbito
próprio. Este vício e erro, sob nomes diversos e nas múltiplas formas de
cesarismo na idade média e do legalismo e regalismo dos tempos modernos,
suscitou na Igreja contínuas e inextricáveis dificuldades.

Esta desafortunada e má disposição do governo secular ou leigo para com


o governo da Igreja devia favorecer ao mais alto ponto a revolta dos
pseudo-reformadores ou protestantes ainda contra o magistério da Igreja. Estes,
com efeito, nunca puderam difundir como fizeram seus erros entre os cristãos
e separar da Igreja quase um terço de seus filhos, se os príncipes seculares não
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tivessem desejado aproveitar a oportunidade que lhes havia oferecido para
arrogar-se uma nova e maior independência e usurpar também em benefício
próprio os bens da Igreja.

A partir desse momento, estas duas causas, a rebelião dos príncipes contra
o governo da Igreja e a rebelião dos pseudo-reformadores contra seu
magistério, atuando simultaneamente, ainda que nem sempre juntas,
prepararam as vias a um certo novo magistério - puramente civil ou leigo,
aquele - no qual, em sentido próprio e, como em sua parte principal e formal,
devia constituir o laicismo.

Este novo magistério, propriamente leigo ou distinto do magistério da


Igreja e, ainda pior, oposto desde o começo de maneira expressa e acérrima ao
magistério da Igreja, teve sua origem ou fonte neste movimento de
Renascimento do paganismo antigo que não foi somente um movimento de
restauração literária, mas que quis reviver também sem distinção alguma todas
as opiniões dos antigos, por errôneas que pudesse ser do ponto de vista
filosófico ou religioso. Logo os progressos inauditos das ciências naturais,
sobretudo nas questões de aplicação prática de todos os âmbitos da atividade
humana, trouxeram à vida pública condições novas que colocavam cada vez
mais os povos e nações fora da influência da Igreja Católica, que o espírito
público já não era atraído senão pelas doutrinas que se mostravam abertamente
favoráveis ao desejo insaciável de gozar dos bens desta terra.

No entanto, estando vigente em sua forma essencial entre as nações ainda


católicas aquela antiga ordem política que havia florescido nos tempos da
perfeita cristandade, as causas que acabamos de falar não obtiveram seu pleno
efeito. Não puderam fundar e consolidar esta sociedade civil ou leiga que em
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forma de laicismo devia constituir-se, seja em toda sua vida pública ou em seu
magistério doutrinal, como externa e, pior, oposta à Igreja Católica. Mas com a
transformação política e social que a que se chama Revolução Francesa, algo
como uma nova ordem de coisas começou em todo o universo. Devia dar em
nossos dias seu fruto último e supremamente nefasto.

Existe, com efeito, hoje entre as nações e os povos um certo modo de


atuar, sancionado inclusive aqui ou acolá pela autoridade da lei, que consiste
em deixar completamente de lado a Igreja Católica na própria vida e doutrina.
A esta vida e doutrina da Igreja Católica o Estado as ignora absolutamente.
Estabelece o princípio de não se ocupar delas para nada. E, no entanto, afirma
a pretensão aberta de prover por si mesmo a seus cidadãos todo o necessário
para levar uma vida completa e perfeita, não somente como cidadãos, mas
também como homens. Daqui se segue que não duvidado em criar escolas que
são as suas e nelas não está permitido a quem quer que seja dar outro
ensinamento que o seu. É verdade que, todavia, não ousou declarar obrigatório
que todos devam frequentar estas escolas [nt. hoje em dia já ousou!]. Contudo,
ordena as coisas de tal maneira que somente os abertamente favoráveis a estas
escolas gozem de seu favor e, de fato, toda a vida pública e social, enquanto
dependente do Estado, se regula e ordena segundo o espírito que preside estas
escolas.

Notemos que este espírito é o do mais puro laicismo: o homem se basta a


si mesmo, somente deve ter a si mesmo a regra de sua vida. Como
consequência, ali não se recebe nenhuma autoridade além da razão e, além
disso, deve-se entendê-la como razão individual ou melhor como razão leiga,
que está absolutamente independente de qualquer tipo de ensinamento
sobrenatural ou dada em nome de qualquer autoridade externa ou acima do
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homem. Rechaça-se, pois, nessas escolas de maneira mais absoluta a
autoridade da Igreja Católica que propõe e até impõe, em nome de Deus
mesmo e por sua autoridade, uma doutrina especulativa e prática que não deve
julgar-se pela razão, mas aceitá-la somente pela fé. Recusa-se ali também,
como consequência necessária, qualquer doutrina que se apresenta como
ditada por Deus sobrenaturalmente e imposta somente por sua autoridade:
tanto que destas escolas se rechaça não somente a doutrina católica
formalmente, mas também aquela doutrina que os primeiros protestantes
haviam preservado outrora como doutrina de Jesus Cristo.

Se por vezes se encontra entre os doutores do laicismo a distinção entre o


que eles chamam de "o cristianismo tradicional e eclesiástico" e "o
cristianismo eterno", eles entendem por estas últimas palavras "uma espécie de
Evangelho criado da medula do velho Evangelho, a religião laica do ideal
moral sem dogmas, sem milagres, sem sacerdotes"[1]. E mais, fingem as vezes
querer ter "esse nome tão humano de Igreja Católica", mas com esta condição
de que a Igreja aceite "não ser mais que um espírito que sopra livremente na
humanidade livre". Mas porque quis ser "uma autoridade superior a da
consciência e da própria razão", porque quis obter "este ato de submissão que
chamo ato de fé e sobre o qual fundou tudo: doutrina, disciplina, culto,
hierarquia, moral, educação", por isso "é necessário que o catolicismo seja e
permaneça uma teocracia sacerdotal, que guarde, sob pena de renunciar a si
mesmo, sua pretensão de supremacia e que lhe a oponha a pretensão
exatamente contrária de uma sociedade laica. Ao não se compartilhar a
supremacia, é necessário que uma das duas sociedades rompa com a outra"[2].

Assim, a fé católica se opõe formalissimamente ao que os doutores do


laicismo chamaram de "fé laica". Com isso entendem uma doutrina com razão
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de dogma, que afirma a supremacia inalienável da sociedade laica, a
independência absoluta e intangível da consciência individual e da própria
razão ou, em uma palavra, a negação da submissão da inteligência humana a
qualquer autoridade superior à razão. Acabamos de ouvir um dos principais
doutores e defensores do laicismo proclamar a guerra mais irredutível e sem
possibilidade de trégua alguma entre a sociedade laica e a Igreja Católica, por
esta única razão de que a Igreja Católica pede ao homem "este ato de
submissão que ela chamou ato de fé". A este fundamento, sobre o qual - como
dizem eles mesmos, justissimamente - a Igreja fundou tudo, querem arrancar e
destruí-lo. O primeiro artigo de sua fé, que eles mesmo chamam laica, consiste
em que o homem laico, sob pena de negar-se, não deve nem pode nunca emitir
este ato de submissão até o ponto que quem emite este ato não pode pertencer
a esta sociedade laica. A sociedade laica, com efeito, segundo eles mesmos,
não é, como alguns poderiam crer, a que provê o bem humano e temporal dos
cidadãos, mas sem excluir-lhes a possibilidade ou faculdade de perseguir por
outra parte o bem divino. Não, por certo, de nenhuma maneira. A sociedade
laica, que é a deles, nega e rechaça de maneira mais formal e expressa de si
mesma e de quem a compõe, todo bem, qualquer que seja, fora do único bem
humano. E entendem por bem humano o bem físico do homem e também seu
bem moral, segundo se obtêm e se funda fora de qualquer relação com fé
sobrenatural. E mais - porque até isso afirmam expressamente -, fora de
qualquer relação com qualquer doutrina especulativa ou, para preservar suas
próprias palavras, fora de toda "fórmula metafísica"[3].

Se segue disto que quem submeta sua inteligência à regra da fé, ou seja,
quem se diga e confesse ser católica, inclusive quem ponha como fundamento
de sua vida moral e humana uma verdade qualquer de ordem metafísica,

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sobretudo com respeito do ser soberano e subsistente que todos os homens
chamam Deus, este, qualquer que seja, deve ser necessariamente rechaçado do
seio da sociedade laica. E se é assim de fato, temos a prova manifesta de que
esta sociedade, que existe em forma de instituição política que rege e
administra as coisas da nação, exclui de suas escolas e de sua vida de maneira
mais absoluta e com uma aspereza e tenacidade incansável, não somente o que
é de fé católica ou cristã, mas também tudo relacionado com o Deus
verdadeiro e pessoal. Tanto é assim que entre os membros desta sociedade não
se permite a ninguém, nem sob nenhum pretexto, pronunciar jamais o nome de
Deus quando fazem atos como membros da sociedade laica.

II

Tal doutrina é errônea: não há católico que não deva convencer-se disso
por somente sua exposição que acabamos de fazer. É que, com efeito, todas as
mesmas razões que para um católico provam a verdade da Igreja, demonstram
necessariamente por oposição a falsidade do laicismo. Por isso mesmo, temos
ouvido os partidários do laicismo se opor à Igreja não com relação a algumas
verdades particulares que negaria conservando as demais, mas porque destrói
até o primeiro fundamento de toda a Igreja, a saber: a possibilidade mesma do
ato de fé, segundo implica a submissão da inteligência a uma autoridade
existente por fora e acima da razão laica. Urgirá refutar, mas deveria bastar o
afastamento, de maneiro mais absoluta, através de proibições tão severas como
justas, os fiéis católicos de toda participação ao menos doutrinal com os
promotores ou partidários deste erro tão pernicioso. Assim, porque este erro
tende hoje a penetrar em todas as partes e se aplica a difundir de uma
infinidade de maneiras as falsas razões que apresenta para enganar os espíritos,

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talvez não careça de utilidade examinar de forma direta e distinta dois ou três
de seus axiomas fundamentais e mostrar a sua falsidade radical.

***

O primeiro destes axiomas, ou melhor o último, e se é possível dizer, o


mais radical, é que o homem pode e deve, se quer ser um homem
verdadeiramente laico, ordenar sua vida inteira, pública ou privada,
independente de qualquer fórmula metafísica, de onde se segue que no Estado
laico deve ser totalmente banido das escolas públicas todo ensinamento de
ordem metafísico, entendido isto sobretudo do ensinamento metafísico
tradicional segundo a Igreja Católica, utilizando Aristóteles.

Neste ponto o laicismo parece convergir com o positivismo e o kantismo.


Todos os positivistas, com efeito, e mais ainda os discípulos de Kant, depois
de Kant mesmo, se negam a reconhecer qualquer valor, ao menos prático, na
razão especulativa metafísica. Querem eles também fundar a vida moral do
homem sobre somente a razão prática, mas com a diferença de que os
positivistas se preocupam menos com princípios especulativos ainda na ordem
de razão prática e consideram mais exclusivamente as exigências da vida
material ou corporal, segundo se desenvolve entre os homens em forma de
vida econômica ou social e sobretudo política. Mas nem os positivistas nem os
discípulos de Kant constituem mais que escolas, enquanto o laicismo implica
em uma Instituição política que ordena tudo na sociedade com a atenção mais
vigilante, segundo o princípio que nos ocupa e excluindo desta sociedade, da
maneira mais absoluta e por uma luta sem trégua nem piedade, qualquer outra
Instituição, mas sobretudo a Igreja Católica, que julgaria que dito princípio
deve rechaçar-se como supremamente falso.
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Não é tanto como princípio de uma escola, senão como um princípio de
uma Instituição política, que existe de fato e dispõe todas as coisas no seio da
sociedade, que se deve considerar o princípio ou axioma que nos ocupa
quando se trata do laicismo.

No entanto, assim considerado este princípio ou axioma, é forçoso que


em seguida apareça como um erro perniciosíssimo a quem julgue segundo os
princípios mais indefectíveis da razão humana. Ninguém pode negar-se a
admitir, com efeito, que a Igreja Católica, por todo o seu modo de atuar e
ensinar em meio aos homens, exerce a mais salutável influência a efeito de
pacificar os ânimos e promover as virtudes mais úteis para o bem do homem,
seja considerado como pessoa ou como membro da família e da cidade. Se
segue disto que o simples fato de excluir, em virtude do princípio em questão,
a Igreja Católica das escolas e de toda a vida pública de um Estado, constitui
um atentado extremamente grava contra o bem desse mesmo Estado. Do
mesmo modo, redundará também em grandíssimo dano do bem desse Estado a
exclusão absoluta de suas escolas desta doutrina filosófica recebida e
propagada com tanto fruto e brilho no transcurso dos séculos, e que sempre se
gloriou de dar à metafísica, como convém, o primeiro lugar na ordem do
pensamento, filosofia que leva o nome de seu fundador ou organizador por
excelência: o aristotelismo.

Mas não é somente por causa destas exclusões injustificadas e nefastas,


mas também em razão de si mesmo e pelo que é intrinsecamente que o
princípio de que falamos deve declarar-se um erro supremamente pernicioso.
Quer, com efeito, como dissemos, que o homem organize toda a sua vida, seja
na ordem pública ou privada, independentemente de qualquer fórmula ou de
qualquer ensinamento e de qualquer noção metafísica.
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Agora vejamos, isto não é outra coisa que querer que o homem seja
homem ou que atue e viva como homem, recusando o princípio mesmo da
ação que em sentido mais formal da ao homem ser, ou atuar ou viver como
homem. Em razão disso se emite uma verdadeira contradição.

O homem, como efeito, não é propriamente homem senão pela razão. Por
outro lado, a razão, segundo é no homem um princípio de conhecimento
distinto do sentido, é algo de ordem estritamente metafísica, porque seu objeto
próprio não é o ser sensível como tal, senão o ser percebido nas coisas
sensíveis, no qual e segundo o qual é necessário que ela julgue e ordene todas
as coisas quando se trata da ação propriamente humana: e isto mesmo, que é
senão a ordem metafísica? Querer excluir, pois, a metafísica da organização da
vida humana é querer organizar a vida sem este mesmo que é seu princípio
próprio.

E que não se diga que a vida humana pode se organizar somente com a
ajuda do conhecimento experimental, tal como proporciona a experiência
cotidiana ou a experiência alheia conservada e transmitida pelo testemunho da
história, ou, se ainda faz falta algum princípio da razão, somente pelo princípio
da razão prática formulado por Kant, sob o nome de imperativo categórico, e
hoje chamado voz da consciência ou do dever.

É que, com efeito, o conhecimento experimental, seja próprio e pessoal


ou tomado dos testemunhos da história, comunica ao homem tal como é na
realidade. Mas o homem, tal como é de fato, apresenta modos muito
numerosos e diversos, as vezes inclusive opostos, seja em um só indivíduo
segundo a diversidade dos tempos ou das condições em que vive, ou ainda
com maior razão, seja considerando o homem em qualquer de suas
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comunidades existentes ao mesmo tempo e em diferentes lugares ou em
distintos tempos que compõem a história. Em meio a esta diversidade e
contrariedade, onde, pois, tomar a regra que permitirá organizar a própria vida,
privada ou coletiva, se não intervêm a razão propriamente especulativa e
metafísica para investigar e determinar a natureza do homem, o que é ele em si
mesmo, o que são os outros seres que se encontram em torno dele? Não é
evidente que a vida de um indivíduo, segundo seja em si mesmo ou segundo se
trate com os demais, deverá diferir muito se o homem é considerado um
simples animal que somente difere dos demais animais pelo maior grau de
perfeição, ou se leva-se em consideração como ser superior, dotado de uma
alma espiritual e imortal; se sua natureza exige a educação de uma família que
se conserva e do socorro da sociedade na cidade ou nação ou se, pelo contrário,
é melhor para ele viver uma vida errante e vagabunda? Todas estas coisas
requerem de maneira mais imperiosa o ato próprio da razão especulativa e o
uso constante da mais alta das noções metafísicas.

Igualmente também parece totalmente inútil o subterfúgio kantiano que


queria fazer crer na organização possível de uma vida humana perfeita
somente sobre a base do princípio da razão prática, chamado os nomes de
imperativo categórico ou de voz da consciência ou dever. Tudo isto se reduz a
uma só fórmula: "faz isto". Mas esta fórmula imperativa somente será uma
quimera se não se baseia também em alguma razão ou melhor em um princípio
da razão totalmente evidente de onde se deduzirá, em seguida e com plena
claridade, que "isto deve-se fazer". Este princípio não é outro que o primeiro
princípio da razão prática, formulado como se segue: "há que se ir ao bem e
fugir do mal". Mas, uma vez mais, toda a questão da razão especulativa e
prática, levanta uma nova necessidade, a efeitos de determinar para cada

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sujeito que atua o que é seu bem e o que é seu mal. Em tal forma que a voz da
consciência e do dever, o imperativo "faz isto", pressuponha necessariamente
duas coisas: o primeiro princípio da razão prática que declara que há que se ir
ao bem e fugir do mal, e uma determinação da razão que mostre que isto é, na
verdade, o bem para um indivíduo. Mas vejamos, esta determinação da razão,
ainda que seja imediata e natural para as coisas a que a natureza se inclina e
que neste caso parecem imediatamente como coisas boas[4], no entanto, já que
existe no homem diversas inclinações naturais, sobretudo considerando
enquanto animal e enquanto homem, se deduz que não pode haver nele [esta
claridade no agir] e que há de fato contrariedade de inclinação, mesmo na
ordem mais imediata e mais natural. Enquanto o instinto animal diz "faça isto"
através da voz da inclinação natural sensível, a razão por sua vez, através de
sua inclinação natural, diz "faz aquilo", e muito frequentemente estas duas
coisas são totalmente contrárias. Será preciso, pois, para acabar com este
conflito, com o auxílio da razão especulativa e metafísica, determinar qual é
destas duas partes a parte superior no homem e qual é a parte inferior, obrigada
consequentemente a submeter-se a outra. E tudo isto nos demonstra uma vez
mais a necessidade absoluta dos conceitos metafísicos na organização de uma
vida humana.

Portanto, querer organizar a vida humana, privada ou coletiva,


independentemente de qualquer noção e de qualquer fórmula metafísica, como
dizem os promotores do laicismo, é propor simultaneamente duas coisas
incompatíveis e contraditórias.

***

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Mas ainda quando eles consideram este primeiro ponto, a saber: que para
organizar a vida humana são indispensáveis certas noções de ordem metafísica,
que por exemplo há que se saber o que é o homem, quais são as partes que lhe
integram, e o que é requerido por sua natureza ou pela natureza dos seres que
estão em torno dele, e mais ainda, concedem que a doutrina metafísica deve
ser a doutrina tradicional, a que devemos a Aristóteles. No entanto, o laicismo
seguirá sendo um erro e um erro supremamente pernicioso, devido a esse
segundo princípio ou axioma em que se afirma que a vida humana, seja
privada ou pública, pode e até deve organizar-se independentemente de
qualquer doutrina ou de qualquer consideração referente a Deus, de tal modo
que deva ser banido das escolas e da vida pública do Estado até mesmo o
nome de um Deus pessoal.

E aqui se impõe uma observação de grande importância. Devemos notar


cuidadosamente a diferença, demasiado às vezes esquecida, que existe entre o
laicismo e algumas outras escolas onde se ensina também uma doutrina
filosófica-política que mantém sobre Deus um silêncio completo. Estas,
porque na verdade não puderam chegar à verdade sobre Deus, se esforçam,
recorrendo aos princípios imediatos de ordem experimental e positivo sobre a
natureza do homem e da sociedade humana que lhes parecem mais adequados,
por estabelecer, segundo suas possibilidades, uma certa ordem de atuar mais
conforme possível com a verdadeira lei natural para o que é do homem em si
mesmo ou de suas relações com os demais, sem recorrer a Deus como
fundamento desta ordem. Diremos logo a insuficiência desta posição. Mas
devemos notar aqui que estes homens, ainda que não ponham por si mesmos o
fundamento da religião, nem sequer a religião natural, no entanto não excluem
em seu sistema filosófico-político a Deus mesmo da sociedade cujo bem

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querem garantir. Inclusive há entre eles quem professam o maior respeito pela
Igreja Católica e seu ensinamento mais integral ao ponto de que não cessam de
demonstrar sua admiração pelo Syllabus de erros modernos condenados pela
Igreja, e muito longe de apartar a Igreja e sua influência da sociedade cujo bem
de ordem político querem garantir, lhe indica o primeiro lugar na ordem desta
sociedade. Assim, pois, se esses homens falham como doutores, estão muito
longes de estar em falta como estão os demais, do ponto de vista da instituição
política que querem organizar para o bem da sociedade, porque o que não
podem fazer eles mesmos, dão à Igreja Católica, mestra da verdade perfeita,
pleno poder e inteira liberdade para fazê-lo. Os promotores do laicismo, ao
contrário, se esforçam por todos os meios, inclusive os mais iníquos, por
apartar de sua instituição político-social, seja das escolas onde se forma a
juventude ou de toda a vida dos cidadãos, qualquer outra instituição, mas
sobretudo a Igreja Católica, que falará de Deus de qualquer maneira possível.

Destes últimos dizemos que sustentam um erro e um erro supremamente


pernicioso. É que na verdade a vida do homem, seja referindo-se a sua vida
individual ou a sua vida em família, na cidade ou na nação, se se exclui de
maneira positiva e absoluta qualquer relação com Deus, fica-se sem o único
fundamento último que a apoia ou sem a única razão última que a explica e
justifica: e não é possível que agindo deste modo ninguém funde uma ordem
qualquer de moralidade humana que seja firme e eficaz entre os homens,
individualmente ou nas relações dos homens entre si.

Esta segunda parte de nossa afirmação pode provar-se sem demora. A


experiência mesma, diária ou a que a história nos revela, nos ensina quão
difícil é para o homem, em si mesmo ou na relação com os demais, observar as
leis da sã moral ainda recorrendo ao freio omnipotente da autoridade e do
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temor de Deus, sumo Legislador e sumo Juiz. Desta forma, se se remove
também esta espécie de freio e o aparta completamente da organização da vida
humana, o que poderá restar no homem e entre os homens, senão a mais
terrível força que arrasta para o abismo de todos os vícios e crimes? - Mas
supondo por impossível que seja que o homem chegue a praticar todas as
virtudes, não ficaria nele esta abstenção, que não há nome para descrever, que
o impediria de render qualquer dever a seu Bem supremo, Deus, de quem deve
todo o bem que possui, e cujo louvor deve ser o fim principal de todas as suas
ações? Uma tal abstenção deve ser considerada culpável, não somente quando
se trata da pessoa mesma, mas também, e em certo sentido de maneira mais
grave ainda, quando se trata de uma sociedade humana qualquer, e mais
concretamente da sociedade natural que a família e a pátria constitui.

Contudo, além destas razões que dizem respeito mais à questão de fato - a
saber, que não se estabelecerá nunca entre os homens, tais quais a experiência
nos revela, uma moral verdadeira e completa, excluindo de maneira positiva da
organização de um Estado ou de uma sociedade, tudo que se refere a Deus -,
devemos apontar outra razão que chega até as últimas raízes do erro tão
pernicioso que descrevemos.

Diremos, pois, que se havendo descartado tudo o que diz respeito a Deus,
é necessário que a vida moral do homem, individualmente ou em sociedade,
fique sem o único fundamento último que a apoia ou sem a única razão última
que a justifica e explica.

E, sem dúvida, se se trata da pessoa, será possível, absolutamente falando,


com a ajuda da razão especulativa e metafísica de que falamos, estabelecer
uma certa ordem de vida moral, no sentido de que, considerando a natureza
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mesma do homem e suas diversas partes - uma das quais, a saber a razão,
parece superior e a outra, a saber a sensível, é inferior -, se declarará que esta
deve obedecer àquela. Do mesmo modo, tal indivíduo, considerado como uma
parte de tal todo determinado, a família, por exemplo, ou a cidade e a pátria,
poderá ser obrigado pela razão a comportar-se segundo convém à parte desse
todo. E, portanto, como a luz da razão prevalecerá em tal homem ou entre os
homens, será possível, falando de uma maneira absoluta, que uma certa ordem
de moralidade se estabeleça no homem mesmo ou ainda nas relações dos
diversos homens entre si.

Mas porque na hipótese mesma de que estamos supondo esta ordem se


baseia na luz da razão, será forçoso que se estabeleçam as condições da razão
em toda sua amplitude e rigor. E precisamente esta luz da razão é uma
condição tal e de tal natureza, que não tende somente a penetrar umas ou
outras razões do que é, mas que não tem descanso senão quando tiver captado
todas e na ordem ou subordinação que as constitui, de tal maneira que lhe
corresponde ver desde a base até o come o infalível vínculo que as une e
encadeia, seja na ordem especulativa ou na ordem prática. É nisto que consiste
propriamente a função e ofício da razão. Porque o próprio da razão é ordenar.

Por outro lado, se supomos que se estabeleça em um Estado esta razão de


atuar que fará que se ensine aos homens que devem regular a sua vida moral
de tal maneira que neles mesmos a parte sensível esteja sujeita à razão, e que
eles mesmos guardem sempre seu devido lugar, na família ou na pátria, por
esta razão - de outra parte justíssima e realíssima - de que a parte deve
portar-se como parte e se são desiguais a parte inferior deve submeter-se à
parte superior, - o que responderão os doutores e mestres deste ensinamento
estatal quando a razão a que apelavam novamente levantar a pergunta se há
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alguma outra coisa que esteja acima da razão do homem? Há alguma outra
coisa que esteja acima do Estado? Não responder seria abdicar da razão.
Responder que não existe nada ou que se existe algo, não importa e não há que
se ocupar deste algo, certamente não será silenciar a questão e apaziguar a
legítima curiosidade da inteligência e da razão: porque dizer que não existe
nada acima da razão do homem e acima do Estado é um erro certíssimo ou
uma mentira manifesta, e dizer que se há algo acima não se deve ocupar deste
algo, é o máximo da iniquidade e perversidade.

E, portanto, ou os mestres e doutores confessariam a Deus - o que é a


negação de seu princípio - ou se obstinariam em sua abstenção ou negação - e
neste caso deverá necessariamente desmoronar-se tudo o que havia de razão
em sua instituição de vida moral. Como poderiam, desde o ponto de vista da
razão, pedir a submissão de uma parte a outra parte ou da parte ao todo no
homem mesmo ou em uma sociedade qualquer, enquanto eles mesmos
recusam com pertinácia a submissão da razão ou da família e da pátria à Deus,
que no entanto está acima da razão, da família e da pátria? E mais, quando se
trata da razão de obediência em sentido estrito, segundo a qual a vontade de
um homem deve submeter-se à vontade de outro ou outros, toda a razão desta
submissão é que a vontade que manda é uma participação da vontade divina[5],
até tal ponto que não se lhe deve obediência, desde o ponto de vista da
consciência, senão porque ela mesma permanece submetida a Deus.

E que não se diga que é em nome de todo o povo que se faz o mandato,
de tal forma que se deva obedecer em consciência ou por necessidade de razão
a quem manda em nome de todo o povo. Isto é não dizer nada em absoluto,
seja porque o povo como povo é somente um agregado de vontades humanas,
porque a vontade humana como tal não tem direito de mandar em outra
19
vontade humana, senão somente se tem o lugar da vontade divina e manda em
seu nome, ou pelo menos participa em sua autoridade. Seja também porque o
povo, ainda sob sua razão de povo, ou enquanto constitui um certo todo, o que
lhe dá a razão de superior em comparação com as vontades dispersas dos
indivíduos e particulares, não é, no entanto, a razão suprema de todo no mundo,
senão que ele mesmo tem algo por cima de si. Assim, pois, se ele não obedece
a seu superior, que é Deus, reconhecendo formalmente seus direitos e
submetendo-se a Ele, nenhuma vontade individual tomada em particular estará
obrigada a obedecer-lhe desde o ponto de vista da razão, de tal maneira que o
povo tenha o direito de exigir esta obediência, se se a negam, porque ele
mesmo a nega àquele a que se lhe deve.

Esta forma de laicismo, baseada no princípio ou axioma que acabamos de


examinar e que recusa de maneira mais formal todo o dever dos indivíduos e
da sociedade para com Deus, é tudo o que há de mais pernicioso, porque não é
somente por modo de consequência, como a primeira, mas por modo de
suprema injúria pessoal e formal que ofende a Deus da maneira mais direta. E
mais: de alguma maneira se apresenta como algo mais grave e pernicioso que
este pecado tão grave e erro tão pernicioso que é a idolatria, que supera, em
testemunho de Santo Tomás[6], todos os demais pecados e erros. Os idólatras,
com efeito, se equivocam sobre a pessoa de Deus, mas conservam ao menos
uma certa ideia e um certo culto à divindade, e reconheciam que o homem tem
deveres sagrados com ela. Estes, ao contrário, por uma cegueira ou obstinação
incríveis, não querem saber nem ouvir nada sobre Deus, ao ponto que ainda
sob o golpe da horrível guerra que chocava fundamentalmente todo o universo,
não quiseram de nenhuma maneira consentir em recorrer a Deus.

III
20
A forma de laicismo que acabamos de examinar, como foi ela mesma a
causa e o motivo da primeira forma, na qual a ordem da razão especulativa é
demolida para poder mais facilmente impedir a razão natural de ascender até
Deus, teve sua origem e sua fonte na má disposição dos homens para com a
Igreja Católica.

A Igreja Católica, com efeito, ensina sobre Deus a verdade mais inteira e
mais perfeita. Disto se seguiu e devia se seguir que subtraindo-se sua
influência, ou até a atacando abertamente e rechaçando o que lhe toca, era
necessário, por uma espécie de progressão necessária do mal, que se
rechaçasse também o que diz respeito a Deus. Por onde se vê que a
separação da Igreja Católica ou a má disposição para com ela foi o começo e o
ponto de partida destes erros tão perniciosos que atacam a Deus mesmo ou a
ordem essencial e transcendente de nossa razão.

Devemos agora considerar a terceira e final manifestação do laicismo,


cujo princípio próprio e axioma é que a Igreja Católica deve ser ou totalmente
ignorada pelo Estado ou até mesmo combatida e rechaçada por ele, porque a
vida do homem, seja privada ou em sociedade, pode e deve ser organizada sem
ter nenhuma orientação para com a Igreja Católica e até rechaçando-a
expressamente.

Se somente se trata da vida natural do homem e supondo que não tivesse


sido elevado por Deus ao estado sobrenatural, a questão da Igreja Católica não
se levantaria. E seria possível sustentar, falando de uma maneira absoluta e
teoricamente, que a vida do homem poderia ordenar-se com a ajuda da razão
tomada em si mesma e reconhecendo, como convém, os direitos de Deus.

21
Mas se levamos em consideração o homem elevado a um fim
sobrenatural por uma vontade imperativa de Deus, de tal maneira que se o
homem não chega a tal fim, ao menos quando se trata de adultos, incorrerá
necessariamente na desgraça eterna e em horríveis suplícios - porque
"horrenda coisa é, por certo, cair nas mãos do Deus vivo"[7]. Neste caso, querer
estabelecer entre os homens um modo de ser e viver onde não não tenham
nenhuma parte com a Igreja Católica, única instituída por Deus para conduzir
os homens ao seu fim sobrenatural, que coisa é senão mostrar-se inimigo mais
cruel do gênero humano? Com que termo se chamará estes homens que
aspiram administrar a coisa pública entre as nações e os povos e que não têm
senão a obsessão, da qual se gloriam ao invés de se envergonharem, de
expulsar a Igreja Católica e, se pudessem, destrui-la totalmente?

Sem ir até o limite extremo no erro e mal aonde se conduzem os


promotores do laicismo, há outros que ensinam e põem em prática este modo
de atuar do Estado em relação a Igreja que consiste em deixar a Igreja,
enquanto Igreja, em si mesma ou totalmente de lado e somente considerá-la
como uma das muitas sociedades ou associações de cidadãos a que regem as
leis comuns, ou como dizem, o direito comum.

Esta forma de laicismo hoje em dia tem a tendência de difundir-se e


fazer-se aceitar quase por todo o mundo entre as nações e povos. Esta forma de
atuar se baseia na suposta na ideia de que com este modo de atuar, seja do
Estado ou da Igreja, guardando sua plena independência, estão em uma melhor
condição para realizar o bem próprio que uma e outra visam atingir. O Estado,
com efeito - cuidam de fazer notar -, se converte na maioria das vezes em
obstáculo e impedimento para a ação da Igreja quando quer ocupar-se dela,
inclusive com disposições benévolas. E a Igreja, por outra parte, tenderia às
22
vezes a atribuir-se o papel de Estado, saindo dos limites do espiritual para
imiscuir-se nas coisas do governo temporal. Acrescenta-se também - e esta
razão parece adquirir cada dia mais força - que hoje se encontra em quase
todos os povos e nações uma mescla inextricável onde se confundem todas as
opiniões filosóficas e religiosas que com bastante frequência não têm nada a
ver com a doutrina ensinada pela Igreja Católica ou inclusive lhe são
totalmente opostas, de tal maneira que o Estado não poderia mais, sem perigo
para a paz pública, pronunciar-se sob a forma que seja a favor da Igreja
Católica. Daqui se segue que o Estado, para garantir como deve o bem dos
cidadãos, está obrigado por uma necessidade absoluta, sem dúvida ainda que
sem manter atitude hostil para com a Igreja, a permanecer totalmente
indiferente ou, como se diz também, absolutamente neutro.

Eis aqui nossa resposta a este última razão. Longes de prover o bem dos
cidadãos que deve ter como efeito objetivo, o Estado, ao contrário, através da
atitude em questão, compromete este bem de forma mais grave. É que, com
efeito, o bem dos cidadãos não somente consiste na prosperidade da terra, nem
em um certo falso repouso ou em uma tranquilidade enganosa, que será mais
ou menos favorável de acordo com os assuntos e o estabelecimento das
pessoas. Tanto deve preferir-se a esta falsa tranquilidade, para cada cidadão, o
acesso aberto e fácil a respeito da obtenção do bem espiritual e sobrenatural,
que seria muito melhor ter esse acesso aberto e fácil ao lado ou inclusive em
meio de alguns transtornos de ordem humana e terrena, a ver as coisas
humanas na mais absoluta tranquilidade e na maior prosperidade e com uma
virtual impossibilidade de viver a vida sobrenatural. Não é acaso Cristo mesmo
quem nos diz no Evangelho: "Não penseis que eu vim para trazer a paz sobre a
terra, não vim trazer a paz, mas a guerra"[8]. - Se, portanto, a indiferença ou

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neutralidade do Estado para com a Igreja Católica deve ter como consequência
- e o terá necessariamente - levar a um grande número de cidadãos e até a sua
imensa maioria a imitar esta indiferença, enquanto que, se o Estado desse o
exemplo, eles mesmos caminhariam com passo mais atento na via da
bem-aventurança, não se seguirá que somente por esse motivo o Estado haverá
atuado da maneira mais perniciosa contra o bem dos cidadãos?

Acrescenta-se a esta razão que com este modo de atuar o Estado não pode
realizar de maneira perfeita seu dever essencial. O Estado, na realidade, como
sociedade perfeita, está obrigado estritamente a render a Deus, autor da
sociedade, o culto que se lhe deve. Assim, pois, se quer ignorar a Igreja
Católica, será necessário, que se abstenha totalmente de render a Deus
qualquer culto, como pedem os instigadores do laicismo absoluto, e este é -
como dissemos - o maior dos crimes, ou ainda que ele mesmo, o Estado,
organize um culto a Deus a sua maneira, independentemente da Igreja Católica,
e neste caso renderá a Deus um culto indevido, que Deus não pode nunca
aceitar como agradável, exceto apenas o caso da boa fé e da consciência reta
embora errônea, mas este último caso não é possível se se trata de homens
católicos, e ainda se se trata dos demais, é apenas concebível, a partir do
momento em que se supõe que estes homens negam a priori e absolutamente
todo ponto de contato com a Igreja Católica.

Há outra razão de extrema importância que diz respeito sobretudo aos


povos e nações que outrora formavam, sob o belíssimo nome de "Cristandade",
a grande República cristã. Com esta ignorância querida e esta indiferença
completa do Estado para com a Igreja, ocorrerá necessariamente que a coisa
pública seja administrada sem nenhuma consideração para com as doutrinas ou
opiniões, sejam filosóficas ou religiosas, dos cidadãos até o ponto tal em que
24
no Estado regido por esses princípios uma parte do governo, sem excluir as
mais altas posições, poderá cair na sorte não só de homens cristãos e católicos,
mas também de hereges, judeus ou até homens que, imbuídos de um novo
paganismo pior que antigo, não professam nenhuma religião. Deste caso, em
que os homens não cristãos, não católicos, se encontrem colocados no governo
dos povos cristãos ou católicos, Santo Tomás, tratando da questão do
sacrilégio, fala nos termos seguintes, cuja gravidade seria difícil exagerar: "O
povo cristão é um povo santificado pela fé e pelos sacramentos de Cristo, de
acordo com aquelas palavras de 1 Cor 6,11, que diz 'Vós fostes lavados, fostes
santificados'. Pelo mesmo motivo, em 1 Pe 2,9 nos diz 'Vós sois a linhagem
elegida, sacerdócio régio, nação santa, povo resgatado'. Segundo isso, quando
se supõe uma ofensa ao povo cristão, por exemplo, quando se põe para
conduzi-los a infiéis, constitui falta de respeito para com uma coisa sagrada.
Com razão, pois, se chama sacrilégio"[9].

Além destas razões podem dar-se uma razão geral que mostrará de
maneira mais clara que esta última forma de laicismo, em qualquer grau que se
encontre e sob qualquer forma que seja posta em prática, deve ser considerada
por todos, e em si mesma, como um erro supremamente pernicioso. Esta razão
se baseia na natureza mesma do Estado e da Igreja. O Estado, com efeito, está
ordenado para o bem temporal dos cidadãos, enquanto que a Igreja está
ordenada ao bem espiritual e eterno desses mesmos cidadãos. Mas vejamos, é
manifesto que o bem temporal dos cidadãos deve ser promovido pelo Estado
de tal maneira que, longe de prejudicar seu bem espiritual, ao contrário, o
favoreça da melhor forma possível. Porque os dois fins em questão, o temporal
e o espiritual, permanecem ordenados e subordinados entre si, e ambos, ao fim
espiritual considerado como superior e ao fim temporal como inferior,

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devendo em todas as coisas influir de maneira conjunta para o bem perfeito do
homem. A esta pretensão de que todas as coisas seriam melhor se o Estado e a
Igreja se ocupem, separadamente, do que lhes é próprio, ignorando-se
mutuamente e sem ter em nada em comum, Santo Tomás responde com uma
só palavra que encerra para sempre a questão. Falando do movimento de nossa
alma a Deus com vistas a honrá-lo e render-lhe o culto que lhe devemos, o
santo Doutor diz: "pelo fato de honrar e reverenciar a Deus, nossa alma se
humilha diante d'Ele, e nisto consiste a perfeição da mesma, já que todos os
seres se aperfeiçoam ao subordinar-se a um ser superior, como o corpo ao ser
vivificado pela alma e o ar ao ser iluminado pelo sol"[10]. Notamos por estas
palavras que, longe de encontrar perfeição alguma no fato de estar separado da
Igreja, este Estado somente pode se encontrar em seu mal supremo. É, com
efeito, verdadeira a comparação do Estado em relação a Igreja, como o corpo
em relação a alma que o vivifica. Pois bem, quem poderá sustentar que a
perfeição do corpo consiste em não estar submetido à alma ou a estar separado
dela? Sabemos com que nomes se chamam esta insubordinação e finalmente
separação: deficiência, incapacidade e morte. Igualmente, também para utilizar
a outra comparação de Santo Tomás, quando o ar não está submetido à
iluminação do sol, o que pode restar nele senão as trevas e a noite? Por
consequência, quando se pretende atribuir uma razão de perfeição a qualquer
Estado possível supondo-o imperfeitamente sujeito à Igreja, ou separado dela,
esta perfeição não passa de ilusão e mentira.

***

Agora podemos captar como que de um só olhar todo este erro tão
pernicioso do laicismo. Consiste propriamente em que dá como perfeição e
bem do homem o que é seu mal supremo e sua última miséria. Persuade ao
26
homem a não submeter-se a seu superior, seja seu superior a Igreja, ou Deus,
ou os primeiros princípios mais indispensáveis e mais seguros da razão. E
porque, como ensina Santo Tomás, é necessário que "se se levanta alguém
contra uma ordem, é lógico que seja iluminado por essa ordem mesma ou pelo
que a preside"[11], se deduz que, conforme avança o laicismo, o homem que por
si se rebela contra todas as ordens e contra toda superioridade, se encontrará
deprimido por todos: depressão que se chama com o nome de pena ou castigo.
Já será uma pena muito grave para o homem encontrar-se subtraído da
influência salutável e vivificante de seus superiores, a saber: a razão, Deus e a
Igreja. Mas essa pena não pode bastar para restabelecer a ordem violada. Por
seu ato culpável de insubordinação, o homem agiu contra a ordem. É preciso,
pois, por justiça, que o princípio da ordem, o que o tem em custódia, vingue
também a ordem ultrajado. E o princípio de todas estas diversas ordens não é
outro, em última análise, que Deus mesmo. E d'Ele lemos em sua Escritura que
se reserva de uma maneira muito especial ao cuidado da vingança: "Sim, a
mim pertence a vingança, e eu lhes darei o pago no tempo em que seus pés
resvalarem, pois já está próximo o dia de sua perdição e esse prazo vem
voando"[12]. Como consequência, quando vemos agora o universo inteiro
castigado por um mal inaudito[13], se queremos entender o que ocorre, devemos
recordar que nunca desde a origem do mundo houve entre as nações um crime
tão horrível como o que hoje em dia se está propagando, um pouco por todo o
mundo, ainda que não sempre com a mesma forma de extrema perversidade.
Era necessário que, como outrora, quando todo o universo estava manchado
pelo delito da carne, veio o dilúvio de água a purificá-lo e castigá-lo, hoje o
crime do laicismo foi lavado em todo o universo por um dilúvio de sangue.
Com efeito, o Senhor havia dito: "Levantarei a minha mão ao céu e juro por
minha eternidade: quando se afiar o gume da espada, e o farei como um raio, e
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empunharei minha mão a justiça, tomarei vingança de meus inimigos e
retribuirei aos que me odeiam. Embeberei de sangue minhas flechas"[14], e
acrescentou, indicando que não separava sua causa da causa de sua Igreja:

"Alegrai-vos, ó nações, por seu povo, porque o Senhor vingará o sangue


de seus servos, tomará vingança de seus inimigos, e derramará sua
misericórdia sobre a terra do seu povo"[15].

Oxalá os povos e nações logo compreendam! E que assim, rechaçando o


veneno mortal do laicismo, se faça finalmente dignos das misericórdias do
Senhor, nosso único Salvador!

Fr. Thomas Pègues, OP.

O Rev. Pe. Fr. Pègues nasceu em 2 de aosto de 1866 em Marcillac. Morreu aos 28
de abril de 1936 em Dax. Fez seus estudos no Grande Seminário de Rodez. Entrado
na província dominicana de Tolosa, ali tomou o nome de Thomas. Tendo-se
convertido em um dos grandes comentaristas de Santo Tomás, firmou numerosos
artigos e livros. Foi professor em vários institutos importantes, incluindo o
Collegium Angelicum de Roma. "Já que é separando-se da escolástica e de Santo
Tomás que o pensamento moderno se perdeu, nosso único dever e nosso único
meio de salvá-lo é devolver-lhe, se quer, esta mesma doutrina", dizia (Revue
thomiste, Julho de 1907).

NOTAS
[1] - Ferdinand Buisson, La foi laïque, p. 62.
[2] - Ibid., p. 69, 70, 71.
[3] - Ibid, p. XIV.
[4] - Santo Tomás, Suma teológica., I-II, q. 94, a. 2.
[5] - Santo Tomás, Suma teológica, II-II, q. 101 a. 1; q. 102, a. 1; q. 104 a. 1.
[6] - Santo Tomás, Suma teológica,II-II, q. 94, a. 3.
[7] - Hebreus 10, 31.
[8] - Mateus 10, 34.
[9] - Santo Tomás, Suma teológica, II-II, q. 99, a. 1, ad 2.
[10] - Santo Tomás, Suma teológica, II-II, q. 81, a. 7.
[11] - Santo Tomás, Suma teológica, I-II, q. 87, a. 1.
[12] - Deuteronômio 32, 35.
[13] - Era o momento mais agudo da Primeira Guerra Mundial quando foi pronunciado este discurso. E
queira Deus que o agravamento do laicismo que presenciamos não atraia novamente sobre a França e sobre
o mundo flagelo de mesma natureza ou ainda pior! Pode haver um meio para prevenir-lo. Este meio seria
que os católicos da França e de todo o mundo despertassem para transformarem-se o quanto antes em um
movimento de salvação nacional e mundial.

28
[14] - Deuteronômio 32, 40-42.
[15] - Deuteronômio 32, 43.

NOTA DO TRADUTOR

Importa recordar que neste debate teológico, que vai muito além das questões teóricas, debruçando-se sobre
as possibilidades práticas nas diversas situações, tempos e lugares, sobre as relações da Igreja com o Estado
existem posições diversas, conforme as linhas de pensamento das várias correntes teológicas. Deste modo, é
sumamente importante, e mesmo indispensável para a caridade, que, com exceção daqueles que abertamente
declaram seu repúdio à ação da Igreja Católica, entre os católicos, filhos da Igreja, haja um ambiente de
respeito e reverência para com os de posição diversa. Por mais que se julgue estar em posição mais
conforme à fé católica, deve-se conceder aos demais o benefício (cf. Suma, IIa-IIae, q.60, a.4, ad.1) da boa
vontade e da reta consciência, ainda que errônea, segundo o juízo que se fizer, tratando-os como irmãos na
fé ou mesmo como adversários, porém no âmbito da disputa teológica, jamais como disputa pessoal,
evitando toda forma de ataques contra a virtude da justiça, como a contumélia, a difamação e a zombaria (cf.
Suma, IIa-IIae, q.72, 73 e 75).

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