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O mistério

de Gristo

Edições P a u lin a s

http://www.obrascat(
Coleção MYSTERIUM F ID E I
Reflexões bíblico-teológicas

Bouchard F., A '-juventude da Igreja


II kris V., A Eucaristia, mistério da fé
Laijrentiiv.' R., Teria Deus morrido?
N ewman J. (C ard.J, A maturidade cristã
P enido T. L., O mistério de Cristo
P ronzato A., Evangelhos incômodos *
W oehrmueli er B., O nôvo mandamento

No prelo
Em preparação
MONS. DR. M. TEIXEIRA-LEITE PENIDO

O MISTÉRIO DE CRISTO

f!A*‘

EDIÇÕES PAULINAS
Ao Revmo. Monsenhor Narbal da Costa Stencel
DD, Reitor do Seminário arquidiocesano de S. Jos
Rio de Janeiro
AO LEITOR

A multiplicidade das ocupações, primeiro, a doença em


seguida, nos forçaram a interromper, durante longos anos,
a preparação desta nossa iniciação à teologia do mistério
de Cristo. Retomado o trabalho, não nos foi possível desen­
volvê-lo como desejávamos. A presente obra é apenas um
escôrço. Cremos, todavia, que poderá prestar alguns servi­
ços, pelo que nos abalançamos a publicá-lo.
Tão complexa a Pessoa de Cristo, que podemos estu­
dá-la ou encará-la, dos mais variados ângulos ou pontos de
vista histórico, exegético, psicológico, sociológico, apologé-
tico, teológico, ascético-místico, etc.
Para evitar confusões, e sobretudo precaver decepções,
desejamos esclarecer de início, que nosso propósito, no pre­
sente opúsculo, foi tão só apresentar uma tentativa de medi­
tação teológica destinada a leitores leigos cultos. Não pro­
curamos pois, elaborar um trabalho completo "De Verbo
Incarnato", ainda menos escrever uma obra didática, mas
apenas "meditar” teologicamente sôbre uns poucos temas
cristológicos.
Tomando "0 mistério de Cristo" tal como no-lo propõe
a fé da Igreja, formulada pelos concílios ecumênicos de
Éfeso e de Calcedônia: uma só Pessoa subsistindo em duas
naturezas distintas, humana e divina — tentamos circunscre­
ver n dogma na medida do possível, entender-lhe melhor os
enunciados, desentralhar-lhe as consequências. .Nada mais.
Não procure pois o leitor nestas páginas o que nelas não
poderá encontrar'.

(1) D esejam os lam b ém esclarecer que, no decurso deste opúsculo, tivem os


ocasião de a p ro v e ita r v ário s p a rá g ra fo s de nosso livro, h á m uito esgotado, sôbre
O Corpo m ístico de Cristo.
CAPÍTULO I

HARMONIAS DA ENCARNAÇÃO

Quem é Deus?

O romeiro que, na terceira década do século XIII, galgas­


se a rude encosta do monte Cassino, chegado ao cume, admi­
raria a .seus pés a risonha planície da Campânia, contras­
tando com os selvagens penhascos dos Apeninos; contem­
plaria aquêle inolvidável céu da Itália meridional, tão puro,
tão diáfano, tão luminoso, que-parece um leve sendal pres­
tes a se rasgar para nos deixar ver Deus em sua glória.
Entendería então nosso romeiro, que S. Bento houvesse es­
colhido aquêle monte, tão propício à contemplação, para
nêle fundar o mosteiro de onde a vida monástica se espa­
lharia no Ocidente todo.
Feitas as suas devoções à beira do túmulo do santo
patriarca e de sua irmã Escolástica, entraria em contato
com os monges e encontraria talvez um menino já votado à
glória: Tomás, filho do conde de Aquino. Aos cinco anos
de idade, êsse rebento de nobilíssima estirpe, fôra trazido
ao mosteiro por brilhante séquito, levando o presente —
considerável para a época — de 20 onças de ouro.
1 O m istério sôbre o q u a l vam os m e d ita r, recebeu n a teologia c ris tã , vários
nom es, todos fu n d a d o s sobre a E s c ritu ra , E is os p rin c ip a is: 1) E ncarnação
(S ark o sis) tê rm o técnico que condensa nu m a só p a la v ra o que o E vangelho
diz ern v á ria s delas, p. ex. : ‘O Verbo se íôz c a rn e ” (Jo 1,1-1). “ C arne” na
B íblia nflo designa nr»*nnp o corpo, m as o conjunto a lm a e corpo (Gcn 6,12;
Mt 24,22); 2) Inurnatm cão (e n a n th ro p e sis); 3) E xin a n içã o (ltenosis) am bos op
tê rm o s fundad o s sóbre F lp 2,7; 4) aparição (e p ifa n e ia ) (T it 2,11; lJ o 1,2 ); 5)
unção (c h risis) I,c 4.18; 6) d ispensarão (oilionom ia) E f 3,í).
O prim eiro e sc rito r a e m p re g a r o têrm o “en ca rn a ç ão ” foi. ao que parece,
S anto Irín eu , no III século.

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Vestido com o hábito, o capuz e o escapulário preto,
fora entregue aos monges como oblato.
Cresceu o pequerrucho, dando mostras do que seria
mais tarde; os beneditinos de tal modo se Impressionaram
com uma pergunta sua, que a guardaram na memória e a
transmitiram aos pósteros; o menino acercava-se dos mon­
ges c, com insistência repetia a mesma pergunta: "Quem é
Deus? Digam-me, quem c Deus?"
Podemos, de certo, ver nessa interrogação, apenas o
fruto da educação medieval tôda voltada para Deus, atuando
num espírito genial de metafísico.
Mas podemos também, com maior acerto, ver na per­
gunta, a expressão precoce e privilegiada de um grande an-
•eio da humanidade: penetrar no Além, travar relações
com êle.
Animal racional, definiam os gregos; animal religioso,
acrescenta a ciência de nossas origens. Forcejando para
penetrar as trevas que rebuçam a humanidade primeva, a pré-
-história desvenda aos poucos êsse interêsse pelo Além,
essas tentativas para estabelecer relações com o misterioso
poder que funda a ordem social, domina a vida e a morte
do homem. A etnologia, a história das religiões, a medida
que se desenvolvem, nos fazem melhor perceber a univer­
salidade da preocupação com o Além, que reponta em to­
das as épocas e civilizações. Reveste formas múltiplas,
aberrantes algumas, ridículas outras, chocantes até. Po­
rém, a variedade mesma, a persistência pelos séculos afora,
manifestam o desejo espontâneo, natural do homem: co­
nhecer o divino, comunicar-se com êle, propiciá-lo. São
Paulo falando aos atenienses sôbre "o deus desconhecido”
alude a êste esforço da humanidade, para achar Deus “mes­
mo às apalpadelas” (At 17,27).

Deus próximo a Deus longínquo

Se tentarmos caracterizar, em conjunto, a evolução re­


ligiosa da humanidade, descobriremos uma tensão entre
duas tendências como que antagônicas. IJma visa huma-
nizar Deus o mais possível; procura um Deus próximo, fácil
de entender, com o qual se possa falar, dialogar, travar en­
fim relações pessoais. A tendência anti (ética visa separar,
afastar Deus da criatura: só assim êle será Deus.
Em têrmos técnicos daríamos às tendências contras­
tantes os nomes respectivamente de ‘‘imanência’’ (Deus em
nós) e "transcendência” (Deus separado de nós); ou ainda:
"antropomorfismo” (Deus semelhante a nós) e "agnosticis-
mo” ou "simbolismo" (Deus inacessível).
"Se Deus criou o homem à sua imagem, o homem pa­
gou-o, por certo, na mesma moeda”. 0 mote de Voltaire
aponta o fato mas não lhe desvenda a razão. Esta só pode
ser o desejo de alcançar um Deus concreto, que seja um
"eu” face ao nosso "eu”.
Como poderiamos invocar, implorar, uma abstração?
Quem jamais cogitou de adorar o exangue "deus” dos fi­
lósofos?
Brotando do que mais profundo há em nossa persona­
lidade, a tendência religiosa exige como objeto, um ser real,
dotado de vida, conhecimento, amor, ódio, em suma exige
uma pessoa com a qual possamos dialogar, assentir ou dis­
cordar, submeter-nos ou revoltar-nos.
Assim descreve a Escritura as relações entre Deus e
nossos primeiros pais.
0 segundo capítulo do Gênesis nos pinta Javé — Deus
qual oleiro que, com as próprias mãos, modela o barro e ao
depois, assopra nas narinas do boneco para avivá-lo, fa­
zer dêle um homem. Javé — Deus fala, planta um jardim
no qual passeia à tarde, para gozar do frescor da aragem
vesperal. E também teme que a ousadia do homem o leve
a comer o fruto da árvore da vida para igualar-se ao seu
Senhor. Um Deus oleiro que c também alfaiate pois cose
as túnicas dc pele que cobrirão a nudez do casal prevarica­
dor. Temos aqui um Deus visível e tangível; não apenas
uma idéia, mas uma pessoa, a saber um ser concreto que se
torna alvo de afetos religiosos profundos. Posteriormente
tôdas as especulações dos antigos teólogos judeus e árabes
sôbre o pretenso "corpo” de Deus — se luminoso ou car­
nal — por ingênuas ou mesmo revoltantes que pareçam,

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revelam a mesma aspiração a um deus próximo. Ehcon-
tramo-lo também entre os cristãos, basta recordar o lato nar­
rado por Cassiano cm sua 10a Conferência, como comprovan­
te de sua afirmação que a imensa maioria dos monges do
Egito sossobraram na heresia antropomorfista, seja por um
resquício de paganismo, seja por uma interpretação dema­
siado literal do versículo do Gênesis: "Façamos o homem
à nossa imagem e semelhança" (Gên. 1,26).
0 velho Serapião, narra pois Cassiano, lutara por meio
século na solidão, e a êste longo passado de austeridade, acres­
cia uma perícia ímpar na disciplina ascética. Seu êrro so­
bre a verdadeira natureza de Deus era tanto mais prejudi­
cial quanto o merecimento e a idade se uniam para colocar
Serapião quase à testa dos demais monges. Em vão haviam
tentado c.onvencê-lo do êrro, até a chegada de Fotino, diá-
cono e grande argumentador. Êste foi mais feliz: Serapião
rendeu-se à verdade e abjurou o êrro no qual caíra por im-
perícia e rusticidade. Alegraram-se os católicos e, todos
juntos, começaram a render graças a Deus. Mas eis que,
no meio da oração, o pobre ancião verifica que desaparece­
ra de seu coração a forma humana sob a qual êle soía ima­
ginar a divindade. Perturbado ao extremo, derrete-se em
amargas lágrimas e prorrompendo em soluços prostra-se
no chão e se lamenta com veementes gritos : “Ai dc mim!
Tomaram meu Deus! Não tenho mais a quem me prender;
não sei quem adorar, quem invocar! ” 2. Faltava ao bom
velho, o Deus próximo.
Mas já no próprio seio da aspiração ao Deus próximo
desponta a tendência antagônica: o Deus próximo como que
evoca o Deus longínquo. Expressa-o com felicidade, um fi­
lósofo americano, W. E. Flocking: "Os deuses primitivos
são semelhantes ao homem e estão perto dêle; todavia êles
são tão dissemelhantes e tão remotos quanto o homem os
pode imaginar. . . Quando êle consegue pensar mais longe
do que o sol e mais longe do que o céu — para lá vai Deus
e provàvelmente é o primeiro a ir. Pois a idéia de Deus é
ao mesmo tempo seu limite ideal e seu meio de explorar.
2 J. C.v-vukn . C onf Crm i'rs X. 3 (Saurecs Chr^tiennes. vai. 54. P a r is .1958.
p. 7Gss».
Demorando, no seu fantasiar especulativo, naquilo que es­
tá além cio que êle pensou até então, o homem prepara suas
próximas conquistas intelectuais, consegue afinal ganhar
mais uma idéia da qual êle deve dizer: Deus não é isto” \
Donde a tendência a exilar Deus do mundo, a fazer
dêle o separado. Se logramos entender Deus, êle já não é
mais Deus. Se êle se me apresenta como um simples "eu”,
será um companheiro, quiçá um tirano, no máximo um su-
per-homem, nunca o outro, o Senhor todo-poderoso. Cabe-
ria aqui evocar as análises de Rudolf Otto, brilhantes e pro­
fundas, embora unilaterais. O objeto próprio do sentimento
religioso seria uma realidade misteriosa que provoca o es­
panto e mesmo o terror, por ser inteiramente outra, inco-
mensurável. Assim alguns hindus qualificam o divino de
"anyad eva” ou seja: "o totalmente estranho”, e alguns
místicos ocidentais afirmaram o “nada” de Deus. Expres­
sões paradoxais que visam tão só marcar a transcendência
de Deus: êle ultrapassa todo conceito e todo ser; o Deus
verdadeiro é o Deus escondido. Diante da grandeza e sobe­
rania vislumbradas, o homem sente um frêmito de temor
e mesmo de terror. Jacó depois da manifestação de Deus
em Betei exclamou: "Como é terrível êste lugar!” (Gên
28,17). E a Moisés, Javé declarou: "Nenhum homem pode
ver-me a mim e continuar com vida)' (Èx 33,20).
Alguns teólogos cristãos, partindo das especulações de
S. Gregório de Nissa sôbre a "nuvem” que escondia Deus
no Sinai, elaboraram — utilizando fórmulas neoplatônicas
— a trevosa "teologia apofática”, segundo a qual o que de
menos errado podemos afirmar sôbre Deus são proposições
negativas. Tão logo atribuímos ao Altíssimo qualquer per­
feição, devemos negá-la, pois limitadas como são nossas
idéias não podemos conceber perfeição alguma que não en­
cerre qualquer deficiência, logo que não desmereça a Deus.
A modo de exemplo, analisemos nosso conceito de "be­
leza”. Por mais o depuremos, por mais forcejemos para
alcançar a pura beleza, não deixamos de perceber que lal
perfeição é caduca — brilho que pouco a pouco se empana,

li W. E. IIock ing, The m eantng o f God in hum an eccperlence, p, 327.

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encanto que fenece. Pelo menos a beleza, por mais requin­
tada que seja, é parcial, fragmentária, desigual: outra a beleza Procurar o prazer ou a virtude? Assim vai o homem, es­
da flor, outra a beleza do mar, outra a do corpo humano, quartejado entre a dúvida que o angustia e a esperança que
outra a do espírito. Bem mais, outra a beleza dêste corpo o alenta, sempre a tentar novas soluções e sempre insatis­
ou dêste espírito, outra a beleza daquele outro. Donde ao feito com elas. Quantas aberrações registra a história das
afhmar^ Deus é belo”, devemos em seguida corrigir nossa concepções morais da humanidade! Dêsse caos tiram os
céticos fáceis argumentos para provar a inanidade da ética.
aíiimação, pois sua beleza não é a beleza criada a única que
conhecemos positivamente. Dc sorte que o grau supremo Não existe moral, existem apenas costumes variáveis ao
do conhecimento humano sôbre Deus, consiste em saber extremo, evoluindo ao saber das épocas e dos lugares. A
que não sabemos o que Deus é. ética será vantajosamente substituída pela "ciência dos
costumes”, estudo puramente positivo da evolução dos com­
Mas êsse Deus longínquo seria ainda acessível ao ho­
portamentos humanos, sem qualquer pieLensão a proferir
mem. Como travaríamos relações com o desconhecido?
juízos de valor.
Eis que no próprio âmago do tremor e do terror diante Entretanto, a humanidade em conjunto rejeita o ceti­
da transcendência do desconhecido, brota certo fascínio.
Pressentimos que êsse desconhecido é nosso bem. Só êle cismo, tanto o que nega a existência da verdade como o que
estancaria a nossa sêde de felicidade justamente por êle não nega a existência da moral.
ter limites corno todo bem criado. Rejeita o ceticismo especulativo, afirmando a possibili­
dade de conhecer a verdade e prova sua asserção desenvol­
A própria oscilação da inteligência entre diversos ca­
minhos na procura de Deus, os mesmos malogros, avivam vendo a ciência e aplicando-a, dominando a natureza; chega
a nossa sede de um conhecimento autêntico. Ora só Deus ao ponto de prover a terra com satélites artificiais e encara
podería nos dizer o que êle é. sèriamente a possibilidade de viagens à lua.
E Deus falou (Hebr 1,1). Rejeita o ceticismo moral, afirmando, tanto para o indi­
víduo como para a comunidade, a existência de normas de
conduta proporcionadas à condição humana, e prova a sua
O desejo de salvação asserção fazendo de quando em quando jorrar de seu seio
o herói e o santo em quem se encarna a vida moral perfeita.
Auto-suficiência do homem, como apregoam os filóso­
Nao e apenas a inteligência humana que procura Deus fos? Dolorosa experiência vem mostrar que o homem sozi­
as apalpadelas; nossa vontade também aspira encontrar uma nho não consegue estabelecer na sua consciência ordem e
I norma suprema de vida e se afana por descobri-la. Em
.1 vao ao que parecería. paz duradouras. Sentimos o chamamento vertiginoso do
pecado; sentimos o conflito íntimo que Ovídio — e mais
Desperta o homem e vê-se jogado, não sabe para que, na tarde S. Paulo — tão bem expressaram: querer o bem e fa­
existência, espreitado pela morte. Esta existência, tão pre- zê-lo são coisas mui diversas, tantas vêzes não faço o bem que
cana, tena um sentido ou seria absurda? Em vez de ab­ quero e faço o mal que não quero! Repreende-se a cons­
dicar, tentará tomar nas mãos o seu destino,' ter plena cons- ciência, cria-se o sentimento de culpabilidade, como fazê-lo
ciencia de sua situação concreta, assumir suas responsabi­ desaparecer e recobrar a paz?
lidades, tecer planos, correr riscos, construir a própria O Livro da Sabedoria pinta um quadro tétrico da moral
frabalho ? própria história? Mas como orientar êste pagã: "iniciações infanticidas, mistérios secretos, orgias ex­
trabalho de autoconstrução? Que rumos seguir? Perder-se travagantes; não guardam mais qualquer pureza na vida
na massa amorfa ou afirmar-se na sua originalidade única? nem no casamento: um suprime o outro por traição ou
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ultraja-o dando-lhe bastardos. Em todo canto misturavam-
-se sangue e assassínio, furto ou embuste, corrupção, des­
lealdade, perturbações, perjúrio, almas manchadas, crimes
contra a natureza, desordens no casamento, adultério, imo­
ralidade" (Sab 14,23-26). S. Paulo escrevendo aos romanos
não é menos som brio: "Deus os entregou aos desejos dos
seus corações, à impureza com que desonram seus próprios
corpos, pois trocaram a verdade de Deus pela mentira, e
adoraram e serviram à criatura, em vez do Criador, que é
bendito pelos séculos amém. Pelo que Deus os entregou
às paixões vergonhosas, pois as mulheres mudaram o uso
natural em uso contra a natureza, e igualmente os varões, dei­
xando o uso natural da mulher, abrasaram-se na concupisciên-
cia de uns pelos outros, os varões pelos varões, cometendo
torpezas e recebendo em si mesmos a paga devida de seus
desvarios. E, como não procuraram conhecer a Deus, Deus
os entregou aos seus sentimentos depravados, que os levam
a cometer torpezas e a se encher de tôda injustiça, malícia,
avareza, maldade; dados à inveja, homicídio, contendas,
logros, malignidade; murmuradores, caluniadores, inimigos
de Deus, ultrajadores, orgulhosos, fanfarrões, inventores de
maldades, rebeldes aos pais, sem bom senso, coração e mi­
sericórdia. E apesar de conhecerem a sentença de Deus, de
que os que tais coisas fazem são dignos de morte, não só
as cometem mas até aplaudem os que assim procedem"
(Rom 1,24-32).
0 quadro do paganismo antigo traçado pelo apóstolo
não valerá para o paganismo hodierno? Os excessos a que
por vêzes se atira a juventude não seriam o fruto da vacui-
dade interior, da falta de amor, do desespêro, do abandono?
Revolta das almas contra uma existência que lhes parece
absurda, porque não conseguem atinar com o seu sentido?
Com o passar dos anos êsse acumular-se de violências,
de injustiças, numa palavra, dos crimes os mais hediondos,
pesa qual fardo esmagador sôbre a humanidade desnor­
teada. Arrebente uma guerra e veremos a que ponto pode
chegar a proliferação do mal, a que ponto êle pode ser fe­
cundo em inventos atrozes. Mas o homem não se contenta
com protestos contra uma existência sem sentido num
mundo desumano, êle procura uma renovação interior, uma
salvação eficaz. Os mesmos pagãos, gregos e romanos, tão
severamente julgados por S. Paulo, procuravam nas reli­
giões asiáticas, um remédio para a sua corrupção. "Misté­
rios" de fsis, de Deméter, de Átis, de Cibele, de Mitra com
seus deuses salvadores, seus ritos esotéricos de iniciação e
de culto (purificações, sacrifícios, banquetes rituais, ilumi­
nações) conquistaram numerosos adeptos entre os povos
mediterrâneos, nos primórdios da era cristã.
Posterior ao cristianismo, o neo-platonismo se nos apre­
senta qual derradeiro esforço do paganismo antigo para
reabilitar o homem, estabelecendo relações íntimas entre
êle e a divindade.
Na perspectiva plotiniana o universo é uma degradação
do divino ou seja um pálido reflexo do mundo espiritual..
Donde a necessidade para quem deseja levar vida autêntica,
de se desligar das coisas e dos homens. "Fujamos" ordena
Plotino. Por êsse movimento de fuga a alma alteia-se de
purificação em purificação, sublima-se de simplificação em
simplificação, à procura do uno, do grande solitário, no
qual almeja se perder pelo êxtase da contemplação. “Reti­
ra-te do mundo exterior, preceitua Plotino, concentra-te
totalmente no íntimo, não te voltes às coisas de fora, ignora
tudo. .. ignora até quem contemplas e, após teres te unido
a Deus e com êle convivido, vá anunciar ao mundo o que é
esta união" (Eneades VI,9,7).
Por infelicidade, o Deus de Plotino permanece não só o
solitário, mas ainda o inexorável silencioso; nada descobre
de si à alma que, pressurosa, lhe corre ao encontro. Êsse
Deus será fonte de ser, não é o "tu" face ao "eu", o amigo
que lhe oferta o próprio amor. Deus longínquo, irremedià-
velmente, não Deus salvador.
Acontece que Deus se fêz carne para viver entre nós e
nos salvar. Deus se fêz carne para mostrar que o amor é
mais forte do que o mal.

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2. - Mistério de Cristo
A resposta de Deus
Amamos as coisas porque nelas descobrimos uma bon­
dade — real ou aparente — cuja posse viría-nos aperfei­
çoar. Logo, a bondade das coisas precede e suscita o nosso
amor. As coisas não são boas porque nós as amamos mas
as amamos porque são boas. Deus muito ao contrário não
ama os sêres porque são bons, mas os sêres são bons por­
que Deus os ama. Porque os ama; chama-os à existência e
nela os conserva. Perfeito, de nada carece. Que criatura
poderia lhe aumentar a felicidade? Para Deus, querer é
amar, e amar é dar. Amor tão perfeito e generoso que chama
à existência o universo para comunicar a sua bondade. Pe­
lo ato criador êle manifesta a sua glória que consiste em
extravasar sua bondade, suscitando sêres que espelharão,
cada qual a seu modo, a perfeição suprema. Amor divino
gratuito, desinteressado, sem qualquer resquício de egoís­
mo; amor que tudo dá embora nada possa receber.
Assim sendo não nos espantaremos que as relações en­
tre Deus e os homens tenham por base o amor e que a his­
tória das relações autênticas entre Deus e a humanidade se­
ja uma história de amor. Tal é êsse conjunto de livros que
chamamos de Sagrada Escritura. História do amor divino
pelos homens, ora retribuído, ora desprezado, nunca venci­
do. "Amei-te de eterno amor" diz o Senhor a Israel (Jer
31,2) e, em troca exige amor: "O que quero é amor e não
sacrifícios” (Os 6,6).
Na sua sabedoria Deus escolhe um povo, descendente
de Abraão, o pai dos crentes, para lhe confiar a verdade so­
bre Deus e a verdade sôbre o hom em : verdades religiosas
a crer e código de moral a pôr em prática; patrimônio a ser
conservado por Israel; transmitido de geração em geração,
e, a seu tempo comunicado ao resto da humanidade: “Abraão
se tom ará um grande povo e por êle serão benditas tôdas
as nações da terra” (Gên 18,18).
Deus não revela tôdas as verdades de uma só vez, mas
com solícita pedagogia vai educando o seu povo, acomodan­
do-se à mentalidade daqueles a quem a revelação era ime­
diatamente destinada. A Bíblia nos faz assistir à lenta as-

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censão da religião israelita: vai-se espiritualizando o antro-
pomorfismo primevo; a moral, ainda frustra, exterior, social,
se vai aos poucos purificando e interiorizando; enfim o po­
vo eleito vai a pouco e pouco tomando consciência de sua
função de arauto de Deus junto dos outros povos.
Durante essa lenta preparação, a verdade mais precio­
sa que ensina a divina pedagogia, é a unidade de Deus. Re­
velação feita a Abraão, escolhido no seio do paganismo para
ser o adorador e amigo íntimo de Deus. Revelação confir­
mada mais tarde a Moisés como privilégio único do povo
eleito. Se os progressos da arqueologia e da história nos
descobrem a estreiteza das relações que ligaram os hebreus
aos demais povos de Canaã, do Egito e da Mesopotâmia,
mostrando tudo quanto os judeus devem aos seus vizinhos,
em compensação êsses mesmos progressos realçam a trans­
cendência da religião hebraica: ela e só ela é monoteísta. O
milagre judaico perdura pelos séculos afora graças ao mo-
noteísmo. A Escritura narra a luta encarniçada entre os
cultores de Javé, o Deus único de Israel, e o politeísmo cir­
cundante. Os livros históricos do Antigo Testamento des­
crevem as peripécias da luta. O povo escolhido é continua­
mente tentado de ceder ao fascínio dos cultos politeístas;
amiúde sucumbe, deixa-se contaminar, de sorte que apenas
um número ínfimo de fiéis — um "resto"4 — conserva o
culto do verdadeiro Deus. Mas, a despeito das defecções
de reis e súditos, Deus não esquece as promessas feitas a
Abraão, não revoga a aliança patuada por meio de Moisés.
Por entre tão variadas vicissitudes, uma só realidade per­
manece imudada: o amor de Deus por seu povo.
Citemos alguns textos a modo de exemplo. O salmo
44 (Vulg 43) rememora aquêles acontecimentos — liberta­
ção do Egito, travessia do deserto, conquista de Canaã —
tanto mais caros à memória dos israelitas quanto maior era
o contraste entre a glória do passado e as calamidades pre­
sentes. E o salmista comenta êsses acontecimentos: não
foram obras dos guerreiros judeus, senão de Deus que os
amava. "Para plantá-los (os israelitas), para estender-lhes
4 Is 4 .2 -3 ;6 ,1 3;7,3 etc.

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o domínio, m altratastes os povos. Não foi a espada dêles O Messias
que conquistou a terra, nem seus braços que lhes deram a
vitória, mas foi a tu a d estra e o teu braço e a luz de tua fa­ Mensageiros de Deus esses personagens ilustres cha­
ce — porque os am avas" (SI 44,3-4). Para que o povo ainda mados "profetas" — Moisés, Samuel, Elias, Eliseu, Isaías,
rude entendesse quão sério e profundo o divino am or que Jerem ias, Ezequiel, e o grupo dos profetas "m enores” —
o perseguia, o Senhor pela bôca de seus profetas, não hesita não tinham apenas por função predizer o futuro, mas tam ­
a reco rrer a m etáforas nupciais. Êle se apresenta como bém de transm itir os ensinam entos e as ordens de Deus
espôso e Israel é sua bem-amada; esposo cium ento, que exi­ para o mom ento presente. Medianeiros, em comunicação
ge da esposa fidelidade absoluta e considera todo politcísm o constante com o Altíssimo, êles são, na prática, os chefes
como adultério. Mas Israel não é fiel à palavra dada; em­ religiosos do povo. Êles mesmos, entretanto, faziam vis­
bora as m ísticas bodas com Javé, adultera adorando deuses lum brar a vinda de um m isterioso ser, excepcional, m aior do
estrangeiros. E n tretan to "Javé am a os filhos de Israel em­ que êles, realizando em sua plenitude as prom essas divinas,
bora êles se voltem p ara outros deuses” (Os 3,1). Cas­ levando Israel a uma nova idade de ouro superior ao estado
tiga rudem ente seu povo, pelas mãos dos invasores, não para edênico.
aniquilar, m as p ara obrigar a esposa infiel a voltar. "Que­
ro voltar ao m eu prim eiro m arido porque eu era mais feliz Assim foi aos poucos em ergindo das névoas do futuro;
d an tes” (Os 2,15). E Deus espreita o m enor sinal de a r­ aquêle que, com o tempo, se tornará a grande esperança do
rependim ento para devolver à traidora tudo que lhe tira­ povo escolhido, alentando na luta, fortalecendo após a der­
ra. Recomeça um am or, nôvo e antigo como se nada fôra: rota, dando sentido à história tão acidentada de Israel.
"E u te desposarei na justiça e no direito, na te rn u ra e no Já nos prim órdios, após haver pronunciado a sentença
am or; eu te desposarei na fidelidade, e conhecerás Javé” que im punha a nossos prim eiros pais o justo castigo da
(Os 2,21-22). sua transgressão, Deus prom etera que, um dia a cabeça da
serpente seria esm agada por um descendente de Eva. Des­
O am or apaixonado, gratuito, m isericordioso, indefec­
ta prom essa b ro taria aos poucos a esperança de que êsse
tível de Deus p o r seu povo é cantado de m aneira com ovedora ser privilegiado repararia a catástrofe do Éden, e restaura­
no seguinte texto de I s r a e l: "Não tem as porque não serás ria a ordem prim eva. A sábia pedagogia divina foi aos pou­
envergonhada; e não te envergonhes porque não serás con­ cos determ inando esta prim eira revelação. Lentam ente de­
fundida; antes te esquecerás da vergonha de tua mocidade, lineia-se a figura do Messias, que se tornaria a personagem
e não te lem brarás mais do opróbrio de tu a viuvez. Porque central na história de Israel.
teu espôso será teu criador, cujo nome é Javé dos exércitos;
O vocábulo "M aschiah” e seu equivalente grego "Chris-
teu red en to r será o santo de Israel que se cham a o Deus
tos , significa "Ungido” (Jo 1,14; 4,25), a saber, consagrado
de tôda a terra. Sim, como a m ulher desam parada e Lriste
a um a m issão divina junto ao povo eleito. Antes de tudo
Javé te cham a. Pode-se rep u d iar a m ulher da mocidade?
o têrm o foi atribuído aos reis, divinam ente ungidos para
diz teu Deus. Um pequeno instante te deixei,- m as com pie­
reger o povo de Javé. D estarte o vocábulo foi revestindo
dade im ensa te recolherei. Em grande fu ro r escondi a mi­
um caráter preponderantem ente político: o Messias vin­
nha face de ti por um m om ento, mas com am or eterno me
douro será antes de tudo um rei, libertador de Israel. As­
com padecí de ti, diz Javé teu R edentor” (Is 54,4-8). Te­
m a abundantem ente desenvolvido por Ezequiel em duas sim Jacó no fim da vida, abençoa cada um de seus filhos; a
alegorias (caps. 16 e 23). Judá prediz que será cabeça de uma dinastia: "não sairá o
cetro de Judá até que venha aquêle a quem pertence e a êle
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os y,c>vos obedecerão” (Gên 49,10; cf as prom essas de Deus res e experim entado nos sofrim entos; como aquêles diante
a C^vi, 28am 7,4-14). ^ de quem a gente se vela a face, êle era desprezado e desconsi­
m edida que a independência de Israel periclitava até derado. Ora eram nossos sofrim entos que êle tom ava sôbre
desaparecer sob os golpes dos poderosos im périos assírios si e nossas dores que o acabrunhavam . E nós o reputávam os
e babilônicos, e mais tard e às mãos das dinastias selêucidas, castigado e ferido por Deus e hum ilhado. Foi transpassado
m ais viva se tornava a esperança na vinda de um rei, da ca­ por causa de nossos pecados, esmagado por causa de nossos
sa de Davi, que restabelecería p ara sem pre o trono de seus crim es. O castigo que nos traz a paz estava sôbre êle e por
antepassados. P reparado p ara sua m issão pelo sôpro de causa de suas chagas somos curados. Todos nós andamos
Javé que fará m orada nêle conferindo-lhe dons proféticos desgarrados como ovelhas; cada um se desviava pelo seu ca­
(Is 11,2), êle será Em anuel (Deus conosco) (Is 7,14), minho, mas o Senhor fêz cair sôbre êle as iniqüidades de to­
conselheiro m aravilhoso, Deus forte, pai eterno, princípe da dos nós. H orrivelm ente tratad o êle se humilhava. Como um
paz (Is 9,5). Êle vencería definitivam ente seus inimigos, cordeiro foi levado ao m atadouro, como a ovelha m uda diante
subjugaria todos os povos da terra, estabelecendo a paz p er­ de seus tosquiadores êle não abriu a bôea. Por coerção e
pétua. juízo foi prêso; quem se preocupará de sua causa? Sim,
A era do Messias seria um a era de harm onia não só en­ foi cortado da te rra dos vivos, p o r nossos pecados foi fe­
tre os hom ens senão no seio da p ró p ria natureza (Is 11,6-9). rido de m orte. E puseram sua sepultura com os ím p io s. . .
P rosperidade e felicidade sem senões. O povo eleito não Ao Senhor agradou esmagá-lo pelo sofrim ento. Se êle ofe­
seria o único benificiário da v en tu ra messiânica, sua m issão recer sua vida como expiação, êle verá sua posteridade, pro­
é universal, segundo a prom essa de Deus a Abraão: "por longará seus dias e o que agrada ao Senhor se cum prirá por
ti serão benditas tôdas as nações da te rra ” (Gên 12,3). Em êle. Depois das provações de süa alma, êle verá a luz e será
volta da nova Jerusalém reco nstru íd a se reuniríam tôdas satisfeito. Por seus sofrim entos, m eu servo ju stificará as
as gentes (Is 45,14-15). Erguendo-se de suas ruínas, o nô- m ultidões. Pelo que eu lhe darei a parte de m uitos e com
vo tem plo, m ansão de Javé (Ez 40; 41; 43) seria a sede de um os poderosos re p a rtirá os despojos, porque êle se entregou
culto m ais puro, agradável ao Senhor (Mal 1,11; 3,1-4; Dan à m o rte e foi contado com os transgressores, quando leva­
9,27). Todos os povos cam inhariam à luz divina, irrad iad a va sôbre si o pecado das m ultidões, e intercedia pelos peca­
pela cidade san ta (Is 2,2ss.) e fiel (Is 1,26) cujo nôvo no­ dores” (Is 53,2-12. SI 22, Vulg 21).
m e seria: "Jahw e S ham ”, ou seja, "Deus — está — ali” Isaías não aponta expressam ente o servidor como o Mes­
(Ez 48,35). sias, em bora lhe atrib u a algumas qualidades m essiânicas,
Na segunda p arte de Isaías, nos é revelada nova e deci­ p o r exemplo os dons do espírito. Mas o que caracteriza o
siva verdade, nas 4 canções do servidor de Deus (Is 42,1-9; servo padecente é o sofrim ento redentor.
49,1-6; 50,4-11; 52,13; 53,12). Enfim, algumas profecias sôbre o Messias, revestem
O p ro feta apresenta-nos m isterioso ser que lib ertará cunho escatológico. Sua vinda coincidiría com o "D ia” de
Israel não já pelo gênio m ilitar e político, como o Messias Deus (Am 5,18; Lc 19,24) que m arcará o fim do m undo
rei, m as p o r m eios estritam en te religiosos é notadam ente (M t 24,5) e o juízo universal e definitivo sôbre a hum anida­
pelos sofrim entos não m erecidos. V ítim a inocente carrega de. Não só a vitória sôbre os inimigos de Deus m as sôbre a
os pecados do povo e resgata-nos, m orrendo em expiação. p ró p ria m orte pela ressurreição dos m ortos (Dan 12,2). Es­
V itória lib ertad o ra sob as aparências da derrota. "Nós o tabelecim ento do reino dos santos, governado pelo Filho do
vimos sem beleza nem brilho e sem aparência amável; ob­ homem. Essa personagem celeste, bastante enigm ática, foi
jeto de desprêzo e rebotalho da hum anidade, hom em das do­ apresentada como instrum ento da vitória divina p o r Daniel

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(7,13). Figura que transcende a condição de homem, conse­ no dia de sua entrada solene em Jerusalém , Jesus se apre­
gue a vitória final, funda um reino que não passará. "E foi­ senta claram ente a todos como o Messias (Mt 21,1-9; Mc
-lhe dado o domínio e a honra e o reino p ara que tôdas as 11,1-10; Lc 19,28-33; Jo 12,12-16). E afirm a novam ente sua
nações e línguas o servissem; o seu dom ínio c um domínio qualidade de Messias quando objurgado pelo sumo sacer­
eterno, que não passará, e o seu reino o único que não será dote (M t 26,62; Mc 14,63; Lc 22,70).
destruído" (Dan 7,14). Quão viva era a esperança da vinda do Messias, mani­
Alentado por essa imensa esperança, o povo hebraico festa-o o testem unho de João B atista diante dos sacerdotes
conservou sua unidade étnica e religiosa, em bora o cati­ e levitas que vieram de Jerusalém para interrogá-lo: "Tu
veiro e a dispersão. quem és? E êle confessou e não negou: Não sou o Messias.
A esperança m essiânica foi alim entada pelo canto li- E perguntaram -lhe ê le s : E ntão quem és? És Elias? Êle
túrgico dos salm os anunciadores da era m essiânica e do disse: Não sou. És o profeta? E êle respondeu: N ão”
próprio Messias, rei ungido por Deus p ara realizar seus (Jo 1,19-21). A últim a interrogação explica-se pelo fato de
desígnios sôbre Israel (SI 2; 45; 72; 110; 145 etc). No m uitos, naquele tempo, aguardarem a realização da prom es­
início da nossa era, o nacionalism o judaico exasperado pelo sa feita a Moisés p o r D eu s: "Suscitarei, do meio de vos­
jugo férreo im posto pelos governadores rom anos e pela ti­ sos irm ãos um profeta, sem elhante a ti; colocarei minhas,
rania dos tetrarcas idumeus, desejava so b re tu d o 5 a vinda palavras na sua bôca e êle dirá tudo quanto eu o rd en ar”.
de um Messias, rei, que conquistaria a liberdade política e (Dt 18,18). Êsse nôvo Moisés libertaria m iraculosam ente
religiosa do povo eleito. Assim no triu n fal domingo de ra ­ seu povo do cativeiro e o guiaria ao encontro do reino esca-
mos, "a m ultidão dos discípulos com eçou a louvar, alegre, tológico e definitivo. Depois do m ilagre da m ultiplicação
a Deus num grande clam or p o r todos os m ilagres que ti­ dos pães os judeus com entavam : "V erdadeiram ente êste
nham visto, d izen d o : Bendito o que vem, o rei, em nome é o profeta que há de vir ao m undo" (Jo 6,14). A pregação
do S e n h o r ...” (Lc 19,37ss; Jo 12,13). Tão arraigada a espe­ prim itiva dos apósLoIos reivindicava êsLe título para Jesus
rança no Messias rei que os apóstolos, nota o evangelista, (At 3,22; 7,37).
“im aginavam que o reino de Deus ia se m an ifestar naquele Quanto ao Messias padecenle, que salva seu povo car­
instante m esm o” (Lc 19,11) e os discípulos de Em aús m ani­ regando-lhe os pecados, sofrendo e m órrendo pelos homens,
festam sua decepção: "Nós esperávam os que fôsse êle como anunciara Isaías nos cantos do servo de Deus, bem
(Jesus) que lib ertaria Israel. . e ainda no dia da Ascensão poucos seriam os que o esperavam , pois os mesmos apóstolos
p e rg u n ta ra m : "Senhor é agora que vais restabelecer o rei­ repeliam a perspectiva da paixão ao ponto que o próprio
no de Israel? "(At 1,6). Pedro logo após ter sido constituído pedra fundam ental da
Nessas condições, não é de estran h a r que Jesus tenha Igreja de Cristo, ousou repreender Jesus que lhes predizia
m ostrado certa reserva diante do nom e de Messias. Quando a Paixão, o que lhe valeu áspera censura do M estre (M t 16,
Pedro lhe diz: "Tu és o Messias!" Jesus "recomendou-lhes 23; Mc 8,33). Sem elhante exprobração m ereceram os dois
que a ninguém dissessem isto dêle" (Mc 8,30). Quando discípulos de Em aús: "Ó homens sem inteligência e tardos
verifica que os judeus querem proclamá-lo rei, Jesus "fugiu de coração para crer o que os profetas anunciaram ! Então
de nôvo p ara o m onte, sozinho” (Jo 6,15). Nesta terra êle não era necessário que o Cristo padecesse estas coisas e en­
não am biciona o u tra coroa senão a coroa de espinhos. Só trasse na sua glória?” (Lc 24,25-26).
Muito menos aceitariam que o estabelecim ento do reino
5 S o b re tu d o , m a s n ã o u n ic a m e n te , a ss im os e ss ê n io s de Q u m ra n e sp e ra v a m
d o is M e s s ia s : u m re i. d a c a s a de D a v i, o o u tro , s a c e rd o te , d a c a s a de A a rã o messiânico im portasse a ruína de Jerusalém (Mt 24,lss; Mc
O s e g u n d o , m a is im p o r ta n te do q u e o p rim e iro . 13,1 s s ) e a dispersão do povo judaico (Lc 21,24).
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E m bora as obscuridades e as divergências, reinava entre Dialética da Encarnação
os israelit^s ard en te esperança num a intervenção divina
e salvador^. Assim do velho Simeão diz a E scritu ra que R etom ando agora nossa análise inicial da oposição entre
"era ju sto e piedoso, e esperava a consolação de Israel, e o Deus próxim o e o Deus longínquo, podem os expressá-la com
o Espírito Santo estava nêle. Pelo E spírito S an to lhe fôra m aior rigor, m aior clareza, sob form a dialética. Diremos
revelado que êle não veria a m orte antes de ver o Cristo do pois que, em relação a Deus, os hom ens oscilavam entre
Senhor (Lc 2,25-26). Êste talvez tenha entrevisto o Messias um a tese e um a antítese, sem atin ar com a síntese.
padecente, pois descreve-o como devendo ser alvo de con­ T e s e : O Deus próxim o do politeísm o ou do panteismo.
tradição, e à sua Mãe prediz que um a espada lhe atraves­ No politeísm o greco-romano, por exemplo, verificam os a
sará a alm a (Lc 2,34-35).
hum anização radical da divindade. Mais fácil, de certo, o
Tendo p rep arad o seu povo a receber a boa nova, Deus culto que tem por objeto um Deus pessoal, p.ex., Júpiter.
respondeu à im ploração do hom em : "H avendo Deus ou- Porém , carece de eficácia, pois essas divindades são hum a­
tro ra falado m uitas vêzes e de m uitos modos aos nossos pais nas dem ais, partilham nossas fraquezas e limitações. No
pelos profetas, a nós nestes últim os dias falou pelo Filho, a panteísm o degrada-se Deus. Êle nos está m ais presente do
quem constituiu herd eiro de tudo, por quem tam bém fêz o que nós m esm os: im anência que parece anular a distância
mundo. O qual, sendo resplendor de sua glória e a imagem en tre Deus e o homem, m as que, em com pensação, faz peri­
expressa de sua substancia, sustentando tôdas as coisas pela gar a transcendência e a personalidade de Deus. Com efeito,
palavra de seu poder, tendo feito a purificação dos pecados, nessa perspectiva, não é propriam ente Deus que está em nós,
assentou-se à d ireita da m ajestade nas alturas, feito tanto m as o "divino” im pessoal que, aos poucos se vai realizando
m aior que os anjos quanto o nome que herdou lhes é supe­ em nós. Com esta divindade despersonalizada é ilusório
rio r” (H ebr l,ls s ).
qualq u er contato por pensam ento e am or pois o encontro
A resposta de Deus ultrapassa infinitam ente as m ais religioso exige a presença de um Deus pessoal fren te a um
arrojadas, as m ais loucas esperanças do homem. Convinha hom em pessoal. Ademais se o hom em é um fragm ento de
que assim fôsse pois se, p ara Deus am ar é dar, convinha Deus, cabe perg u n tar se um fragm ento de Deus ainda e
ao sumo Bem dar-nos a sum a prova de seu am or: “Deus hom em , e se um Deus fragm entado ainda é Deus.
tanto amou o m undo, que entregou seu Filho unigênito, p ara A ntítese: O Deus longínquo dos filósofos. Assegura
que todo aquêle que crer nêle não nereça m as tenha a plenam ente a onipotência e a transcendência divina m as
vida eterna" ( lJ o 4,8-10).
não nos dá meios de transpor o abism o que m edeia entre
A Encarnação apareceu-nos pois como a tentativa su­ Deus e o homem. Como será possível comunicar-se com a
prem a que Deus fêz p ara conquistar o coração de sua cria­ divindade, encontrar-se concretam ente, religiosam ente, com
tura. Na p arábola evangélica dos vinhateiros infiéis, o pai ela, p o r entre nossas hum ildes tarefas de cada dia? O Deus
de família, p ro p rietário de um a vinha, p o r várias vêzes “ato p u ro ” de Aristóteles vive no perene narcisism o: o ho­
envia seus servos p ara receber a parte dos fru to s que lhe m em é p o r dem ais desinteressante p a ra ser objeto do conhe­
cabia, mas os vinhateiros recebem pèssim am ente os em is­ cim ento divino.
sários: açoitam ums, àpedrejam outros, m atam até. "Res­ S ín te s e : O homem-Deus do cristianismo. Jesus nao
tava-lhe um ainda, o filho amado, e êle o enviou tam bém é apenas um amigo de Deus como Abraão, nem um sim ­
como últim o, dizendo consigo: A meu filho êles respei­ ples m ensageiro de Deus, como os profetas. Jesus Cristo
ta rã o ” (Mc 12,1-6; Mt 22,33-37). Assim fêz o Pai eterno é Deus propriam ente. Logo podem os dizer em verdade:
com os homens.
Deus é homem. Olhando a face de Cristo, é a face m esm a
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do Pai que contem plam os: “Quem me viu, viu o Pai"
CJo 14,9). com perfum es, esta pecadora via, apalpava, molhava, enxu­
gava, ungia, nada menos que o próprio Deus.
Nos Evangelhos nos aparece radiosa, autêntica, a hu­ Sem deixar de ser eterno, onipotente, santo, cheio de
m anidade de Jesus, que o coloca tão perto de nós. O car­ m ajestade, Deus se torna nosso irm ão em humanidade.
pinteiro de Nazaré é acessível, compreensivo. Obra seu Não precisam os mais buscar no fundo dos céus um Solitário
prim eiro milagre para alegrar um banquete nupcial. . . E n­ inacessível. Cristo é o "E m anuel” Deus-conosco; revestiu a
tretan to de seus lábios caíam, de quando em quando, pala­ condição hum ana, nasceu en tre nós, conosco viveu 33 anos.
vras que nos fazem vislum brar, com o fulgor de um raio, o D oravante para conhecer a Deus basta olhar a Cristo
abism o de sua divindade. O "carpinteiro, filho de M aria’' "Quem me viu, viu o Pai” (Jo 14,9). Sem dúvida o Antigo
(Mc 6, 3) era o próprio Deus. "Antes que Abraão fôsse eu Testam ento nos dá a conhecer o am or m isericordioso de
sou” (Jo 8,57). "Eu e o Pai somos um só" (Jo 10,30). A Deus p ara com os hom ens. Porém como se concretiza e
hum anidade do Senhor deixa tran sp arecer a sua d iv in d ad e: se aprofunda êsse conhecim ento quando contemplamos,
"O que nasceu homem fêz resplandecer a luz de D eus” (Se­ reclinado sôbre a palha, o am or encarnado! Quando adora­
creta da segunda Missa de N atal). Deus habita num a luz mos o O nipotente recém-nascido! É pois a êste ponto que
inacessível, mas êsse Deus que disse "das trevas brilhe a Deus nos ama! Ou ainda quando contem plam os a atitude
luz, foi aquêle que brilhou em nossos corações, para fazer de Jesus para com os p eca d o res: a m ulher transviada, a
resplandecer o conhecim ento da glória de Deus na face de sam aritana, a adúltera, Zaqueu, o bom ladrão. O nom e de
Cristo (2Cor 4,6). João, o evangelista, m editando sôbre o "amigo" dado a Judas no ato em que êste consumava a
sentido profundo da vida e obra do Salvador exarou a sen­ traição; o olhar de am or triste que converteu Pedro; o perdão
tença d efin itiv a: "No princípio era o v erb o . . . E o verbo dos algozes. Como transparece no Calvário que Cristo nos
se fêz carne e habitou entre nós" (Jo 1,1 e 14). O m es­ am ou até o fim!
mo João exordia assim sua Ia epístola: "O que era des­ Mas a Encarnação não transfigurou apenas algumas
de o princípio, o que ouvimos, o que vimos com nossos verdade já conhecidas sôbre Deus; o Pai, por seu Filho nos
olhos e o que nossas mãos apalparam tocando o Verbo da confia algo de nôvo — segredos de sua vida íntim a: "Já
v id a ... o que vimos e ouvimos, vo-lo anunciam os a v ó s.. " não vos cham o servos m as amigos vos digo, porque tudo que
(U o 1,1 s ). eu ouvi de m eu Pai dei-vos a conhecer" (Jo 16,15). A geração
Em Cristo temos um Deus a um tem po próxim o e lon­ eterna do Filho, a processão eterna do Espírito.
gínquo. Próximo porque os apóstolos contem plaram , apal­ Os teólogos medievais deleitavam-se em explorar o que
param , um ser verdadeiram ente humano. Longínquo, p o r­ êles denom inavam as "conveniências" da encarnação6.
que o Verbo é a vida eterna, criador do universo. S. Paulo Inquirem , por exemplo, o motivo pelo qual o Verbo não
expressa a seu modo a m esm a verdade: "Êle (C risto Jesus), assum iu um a natureza angélica. Respondem que os anjos
subsistindo na condição de Deus, não entendeu re te r p ara si não careciam de redenção, porquanto os maus já estavam
o ser igual a Deus. Mas despojou-se de si mesmo, tom ando condenados sem rem issão possível, e os bons já gozavam
da bem -aventurança. Aditam que o anjo, pela sua natureza
d .50ni!-çaü de servo> feito sem elhante aos hom ens" (Flp 2
6-7). Tao estreita a união em Cristo, do Deus e do hom em ’ espiritual podia com m aior facilidade conhecer a Deus,
tao inseparável êste daquele, que podemos dizer em ver­ bastava um a ilum inação divina; enquanto a condição hum a­
na pedia que Deus nos instruísse, servindo-se de meios sen-
dade, que a pecadora ao b eijar os pés do S alvador/regá-los
e lagrimas, enxugá-los com os próprios cabelos, ungi-los
6 P eni do , O enrpo místico, p. lü í.

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síveis, o que foi feito quando o Verbo divino assum iu carne que não fô ra criada para viver anim alm ente ansiava por
de homem. libertar-se do pesado jugo, e não conseguia (como o pagão
Reza a liturgia do N atal: “V erdadeiram ente é digno hodierno p o r vêzes sente nostalgia — desesperada e inútil
e justo, razoável e salutar, que, sem pre e em todo lugar, — de sua inocência infantil). Quis então a sabedoria de
vos demos graças, ó Senhor santo, pai onipotente, eterno Deus servir-se da p rópria m atéria p ara lib ertar o homem
D eu s: porque pelo m istério do Verbo encarnado, um nôvo do jugo da m atéria: fêz-se carne para livrar o hom em da
clarão de vosso esplendor ilum inou os olhos de nossa alm a corrupção da carne. Não só nos ensina, m as nos convida
para que, conhecendo o Deus visivelmente, ao m esm o tem po a p articip a r da vida trinitária. Não só Deus é nosso amigo
sejam os p o r êle transportados ao am or das coisas invisí­
como nos convida a ser amigos seus. Não estam os mais
veis’’ 7.
sós, jogados na existência sem saber porque, tem os por
No que concerne a afetividade, é verdade que o divino, amigo o am or cuja te rn u ra envolve nossa vida tôda. Pois
p o r si, excita sum am ente nossa devoção, m as não é m enos
não se tra ta apenas da transform ação de nossos conheci­
verdade que, sendo tal a nossa fraqueza, precisam os de m entos sôbre Deus, mas de um a transfiguração de nossa
adm inículos sensíveis p ara am ar a Deus; em verdade, m uito vida m oral.
m ais nos comove contem plar a m anjedoura ou o crucifixo,
N essa nova perspectiva, a tese seria a auto-suficiência
do que m ed itar sôbre os atrib u to s m etafísicos da deidade.
do hom em capaz de construir sòzinho sua vida; dono ab­
O pendor pela idolatria e a superstição provém dessa neces­ soluto de seu destino, refutando em conseqüência tôda in­
sidade de atingir o espiritual através do corpóreo. E nquan­ terferência do alto, pois a com pleta autonom ia elimina qual­
to Moisés no cum e do Sinai recebia as revelações de Javé, quer heteronom ia.
os hebreus n a planíce obrigavam a Aarão a que lhes fizesse
A antítese seria a form ulação do desespêro do homem
um deus que cam inhasse diante dêles: o vitelo de ouro (Êx
32,1). _ diante de seus contínuos m alogros na construção de uma
personalidade totalm ente livre; desespêro que o leva a ator­
Não só o intelecto e a afetividade do hom em senão a
doar-se, a fugir, esquecer, levar vida inautêntica.
m esm a vontade sente o fascínio da m atéria. "O homem,
_ A síntese seria a divinização do^ hom em pela encarna­
escreve o do u to r angélico, havia abandonado o espiritual, pa­
ção redentora. O Verbo divino revestiría a condição hum a­
ra se entregar p o r inteiro às coisas corpóreas. Por si só não
na, p a ra nos fazer partícipes de sua condição divina. No
logra delas se desprender a fim de chegar-se a Deus; então
ofertório de cada m issa a liturgia exalta a dignidade do ho­
a divina sabedoria que o houvera criado, assum iu a natureza
mem ao sair das m ãos do criador — “m irabiliter condi-
corpórea do hom em , p ara visitá-lo — degradado pelas coisas
d isti’’, dignidade adm irável que consiste em te r sido Adão
corpóreas — e chamá-lo, pelos m istérios corpóreos de Cris­
plasm ado à im agem e sem elhança de Deus. Dotado, como
to, às realidades esp iritu ais’’ (Comp. theolog. c. 201). Linhas
seu Criador, de inteligência e de vontade, Adão podia em
serenas a p in ta r u m quadro altam ente d ram ático : o hom em
conseqüência, governar a p ró p ria vida, dom inar a natureza
após a vida espiritualizada do paraíso, na qual a sensibili­
e, mais ainda, conhecer e am ar o Criador. Em panada, poluí­
dade obedecia à razão, despenha-se num precipício; a vida
da, pelo pecado original, essa dignidade foi reparada de
religiosa e m oral encontra-se subjugada pela m a té ria : ido­
modo mais adm irável ainda — "m irabilius refoxm asti”.
latria, depravação; o m esm o êrro, o m esm o vício eram divi-
O Verbo se encarnara; Cristo não é apenas, como Adão,
nizados (e o são novam ente). Sem embargo, a hum anidade,
imagem longínqua de Deus. Cristo é Deus. E êsse Deus
7 P r e f á c io daa m is s a s de N a ta l.
hum anado cham a todos seus irm ãos em hum anidade, a p ar­
tilh ar sua divindade. A m esm a m aravilha canta de nôvo a
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liturgia nas vésperas da oitava de N atal: " ó adm irável alma, por privilégio indevido, sc unirá ao conipanliciio de
perm uta! O C riador do gênero hum ano tom ando um corpo outrora; juntos novam enle, irão ao encontio do suprem o
anim ado, dignou-se nascer da Virgem, e, hum anando-sc nos Juiz, qúe' trib u tará aos justos algumas das qualidades do
conceder a sua divindade”. corpo glorioso. .
Quem recorre ao evolucionismo tran sfo rm ista p ara ex­ Maior bcnifício — sóbre o plano sobrenatural — divimza-
plicar ci origem do corpo humano, en co n trará sobejos mo­ ção da alma. E sta nos é revelada sob várias fórmulas, a
tivos de adm iração. Com que cuidado a Providência res­ mais encontradiça e profunda é a filiação divina. "Deu-lhes
guarda durante milênios a semente da qual desabrocharia, o poder de virem a ser filhos de Deus (Jo 1,12).
no Éden, aquela flor de hum anidade: Adão. A quantos Filiação que não é fundada sôbre um a ficção jurídica
cataclism as escapou, quantas insídias venceu na luta pela mas sôbre a com unicação real da vida filial de Cristo: Eu
sobrevivência! Tão freqiientes e perigosas as ocasiões de vim para que tenham a vida e a tenham mais abundante­
aniquilam ento, tão frágil e precário o germ e. Q uantas es­ m ente" (Jo 10,10). Mas como conseguir esta vida? Pela ade­
pécies vegetais e anim ais pereceram à b eira do interm iná­ são ao Filho encarnado: "Aquêle que crê tem a vida eter­
vel cam inho que, da prim eira célula viva, chegou ao corpo na” (Jo 6,47).
humano. Mas Deus velava, e sua providência dirigia com Que vida? A vida eterna do Deus uno e trino, a ser vivi­
mão segura essa evolução, porque um dia seu Filho se faria da por nós não apenas depois da m orte, mas desde já no
carne e h ab itaria entre nós. Os m ais entusiastas en tre os seio da banalidade c o tid ian a: "Se alguém me ama guarda­
assertores da dignidade do homem jam ais sonhariam com rá a m inha palavra, e meu Pai o am ará, e virem os a êle, e
um privilégio igual. (Pelo contrário, contentam -se com fazer nêlc farem os m o rad a” (Jo 14,23). O cristianism o faz do ho­
do homem um m acaco aperfeiçoado). mem o templo da Santíssim a Trindade; não já tem plo ma­
C onseqüências: E sta irrupção de Deus no seio da espé­ terial, inerte, senão tem plo vivo. Chamado a viver no seio
cie hum ana, ou seja esta ação da T rindade unindo um indi- da Trindade, pela fé e o am or, antecipando dêste modo a
V*.^lü esP^c^e hum ana ao Verbo eterno, além das conse­ vida do além.
quências sobrenaturais, afeta tanto o corpo quanto a alma, Êsse convite, feito p o r Cristo, tem o m aior alcance so­
ainda sôbre o plano natural. Nosso corpo deve à E ncarna­ cial, pois não é um indivíduo isolado, nem mesmo um grupo
ção, o privilégio de ressuscitar no fim dos séculos. En­ privilegiado que Jesus cham a a levar vida divina, m as todos
quanto a alma, como espírito que é, desconhece a morte, os homens sem exceção alguma ( lTim 2,4), êle veio fun­
o corpo é, p o r natureza, m ortal. A violência, a doença, a dar um reino baseado sôbre a fraternidade universal: todos
simples velhice destroem ou desgastam o equilíbrio físico- filhos de Deus, logo todos irm ãos; todos regidos por uma
-quimico que condiciona a vida corporal. Se Deus criou lei suprem a: o am or (Jo 13,34; 15,12). "Um preceito nôvo
im ortal o corpo de Adão foi puro privilégio milagroso. vos d o u : que vos ameis uns aos outros como eu vos amei;
erdido êste pelo pecado original ("Da árvore da ciência assim tam bém amai-vos m ütuam ente. Nisto todos conhe­
do bem e do mal não com erás porque no dia em que dela co­ cerão que sois m eus discípulos, se tiverdes am or uns para
meres, certam ente m orrerás" (Gên 2,17) havia Deus dito com os outros” (Jo 13,34). "Ê ste é meu preceito, que vos
a Adão) Deus deixa o corpo hum ano seguir as leis de sua ameis uns aos outros como eu vos am ei” (Jo 15,12).
própria natureza. Io d o s somos votados à dissolução da Vida cristã não é alienação ou fuga. Como Cristo não
carne que denom inam os m orte. N ada postula o retorno recusou, em bora Deus, de ser carpinteiro, assim o homem
a vida. Pura generosidade de Cristo q u erer fazer os ho­ divinizado não renuncia a qualquer de suas tarefas huma­
mens participes de sua Ressurreição. No fim do m undo a nas; dá-lhes apenas sentido e alcance mais profundos, pois

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nelas vê outros tantos meios de encam inhar as realidades "Jesu s”, em hebraico "Jehoshua”, significa: Javé salva. Aos
terrestres a Cristo e, por êle, a Deus: " . . . q u e r o mundo, pastores diz o anjo: "Nasceu-vos hoje um Salvador que é
quer a vida, quer a m orte, quer o presente, quer o futuro, o Cristo Senhor” (Lc 2,11).
tudo é vosso; m as vós sois de Cristo e Cristo c de Deus” Aos apóstolos declara o mesm o Cristo — desvendando
( ICor 3,22). a finalidade de sua vinda ao m undo: "O filho do homem
não veio p ara ser servido, mas para servir e dar sua vida
em redenção de m uitos” (M t 20,28). "O filho do homem
O m otivo da Enóamaçüo veio para p ro cu rar e salvar o que estava perdido” (Lc
19,10). O mesm o ensina João, o Evangelista: "Deus não en­
O que levou o Verbo a se un ir a nossa carne? — O seu viou seu Filho ao m undo para julgar o mundo, mas sim para
acendrado e incom preensível am or pelo hom em . Tal a p ri­ que o m undo seja salvo por êle" (Jo 3,17).
m eira resposta. Mas nem porisso se nos aquieta o desejo No Tabor transfigura-se Jesus; aparecem Moisés e Elias,
de saber. P erguntam os: p o r que entre tan tas obras de am or p ara m o stra r que Cristo é o ponto de convergência das reve­
possíveis, Deus escolheu esta? Nem é pergunta ociosa; aju ­ lações sucessivas do Antigo Testam ento, o realizador das
da-nos a p en etrar-o sentido do m istério da Encarnação. Na prom essas divinas e das esperanças hum anas; ora, qual o
resposta à questão, deflagram-se as controvérsias teológicas. assunto do entretenim ento? Falam do m istério central da
De início, estas foram excluídas de nosso propósito. Longe vida de Jesus: "Falavam de sua m orte, que havia de ter
pois de nos em brenharm os nesse cipoal, vamos apenas p ro ­ lugar em Jerusalém ” (Lc 9,31).
curar, do m odo m ais simples e objetivo possível, circuns­ De S. Paulo recordarem os apenas um te x to : "Fidedigna
crever com exatidão o ponto em litígio e caracterizar as po­ e m erecedora de tôda aceitação é a palavra: que Cristo veio
sições contrastantes. ao m undo p ara salvar os pecadores, dos quais eu sou o p ri­
A que fim ordenou Deus a encarnação de seu Filho? A ( m eiro” (IT im 1,15). ■
resposta só pode vir da revelação. N enhum a necessidade N enhum teólogo nega que a encarnação tal como de fa­
obrigava Deus a se fazer homem; é ato gratuito, libérrim o. to se deu, visava nossa redenção. Todavia a E scritura não
Em conseqiiência, só Deus nos pode dar a conhecer o p ro ­ ensina claram ente que a redenção tenha sido o motivo ex­
pósito de sua vinda até nós. Ora a Sagrada E scritu ra liga clusivo da encarnação. Muito pelo contrário, textos h á em
constantem ente a encarnação à salvação do m undo. O cre­ que desponta outra m otivação: a glória de Cristo. Sirva
do que recitam os na m issa de cada domingo, proclam a que como exemplo o hino a Cristo da epístola aos colossenses:
o Filho p o r causa de nós e de nossa salvação desceu do céu, "Êle (C risto) é a imagem do Deus invisível, prim ogênito de
encarnou-se p o r virtude do E spírito Santo no seio da Virgem tôda criatura; porque nêle foram criadas tôdas as coisas,
Maria, e se fêz hom em ". Profissão de fé que compendia, as do céu e as da terra, as visíveis e as invisíveis: tronos,
condensa, num erosos textos do Nôvo Testam ento. Tarefa ” ' dominações, principados, potesta‘des; tudo foi criado por
intérm ina coligi-los todos; não só, m as tarefa inútil também, êle e para êle. Êle é antes de tudo, e tudo subsiste nêle.
com tal clareza é afirm ado o caráter salvador' da encarnação. Êle é a cabeça do corpo da Igreja; êle é o princípio, o p ri­
Citaremos apenas alguns textos, a modo de exemplo. A José m ogênito dos m ortos, para que êle seja em tudo o prim eiro.
o anjo diz. ela (M aria) dará à luz um filho, a quem porás E (ao Pai) aprouve fazer nêle h ab itar tôda plenitude, e por
o nom e de Jesus porque êle salvará o povo de seus pecados” êle reconciliar tudo para êle, pacificando, pelo sangue de
(M t 1,21). Sabem os que para os hebreus o nome expres­ sua cruz, por êle tôdas as coisas, assim as da te rra como as
sava a natureza, a razão de ser, a função de um a coisa. Ora do céu” (Col 1,15-20).
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Pareceria pois, que o m otivo da encarnação é complexo, primeiro lugar à "filantropia” divina, a saber, o a m or de
eníeixando pelo menos dois elem en to s: 1) redenção do gê­ Deus pelos homens.
nero humano; 2 ) excelência da encarnação como m anifesta­ D esarticulando por um artifício de dialética, o único e
ção suprem a da glória e perfeição divinas em Cristo. Todos simples e instantâneo decreto divino, poderiam os supor na
os teólogos adm item tal dualidade; separam-se todavia quan­ m ente de Deus a seqüência: criação, elevação do homem ao
do procuram determ inar qual o elemento decisivo. Seria estado sobrenatural; previsão do pecado de Adão; E ncarna­
a redenção? Neste caso, sem o pecado de Adão, ou seja, se ção reparadora. Donde se conclui que a vinda do Verbo es­
a hum anidade não carecesse de salvação, a Trindade não tá condicionada pelo pecado de Adão. Ainda hoje a maioria
teria unido à pessoa do Verbo um a natureza hum ana. Caso dos teólogos seguindo os passos de S. Boaventura e Sto. To­
contrário, ainda que Adão não houvesse pecado (ou mesm o, más adm ite a vinculação da E ncarnação à Redenção. E mos­
se houvesse pecado, mas Deus não o quisesse rem ir, ou ain­ tram que era sum am ente "conveniente" isto é, digno do
da, se o quisesse rem ir p o r outros m eios) em qualquer h i­ am or m isericordioso re sta u ra r pela encarnação redentora a
pótese o Verbo ter-se-ia hum anado. A prim eira opinião vê obra divina devastada pelo pecado, de modo que a criação
sobretudo em Cristo o Salvador, a segunda vê nêle so b retu ­ não resultasse num malogro.
do o rei da glória. A en ca rn ação : obra da m isericórdia ou E n tretan to já no século X II, o abade Ruperto de Deutz
m anifestação da excelência divina? defendia um a opinião nova segundo a qual o fim prim ário
Por vêzes formula-se o problem a sob form a condicional: foi a glória de Cristo. Opinião adotada por Alexandre de
se Adão não houvesse pecado, o Verbo ter-se-ia encarnado? Hales e Sto. Alberto Magno e sobretudo pelo insigne teó­
Form ulação inexata pois coloca em prim eira linha o que é logo franciscano Duns Escoto, que a fortaleceu com aquela
apenas conseqüência de um a opção anterio r acêrca do fim possante dialética de que detinha o segrêdo.
prim ário adequado da encarnação. Sob esta form ulação Na perspectiva escotista, Deus cria o universo para m a­
condicional a questão parece irreal. Sabemos que Adão de n ifestar a sua glória através de obras de amor. Mas a oni­
fato pecou, que Cristo de fato veio rem ir; pouco frutuoso potência que executa, realiza, a intenção divina, é guiada pe­
seria m u d ar pela im aginação os dados do problem a. Toda­ la sabedoria. Ora, a sabedoria exige um planejam ento ra­
via, ainda se nos colocamos sôbre o plano real, efetivo, con­ cional : em prim eiro lugar será visadó o fim a realizar, em
creto, da h istó ria religiosa da hum anidade, cabe um a in te r­ seguida, determ inado o fim, serão escolhidos ordenadam en­
rogação sôbre o fim da Encarnação; suposto que Deus de­ te os meios, começando pelo m ais apto a atingir o fim.
cretasse, como de fato decretou, a Encarnação redentora, Ora, é evidente que entre tôdas as criaturas, Cristo homem
resta ainda averiguar se o fim precípuo visado por Deus, avulta não só pela própria excelência quanto ao ser, mas
ao decretar tal Encarnação foi o bem da hum anidade ou a ainda pela capacidade de re trib u ir perfeitam ente o am or de
m anifestação da glória de Cristo. No prim eiro caso te re­ Deus pela- criatura. Cristo perfeito am ador rende sum a
mos que Cristo é prim ordialm ente o crucificado, no segun­ glória ao Pai. Meió mais apto de atingir a meta, será por
do, que êle é antes de tudo o rei da glória. tanto visado pelo criador antes de tudo mais. A êste meio
Ora, se perscrutam os a E scritu ra e a tradição, colhe­ tôdas as criaturas serão ordenadas, subordinadas, quer na
mos a im pressão que o fim prim ário da Encarnação é o bem ordem natural, quer na ordem da graça. Tudo existe para
da hum anidade. Alguns santos padres acentuam o caráter Cristo, rei dos anjos, rei dos cosmos, rei das almas. Sendo
redentor —• perdão dos pecados — outros o engrandecimen- o m ais perfeito, Cristo foi o prim eiro querido. Donde a
lo da espécie hum ana: Deus se torna homem para que o encarnação foi decretada em virtude da própria excelência,
homem se torne Deus; concordam todavia em atrib u ir o sem qualquer referência ao pecado de Adão. De fato Adão

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pecou, m as o próprio pecado red u n d ará na glória de Cristo realizando-os. Não. Em Deus não cabe qualquer m ultipli­
que o rem irá. Prim azia absoluta de Cristo, quanto à criação cidade ou sucessão de atos, mas um único ato eterno que
do m undo, à graça dos anjos, à graça de Adão inocente, à conhece, escolhe, decreta e realiza determ inada ordem de
graça de Adão penitente. Em consequência, o Verbo ter- coisas. M ultiplicidade, sucessão, devem ser procurados não
-se-ia encarnado independentem ente de qualquer condição; já no seio da inteligência e vontade divinas, m as tão só entre
logo em bora não houvesse pecado a rem ir; bem mais, em ­ os efeitos criados do único e eterno ato divino. Assim, por
bora não existisse criatu ra algum a a não ser êle, am ador exemplo, o general em chefe, lançando suas tropas ao ata­
perfeito do Pai, tributando-lhe, p o r êste am or, suprem a que, põe em movimento, por esta única ordem sua, um
glória. grande conjunto de agentes, m últiplos, sucessivos e inter­
C ontrastando dialèticam ente com a prim eira opinião dependentes. Ora, no que concerne a encarnação, a única
teríam os, na m ente divina, a seqüência: criação, encarnação, ordem de fato querida e realizada p o r Deus, a única que nos
elevação do homem ao estado sobrenatural, perm issão do foi revelada, vincula Encarnação e Rendenção. Por outras
pecado de Adão, redenção. O m otivo principal da encarna­ palavras, na "econom ia” ou ordem de coisas que conhe­
ção seria pois a glória de Deus pelo resplendor de seu cemos, o fim é a restauração da ordem p ertu rb ad a pelo peca­
Filho hum anado. . do, ou seja a salvação da hum anidade e a Encarnação é o
Escoto não só foi seguido pela escola franciscana, co­ meio m ais excelente de alcançar tal fim, de realizar a grande
mo po r um doutor da Igreja, S. Francisco de Sales e pelo obra de m isercórdia divina. Desta form a e não de outra
m ais exímio teólogo da Com panhia de Je s u s : Francisco Deus nos m anifestou sua glória. O único Cristo histórico
Suarez (em bora a quase totalidade dos jesuítas contem po­ é o crucificado; só êle é rei e centro do universo regenerado.
râneos não sigam o m estre neste ponto). Conquistou até Será frutuoso subm eter a única ordem real, a única reve­
célebre filósofo, M alebranche que, exagerando, ensinava que lada, a um tratam en to dialético visando dissociar Encar­
Deus era livre de criar ou não o m undo, m as tendo-o criado nação e Redenção, concretam ente vinculadas por Deus, e,
não podia deixar de decretar a encarnação, de outra sorte um a vez dissociadas, analisá-las em separado com o fito de
o m undo seria indigno de seu Autor. descobrir n a encarnação tal excelência, que ela passe a ser
Não se há de negar a grandiosidade do sistem a escotis- motivo adequado, logo fim absoluto dá vinda do Verbo; fim
ta. Se não o adotam os é p o r nos p arecer talvez menos apoia­ êste a ser realizado em qualquer hipótese? Perguntam :
do na E scritu ra e na tradição e sobretudo porque descrem os p o r ser m ais perfeito, Cristo não será o prim eiro querido
da dialética como meio de desvendar os divinos arcanos, ou na intenção divina, independentem ente de qualquer con­
seja, descobrir o m istéiio dos decretos que são obra da p u ra dição? A nosso m odesto parecer, cabe um a única resposta:
liberdade do Altíssimo. não sabem os nem tem os meios de sabê-lo. Deus é libérrim o
na distribuição de seus dons; nada o.constrange a preferir
um a ordem de coisas mais perfeita em si. Se nos obstinás­
A ordem da Encarnação semos na pesquisa, deixaríam os de p isar a te rra firm e da
ordem revelada, p a ra nos aventurar sôbre as areias move­
Devemos p recatar todo antropom orfism o; na presente diças das ordens conjecturais.
m atéria êle consistiría em im aginar um a sucessão real nas
volições divinas, m ultiplicando os atos de escolha: um refe­
rente ao fim a atingir, outro determ inando os meios que
levam ao fim, outro concatenando êstes meios e mais outro

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A prim azia de Cristo do fui criado por cie c para cic. Èlc é antes de tudo, e tudo
subsiste nêle” (1,16-17). . . .
H á quem receie rima dim inuição da glória e excelência O que é exato é que na perspectiva escotista torna-se
de Cristo, no fato de su bordinar a vinda do Verbo ao peca­ m uito mais fácil explicar a índole e a extensão dêsse p ri­
do do homem. P ura aparência à qual a dialética tenta dar mado. O teólogo escotista não experim enta qualquer difi­
consistência. 0 pecado não é fim senão m era condição; culdade p ara m o strar que Cristo é prim eiro de m aneira ab­
e p o r serm os nós homens beneficiários da Encarnação, soluta e universal no m undo angélico, no m undo material,
Cristo não deixa de ser fonte e modêlo de tôda santida­ no m undo hum ano, e em qualquer o utra ordem possível.
de, nem o fim do universo deixa de ser a glória de Cristo. Teologia nitidam ente cristocêntrica.
Glória não dim inuída senão acrescida pelos sofrim entos e Mais laboriosa a conciliação do prim ado com a encar­
a m orte de cruz. Com efeito, constitui suprem o motivo de nação redentora. Alguns teólogos tentam explicar que se a
glória p ara Cristo am ar a hum anidade ao ponto de dar sua encarnação se ordena à redenção, inversam ente a redenção
vida p o r ela, quando havia tantos outros meios, menos confere especial glória a Cristo cabeça da hum anidade re­
dolorosos de nos rem ir. Por isso o próprio Cristo diz antes dim ida, glória especial tam bém ao Pai das m isericórdias
da paixão: "Chegada é a hora em que o Filho do homem que m andou seu unigênito nos salvar. E m bora seja per­
será glorificado” (Jo 12,23). E depois da paixão: "Não feito am ador do Pai, Cristo não veio principalm ente por
era necessário que o Cristo padecesse essas coisas p ara êste motivo, m as sim a fim de ser fonte de graça p ara nós,
e n tra r na sua glória?” (Lc 24,26). E S. Paulo: "(C risto) encabeçar o im enso corpo m ístico cujos m em bros são os
humilhou-se, feito obediente até a m orte de cruz. Pelo que rem idos. Im p o rta contem plar e explicar a prim azia de
tam bém Deus o exaltou e lhe outorgou o nom e que está so­ Cristo à claridade que dim ana da cruz.
bre todo o nome. Para que, ao nom e de Jesus, se dobre todo O utros teólogos, am antes de artifícios dialéticos pro­
o joelho de quantos há nos céus, na te rra e nos abism os. E põem o u tra solução (talvez eivada de antropom orfism o).
tô d a língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, p ara glória Supõem que a onipotência do Criador vê as diversas combi­
de Deus Pai” (Flp 2,8-11). nações possíveis, ou seja as diversas ordens, os diversos
De resto, apiedar-se de nossa m iséria e salvar-nos, longe efeitos, que poderíam resu ltar do único ato criador. Io criar
de sub o rd in ar Cristo a nós, restitu i a ordem original, subor­ o m undo m antendo-o na p u ra ordem natural; 2? criar e ele­
dinando de nôvo o hom em a Deus de revoltado que era. var à ordem sobrenatural, pela graça, m as sem Cristo; 3?
criar e elevar, m as com Cristo e sem o pecado original;
De outro lado, a encarnação red en to ra patenteia a que
4? cria r e elevar com Cristo, mas perm itindo o pecado origi­
ponto chega a gratuidade do am o r divino (lJ o 4,10); m ani­
nal e não rem indo o hom em decaído. Deus descarta tôdas es­
festa m elhor sua onipotência e sua m isericórdia que o fi­ sas ordens possíveis, só lhe agrada um 5? tipo de ordem que
zeram não só tran sp o r o abism o ontológico, m as ainda o êle escolhe, decreta e realiza. De fato. Deus criou o homem
abism o m oral que opõe a santidade e o pecador. elevando-o à ordem sobrenatural, pela graça, perm itindo
H á quem pense que a prim azia de Cristo é um a dou­ o pecado original, reparando-o todavia pela m orte de seu
trin a escotista. Em verdade é m uito mais do que isso: a Filho, nosso redentor. D estarte, Cristo red en to r seria o
prim azia é um dado revelado que se im põe a todo e qual­ fim do próprio ato criador a todos os efeitos da ordem de
q u er teólogo. E sta d outrina reluz na E scritura. Já citamos fato escolhida p o r Deus, serão todos ordenados à glória de
acim a o hino cristológico de S. Paulo na epístola aos colos- Cristo. E sta glória de Cristo redentor se nos afigura muito
senses. B astará reco rd ar algumas frases do ap ó sto lo : "Tu­ m aior do que seria a glória de Cristo perfeito am ador do

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fa i, num mundo onde não haveria pecados a expiar. Com o homem contem pla o crucificado: aquêle corpo coberto de
afeito, m anifestar sua glória é, para Dèus, com unicar gra- feridas, dc escarros; aquela alma esm agada sob o fardo de
tuitam cntc sua bondade; ora, haveria bondade m aior do que nossos pecados — e sabe que doravante não está só pois
gsta: entregar à m orte seu Unigênito, p ara nos salvar? que o próprio Deus já provou aquela am argura, e continua
''Deus amou tanto o m undo, que entregou seu Filho unigê- a vivê-la no coração dilacerado dos homens.
pito, p ara que todo aquele que crer nêle não pereça, m as Na vigília pascal a Ig reja exalta a glória do Deus de
<:enha a vida etern a” (Jo 3,16). am or que nos deu um tal red en to r: "Ó inestimável excesso
O Deus de Aristóteles como dissemos narcisa-se na com- de teu amor! Para rem ir o escravo, entregaste o teu Filho!
tem plação jubilosa da p ró p ria excelência; do m undo (que Ó feliz culpa que m ereceu tal e tão grande R edentor!”
^le não criou) não se preocupa, nem mesmo o conhece: é
jndigno do interêsse divino. Síntese
O Deus de Israel, êste sim, conhece, ama, rege os sêres
que êle criou. Amor gratuito, extrem ado, cium ento: "Com Quem é Deus? Desejo espontâneo do hom em de conhe­
^terno am or apiedei-me de ti", diz Javé a seu povo (Is cer o além e de trav ar relações com êle.
54,8). Mas êste am or m isericordioso, esta piedade, não o Deus próxim o e Deus longínquo. Tensão entre duas
jevava ainda a p artilh ar o sofrim ento do homem. tendências an tagônicas: um a visa hum anizar Deus, a outra,
Pode um médico conhecer a fundo o mal de H a n se n : afastá-lo das criaturas. A prim eira, p ro cu ra um Deus con­
^tiologia, evolução, terap êu tica a em pregar etc. Conheci- creto com o qual possa trav ar relações íntim as; a segunda,
jpento verdadeiro, objetivo, precioso, indispensável até. Co­ ten ta salvaguardar o m istério. A oscilação entre am bas as
pio difere entretan to do conhecim ento que o leproso tem tendências aguça nosso desejo de um conhecim ento autên­
<je seu mal! E xperim entar, viver, aquêle lento apodreci- tico. Ora, só Deus poderia nos dizer o que êle é. E Deus
piento do corpo com suas dores e suas ân sias. . . Assim o falou.
peus de Israel conhece os m ales todos dos hom ens, m as O desejo de salvação. Nossa vontade aspira encontrar
,je m odo puram ente intelectual, objetivo. Não sofre, nem um a norm a suprem a de ação. Qual o sentido da vida?
jjode sofrer. Mas seu am or p o r nós era tão veemente, tão E sq uartejado entre a angústia e a esperança, o hom em for-
^xtremado, que êle se hum anou p ara conseguir o que sua seja em vão, p ara encontrar um a norm a de vida que o satis­
patureza divina não lhe podia d ar: partilhar, experim entar faça. Corrupção da sociedade pagã. O neo-platonismo e o
0S sofrim entos dos hom ens. desejo de salvação.
Ecce homo. Realiza-se o p arad o x o : Deus sofre, Deus A resposta de Deus. P ara Deus, am ar é dar; am or ple­
é o hom em das dores! O V erbo encarna seu júbilo divino nam ente gratuito. Deus escolhe um povo, para lhe confiar
pum coração de homem, p ara to rn a r suas as nossas dores, as verdades religiosas e m orais. Evolução do povo judaico.
<je sorte que pudéssem os en co n trar no seio da dor o júbilo Revelação da unidade divina face ao politeísm o. As infideli­
divino. Vai pois ao encontro do sofrim ento, p ara despo- dades de Israel. M etáforas-nupciais.
sá-lo: sente o pêso da existência, experim enta a dor, a po- O Messias. Os profetas, chefes religiosos do povo ju­
preza, o isolam ento, as contradições, a traição, o abandono, daico; vaticinam o advento de um ser m isterioso, que reali­
0 escárneo, o h o rro r da m orte, as ânsias da agonia. Asse- zaria as prom essas divinas: o Messias, grande esperança
pielhou-se a nós em tudo exceto no pecado. Dêste pecado de Israel. Revelação progressiva: o Messias rei, o Messias
pue êle não cometeu, êle assum iu a responsabilidade p ara servo padecente; o Messias escatológico. M essianismo polí­
pos ob ter perdão. A cabrunhado de males, físicos e morais,

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tico, na era de Cristo. Jesus m ostra reserva em relação ao
título de Messias; só o reivindica no dia dc Ramos e quando APÊNDICE
objurgado pelo sumo sacerdote. Repulsa do Messias pade-
cente p o r p arte dos judeus e dos m esm os apóstolos. — A
resposta de Deus aos anseios do homem, u ltrap assa as mais
loucas esp eran ças: o próprio Deus se encarna, para salvar Encarnação c Cosmos
a hum anidade prevaricadora.
Dialética da Encarnação. Tese: o Deus próxim o do pan- Diversas pessoas sc perLurbam com "a pluralidade dos
teísm o ou do politeísm o. A n títese: o Deus longínquo dos fi­ m undos habitados", e pedem esclarecim ento sôbre as conse-
lósofos. S ín te se: o Homem-Deus do cristianism o. Cristo é qüências dêsse fato para a doutrina cristã da encarnação.
hom em como nós, m as é tam bém o Verbo de Deus. Problem á­ Com grande pesar nosso, não podem os dar um a resposta
tica da vida m oral: Tese: a com pleta auto-suficiência do ho­ satisfatória. De fato, consideram os tôda resposta, tempo-
mem. Antítese: o desespêro do hom em que não consegue a rânea, prem atura, até que seja dem onstrado que nesses pre­
perfeita autonom ia. Síntese: a divinização do homem pela tensos astros habitados: a) a evolução das forças fisíco-quí-
encarnação redentora. micas resultou na produção da vida; b ) que a evolução des­
Conseqüência. ' A ressurreição dos corpos e a filiação ta vida levou à produção de sêres anim ais; c) que certos
divina são fru to s da encarnação. Doravante o hom em pode animais tenham tido um sistem a nervoso central bastante
p articip ar da vida trin itária. desenvolvido p ara poder servir de suporte à vida espiritu­
M otivo da Encarnação: A que fim ordenou o Pai, a al; d) qual a situação desses anim ais racionais frente a
Encarnação de seu Filho? A E scritu ra ensina a Encarnação Deus. Ora, hom em algum pode, no m om ento atual, dar uma
redento ra (pelo m enos como ela se deu de fato ) mas não resposta convincente a êstes quatro quesitos. Não passam
diz explicitam ente que a nossa salvação tenha sido o m oti­ de conjeturas. Temos pois que aguardar, com paciência,
vo exclusivo da vinda do Verbo ao mundo. Pelo contrário os progressos das ciências. Êstes são de tal modo espeta­
textos há que apontam como motivo, a glória de Cristo; m as culares, que talvez a espera não seja longa.
a E scritu ra não deixa bem claro qual o elem ento decisivo, Por ora, contentemo-nos em relem b rar a doutrina de
o fim precípuo ou prim ário. Donde a diversidade das opi­ S. Paulo sôbre as dimensões cósmicas da encarnação do
niões dos teólogos. O esco tism o : a E ncarnação foi decre­ Filho de Deus. Os contem porâneos do apóstolo ( quer ju ­
tada po r Deus, em virtude da pró p ria excelência; logo o m o­ deus, quer gregos) adm itiam a existência de espíritos (tro ­
tivo principal da E ncarnação foi a glória de Deus pelo res- nos, dominações, potestades, principados) que regiam o uni­
plendo r de seu Filho. verso; m alfazejos uns, dignos os outros de veneração e de
A ordem da Encarnação. A única ordem que nos foi culto. Na epístola aos colossenses, Paulo afirma) que
revelada, a única de fato querida e realizada p o r Deus, vin­ Cristo é em verdade, "Senhor”, dom inando de m aneira ab­
cula E ncarnação e Redenção. N ada obrigava Deus a esco­ soluta, não só o m undo sobrenatural, qual cabeça do Corpo
lher um a ordem de coisas, quiçá em si m ais perfeita. místico, m as ainda o mundo físico. "Êle é a imagem do
A prim azia de Cristo. Na E scritu ra reluz a prim azia Deus invisível, prim ogênito de tôda criatura; porque nêle
de Cristo. Como conciliá-la com a Encarnação redentora. foram criadas tôdas as coisas, as do céu e as da terra, as
Diversas soluções. Glória do Deus de am or que nos deu visíveis e as invisíveis: tronos, dominações, principados,
um tal redentor. potestades; tudo foi criado por êle e para êle. Êle é an­
tes de tudo, e tudo subsiste nêle. Êle é a cabeça do corpo
da Igreja; êle é o princípio; o prim ogênito dos m ortos, para
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que êJc seja em íudo o prim eiro. E (ao Pai) aprouve fazer
nele h ab itar tôda a p le n itu d e ...” (Col 1,15-19). È ste p oder
(o Pai) exerceu-o em Cristo, ressuscitando-o dos m ortos e
sentando-o à sua direita nos céus, acim a de todo principado,
potestade, virtude e dominação, e de tudo quanto tem nome,
não só neste século como tam bém no futuro. E sujeitou
tôdas as coisas a seus pés, e o fêz cabeça soberana de tôda
a Igreja, que é o seu corpo, a plenitude daquele que tudo CAPÍTULO II
em todos repleta (E f 1,20-22).
O DEUS-HOMEM
Na epístola aos filipenses parece S. Paulo dividir o
m undo em três partes, povoadas respectivam ente por se­
res celestes, sêres terrestres e sêres infernais, todos êles do­
m inados absolutam ente p o r Cristo, que celebra assim um Sinal de contradição
triunfo cosmológico. Como recom pensa de seu "aniquila­
m ento”, “Deus o exaltou e lhe outorgou o nome que é sôbre "Tôda a cidade se alvoroçou e dizia: quem é êste? E
todo o nome. P ara que, ao nom e de Jesus, se dobre todo o a m ultidão respondia: Êste é Jesus — o profeta — de Na­
joelho de quantos há nos céus, na te rra e nos abism os. E zaré da Galiléia" (M t 21,10). "Havia m uitos com entários a
que tôda lingua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, p ara respeito dêle entre as multidões. Uns diziam : Êle é bom;
glória de Deus P ai” (Flp 2,9-11). outros diziam : Não, êle seduz as tu rb a s” (Jo 7,12). "Origi­
nou-se um desacordo na m ultidão p o r causa dêle” (Jo 7,43).
Curiosidade, perplexidade e dissenção, assim poderiam os ca­
racterizar de um m odo geral, a atitude dos judeus, seus con­
tem porâneos, em relação a Cristo. Quando o próprio Jesus
interrogou seus ap ó sto lo s: "Quem dizem as m ultidões que
é o Filho do hom em ?” A resposta expressa bem a m ultipli­
cidade, a divercidade, a incerteza das opiniões: "Uns di­
zem que é João B atista; outros Elias; outros Jerem ias ou
alguns dos p ro feta s”. Jesus continua o interrogatório: "E
vós, quem dizeis que eu sou? Pedro tom ando a palavra dis­
s e : Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo". (Mt 16,13; Mc
8>27; Lc 9,18). O utros trechos dos evangelhos confirm am
o csfôrço que acabam os de citar. João B atista redivive, as­
sim opinava o te trarca H erodes A ntipas: "É João, a quem
degolei, que ressuscitou" (Mc 6,16; Mt 14,2). Outros, os es-
cribas — pretendiam que Elias outrora arrebatado vivo aos
céus, voltara como p recursor do Messias (2Rs 2,11; Mc
9, 11; c(\ Ml 3,23). Outros opinavam que Jerem ias ou
um outro entre os antigos profetas, ressuscitara. Outros
enfim, que Jesus era um profeta n ô v o : "Êste, verdadeira-
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m entc a ° Pr o *cla q ac há he v' r ao m undo" (Jo 6,14). "Da geração que passa cabe rep etir a pergunta: "Que dizem os
m ujt-jdão, alguns que escutavam estas palavras diziam: Ver­ hom ens do Filho do hom em ?” E as respostas continuam
dadeiram ente êste é o profeta. O utros diziam : Êste é o a ser diversas e opostas como no tem po de Cristo. O con­
Messias; m as outros replicav am : Acaso vem o Messias da traste vai do am or que leva a dar a vida por Cristo, à hos­
Galiléia? A E scritura não diz que o Messias há de vir da tilidade que levou um psiq u iatra — P. M arie — a escrever
linhagem de Davi e da aldeia de Belém, de onde era um a obra sôbre "a loucura de Jesus" e um erudito — Cou-
Davi?" (Jo 7,40). Além disso segundo a tradição popular, choud — a consagrar um a obra à dem onstração da não
o Messias perm anecería escondido até a sua m anifestação existência histórica de Jesus. Cumpriu-se à risca a profecia
gloriosa : "o Messias, quando vier, ninguém saberá de onde do velho Simeão: “Pôsto está ê l e ... para alvo de contra­
vem ” (Jo 7, 27). "Ora Jesus nasceu e cresceu entre nós em dição" (Lc 2,34).
Nazaré; não é êle o carpinteiro, filho de Maria, e o irm ão Como são possíveis tais divergências? A resposta é e só
de Tiago, de José, e de Judas e de Simão? E não vivem suas pode ser: Cristo é u m m istério de fé. Cada contato com a
irm ãs aqui entre nós?” (Mc 6,3; Mt 13,55; Lc 4,22; Jo 6,42). pessoa de Cristo obriga nossa inteligência a se defrontar com
N ada aparentava de transcendente; era um galileu como os o m istério, sob form a de paradoxos quase insustentáveis.
outros. Mas então, objetavam seus adm iradores, "como é Devemos pois to m ar posição, nos definir em relação a Cristo.
que, não tendo estudado, conhece êle as Escrituras?" (Jo Adesão, daquele que não vê, ao testem unho daquele que vê:
7,15). Donde lhe vem tam anha sabedoria e tal poder taurna- eis a fé. Sem dúvida, o próprio Cristo apelou para a fôrça,
túrgico? "Se êste não fôsse de Deus não poderia fazer nad a” fôrça com probatória dos milagres; são "sinais" sensíveis
(Jo 9,33; Mt 13,54). O próprio Messias poderia obrar m ila­ que atestam a verdade divina de.suas afirm ações. "E u tenho
gres tão portentosos? (Jo 7,31). Mas os opositores mais fer­ um testemunhio m aior que o de João, porque as obras que
renhos não se deixam convencer. Pelo contrário lançam m eu Pai m e deu a fazer, essas obras que eu faço, dão tes­
mão de um a explicação que constitui autêntico pecado tem unho de que o Pai m e enviou” (Jo 5,36). "As obras que
contra o Espírito Santo (Mc 3,29-30): apelam a satanás para eu faço em nom e de m eu Pai, essas dão testem unho de mim"
explicar os m ilagres feitos por Jesus. Êle é possesso; por (Jo 10,25). "Crede-me que eu estou n® Pai e o Pai está em
isso expulsa os demônios (Mc 3,22; Mt 9,34; 12,24; Lc 11,15; mim; ao m enos crede-o p o r causa das próprias obras".
Jo 7,20; 8,48-52). Ao que alguns contestavam : como poderia (Jo 14,11). Mas os m ilagres em bora garantam divinam ente
um possesso restitu ir a vista aos cegos? (Jo 10,21) a autenticidade da m ensagem de Cristo, e assim nos incli­
Seus parentes, igualm ente descrentes, porém mais benig­ nem a aceitá-lo, todavia não p ro jetam luz algum a sôbre o
nos recorriam à psico-patologia: “está fora de si, perdeu conteúdo desta m ensagem, o qual perm anece m isterioso.
ju ízo ” (Mc 3,21; Jo 7,5). O pró p rio João B atista por mo­ Quando Cristo proclam a que êle é o Filho de Deus en­
m entos parece ter estado perplexo; m andou seus discípulos carnado, os m ilagres atestam a veracidade da proclam ação,
interro g ar J e s u s : "És tu o que vem ou devemos esperar m as não aclaram de form a algum a o que seja ser Deus,
outro ?” (Mt 11,3; Lc 7,19). Mais e mais, se dividiam os ser Filho de Deus, encarnar-se. Essas verdades continuarão
espíritos à m edida que Jesus ia pregando sua doutrina e a ser escondidas. Será sem pre possível, em bora pecam i­
convidava os hom ens com m aior insistência a crer nele. noso, rejeitá-las, recu sar a sua adesão. "E m bora tivesse
A essa insistência os judeus respondiam com a insistência (C risto) feito no meio dêles (judeus) tão grandes sinais,
das p erg u n tas: "Até quando vais m anter-nos em suspenso? êles não criam nêle” (Jo 12,37).
Se cs o Cristo, dize-no-lo claram en te” (Jo 10,24).’ Os m ilagres e outros m otivos de crer, m ostram que a
E sta discórdia perdurou pelos séculos afora. A cada fé não é um a adesão irracional, m as não suprim em a fé,

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4. - M is té rio de C risto

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não substituem a crença pela evidência racional. O ato de revestiu p ara h ab itar entre n ó s: "O que ouvimos, o que
fé, ou seja, a adesão à verdade religiosa, não é a conclusão vimos com nossos olhos, o que contem plam os, o que nossas
necessária de um raciocínio rigoroso. Quando Pedro con­ m ãos apalparam tocando o Verbo da vida. . . ” (lJ o 1,1) " . . .
fessou que Cristo era o Messias, o Filho de Deus, Jesus Todo espírito que confessa que Jesus veio em carne, é de
louva-o: "Bem -aventurado és tu Simão B ar Jona porque Deus" (lJ o 4,2). "Levantaram-se no m undo m uitos seduto­
não foi a carne nem o sangue quem isto te revelou, porém res, que não confessam que Jesus Cristo veio em carne”
m eu Pai que está nos céus" (M t 16,17). A fé supõe, p o r­ (2Jo 7). Êsses heresiarcas se caracterizavam por um a opi­
tanto, um a intervenção divina: Deus revela, a saber, ilum i­ nião nitidam ente pessim ista sôbre a natureza da m atéria.
na, atrai, inclina. "Ninguém pode vir a m im se não o tro u ­ Tão pessim ista, que achavam indigno do Verbo assum ir um
xer o Pai que me enviou” (Jo 6,44). corpo m aterial; donde alguns afirm avam que o corpo de
Cabe ao hom em aceitar a luz divina. E sta aceitação Cristo era apenas um a aparência ilusória (daí a alcunha de
exige, p o r sua vez, certas disposições m orais, antes de tudo "docetas" que lhes foi dada); outros m antinham que o
a docilidade hum ilde, de sorte que bem longe de cerrar os corpo gerado p o r Maria, não era corpo hum ano, senão corpo
olhos à luz, o hom em abra os olhos e os m antenha abertos, etéreo, celeste, sideral; outros enfim adm itiam um corpo
em bora ofuscados; e bem longe de se fazer de mouco, escute de C risto m as negavam-lhe alma, esta seria suprida pelo
a voz divina. "A luz veio ao m undo e os hom ens am aram V erbo divino.
m ais as trevas do que a luz, porque suas obras eram m ás” A fim de proceder ordenadam ente, sirvam de ponto de
(Jo 3,19). "Aquêle que é de Deus ouve as palavras de Deus; p artid a de nossa pesquisa aquêles aspectos de Cristo mais
por isso vós não a ouvis, porque não sois de Deus" (Jo 8,47). fáceis de apreender. .
“P ara isto nasci e p a ra isto vim ao m undo, p a ra d ar teste­ Já referim os acim a a opinião dos que conviviam com
m unho à verdade; todo aquêle que é da verdade ouve a Jesu s: era um hom em como qualquer outro, nada apresen­
m inha voz” (Jo 18,37). tando de peculiar, antes de encetar sua carreira de predi-
Jam ais agradecerem os b astan te a Deus o term os nas­ cante (M t 13,54ss; Lc 4,22). Os evangelhos como prevendo
cido no seio da Igreja, que conserva in tacta a verdade so­ os espiritualism os esotéricos que se afirm ariam desde o
bre o Senhor Jesus. início do cristianism o, insistem em apresentar um Cristo
Com os olhos da fé vamos pois p erscru ta r os evange­ bem hum ano, bem concreto 1.
lhos, p a ra nos adentrarm os o m ais possível no m istério de
Cristo, Filho de Deus encarnado e nosso Salvador.

Realidade do corpo de Cristo

§ 1. A HUMANIDADE DE CRISTO Coligimos um a série de textos evangélicos, que nos aju ­


dam a fo rm ar um a idéia bem rica e viva da hum anidade
do Filho de Deus.
Cristo, hom em autêntico
1 E n s in a o V a tic a n o XX: “ C om o a n a tu r e z a h u m a n a a s s u m id a em C ris to
n ã o fo i a n iq u ila d a , p o r isso m e sm o ta m b é m em n ó s fo i e le v a d a a u m a d ig n i­
Logo ao alvorecer, teve o cristianism o que lu ta r contra d a d e s u b lim e . C om e fe ito , êle, o F ilh o de D e u s, p o r s u a e n c a rn a ç ã o , u n iu -s e
de a lg u m m odo a to d o hom em . T r a b a lh o u com a s m ã o s h u m a n a s , p e n so u
os que negavam a hum anidade de Cristo. S. João Evange­ com in te lig ê n c ia h u m a n a , a g iu com v o n ta d e h u m a n a , a m o u com c o ra ç ã o
hum ano. N a sc id o de M a r ia V irg e m , to rn o u - s e v e r d a d e ir a m e n te u m de n ó s
lista insiste em sua Ia epístola, sôbre a carne que o Verbo em tu d o , e x c e to n o p e c a d o ’1 (C o n s t. G a ttiliu m e t 3pea, n. 2 2 ).

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Como todo hom em Jesus nasce e m orre (M l 2,1; 27,50;
Mc 15,37; Lc 2,7; 23,46; Jo 19,30). Como todo homem êle
tem um corpo feito de carne e ossos (Lc 24,39).
Os evangelhos enum eram as principais p artes do corpo
de Cristo:
a) a Cabeça: “Q uebrando o vaso de alabastro, derram ou-
-Ihe na cabeça” (Mc 14,13) " . . . tecèndo um a coroa de es­
pinhos, puseram -lhe na cabeça” (M t 27,29) " . . . e inclinando
a cabeça, rendeu o esp írito ” (Jo 19,30).
b) o peito " . . . u m dos soldados atravessou-lhe com
uma lança o lado” (Jo 19,34). " ...e s te n d e tua mão e metc-a
no meu lado. . . " (Jo 20,27).
c) as pernas: ". . .chegando a Jesus como viram já m o r
1o, não lhe q u eb raram as p e r n a s ...” (Jo 19,33).
d) os pés: a pecadora "pôs-se atrás dêle (Jesu s) ju n ­
to a seus pés, chorando e começou a banhar-lhe com lágri­
mas os pés, e enxugava-os com os cabelos de sua cabeça, e
beijava-lhe os pés e os ungia com unguento” (Lc 7,38; Jo
12,3).
e) as mãos de Jesus são m uitas vêzes m encionadas nos
evangelhos. Mãos dadivosas, que obravam milagres, ora to­
cando o enfêrm o, ora tomando-lhe a mão, ora lhe impondo
as m ãos: "Ele lhes tocou os olhos, dizendo: Faça-se em
vós segundo vossa fé. E abriram-se-lhes os olhos” (M t9,29).
"Tocando-lhe a orelha, curou-o” (Lc 22,51). "Aproximando-
-se, tomou-a pela m ão e levantou-a; a febre deixou-a e ela
pôs-se a servi-los” (Mc 1,31). "Pôsto o sol, todos os que ti­
nham enferm os de várias m oléstias, lhes traziam , e êle, im­
pondo a cada um as mãos, curava-os” (Lc4,40; 13,13). Mãos
benfazejas que se levantam p ara abençoar: "levantando as
mãos - abençoou-os. E, -enquanto os abençoava, apartou-se
dêles e era levantado aos céus” (Lc 24,50). Mãos vigorosas
que socorrem Pedro a pique de se afo g ar: Logo Jesus
estendeu-lhe a mão e segurou-o, dizendo-lhe: Homem de fé
mesquinha por que duvidaste?” (Mt 14,31).
Mãos vingadoras, defendendo a santidade do te m p lo :
"Fazendo de corda um açoite expulsou-os todos do templo,
com as ovelhas e os bois, e derram ou o dinheiro dos cam ­
bistas e derrubou as m esas” (Jo 2,15).

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Mãos que rom pem o p ã o : “Tom ando os sete pães, dan­
do graças partiu-os e os deu a seus discípulos p a ra que os
servissem ” (Mc 8,6). "Tomou o pão e benzendo-o, deu-o a
êles” (apóstolos) (Mc 14,22). "Tomou o pão, benzeu-o, par­
tiu-o e deu-o a êles” (discípulos de Em aús) (Lc 24,30).
Mãos, em que os soldados rom anos colocaram um ca-
niço, para zom bar do im postor que se dissera rei (Mt
27,29-30).
Mãos trespassadas pelos cravos, cujas cicatrizes glorio­
sas serviram para p ersu ad ir os discípulos da verdade da
R essurreição (Lc 24,40; Jo 20,27).
f) vida de relação. Jesus locomove-se como qualquer
outro hom em : vai e vem, cam inha: "(João B atista) fitou
a vista em Jesus que p a s s a v a ...” (Jo l,3 6 ); viaja e atraves­
sa cam p o s: "Cam inhando êle através das searas em dia de
sábado" (Mc 2,23). Percorre as estradas da Galiléia (Mt
4,23) e da Judéia (M t 19,1; Mc 10,1; Jo 4,3); visita ci­
dades e povoados (Mc 6,6; 10,46; Lc 8,1; 13,22); vai e vem
da Galiléia a Jerusalém (Mc 10,32; Jo 5,1; 7,10); sobe e desce
colinas e m ontanhas (Lc 6,1247; Mc 3,13; Mt 5,1; Jo 6,15).
Nos últim os dias de sua vida, pernoita em B etânia e de m a­
nhã cedo volta a Jerusalém a fim de d o u trin ar o povo (Jo
8,1; 18,1; Mc 11,11-19; Lc 21,37; 22,39).
E n tra num a casa ou num a barca e delas sai (Mc 6,51;
7,24; 9,28; 13,1; Mt 8,14-23).
Senta-se e se levanta: "en tro u no dia de sábado na sina­
goga e levantou-se p a ra fazer a le itu ra . . . E, enrolando o li­
vro devolveu-o ao servidor e sentou-se” (Lc 14,17-20). "E s­
tando êle sentado em fren te ao cofre do te s o u r o ...” (Mc
12,41).
Ajoelha-se: "pôsto de joelhos, o r a v a ...” (Lc 22,41).
Prt>stra-se: .adiantando-se“um pouco prostrou-se so­
bre o seu rosto, o rando” (M t 26,39). "Adiantando-se urn
pouco, cai em terra, o r a n d o ..,” (Mc 14,35).
Curva-se e se ergue: “Jesus inclinando-se, escrevia com
o dedo em terra. Como êles insistissem em perguntar-lhe,
ergueu-se e lhes d is s e ... E inclinando-se de nôvo, escrevia
em te rra . . . Erguendo-se Jesus lhes disse” (Jo 8,6).
g) vida vegetaíiva. Dorme e se desperta: "enquanto na-

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vegavam, êle (Jesu s) adorm eceu” (Lc 8,23). "Dorm ia na i) Vida afetiva. Jesus am a: "Pondo nêle os olhos,
pôpa sôbre um trav esseiro ” (Mc 4,38). Levantou-se um fo r­ Jesus amou-o” (Mc 10,21). "Jesus am ava M arta e sua irm ã
te vendaval, e o barco perigou. E ntão os apóstolos "desper­ e Lázaro" (Jo 11,5). "Já não vos chamo s e rv o s ... m as digo
taram -no e disseram -lhe: M estre não te preocupa, perece­ a m ig o s ...” (Jo 15,15) “o discípulo que Jesus am ava” (Jo
mos? E êle, despertando, m andou ao v e n t o ...” (M c 4,37). 13,23; 19,26; 20,2; 21,7,20). Sente-se inundado de alegria
Sente fom e e sêde. "E, havendo jejuado q uarenta dias (Lc 10,21); se entristece ao ponto de ch o rar: "Vendo-a
e quarenta noites, no fim teve f o m e ...” (M t 4,2; Lc 4,2) (M aria) chorar, e vendo que tam bém choravam os judeus
" ...s a in d o êles de Betânia, sentiu fom e” (Mc 11,12; Mt que com ela vinham, comoveu-se profundam ente e contur­
21,18). bou-se, e disse: Onde o pusestes? Disseram-lhe: Senhor,
"Chega um a m ulher de Sam aria para tira r água. Jesus vem e vê. Jesus chorou. E ntão os judeus diziam : Como
lhe diz: Dá-me de beber" (Jo 4,7). ". . .p ara que se cum pris­ êle o am ava!” (Jo 11,33-35). "Ao ver a cidade chorou sôbre
se a E scritura, disse: Tenho sêd e” (Jo 19,28). ela. . . ” (Lc 19,41).
Em conseqüência, come e bebe: "A rdentem ente dese­ Admira-se: "Ouvindo-o (o centurião) Jesus, adm irou­
jei com er esta Páscoa convosco antes de p ad ecer” (Lc - s e . . . ” (Mt 8,10) "Jesus lhe disse (à cananéia): ó mulher,
22,15). "Tendes aqui algum a coisa que com er? Deram-lhe grande é a tua fé!” (M t 15,28).
um pedaço de peixe assado. E, tomando-o com eu diante Espanta-se: "Admirava-se da incredulidade dêles” (Mc
dêles" (Lc 24,41). S. Pedro na sua fala ao centurião Cornélio 5,6). Deseja: "A rdentem ente desejei com er esta Páscoa
alude a essa refeição : " . . . nós que com êle comemos e be­ convosco antes de padecer” (Lc 22,15).
bem os depois de ressuscitado dos m o rto s” (At 10,41). Encoleriza-se: "Êle, dirigindo-lhes um olhar i r a d o ...”
"Veio o Filho do hom em que come e bebe, e dizeis: É (Mc 3,5). ■
comilão e bebedor de v in h o ..." (Lc 7,34). "Ê ste acolhe os Apieda-se: "Tenho compaixão da m u ltid ã o ...” (Mc
pecadores e come com êles" (Lc 15,2). 8,2). "Vendo a m ultidão, enterneceu-se de compaixão por ela,
Cospe: "cuspiu no chão, fêz com a saliva um lôdo e un- porque estavam fatigados e prostrados como ovelhas sem
tou-lhe com o lôdo os o lh o s ...” (Jo 9,6; Mc 8,23). pastor" (Mt 9,36). "Vendo-a (a viúva de Naim) o Senhor,
Sua: "e seu suor tom ou-se como que grossas gôtas de compadeceu-se dela e lhe disse: N ão 'ch o res” (Lc 7,13).
sangue” (Lc 22,44). É corajoso. Em bora saiba o que o aguarda em Jerusa­
h) Vida sensorial. Sôbre a vida sensitiva de Cristo (vi­ lém, sobe resolutam ente à testa dos discípulos am edron­
da sensorial e vida afetiva) tem os fa rta docum entação tados : "Iam êles subindo p ara Jerusalém . Jesus cam inhava
evangélica. adiante, êles iam sobressaltados, e seguiam-no m edrosos”
Cristo olha em tôrno de si (Mc 10,23) fita demorada- (Mc 10,32; Lc 9,51).
m ente (Mc 10,21,27). Levanta os olhos ao céu (Jo 17,1) lê a Suspira: "Exalando um profundo suspiro, d i s s e ...”
E scritura: "E ntregaram -lhe um livro do pro feta Isaías, e, (Mc 8,12).
desenrolando-o, êle deu com a passagem que estava escri­ Comove-se e se c o n tu rb a : "Comoveu-se profundam en­
t o . . . ” (Lc4,17). Cristo ouve: "ouvindo Jesus o que êles te e conturbou-se" (Jo 11,34,38). "Agora m inha alm a sente­
referiam , d i z . . . ” (M c 5,36). Cristo sente o gôsto: "fixaram -se co n tu rb ad a” (Jo 12,27). "Dito isto, comoveu-se Jesus em
num a vara de hissope um a esponja em bebida no vinagre, seu e s p ír ito ..." (Jo 13,21). "Tenho de receber um batism o
e aproxim aram -lha da bôca. Quando provou o vinagre, dis­ e como me angustio até que êle se cum pra!” (Lc 12,50).
se J e s u s ..." (Jo 19,29). Cristo sente quando o tocam : "E No H ôrto das Oliveiras, "começou a sentir tem or e an­
Jesus disse: Quem me tocou?” (Lc 8,45). gústia, e lhes dizia: T riste está m inha alm a até a m orte"

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(Mc 14,33). "Cheio de angústia êle orava com m ais in stân ­ § 2. A DIVINDADE DE CRISTO
cia” (Lc 22,50). "Começou a entristecer-se e a angustiar-se”
(M t 26,37).
j) Vida intelectual. Lê, escreve (Lc 4,17; Jo 8,6-8). Sa­ . . .Cristo profeta?
be : "Como é que, não tendo estudado, conhece êle as Es­
c ritu ra s? ” (Jo 7,15). "Ensinava na sinagoga de m aneira que, Êsse Jesus, tão profundam ente hum ano — êle é como
adm iradas, as pessoas se d iziam : De onde lhe vem tal sa­ qualquer um de nós, diziam os galileus — comportava-se,
bedoria e tais prodígios?” (M t 13,54). D em onstrador da entretanto, por vêzes, como se não fôsse "qualquer u m ”.
alta intelectualidade de Cristo era o seu ensino nas sinago­ Por isso m esm o foi se tornando um a personagem enigmá­
gas (Lc 4,17; 6,6; 13,10; Mc 6,6; Mt 9,35; Jo6,59) e no tem plo tica.
(Jo 7,14; 8,20; Lc 16,47) bem assim como suas pregações às
Os judeus admiravam-se, dizendo: "Como é que, não
tu rb as (Mc 1,14; 2,2; 10,1; M t5,2).
tendo estudado, conhece êle as E scritu ras?” (Jo 7,15). Conhe­
k ) Vida volitiva. O próprio Cristo atesta que êle tinha ce diretam ente o pensam ento alheio, sem que alguém o ma­
um a vontade hum ana bem distinta da vontade divina: "Pai, nifeste; bem mais, conhece de longe. "Antes que Filipe te
se queres, afasta de mim êste cálice; m as não se faça a m i­
cham asse, quando estavas debaixo da figueira, eu te vi" (Jo
nha vontade, porém a tu a ” (Lc 22,42). E sta vontade era
1,48). "Jesus disse-lhe (à sam aritan a): D isseste bem : Não
fonte de atos contínuos de volição. "Vem a êle um leproso tenho m arido, porque cinco tiveste, e o que agora tens não
que, suplicando e de joelhos, lhe d iz : Se quiseres podes é teu m arido, nisto disseste a verdade. Disse-lhe a m ulher:
limpar-me. Enternecido, êle estendeu a mão, tocou-o e dis­ Senhor, vejo que és p ro feta” (Jo 4,17-19). "Conhecendo
se: Quero, sê lim po” (Mc 1,40). E stando p ara com pletar­ Jesus, no seu espírito, que êles assim discorriam em seu inte­
-se os dias de sua consumação, dirigiu-se êle resolutam ente rior, d is s e -lh e s ...” (Mc 2,8). "Enviou êle dois de seus dis­
a Jerusalém (Lc 9,51). Todos os atos de sua atividade m es­
cípulos e lhes d is s e : Ide à cidade e sair-vos-á ao encontro
siânica supõem vontade, em bora os evangelhos não a m en­ um hom em com um cântaro de água; segui-o, e onde êle
cionem explicitam ente.
entrar, dizei ao d o n o ...” (Mc 14,13).
Como fecho desta rápida enum eração, citarem os um Prevê o fu tu ro : "Jesus sabia désde o princípio quais
ato que envolve a criatura tôda, corpo e a lm a : a oração. eram os que não criam , e quem é que havia de entregá-lo”
"Pela m anhã, m uito antes de am anhecer, êle se levantou, (Jo 6,64). “Em verdade te digo que o galo não cantará antes
saiu, e foi p ara um lugar deserto, e ali orava” (Mc 1,35).
que três vêzes m e negues" (Jo 13,38). "Conhecendo Jesus
''Depois de os despedir, foi a um m onte o ra r” (Mc 6,46).
tudo quanto lhe ia suceder, saiu e lhes d i s s e . .. ” (Jo 18,4).
"Êle retirava-se a lugares solitários e dava-se à oração”
Grande taum aturgo, obra m ilagres num erosos e estu­
(Lc 5,16). P or aquêles dias aconteceu haver êle saído p ara
pendos : " . . . curando no povo tôda doença e tôda enfer­
a m ontanha a fim de rezar, e passou a noite orando a Deus”
(Lc 6,12) etc. midade. A sua fam a estendeu-se por tôda a Síria, e traziam-
-Ihe todos os que padeciam de algum mal, os atacados de
diferentes doenças e dores, os endem oninhados, lunáticos,
paralíticos, e êle os curava” (M t 4,23-24).
Cura até à distância, como aconteceu com o servo do
centurião (Lc 7,1-10), o filho do cortesão (Jo 4,46-54), a filha
da cananéia (Mc 7,24-30). Chega a ressuscitar três m ortos:
o filho da viúva Naim (Lc 7,11-15), a filha de Jairo (Mc 5,35­
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42), Lázaro (Jo 11,43-44; 12,17). Domina até os elementos: Pai, assim falo" (Jo 8,26,28); os m ilagres que êle obra con­
"Quem será êste a quem até o vento e o m ar lhe obedecem?" firm am a origem divina de sua m ensagem, são como um
(Mc 4,11). sêlo divino que autentifica a doutrina: " . . . essas obras que
Não espanta que os judeus tenham logo evocado os eu faço, dão em m eu favor testem unho de que o Pai me
antigos profetas, m orm ente Elias e Eliseu, que tam bém enviou” (Jo 5,36). " .. . a o menos crede-o por causa das
haviam ressuscitado m ortos, ao passo que transm itiam m en­ próprias o b ras” (Jo 14,11). "Se eu não tivesse feito entre
sagens divinas. Tanto mais que en tre os contem porâneos êles as obras que nenhum outro fêz, não teriam pecad o . . . ”
de Cristo, reinava a firm e esperança na vinda de um grande (Jo 15,24).
profeta que tudo restau raria e p rep araria o fim do mundo. Basta, entretanto, com parar o profetism o de Cristo com
Ê ste p ro feta seria ou um dos antigos, redivivos, p o r exem­ o de João B atista, p ara ver quanto aquêle transcende êste:
plo Elias (Ml 3,23; Mt 17,10) ou então aquêle nôvo e defi­ Jesus rep resen ta um caso único na história do profetism o.
nitivo p ro feta anunciado por Moisés: "O Senhor teu Deus João B atista apresenta-se-nos qual típico p ro feta do An­
suscitará do meio de ti, dentre teus irm ãos, um profeta tigo T estam ento: é escolhido por Deus p a ra desem penhar
como eu: a êle ouvireis” (Dt 18,15). Daí as perguntas um a m issão ju n to do povo eleito — p re p a ra r a vinda do
feitas ao B a tis ta :.., És E l ia s ? ... És o p r o f e ta ? ..." (Jo Messias. F inda a preparação, chegado o M essias só resta a
1,21). "Apoderou-se de todos o tem or, e êles glorificavam João desaparecer: "Preciso é que êle cresça e eu dim inua”
a Deus, dizendo: Um grande p ro feta levantou-se entre nós; (Jo 3,30). (E talvez sua perplexidade ta rd ia a respeito de
e Deus visitou o seu povo” (Lc 7,16). “V erdadeiram ente Cristo (Lc 7,9; Mt 11,2) tenha resultado da cessação do ca­
êste é o p ro feta que há de vir ao m undo” (Jo 6,14). "Quan­ rism a profético).
do êle en tro u em Jerusalém , tô d a a cidade se alvoroçou, e Cristo, ao contrário, tam bém foi enviado p o r Deus —
dizia: Quem é êste? E a m ultidão respondia: É Jesus, o pois é profeta — m as sua m issão não foi efêm era. Foi m an­
profeta de N azaré na Galiléia” (M t 21,10). E os discípulos dado p o r Deus p a ra salvar os hom ens e realizar as prom es­
de Em aús lam entavam -se: "Jesus Nazareno, varão profeta sas feitas p o r Deus ao povo eleito. Nôvo Moisés (At 3,22)
poderoso em obras e palavras diante de Deus e diante de êle celebraria um a nova Páscoa e guiaria, chefiaria, um
todo o povo” (Lc 24,19). S. Pedro e Sto. Estêvão aplicavam nôvo Êxodo — faria o povo passar dó cativeiro do m undo
explicitam ente a Cristo o texto de Moisés acima citado (At pecam inoso até a nova e verdadeira T erra da Prom issão:
3,22; 7,37). O próprio Jesus se declarou abertam ente p ro ­ o seio do Pai (Jo 13,1). Nôvo Moisés que nos daria na sua
fe ta : "Jesus lhes dizia: N enhum p ro feta é tido em pouco Cruz um sinal e um meio de salvação, como o u tro ra no deserto
senão em sua p átria e entre seus parentes e em sua casa” a serpente de bronze (N úm 21,4,9; Jo 3,14); que nos obteria
(Mc 6,4). ". . .não pode ser que um pro feta pereça fora de o verdadeiro m aná, pão descido do céu (Jo 6,30,58), patua-
Jerusalém ” (Lc 13,33). ria a Aliança definitiva entre Deus e os hom ens (H eb r 3,lss).
Como os profetas- de antanho, Cristo não fala por ini­ Mas bem longe de colocar sua pessoa em lugar provisó­
ciativa própria, êle foi enviado p o r D eu s: "Deus não enviou rio, subalterno, êle afirm a de si predicados a que nenhum
o Filho ao m undo p ara julgar o m undo, m as sim p ara que outro profeta ousou pretender, tais como p erd o ar os peca­
o m undo seja salvo por êle" (Jo 3,17; cf. Jo 3,34; 6,29,38; dos (Mc 2,7; Lc 7,49), êle mesm o isento de pecados (Jo
7,29,33 etc.; Lc 10,16; 9,48; Mc 2,37; Mt 10,40). 8,46); ser o dono do sábado, dia do Senhor (Mc 1,27; Jo 16,
A do u trin a que ensina não é invenção sua, mas êle reve­ 11); ser juiz universal (Mt 19,28; 24,30; 25,31; Jo 5,22);
la o que ouviu do P a i: "é veraz aquêle que me enviou, e eu salvador do m undo (Jo 3,17; 4,42; 11,52; Mc 10,45; Lc 19,10;
falo ao m undo o que dêle ouço” . . . "segundo me ensinou o Mt 9,13; 26,28); exigindo dos seus entrega total a êle: fam í­

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lia (Lc 9,59-62; Mc 10,28), riquezas (Mc 10,21; Mt 8,20); a r­
ro sta r perseguições (Lc 6,22; 21,12; Mt 10,17ss; Jo 16,2), De i’esto Cristo, na sua declaração solene ao sumo sa­
dar até a própria vida (M t 10,39; 16,25; Mc 8,35; Lc 9,24). cerdote, refere-se explicitam ente ao p ro fe ta : “Eu vos digo
Se João B atista é "m ais do que um p ro feta” (M t 11,9) que que um dia vereis o Filho do hom em sentado à direita do
será, então, Cristo? poder e vir sôbre as nuvens do céu" (M t 26,64).
Se êle não só diz a verdade, como todo profeta, m as sc Porém o mesm o Cristo em prega o título para designar
êle é a verdade (Jo 14,6) isto só pode significar que Cristo a sua condição hum ana, com as suas hum ilhações e seus
não é um simples arauto ou m ensageiro da verdade divina, so frim en to s: "O Filho do homem não veio para ser servido,
m as que esta verdade se identifica com a pessoa dêle, por mas p ara servir e dar sua vida em redenção de m uitos" (ML
o u tras palavras, em Cristo a verdade divina, a Palavra, sc 20,28).
encarna. "Eu vim como luz do m undo, para que todo aquê- O evangelho de S. Marcos indica bem êste duplo aspeto,
le que crê em mim não perm aneça nas trev as” (Jo 12,46). transcendente e humilde, da noção. O Filho do hom em tanto
C rer na pessoa de Cristo é crer n a verdade; é, por ela, sal­ tem origem celeste, que perdoa os pecados (Mc 2,10) e dis­
var-se; descrer é condenar-se. "Aquêle que crê no Filho tem põe do sábado a seu bel-prazer (Mc 2,28). Em com pensa­
a vida eterna; e o que recusa crer no Filho não terá a vida, ção, p o r três vêzes o segundo evangelho anuncia os sofri­
m as a cólera de Deus sôbre êle pesa" (Jo 3,36). Portanto m entos do Filho do hom em : "Começou (Jesus) a ensinar­
o p ta r por ou contra Cristo, equivale estritam ente a o p tar -lhes como era preciso que o Filho do homem padecesse
p o r ou contra D eu s: "quem m e rejeita, rejeita aquêle que m u i to ...” (Mc 8,31). "Ia ensinando os discípulos, e lhes
m e enviou" (Lc 10,16; Jo 3,23). "Aquêle que me odeia, tam ­ dizia: O Filho do hom em será entregue em mãos dos ho­
bém odeia meu Pai” (Jo 15,23). mens, e hão de m a tá -lo ...” (Mc 9,31). "Começou êle a
Somos tentados a re p e tir a interrogação de Nicode- declarar-lhes o que lhe havia de suceder: Subimos a Jerusa­
m os: "como pode ser isso?" (Jo 3,9). Talvez nos facilite lém, e o Filho do homem será entregue aos príncipes dos sa­
a resposta, analisar dois títulos que Cristo reivindicava com cerdotes e aos escribas que o condenarão à m orte e o entre­
m ais insistência: Filho do hom em e Filho de Deus. garão aos g e n tio s ..." (Mc 10,32-33). Êsses prenúncios da
Paixão estão ligados à figura do servo padecente de Javé,
anunciado por Isaías e que estudarem os em nosso capítulo.
O Filho do hom em Jesus mesm o liga, funde, as duas insignes profecias sôbre o
Messias.
É o título pelo qual Jesus m ais freqüentem ente desig­ S. João prefere ressaltar o aspecto transcendente, di­
nava a si mesmo nos sinóticos (60 vêzes). Título algo m is­ vino, do Filho do homem. No Apocalipse escreve: "Eis
terioso, aliás. À prim eira vista lem brava enigmática perso­ que êle vem nas nuvens do céu. . . No meio dos candelabros
nagem da profecia de D aniel: "E u estava olhando nas m i­ vi como um Filho de homem, vestido de um a túnica e com
nhas visões da noite, e eis que vinha nas nuvens do céu um o peito cingido por um cinturão de ouro. A sua cabeça
como Filho do h o m em : e dirigiu-se ao Ancião de dias, e o e os cabelos eram brancos como a lã branca, como a neve;
fizeram chegar até êle. E foi-lhe dado o domínio e a honra, os seus olhos, como cham as de fogo; os seus pés, sem elhan­
e o reino, p ara que todos os povos, nações e línguas o ser­ tes ao bronze, como incandescente no fôrno, e a sua voz co­
vissem : o seu domínio é um dom ínio eterno, que não pas­ mo a voz de m uitas águas. Tinha na d estra sete estréias, e da
sará e o seu reino o único que não será destruído” (Dan sua bôea saía um a aguda espada de dois gumes, e o seu aspe­
7,13-14). to era como o sol, quando resplandece em tôda sua fôrça"
(Apoc 1,13-16).
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No seu evangelho, igualmente, S. João insiste sôbre o S. Lucas na sua genealogia de Jesus, vai rem ontando o
aspeto glorioso do Filho do hom em : "Em verdade, em ver­ curso do tempo, de filho a pai, até chegar a "Adão, filho
dade vos digo: vereis abrir-se o céu, e os anjos de Deus subin­ de Deus” (Lc3,38). Ora, é evidente que Set é verdadeiro
do e descendo sôbre o Filho do hom em ” (Jo 1,51). "À m a­ filho de Adão, porque êste o gerou; em com pensação Adão
neira como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é não foi gerado por Deus, logo não m erece ser cham ado
preciso que seja levantado o Filho do homem, p ara que todo "Filho de Deus”, no mesm o sentido da palavra. Pode, en­
aquêle que crer nêle tenha a vida etern a” (Jo 3,14-15). "E s­ tretanto, ser dito "filho” pois, em bora Deus não lhe haja
forçai-vos, não pelo alim ento que perece, mas sim pelo ali­ com unicado a própria natureza, chamou-o à existência, plas­
m ento que perm anece p ara a vida eterna, aquêle que o Filho mou-o à imagem e sem elhança sua.
do hom em vos dará, porque Deus Pai o assinalou com o seu No Antigo Testam ento várias vêzes é indicada um a pa­
sêlo” (Jo 6,27). "Chegada é a hora em que o Filho do homem tern id ade coletiva de Deus, que se estende ao conjunto do
será glorificado” (Jo 12,23). "Agora o Filho do homem foi povo hebraico. Moisés, por exemplo declara ao faraó: "As­
glorificado e Deus foi glorificado nêle. Se Deus foi glori­ sim diz o Senhor: Israel é meu filho, meu prim ogênito e
ficado nêle, Deus tam bém o glorificará em si mesmo, e o eu tenho dito: Deixa ir o m eu filho, para que m e sirva;
glorificará em breve" (Jo 13,31-32). m as tu recusas-te a deixá-lo ir; eis que eu m atarei a teu filho,
Função principal, específica do Filho do hom em parece o teu prim ogênito” (Êx 4,22-23). Ao próprio povo israelita
ser, segundo os evangelhos, a de Juiz dos vivos e dos m or­ diz M oisés: "Filhos sois do Senhor vosso Deus” (D t 14,1).
tos : "Quando o Filho do hom em vier em sua glória, e todos E ssa paternidade divina im plicava serviço obediente da par­
os anjos do céu com êle, sentar-se-á no seu trono de glória te do povo e favor especial da p arte de D eus: "sou um pai
e reunir-se-ão em sua presença tôdas as nações, e êle sepa­ p ara Israel” (Jer31,9).
ra rá uns dos o u t r o s ...” (M t 25,36-46). "Deu-lhe (o Pai ao Pai do povo eleito em conjunto, Javé seria Pai mais
Filho) poder de julgar, porquanto êle é o Filho do hom em " p articu larm en te do chefe do povo, do rei.
(Jo 5,27). Javé prom eteu a Davi que Salomão lhe seria filho
Em suma, aplicando a si mesmo o título profético de (2Sam 7,14). Claro que a relação de* paternidade convém,
Daniel, Jesus afirm ava, a um tem po, que êle era um ser di­ a falar propriam ente, a Davi somente, pois só êle gerou
vino, celeste. Senhor de tudo e um verdadeiro hom em ca­ Salom ão. Mas podem os entendê-la num sentido m ais lato,
paz de so frer e de m orrer. significando um a intim idade m aior, um favor especial, que
u n iria Javé ao rei de Israel (cf. SI 89, Vulg 88).
O Filho do Pai À prim eira vista podería ser entendida desta sorte a
filiação divina de Jesus, prom etida à M aria pelo anjo da
Ser filho de alguém no sentido pleno da palavra, é ser A nunciação: “Êle será grande e cham ado filho do Altíssimo,
trazido à existência p o r êle, através de um ato — a geração e o Senhor Deus dar-lhe-á o trono de Davi seu p a i. . . " (Lc
— transm itindo a p ró p ria natureza do genitor. Todavia, o 1,32). Foi sem dúvida neste sentido que os judeus in ter­
conceito de “filiação" pode ser em pregado em sentido lato. p reta ram as palavras vindas dos céus quando o batism o de
A filiação adotiva, p o r exemplo, é um a ficção ju ríd ica gra­ J e s u s : “Êste é meu Filho m uito amado, em quem tenho
ças a qual o filho adotivo usufrui dos direitos do filho n a­ m inha com placência” (M t3,17). "Filho de Deus” seria em
tural, sem que haja, entretanto, com unicação de natureza, sum a um equivalente de Messias, dito Filho de Deus porque
logo, geração. suscitado por Deus e p o r êle favorecido m ais do que qual-

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quer outro hom em . . . . há aqui algo mais do que Salo­ 3,13,31) enviado pelo Pai (Jo 6,29,38) para salvar o mundo
m ão. . . há aqui algo m ais do que Jonas” (Lc 11,32). (Jo 3,17) não só preexiste à Encarnação — pois existia antes
E ntretanto, um a análise m ais profunda, e sobretudo as do B atista (Jo 1,15) e do próprio Abraão (Jo 8,58) — mas
declarações form ais do 4? evangelho, nos levam a um con­ preexistia à criação do universo: "Agora tu, Pai, glorifica-me
ceito de "filiação divina” m uito mais rico, único até, porque junto de ti mesmo com a glória que eu tive junto de ti
fundado sôbre a perfeita unidade de natureza do Pai e do antes que o m undo e x istisse ... porque me am aste antes da
Filho. E ntre nós hom ens, o pai é m uita coisa além de pai, criação do m undo” (Jo 17,5,24).
e o filho, do mesm o modo, é m uita coisa além do filho. No Segue daí que o Filho está no Pai e o Pai está no Filho:
evangelho, ao contrário, Pai e Filho parecem nada ser além "Crede-me que eu estou no Pai e o Pai em m im ” (Jo 14,11 ).
de pai e filho, existem em função um do outro; " . . . e u " . . . Crede nas obras, para que saibais e conheçais que o
vivo pelo P ai” (Jo 6,57). "O Pai am a o Filho e em suas mãos Pai está em m im e eu no P ai” (Jo 10,38). Im anência m útua
pôs tôdas as coisas” ( Jo 3,35). "Meu alim ento é fazer a que m anifesta a unidade de natureza: "Eu e o Pai somos
vontade daquêle que m e enviou e acabar a sua o b ra” (Jo um só ” (Jo 10,30). “Quem me viu, viu o Pai" (Jo 14,9).
4,34). "O Filho nada pode fazer por si mesmo, senão o que Impossível declarar de modo mais claro e perem ptório,
vê o Pai fazer; p orque o que êste faz fá-lo igualm ente o Fi­ que Cristo, Filho de Deus é Deus. Por isso Jesus podia,
lho” (Jo 5,19). "Não crês que eu estou no Pai e o Pai está sem blasfem ar, apropriar-se do nome privativo de Deus,
em mim? As palavras que vos digo não as falo p o r m im revelado a M oisés: "E ntão disse Moisés a Deus: "Eis
mesmo; o Pai, que h ab ita em mim, êle faz as obras" (Jo que quando vier aos filhos de Israel, e lhes disser: O Deus
14,10). "Assim como o Pai tem a vida em si mesm o, assim de vossos pais me enviou a vós; e êles me d isserem : Qual
tam bém deu ao Filho te r a Vida em si m esm o” (Jo 5,26). é o seu nome? Que lhes direi? E disse Deus a Moisés:
Ninguém conhece quem é o Filho senão o Pai, e quem é o Eu sou o que sou. Disse m a is : Assim dirás aos filhos de
Pai senão o Filho" (Lc 10,22). Israel: Eu sou me enviou a vós” (Êx 3,13-14). E Jesus
Essa identidade de conhecim ento é possível p o r estar disse: "Antes que Abraão nascesse Eu s o u . . . ” (Jo 8,58).
o Filho ju n to do Pai, penetrando-lhe todos os segredos: "Não Se não crerdes que E u sou, m orrereis „em vossos pecados.. .
que alguém tenha visto o Pai, a não ser aquêle que está em Quando levantardes ao alto o Filho do homem, então co­
Deus, êsse viu o P ai” (Jo 6,46). “ . . . é veraz aquêle que me nhecereis que Eu s o u ..." (Jo 8,24-28). Tão clara era a rei­
enviou e eu falo ao m undo o que dêle o u ço . .. não faço n a­ vindicação da divindade que os judeus tentam lapidá-lo (Jo
da p o r m im mesm o, m as segundo me ensinou o Pai” (Jo 8,59) e explicam : "por nenhum a obra boa te apedrejam os,
8,27,28). "O Pai am a o Filho e lhe m ostra tudo o que êle mas sim pela blasfêm ia, porque sendo homem tu te fazes
faz” (J o 5,20). In tim idade perfeita, absoluta. Deus” (Jo 10,33; cf. Jo 5,18).
Essa igualdade de conhecim ento não rep resen ta um O resultado desta análise é que a filiação divina de
caso excepcional, vale p a ra as demais p erfeiçõ es: "tudo o Cristo deve ser entendida no sentido estrito da palavra,
que é meu é teu, tudo o que é teu é m eu” (Jo 17,10). "Tu­ como comunicação, pelo Pai, da sua natureza. "Assim co­
do quanto o Pai tem é m eu" (Jo 16,15). Por exemplo, o po­ mo o Pai tem a vida em si mesmo, assim tam bém deu ao
der de ressu scitar: "Assim como o Pai ressuscita os m ortos Filho ter vida em si m esm o” (Jo5,26). De sorte que che­
e lhes dá a vida, assim tam bém o Filho dá a vida a quem gamos a esta conclusão estonteante: o carpinteiro de Nazaré
êle quer (Jo5,21). De um m odo mais geral, identidade no era Deus! Começamos tão m odestam ente, arrolando simples
plano da ação e até no plano existencial, pois o Filho com­ qualidades hum anas de Cristo, mas eis que a Torça inexorá­
p artilh a u eternidade do Pai. Ê ste Filho descido do céu (Jo vel dos textos nos obrigou a rem ontar até o m istério da

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5. - A /is ífrtu d v Cr ia to

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Santíssim a T rindade: o carpinteiro de N azaré era o Verbo a m ajestade). Ora, o Filho não considerou essas prerroga­
eterno feito carne! tivas divinas como um a prêsa a ser agarrada ávida e ociosa­
Nosso ponto de partida situava-se sôbre o plano da p u ra mente.
razão, nosso ponto de chegada está no plano da p u ra fé Adão, num m ovim ento insano de orgulho, comeu o
conform e disse Jesus a Pedro quando êste confessou: "Tu fru to proibido p ara conquistar a igualdade com Deus (Gên
és o filho de Deus vivo! Bem -aventurado és tu Simão; filho 3,5). Não se contentou de ser homem, quis ser como Deus
de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue quem isto (Gên 3,22). O Filho m uito ao contrário, ao encarnar-se
te revelou, porém meu Pai, que está nos céus” (M t 16,17). não reivindica a condição gloriosa que lhe era devida como
Podemos agora p erco rrer o cam inho inverso, descendo Filho de Deus. Pensem os em certas teofanias do Antigo
do Deus altíssim o para chegar ao carpinteiro de Nazaré. T estam en to : Deus vem com grandes m anifestações de
Nem haverá que recorrer a um esforço dialético esten u a n te: glória e m ajestade. Esta, por exemplo no Sinai. Depois de
S. Paulo e S. João nos sèrvirão de guias. um a preparação de três dias, "ao terceiro dia, ao am anhecer,
houve trovões e relâm pagos sôbre o m onte, e um a espêssa
nuvem, e um estrondo de trom beta m uito forte, de m aneira
A "Kenosis" do Verbo divino que estrem eceu todo o povo que estava no arraial. E Moisés
levou o povo fora do arraial ao encontro de Deus; e puse­
ram-se ao pé do m onte. E todo o m onte Sinai fumegava, por­
São Paulo a fim de precaver os filipenses contra as oca­
que o Senhor descera sôbre êle em fogo, e o seu fumo subiu
siões de discórdia provenientes do orgulho e da ambição,
como fumo de um fôrno; todo.o m onte trem ia grandem ente.
coloca-lhes diante dos olhos o exemplo de C risto : entoa um
Moisés falava e Deus lhe respondia em voz alta. E descendo
hino em louvor da hum ildade do Senhor. "Tende vós os
o Senhor sôbre o m onte Sinai, sôbre o cum e do monte, cha­
mesm os sentim entos que Cristo Jesus teve.
mou o Senhor a Moisés ao cume do monte, e Moisés subiu”
Êle, subsistindo na condição de Deus, não entendeu
(Êx 19,16-20).
re te r p ara si o ser igual a Deus.
O Filho renuncia a tudo is s o : Êle se "aniquila” diz o
Mas despojou-se a si mesmo, tom ando a condição de
escravo, feito sem elhante aos hom ens. texto literalm ente, isto é, êle se despoja da "form a” divina,
p ara revestir a “fo rm a” de escravo: não reveste apenas
E, sendo reconhecido no exterior como homem, hum i­
aparência de homem, m ostra-se exteriorm ente como homem
lhou-se mais ainda, feito obediente até a m orte, até a m or­
te da cruz. com tôdas as fraquezas e im perfeições inerentes à natureza
humana.
Pelo que tam bém Deus o exaltou e lhe outorgou o nome
que está sôbre todo o nome. Alguns teólogos protestantes in terpretam êste "aniqui­
lam ento” ou "kenosis”, como renúncia à natureza divina,
Para que, ao nom e de Jesus, se dobre todo o joelho de o que lhes m ereceu severa censura de Pio X II na Encíclica
quantos há nos céus, na te rra e nos infernos.
Sem piternus R ex 2. Tal doutrina não é só herética como ab­
E tôda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, p ara su rd a: Deus não pode deixar de ser Deus! Cristo não
glória de Deus pai” (Flp 2,5-11).
renunciou à sua natureza de Filho, mas a algumas prerro­
O início do hino celebra a preexistência do Filho, no seio gativas dela, em particu lar à glória e m ajestade. Revestiu
do Pai. E ra igual ao Pai, Deus como êle; existindo desde um a natureza hum ana autêntica; ora, em face de Deus um
sem pre na "form a” de Deus, reza o texto literalm ente (onde
form a” designa os atributos divinos, m orm ente a glória e 2 Doe. P o n t. 31, ri. 31s.

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O final do hino a Cristo, que vimos analisando, celebra
f-eito que seja, só pode ser um servo. a exaltação triunfal do Filho como recom pensa de seu ex­
h°iTiem por mais pcd/>a Natureza hum ana, não quis que a cesso de hum ilhação. Apoteose cósm ica: os anjos no céu,
E lendo revestido d^Jenclesse — salvo uns curtos instantes os m ortos no, “Scheol”, os vivos sôbre a terra, genuflexos ado­
glórja divina nela re ^ h s ^Suração do corpo de Cristo seria rarão como Deus, êste Cristo e o reconhecerão como Senhor,
no Tabor. E sta trh^trral da sua união ao Verbo. Mas êle "Kyrios" (nom e próprio de Deus na versão grega do Antigo
uma conseqüência n^ í^tnçjjj como os outros. Poderia ter-se Testam ento da qual se servia S. Paulo). Bem longe de ab­
preferiu parecer um ^ adulto, preferiu a fragilidade e os dicar sua divindade para se encarnar, o Filho permanece
cPcarnado num c o ríV ' Cresce lentam ente quanto ao corpo idêntico a si m e sm o : é a m esm a pessoa divina que precedeu
V£)gidos de um n eo n à1, f aI- E sujeito às fraquezas hum anas à encarnação, que se encarna para m orrer, e triunfar depois
c ao saber experim ^^ 4,15), sente fome, sêde, cansaço, dor, de ressuscitado. ,
salVü o pecado ( H e t/f 1'10 os dem ais hom ens. Situado tão Menos dram ática na apresentação, a epístola aos he-
agüniza e m orre 0° abaixou! D urante a Paixão, a divin- breus descreve o mesm o m ovim ento de "kenosis” da pes­
alto, como desceu, S ^ coHdeu atrás da hum anidade. Bem soa do Filho, seguida de sua gloriosa exaltação. "Havendo
dadè como que se ^/PaÇào é orientada à hum ilhação: Êle Deus o u trora falado m uitas vêzes e de m uitos modos aos
1T1ais, a m esm a E n c ^ o rrer na Cruz. pais, a nós nestes últim os dias falou pelo Filho, a quem cons­
se faz hom em p ara *mriç[ade com os m istérios de Cristo tituiu herdeiro de tudo, por quem fêz tam bém o mundo. 0
Uma longa farrÉa Percepção viva da kenosis não só qual, sendo o resplendor de sua glória e a imagem expressa
talvez am orteça nos^ pão tam bém da p ró p ria hum anidade de sua substância, sustentando tôdas as coisas pela palavra
da pessoa divina, s ^ ç ã o social hum ilde, escolheu durante de seu poder, tendo feito a purificação dos pecados, assen­
do Senhor. De c o n ^ c u ^ a de um obreiro; na vida pública tou-se à direita da m ajestade nas a l tu r a s ..." (H ebr 1,1-3).
iririta anos a vida ov jtaÇdes. Ser suspeitado e censurado A epístola evoca, para começar, as comunicações de
]be sobejaram h u n É ,íg io$as de seu povo — aqueles que Deus aos hom ens, anteriores à vinda de Cristo — é a "eco­
Pelas autoridades r ^ j f a de Moisés ■traído e vendido por nom ia” 3 do Antigo Testam ento — revelações parceladas
Se sentavam na " c á t ^ e n * para apóstolo, negado pelo chefe (m últiplos m ensageiros) e m ultiform es (visões, cerimônias,
uhi dos que êle e s c a p a d o pelos demais. Prêso como im- profecias, m andam entos). Eis porém que o Pai decide inau­
de sua Igreja, aban^ (id e a d o como blasfem o, revestido da g urar um a nova era nas suas relações com os homens; "eco­
P °stor e m alfeitor, 0°0feteado, cuspido, flagelado, zombado nomia" nova, que será tam bém a derradeira. No seu amor
Veste dos loucos, eSlV ado à m orte infam ante da cruz, como manda-nos como mensageiro, p o rtad o r de suas palavras,
"m ediador da Nova Aliança", seu próprio Filho. Êle cha­
Pela soldadesca, c o n ^ ( supIiciado entre dois bandidos, escar-
m ará os hom ens à fé e à salvação.
Ulh m aldito (Gál 3 ,l3 ^tes. A Encarnação red en to ra é na
Insiste a epístola sôbre a preexistência divina do F ilh o :
necido pelos tr a n s e d ^ e n to ”, um abism o de objeção, e não Êle é igual ao Pai, "resplendor de sua glória” luz que jorra
verdade um " a n iq u iltívelin ao p ro ferir do alto do púlpito constantem ente da luz divina, pois o resplendor da luz é
e*agerava o padre í ,^iri^ a vocação de Charles de Fou- luz: o Filho é a irradiação da luz eterna; "imagem expressa
a sentença que d e ^ t°tnou de tal modo o últim o lugar, de sua substância”, como o sêlo im presso pelo sinête repro­
caUld: "Nosso Senfjdtu lh0 arrebatar!" duz fielm ente o que neste está gravado. Dotado da natu­
Ptie ninguém conseg^P càvado pelo grande am or que Jesus reza divina que lhe com unica o Pai, o Filho tam bém partilha
Abismo de o b j e t a a obedecer até o fim à trem enda or-
3 A “e c o n o m ia ” é o p la n o d iv in o de s a lv a ç ã o .
n°s tinha e que o le'/ pÜS salvar.
dem do Pai e assirú
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da atividade c ria d o ra : por êlc o Pai plasm ou o universo participam da vida do Verbo, que c a vida por excelência:
por êle o governa. E foi êsse Filho, igual em Ludo ao Pai, que "Deus nos deu a vida eterna, e esta vida está cm seu Filho.
se humanou! Podia, é certo, le r assum ido uma hum anida­ Quem tem o Filho tem a vida; quem não tem o Filho de
de gloriosa, m as "em lugar da alegria que lhe era proposta, Deus tam bém não tem a vida” (lJ o 5,13). Prelúdios à dou­
suportou a cruz, sem fazer caso da ignomínia" (H ebr 12,2). trin a joanina. O prólogo do 4o evangelho encerra um a teo­
H um ilhado pela encarnação, que o fêz "inferior aos an jo s”, logia acabada do Verbo da vida, e de nossa participação
assem elhado em tudo aos hom ens seus irmãos, padeceu a a êle.
m orte a fim de "fazer a purificação dos pecados" de todos "No princípio criou Deus o céu e a te rra ” (Gên 1,1).
(H eb r 1,3; 12,17). Pois Deus, p o r sua graça, ou seja, por seu "No princípio era o V erbo” (Jo 1,1).
am or m isericordioso, fêz com que a m orte de seu Filho bene­ O início do Gênesis e o princípio do prólogo são visi­
ficiasse a todos os homens (H eb r 2,9; 10,11). Pelos sofrim en­ velmente textos paralelos; am bos visam revelar os desíg­
tos de sua Paixão, o Filho se to rn o u chefe da hum anidade, nios de Deus sôbre o universo. O Gênesis n arra a criação
que êle dirige à salvação, como sacerdote e v ítim a: “Con­ do mundo, o prólogo com pleta o prim eiro, descrevendo
vinha que aquêle p aia quem e p o r quem são todos as coisas, não só a obra da criação, mas a obra de recriação, ou seja,
e que se propunha a levar m uitos filhos à glória, consum as­ a "nova criação” por Cristo, do m undo perturbado, desfi­
se pelos sofrim entos o au to r da salvação dêles" (H ebr 2,10). gurado pelo pecado.
" . . . não necessita (o nosso Pontífice) como os pontífices Em am bos os textos o têrm o "no princípio” tem sig­
(judaicos) oferecer cada dia vítim as, prim eiro por seus p ró ­ nificado id ê n tic o : designa o prim eiro instante do tempo,
prios pecados, e depois pelos do povo, pois isto êle o fêz quando os prim eiros sêres criados começam a chegar à exis­
de um a vez só, oferecendo-se a si m esm o" (H ebr 7,27). tência. O Gênesis preocupa-se ■com a ação de Deus sôbre
" . . . nós somos santificados pela oblação do corpo de as criaturas, enquanto que o prólogo preocupa-se prim eiro
Jesus Cristo, um a vez p ara sem p re” (H ebr 10,10). com o próprio Deus. Contempla o abism o da divindade e
As duas epístolas paulinas delineiam pois, com têrm os descobre a preexistência do Verbo. Antes de criar, Deus não
diferentes o mesmo itin e rá rio : o ponto de partida é a p re­ estava só — tinha consigo o seu Verbo. Êste não foi cha­
existência celeste e gloriosa do Filho no seio do Pai, vem m ado à existência, pois já existia, estava em Deus. Bem
em seguida o m ovimento de "aniquilam ento" ou "hum ilha­ mais, êle era D e u s: "no princípio era o Verbo, e o Verbo es­
ção” : o Filho se encarna, padece e m orre na cruz, pelos tava com Deus, e o Verbo era Deus. No princípio estava
pecadores; daí resulta o perdão de nossos pecados e a nova êle com D eus” (Jo 1,1-2). O Verbo transcende o tempo,
glorificação do Filho, "assentado à direita da m ajestade nas pois antecede a criação. Distinto de Deus; já que estava
altu ra s” (H ebr 1,3). "em ” Deus; idêntico a Deus já que "era” Deus.
O Antigo Testam ento nos ajuda a conceber anàlogamen-
te o que possa ser esta existência "atem poral”, ao descre­
O prólogo de São João ver a eternidade da sabedoria divina: "O Senhor me possuiu
no princípio de seus cam inhos e antes de suas obras mais
antigas. Desde a eternidade fui ungida, desde o princípio,
O evangelista elabora e aprofunda essa teologia. Na antes do comêço da terra. Antes de haver abismos, fui gera­
sua prim eira epístola ensina que a vida de tôdas as criatu­ da, antes ainda de haver fontes carregadas d’água. Antes
ras tem por origem ou fonte o "Verbo da vida” (lJo 1,1); que os m ontes fossem firm ados, antes dos outeiros, eu fui
em conseqüência, as criaturas têm vida na medida em que gerada. Quando êle não tinha feito a terra, nem os cam­

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pos, nem sequer o princípio do pó do mundo. Quando éle li Liva — pensam cnío e am or — por isso no 4" evangelho,
preparava os céus, aí estava eu; quando com passava ao re­ luz e am or estão indissolüvelmente ligados. Enquanto luz,
dor a face do abismo. Quando firm ava as nuvens de cima, a Palavra ilum ina os homens todos levando-os a Deus, (e
quando fortificava as fontes do abismo; quando punha não ilum ina apenas alguns privilegiados). E ela nos ilumi­
ao m ar o seu têrm o, p ara que as águas não transpassassem na m ostrando-nos o que devemos fazer para encontrar Deus,
o seu mando; quando com punha os fundam entos da terra; que é luz. Portanto devemos cam inhar ao encontro do Deus-
qual arquiteto eu estava ao lado dêle; e era cada dia luz, ouvindo e guardando a palavra que nos m anifesta a von­
as suas delícias, folgando perante êle em todo o tem po” tade de Deus sôbre nós. Êste cam inhar é vida verdadeira:
( Prov 8,22-30). "E u sou a luz do mundo, aquêle que me segue não anda em
Procurando nos fazer entender o que seja êsse Verbo trevas, m as te rá a luz da vida” (Jo 8,12). Pelo contrário,
m isterioso que subsiste no seio da divindade, S. João apre­ não aceitar a palavra é "cam inhar em trevas” (Jo 12,35-36).
senta os conceitos de palavra, luz, vida, filho. É de notar, E sta oposição dram ática entre luz e trevas que será um dos
todavia que o Evangelho visa em prim eira linha caracterizar, tem as m estres do 4'> evangelho, já foi indicado desde o
não já a natureza íntim a, divina, do Verbo, mas sim a sua versículo 5 do prólogo.
atitude p ara com as criaturas. E n tretan to a ação divina Divergem todavia os exegetas quanto à tradução do
sôbre o m undo supõe a natureza de D eu s: é p o r ser êle m es­ versículo. "A luz brilha nas trevas e as trevas não conse­
mo vida, luz, verdade em plenitude, que o Verbo pode in­ guiram vencê-la”; assim traduzem alguns. "A luz brilha
fundir tais perfeições em suas criaturas; como é p o r ser Fi­ nas trevas e as trevas não a com preenderam ”; assim ver­
lho unigênito que êle nos torna filhos do Pai. As palavras tem outros. De qualquer form a, há conflito. As "trevas”
de S. João que designam um a ação de Deus sôbre as criatu­ simbolizam o êrro e a morte.- Concretam ente é o m undo
ras, fundam entam -se sôbre a perfeição da pró p ria natureza infernal; satânico, negador da verdade e da vida divina.
divina. Descendo à realidade histórica, o prólogo assinala as di­
Não lançaram mão de um processo arb itrário os teólo­ versas "vindas" ou m anifestações da luz divina às diversas
gos que p ro cu raram no prólogo de S. João dados p a ra a ana­ categorias de hom ens (v. 9-10). Aos pagãos pela criação
logia trinitária. O utra todavia é nossa ta r e f a : investigam os ("p o r êle foi feito o m undo”, v. 10) áos judeus por João, o
as relações de Deus uno e trino com suas criaturas. B atista ("houve um hom em enviado por Deus de nome
Verbo ou palavra é a expressão do pensam ento. Aqui João” v. 6). Debalde. Então Deus faz um a derradeira ten­
o evangelista se refere à palavra criadora de D eu s: "Falou, tativa p ara trazer os homens à luz e à vida d iv in as: desce
e tudo se fez” (SI 33 Vulg 32,9). A narrativa da criação no entre êles, no meio dêles pelo Unigênito, para que todos os
Gênesis é construída sôbre êsse tem a: Deus fala ("E dis­ que o acolherem se tornem seus filhos.
se D e u s ...” ) e logo as coisas com eçam a existir. O que Assim, essa palavra do Pai que o evangelista nos fazia
o Gênesis explica analiticam ente, distinguindo na ação cria­ contem plar no seio da divindade, não é apenas um a perfei­
dora seis etapas ou "d ias”, o prólogo afirm a sin tèticam en te: ção, um atrib u to divino como a ju stiça ou a misericórdia,
'Tudo foi feito pelo V erbo’ todo ser criado chega à exis­ não indica apenas a m odalidade ilum inadora da ação divina.
tência pelo Verbo que, sendo vida p o r excelência, torna-se Não, o Verbo é o Filho unigênito, um a pessoa como todo
fonte de vida p ara todo vivente. filho, fruto de um a geração verdadeira, em bora espiritual.
O Verbo não é apenas vida, m as ainda luz, ou m elhor é A palavra divina que outrora vinha aos homens por diver­
vida para ser luz. Com efeito, p ara um ser espiritual como sos m ensageiros — os profetas — "se fêz carn e” para falar
Deus, viver consiste em exercer atividade intelectual e vo- pessoalm ente conosco. Cristo não é um m ensageiro a mais,

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êle é por identidade, Palavra, Filho. Impossível, portanto, tável e perm anente. Donde a sua presença entre os ho­
que o que êle nos diz seja falso, pois que sua voz é a voz m ens: é o próprio Filho dc Deus que habita entre nós. O
do próprio Deus. Êle é a p ró p ria verdade que êle prega. verbo grego que traduzim os por "habitar, m o rar” significa
Revelando o seu m istério, êle revela o Pai invisível, pois propriam ente: arm ar um a tenda, para servir de alojam en­
o m istério de Cristo é sua origem e missão pelo Pai. A to. Tal foi a tenda ou Tabernáculo que Moisés arm ou no
vida de Cristo Jesus é o centro da revelação. Êle é Deus deserto para servir de m orada ao Deus de Israel no meio
revelando-se a si mesmo. do povo, acom panhando-lhe a vida errante. "Então falou
Entendem os m elhor, agora, o início do prólogo, que Javé a M oisés: "...F aze -m e um santuário, a fim de que eu
nos apresentava o Verbo como a um tem po distinto de Deus possa residir en tre êles. Conforme eu te m o strar para mo­
(pois Deus cria "p o r” êle) e idêntico a êle (pois o Verbo d elo 'd a tenda e de todos os vasos seus, assim mesm o o fa­
"era Deus"). Aclara-se o texto: podem os dizer que o Verbo rá s ” ( Ê x 25,8-9). A divina presença se m anifestava pela
se distingue do Pai — como qualquer filho. Há dualidade "glória” do Senhor, nuvem lum inosa, que enchia o lugar
de pessoas. Mas o Verbo-filho é idêntico ao Pai, porquanto do encontro pessoal com Deus. "E Moisés tom ou a tenda
am bos detêm a m esm a e única n atu reza divina, que o Pai e armou-a p a ra si fora do campo, a boa distância do cam­
com unica a seu Filho. po, e chamou-lhe tenda da reunião. Quem quisesse consul­
Os m anuscritos gregos entendem o versículo 13 dos ho­ ta r Javé devia sair p ara a tenda da reunião que estava fora
mens que conseguem a filiação divina; todavia algumas do campo. Q uando Moisés saía para ir à tenda, todo o po­
versões e as citações de diversos santos padres nos inclinam vo se levantava, e cada um ficava de pé à p o rta de sua ten­
a entendê-lo do próprio Filho, o que talvez seja mais con- da, e olhavam Moisés pelas costas até êle e n tra r na tenda.
sonante ao contexto, p ara frisar-lhe a espiritualidade da gera­ No m om ento de sua entrada, descia a coluna de nuvem e
ção etern a e o caráter virginal de sua geração terrestre. punha-se à p o rta da tenda, e o Senhor falava com M o isés.. .
"Êle (o V erbo) que não nasceu do sangue, nem da vontade falava face a face, como um homem conversa com seu am i­
da carne, nem da vontade do varão, porém de Deus”. O go” (Êx 33,7-11). Erigido e consagrado o santuário ou mo­
nexo com o versículo an terio r é m antido, pois nossa filiação
rad a de Deus, este tom a posse: "a nuvem cobriu a tenda
adotiva — à qual êle se refere — deriva da plenitude do
da reunião e a glória de Javé encheu ã m orada. De m anei­
Filho unigênito; nascem os à vida divina p o r obra do Uni-
ra que Moisés não podia en trar na tenda da reunião, por­
gênito.
quanto a nuvem ficava sôbre ela e a glória de Javé enchia
a m orada" ( Ê x 40,34-35).
O nôvo templo áe Deus Salomão, realizando um projeto de seu pai, Davi (2Sam
7,lss), construiu um a "casa para m orada”, o tem plo, em
"E o Verbo se fêz carne e habitou entre nós”. cuja festa de dedicação a presença divina novam ente m a­
Não se tra ta mais de m anifestações efêm eras, fugitivas, co­ nifestou-se sensivelm ente: "um a nuvem encheu a casa do
mo p o r exemplo as aparições a Abraão, Isaac, Moisés ou Senhor. E não podiam os sacerdotes ter-se em pé para mi­
Davi, trata-se de um a presença perene, de um a m orada de­ n istrar, por causa da nuvem, porque a glória do Senhor en­
finitiva. O Filho unigênito de Deus, une à sua Pessoa — sem chera a casa do Senhor” (lR s 8,10-11).
deixar de ser Deus unigênito — a "carne" (ou seja, segundo D oravante é desde seu templo, na Cidade Santa, que
a acepção bíblica da palavra, u m a alma e um corpo de "Javé guia e socorre seu povo” (SI 20 Vulg 19,2; 68 Vulg
hom em ). Toma tôda a realidade hum ana de m aneira es­ 67,29-30).

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Graças à Encarnação do Verbo, a presença divina ao
hom em se tornou infinitam ente mais íntima. "Eu vos di­ quando da magnífica glória sc fez ouvir aquela voz que di­
go que aqui está o que é m aior do' que templo" (M t 12,6). zia: ‘Êste é meu Filho m uito amado, em quem tenho mi­
O corpo m orto e ressuscitado de Cristo é o templo nôvo, nhas com placências'. E esta voz descida do céu ouvimo-la
verdadeiro, definitivo, de Deus, seu habiláculo perene. nós os que com êle estávamos no m onte santo” (2Pdr
Jesus disse aos ju d e u s : "D estruí êste templo, e em três 1,17-18).
dias eu o levantarei. Replicaram os ju d eu s: Q uarenta e A presença de Deus que atesta o Antigo Testam ento era
seis anos se em pregaram em edificar êste templo, e tu vais simples atividade dos atributos operativos de Deus, prin­
levantá-lo em três dias? Mas êle falava do Templo de seu cipalm ente a sabedoria e a onipotência: Deus faz sair seu
corpo. Quando ressuscitou dos m ortos, seus discípulos se povo do Egito, recom pensa a sua obediência, castiga seus
lem braram que êle dissera isto, e creram na E scritu ra e crim es, leva em conta seu arrependim ento. No Nôvo Tes­
na palavra que Jesus tinha dito" (Jo 2,19-22). tam ento ao contrário, temos um a presença pessoal, visível ,e
Ezequiel, na sua visão profética do nôvo templo de tangível, do Filho de Deus. Jesus é, em verdade, "E m anuel”,
Jerusalém havia descortinado um a fonte de água viva — Deus conosco (M t 1,23). "O que era desde o princípio, o que
sím bolo de fecundidade — jo rran d o à direita do santuário ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que contem ­
(E z 4 7 ,l). Cristo aplicou a si m esm o a profecia: "Se al­ plamos e o que nossas mãos apalparam tocando o Verbo da
guém tem sêde, venha a m im e beba. Aquêle que crer em vida — porque a vida se m anifestou, e nós vimos e testifi­
mim, segundo diz a E scritura, rios de água viva lhe m anarão camos e vos anunciam os a vida eterna que estava com o Pai
do s e io 4. Isto dizia êle do E spírito, que haviam de rece­ e nos foi m anifestada — o que vimos e ouvimos vo-lo anun­
b er os que cressem nêle, pois ainda não fôra dado o E spíri­ ciamos a vós. . ." (lJ o 1,1-2). ,
to, porque Jesus não tinha sido ainda glorificado5. Co­ Em Jesus, obscuro carpinteiro, estava presente, em pes­
m eçada a glorificação de Cristo sôbre a cruz, eis que do soa, o Verbo, Filho de Deus. O corpo dêle era o verdadeiro
lado alanceado do Salvador pendente da cruz, como do lado ponto de encontro com Deus, pois em Cristo "habita cor­
do verdadeiro templo, jo rro u a fonte de água, símbolo da poralm ente tôda a plenitude da divindade” (Col 2,9).
graça (Jo 19,34). Assim sendo, torna-se evidente que a hum anidade do
Não faltaria ao corpo de Cristo, tem plo definitivo, a m a­ Senhor foi constituída cam inho para Deus; por ela passa a
nifestação sensível da "glória" do Senhor que agraciara o nossa prece, p o r ela desce a nós a graça. Sta. Teresa muito
tem plo de Salomão. No Tabor, os três apóstolos "viram a insiste sôbre a necessidade, para todos os contemplativos,
glória dêle e dos dois varões que com êle e s ta v a m ... apa­ de passar pela hum anidade de Cristo; seria ilusão deixá-la
receu um a nuvem que os cobriu, e êles ficaram atem oriza­ de lado, sob pretexto de se unir diretam ente a D eu s6. Só
dos ao entrarem na nuvem. Saiu da nuvem um a voz que encontram os o Pai através de seu Filho encarnado.
disse: Êste é meu Filho dileto, escutai-o" (Lc 9,29,34-35).
O nosso prólogo a te s ta : "Vimos a sua glória, glória p ró ­
p ria do Filho unigênito do P ai” (v. 14), e a 2? epístola de S. O enviado do Pai
Pedro ensina: "Êle recebeu de Deus Pai a honra e a glória,
Nossa fé não se aquieta c satisfaz com a simples apreen­
4 P o d e -s e e n te n d e r o te x to de d u a s m a n e ir a s : a á g u a v iv a m i n a r á do seio
d o fitíl ou do seio d e C ris to . A d o ta m o s a s e g u n d a .
são do fato da Encarnação. Deseja ainda saber "com o” e
_ 5 J o 7.37-39. T r a ta - s e , t c la ro , d a g lo r if ic a ç ã o d e fin itiv a , fr u to d a P a i- “por quê" dessa vinda do Verbo para m orar conosco.
x a o e k e s s u r r e iç ã o de C ris to ; n ã o de u m a g lo rific a ç ã o te m p o r á r ia com o no
b a tis m o e n a tr a n s f ig u r a ç ã o ,
6 As M o ra d a s , e a p . 7.

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Inútil seria qualquer dialética a priori. A resposta só "Assim como o Pai me amou, tam bém eu vos amei (Jo 15,9).
pode nos vir da revelação divina. Ora um a das noções sôbre Amou até o extrem o do am or ( J o l3 ,l) . Não só am or por
as quais os evangelhos mais insistem , é a "m issão” do Filho nós, m as am or pelo P a i: 1convém que o mundo conheça
pelo Pai. que eu amo o Pai. e que segundo o m andato que o Pai me
E ternam ente gerado pelo Pai, o Filho num m om ento deu, assim eu faço” (Jo 14,31). E que nos pede em tioca?
do tem po fixado pelo Pai, saiu do Pai e veio m o rar conosco. Ainda am or. "Pai. . . que o am or com que me am aste es­
Sc o Verbo se iez carne, foi p o r ter sido enviado pelo Pai. teja n ê le s. . . (Jo 17,26). Amor não só de Deus, mas dos
O 41-’ evangelho menciona m ais de 50 vêzes esta "m issão" di­ outros hom ens: "Um preceito nôvo vos dou: que vos ameis
vina. Colhamos alguns textos mais significativos. “Vim uns aos outros. Assim como eu vos amei, vós deveis vos
em nom e de meu Pai” (Jo 5,43). "E u saí e vim de Deus. Não am ar uns aos o u tro s” (Jo 13,34).
vim de mim mesmo, mas êle mc enviou” (Jo 8,42). "Vim a Amor que tudo explica, mas que por sua vez escapa a
êste m undo p ara exercer um julgam ento" (Jo 9,39). " ...Ê s - tôda explicação: m istério de amor. Não o podem os enten­
te que o Pai santificou e enviou ao m u n d o ...” (Jo 10,36). der, só podem os adorá-lo.
" . . . Creio que sois o Cristo, o Filho de Deus, que veio ao m un­ O m otivo im ediato da vinda do Filho foi a obediência
do" (Jo 11,27). "Saí do Pai e vim ao m undo" (Jo 16,28). am orosa do Filho à vontade am orosa do Pai: "Meu alimen­
Os sinópticos tam bém m encionam a m issão de C risto: t o . . . é fazer a vontade daquele que me m andou cum prir
"É necessário que eu vá anunciar a outras cidades a boa sua obra" (Jo 4,34). Os "sinais” ou m ilagres obrados por
nova do reino de Deus; p a ra isto é que fui enviado” (L c4, Cristo garantem a sua vinda como enviado do Pai: “As
43; Mc 1,38). obras que m eu Pai me deu o .poder dc realizar, estas mes­
Bem estabelecido o fato, indagamos o porquê. A mas obras, que eu pratico, dão a m eu respeito testem unho
E scritu ra responde que o m otivo derradeiro dessa vinda de de que foi o Pai que me enviou” (Jo 5,36; 10,25; 11,42).
Cristo como enviado do Pai, é um amor gratuito. "Deus Qual a finalidade dêste m andato dado pelo Pai ao Uni­
am ou tanto o m undo que lhe deu seu Filho unigênito para gênito? Foi perfazer a obra do Pai. O am or do Pai já o
que todo aquêle que crer nêle não pereça, m as tenha a vida levara a cria r o hom em à sua imagem e semelhança, mas
eterna. Pois Deus não m andou seu Filho ao m undo p ara o hom em arruinou a obra divina. E n tretan to Deus não se
condenar o mundo, mas p a ra que o m undo seja salvo por deu p o r vencido, seu am or escolheu Abraão, ancestre de
Ê le” (Jo 3,16-17). "Deus é am or. O am or de Deus p ara um povo eleito; enviou Moisés para selar a aliança divina
conosco manifestou-se em que Deus enviou ao m undo seu com seu povo, mas êste prevaricou; Deus então enviou o
Filho unigênito para que nós vivamos por êle. Nisso está o próprio Filho para arran car o honrem das trevas onde vivia,
am or, e não que nós tenham os amado a Deus, m as sim da escravidão do pecado, da m orte, e fazer do hom em um
em que êle nos amou, e enviou seu Filho, vítim a expiatória filho de Deus, im ortal como êle. "Êle (o Verbo encarnado)
dos nossos p e c a d o s ...” (IJo 4,8,-10). lhes deu o poder de se tornarem filhos de Deus” (Jo 1,12).
Tudo na Encarnação deve ser considerado na perspec­ "Aquêle que ouve a m inha palavra e acredita naquele que
tiva de am or. Por que Deus se revelou a nós? Porque nos me enviou, tem a vida eterna e não incorre em condenação,
amava. Por que m andou seu Filho como luz do m undo a m as passou da m orte para a vida” (Jo 5,24). "Desci do céu
nos m o strar o cam inho (Jo 12,46)? Porque nos amava. Por não para fazer a m inha vontade, mas sim a vontade daquele
que m andou que seu Filho obrasse lantos milagres, sofrqsse que me enviou. E esta é a vontade daquele que me enviou:
tais afrontas, m orresse de m orte tão acerba? Porque nos que nada perca de tudo que êle me deu, senão que eu o res­
am ava. Por que Cristo aceitou a m orte? Porque nos amou. suscite no últim o dia” (Jo 6,38-39). "Eu vos glorificarei (ó

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Pai) sobre a terra, c u m p rin d o a obra cuja realização me con­ m orte de Jesus, satanás parece ter vencido. Pura ilusão
fia ste s” (Jo 17,4). entretanto. "É agora o julgam ento dêste mundo. Agora
Por que meios o am or do Filho alcançou a m eta, reali­ o príncipe dêste m undo será lançado fora. Eu quando fôr
zou a obra? levantado da terra, atrairei a m im todos os hom ens” (Jo 12,
a) negativam ente: vencendo o poder das Irevas que 31-32). "O príncipe dêste m undo já está julgado” (Jo 16,11).
b) positivam ente: tornando-nos "filhos de Deus", p ar­
dominava o mundo, " . . . o m undo lodo está no maligno
tícipes da vida divina. Para um puro espírito como Deus —
f Uo 5,19). As trevas simbolizam o êrro, o pecado e a m or­
já dissemos acim a — viver é conhecer e am ar, logo ser "filho
te, fruto do pecado. O Verbo vem como a luz que vence
de Deus" é p artilh a r o conhecim ento que Deus tem de suas
as trevas. "Eu vim como luz ao mundo, para que todo
perfeições, e o am or que êle lhes vota. Ora, o Filho unigê-
aquele que crê em mim não perm aneça nas trevas” (Jo 12,
nito que recebe do Pai a plenitude do conhecim ento e do
46; cf. 1,5; 8,12). am or das perfeições divinas, no-las comunica. "Ninguém
Não apenas o 4" evangelho mas tam bém os sinópticos, conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece o Pai senão
apresentam a história da hum anidade como um com bate o Filho e aquêle a quem o Filho quiser revelá-lo" (M t 11,27).
entre Cristo e satanás, um como a p ró p ria Luz. divina, o "Ninguém jam ais viu a Deus, o Unigênito que é Deus, e está
outro como o poder das trevas. Satanás "príncipe dêste no seio do Pai, êste é que no-lo m anifestou” (Jo 1,18; 17,3).
m undo” (Jo 12,31; 14,30; 16,11) domina os hom ens que se Dêste conhecim ento e dêste am or, b ro ta em Cristo indizível
fecham à luz divina espargida pelo Verbo encarnado. S ata­ alegria, que êle nos com unica, fazendo-a viver em nós, de
nás aparentem ente vence, pois Cristo m orre na cruz; mas sorte que nada e ninguém no-la arrebatará. "Disse-vos es­
na verdade a m orte de Cristo livra os hom ens do cativeiro tas coisas para que esteja em vós m inha alegria e vossa
diabólico. Mais tard e ao tra ta r da Redenção explanarem os alegria seja perfeita" (Jo 15,11). " ...V o s s o coração se ale­
com m aior detença êste ponto da doutrina. Por ora baste g rará e ninguém vos tira rá vossa alegria" (Jo 16,22). "Ago­
lem brar que os dem ônios tentam Jesus, debalde (Mc 1,13; ra volto para vós (Pai) e digo essas coisas no m undo, para
Mt 4,1-11; Lc 4,1-12), pois o demônio não tem poder qual­ Que3 tenham em si m esm os m inha alegria com pleta” (Jo
quer sôbre êle (Jo 14,30), pelo contrário é Cristo que tem
poder sôbre o demônio como fazem fé os casos de expul­ De S. Rom ualdo contam que seu sem blante refletia
são de demônios que os sinópticos narram com insistência sem pre tam anha alegria que, contagiados, os que o contem ­
(Mt 8,28; 12,22; Mc 5,1-20; Lc 8,26-39; 4,41; 11,14-26). plavam tam bém se alegravam.
S. Lucas refere que após a tentação no deserto "o diabo O conhecim ento divino que o Verbo nos com unica não
ausentou-se dêle até o tem po determ inado” (Lc 4,12). Êste se restringe ao ser uno e trino, êle se estende aos desígnios
tem po é a paixão, quando o poder das trevas desencadeou­ de Deus em relação às criaturas, a nova e definitiva "econo­
-se : "esta é a vossa hora e a do poder das trevas” (Lc 22,53). m ia . Sabem os afinal, com certeza, donde viemos e para
Os evangelhos notam que a traição de Judas foi inspirada onde vamos. Conhecemos o sentido da vida e os m eios de
pelo demônio: "Satanás entrou em Judas Iscario tes” (Lc divinizá-la. Não m ais cam inharem os às apalpadelas, er­
22,3; Jo 13,2-27). E o demônio não esteve alheio à fuga dos rando sem rum o, p o r entre as trevas, procurando o alvo
apóstolos e à negação de Pedro: "Simão, Simão, eis que que sem pre nos escapa.
satanás vos reclam ou para vos ■jo eirar como trigo, mas eu O Filho se encarna, vem a nós como luz do m u n d o : "Eu
roguei por ti, para que a lua fé não desfaleça. E um a vez vim como luz do m undo, p ara que todo aquêle que crê em
convertido, confirm a teus irm ãos” (Lc 22,31-32). Com a mim não perm aneça em trevas" (Jo 12,46), "P ara isso nasci
i

80 (!. M is té r io de C risto

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7,33-34). "E u me vou, e me buscareis, e m orrereis no vos­
e p ara isso vim ao mundo, p ara d ar testem unho à verdade” so pecado; e onde eu vou, vós não podeis vir" (Jo 8,21).
( jo 18 37). Crendo em Cristo ja prelibam os algo da visão "P or pouco tem po ainda, a luz está no meio de vós. Cami­
que nos saciará durante a eternidade. "E sta e a vida eterna, nhai enquanto tendes luz, para que não vos surpreendam
que êles conheçam a ti, único Deus verdadeiro, e teu envia , as trevas, pois aquêle que cam inha na trevas, não sabe
Jesus C risto ” (Jo 17,31). Conhecimento íntim o, vivido, logo aonde vai” (Jo 12,35). ^ ‘^
referto de am o r: "Dar-vos-ei um coração nôvo, colocarei em Após a ceia, anuncia aos apóstolos seu retorno àquele
vós um espírito nôvo, tirarei da vossa carne o coraçao dc que o enviou (Jo 16,5). Na "oração sacerdotal” alude à sua
pedra e vos darei um coração de carne (Ez i , ). volta para ju n to do Pai: "Já não estou no mundo, mas
I-íenry Bergson, em bora os êrros e insuficiências de sua êles estão no m undo enquanto eu vou p ara t i .. . agora ve­
filosofia, m o stro u à maravilha, na sua o b ra “Les deux sources nho a t i . . . ” (Jo 17,11,13). Ressuscitado, ordena a Maria
de la m orale et de la religion", as conseqüências nao apenas M adalena que evangelize os apóstolos, isto é, anuncie-lhes
religiosas, no sentido estrito da palavra, m as ain a m orais a boa n o v a : "Vai a m eus irm ãos, e dize-lhes: E u subo pa­
e sociais, trazidas pela d outrina de Cristo. De um a o, as ra m eu Pai e vosso Pai, para m eu Deus e vosso Deus” (Jo
sociedades "fechadas”, incurvadas sôbre si mesm as, fun­ 20,17). .
dadas sôbre a fôrça bruta, esclerosadas, avêssas a qualquer A sua hum anidade esm agada pelos torm entos da Paixao
m elhora, suspeitosas de todo e qualquer estrangeiro, vo a revive gloriosa, e sobe aos c é u s: "Não era necessário que
das à guerra; de outro lado a sociedade ab erta ^ regí a Pe o Cristo sofresse estas coisas e assim entrasse em sua gló­
lo am or, 11a qual reina a fraternidade, n a qual nao ha mais r ia ? ... E nquanto abençoava afastou-se dêles e foi se ele­
gregos e judeus, escravos e senhores; sociedade tu n d aaa vando ao céu” (Lc 24,26,51).
sôbre m útuo e universal am or; sociedade aberta a to os Todavia Cristo não ascende sozinho. Êle é o Pastor, e
os hom ens que crêem na solidariedade hum ana, que cre como tal cam inha à testa de seu rebanho (Jo 10,4) em de­
em enfim no Amor. m anda do Pai. Êle é cabeça da hum anidade regenerada;
aonde vai a cabeça segue-a o corpo. "N a casa de meu Pai
há m uitas m o ra d a s. . . vou preparar-vos um lugar. Quando
eu me houver ido e vos tiver prepàrado um lugar, de nôvo
Retorno ao Pai
voltarei e vos tom arei comigo, p a ra que onde eu estiver es­
tejais tam bém vós” (Jo 14,2-3).
C um prida a missão que lhe confiara o Pai, regressa o
Filho ju n to ao Pai que o enviara: "Saí do Pai e vim ao m un­
do; de nôvo deixo o m undo e vou p a ra o Pai (Jo 16,28). § 3. A UNIÃO HIPOSTÁTICA 7
Aliás S. João ao começar a n arrativ a da Paixão colocou-a tô-
da sob o signo do retorno. "Antes da festa da Páscoa, sa­
Duas naturezas diversas e inconfusas
bendo Jesus que chegara a h o ra de p assar dêste mundo p ara
o P a i . . . ” (Jo 13,1). . . ■ A Até aqui procedem os concretam ente, interrogando os
Jesus várias vêzes anunciara aos judeus este seu regres­
Evangelhos, à p ro cu ra de um re tra to o m ais fiel possível,
so, como que lhes concedendo um ultim o prazo para aceita­ de Jesus; o carpinteiro de Nazaré, que se proclam ava Filho
rem sua p alav ra: "Ainda estarei convosco um pouco de
tem po, e irei p ara aquêle que me enviou. Buscar-me-eis 7 A pós infind& L d isciisp õ e s de te rm in o lo g ia , a p a lrís tic a g re g a , acom pa-
e não me achareis, e onde eu vou, vós não podeis vir (Jo
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, tDeus
de "\ o iguai
imiai ao Pai. Agora
° vamos te n tar traduzir em têr-
necessário adm itir a filosofia de Platão ou de Aristóteles,
m os a b stra to s, os dados que colhemos. com suas especulações sôbre as "essências” ou "usias”; bas­
Foi a tarefa dos santos padres da Ig reja e dos concílios.
ta verificar, folheando os evangelhos, como fizemos acima,
Para tal m ister era antes de tudo necessário bem escolher
que em Cristo se encontra o feixe de propriedades que ca­
os têrm os com os quais se form ularia ab stratam en te o m is­
tério da Encarnação. Daí os debates intérm inos dos pa­ racteriza o ser hum ano tal qual se m anifesta à nossa expe­
dres gregos sôbre “ousia, physis, hypostasis, prosopon”. riência cotidiana: ter um corpo vivo e organizado, ter vida
Críticos há que condenam esta sem ântica teológica, vendo p s íq u ic a ... O mesm o vale, anàlogam ente, da ''natureza''
nela um a infiltração da filosofia pagã no m istério cristão, divina de Cristo. Seria, pois, um êrro m anter que os têr­
mos ab strato s são sem pre irreais. Em nosso caso, os têr­
para deturpá-lo.
Olvidam duas coisas. Em prim eiro lugar que a fre- m os ab tra to s que a teologia m aneja (natureza, pessoa) têm
qüência e a subtileza das discussões provam que o desígnio um lastro bem concreto: os fatos registrados pelos evan­
dos padres era en co n trar ou m esm o fo rja r um vocabulário gelhos.
que não só não traísse m as mesm o obscurecesse a fé cristã. Inúm eros são os predicados que podem os atribuir a
Bem longe de am oldar a fé cristã aos têrm os filosóficos gre­ Pedro ou a Paulo, desde os elem entos anátomo-fisiológicos
gos, am oldavam êstes à fé cristã. "A filosofia é a serva da constitutivos de seu corpo, até os m ilhões de atos psíquicos
teologia” dirão os doutores medievais. Assim o vocabulário que constituem sua história. Por m ais se diferenciem uns
filosófico grego foi utilizado pela teologia, como puro dos outros, apresentam um elem ento com um : pertencem a
instrum ento. Pedro ou a Paulo e a mais ninguém.
A êste centro único de tantos e tão diversos predicados,
Olvidam, em segundo lugar, os críticos que, p ara ser en­
dam os o nom e de pessoa. Pouco im portam , por ora, as
tendida, um a doutrinação deve ser vazada em têrm os inte­
infindas discussões sôbre a m etafísica da personalidade.
ligíveis; aos hom ens, que tal doutrinação pretende atingir.
Trata-se de form ular a fé em têrm os inteligíveis para o
Não é de espantar, em conseqüência, que concílios e padres
com um dos fiéis. Ora, êstes fiéis, não obstante sua suposta
tenham utilizado os têrm os da filosofia dom inante em sua
incapacidade de form ular, em têrm os técnicos, um a defini­
época. Mas cuidavam em não enfeudar o dogma cristão
ção rigorosa da personalidade, percebem todavia a realidade
a um sistem a filosófico; qualquer fôsse êle, pela razão óbvia
concreta que o têrm o abstrato visava circunscrever.
que, a quase totalidade dos fiéis nada entendendo de filo­
Que Cristo seja um a pessoa, está claro no Evangelho.
sofia, em pregar têrm os filosóficos no sentido técnico seria
A dificuldade consiste propriam ente em saber:
trabalho perdido, pois to m a ria ininteligível p ara a m aioria
dos fiéis a doutrina revelada p o r Deus. Procuravam pois a) se as naturezas hum ana e a divina não postulam , ca­
d ar a êsses têrm os um sentido que pudesse ser entendido da qual, a sua personalidade? N este caso haveria em Cristo
pelo senso com um não só dos fiéis da Ig reja antiga senão duas personalidades, correspondentes às duas naturezas;
de qualquer época. Por exemplo, p ara poderm os afirm ar mas como m an ter a unidade de Cristo?
a existência, em Cristo, de um a "natureza" hum ana, não é
b ) se há um a só pessoa em Cristo, qual será ela?
n h a d a pelos la tin o s , a p ro v o u ê ste títu lo p a r a s ig n if ic a r “ u n iã o s u b s ta n c ia l P ara te r diante dos olhos um a síntese desnuda do que
d a s d u a s n a tu r e z a s n a p e sso a do P ilh o ” . Com o e x p lic a P io X I I : “ ...n a até agora colhemos concretam ente nos evangelhos, podemos
d e fin iç ã o de C a lc e d ô n ia , a tr ib u i- s e a m e s m a s ig n ific a ç ã o à s v o z es de p e s ­
so a e h ip ó s ta s e (p ro s o p o n -h y p o a ta s is ) . A o c o n trá rio , ao tê r m o de n a tu r e z a lançar m ão de um argum ento clássico em cristologia, e que
(p h y s is ) d á -s e u m s e n tid o d iv e rs o , e n u n c a se u s a com a s ig n ific a ç ã o dos
d o is p rim e ir o s ” '( E n c íc lic a S e m p ite rriu s R e x , n. 25; cf. P io X I, E n c ic lic a L u x Pio X II com pendia na seguinte fórm ula: "a Sagrada Es­
v e r ita tin , n. 3 0 s s).
critu ra atrib u i ao único Jesus Cristo, Filho de Deus, predica­
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c ru ta r as relações entre a psicologia hum ana e a pessoa c
dos hum anos, e ao mesm o Cristo, Filho do homem, predica­ Verbo encarnado. O interêsse se deslocou do plano on -
dos divinos” 8. lógico, m etafísico, para o campo em pírico da psicolo^c.
Podemos explicitar o argum ento, da seguinte form a H averia em Cristo, um só “eu” ou dois? O teologo dc
a) Cristo é eterno e, en tretan to , nasce no tem po. "No navegar entre dois escolhos: ou confundir naturezas hui -
princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo na e^divina em Cristo, ou acentuar de tal m odo a autonom n
era D eus” ( J o l , l ) . "Antes que Abraão nascesse, eu sou" da natureza hum ana do Senhor, que p rà tic a m e n te n eg a^
(Jo 8,58). "Nascido, pois Jesus em Belém da J u d é ia ...” a unidade da Pessoa, adm itindo a existência de duas pessoa
(M t 2,1). "E o Verbo se fêz c a r n e . ( J o 1,14). unidas apenas p o r um nexo moral. ' lima
b ) Cristo desce do céu, existe na terra; “habitou P ara nossos contem porâneos o term o pessoa tem uma
entre nós" (Jo 1,14) sem deixar de existir no seio do Pai: significação prevalentem ente psicológica9. Além de um cor­
"Quem m e viu, viu o P a i... eu estou no Pai e o Pai está em po anim ado, a personalidade envolve sensibilidade ateü-
m im ” (Jo 14,9-10). vidade, inteligência, vontade livre. Nesse conjunto de qua­
c) Cristo é ao m esm o tem po igual ao Pai e inferior a lidades, os elem entos característicos, diferenciais, sao a
êle: "E u e o Pai somos u m ” (Jo 10,30). "O Pai é m aior que inteligência e a vontade livre que perm item ao hom em de
eu” (Jo 14,28). ser autônom o, dirigir a própria vida para alcançar um fim
Essas afirm ações co ntrárias e sim ultâneas, só podem alm ejado. Desde que encontram os um ser revestido des­
ser verdadeiras se adm itim os a existência de duas "n atu re­ sas qualidades, não lhe regateam os o nom e de pessoa .
zas”, hum ana um a, divina a o u tra : Cristo é verdadeiro ho­ Pelo contrário, os anim ais, em bora dotados de um corpo
m em e verdadeiro Deus. anim ado e de sensibilidade, nao são "pessoas” porque nao
De outro lado, como os predicados contrastantes são são senhores de si mesm os; são meros fantoches movidos
sem pre atribuídos pelos evangelhos ao mesm o e único Cristo, pelo instinto. Ora, aplicando essa doutrina à hum anidade
devemos concluir que êles se unem num a só Pessoa. Duas de Cristo, somos fortem ente inclinados a lhe atrib u ir uma
pessoas em Cristo, seriam dois Cristos. Ora nos evange­ personalidade própria. Com efeito, o ^inventário que fizemos
lhos não encontram os sequer um resquício de qualquer dua­ acim a das qualidades atribuídas a Cristo pela E scritura,
lidade de Cristos. Jesus é estritam en te uno, em bora verda­ m ostram a existência, em Cristo-homem, de um corpo ani­
deiro hom em e verdadeiro Deus. Cristo é um a só Pessoa. mado, de sensibilidade, afetividade, inteligência e vonta­
de livre. Que falta pois, à hum anidade do Senhor p ara me­
recer o nom e de pessoa? Ao contrário, se negam os à hu­
Uma só Pessoa m anidade de Cristo a personalidade, logo parecerá que lhe
negamos um corpo, um a sensibilidade etc. Em consequên­
cia, indagaríam os que espécie de hum anidade foi unida a si
O im enso surto das ciências psicológicas nos últim os mesm o pelo V erbo? Não seria algo hum ano; talvez restasse
cem anos, não podia deixar de rep ercu tir -sôbre os mais um corpo bruto; m as um ser assim m utilado, poderia ain­
variados setores do saber h u m ano: literatura, pedagogia,
da ser cham ado "verdadeiro hom em ”? •
publicidade, relações hum anas etc. A cristologia não podia Ao contrário, se afirm am os que a hum anidade de Cristo
fugir à sorte comum. Não só foram publicadas vidas de é um a "pessoa”, logo serem os acusados de heresia, pois a
Cristo, refertas de análises psicológicas, mas os mesmos
teólogos, am pliando seu cam po de pesquisa, entraram a pers- <j u ã ta m b é m q u e m a t r i b u a a o te r m o u m s e n tid o m o r a l. p a ra
is qualidades de c a r á t e r d e u m in d iv íd u o .
8 S e m p ite r n u s R e x , n. 35.
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fé ortodoxa afirm a vigorosam ente que, em Cristo há uma m oralm ente ao Verbo pelos dons da graça. Por outras
só Pessoa que é divina: a pessoa do Verbo, Filho de Deus. palavras Jesus não passaria de um santo, o m aior de todos,
Assim Pio X II censura os protestantes lib e ra is: "Êles se sem dúvida, mas não seria Deus.
represen tara Cristo como um homem, dotado de divinos Dada a am bigüidade do têrm o "pessoa”, com a conse-
carism as, rhais do que os outros; unido m isteriosam ente qüente possibilidade de conflitos m uito graves, cum pre dis­
com a divindade, e pertíssim o de Deus; m as estão m uito crim inar com exatidão o que psicólogos, filósofos e teólogos
longe da in te ira e genuína profissão da fé católica. Outros entendem respectivam ente p o r "pessoa”.
enfim, não reconhecendo nada de divino em Cristo, decla­ De um modo geral, observam os que o psicólogo se m an­
ram-no sim ples homem, adornado sim, de peregrinos dotes tém exclusivamente sôbre a plano em pírico dos fenômenos,
de corpo e de alma, m as sujeito tam bém a erros e à fra­ o teólogo e o filósofo, porém , sem negar o plano empírico,
gilidade hui113113- Disto aparece evidente que todos êsses, forcejam p o r ir além e chegar ao plano ontológico da subs­
igualm ente a Nestório, querem com tem erária ousadia “di­ tância. Como se opera a passagem de um plano a outro?
vidir C risto'’* e portanto consoante o testem unho do apósto­ Analisando filosoficam ente um hom em qualquer, Pedro,
lo S. João ''n ao são de Deus" 10. nêle discrim inam os um feixe de fenômenos psico-somáticos
Pio X ll censurou em conseqüência certos teólogos ca­ sem pre a variar; Pedro evolui no tem po, êle nasce, de criança
tólicos contem porâneos, que exageraram a autonom ia da passa a ser adolescente, rapaz, hom em feito, ancião.
natureza hihnana do Salvador, frente à pessoa do Verbo. Mas, no seio desta complexidade, dêste perpétuo vir
"E m bora n&da im peça que a hum anidade de Cristo seja a ser, algo perdura; que liga, unifica, a m ultiplicidade e a
m ais profuíidam ente estudada tam bém sob o aspecto psi­ diversidade das vivências, um princípio suprem o de existên­
cológico, não falta quem nessas investigações tão difíceis cia e de atividade, m ercê do qual êstes fenômenos m últiplos
e sutis abandone as norm as antigas m ais do que é justo, e cam biantes sejam todos e cada um de Pedro, a êle perten­
e constru a novas teorias usando indevidamente, p ara as sus­ cem e a mais ninguém . É Pedro que vê e ouve, pensa, ama,
ten tar, da au t°rid ad e do concilio de Calcedônia. quer, decide-se, tom a iniciativas. H á algo que faz de Pedro
Tais autores descrevem a natureza hum ana de Cristo um indivíduo com pleto, acabado, inviolável, incomunicável;
de tal form a que parece conceber-se como um sujeito de ninguém pode pensar em lugar de Pedro, com a inteligência
per si, com ° se não subsistisse na pessoa do Verbo. Ora, de Pedro. As variadíssim as atividades de Pedro, têm varia-
o concilio de Calcedônia, plenam ente de acordo com o de díssimos princípios próxim os, tal ou tal órgão sensorial, tal
Éfeso, afirrha com m eridiana clareza que am bas as natu re­ ou tal id é ia ... Todavia êstes princípios tendem , convergem,
zas do nosso R edentor estão unidas em um a só Pessoa e p ara o mesmo p o n to : Pedro, indivíduo com pleto, autôno­
subsistência "e proíbe p ô r em Cristo dois indivíduos, de mo­ mo, livre, dotado de iniciativa, capaz de dirigir suas ações,
do que se coloque junto ao Verbo um como "homem as­ responsável p o r seus atos.
sum id o ” dotado de inteira autonom ia p r ó p ria " JI. A êste princípio derradeiro de existência e de atividade
Com efdto, colocar em Jesus não só duas naturezas livre cham am os m etafísicos, e os teólogos com êles, perso­
— divina e hum ana — diversas e inconfusas, m as ainda nalidade. Personalidade é pois êste X m isterioso, que faz
duas pessoas, hum ana uma, divina a outra, seria fazer ru ir de cada indivíduo algo de único e de insubstituível. Não
pela base a fé cristã, pois nesta perspectiva o Verbo não é objeto de experiência, m as corresponde a um a necessidade
se te ria feito carne. Cristo seria um pu ro homem, unido racional, pois é fruto de um a dedução rigorosa a p a rtir de
dados da experiência; de o u tra form a o hom em concreto que
10 i J o 4,3. X I> E n c íc lic a Lux v e r ita tis . D oc. P o n t. 94, n. 37.
11 Pio xil, E o cíclic a Sempiternus Rex. Doc. P ont, 81, n. 32-33. encontram os a cada passo, seria ininteligível. Notemos

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enfim que como princípio suprem o das atividades de Pedro,
c) A dualidade de natureza, se resolve na unidade da
sua pessoa torna-se "centro de atribuição” de todos os p re­
Pessoa divina. A E scritu ra nos revela, em Cristo, m uitos
dicados que convém a Pedro. Como dissem os acima, c a
princípios próxim os de a ç ã o : sensibilidade, inteligência, von­
pessoa de Pedro que vive, se alimenta, dorm e, goza, sofre,
tad e. . . Êstes princípios im ediatos, por sua vez, referem ­
delibera etc. -se a dois princípios m ediatos que os coadunam : as duas
Procurem os aplicar esta doutrina filosófica à teologia naturezas (p. ex. Cristo m orre enquanto hom em , e ressus­
da Encarnação. cita enquanto Deus). Mas as duas naturezas p o r sua vez
Análise que tentam os fazer do prólogo do 4? evangelho, pertencem a um único princípio suprem o de atribuição, a
m ostrou-nos o V erbo vivendo no seio de Deus desde sempre, pessoa do Filho de Deus. A ela, e só a ela, se referem , em
êle m esm o Deus, pessoa divina. Em dado m om ento do últim a análise, os predicados; os mais diversos e contrários.
tem po, êste V erbo se faz carne, humaniza-se p ara, através de Em vão esquadrinharem os a E scritura, em busca de um a
sua hum anidade nos trazer luz e vida divinas. "A Deus personalidade hum ana autônoma. Tôda a ordem da encar­
ninguém jam ais viu; Deus unigênito, que está no seio do nação é atribuída ao Filho sob os olhos do Pai, e ao sopro
Pai, êsse no-lo deu a conhecer” (Jo 1,18), "ninguém conhece do E spírito. Nem vislum bre de personalidade hum ana au­
o Pai senão o Filho e aquêle a quem o Filho quiser revela-lo tônom a existindo e agindo p o r p rópria conta. A hum ani­
(M t 11,27). ( n dade de Jesus pertence ao Verbo. Quando êle nos descobre
Quais as relações entre o Verbo divino e a "carne que algo de seu ser m isterioso, tôdas as afirm ações que êle faz
êle revestiu? sôbre si m esm o visam um só s u je ito : o Filho. De m odo que
R ecordando os dados que acim a colhemos nos evan­ o pronom e "eu", nos lábios de'C risto, designa a Pessoa di­
gelhos, podem os form u lar as seguintes conclusões: vina do Verbo ou Filho. P or outras palavras, o Evangelho
a) O Verbo se indentifica com o Filho Unigênito. São nos m o stra em Cristo, não já dois centros autônom os, mas
dois nom es de um a só pessoa divina. Tivesse a 2a Pessoa um só centro suprem o de atribuição, logo um so eu , e
da T rindade um só nom e — Verbo — e seria ainda possível êste "eu”, é divino. _
cavilar p a ra lhe negar a personalidade, alegando que o "Ver­ R elem brem os alguns textos, já citados, de S. Joao: an­
bo” não é pessoa, senão personificação de um atrib u to divi­ tes que Abraão nascesse, eu sou” (8,58). "E u e o Pai somos
no, como no Antigo Testam ento, a "Sabedoria". Mas e u m ” (14,10). "Agora tu Pai, glorifica-me ju n to a ti mesmo
impossível negar que ser "Filho” denote personalidade pró­ com a glória que eu tive junto de ti antes que o m undo
existisse” (17,5). “Tu me am aste antes da criação do m un­
pria. d o ” (17 24) "Quem me viu, viu o Pai" (14,9). Existissem
b ) O Filho recebe predicados contrários, na E scritura.
duas pessoas em Cristo, e olhar a Cristo nos faria ver um
Como vimos, o Filho existe desde sem pre em Deus e come­
hom em apenas e não a Pessoa do Pai. Mas é possível ver
ça a existir sôbre a terra; está no seio do Pai e habita entre
o Pai ao ver a pessoa divina do Filho que procede do Pai e
nós; é Deus e fêz-se carne. A pró p ria contrariedade dos
se encarnou p ara que pudéssem os ver o Pai. O contato com
predicados nos forçou a adm itir a dualidade de naturezas
a hum anidade de Jesus leva à fé em sua divindade; p o r esta
em Cristo, pois alguns dos predicados denotam Deus (p.
fé crem os que Jesus é o Filho enviado pelo Pai. Aquele
ex. a eternidade) outros o hom em (p. ex. a m o rte). Se qui­
que crê em mim, não crê em mim, mas sim naquele que me
serm os conservar tôda a densidade dos textos evangélicos
enviou, e aquêle que me vê, vê aquêle que m e enviou” ( Jo
adm itirem os que Cristo é a um tem po verdadeiro Deus e
12,44-46). Tôdas estas afirm ações de Jesus sôbre sua divin­
verdadeiro hom em . ' '■ - dade, êle as faz p o r conceitos, voz e vocábulos hum anos; e

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palavras, gestos, atitudes, nos desvendam os segredos do
um “eu” divino servindo-se de meios hum anos, meios que Pai, obram m ilagres que autentificam a mensagem; seus
não pertencem a um o utro "eu”, humano, mas que são ins­ sofrim entos e sua m o rte redim em nossos pecados, nos re­
trum entos de um único "eu ”, divino. conciliam com Deus, fazem-nos filhos adotivos do Pai pela
O com portam ento de Cristo difere muito, sob êsse as- participação da vida divina.
peto, da atitude dos profetas do Antigo Testam ento. Êstes Atos de Cristo, todos êles divinos, porque realizados
faziam questões de frisar que, bem longe de se identifica­ pelo Filho unigênito do Pai, através daquela hum anidade
rem com Deus, de serem iguais a Deus, eram m uito ao con­ que êle uniu a sua Pessoa no seio de M aria, portanto atos
trário, m eras criaturas hum anas, arautos, transm itindo a humanos-divinos. O que nos confunde e faz e rra r é nossa
palavra divina, ou instrum entos de Deus p ara o b rar m ila­ tendência a im aginar a natureza hum ana e a natureza divina
gres. Há dualidade patente. João B atista, por exemplo, como dois todos com pletos, preexistentes e separados. De­
nega ser o Messias, êle é tão som ente um a voz que transm ite pois perguntam os: como se unem?
m ensagem alheia. E nquanto Jesus se proclam a, verdade, luz À pergunta assim form ulada só cabe um a re s p o s ta : a
e vida, distinto do Pai sem dúvida, por sua filiação, mas
resposta herética de N estó rio : Cristo é puro homem, santís­
idêntico ao Pai quanto à sua divindade. Tanto é verdade, simo sem dúvida e, como tal, objeto das com placências do
que os judeus, exasperados, querem apedrejá-lo como blas­ Pai m as conservando sua personalidade hum ana, unido ao
femo: "sendo hom em tu te fazes D eus” (Jo 5,1; 10,33). Verbo por vínculos puram ente m orais °. Em suma, diria­
Ora, Jesus bem longe de aten u ar a afirm ação de sua mos de Cristo, o que dizemos de M aria: em bora seus imen­
divindade, repete que êle é Filho unigênito do Pai, um só sos privilégios, não passa de um a p u ra criatura.
Deus com o Pai.
Todavia, se como diz a fé, a Pessoa do Verbo é anterior
N estas condições é lícito p e rg u n ta r: se a natureza hu­ à Encarnação, a hum anidade de Cristo não se acrescenta ao
m ana de Cristo não constitui um centro de atribuição su­
Verbo, ela chega à existência tão só na m edida em que
prem o e autônom o, que será ela, qual a sua função? Tão
o Verbo a cham a a si une-a a sua Pessoa, fá-la substituir. A
ligada à Pessoa divina do Filho, sem todavia confundir-se sentença de S. João “o Verbo se fêz carn e” im plica uma
com ela, só lhe convém scr o órgão, instrum ento, de Filho na
união da "carne” ao Verbo, não apenas m oral, m as ainda
sua obra de salvação.
ontológica, substancial. Como diz S. Cirilo — "De modo
Teremos pois um a só Pessoa do Filho que atua ora por
algum é lícito cindir o nosso único Senhor Jesus Cristo em
sua natureza divina, ora p o r sua natureza hum ana. Dire­
dois filhos. . . ” Com efeito, a E scritura não diz que o Verbo
mos p. ex. que Cristo m o rreu "com o” ou "enquanto” homem, associou a si a pessoa hum ana, m as que êle se fêz carne.
e que ressuscitou "com o” ou "en q u an to ” Deus. É sem pre o
Dizer pois, que o Verbo se fêz carne não significa senão que,
mesmo Cristo, Filho unigênito, que age através de sua n atu ­ como nós, êle se uniu com a carne e com o sangue; p o r isto,
reza divina ou de sua natureza hum ana. O Verbo uniu tão fêz seu o nosso corpo, e nasceu hom em de um a m ulher, sem
estreitam ente a si a hum anidade de Jesus que não lhe deixa contudo abandonar a divindade e a filiação tirad a do Pai;
qualquer autonom ia. A hum anidade de Jesus existe e age p o rtan to em tom ando a nossa carne, ficou sendo o que
tão som ente como hum anidade de um a Pessoa divina l2*. e ra ” 14 .
Somos homens, e Deus no seu incompreensível amor, Em Cristo pois, o hom em subsiste pelo Verbo, e o Verbo
quis nos revelar sua verdade e nos com unicar sua vida, ser­
se to rn a presente ao m undo de um nôvo modo, pela sua
vindo-se de um in stru m en to hum ano, Cristo-homem. Suas
13 P io X I, L u x v e r ita tis , n n . 29, 33, ;i7.
12 P io X I, E nc. Lux v e r ita tis , n. 30; P io X II, E nc. Sempifemu.*? Rex, 14 C ita d o p o r P io X I, 1. c ., n. 21.
n. 21.

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hum anidade. De certo antes da Encarnação, o Verbo estava
Algo de análogo a essa evolução dialética se ver^ ^
presen te ao m undo, jun tam en te com o Pai e o E spírito
tam bém no cam po teológico. Assim é que N estono exage­
Santo, como criador e governador deste m undo. A E ncar­ rava a diversidade de naturezas em Cristo, ao ponto de m
nação não destrói tal presença, m as lhe acrescenta um a d estruir a unidade ontológica e psicológica, afirm ando a
o u tra : o Verbo, e só êle, está presente a nós como irm ão dualidade das pessoas, unidas tão som ente por um laço mo­
nosso, redentor nosso. P ara isso une à sua Pessoa, do modo ral Donde Cristo não é senão um . puro hom em e a Virgem
m ais íntimo, um corpo, um a alma, logo u m a natureza hum a­ M aria não é Mãe de Deus, mas de um homem chamado
na, de m aneira que, contem plando a carne de Cristo, pode­
J 6SUS.
mos dizer com tôda a verdade: esta carne é do V erbo divino. Tal extrem ism o devia provocar um a reação; tentou-a
O que caracteriza a hum anidade de Cristo, não é carecer Eutíques; m alogrou porém , caindo na heresia oposta. Com
de personalidade p ró p ria (carecer, em conseqüência, de au­ efeito, na sua faina de esm agar o nestoriam sm o, exagerou
tonom ia), m as existir em dependência da Pessoa do Verbo, de tal form a a unidade de Cristo, que acabou confundindo
ser instrum ento dela, o que é sum a dignidade. Não deve as duas n atu rezas: da fusão de am bas resultaria a umca
ser entendido literalm ente o "desceu do céu" que dizemos
pessoa de Cristo. E stran h a m istura!
no Credo da m issa solene. Em verdade, a Encarnação não O nestorianism o é herético p o r contradizer abertam ente
é a viagem m aravilhosa que fantasiava nossa im aginação de a doutrina p o r Deus revelada, e proposta à nossa fé pela
crianças. Sendo im anente a tudo, logo presente a tudo o Igreja. Mas nada tem de absurdo. Aí estão a SSma. Virgem
V erbo não precisou deslocar-se p ara vir a Nazaré, no seio e os dem ais santos, a nos m o strar que nada apresenta de
da Virgem. Se dizemos que o Verbo "se fêz carn e”, é sim ­ contraditório à união, pelo am or, de um a pessoa hum ana
plesm ente p ara indicar um a nova m aneira de estar p re­ com Deus. O nestorianism o .até a tra i o psicologismo mo­
sente, onde já se encontrava. S. B ernardo diz num a bela
expressão que, na Encarnação, não há um ausente que so­ derno. , . ^ , .
O eutiqueanism o, m uito ao contrário, sôbre ser heretico,
brevem , mas sim um a presença velada que se descobre é contraditório em si mesmo. "Não advertiu Eutíques que
( Serm o 3 de Adventu). Êsse nôvo m odo de estar presente antes da união de modo nenhum existiu a natureza hum ana
não deve ser concebido qual “descida” do Verbo, mas como de Cristo, pois esta com eçou a existir no instante de sua
"su b id a” do homem. Bem longe de Deus descer, é a cria­ conceição; depois da união, é absurdo su sten tar que das
tu ra que sobe. duas naturezas se fêz apenas uma; pois de modo nenhum
duas naturezas verdadeiras e concretas se podem reduzir
a um a só, tanto mais que a natureza divina é infinita e
Nestório e, Eutíques 15 im utável” 16. _
O que poderia nos induzir em êrro é um a com paraçao
Afirmava Bergson que um a das leis que regem a evo­ m uito usada pelos teólogos e até adotada pelo símbolo dito
lução dos fatos sociais é a "lei do duplo frenesi". Acentua­ de Santo Atanásio, como expressão da fé da Ig reja: "Como
-se de tal form a um aspeto da realidade — verídico porém a alm a racional e a carne, constituem um só homem, assim
parcial — que o abuso mesmo gera um a reação exagerada. Deus e o hom em são um só C risto” 17.
acentua-se p o r demais o aspeto oposto. E sta com paração tem valor — sobretudo quanto inter­
p retada à luz da filosofia aristotélica — porque exterm ina
15 N e s tó r io , p a t r i a r c a de C o n s ta n tiu o p la , fo i c o n d e n a d o pólo C o ncilio do
ffifeso, em 431. E u tíq u e s , a r q u im a n d r ita d e u m dos p rin c ip a is c o n v en to s de
C o u a ta n tm o p la , xoi c o n d e n a d o p elo C on cilio de C a lc e d ô n ia em 451. ic; P io XXI, E n c . S em yitern u s R ex, n.
17 D e n z in g e r, E n e h . Sym ta., n. 40.

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ü neslorianism o. Com eíeilo, alm a e corpo não se unem
apenas por um laço m oral, senão por um laço ontológico. Observam os autores que esta predicação recíproca só
Unidos, corpo e alm a não são dois sêres m as um a só pessoa vale usando predicados concretos, os quais designam a pes­
humana: Pedro. Assim Cristo não é com posto p o r duas soa (p. ex. Deus, êste hom em ) enquanto os têrm os ab stra­
pessoas, hum ana u m a divina a outra, ligadas en tre si por tos designam a natureza. A firm ar os têrm os concretos uns
m útuo am or, mas há nêle um a só pessoa: a pessoa do Verbo dos outros, é afirm ar a unicidade da pessoa; afirm ar os tê r­
eterno, Filho do Pai. mos abstratos uns dos outros, seria afirm ar com Eutíques
E ntretanto, ou tro s aspetos há, na com paração, que po­ a unicidade da natureza, ou seja, soçobrar no "monofisis-
m o” herético.
deríam levar os incautos ao eutiqueanism o. Com efeito,
alma e corpo são dois princípios incom pletos, ordenados A fé católica traduz do seguinte modo as afirm ações
um ao outro, de cuja união surge um nôvo se r: êste ho­ que utilizam a com unicação dos idiomas. "Deus m orreu"
mem. Aplicada a Cristo, esta doutrina levaria a conceber significa: o m esm o Jesus, que como segunda pessoa da Trin-
a hum anidade e a divindade como duas p artes ou elem entos a e e Filho do Pai, como homem, nasceu, sofreu, m orreu,
imperfeitos, ordenados um ao outro; ora, a divindade não esus é eterno significa: o mesm o Jesus que, como ho­
é im perfeita nem ordenada à hum anidade. A Pessoa do
mem, nasceu no tem po da Virgem Maria, é como Deus, o
Verbo preexiste à união e não é produzida p o r ela, como a Verbo eterno. Na verdade, o mesm o que é Filho de M aria
pessoa hum ana resu lta da união da alma e do corpo. e Filho de Deus Pai. Logo pode-se dizer, com igual razão,
que Cristo é eterno ou que nasceu em Belém, pois a m esm a
A alma, unindo-se ao corpo, adquire algo que lhe faltava,
enquanto à pessoa divina nada falta, pois é perfeita. Deus Pessoa que, segundo a natureza divina é eterna, fêz-se se­
não m uda nem pode m udar. gundo a natureza hum ana, criancinha recém-nascida.
Do que até aqui foi dito, podem os colhêr as seguintes
verdades, que são como um escôrço ou resum o de nossas
análises:
A “comunicação dos idiom as”
A) Os conceitos de personalidade” em psicologia e em
m etafísica não coincidem; tão pouco, se excluem, m as se
A unicidade da Pessoa e a duplicidade das naturezas, com pletam .
em Cristo, justifica a cham ada "com unicação dos idiom as”. P ara o psicólogo a "personalidade” consiste em um
Neste contexto, "idiom a” significa não já língua, dia­ conjunto de elem entos psico-somáticos, em piricam ente ave-
leto, mas sim “propriedade". Comunicação dos idiomas riguáveis. O m etafísico, aceitando, em bora os dados em pí­
vem a ser atribuição a êste homem Jesus de propriedades ricos, m antém que êles não são plenam ente inteligíveis, sem
divinas, e a êste V erbo divino encarnado, de propriedades
um princípio suprem o de unidade e de operação, em virtude
humanas. Supõe o fato que um a só Pessoa possui ao m es­
do qual um ser é "centro de atribuição” de todos os predi­
mo tempo duas naturezas, hum ana e divina. Tom a-se im­ cados pertencentes a um indivíduo hum ano concreto.
possível no n esto rian ism o : duas pessoas não se podem p re­ B) A natureza hum ana de Cristo, tendo em bora m uitos
dicar uma da outra, pois a pessoa é incomunicável. Pelo dos elem entos constitutivos da personalidade hum ana, care­
contrário, na do u trin a católica, as propriedades hum anas ce todavia de um princípio suprem o humano de unidade
podem ser atrib u íd as a Deus (p. ex. Deus m o rreu) e vice-
e de operação. A Sagrada E scritu ra sem pre refere todos
versa (p. ex. êste hom em é eterno). O m esm o que é Filho
de Deus é ju lh o de M aria é, em verdade, Mãe de Deus, e não
D P rfP ip S r^ fív pl°£r ê n c ia ”~ n^ ° é -Un' a im Pe rflii<;ão; m u ito ao c o n trá rio , é s u m a
apenas mãe do hom em Jesus como queria Nestório. hf.m o n » A c o m u n ic a ç ã o cio p ro p rio e x is tir do V erbo, de m o d o que a n a tu r e z a
h u m a n a de C ris to só e x is ta d e p e n d e n te m e n te do V erbo e te rn o .

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7. - M is té rio d e C risto 97

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os predicados de Cristo a um só centro suprem o de a tri­ a si mesmo. A tom ada de consciência do "eu” em pírico é
buição que é a pessoa divina do Verbo ou Filho. de princípio obscura. Só as análises posteriores tornarão
C) Não sendo "pessoa”, a natureza hum ana de Cristo clara, explícita, a consciência do próprio "eu ”. Pode-se até
carece de autonom ia, ela não passa de instrum ento conjunto chegar, pela reflexão, à personalidade ontológica.
da Pessoa do Verbo que se encarnou p ara rem ir a hum anida­ Aplicando à cristologia, perguntam os se em Cristo exis­
de. Foi atuada através de sua natureza hum ana que o Filho tia auto-apreensão. A resposta só pode ser afirm ativa, sem
nos salvou. qualquer espécie de dúvida. H om em perfeito como era,
Cristo tinha vida psíquica sem elhante à nossa; apreendia
o próprio "eu” como qualquer um de nós. A dificuldade
A consciência hum ana de Cristo consiste em saber se tal consciência se estendia à filiação
divina.
Levados, talvez, pela atm osfera de "psicologism o” que Quando Cristo tantas e tantas vêzes afirm ava que era
respiram os todos, os teólogos contem porâneos m uito têm o Filho do Pai, teria êle consciência disso como tinha cons­
investigado a e stru tu ra da consciência hum ana de Cristo. ciência de ser filho do homem?
Indagam sobretudo se Jesus tinha consciência de ser Filho
R esponderam alguns teólogos negativam ente. A cons­
de Deus.
ciência hum ana de Cristo, argúem êles, apreendia exclusiva­
V árias e contrastantes as soluções aventadas, subtis e
m ente o que nêle havia de hum ano, nada mais. A filiação
ásperas as discussões desencadeadas. Fiel à norm a form ula­
divina, p o r ser intrinsecam ente sobrenatural, escapa à apre­
da desde o início desta "In tro d u ção à teologia" e repetida
ensão, não apenas da sensibilidade, m as ainda da inteligên­
no capítulo an terio r não nos em brenharem os no cipoal das cia hum ana.
controvérsias. Indicarem os som ente de um modo geral, as
soluções propostas, e direm os de modo m ui sucinto, o que Assim sendo, com que direito afirm ava Jesus, com
nos parece m enos desacertado adiantar. ta n ta insistência, que era Filho do Pai? Respondem êsses
Antes de tudo convém d eterm in ar com exatidão, o que teólogos que, em bora não tivesse consciência da sua filia­
se entende p o r "consciência hum ana de C risto”. ção divina, Cristo sabia que a sua divindade era real. Do
Contemplo um a rosa. O psicólogo dirá que tenho um a m esm o m odo sei que sou brasileiro, em bora não tenha a mí­
percepção visual, a saber, tenho um conhecim ento sensível nim a consciência de sê-lo. Mas êsse saber b asta p ara que
do objeto "ro sa”, o qual é realm ente distinto do próprio eu não m inta ao afirm ar m inha nacionalidade. Temos aqui
fenôm eno perceptivo que apreende a flor. Mas além de um a sim ples aplicação da distinção óbvia entre conheci­
conhecer esta flor, experim ento tal fenôm eno perceptivo co­ m ento do objeto (saber) e conhecim ento de si (consciência).
m o sendo meu. Ao lado do conhecim ento do objeto, tenho O utra coisa conhecer um a rosa, o u tra conhecer que eu es­
o conhecim ento do su jeito : sou eu e não o u tro que con­ tou apreendendo um a rosa. Mas n a falta de auto-apreen­
tem plo a rosa. são, Cristo como Verbo conhecería sua filiação divina.
Tal conhecim ento do sujeito é apreensão im ediata, in­ O utros teólogos invocam a visão beatífica, outros a ciên­
cia infusa 15.
tuitiva, vinda do próprio ato de conhecer. O "eu" não é dis­
tin to do conhecim ento que o exprime. N um prim eiro tipo
de conhecim ento tem os dualidade objeto-sujeito; num se­ 19 E x p lic a re m o s m a is ta r d e , em que c o n aiate u m a e o u tr a c iê n c ia . P o r
o r a b a s t a d iz e r que c iê n c ia b e a t íf ic a o u v is ã o é a in tu iç ã o d e D e u s ta l qual
gundo tipo, o conhecim ento se identifica com o sujeito ê le é em si, logo v is ã o c la r a d a u n iã o h ip o s tá tic a . C iê n c ia in f u s a é co n h eci­
m e n to c ria d o im e d ia ta m e n te p o r D e u s (p , e x ., e c o n h e c im e n to p r á tic o ) . C risto
que conhece. O fenôm eno psíquico é como tran sp aren te coniu h o m e m tin h a a m b a s a s c iê n c ia s .

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Conhecedor p o r um a ou outra ciência, da filiação divi­ do da pessoa. É Pedro que vê, pensa, quer, reso lv e...
na, Cristo podia afirmá-la em bora não a experim entasse. Através dêsses atos, m orm ente dos atos de livre escolha,
Conhecimento de si mesmo, Cristo-homem só o tinha de tom am os consciência de nossa autonom ia. Ora, as faculda­
sua natureza hum ana como qualquer outro homem. Não des hum anas de Cristo são orientadas, dirigidas pela pes­
fôra a ciência beatífica ou a ciência infusa, Cristo ignoraria soa divina, logo através das atividades suscitadas pela pes­
que era o Unigênito. Teria apenas consciência de si como soa do Filho, êle percebia hum anam ente sua filiação divina.
homem, sem saber que a sua hum anidade não era um a Se nos fôr perm itido expressar um a opinião p esso al20,
Pessoa. ^ _ direm os que nos parece dificilm ente adm issível que o fato
O utros teólogos, ao contrário, afirm am a existência, em da natureza hum ana de Cristo carecer de personalidade on-
Cristo, de um a consciência hum ana da filiação divina. tológica, não tenha repercussão algum a sôbre o conhecimen­
Cristo, como homem, argúem, tinha consciência de si tal to hum ano de Cristo. N egar tôda projeção da personalida­
qual era, ora êle não era puro homem, autônom o, não ti­ de ontológica sôbre o plano em pírico, seria reduzi-la a um
nha "eu ” p uram ente hum ano, senão era Filho de Deus. De­ m ero rótulo ou convenção, desprovida de qualquer eficácia.
via ter, em conseqüência, apreensão obscura, pré-concei- Com efeito, se a consciência hum ana de Cristo só lhe reve­
tual, vivida, de sua filiação divina. A visão intuitiva apenas la um "eu" hum ano norm al, serem os levados a conceder-
explicitaria, com pletaria, a consciência hum ana do Filho de -Ihe tôdas as características da personalidade ontológica.
Deus. Sem a visão, Cristo-homem apreendería a sua não- Só não lhe atribuirem os o mesmo nome, p ara acatar a de­
subsistência, ou seja, a sua dependência, sem saber de quem finição de Éfeso.
dependería, pois o Verbo não é objeto de puro saber expe­ A modo de exemplo, suponham os que conform e sus­
rim ental hum ano. O princípio da unidade psicológica de tentavam certos heresiarcas antigos — Jesus fôsse um sim­
Cristo-homem seria sua consciência hum ana ilum inada pe­ ples homem até o seu batism o pelo precursor, quando o
la visão beatífica e não já corrigida ou retificada p o r ela. Verbo se apoderou dêste homem — deveriam os dizer que
Conhecimento de si de puro hom em e conhecim ento Jesus soube então, pela visão beatífica, que ela pertencia
de si de Cristo-homem têm e stru tu ra sem elhante; são sem ­ ao Verbo, enquanto sua consciência h u m a n a não registraria
pre auto-apreensão de um sujeito nos seus atos. qualquer sinal dessa apropriação, não percebería qualquer
O que os diferencia é o sujeito que tom a consciência abalo, qualquer m udança. Continuaria a agir como dantes,
de si: num caso será um puro homem, no outro será o em plena independência, autonom ia.
V erbo que começa a te r hum anam ente consciência de ser Ou suponham os inversam ente — segundo a opinião de
Filho de Deus. Antes de se encarnar, o Verbo tinha ciência outros heresiarcas antigos — que, no m om ento da paixão,
divina de sua filiação, experimentava-a; um a vez hum anado o Verbo tivesse abandonado a hum anidade de Cristo, para
tem consciência hum ana desta filiação. Uma coisa é apre­ se recolher ju n to ao Pai — cum priría adm itir que a cons­
ensão divina, o u tra é apreensão hum ana de um a pessoa ciência hum ana de Cristo não experim entaria qualquer m u­
divina. dança em conseqüência da ru p tu ra da união hipostática.
Outros teólogos, enfim ; opinam que se deve apelar, P erg u n tam o s: que faltaria a esta natureza hum ana pa­
p ara resolver o enigma, ao influxo exercido pelo Verbo so­ ra ser pessoa, não apenas psicológica, m as tam bém onto­
bre a psique hum ana do Cristo. lógica? Como salvaguardar, nessas condições, a união hi­
Nossas faculdades ou funções psíquicas, são princípios postática? Não basta atrib u ir à pessoa do Verbo os atos
im ediatos de ação; a pessoa é princípio derradeiro dela.
20 N ã o a p r e s e n ta m o s o q u e s e g u e com o d o u tr in a c e r ta , nem m e sm o como
P ensar é obra da inteligência, mas a inteligência age a m an­ o p in iã o p ro v á v e l, m a s co m o s im p le s c o n je tu ra .

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da natureza hum ana de Jesus; a dificuldade consiste em cológica de Cristo devia registrar algo dêsse estado de coi­
ju stificar tal atribuição. Por êsse motivo os atos brotados sas, dessa situação anômala. O Verbo encarnado devia ex­
da natureza hum ana de Cristo, devem p erten cer não já a p erim entar sua condição de Filho, não apenas pela ciência
um a pessoa hum ana m as a um a pessoa divina, logo hete- divina (com o Verbo) m as ainda pela sua consciência
rogênia, que exerce influxo sôbre a hum anidade do Senhor. hum ana. O "eu" que se expressava pelas afirm ações de Cris­
Poder-se-ia alegar que a consciência se encontra no pla­ to relatadas nos evangelhos não era um "e u ” hum ano, era
no em pírico e não no plano m etafísico ou ontologico. Sem um "eu ” divino, tanto assim que êle podia dizer: "Eu e meu
dúvida; m as cuidemos em não tran sfo rm ar a distinção em Pai somos um só ”, ou ainda: "Antes que Abraão nascesse eu
separação ou m esm o em oposição, cavando um abism o entre so u ”. "Eu" divino que tom ava hum anam ente consciência de
consciência e Pessoa, com prom etendo a unidade de Cristo. si através de conceitos e juízos hum anos. Não basta dizer
Dois indivíduos autônom os e incom unicáveis — "eu” divi­ que Cristo conhecia a sua divindade pela visão beatífica ou
no e “eu” psíquico — seriam na verdade duas pessoas em pela ciência infusa, é ainda necessária um a apreensão expe­
Cristo. Ê ste se tornaria, em conseqüência, u m aglom erado rim ental hum ana. Êle não devia apenas "saber" que era
de duas entidades heterogêneas e justapostas. A unidade Filho de Deus, m as ainda "viver” esta filiação, pois era a
ontológica de Cristo — u m a só pessoa, a pessoa do Verbo — pessoa do Filho do Pai que se expressava p o r conceitos e
deve repercutir, parece-nos, no plano psicológico da conciên- juízos hum anos, o que exigia a consciência hum ana de que
cia hum ana de Cristo, de o u tra form a a sua personalidade seus atos eram atos do Filho do Pai. Portanto, parece-nos
ontológica ou m etafísica, não passaria de um a entidade que desde o prim eiro instante da Encarnação, a Pessoa do
abstrata, irreal. Filho veria esta sua filiação divina, não apenas pela cons­
Do m esm o modo, à dependência ontológica da natureza ciência divina, m as pela sua consciência hum ana. E sta úl­
hum ana em relação à pessoa do Verbo, deve corresponder tim a não tem p o r objeto um “eu” hum ano, pois êste "eu"
um a dependência psicológica na consciência hum ana de não existe em Cristo, mas tem por objeto a Pessoa divina,
Jesus. Análise psicológica e análise ontológica não atingem enquanto ela se expressa por atividades psíquicas hum anas.
entidades diversas, m as tão só aspectos diversos, com ple­ Quem se apresenta à consciência hujnana não é "um como
m entares, de um só se r: a pessoa concreta. Tão fraco nos­ hom em assum ido, dotado de inteira autonom ia p ró p ria ”21,
so intelecto, tão complexa a realidade, que nos vemos obri­ é o Verbo hum anado que tem consciência de si como ho­
gados a en carar um só e m esm o ser sob ângulos diversos. mem. Assim a Pessoa divina que funda e assegura a unida­
Mas nossas análises psicológicas devem se prolongar em de ontológica de Cristo, funda e assegura tam bém sua uni­
análises ontológicas. E ntendem os que os m últiplos fenô­ dade psicológica.
m enos psíquicos que continuam ente afloram a nossa cons­
Dir-se-á que intransponível distância ou desproporção
ciência, jo rram de um a fonte de ser e de ação que é nossa
separa a realidade a ser conhecida (a filiação divina) e
pessoa, princípio derradeiro de existência e de operação.
aquêle que conhece (Cristo como hom em ). V aléria a obje­
A experiência íntim a, em bora não nos revele a pessoa em
suas raízes m ais profundas, atinge, todavia sua expres­ ção se Cristo tivesse um a personalidade hum ana que de-
são concreta, sua base psicológica. vária to m ar consciência de sua personalidade divina. Ora,
Aplicando a do u trin a ao caso de Cristo, tem os que a m uito ao contrário, trata-se de um a pessoa divina que
fé católica lhe conhece apenas um a personalidade real, on­ tom a consciência de si por meio de atos psíquicos hum anos.
tológica, a personalidade do Filho de Deus que atua a tra ­ Não afirm am os que a consciência hum ana de Cristo expe-
vés de duas naturezas, divina e hum ana. A experiência psi­
21 P io XIX, E nc. S e m p ite r n u s R ex, n. 33.

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rim entava a divindade, dizemos que ela experim entava a propriedade do Verbo, não apenas nom inalm ente senão
repercussão psicológica de sua carência de personalidade realm ente. São em verdade ações do Verbo, subsistindo
ontológica. Experim enta, a saber, sua falta de autonom ia em sua natureza hum ana. De outra form a, apenas um laço
fren te à pessoa do Verbo, sob form a de sentim ento de de­ extrínseco pren d ería a hum anidade de Cristo a sua pessoa
pendência, como puro órgão da divindade. divina. Teríam os duas séries de fenôm enos ou atividades,
Claro que não vemos o "como" de tudo isso. Mas a sem qualquer laço íntim o que as conjugasse. Ademais não
dificuldade não é p ró p ria à presente questão; cedo ou tard e se entende como um a natureza autônom a poderia ser pos­
ela tru n ca qualquer indagação teológica. Quem investiga suída por um a pessoa que seria distinta dela. Ser pessoa
os segredos de Deus, em breve tem po esb arra no m istério. inclui autonom ia. Não confundam os integridade com auto­
Tão pouco entendem os como a consciência hum ana de nomia. A natureza hum ana de Cristo é íntegra " . . . O Ver­
Cristo pode p erten cer ao Verbo sem deixar p o r isso de ser bo de Deus uniu à sua divina pessoa um a natureza hum ana
hum ana. E n tretan to não hesitarem os em admiti-lo tão lo­ individual, íntegra e perfeita, concebida no seio puríssim o
go houverm os entendido que a pessoa é a fonte derradeira de M aria Virgem p o r obra do E spírito S anto (cf. Lc 1,35).
de tôdas as atividades hum anas. Ela age p o r um feixe de Nada pois faltou à natureza hum ana assum ida pelo Verbo
funções, que os antigos denom inavam "natureza", e que é de Deus; em verdade, êle a possui sem nenhum a dim inui­
um princípio im ediato de o p eração : a pessoa de Pedro age ção, sem nenhum a alteração, tanto nos elem entos constitu­
por sua sensibilidade, sua inteligência e sua vontade. Mas tivos espirituais quanto nos corporais, a sab er: dotada de
observem os bem que a “natureza" não é um a entidade inteligência e de vontade e demais faculdades cognoscitivas
inerte, u m a abstração, à qual atribuiriam os os atos de internas e externas; dotada igualm ente das potências afe­
Pedro p o r u m a ficção ju ríd ica ou p o r artifícios de lógica. tivas, sensitivas e das suas paixões correspondentes” 22.
Não; a n atu reza é um princípio real de ação, em bora re­ Os atos da natureza hum ana de Cristo são pois autên­
m oto. É Pedro (pessoa) que pensa p o r sua inteligência ticos atos hum anos, sem qualquer invasão divina. A inteli­
(natureza). P or outras palavras, o pensam ento de Pedro, gência e a vontade do Verbo não substituem a inteligência
não é apenas pensam ento de um hom em (p o r oposição ao e a vontade hum anas. O que não im pede que os atos psí­
pensam ento angélico ou divino) m as ainda pensam ento des­ quicos da hum anidade do Senhor pertençam à pessoa do
ta pessoa concreta, Pedro, que age racionalm ente como con­ Verbo. São atos dêste hom em que o Verbo é.
vém a um a natureza hum ana. Do ponto de vista da na­ Em duas palav ras: parece-nos impossível que a natu­
tureza, Pedro, Paulo, Tiago, são iguais, pois todos os três reza hum ana de Cristo se com portasse como se não tivesse
sentem , pensam e querem como hom ens que são. Mas do sido assum ida pelo Verbo. Ora para ser responsável das
ponto de vista da pessoa, êstes atos psíquicos sem elhantes, suas ações como hom em , o Verbo precisa governá-las; fazer
revestem u m cunho especial, único. A sensação de Pedro delas seu instrum ento. Nem um só instante a natureza hu­
é dêle, só dêle, inconfundível, incomunicável. N esta pers­ m ana age independentem ente da pessoa divina, a esta cabe
pectiva, não m ais encaram os os atos psíquicos como sim ­ tôda iniciativa, tôda a responsabilidade. P o rtan to a cons­
ples fenôm enos hum anos, mas como pertencentes a tal ciência hum ana deve experim entar, ao m enos obscuram en­
pessoa concreta-: Pedro. te, êsse estado de coisas, isto é, que bem longe de ser autô­
Quando afirm am os que as atividades hum anas de Cris­ noma, independente, ela é possuída, regida, pela pessoa divi­
to pertenciam ao Verbo, não entendem os que elas, por is­ na. De outra form a seria consciência errônea, necessitando
so, deixavam de ser hum anas (a inteligência hum ana de Cris­ de ser corrigida pela visão beatífica ou pela ciência infusa.
to, p o r exemplo, funcionava como a inteligência de qual­
22 P io X II, Ene. H a u r ie tis A quas, n, 23.
q u er contem porâneo seu), mas entendem os que elas são
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A natureza huinana de Cristo carece de autonom ia, Jesus é o Messias, o Filho de Deus. Opiniões interm édias:
tanto no plano ontológico como no psicológico. Logo, esta Jesus é Elias, ou um p r o f e ta ... Jesus continuou a ser sinal
falta de autonom ia, deve rep ercu tir na consciência hum ana de contradição através dos séculos. O motivo dessas diver­
de Cristo, sob form a de sentim ento de dependência, ou me­ gências, é que por ser um m istério, Cristo não pode ser
lhor, parece-nos que essa dependência em relação ao Verbo objeto de evidência racional, mas exige, p ara ser entendido
reveste a form a de sentim ento de filiação. corretam ente, docilidade à luz da revelação divina e não já
Os evangelhos nos atestam a cada passo que Jesus expe­ adesão à "carne e ao sangue" (Mt 16,17).
rim entava sua filiação divina; suas ações revestem um
cunho filial. É a pessoa do Filho de Deus que se m anifesta,
que transparece, através de suas atividades hum anas, o que § 1. A hum anidade de Cristo
supõe a consciência confusa, fru sta m as real, de sua depen­
dência ontológica. Cristo, hom em autêntico.. Heresias prim itivas negadoras
No seio da Trindade a pessoa do Verbo é constituída da existência, em Cristo, de corpo ou de alma verdadeira­
pela relação de filiação. Ao encam ar-se, êle estende às ativi­ m ente hum anas; reação de São João. Realidade do corpo de
dades da n atu reza hum ana da qual se apoderou, um cunho Cristo. Textos evangélicos que afirm am a existência, em
filial. O V erbo encarnado tem hum anam ente consciência Cristo, de um verdadeiro corpo hum ano, com as diversas
de ser Filho do Pai eterno. Tal experiência da filiação p ro ­ partes e dotado de vida de relação, de vida vegetativa, sen-
vém de que a pessoa divina do Filho governa a natureza sorial e afetiva, de inteligência e de vontade.
hum ana de Cristo. É a pessoa divina que tom a iniciativas
e dirige as atividades hum anas do Senhor. Estas são opera­
ções hum anas da pessoa divina do Filho de Deus. § 2. A divindade de Cristo
Por certo Jesus ensinava aos apóstolos a paternidade
divina: êles são em verdade, filhos "do Pai que está nos Cristo profeta? O conhecim ento supranorm al de Jesus e
céus” (M t 7,11). Mas Jesus tim brava em distinguir a sua seus dotes de taum aturgo faziam leipbrar aos judeus seus
filiação das outras. Êle, e só êle, é “o Filho", o Unigênito, grandes profetas. Sem elhanças e diferenças entre o pro-
igual ao Pai. "Ninguém conhece o Filho senão o Pai, e nin­ fetism o de Israel e o profetism o de Cristo, caso único na
guém conhece o Pai senão o Filho e aquêle a quem o Filho história religiosa. Cristo é a Palavra divina encarnada.
quiser revelá-lo” (M t 11,27). Por isso mesm o, quando fala O ptar por ou contra êle, é o p tar p o r ou contra Deus.
de Deus aos discípulos, jam ais diz “nosso Pai” mas sim
O Filho do hom em . A personagem de Daniel. Noção evan­
"m eu Pai”, p ara bem diferenciar a sua filiação. "Eu subo
gélica, a um tem po transcendente e hum ilde. O Filho do
p ara m eu Pai e vosso Pai, para m eu Deus e vosso Deus"
(Jo 20,17). homem, juiz universal.
O Filho do Pai. Filiação natural, adotiva, coletiva. O Rei
de Israel, filho de Javé. A filiação de Cristo como Messias
SÍNTESE e como Unigênito: igualdade de conhecim ento e de ação com
o Pai, fru to da igualdade de natureza, bem mais, da unidade
Sinal de contradição.. Opiniões m últiplas e divergentes dos de natureza. O carpinteiro de N azaré era o Verbo encarna­
contem porâneos de Cristo, sôbre o que êle era em verdade. do, Filho de Deus.
Os e x tre m o s: Jesus é um dem ente ou um endem oninhado; A “K enosis” do Verbo divino. Hino de S. Paulo à humani-
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clade de Cristo. O “aniquilam ento" não só da natureza di- Sentido psicológico, m etafísico, teológico, do term o "Pes­
dena/esu°sm com „ hum anidade d° exaltação gloriosa soa"; passagem de um ao outro. Análise teológica da perso­
nalidade do Verbo encarnado; predicados contrários atri­
í s ^ SaUS; pS Z r S r e Su sd0 " « * * « * ™ * r - A buídos a um só princípio suprem o de existência e de ação.
O prologo de S. João. A teologia joanina do V erbo: sua pree- A hum anidade de Cristo não é autônom a, pertence à do Ver­
xistencia a criaçao, sua distinção de Deus e sua identidade bo, do qual é instrum ento na obra de salvação; ela existe
e age tão só como hum anidade de um a pessoa divina. Atos
H lho ' SUa etem Ídade’ 0 Verbo como Palavra, Luz, Vida, humano-divinos.
Nestório e Eutíques. Ambos heréticos, porém o segundo
menÓsVOo eT , í ° ^ ^ ^ m ° radas de Deus entre °s ho- incide adem ais em flagrante contradição. V alor teológico
C risto e ™ ein ã ™10’ ° t« n p lo de Salomão. O corpo de
C risto e o Templo novo, verdadeiro e definitivo de Deus da com paração da união hipostática com a união entre o
Presença pessoal do Verbo. O corpo de Cristo, ponto de corpo e a alma.
encontro do hom em com Deus.
A “comunicação dos idiomas". O m esm o Jesus é filho de
?e™n^ d° d° PUÍ- „ ° S evanSeIhos (so b retu d o o 4*) insis- M aria e Filho do Pai; logo podem os atrib u ir a êste homem
s r a tu ito ^ n 3 p miSSao ' t ° V erbo' Motivo d e rra d e iro : o am or propriedades divinas, e a êste Verbo encarnado, proprieda­
gratuito do Pai pelos homens. Motivo im ed iato : a obediên­ des hum anas. Em Cristo, todos os predicados hum anos e
cia am orosa do Filho à vontade am orosa do Pai, que queria divinos, tem um só princípio suprem o de atribuição: a pes­
salvar a hum anidade prevaricadora. O Filho cum priu sua soa do Filho.
missão, vencendo o poder das trevas que dom inava o m undo
e tornando-nos filhos de Deus, pela com unicação da vida A consciência hum ana de Cristo. Jesus-hom em tinha cons­
d iv in a. conhecim ento e am or das perfeições de Deus. Don­ ciência de ser Deus? Conhecimento de objeto e conheci­
de inam issivel alegria. m ento de si mesm o. Ia opinião: Cristo sabia (p o r visão
beatífica ou p o r ciência infusa) que era Deus, m as não o
Retôrno ao Pai. Cumprida a sua missão, o Filho retorna experim entava, logo não tinha consciência disso. 2a opi­
glorioso, ao Pai, levando consigo o seu rebanho. nião: Cristo tinha consciência hum ana de sua filiação divi­
na. Conhecimento obscuro, pré-conceitual, de sua depen­
§ 3. A união hiposlática dência do Verbo. 3a opinião: Cristo, através das atividades
suscitadas pela pessoa do Filho, percebia hum anam ente sua
Duas naturezas diversas e inconfusas. A filosofia e sua fun­ filiação divina. — C onjetura: a unidade e a dependência
ção m in isterial em teologia. Os têrm os filosóficos, ab stra­ ontológica de Cristo devem te r qualquer repercussão sobre
tos, em pregados pela teologia, têm um lastro concreto, o plano em pírico, psicológico. Por sua consciência hum ana,
evangehco; logo não são irreais. A atribuição, pela E scritu­ o Verbo encarnado devia experim entar sua condição de
ra, de predicados contrários e sim ultâneos, ao mesmo e Filho. O "eu” divino tom ava hum anam ente consciência de si,
único Cristo, só pode ser entendida, se adm itim os a exis­ vivia sua filiação p o r meio de atos hum anos. Sentia sua
tência nele, de duas naturezas realm ente distintas e unidas dependência frente à pessoa divina. A hum anidade de Cris­
num a só pessoa. to não podia se com portar como se não tivesse sido assum i­
Uma so pessoa. Noção psicológica de “personalidade”. ' da pelo Verbo; ela experim entava sua dependência em rela­
Valera da hum anidade de Cristo? Perigo de nestorianism o. ção ao Verbo. Consciência hum ana incom pleta e obscura
que a visão beatífica vinha aclarar e com pletar.
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e perfeita, concebida no seio puríssim o de M aria Virgem
por o bra do E spírito Santo (cf. Lc 1,35). "Nada pois faltou
à natureza hum ana assum ida pelo Verbo de Deus; em verda­
de, êle a possui sem nenhum a dim inuição, sem nenhum a
alteração, tanto nos elem entos constitutivos espirituais
quanto nos corporais, a sab er: dotada de inteligência e de-
vontade e dem ais faculdades cognoscitivas internas e exter­
CAPÍTULO III nas; dotada igualm ente das potências afetivas e das suas
correspondentes paixões. É isto que ensina a Igreja cató­
AS PERFEIÇÕES DE CRISTO
lica, por estar sancionado e solenem ente confirm ado pelos
rom anos pontífices e pelos concílios ecum ênicos” '.
Além dos docetas que negavam a realidade do corpo de
O m istério da encarnação, como vimos, consiste nisso Cristo, foram condenados os m aniqueus que afirm avam que
que duas naturezas distintas — divina uma, hum ana a outra êsse corpo era ilusório, im aginário, e condenado tam bém
— se unem num a só Pessoa, a Pessoa do Verbo, Filho de V alentim que adm itia um corpo celeste. Essas teorias fazem
Deus.
da Encarnação m era ficção. Ficção tam bém a Redenção; a
Nossa inteligência su p o rta m al o confronto com o m is­ m orte de Cristo seria p u ra aparência. Logo a hum anidade
tério; sofre um a dupla atração : negar ou a distinção das não teria Salvador. Os evangelhos se reduziriam a um a co­
naturezas, ou a unicidade da Pessoa, suprim indo assim o leção de fábulas.
m istério, m as naufragando na h e re s ia : seja o eutiqueanism o,
seja o nestorianism o. Aliás o divino ressuscitado tim brou em provar aos após­
A fé católica, pelo contrário, aceita o m istério que lhe tolos "aterrados e cheios de mêdo porque julgavam ver um
propõe a E scritu ra in terp retad a pelo m agistério da Igreja, espírito”, que êle era um hom em autêntico. "Por que vos
assistido pelo E spírito Santo. Explora assim os tesouros p erturbais e p o r que sobem aos vossos corações êsses pen­
contidos no Evangelho, em prim eiro lugar a integridade da sam entos? Vêde m inhas m ãos e m eus pés, pois sou eu.
natureza hum ana de Cristo. Apalpai-me e vêde, pois um espírito não tem carne nem
ossos como vêdes que eu tenho. Dizendo isto m ostrou-lhes
as mãos e os pés. Ainda não crendo êles, p o r fôrça da ale­
O corpo de Cristo gria e da adm iração, disse-lhes: Tendes aqui algum a coisa
que com er? Deram-lhe um pedaço de peixe assado. E, to­
mando-o, com eu diante dêles” (Lc 24,37-43).
E sta integridade da natureza hum ana de Cristo exigia A escola alexandrina (Clem ente e Orígenes) e tam bém
um corpo bem real. "O Verbo de Deus não tom ou um corpo Tertuliano, aplicava ao corpo de Jesus o que Isaías dissera
ilusório e fictício, como já no prim eiro século da era cristã do servo padecente de Javé: "Sem beleza e sem esplendor
ousaram afirm ar alguns hereges, que atraíram a severa con­ nós o vimos, e sem aparência am ável” (Is 52,2). O Verbo,
denação do apóstolo S. João: "Visto que se hão descoberto segundo êsses doutores, te ria assum ido um corpo despro­
no m undo m uitos im postores que não confessam haver Jesus vido de qualquer beleza. A grande m aioria dos padres, toda­
Cristo vindo em carne; negar isto é ser um im postor e um via, in terpretou êste texto profético do Senhor em sua pai-
anticristo" (2Jo 7). Porém êle, o Verbo de Deus, uniu à
sua divina Pessoa um a natureza hum ana, indivídua, íntegra 1 P io X II, Enc. H aurietia A q u a s, Doc. Pont. 117, n. 23.

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xão. Do corpo form ado pelo E spírito Santo no seio da


Virgem dizem com o salm ista: "Tu és o m ais belo dos filhos norância dos apóstolos, a traição de Judas, o abandono
dos hom ens” (SI 44 Vulg 45,2). to s seus, a dor de sua Mãe ao pé da cruz. Sem falar a
Acreditavam os doutores medievais que Cristo veio rem ir malícia do pecado que Jesus sentiu in ten sam en te: "Ó gc-
a natureza hum ana ferida pelo pecado original; logo assu­ raçao incrédula e perversa! Até quando terei de estar con-
m iu os defeitos comuns aos hom ens e não já as falhas indi­ vosco? Até quando terei de suportar-vos?” (Mt 17,17).
viduais; p o r isto m esm o não contraiu q u alquer doença, Essa sensibilidade, em bora sua pujança, jam ais inler-
pois a doença é um defeito individual. Do m esm o modo, le n u na razao, perturbando-a. Não só não atraía para atos
a m á conform ação do corpo, a falta de h arm onia dos tra ­ ilícitos, como não invadia o campo da razão. Cristo gover­
ços, não são atribuíveis à natureza hum ana como tal, senão nava com perfeita serenidade sua vida sensível, m ostrando­
a falhas individuais. -nos, pelo exemplo, que não devemos d estruir nossa sensibi­
De resto, é de p en sar que a divindade, pessoalm ente lidade, senão submetê-la à razão ilum inada pela fé.
unida ao corpo de Jesus, haveria de lhe com unicar um es­
plendor especial; pois o Verbo não se apropriou da hum ani­
dade de Cristo p ara desumanizá-la ou extingui-la, m as p ara A alma de Cristo.
penetrá-la, elevá-la à p le n itu d e : é a glória de Deus que res­
plandece na face de Cristo (2Cor 4,6). Um corpo tão perleito devia ser aviventado p o r um a
^ Quis, entretanto, o Senhor que êste seu corpo perfei­ alm a perfeitíssim a. A Igreja antiga repeliu os erros de
tíssim o não gozasse de alguns privilégios de Adão in o c en te: Ário e Apolinárió que negavam a existência em Cristo, res­
foi sujeito ao sofrim ento e à m orte, porque devia nos rem ir, pectivam ente de uma alma ou de um a inteligência hum anas,
sofrendo e m orrendo p o r nós. Quis tam bém nos ensinar devendo um a e outra ser supridas pelo Verbo divino (Den-
paciência em nossos males. O sofrim ento e a m orte, não zinger n. 65; cf. 710.) Ambos os erros contradizem aberta­
são em Cristo conseqüências do pecado original, como nos m ente o Evangelho e destroem o m istério da Encarnação,
dem ais hom ens, m as frutos da livre escolha do Salvador. pois que um Cristo desprovido de alm a ou de inteligência
O concilio de Éfeso condenou quem não confessasse hum anas, não seria um hom em verdaâeiro.
que o Verbo de Deus sofreu na sua carne, foi crucificado Devemos m uito pelo contrário, afirm ar a existência em
na sua carne, experim entou a m orte na sua carne (Den- Cristo, de um a alm a hum ana nobilíssim a, vivificando um
zinger, n. 124). % coipo peifeitam ente adaptado a ela. Da união de ambos
A um corpo perfeitíssim o, correspondia um a sensibili­ resultaram um a inteligência e um a vontade superiores às
dade delicadíssim a, fonte de gôzo e sofrim entos excepcio­ dos dem ais homens. Como além da natureza hum ana há
nais. Jesus ^ conheceu . .grandes alegrias: "N aquela h o ra cm C iisto um a natureza divina, segue que devemos profes­
êle sentiu-se inundado de alegria no E spírito S a n to ..." (Lc sar nêle duas inteligências e duas vontades, hum ana uma,
10,21). "Isto vos tenho dito p ara que m inha alegria esteja divina outra, tôdas ao serviço da única Pessoa do Verbo in-
em vós, e vossa alegria seja com pleta” (Jo 15,11;17,11). criado.
E se, conform e o próprio Jesus disse, "há m ais felicidade A piodução da alm a e do corpo de Jesus e a união subs­
em d a r do que em receb er” (At 20,35). Claro está que a tancial de ambos, resultariam norm alm ente em um a pessoa
Encarnação e Redenção foram p ara êle, fontes inexaurí- hum ana autônom a, como sói acontecer com os demais ho­
veis de alegria. Sua sensibilidade, em com pensação, foi mens. Teríam os então um a pessoa hum ana ao lado da pes­
dolorosam ente ferida pelas perseguições dos judeus, a ig-S . soa divina, o que seria nestorianism o. Ou então teríam os
que supor a m utilaçao de um homem, tirando-lhe a perso­
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S. - M is té rio d e c r is to

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nalidade hum ana, para uni-lo a pessoa divina do Verbo. nada tira à natureza hum ana de Jesus — salvo a subsistên­
Mas é bom n o ta r que a ação divina, unindo urna natureza cia autônom a — esta hum anidade de Cristo tem tudo o
hum ana à Pessoa do Verbo, nada lhe arranca. Bem longe que teria se fôsse pessoa hum ana; logo não lhe falta conhe­
de dim inuir a hum anidade de Cristo, engrandece-a sobre­ cimento intelectual como os demais homens. Uma inteli­
modo. Impede-a, é verdade, de ser perfeitam ente autônom a, gência que nunca atu aria seria inútil, supérflua.
mas o Verbo, em compensação, une-a tão estreitam ente a Alguns teólogos medievais opinavam que Cristo, como
si, apoderando-se dela, fá-la a tal ponto sua, que ela partici­ homem, conhecia utilizando a inteligência divina. Mas ês-
pa de sua santidade e dignidade. te recurso tão pouco nos agrada. Tôda intelecção, hum ana
De o utro lado, o Verbo agindo como homem, age como e divina, dim ana de um intelecto e é incomunicável. Não
verdadeiro homem. A pessoa divina não se substitui ■à na­ posso pensar em lugar de um outro. Com m aioria de razão,
tureza hum ana. Jesus possuía tôda a psicologia de um ser não posso pensar em lugar de Deus. Logo a natureza hu­
hum ano com pleto. Logo tem inteligência capaz de lhe es­ m ana de Cristo, ou tem conhecim ento hum ano, produzido
clarecer a ação, vontade capaz de se d eterm in ar sem cons­ por um intelecto hum ano, ou está desprovida de qualquer
trangim ento. Sem dúvida o Verbo se apropria de tôdas es­ conhecimento; nestas condições seria supérfluo colocar em
sas atividades hüm anas, como au to r e responsável, pois a Cristo um intelecto hum ano. -
natureza que as produz é sua. Mas é o Verbo hum anado que Respondem os em segundo lugar, que o u tra coisa é a
pensa p o r um a inteligência hum ana e qu er p o r um a vonta­ realidade conhecida, o u tra coisa o modo de a conhecer. Re­
de hum ana. correndo a um a com paração bastante esclarecedora, pode­
mos pensar em várias fotografias do mesm o objeto, tira­
das sob ângulos diversos e com ilum inação diversa. Em
As ciências de Cristo Cristo as duas inteligências — divina e hum ana — funciona­
vam sob luzes diversas e variadas, m ultiplicando os modos
P osta a existência em Cristo, de um a inteligência hu­ de conhecer o m esm o objeto. No Homem-Deus se encerram
mana, resta a saber se ela perm anece inativa, se é fonte efe­ “todos os riquíssim os tesouros de sabedoria e ciência”
tiva de energia psíquica. (Col 2,3):
Como Deus que era, Cristo tinha ciência d iv in a2. Isto A teologia, colocando em Cristo vários tipos de saber,
jam ais foi pôsto em dúvida pelos cristãos. Os problem as não entende am pliar o seu campo de objetos conhecidos,
que tal ciência suscita, são os m esm os que a ciência divina mas sim afirm ar que êle conhece cada objeto de tôdas as
em geral nos propõe. m aneiras possíveis.
Aqui investigarem os tão só o conhecim ento humano Nessa perspectiva, somos levados a colocar, em Cristo-
de Cristo'. E o prim eiro problem a a surgir é a não super- -homem, três tipos de saber bem distintos: ciência beatífica,
fluidade da ciência hum ana de Cristo diante de sua ciência infusa, adquirida.
divina. Por que m ultiplicar os saberes quando basta o co­
nhecim ento divino que é exaustivo? Respondem os, em pri­
m eiro lugar, que a perfeição da natureza hum ana de Jesus A ciência beatífica
exige a presença nêle de conhecim entos intelectuais hum a­
nos. Já dissemos, bastantes vêzes, que a união hipostática E sta ciência resu lta da visão intuitiva de Deus. É a
ciência que com pete aos celícolas. Ora Jesus, já antes da
‘2 C o m o cMpmplo d a íhôiuMn d iv in a <U> C ris to p o d e m o s n d u /.ir a s acftnin-
le s p a la v r a s d e J e s o s : " N in g u é m co n h ece q u e m é o F ilh o s e n ã o o P a i, e q u e m Ascenção, era celícola, como atesta o Evangelho: "Ninguém
é o P a i s e n ã o o F ilh o ” (L c 1 0 ,2 2 ). subiu ao céu senão aquêle que do céu desceu: o Filho do
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li ornem que está no céu" ( Jo 3,13). O que ele anuncia aos tante de sua Encarnação, excede tudo quanto a razão hum a­
homens, já o contem plou no seio de D eu s: "Aquêle que na pode alcançar; pois que êle pela visão beatífica de que
vem do alto está sôbre to d o s ... dá testem unho do que viu gozou apenas concebido no seio de Maria SSma. , tem con­
e ouviu" (Jo3,31-32). "Eu falo só o que ouvi do Pai” (Jo8,38). tinuam ente presente todos os m em bros do seu Corpo Mís­
Os objetos dêsse conhecim ento da essência divina são tico e a todos abraça com am or salvífico. Ó adm irável dig-
Deus e todos os existentes passados, presentes e futuros. nação da divina bondade para conosco! Ó inconcebível
0 celíeola conhece-os todos em Deus, como em sua causa. ordem da im ensa caridade! No presépio, na cruz, na gló­
Conhecimento intuitivo de Deus uno e trino, e tam bém de ria sem piterna do Pai, Cristo vê e abraça todos os mem­
Deus encarnado. No capítulo an terio r colocávamos em bros da Igreja m uito mais claram ente, com m uito m aior
Cristo uma consciência hum ana incom pleta, im perfeitíssim a, am or do que a mãe o filhinho que tem no regaço, do que cada
da união hipostática. Agora colocamos nêle a intuição bea- um de nós conhece e am a a si m esm o"5.
tíliea da E ncarnação do Verbo. Completa a outra, tira-lhe
Um grande m istério, ao qual já aludimos, se oferece à
qualquer aspeto m isterioso. Êle vê esta união no esplendor nossa contem plação: a coexistência, em Cristo, da sum a ale­
da luz divina, que jo rra de Deus contem plado face a face. gria e da suma dor. Sum a alegria por ser êle celíeola: a
Tem pois consciênciá perfeita de p erten cer a uma pessoa visão facial de Deus gera necessàriam ente intensíssim a ale­
divina. Experim enta que seu "eu” é divino.
gria: "entra no gôzo de teu senhor" (Mt 25,21). Suma dor,
"A ciência de visão é nêle (C risto) tal que supera abso­
devida à p aix ão : "Começou a entristecer-se e a angustiar­
lutam ente em com preensão e clareza a ciência correspon­
-se. Então lhes d is s e : "M inha alma está triste até a m or­
dente de todos os bem -aventurados", d outrina Pio X II3. Ciên­
te ” (M t 26,37-38). A crucifixão. era um suplício atroz; os
cia intensivam ente máxima. Ciência extensivam ente máxi­ pecados a expiar, m uitos e gravíssimos. De outro lado, a
ma também, p o r apreender um núm ero m aior de realidade.
compleição física e psicológica, dava-lhe, como dissemos,
A missão de Cristo era levar o m undo a Deus. Convi­
um a inaudita capacidade de sofrer. Enfim êle quis aceitar
nha pois que êle conhecesse êste m undo em seus detalhes
um a quantidade de sofrim entos proporcionada ao fim que
e também o têrm o ao qual deveria le v a r. os h o m e n s: Deus alm ejava: a libertação do gênero humano; todo inteiro, pas­
visto face a fa c e 4.
sado, presente e futuro.
É para nós consolo e fôrça saber que Cristo nos conhece Esta conciliação, p o r certo, é algo mui m isterioso; to­
individualm ente e segue o desenrolar de nossa vida, orde­ das as tentativas feitas nos deixam insatisfeitos. Alegam,
nando-a a Deus.
p o r exemplo, que a alegria e a dor não se referiam ao mes­
Ensina Pio X II: “O Filho unigênito de Deus já antes do mo objeto. O Senhor alegrava-se de ver a Deus; en triste­
princípio do m undo nos abraçou no seu infinito conheci­ cia-se das penas da Paixão e da malícia dos pecados dos ho­
mento e eterno am or. Amor que êlç dem onstrou de modo mens. Esta diferença de objeto explica, por exemplo, que
verdadeiram ente assom broso assum indo a nossa natureza pais cristãos possam se entristecer e alegrar-se ao mesmo
em unidade hipostática. . . Êste am orosíssim o conhecim en­ tempo, com a entrada dos filhos no convento. Alegram-sc
to que o divino R edentor de nós tem desde o prim eiro ins­ p o r terem os filhos sido alvo do cham am ento divino; entris­
tecem-se com a separação. Ou seja ainda o elogio que a
3 li'nr. M y x tic i ( ‘oryori.s C h r is ti, Doe. P o n t. 24 n. 47. E scritura tece à mãe dos sete irm ãos m acabeus: "Em inen­
'I Ibin 1918 o S a n to O fíc io re p ro v o u us q u e e n s in a v a m : a ) que a
le n ria , em C ris to v ia jo r . d a c iê n c ia b e a t iíic a n ã o c o n s ta ; b ) que não c o n s ta - tem ente adm irável e digno de iluslre m em ória foi a mãe
que. d e sd e o in ic io . C ris to tu d o c o n h ec ia no V e rb o ; v ) q u e a o p in iã o sô b re
a M ntilaqao d a c iê n c ia d e C ris to te m ta n to d ir e ito de s e r re c eb id a q m m lo
a o p in iã o a n tig a (pie a t r i b u í a a C ris to c iê n c ia u n iv e rs a l ( Den/.jriKer, n. 2183; 5 Enclelica citada, n. 77.

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que, vendo m o rrer seus sete filhos no m esm o dia, suportou-o tando sôbre a hum anidade do Senhor, assentaram um p rin ­
a egrcm ente em virtude das esperanças que ela punha no Se­ cípio que levaria de p er si à adm itir a ciência in fu s a : devem
nhor" (2Mac 7,20). ser atribuídas a Cristo tôdas as per feições que não são con­
Todavia, um a alegria im ensa como era a de Cristo celí- trárias à sua missão. Ora, a ciência infusa é, sem contesta­
cola parece dificilm ente conciliável com a tristeza aca- ção possível, um a perfeição, pois nós a encontram os nas
brunhadora do hom em das dores. Donde Lutero e Calvino inteligências angélicas. De outro lado, nada há neste modo
oram levados a negar a ciência beatífica; e num erosos teó­ de conhecer, que seja incom patível com a m issão de Reden­
logos catohcos da época da contra-reform a ensinaram que tor. Pelo contrário, ajuda-a. Vamos pois colocá-lo na inte­
Jesus renunciou à esta ciência d u ran te a Paixão, ou pelo ligência de Cristo. A visão beatífica vê tudo no Verbo, a
menos renunciou à alegria dim anando da visão intuitiva ciência infusa apreende as coisas fora do Verbo, nas suas
de Deus;6. O utros teólogos enfim apelam a um milagre; idéias próprias. Ser-nos-á m ais fácil adm itir a ciência in­
conseqüência do duplo estado em que se encontrava Cristo; fusa de Cristo se atentarm os que ela é, na m aior p arte ha­
ele era a um tem po "peregrino" como nós e "celícola" co­ bitual. Assim um grande sábio não tem presente ao espí­
mo os anjos bons, gozando da visão facial: " ...s e u s anjos, rito, a cada instante, todos os fatos, e tôdas as leis, que
(dos pequeninos) vêem continuam ente no céu' a face de constituem o ram o do saber que êle domina. Êstes ele­
meu Pai que está nos céus" (Mt 18,10). m entos são apenas habituais ou, se preferirm os, subcons­
Logo nada im pedia a coexistência, em Cristo, da suma cientes. O sábio os vai evocando, atualizando, à m edida que
dor e do sum o gôzo. que dela precisava p ara realizar sua missão 7.

A ciência infusa A ciência adquirida

Sob êsse nom e entende-se todos os conhecim entos que É a nossa ciência bem conhecida, que vai apreendendo
o Pai com unica a seu Filho diretam ente, sem passar pelo o real a pouco e pouco, penosam ente, pela experiência
espelho da essência divina. Tem p o r objeto não mais a sensível e a atividade racional.
divindade vista em si mesma, porém as criatu ras vistas em Se Cristo é verdadeiro hom em êle deve se te r subm etido
suas idéias p róprias. Pode referir-se qu er à ordem sobre­ a êste modo tão penoso de conhecer a realidade. De fato
natural (p.ex. um a profecia) quer à ordem n atural (p e x êle tinha sensibilidade e intelecto superiorm ente dotados;
um a ciência ad quirida não pelo esforço hum ano mas por era pois norm al que dêles quisesse usar de m odo puram en­
influxo divino). Como um caso de ciência infusa podemos te hum ano, apreendendo fatos novos, dêles deduzindo as
aduzir a palavra que Jesus disse aos 72 discípulos que êle
enviara em m issão e que lhe referiam , jubilosos, seu poder 7 O s e v a n g e lh o s r e g is tr a m a lg u n s a to s de c o n h e c im e n to d e C ris to que
s ã o s u p r a n o r m a is . P . e x ., êle c o n h ec e os p e n s a m e n to s de s e u s in te rlo c u to ­
sobre os endem oninhados: "Eu vi satanás cair do céu co­ re s sem q u e e s te s os m a n ife s te m (M t 9 ,4; M c 2 ,8 ; J o 6 ,6 1 ;1 5 .1 9 ) ou a in d a
mo um raio" (Lc 10,18). - êle a p re e n d e o q u e a c o n te c e a o lo n g e , f o r a do a lc a n c e d e s e u s s e n tid o s :
" A n te s q u e F ilip e te c h a m a s s e , q u a n d o e s ta v a s d e b a ix o d a f ig u e ir a , eu te
A 0 s antigos padres da Igreja pouco ou nada falam dêste v i” ( J o 1 ,4 8 ) .. " T iv e s te cin c o m a rid o s , e o h o m e m q u e te n s a g o r a , n ã o
ê te u m a rid o " (J o 4 ,1 8 ). S e ría m o s in c lin a d o s a a r r o l a r e s te s c o n h e c im e n to s
genero de saber. Foram os doutores m edievais que, medi- e n tre o s c o n h e c im e n to s in fu s o s . M a s a p a ra -p s ic o lo g ia ou m c ta p s íq u ic a p a re c e
t e r a c e r ta d o q v a n d o a f i r m a q u e c e r to s in d iv íd u o s e x c e p c io n a is s ã o d o ta d o s de
f a c u ld a d e s e s p e c ia is que lh e s p e rm ite m a le itu r a cie p e n s a m e n to s a lh e io s e a
6 F é n è lo n foi c o n d e n a d o p or te r s u s t e n t a d o que, na
c ru z , a p e r t u r b a ç ã o te le p a tia . T a is fa c u ld a d e s , n ã o p a re c e m in d ig n a s d e C ris to n e m c o n tr á r ia s
d a s e n s ib ilid a d e n ã o r e p e r c u t i u s ô b re a p a r t e s u p e r i o r d a a s u a m is sã o . Os fa to s a c im a m e n c io n a d o s n ã o se r e f e r ir ía m p o is à c iê n c ia
z in g e r, n. 1339). a l m a de J e s u s (D en-
in f u s a , m a s à c iê n c ia a d q u ir id a .

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leis essenciais do m undo fenomenal e conclusões que esten­ lectual: "Todos quantos o ouviam maravilhavam-se da sua
diam seus conhecim entos m uito além das aparências. As­ inteligência e das suas respostas” (Lc 2,46-47).
sim o sábio de gênio, encontra no seio da experiência, o Mas não podem os de form a alguma colocar em Jesus
que escapa aos demais.
essa "ignorância” que é desconhecimento do que se deve sa­
A ciência adquirida de Jesus sem pre correspondeu às ber; ainda menos adm itir "êrro ”. São defeitos, fraquezas
necessidades de sua missão de Salvador; parece não se ter hum anas, que Cristo não assumiu pois eram contrários à
estendido às verdades científicas, que não lhe faziam falta sua perfeição, sua "plenitude de graça e verdade” (Jo 1,14).
alguma, na sua obra salvífica.
Como sua vontade santíssim a era incompatível com o peca­
Os evangelhos atestam a existência no Senhor da ciência do, assim sua inteligência sem jaça era incom patível com o
adquirida. Jesus crescia em sabedoria e idade e graça, êrro. Além de que tôdas as atividades de Cristo pertenciam
diante de Deus e diante dos hom ens” (Lc2,52). "Aprendeu ao Verbo, de sorte que deveriamos dizer que “Deus e rro u ”,
pelo que sofreu, a obediência” (H eb r 5,8). Os textos evan­ o que é absurdo.
gélicos que relatam perguntas feitas por Jesus, indicam um Para justificar sua heresia sôbre a ignorância de Cristo,
progresso no saber experim ental. Por exemplo, quando os m odernistas apelavam à ética. Repugna ao senso moral,
apresentam ao Taum aturgo um rapaz endem oninhado para fliziam, que Cristo como hom em tenha tido um *saber-divino
que o cure, Jesus perguntou ao p a i : "Quanto tempo faz e entretanto nada nos tenha comunicado dêste pretenso
que lhe sucede isto?" (Mc 9,21). Ou ainda quando interroga saber (Denzinger n.2034). Mas enganam-se os m odernis­
os apóstolos: "Quantos pães tendes? Ide ver. Havendo- tas a respeito da m issão do Senhor. O Pai não o mandou
se inform ado, disseram-lhe ê le s : cinco pães e dois peixes” para que ensinasse aos homens coisas profanas, m as sim
(Mc 6,38). Ou seja enfim esta passagem: "Jesus tendo ou­ coisas sobrenaturais: a fé e a moral evangélicas. O "senso
vido que João fôra prêso, voltou para a Galiléia” (Mt 4,12). m oral” não exigia que Jesus nos revelasse tudo quanto sa­
Êsles textos e m uitos outros que poderiam os aduzir, mos­ bia, nem mesmo a m ínim a verdade profana, m as sim as
tram claram ente que Jesus, como homem, adquiria conheci­ verdades que se referem à sua missão salvífica, que tran s­
m entos novos, pois não podem os ad m itir que simulasse des­ cende infinitam ente às mais preciosas verdades profanas.
conhecer o que já sabia. Argumento m ais sério se alicerça sôbre um texto de
O ensino por parábolas m ostra que Jesus observara S. Marcos e outro de S. M ateus nos quais Jesus, falando
os cam pos floridos, os pássaros, os cultivadores, os pescado­ do fim do mundo, d e c la ra : "Quanto àquele dia ou àquela
res, os pastores, os v in h ateiro s. . . hora, ninguém as conhece, nem os anjos do céu, nem o Fi­
■ O progresso que observam os no cam po da ciência adqui­ lho senão só o Pai" (Mc 13,32; Mt 24,36).
rida, nos autoriza a falar em "ignorância” de Cristo. "Igno- Alguns padres, como Irineu, Atanásio, Gregório Nisseno,
lância que o fazia desconhecer fatos ou conclusões para Cirilo de Alexandria, Ambrósio, parecem ter opinado que
êle novos. Assim é que, em criança, ignorava como as de­ Cristo como homem, ignorou o dia e a hora do juízo final.
m ais ciianças, m uitas coisas que só mais tarde veio a saber, Outros como S. Jerônim o, Sto. Agostinho e S. Gregório
de acordo com o desenvolvimento dos órgãos sensoriais e Magno (Denzinger n. 248), afastam de Cristo, m esm o con­
do cérebro. O "m enino crescia e se desenvolvia c se enchia siderado como homem, tôda e qualquer ignorância, e in ter­
de sab ed o ria” (Lc 2,40). pretam os textos evangélicos como significando que o Filho
Chegado à adolescência procura am pliar seus conhe­ não recebeu do Pai a m issão de revelar aos hom ens o dia e
cimentos, "ouvindo e interrogando” os doutores da lei, ao a hora do juízo. È stc conhecim ento era estritam en te inco­
mesm o tem po m anifesta a extraordinária capacidade inte­ municável : "A vós não com pete conhecer os tem pos nem
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os m om entos que o Pai fixou em virtude de seu próprio No scculo VII alguns heresiarcas, os m onotelistas, inspira­
po d er” (At 1,7). Tão pouco é ofício dos anjos, mas privi­ dos pelo eutiqueanism o, afirm avam a existência em Cristo,
legio exclusivo do Pai, tal qual a escolha dos lugares no dc um a só vontade, ou, pelo menos, de um a só operação; pre­
Reino dos céus: "o sentar-se à m inha direita ou esquerda, tendiam assim assegurar a unidade de Cristo contra o nesto-
não com pete a m im outorgá-lo: é p ara aquêles a quem isto riam sm o que dividia o Senhor. Mas a fé católica repeliu o
está disposto p o r meu Pai” (Mt 20,23). Ao Messias não
erro e o 3o concilio de C onstantinopla o condenou em 680.
com petia d ecretar ou m odificar a predestinação, mas tão
A tribuím os a Cristo "duas vontades naturais 8 e duas opera­
só executá-la.
ções naturais, sem divisão, sem confusão, sem o p o sição ...
De m ais difícil interpretação, são os textos aduzidos
e duas vontade naturais não opostas um a à o u tr a ... a von­
pelos m odernistas, p ara provar a existência, em Cristo, não
tade hum ana não resistindo, não entrando em luta, mas
só de ignorância, m as de êrro form al. São as passagens
antes submetendo-se à sua divina e onipotente vontade; por­
nas quais Jesus parece anunciar a vinda im inente do fim
que é preciso que a vontade da carne seja movida e sub­
do m undo e a "parusia" gloriosa. "Em verdade vos digo
meta-se à vontade divina, pois assim como sua carne é dita
que h á alguns dos aqui presentes que não provarão a m or­
e de fato é — carne de Deus-Verbo, assim tam bém a
te até que vejam vir em poder o reino de D eus” (Mc 9,1).
vontade n atu ial de sua carne é dita — e cte fato é — vontade
“Em verdade vos digo: Não passará esta geração antes que p ró p ria de Deus-Verbo” 9. .
tôdas estas coisas sucedam ” (Mc 13,30).
_ Se Cristo não pudesse produzir atos de vontade hum ana,
Problem a exegético delicado, que escapa à nossa com­
não podería ser nosso Salvador, pois que a salvação exigia
petência, pelo que apresentarem os tão só um a observação
um ato de vontade (a obediência am orosa ao Pai). Ora
de ordem m ais geral.
este ato de obediência não podia ser produzido pela vontade
Os sinópticos fusionaram duas perspectivas; ou seja
divina de Cristo que é por identidade vontade das três
dois acontecim entos historicam ente distintos m as simboli­
Pessoas. Logo devia dim anar da vontade hum ana de Jesus,
cam ente u n id o s : o fim de Jerusalém e o fim do mundo,
que se podia do b rar ao m andam ento do Pai. Sem contar
aquêle figura dêste. A ruína do povo judaico, castigado por
que a obediência supõe um a inferioridade naquele que
severíssim o juízo de Deus, prefigura o juízo universal. De
obedece, um a superioridade naquele que dá ordens, e Cristo
outro lado, o fim da antiga aliança, m arca o início de um a
como Deus não é inferior ao Pai, m as estritam ente igual.
nova era — os "últim os tem pos” — cujo fim coincidirá com
Jesus mesmo p o r várias vêzes afirm ou a concor­
o fim do m undo. O reino de Cristo, estabelecido "em po­
dância harm ônica de sua vontade hum ana com a vontade
d e r”, isto é, pela fôrça divina, por ocasião da ruína de
d iv in a : "Meu alim ento é fazer a vontade daquêle que me
Jerusalém , triu n fará definitivam ente quando tôdas as coisas
enviou” (Jo 4,34). "Não procuro a m inha vontade, m as sim
serão consum adas. O "dia” do Senhor é o juízo sôbre
a vontade daquele que me enviou" (Jo 5,30). "Do céu desci,
Jerusalém , como figura, prenúncio, do juízo final. Ambos
não para fazer a m inha vontade, mas sim a vontade daquele
os juízos são dois m om entos da vinda ou p aru sia do Senhor
que me enviou (Jo6,38). "E u sem pre faço o que é do seu
que pode, p o r isso, ser dita im inente. . (do Pai) agrado” (Jo8,29).
É verdade que logo nos ocorrem à m ente passagens
Duas vontades harmônicas do Evangelho que parecem rela tar um conflito aberto entre

Em Cristo, à inteligência divina correspondia um a von­ 8 N e ste c o n te x to , n a tu r a l" n ã o se opõe a " s o b r e n a tu r a l '’ mas significa:
tade divina, e à inteligência hum ana um a vontade humana. c o rre s p o n d e n te à s d u a s n a tu r e z a s de C risto .
9 D e n z in g e r, n. 291.

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vontade hum ana e vontade divina. Referimo-nos especial­ quanto ao objeto dessa devoção. Uns afirm avam que ta)
m ente à o-ração no Hôrto: "Pai, se queres, afasta de mim objeto era o coração físico e nada mais; outros pretendiam
êste cálice; mas não se faça a m inha vontade, porém a tu a ”. que o objeto era som ente o am or simbolizado pelo órgão
(Lc 22,42). “Meu Pai, se é possível, passe de mim êste lísico; outros enfim opinavam a favor do coração físico e do
cálice; contudo não se faça como eu quero, senão como am or juntos.
tu queres" (Mt 26,39). Porém, um a reflexão mais cuidadosa Mas que am or? Exclusivamenle o am or hum ano de
nos faz ver que esta oração de Cristo no H ôrto, m anifesta Ci isto, adiantavam alguns, tão só o am or divino, pondera­
diversidade e não oposição ou conflito de volições. Ambas vam outios! Pio X II (êz desaparecer a confusão, determ i­
têm, por certo, o m esm o objeto — a m orte de cruz — porém nando que o objeto do a d io é constituído pelos três amores
não o encaram sob o mesmo aspecto. A sensibilidade e a do Salvador, simbolizados por seu coração físico, ferido na
vontade espontânea de Cristo percebiam apenas a atrocida­ Cruz. n.
de do suplício, que, por fôrça, provocava um m ovimento de Que Jesus, sendo verdadeiro homem, tinha um coração
recuo ou repulsa; mas a vontade profunda, refletida, de de carne, está íora de dúvida. Que êste coração de carne
Jesus, sem nada dissim ular da atrocidade, via a m orte qual seja adoiável; aíirm a-o a fé católica, já que está hiposlàti-
meio querido pelo Pai para salvar a hum anidade e acéita- cam ente unido ao Verbo divino l2. Logo o Coração de Jesus
va-a sem h esitar e com imenso am or. A m esm a insistência é o coração físico de um a pessoa divina, ou seja, é o coração
de Jesus sôbre "se é possivel” m ostra que não existia nêle físico do Verbo encarnado. Coração de carne, ferido pela
um a veleidade sequer de subtrair-se à vontade divina, mas, lança do soldado, imagem perfeita do extrem ado am or de
pelo contrário, plena submissão, O desejo de escapar à m orte, Jesus pelos homens.
longe de ser absoluto, era condicionado pelo q uerer do Pai. Mas por que ad o rar o Coração de Jesus de preferência
Nenhum a dissonância vinha pois p e rtu rb a r a harm onia a outras partes de seu corpo? 13 Porque mais do que qual­
interior de Jesus. quer outro m em bro, o seu coração é o índice ou o símbolo
Gafados pelo pecado original, não podem os pretender de sua imensa caridade, do tríplice am or com que o divino
a essa serenidade. Nossa sensibilidade am iúde entra em R edentor am a conlinuam ente o eterrto Pai e todos os ho­
conflito com nossa vontade refletida e por vêzes consegue mens.
se im por a ela. Aí está a agonia do Senhor como modelo A) Antes de tudo, símbolo do divino amor, que nêle
e fonte da graça de conform idade à vontade divina: "Não e comum com o Pai e o E spírito Santo, e que só nêle, como
seja o que eu quero mas o que tu q u eres”. Verbo encarnado, se m anifesta por meio do frágil e caduco
instrum ento hum ano, já que nêle "habita corporalm ente
a plenitude da divindade” (Col 2,9).
O tríplice amor de Cristo B) O Coração de Cristo é símbolo, ademais, da ardentís­
sima caridade que, infundida em sua alma, constitui o pre­
Se a dualidade de naturezas exigia pluralidade de ciên­ cioso dote de sua vontade humana, cujos atos são dirigidos
cias em Cristo, esta m esm a dualidade pedia um a plurali­ e ilum inados por um a dupla e perfeitíssim a ciência, a beatí-
dade de a m o re s: divino, hum ano-espiritual, humano-sensí- lica e a infusa.
vel, conform e ensinou Pio X II na sua carta e encíclica "Hau-
rietis aquas" sôbre o culto do Sagrado Coração de Jesus l0. 11 üji. r i l . . n . 34, 35; n. 88
Antes da encíclica reinava discórdia en tre os teólogos 12 P io V I e n sin a e x p lic .ita m e n te ipie não a d o ra m o s o c o ra c ã o de ca rne
s e p a ra d o d a p e sso a d iv in a , m a s a d o ra m o s o c o ra c ã o d a p e sso a do V erbo
i iie n z in g e r. n. 15(131.
l ü Doc. P o n t., 117. 13 Km 11)38 o K anlo O íic o re p ro v o u a d e v o ç ã o à s a u r a d a u ib e e n .

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C) Finalm ente, e isso de modo mais n atu ral e direto Iinpecabilida.de e liberdade de Cristo
o Coração de Jesus é símbolo do seu am or sensível, já que o
corpo de Jesus Cristo, plasm ado no seio castíssim o da Vir­
gem M aria por obra do Espírito Santo, supera em perfei­ Se havia incom patibilidade entre o êrro e a perfeitís­
ção, e portanto em capacidade perceptiva, qualquer outro sim a inteligência de Cristo, do mesm o modo sua vontade,
organism o hum ano 14. sem pre reta, não poderia abrigar mal moral.
Daqui segue que, com tôda segurança, podem os e de­ Jesus pôde desafiar os ju d e u s : "Quem dentre vós mc
vemos contem plar como outras tantas m anifestações do trí­ argüirá de pecado?" (Jo 8,46). E S. Paulo escreveu: "Aquê­
plice am or simbolizado pelo Coração de Jesus, as palavras, le que não conheceu pecado, Deus o fez pecador por nós,
os atos, os ensinam entos, os milagres do Salvador. E espe­ p ara que nêle fôssemos justiça de Deus" (2Cor 5,21).
cialm ente nas obras mais esplendorosas do seu am or p ara Cristo é "santo, inocente, sem m ancha, separado dos peca­
conosco, como a instituição da santíssim a Eucaristia, a sua dores" (H ebr 7,26); e S. Pedro, citando Isaías: "Êle não co­
dolorosa paixão e m orte, a benigna doação de sua Santís­ m eteu pecado" (lP d r 2,22); e S. João: "nêle não há pecado"
sim a Mãe, a fundação da Igreja p ara proveito nosso, e final­ (lJ o 3,5).
m ente a m issão do E spírito sôbre os apóstolos e sôbre nós, Não só não com eteu pecados como não podia pecar.
devemos adm irar outros tantos testem unhos do seu tríplice Sua sensibilidade nunca o inclinou ao m a l18; perfeitam ente
am o r'15. sujeita à razão, jam ais lhe resistiu ou perturbou; e sua ra­
R essuscitado e exaltado aos céus, o coração vitorioso zão, inteiram ente dócil ao Pai, jam ais esboçou sequer um
nunca deixou nem deixará de palpitar, nem tão pouco ces­ m ovim ento de revolta. M uito ao c o n trá rio : "eu sempre
sará de dem onstrar o tríplice am or com que o Filho de Deus faço o que é do seu agrado” (Jo 8,29).
se une a seu Pai eterno e à hum anidade inteira de quem com Como vimos, é certo que, no H ôrto das Oliveiras sua
sensibilidade e o m ovim ento espontâneo de sua vontade hu­
pleno direito é a cabeça m ística 16.
mana, repeliam o sofrim ento e a m orte, mas não em bar­
É êste tríplice am or que o im pele a fazer-se nosso ad­ gavam um só instante a escolha de sua vontade deliberada,
vogado, p ara nos obter do Pai graça e m isericórdia, "estan­ que queria o que o Pai queria: justam ente êste mesmo so­
do sem pre vivo p ara interceder por nós” (H eb r 7,25). As p re­ frim ento, esta m esm a m o rte : "não se faça como eu quero,
ces que b ro tam do seu inesgotável am or, dirigidas ao Pai, senão como tu queres” (M t 26,39).
não sofrem interrupção alguma. Como "nos dias de sua A im pecabilidade de Cristo, fundam enta-se em últim a
carn e” (Flebr 5,7) tam bém agora que está triu n fan te no céu, análise, sôbre a união hipostática, pois os atos que o Verbo
êle suplica ao Pai com não m enor eficácia; e aquêle que produz pela sua natureza hum ana, pertencem à pessòa divi­
"am ou tanto o mundo, que deu seu Filho unigênito a fim na que os apropria; se Cristo pecasse seria verdade que
de que todos os que nêle crêem não pereçam mas vivam Deus pecou, o que é blasfem atório e contraditório: o "eu”
a vida etern a (Jo 3,16). Êle m ostra o seu- coração vivo e de Cristo é divino, não pode se desdobrar em a Los que são
como ferido e inflam ado de um am or mais ardente do que a própria negação da divindade.
quando, já exânime, o feriu a lança do soldado rom ano" 17.
18 D tu ru n g e r, n - 224. A s te n ta ç õ e s de C riíd o não fo r a m p ro v o c a d a s
l-l IJ a u r ie lis a q u a s , n n . 34-3f>. (co m o ;\ y i antlp m a io ria d a s n o s s a s , s e c u n d o e iv in o f». T ia g o , tia s u a epiyio*
lí> Ifu u rictU s* a q u a s , n n . 3{i-5U. ';L 1.14) p e la d e so rd e m d a s e n s ib ilid a d e , m a s sim p o r u m a in v e s tid a d ir e ta
10 I la u r u d is a q u a s , n . 37. d e s a ta n á s , q u e n ã o p e rtu rb o u em n a d a a n im a d o S a lv a d o r, e q u e èle
17 I la u r ie tis a q u a s , n. 53. s u p o rto u p a r a n o s s a in s tr u ç ã o , n o s sa e d ific a ç ã o e novso consôlo.

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acabar sua obra" (Jo4,34). "E u nada posso fazer de mim
Outros fundam entos da im pecabilidadc, são a plenitude m esm o. . . porque não procuro a m inha vontade, m as sim
da graça que santificava a alma do Senhor, e a visão beatí- a vontade daquele que me enviou" (Jo 5,30). "Do céu
fica da qual fruía: impossível que a alm a que contem pla desci, não para fazer a m inha vontade, mas sim a vontade
claram ente o Sumo Bem e dêle goza lhe prefira um bem daquele que me enviou" (Jo 6,38). "Convém que o m un­
criado qualquer. Com efeito, a visão beatífica apresenta à do saiba que eu amo o Pai, que segundo o m andato que
vontade hum ana de Cristo um objeto — Deus como sumo o Pai me deu, assim faço e u ” (Jo 14,31). Cristo sem pre
Bem — que a necessita. Como Deus não pode deixar de apresentou a sua m orte como o dever fundam ental de sua
am ar a si mesmo, assim Cristo não pode deixar de am ar a atividade m essiânica. Dever que supõe o preceito do Pai:
Deus. Todavia, necessitado pelo bem absoluto, Cristo será, "Não quiseste sacrifícios nem oblações, mas me preparaste
por isso mesmo, soberanam ente livre em relação aos bens um corpo; os holocaustos e sacrifícios pelo pecado não os
finitos, poderá, por exemplo, escolher livrem ente seus após­ recebeste. Então eu disse: "Eis-me que venho — no volu­
tolos, o perar ou não tal milagre, fazer ou não tal revelação. me do livro está escrito de mim — para fazer, ó Deus, a tua
Do mesmo modo, Deus necessitado em relação a si mesmo, vontade” (H ebr 10,5-7).
é com pletam ente livre em relação às criaturas.
De outro lado, Cristo tim bra em afirm ar que m orre li­
"Se Cristo não podia pecar, então não era livre!" excla­
vrem ente, em bora obedecendo ao preceito de seu Pai: "Por
marão m uitos contem porâneos nossos, que sentem sem pre
isto o Pai me ama, porque eu dou a m inha vida para de
na bôea o gôsto do pecado. Enganam-se. S er livre, não é
nôvo tomá-la. Ninguém m a tira, sou eu que a dou por mim
poder escolher o mal, é poder escolher entre vários bens.
mesmo. Tenho poder para dá-la e poder para to rn ar a
E êste poder de escolha perm anecia intacto em Cristo. Co­
mo a capacidade de e rra r não denota um a inteligência per­ tomá-la. Tal é o m andato que 'do Pai recebi" (Jo 1,17-18).
feita, m uito ao contrário, assim o poder pecar é próprio Outros teólogos m antêm a exigência de um verdadeiro
do livre arb ítrio desfalecente. Ser livre é poder realizar-se, preceito divino ligando a liberdade de Cristo; afirm am em
entregando-se ao am or, como Cristo entregou-se ao Pai. com pensação, que tal preceito tinha apenas p o r objeto a
Difícil problem a, em compensação, constitui a concilia­ m orte e não já as circunstâncias da m orte; em relação a
ção entre a liberdade de Cristo e sua obediência aos precei­ estas, Cristo perm anecia livre; por exemplo, ser flagelado,
tos do Pai. Os am antes da dialética, com efeito, arm aram m o rrer na cruz etc. Esquecem tais teólogos que o ato me­
o seguinte dilema: ou Cristo poderia desobedecer, e por ritório deve ser livre (Denzinger 1094). Ora, tanto a Escri­
tura como a Tradição nos ensinam que Cristo nos m ereceu
conseguinte pecar, ou não poderia, e então não seria livre.
Em apuros, os teólogos excogitaram um a vintena de solu­ a salvação pela sua m orte e não apenas pelas circunstâncias
de sua m orte. Logo o fato mesm o de m o rrer — ou de
ções da dificuldade; abundância que m ostra de per si, que
nenhum a delas é satisfatória. não m o rrer — deve te r dependido de sua livre escolha.
Alguns atenuam o preceito divino ao ponto de fazer dê­ Outros teólogos ainda, afirm am a existência de um pre­
le um simples conselho, que Jesus podia seguir ou despre­ ceito divino necessitante, m as afirm am tam bém a existência
de outros m otivos de obediência, livres êstes, p o r exem plo:
zar sem m aiores eonseqiiências. Olvidam que a santidade
o am or das almas, o am or do Pai; o desejo de conseguir o
de Cristo não perm itia que èle negligenciasse não só os pre­ triunfo da R essurreição. ..
ceitos do- Pai, m as os simples conselhos. Para êle, um dese­
Poderiam os continuar a desfiar um rosário de conjetu-
jo do Pai já era uma orde.m. Além de que Jesus mesmo
ras; todavia, diante de tal balbúrdia, m elhor será m anter
parece indicar que recebeu verdadeiro preceito de seu Pai:
como verdades inconcussas, tanto o preceito divino quanto
"Meu alim ento é fazer a vontade daquele que me enviou e

9. - M istério de Cristo
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a liberdade de Cristo, e aguardar a visão face a face, p ara
ver como estas verdades se conciliaram de fato. -lhe que o tocasse. Tom ando o cego pela mão, êle tirou-o
Para um teólogo, a m odéstia no opinar, nunca é derrotis­ fora da aldeia, e, pondo-lhe saliva nos olhos e impondo-lhe
mo, é fidelidade à característica da autêntica teologia: ser as mãos, perguntou-lhe: Vês alguma coisa? Olhando êle
um desejo insatisfeito de saber. l d isse : Vejo os hom ens, algum a coisa assim como árvores
que andam . De nôvo êle lhe pôs as mãos sôbre os olhos, e,
ao olhar, êle sentia-se curado e via tudo claram ente" (Mc
Atos íeândricos 8,22-26). Em am bos os casos as mãos de Cristo aparecem
como instrum ento da virtude divina que obra o milagre.
Se procuram os à luz da fé inventoriar, classificar, as ati­ Nem todos os teólogos, todavia, aceitam essa instrum en-
vidades de Cristo, vemos que elas se distribuem em três ca­ talidade da hum anidade do Senhor. Muitos dêles reduzem-
tegorias bem diversas. Umas são p u ram en te divinas, ações -Ihe o influxo à m era causalidade moral: as mãos do Salva­
do Verbo (p. ex. criar e conservar os sêres); outras ações dor, bem longe de ser veículo do poder de curar, apenas
puram ente hum anas de Jesus (p. ex. com er, d o rm ir)19 outras designariam a Deus o benificiário do m ilagre a ser operado.
enfim são fru to s da colaboração de am bas as naturezas A causa m oral não exerce qualquer influxo sôbre o efei­
(p. ex. os m ilagres). Desde o Século V (Pseudo Dionísio) to; influi sim sôbre a causa eficiente principal, levando-a,
chama-se estas últim as "ações te ân d ricas”, ou seja, huma- p o r suas preces, conselhos, ordens, ameaças, a agir. En­
no-divinas. quanto a causa eficiente instrum ental concorre verdadeira­
É proveitoso examinar-lhes a estru tu ra . Encontram os en­ m ente à produção do efeito, transm itindo e canalizando a
tão duas operações conjugadas, ou m elhor, subordinadas: ação da causa principal devidam ente m odificada pelo ins­
a ação hum ana servindo de in stru m en to à ação divina. Ma­ trum ento. Assim, p o r exemplo, a caneta e o pincel fazem
nifesta-se claram ente esta subordinação nos seguintes tex­ que a energia produzida p o r meu braço e m inha mão, for­
tos de S. M arcos que relatam dois m ilagres sem elhantes: me as letras de um a c a rta ou os traços de um a pintura.
"Levaram-lhe um surdo e tartam udo, rogaram -lhe que lhe Todos os teólogos adm item que a hum anidade do Se­
im pusesse as mãos. Tomando-o à p arte da m ultidão, êle me­ n h o r é causa m oral da graça, pois não recebem os êste auxí­
teu-lhe os dedos nos ouvidos, cuspiu no dedo e tocou-lhe a lio divino senão porque Cristo no-lo m ereceu por sua m orte
língua, e, olhando p ara o céu, suspirou e disse: "E pheta” na cruz. Porém alguns teólogos reduzem o influxo da hum a­
que q u er dizer: abre-te; e abriram-se-lhe os ouvidos, e sol- nidade sagrada à ordem da causalidade moral. O utros teó­
tou-se-lhe a língua, e êle falava expeditam ente" (Mc 7,32-35). logos, aos quais nos filiam os, opinam que além dêsse influ­
"Chegaram êles a Betsaida e levaram-lhe um cego, rogando- xo m oral há que ad m itir um outro, de ordem ontológica,
que faz da hum anidade sagrada verdadeiro instrum ento
19 T o d a v ia , co m o to d o s o s a to s de C ris to p e rte n c e m , em ú ltim a a n á li­
do Verbo eterno.
se, à p e s s o a do V e rb o , p o d e-se d iz e r que e s ta s a ç õ e s " p u ra m e n te h u m a n a s ”
são , re a lm e n te , “h u m a n o -d iv in a s " e m s e n tid o la to , e m b o ra n ã o im p liq u e m c o la ­
Na ordem da causalidade moral, esta hum anidade é
b o ra ç ã o q u a lq u e r d a n a tu r e z a d iv in a . M as J e s u s n ã o é u m p u ro h o m em , tod o s causa principal da graça, p o r seus m erecim entos e suas pre­
os se u s a to s s ã o a to s do V e rb o e n c a rn a d o . A ssim , p o r ex em p lo , a o ra ç ã o
d e C ris to é u m a to d e s u a n a tu r e z a h u m a n a e x c lu s iv a m e n te , pois a D e u s não ces. Na ordem ontológica da causalidade eficiente, Deus é
c o m p e te o r a r ; e n t r e t a n t o e ste a to de o r a ç ã o p e rte n c e em v e rd a d e à p e s s o a
d iv in a do V e rb o . D o n d e s u a e fic á c ia : " P a i, g r a ç a s te dou p o r m e h a v e re s
causa principal da graça — pois êle a produz — e a hum a­
a te n d id o . E u b e m sei q u e se m p re m e a t e n d e s . . , ” ( J o 1 1 ,4 2 ). nidade santa é a causa instrum ental dessa m esm a graça,
N e sse tip o de a ç ã o de C ris to (p. e x . : o r a ç ã o , e n sin o , s a c rif íc io d a c ru z
e tc .) a h u m a n id a d e do S e n h o r n ã o é s im p le s c a u s a in s tr u m e n ta l, com o noa pois Deus no-la dá fazendo-a passar pela hum anidade de
m ila g re s , senão c a u s a p rin c ip a l, s u b o r d in a d a to d a v ia à p e s s o a d iv in a do seu Filho. O mesm o se dava com os milagres. "Tôda a m ul­
S a lv a d o r.
tidão procurava tocá-lo, porque saía dêle um a virtude que
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modo mais especial, será a vinda de Deus à alm a como am i­
os sarava a todos" (Lc 6,19). "E stendendo a mão, êle
tocou-o (u m leproso) dizendo: "Quero, sê lim po”. "E logo go. "Se alguém me ama, guardará m inha palavra, e meu
Pai o am ará e virem os a êle, e nêle farem os m orada" (Jo
desapareceu dêle a lepra” (Lc 5,13). Quando Jesus "clamou
14,23).
com voz forte: Lázaro, sai p ara fo ra!” (Jo 11,43) êle não de­
signava apenas o cadáver como o sujeito da ressurreição, A graça da união hipostática, será o dom am oroso da
própria pessoa do Verbo à natureza hum ana de Cristo, de
nem m esm o lhe dava um título exigitivo de ressurreição;
m as as palavras de Jesus veiculavam a virtude divina, não modo que Cristo-homem não tem personalidade a não ser
a do Verbo eterno. O Verbo cham a a si, à sua Pessoa, esta
apenas como canal mas como verdadeiro instrum ento. Por
hum anidade. Ora, a pessoa do Verbo é constituída pela
elas Cristo-Deus agia, intim ava ao cadáver a vontade divina,
relação de filiação, resultante da geração eterna do Verbo
ressuscitava o m o rto 20. pelo Pai.
O concilio de Éfeso fêz seu um anatem atism o de S.
Cirilo de Alexandria, que propõe à nossa fé "a carne de Comunicação inteiram ente gratuita; dom suprem o que
Deus possa fazer aos hom ens: Jesus é Filho do Pai, não por
Cristo" com o “vivificante” por ser a "p ró p ria carne do Ver­
adoção como os justos, mas pela m esm íssim a relação que
bo que pode tudo vivificar” (Denzinger n. 123).
une o Verbo ao Pai. A Encarnação do Verbo introduz a na­
tureza hum ana do próprio seio da vida trin itária; o Filho
de M aria é em verdade Filho natural de Deus! Se a santida­
A santidade de Cristo de é união a Deus, qual não será a santidade de Cristo uni­
do a Deus da m aneira a m ais estreita possível? Enquanto
No prólogo do 4U evangelho lemos: "E o Verbo se fêz a graça santificante é apenas- participação ao ser divino,
c a rn e . . . e vimos a sua g ló ria. . . cheio de graça e de verda­ a graça de união é o próprio ser divino com unicado direta
d e . . . e d a sua plenitude todos nós recebem os graça sôbre e im ediatam ente à hum anidade do Senhor.
graça” (Jo 1,14-16). Se quiserm os não apenas ler, mas en­ Donde segue que a prim eira, por mais se intensifique,
tender e p e n e tra r êste texto, serem os levados a colocar em não logrará fazer do hom em outra coisa que um filho ado­
Cristo u m a tríplice graça. tivo de Deus, enquanto a segunda, faz do Cristo-homem o
1? "E o Verbo se fêz c a r n e ..." donde tiram os que a próprio Filho natural de Deus. O Cristo-homem experim en­
natureza hu m an a de Jesus foi substancialm ente santificada tou, viveu Deus como seu Pai.
pela com unicação da própria pessoa do Verbo. É o que Essa graça de união pessoal ao Verbo divino, realiza
os teólogos denom inam graça de união. uma "unção”, um a consagração ontológica da natureza hu­
2o “Cheio de graça e de v erdade”. É p o r um efeito a mana, que não tem subsistência própria; subsiste somente
união h ipostática que Cristo detém a plenitude da graça san- pelo Verbo. O anjo Gabriel anunciou a M aria: "O santo
tificante, das virtudes infusas e dos dons do E spírito Santo. gerado de ti será cham ado Filho de Deus" (Lc 1,35). A hu­
3o "Da sua plenitude todos nós recebém os". A graça m anidade de Cristo, assum ida pelo Verbo, é pois santidade
de Cristo não fica encerrada em sua alma, m as irradia-se, personificada.
extravasa-se sôbre os homens p a ra santificá-los: graça E n tretan to não deixa, por 'isso, de ser natureza hum a­
capital.
na, criada; logo precisa ser elevada à ordem sobrenatural,
Graça, de um modo geral, é um dom gratuito e amoroso a fim de que sua inteligência possa conhecer plenam ente
de Deus; assim podem os falar na graça da criação. De um sua relação de filiação ao Pai, e que sua vontade possa agir
20 O p ro b le m a è a q r ê le m esm o q u e foi t r a t a d o a p ro p ó s ito da c a u s a lid a ­ de acordo com êsse conhecimento. Tal elevação da inteli­
de dos rito s s a c r a m e n ta is . C f. O m is té r io d o s s a c r a m e n to s , p. 54.

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gência e da vontade a ver e possuir Deus uno e trino é obra da bem -aventurança ce le ste 21. (Logo os atos mais perfeitos
da graça santificante. Sem ela, Cristo não conhecería sua de fé e de esperança produzidos sôbre a terra, foram os de
elevação à ordem hipostática, nem podería agir em conse- M aria Santíssim a ao pé da Cruz, crendo sem desfalecer que
qüência. A graça de união refere-se à ordem do ser — ao seu Filho era, em bora as aparências, o Filho de Deus; es­
estado da natureza hum ana, não à ordem da operação. Es­ perando sem desfalecer a visão beatífica e Ressurreição glo­
ta últim a pertence à graça santificante, em plena subordi­ riosa por êle preanunciada). Do mesmo modo Cristo não
nação, aliás, a graça de união. No V erbo encarnado há teve a virtude da penitência, pois não tinha pecados pró­
subordinação total da natureza hum ana, em seu ser e suas prios a c h o ra r22. ■
operações, à pessoa divina. Em compensação, Jesus ardia da mais intensa carida­
Além disso Cristo é nosso Salvador; reconciliou os ho­ de: am or de Deus e am or das almas.
m ens com Deus, de sorte que "sendo p o r natureza filhos Am or cie D eu s: a prim eira palavra de Jesus que os
da ira ” (E f 2,3) nós nos tornássem os filhos da m iseri­ evangelhos nos tenham conservado é um protesto de am or
córdia e do am or. Ora essa transform ação da natureza hu­ pelo Pai que o leva a m enosprezar os am ores terrenos ainda
m ana só é possível pela infusão da graça santificante, como os mais santos. A M aria e a José diz: "Não sabíeis que eu
se m o stra no tratad o teológico da graça. E como Cristo devo m e ocupar das coisas de m eu Pai? (Lc 2,49). Sua preo­
nos podería d a r a graça se não a tivesse? Sem dúvida, o cupação foi fazer essas "coisas” até a m orte por am or:
au to r da graça é Deus. Cristo-homem é apenas instrum ento. "Convém que o m undo conheça que eu amo o Pai e que
Mas é um in stru m en to animado; não se contenta apenas segundo o m andato que o Pai me deu, assim eu faço" (Jo
de transm iti-la, m as ainda coopera, executando p o r sua in­ 14,31). De modo que, na oração de despedida, êle pôde dizer
teligência e vontade hum anas, a vontade de Deus sôbre ao Pai: "E u glorifiquei-te sôbre' a te rra levando a têrm o a
a santificação das almas. Para que tal cooperação seja p er­ ob ra que me deste a realizar” (Jo 17,4). A vida interior de
feita, é m ister que êle conheça o decreto divino de predes­ Jesus nos parece como um a vida de intenso am or que o
tinação dos h o m e n s: é tam bém m ister que êle am e os ho­ levava ao sacrifício pela glória de Deus.
mens com divino am or. Ora, a visão beatífica e o am or A glória do Pai consiste na santificação dos homens.
de caridade são impossíveis sem a graça santificante, so­ "N isto é glorificado m eu Pai, que déís m uitos fru to s” (Jo
brenatural. 15,8), e a glória do Filho consiste na obediência am orosa ao
A plenitude da graça, trazia consigo todas as virtu­ plano salvífico do Pai, obediência filial que o leva até à m or­
des e dons do E spírito Santo convenientes ao estado e m is­ te ( Fil 2,7). E sta glória de Cristo não consiste pois, no lou­
são do Salvador. Assim é que êle não tin h a nem fé nem es­ vor dos homens, m as em tudo fazer dependentem ente do
perança teologais, porquanto am bas essas virtudes são in­ Pai, por obediência ao Pai: "Minha doutrina não é minha,
com patíveis com a visão beatífica. Com efeito a fé con­ m as daquele que m e enviou. Se alguém quiser fazer a von­
tem pla Deus obscuram ente, enquanto a visão contem pla tade dêle, conhecerá se a m inha doutrina é de Deus ou
Deus tal qual êle é em si mesmo, sem qualq u er m istério: se falo de mim. Quem de si mesmo fala procura a sua pró­
"Agora vemos p o r um espelho, em en ig m a,' então veremos p ria glória, m as quem p rocura a glória daquele que o en­
face a face. No presente, conheço só em p arte; então co­ viou, êsse é veraz, e não há nêle injustiça” (Jo 10,16-18).
nhecerei como sou conhecido" (IC o r 13,12-13).
21 F a la m o s , e s t á c la ro , em e s p e r a n ç a te o lo g a l que te m n o r o b je to a
Do m esm o m odo a esperança teologal nos faz desejar p o sse de D e u s; n ã o e x c lu ím o s o u tr a s e s p e r a n ç a s ; p o r e x em p lo , C ris to e sp e ro u
a s u a re s s u rr e iç ã o , e sp e ro u e e s p e ra a in d a a s a lv a ç ã o d o s s e u s m e m b ro s,
a posse de Deus. Ora, Cristo já possuía Deus, já gozava a u n id a d e d o s se u s n a c a r id a d e etc .
22 E m 1895 R o m a d e s a p ro v o u o t ítu lo e o c u lto de " J e s u s p e n ite n te ” .

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Daí a insistência do Salvador sôbre a obediência ao Pai, Virgem. "O E spírito Santo virá sôbre ti e a virtude do
sobre o "sim ” contínuo dito ao Pai, razão de ser de sua Altíssimo cobrir-te-á com sua sombra, e por isto o que vai
vinda ao m undo (H eb r 10,7), norm a suprem a pela qual pau­ nascer será santo e cham ado Filho de D eus”.
tou sua vida; obediência que fêz da crucifixão o mom ento No início da vida pública de Jesus, nova vinda do Es­
decisivo de sua glorificação: "Quando levantardes ao alto pírito, para sancionar sua missão. Êle recebe o batism o de
o Filho do hom em , então conhecereis quem sou eu, e que João e sôbre êle desce "o E spírito Santo em form a corpórea,
eu não faço nada p o r mim mesmo, mas, segundo me ensi­ como um a pom ba" (Lc 3,22). E João B atista com enta:
nou o Pai, assim falo. Aquêle que me enviou está comigo, "E u vi o E spírito Santo descer do céu como pom ba e pousar
não me deixou só porque eu sem pre faço o que é de seu sôbre êle. E u não o conhecia; mas aquêle que me enviou a
agrado” (Jo 8,28-29). "Eu, quando fô r levantado da terra, batizar em água me d is s e : Aquêle sôbre quem vires descer
atrairei todos a mim. Isto o dizia indicando de que m orte o E spírito Santo e pousar sôbre êle, êsse é o que batiza
havia de m o rrer" (Jo 12,32-33). no E spírito Santo. E eu o vi, e dou testem unho de que êste
, Am or dos h o m e n s: "Como o Pai me am ou, eu tam ­ é o Filho de D eus” (Jo 1,32-34).
bém vos a m e i. . . Ninguém tem am or m aio r do que êste, S. Lucas tim bra em m o stra r a ação do E spírito Santo
de dar alguém a vida p o r seus am igos” (Jo 15,9-13). "O bom nos prim órdios da vida pública de Jesus. "Cheio do E spírito
p asto r dá a vida pelas ovelhas" (Jo 10,11). " . . . Havendo Santo, Jesus voltou do Jordão, e deixou-se conduzir pelo
am ado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim ” E spírito no deserto, sendo ali tentado pelo diabo durante
(Jo 13,1). q uarenta dias". D esbaratado satanás, "Jesus voltou, na
E sta caridade de Cristo, explica tan to sua mansidão, virtude do E spírito, p a ra a Galiléia, e sua fam a correu por
tern u ra e m isericórdia p ara com a ovelha tresm alh ad a ou a tôda região, e êle ensinava nâs sinagogas, sendo celebrado
m ulher adúltera, quanto sua ju sta severidade p ara com os por todos” (Lc 4,1-14). Nos "Atos dos Apóstolos" S. Lucas
vendilhões do tem plo ou os escribas e os fariseus. reproduz o discurso de S. Pedro ao centurião Cornélio no
Além das virtudes sobrenaturais, Cristo recebeu a ple­ qual diz: "Vós sabeis o que aconteceu em tôda a Judéia, co­
nitude dos dons do Espírito Santo. Já Isaías (11,1-4) nos m eçando pela Galiléia, depois do batism o pregado por João;
m ostrava o M essias cheio do Espírito de Javé que o ungia isto é, como Deus ungiu Jesus de N azaré com o E spírito e
profeta e sagrava-o servidor destinado a salvar o seu povo com poder, e como êle passou fazendo o bem e curando
pelo seu sofrim ento. O evangelho de S. M ateus aplica ex­ todos os oprim idos pelo diabo, porque Deus estava com êle”
plicitam ente a Jesus um a passagem de Isaías sôbre o (At 10,37-38).
servo: Eis aqui m eu Servo, a quem escolhi; m eu amado, Cristo ou Messias significa "Ungido”. Aplicado a Jesus
em quem m inha alm a se compraz. Farei repousar meu o nom e designava a sua tríplice missão de profeta, rei e
espírito sôbre êle, e êle anunciará a ju stiça às gentes” (Mt sacerdote 23 que entre os israelitas eram os "ungidos”. Com
12,18; Is 42,1). O pró p rio Jesus leu, na sinagoga de Nazaré, o tem po, passou a ser nom e próprio, de tal form a designava
um trecho de Isaías (61,1-2): "O E spírito do Senhor está algo de essencial em Jesus, o Ungido por excelência.
sôbre mim, p o rq u e m e ungiu p ara evangelizar os p o b re s. . . ” Gostaríam os de su rp reen d er concretam ente, a ação do
E tendo lido, disse: "Hoje se cum pre a E scritu ra que aca­ Espírito Santo na alm a de Cristo, m as encontram os nos
bais de o u v ir” (Lc 4,18-21). Evangelhos apenas um texto explícito: "N aquela hora,
Cristo foi ungido pelo E spírito no m om ento da Encar­ Jesus sentiu-se inundado de alegria pelo E spírito Santo e
nação, como insinuou o anjo da Anunciação, dando como
motivo da san tid ad e de Jesus a vinda do E sp írito sôbre a A
23 N a v e rd a d e , o ú n ic o p r o t e l a a re c e b e r a u n ç a o , foi E lis e u ( l l t s 19 ,1 3 ).
n n ç ã o e ra r e s e r v a d a a o s re is e a o s s a c e rd o te s ( l R s 1,19; l.e v 8 ,1 2 .3 0 ),

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disse "Eu vos dou graças, ó Pai, Senhor do céu e da te rra cio, Jesus foi atorm entado pelas paixões desregradas da al­
porque ocultastes essas coisas aos sábios e aos prudentes m a e os desejos da carne, m as a pouco e pouco se libertou,
e as revelastes aos pequenos" (Lc 10,21). e, por obra de seus atos virtuosos, progrediu (Denzinger n.
"Cheio de graça e verdade” diz S. João, do Verbo en­ 224). Mas não; de início Jesus foi pessoalm ente unido ao-
carnado; e o mesmo evangelista explana: "Deus lhe deu o Verbo; união que não podia estreitar-se ainda mais, por­
E spírito sem m edida” (Jo 1,14; 3,34). Podemos em conse- quanto já era a mais estreita possível; a alma de Cristo re­
qüência, afirm ar que Cristo possuía a graça santificante em cebera do Verbo o máximo grau de graça habitual de que
sua perfeição, isto é, no m ais alto grau possível, por causa ela era capaz. Bem podia o Pai dizer, quando do batism o,
de sua proxim idade da fonte de tôdas as graças — Deus — ao e rep etir quando da transfiguração: "Ê ste é meu filho m ui­
qual estava pessoalm ente unido. Perfeição tam bém quanto to am ado em quem pus as m inhas com placências” (M t 3,
ao poder de irradiação, pois Cristo devia trazer a graça a 17, 17,5).
todos os homens. Tal perfeição não deve ser concebida Se não houve, em Cristo, crescim ento real, da graça
quantitativam ente como um am ontoado de realidades, m as santificante, houve, em compensação, crescim ento, progres­
de m aneira qualitativa, como um arraigar-se mais profundo so verdadeiro da graça atual, a saber dos auxílios tran sitó ­
na alma, um a inclinação m aior ao ato. rios im pulsos ao bem — que Deus nos dá para usarm os
Discutem os teólogos, e m uito, se a graça de Cristo pode com fruto da graça santificante. Tais auxílios são propor­
ser dita "infinita". É claro que não se pode afirm ar a infi­ cionais às necessidades da alma. Ora, é claro que Cristo-
nidade absoluta. Só Deus é infinito, a graça é um a realidade -homem careceu m uito mais de auxílios divinos durante sua
c ria d a 24. Discute-se pois sôbre a infinidade relativa, a saber: vida pública, e notadam ente durante sua Paixão. Deus, em
se a graça de Cristo tin h a tôda a plenitude possível. Trata-se conseqüência, deu-lhe graças atuais crescentes à m edida que
então de um a perfeição m oralm ente infinita, ilim itada, de cresciam suas necessidades.
m aneira que não possa crescer. Tal se nos afigura a graça
de Cristo. ■
S. Lucas, é verdade, escreve que o m enino "crescia em A graça capital de Cristo
sabedoria, em estatu ra e em graça, diante de Deus e diante
dos hom ens” (Lc 2,52). Mas o evangelista não intende afir­ "De sua plenitude todos nós recebem os graça sôbre
m ar que a graça, ela mesma, tenha crescido em Jesus, m as graça" (Jo 1,16). A graça de Cristo considerada como fonte
sim que à m edida que Jesus crescia êle produzia atos de vir­ de nossa graça, é cham ada "graça cap ital” 25; não é um a
tude mais perfeitos, consoantes ao seu adiantam ento em ida­ realidade, é a p ró p ria graça santificante de Cristo, porém
de. Trata-se pois de progresso na m anifestação externa da encarnada em suas relações com os homens.
graça escondida no coração de menino. Por outras palavras, No 4? evangelho, um a belíssim a alegoria ensina a união
houve progresso do im plícito ao explícito, do inconsciente vital entre Cristo e a alm a crente: "E u sou a vide verda­
ao consciente. deira e m eu Pai é o vinhateiro. Todo sarm ento que em mim
O 2? concilio de C onstantinopla, no século VI, censurou não der fruto, êle o cortará; e todo o que der fruto êle o
o êrro de Teodoro de M opsuesto que afirm ava que, de iní­ podará, p ara que dê m ais fruto. Vós já estais limpos pela
palavra que eu vos falei; perm anecei em mim como eu em
24 P o d e m o s d iz e r que a “ g r a ç a de u n iã o ” é in f in ita , pois é in c ria d a .
vós. Como o sarm ento não pode dar fru to por si mesmo, se
com o dom q u e o V erb o f a z de s u a p e ss o a d iv in a (lo g o in f i n ita ) à n a t u ­
re z a h u m a n a de J e s u s ; m a s a “ g r a ç a s a n ti f ic a n te ” é u m a re a lid a d e fin ita , 25 D o la tim " c a p i ta l ía ” re fe re n te à cabeça ( c a p u t) . E g ra ç a de
u m a q u a lid a d e q u e u n e a a lm a a D e u s, to r n a n d o - a a g ra d á v e l a ôle. C rigto e n q u a n to C a b e ç a d a h u m a n id a d e .

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não perm anecer na videira, assim tam bém vós se não p er­ os to rn a solidários uns aos outros, constituindo um só cor­
m anecerdes em mim. Eu sou a videira, vós sois os sar­ po. S. Paulo porém, alargando sübitam ente a perspectiva,
m entos. Aquêle que perm anece em m im e eu nêle, êsse dá u ltrapassa a questão dos carism as e afirm a de m aneira uni­
m uito fruto, porque sem mim nada podeis fazer” (Jo 15,1-5). versal: apesar de m uitos, os fiéis form am um só corpo que
Temos aí a união orgânica en tre Cristo e os s e u s : a di­ é Cristo. Com efeito foram todos batizados num só espí­
vina seiva deriva-se dêle p ara nós, a fim de que vivamos e rito, pelo que desaparecem as diferenças de sexo, raça e de
frutifiquem os. Impossível p ara nós, de subsistirm os sobre­ condição social.
naturalm ente, sem dêle receber o influxo vivificante. Nos É m uito de notar o final do versículo. E speraríam os:
capítulos 3 e 6, Jesus ensina que os grandes meios de esta­ "como o corpo é um e tem m uitos m em bros, e todos os
belecer e de fom entar a circulação entre êle e nós são os m em bros do corpo, em bora m uitos, form am contudo um só
sacram entos do batism o e da eucaristia. corpo, assim tam bém os fiéis”. Em vez disto S. Paulo escreve:
São Paulo não só substituiu a alegoria da vide por um a "assim tam bém Cristo". Entenda-se: não o Cristo indivi­
outra, o corpo com seus m em bros, mas sobretudo explici­ dual, senão o Cristo m ístico, isto é, Cristo em união com os
tou a doutrina. E sta nos aparece, nas epístolas, como um fiéis, como será dito no versículo 27: "vós sois o corpo de
capítulo central do ensinam ento do ap ó sto lo : nossa vida em C risto”. »
Cristo. Vida originada pelo batism o, que nos faz partici­
É tam bém de n o ta r o versículo 13, no qual Paulo dá o
p ar da paixão e da ressurreição de Cristo; vida desenvolvida
batism o como causa eficiente instrum ental do Corpo m ís­
pela com unhão ao Corpo e Sangue de Cristo; vida consu­
tico. Façamos um esforço p ara nos altear, de um lance,
m ada enfim quando o Senhor voltar.
acim a da ordem profana, e verem os em seguida que os cris­
É o que vamos ràpidam ente m ostrar.
tãos não se coadunam como se agrupam os cidadãos de
Apesar das adm oestações e súplicas veem entes de Jesus,
um a nação; o princípio ali é a fonte invisível de santidade:
a desunião veio corroer a cristandade desde os prim órdios.
— Cristo. Por conseguinte, os cristãos não são sim plesm en­
A Ia epístola aos coríntios nos coloca em pleno am biente de
te um corpo social a m ais entre m uitos outros; os cristãos
cisma. Vicejavam os partidos, m edravam as rivalidades, e,
form am o corpo de Cristo. „
como fatal conseqüência, baixava o nível m oral da com uni­
H á portanto que distinguir, na concepção paulina, dois
dade de Corinto. Motivo principal dos dissídios eram os
elem en to s: 1) a noção do corpo social, tirada da fábula
"carism as”, dons extraordinários (profecia, dom das línguas,
helenística, designando a m útua solidariedade dum a m ul­
dos m ilag res. . .) que, por seu cará ter espetacular e a desi­
tiplicidade de indivíduos; 2) a noção paulina de união so­
gualdade de distribuição en tre os fiéis, davam ensejo a vai-
bren atural, em tudo dependente de Cristo, por meio dos sa­
dades, invejas e cobiças. cram entos; é esta últim a noção que dá cunho de originali­
Fiel ao preceito do M estre, S. Paulo empenhou-se, com dade à doutrina do apóstolo.
a m áxim a energia, em restabelecer a harm onia, a união dos Ambos os ' elem entos se unem e sintetizam, pelo fato
espíritos. No capítulo 12 da Ia carta aos coríntios, êle lança de ser a dependência em relação a Cristo que faz da m ulti­
m ão de um a com paração b astan te popular nos meios hele- plicidade dos fiéis um só organism o.
nísticos, a qual, no intuito de assegurar a coesão social, as­ Aplicando a m etáfora do "corpo” para resolver o pro­
sem elha a com unidade a um corpo, cujos m em bros são os blem a dos carism as, S. Paulo põe a claro as relações dos
diversos cidadãos, S. Paulo ensina que todos os fiéis form am cristãos entre si e com o conjunto, deduzindo os respectivos
um só corpo, que é Cristo. Donde a intim idade da união que deveres. Q uatro pontos são postos em especial relêv o :
deve rein ar entre êles. Ademais é o p erten cer a Cristo que a) a diversidade dos carism as lhes é essencial; todos os

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coríntios não podem ser favorecidos pelos mesm os dons; Ainda em dois passos d a I a carta aos coríntios, encon­
b) não há carism a que não tenha sua função e seu valor, lo­ tram os ensinam entos com plem entares sôbre nossa m atéria.
go não há lugar p ara invejas e m enosprezos; c) todos os fiéis O prim eiro dêles enfeixa preciosa doutrina sôbre a casti­
são solidários: não se devem isolar, ainda menos alim en­ dade.
ta r rivalidades, antes cuidar uns dos outros; d) a finalidade Na grande cidade helênica, a devassidão de costum es
dos carism as é com unitária. Como, segundo a vontade do passara a provérbio, e os novos cristãos deixavam-se a tal
Criador, os m em bros do corpo existem p ara o bem do con­ ponto dom inar pelo am biente que vários dêles parecem ha­
junto, assim, pela vontade do Espírito, a m ultiplicidade dos ver considerado o fornicar, p o r exemplo, ato tão indiferente
carism as visa a edificação da Igreja. Use-se pois dêles ao como o com er e o beber; nada mais, em suma, do que a sa­
serviço da Igreja, p ara cujo bem foram co ncedidos26. tisfação de um a necessidade fisiológica. Ê rro gravíssimo
R ecapitulando a doutrina podem os enfeixá-la em dois que atravessou os séculos e que hoje em dia de tal modo
pontos: viceja que não só os rapazes se outorgam a m ais com pleta
1) Os cristãos form am um a unidade sobrenatural, cria­ liberdade sexual, m as até o outro sexo, esquecendo trad i­
da no batism o pelo Espírito, que lhes confere um ser nôvo, ções seculares, a reclam a p a ra si tam bém e a exige. O mo­
suprim indo as diferenças do sexo, raça e de condição social. tivo falacioso que invocam , encontrou sua fórm ula ideal
Esse co n junto denomina-se “C risto”, "corpo de Cristo", no título de um rom ance francês, hoje esq u ecid o : "Ton
o corpo”. N esta perspectiva a Ig reja poderá se definir corps est à toi". A firm ação falsíssim a que o apóstolo de
o conjunto dos batizados, unidos a Cristo e en tre si, pelo antem ão co n d e n a ra : "Não sabeis que vossos corpos são
E spírito de Cristo. Muito im porta n o ta r que p ara o apósto­ m em bros de Cristo? Tom areis pois os m em bros de Cristo
lo a Ig reja não é apenas um organism o pertencente a Cris­ e os fareis m em bros de u m a 'p ro stitu ta ? " (lC or6,15).
to (como ao pro p rietário a casa) m as a Igreja é Cristo, Tão estreita e p rofunda é a união vital entre cada fiel
o próp rio corpo de Cristo. Os batizados são m em bros de e seu Senhor, que ela não é privativa da alm a ou do corpo
Cristo. P or o u tras palavras, o conjunto dos batizados fo r­ só, m as abrange a pessoa tôda, corpo e alma, p a ra consa­
ma, m ercê da coesão interna que provém da união a Cristo, grá-la tôda à pessoa de Cristo.
um corpo sagrado que é o mesm o corpo de Cristo e não Santidade da c a r n e : sôbre ela corre a água batism al;
apenas pro p ried ad e de Cristo. Ê ste corpo foi plasm ado pe­ vem ungi-la o óleo consagrado; a hóstia nela se consome;
lo E spírito no batism o, que nos confere um a realidade es­ ela é cham ada a p a rticip a r da ressurreição gloriosa de
piritual — a graça — em virtude da qual estam os realm en­ Cristo. "Nosso corpo não é feito para a fom icação m as pa­
te unidos ao Senhor. ra o Senhor e o Senhor para o corpo! E Deus que ressusci­
2) Todos os fiéis possuem o E spírito. Êle porém se tou o Senhor, nos ressu scitará pelo seu poder” (IC o r 6,13-14).
revela diversam ente pelos seus dons. Temos pois que o O batism o funda e alicerça nossa união a Cristo, a Eu­
Corpo m ístico é um organism o form ado de m em bros m úl­ caristia a cim enta e e streita: o pão e o vinho transubstan-
tiplos e diversos, no qual as diferenças espirituais vêm subs­ ciados são o Corpo e o Sangue de Cristo; com ungar àqueles
titu ir as n atu rais, abolidas pelo batism o. Todos os m em ­ é unir-se vitalm ente a êstes. Pela com unhão do Corpo glo-
bros do corpo devem trab alh ar em harm onia, visando o rificado do Senhor, os fiéis se tornam seu corpo m ístico, a
bem do conjunto, "edificando” a Ig reja (IC o r 14,12). saber: um organism o que vive a vida de C risto 27. Ademais,

26 A e p ís to la a o s ro m a n o s o fe re c e -n o s u m te x to p a ra le lo (c a p . 12,3-8) 27 Ô “ C orpo de C ris to ” im p lic a pois u m a u n iã o p e ss o a l eom C ris to -C a b e ç a ,


q u e re s u m e ê s s e s m e sm o s co n ceito s,' sem lh e s a c r e s c e n t a r a lg o do s u b s ta n ­ que nfto é a p e n a s “ im ita ç ã o ” d e C ris to sen ã o d e p e n d ê n c ia v i t a l : é C ris to que
c ia lm e n te nôvo. re v iv e em nós s e u s m is té rio s , s o b re tu d o a su a m o rte e r e s s u r r e iç ã o ; v iv e r com o

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Cristo p resente sob as espécies eucarísticas, sendo um só — reitos religiosos, ligados com e p o r Cristo, num a unidade
pois não h á vários Cristos m as um só — os fiéis em grande m isteriosa, form am doravante um só corpo, um só povo de
núm ero que com ungam a h ó stia e o cálice, acham-se u n i­ Deus. A nova hum anidade que é a Igreja, não m ais perten ­
dos ao único Cristo e, por êle, são solidários, unidos entre ce, como a antiga, à era do pecado e da m orte, m as aos tem ­
si. A eucaristia é o sacram ento da unidade cristã (IC or pos novos da justificação e da ressurreição gloriosa.
10,16-22). D enom inando a Igreja o corpo de Cristo, S. Paulo quer
indicar que ela form a de certa m aneira, um só ser com
Nas cartas aos colossenses e aos efésios, escritas du­ Cristo. Com efeito, o batism o nos une sacram entalm ente
rante seu cativeiro, S. Paulo não m ais apresen ta a doutrina do ao corpo m orto e ressuscitado de Cristo; e o conjunto de
corpo m ístico como solução de problem as peculiares, antes Cristo m orto e ressuscitado e dos batizados, seus m em­
a desenvolve em tôda sua am plidão. bros, form a um só ser coletivo, que o apóstolo chama
A nteriorm ente êle dizia: “vós sois corpo de Cristo"; Corpo de Cristo ou Ig reja (E f 5,23; Col 1,18).
agora p ro clam a: "a Ig reja é o Corpo de C risto” com o a rti­ A Igreja deve a Cristo a existência, pois êle a fundou;
go definido (Col 1,24; Ef 1,22;4,12;5,29). Pela prim eira vez deve-lhe a santidade pois êle a salvou, entregando-se à m or­
qualifica Cristo de "cabeça da Ig reja” (Col 1,28; Ef 1,22). te, e fê-la sem m ácula nem ruga (E f 5,23-27); deve-lhe en­
Antes da vinda de Jesus, ensina o apóstolo, dividia-se fim o crescim ento e aum ento (Col 2, 19; E f 2,21).
a hum anidade espiritualm ente, em dois grupos contrapos­ A Igreja não é um corpo no sentido corrente da pala­
tos; de um lado os judeus — povo de Deus, herdeiro das p ro ­ vra, já que todo organism o vive e cresce p o r suas próprias
m essas — de outro lado a tu rb a dos gentios, sem Deus, sem fôrças, enquanto a Igreja vive e cresce p o r Cristo; tudo
esperança, atascados no vício. Veio o Salvador, e pela cruz, deve a êle, tudo dêle recebe. Não são os hom ens que fun­
dem oliu o m uro de separação e reconciliou entre si e com daram a Igreja e a fazem progredir; êles não passam de
Deus os dois grupos de homens, unindo-os em um só corpo: m em bros de Cristo, trabalhando na m edida em que êle lhes
a Ig reja (Col 1,20; Ef 2,11-18). dá a graça, p ara "edificar” seu corpo (E f 4,7,12). Fazem-na
O “grande m istério ” revelado pelo Espírito, consiste pro g redir religiosam ente (2Cor 10,8; 13,10) "até que todos
na universalidade da salvação, no fato que os "gentios são nós cheguemos à unidade da fé e do cpnhecim ento do Filho
co-herdeiros, e m em bros do m esm o corpo e co-participantes de Deus, varão perfeito, à m edida da idade m adura da ple­
da prom essa em Cristo Jesu s”, p o r meio do Evangelho (E f nitude de C risto” (E f 4,13).
3,6). Tal salvação se foi efetivando pela pregação do Evan­
S. Paulo utiliza tam bém outra m etáfo ra: com para a
gelho e pela fé com a qual os gentios a receberam , crendo
Igreja a um tem plo "cujas pedras são os fiéis, edificados so­
e pedindo o batism o. Pelo que não m ais estiveram longe bre a pedra angular que é C risto” (E f 2,20). E sta nova
de Deus, afastados dêle, m as ao contrário, tornaram -se
m etáfora possui sôbre a precedente a vantagem de frisar
m em bros de Cristo e, p o r êle, foram reconciliados com o
o caráter sagrado da Ig reja : ela é o "Tem plo santo no
Pai eterno. • ‘ .
Senhor”. Assinala-lhe tam bém o cará ter p ro g ressiv o : o edi­
Judeus e gentios, dotados pelo batism o dos mesmos di-
fício eleva-se sem cessar. E m com pensação, a m etáfora não
m e m b r o de C r i s t o ê d e i x a r - s e i n v a d i r p e l a v id a de C ris to , p e n s a r c o m o êle p e n ­
assinala, como a precedente, a circulação vital entre Cristo
s a , a m a r c o m o êle a m a , q u e r e r co mo êle q u e r . e os seus.
I m p l i c a t a m b é m u m a u n i ã o so c ia l : os m e m b r o s de C r i s t o s ã o to dos s o li ­
dários, gozam dos bens (sobrenaturais) uns des o u tr o s , e tam bém são Enfim S. Paulo cham a a Igreja "plenitude de C risto”
p r e j u d i c a d o s pelo s p e c a d o s de c a d a um. O p e c a d o r é u m p ê s o m o r t o que
p r e j u d i c a n ã o " a p e n a s a si m e sm o , m a s o c o r p o tod o. , * (E f 1,23; 4,13). Expressão obscura, cujo sentido é m atéria
N o ss o d e v e r , p o r t a n t o , com o m e m b r o s , è s u b i r e s p i r i t u a l m e n t e , le va ndo de controvérsia entre os exegetas. Parece-nos m ais acertado
os o u t r o s c onosc o. •01

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10. - M istério de Cristo

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entender a expressão em função de Col 2,9 e de Ef 5,18. No Sintetizam-se os dois conceitos — de suprem acia e de
prim eiro texto S. Paulo diz que em Cristo habita corporal­ íntim a união •— na celebérrim a perícope que a liturgia pro­
m ente tôda a plenitude da divindade; não participadam ente põe aos nubentes na epístola da m issa nupcial. (E f 5,22ss.).
senão realm ente e no grau máximo (a noção de "plenitude" Já o Antigo Testam ento apelara, várias vêzes, ao sim bo­
sugere repleção). Por ser êle nosso M ediador, enche-nos lism o das bodas para ilu stra r as relações entre Javé e seu
de energias divinas (E f 4,10). Não p ara que sejam os di­ povo (Is 54,5; 62,5; Je r 2 ,3 ;..., 16). Nos evangelhos sinóp-
vinos na m esm a m edida dêle, mas na da nossa capaci­ ticos o Reino dos céus é com parado às bodas de um filho
dade, até ficarm os "repletos" (E f 5,18). A Igreja, por de rei (M t 22,1) e às dez virgens que saem ao encontro do
sua vez é "plenitude de Cristo", p o r estar cheia, repleta, esposo (M t 25,1). O mesm o S. Paulo assem elha a Ig reja de
de energias divinas, derivadas da inesgotável abundância Cristo a um a noiva (2Cor 11,2).
do Cristo glorificado. Tal plenitude atingirá a m edida com­ Na epístola aos efésios, S. Paulo insiste sôbre dois pon­
pleta, quando os fiéis chegarem ao lim ite de perfeição que tos : a sujeição da p a rte da esposa, am or dedicado da p arte
lhes é acessível (E f 4,13). Então a Igreja estará de fato do espôso. Dupla é a m otivação:
"rep leta” de graça. 1) de ordem natural: o m arido é a cabeça do casal, logo
A expressão "plenitude de Cristo" parece-nos pois de­ é chefe que deve ser obedecido pela m ulher; a m ulher é o
signar a p articipação ativa da Igreja à superabundante vida próprio corpo do m arido, logo êste deve amá-la e cuidar
de sua Cabeça, Cristo. dela.
Os autores profanos, quando com paravam o organism o 2) de ordem sobrenatural: os cônjuges devem im itar a
social ao corpo hum ano, não estenderam a m etáfora às re­ união de Cristo e da Igreja: esta é sujeita a Cristo que a
lações en tre a cabeça e o corpo. O próprio S. Paulo em am ou ao ponto de m o rrer por ela. S. Paulo não escreve, co­
suas prim eiras epístolas, em prega o vocábulo "cabeça", pa­ mo era de esperar, que Cristo é cabeça, m as sim “Salvador
ra indicar a suprem acia sem m encionar o corpo. Por exem­ de seu corpo" como p ara acentuar êsse am or do divino es­
plo, na Ia aos coríntios; "Cristo é a cabeça de todos os pôso pela sua esposa, a Igreja; am or que o levou à m orte
homens, e o varão é a cabeça da m ulher, e Deus é a cabeça ignom iniosa p ara santificá-la; am or que p erdura em Cristo
de Cristo" ( lC o r ll,3 ) . Nas epístolas do cativeiro, pelo con­ glorificado, fazendo-o solícito pela sua^ igreja. Como o ho­
trário, ap resen ta Cristo como cabeça do corpo da Igreja. m em cuida pela p ró p ria carne, o m arido vela sôbre sua
A introdução dêsse nôvo aspeto parece obedecer a um a trí­ m ulher.
plice finalidade: Na grande palavra do Gênesis: "Serão dois em um a
1) afirm ar a suprem acia de Cristo sôbre os espíritos só carne" (G ên2,25), S. Paulo descobre, além do sentido lite­
angélicos — bons ou m aus — que os cristãos asiáticos p re­ ral, um outro, m ais profundo, figurativo das núpcias entre
zavam dem asiado (Col 2,10-15; Ef 6,11-12). Cristo e a Igreja.
2) acen tu ar a suprem acia de Cristo como chefe da Igre- P articularm ente feliz, nessa perícope* da epístola aos
já e ,'p o r via de conseqiiência, a sujeição da Igreja em rela­ efésios, foi o am álgam a das duas imagens: cabeça e es­
ção a Cristo (E f 5,23). pôso. A prim eira sugere um a solidariedade m uito estreita:
3) acen tu ar tam bém a intim idade da união; Cristo não o corpo nem viver pode sem a cabeça. A segunda em con-
é apenas chefe, m as cabeça do corpo da Igreja; êle exerce pensação, indica, contra o panteísm o místico, que subsiste
continuam ente um a função vital em relação à Igreja, com­ a distinção entre as pessoas, e que a fonte perpétua da união
parável ao papel que desem penha a cabeça no organism o en tre a Igreja e seu chefe é o am or; am or que constitui
humano. o princípio e o fim da religião cristã.

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M otivos da graça capital
f) Motivo de influxo. Da cabeça provém, pelos nervos,
Coordenando e explicitando os ensinam entos da Escri­
a sensibilidade e o m ovimento de que gozam os membros;
tura; dos santos padres e dos doutores, Pio X II na encí-
assim Cristo influi sôbre seus m em bros, iluminando-os, e
clica M ystici Corporis Christi assinalou seis m otivos da a tri­
santificando-os. Ilumina-os revelando a verdade religiosa,
buição a Cristo da noção de Cabeça, em relação aos homens:
esclarecendo os apóstolos, assistindo os evangelistas (Jo
a) M otivo de excelência. A cabeça ocupa o lugar mais 1,18; 3,2; 6,68; 18,37). É o autor e consum ador de nossa fé
alto no corpo, assim Cristo está elevado acim a de tudo: P (H eb r 12,2); continua a ilum inar doutores e pastores, sobre­
como prim ogênito de tôda criação (Col 1,15); 2'! como Filho tudo o seu vigário; invisível, preside e dirbre os concílios.
de Deus (L cl,3 2 ); 3o como único M edianeiro (lT im 2,5); Santifica, como autor e consum ador da santidade; move
4‘-’ como exaltado na cruz, para atra ir tudo a si (Jo 12,32);
o pecador à conversão, enriquece continuam ente os mem­
5U como eleito en tre milhões e am ado de Deus mais que bros mais em inentes do seu corpo m ístico com dons sobre­
tódas as criaturas; naturais; obtém as graças sacram entais por seus m erecim en­
b ) M otivo de governo. A cabeça governa o corpo, as­ tos; e suas súplicas conseguem do Pai a glória das almas e
sim Cristo na sua vida m ortal governou visível e pessoal­ dos corpos. "Segundo a m edida do dom de C risto” (Ef
m ente e, no céu governa a Igreja im ediatam ente p o r sua 4,7) escolhe, determ ina, distribui a cada um as suas graças;
ação invisível, ilum ina e fortalece, fiéis e pastores de modo donde segue que do divino R edentor, como de fonte m anan­
ordinário e tam bém extraordinàriam ente, suscitando gran­ cial "todo o corpo bem organizado e unido, recebe tôdas
des santos e socorrendo m ilagrosam ente a Ig reja nos peri­ as articulações, e segundo a m edida de cada m em bro, o in­
gos que a acom etem . Governa m ediata e visivelmente a fluxo e a energia que o fazem, crescer e se aperfeiçoar na
Igreja pelo papa e pelos bispos; carid ade” (E f 4,16; Col 2,19).
c) M otivo de m útua necessidade. A cabeça depende do
corpo e vice-versa. Sem Cristo os fiéis nada podem (Jo
15,4) e êle precisa dos fiéis pois seu vigário precisa de auxi­ O cristão e a hum anidade dc Cristo
liares e de preces. Ademais Cristo quis nobilitar-nos, pedin­
do a seus m em bros de colaborarem na o b ra da Redenção;
d) M otivo de semelhança. A cabeça e o corpo têm a Im p o rta sobrem aneira que o fiel estru tu re corretam en­
m esm a natureza; assim Cristo se fêz nosso consangüíneo te suas relações com a hum anidade do Salvador.
( Fil 2,7) e em troca, nos fêz consortes da n atureza divina Dois perigos nos vêm am eaçar a essa altu ra: o moralis-
(P d r 1,4). Devemos pois nos conform ar à im agem do Filho mo e o pseudo m isticism o. O "m oralism o” concebe a vida
de Deus (Rom 8,29; Col 3,10); im itação não só individual, espiritual antes de tudo qual luta contra tendências per­
de cada fiel como social, da Igreja tôda; . ■ niciosas, prática de virtudes, posse de si mesmo. Em su­
e) M otivo de plenitude. Em bora da m esm a natureza m a ó cristianism o seria o icteal de um- sábio pagão,-sobre­
do que o corpo, a cabeça sobrepuja o pela perfeição maior; tudo de um estóico. O "pseudo m isticism o” procura per­
possui, p o r exemplo, todos os cinco sèntidos, enquanto o der-se em Deus, dispensando qualquer mediação. Ideal
brâm ane. Não! replica o cristão autêntico. O centro da vi­
resto do corpo está reduzido ao tato apenas: assim Cristo
avantaja-se na plenitude dos dons sobrenaturais, nêle se da espiritual é Cristo. Pela sua hum anidade nos vem tô­
das as graças. Devemos pois, antes de tudo nos apegar a
encontram "todos os riquíssim os tesouros de sabedoria e
ciência" (Col 2,3) dos quais o seu corpo m ístico vem haurir; ela, com ungar a seus m istérios. Todo nosso esforço deve
ser orientado para estreitar-nos ao Senhor. E não há es­
tádio da vida espiritual, por mais alto seja êle, que dis-

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pense da m ediação de C risto 28. "Sem m im nada podeis surreição de Cristo, que não mais existem? O tem po é irre­
fazer" (Jo 15,5). versível, só pela im aginação logramos rem ontar-lhe o curso.
Essa vinculação do cristão a Cristo Senhor e Deus-ho- Falando do ano litúrgico, Pio X II ensina que êste "não
mem, é a fonte de inabalável confiança. N unca estam os é um a fria e in erte representação de atos que pertencem
sozinhos; o homem-Deus é nossa vida e santidade. Êle ope­ ao passado, nem um a simples e nua evocação de realidades
ra em nossas alm as desde que nos acheguemos a êle; rem e­ doutros tempos. Ao contrário. É o próprio Cristo, que
deia-nos as indigências, robustece nossa fraqueza, sacia nos­ vive sem pre na Ig reja e nela prossegue o cam inho de im ensa
sas aspirações. Como verem os em seguida, os m istérios de m isericórdia que iniciou nos dias de sua vida m ortal, quando
Cristo não são realidades passadas e m ortas, senão reali­ passou fazendo o bem (At 10,38), com o fim de pôr as almas
dades presentem ente vivas, atuosas em nossas almas, a êles em contato com seus m istérios e fazê-las viver p o r êles; m is­
com ungamos pela fé, m orm ente na Eucaristia. Cada um de térios que são sem pre presentes e o p eran tes. . . ” 29. Como
nós cristãos, pode dizer com S. Paulo: "tudo posso na­ conceber êsse contato das almas com os m istérios? Em
quele que m e conforta"" (Flp 4,13). que sentido são êles "presentes e operantes” ainda hoje?
A teologia vem nos ensinar o porquê dessa confiança Uma teoria alem ã, a cham ada "teologia dos m istérios'
triunfal. ' responde, distinguindo nos atos salvíficos de Cristo, o acon­
S er luz que ilum ina o m undo im erso em trevas, ser sal tecim ento histórico, irrem ediàvelm ente passado, e o elem en­
incorrupto no seio da corrupção geral, ser casto como um to interno, ou seja a significação salutar, que subsiste, é
anjo no meio da devassidão generalizada, ser caridoso como etern a e se to rn a p resen te pelo ato litúrgico. Temos pois
o Coração do Salvador, num m undo im erso no ódio, de cer­ ao lado da presença histórica, que não pode ser repristinada,
to é um ideal hum anam ente inatingível, m as o cristão, ju s­ a "presença m istérica" que é a presença do ato salvífico
tam ente n u n ca está só, o batism o incorporou-o a Cristo; o divino sob o véu dos símbolos sacram entais. Êsses atos
“caráter batism al" é um laço perm anente, indelével, que o salvíficos têm p o rtan to um conteúdo salutar m isterioso que
prende infrangivelm ente ao Senhor, que o coloca em conta­ está acima da história, pois p aira sôbre o tempo, é um con­
to im ediato com a hum anidade de Jesus e lhe dá direito im- tínuo presente. Os rito s litúrgicos não nos trazem apenas
perscritível às graças de que necessita p a ra se santificar. os efeitos dos atos de Cristo ou seja a graça, m as os próprios
Êle sente-se am parado, sustentado, pelo m elhor e mais fiel atos dos quais dim ana a graça. Presença real, objetiva, que
dos amigos, pela fonte perene de tôda santidade. assegura a possibilidade de nossa participação à vida ^ e
m orte do Senhor, tornadas assim atuais; atualidade não
já histórica senão m ística, pneum ática. O rito litúrgico tem
Permanência dos m istérios de Cristo o poder de distilar, no acontecim ento, o essencial do ato de
Cristo, a saber: sua significação salutar e eterna; êle apresen­
Desde que entendem os a vida cristã qual comunhão ta-a no símbolo sacram ental. Para p artilh ar realm ente da
aos m istérios de Cristo, surge, espontânea, a pergunta: como m orte de Cristo — e não som ente p artilh ar de sua eficácia
\ é possível que acontecim entos ocorridos há quase dois mil — é indispensável que esta m orte não seja apenas um acon­
anos possam ser atuosos hoje? Batiza-se um pagão: como tecim ento passado, m as esteja realm ente presente, no seu
é concebível que o sacram ento o m ergulhe na m orte e res­ ato essencial, o que se realiza graças ao sinal sensível do
sacram ento. A presença “m istérica" não é pois algo sub­
28 In o c ê n c io X I co n d en o u o fa ls o m is tic is m o de M olinos q u e v ia no a m o r jetivo — presença ao pensam ento e à m em ória dos partici-
p e la s a n t a h u m a n id a d e d e C risto , u m tr o p e ç o p a r a a v id a e s p ir itu a l (D e n -
z in g e r, n. 12 5 5 ).
29 P io XTI, Enc. M e d ia to r D ei, D oc. P o n t., 54, n. 160.

SST 151

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d e m ^ r í 1 Celeí raÇ10 cultual — m a« algo objetivo, indepen-
Unaçao, estatuiu que os m erecim entos do Salvador, adquiri­
?arn
la r, troo, jcto
i j16140:
da algo 5 ue atuaIiza em verdade, o ato salu-
celebração. dos um a vez por tôdas, seriam aplicados a tal indivíduo, em
tal m om ento do tempo.
Logo acim a citam os um texto de Pio X II sôbre o ano
hturgico, m as propositalm ente truncam os a frase, in terro m ­ M aiores dificuldades encontrarem os, se quiserm os afir­
pendo-a antes do fim. É que Pio X II qualificando a "teolo­ m a r que os m istérios do Senhor são; não só causa m eritó­
gia dos m istérios" de incerta e nebulosa, lhe p referia a teoria ria da graça, mas ainda causa instrum ental da própria pro­
dução da graça.
medieval da presença dos m istérios não em si mesmos
rnas nos seus efeitos. Podemos agora com pletar a citação: Como dissemos acima, a hum anidade do Senhor é causa
. . . M istenos que sao sem pre presentes, não de modo incer­ p n n cip al de alguns atos de Cristo, como ensinar ou rezar.
to e nebuloso de que falam alguns escritores m odernos, m as Mas na opinião de m uitos teólogos ela é tam bém causa efi­
como exemplos m agníficos de perfeição cristã e fontes de ciente instrum ental conjunta ao Verbo, na produção de tô­
graça divina pelos m éritos e intercessão do R edentor p er­ das as g ra ç a s: Deus se serve dos m istérios de seu Filho para
durando em nos seus efeitos e sendo cada um dêles segundo nos santificar. Pergunta-se: como ser instrum ento de um
efeito futuro?
seu modo p articu lar, causa de nossa salvação; assim o ensina
MU tnna catollca e é êste ° parecer dos doutores da Igre- Alguns respondem que os m istérios como acontecim en­
tos históricos efêm eros não são instrum entos, mas sim a
A causalidade m eritó ria dos m istérios de Cristo, não hum anidade gloriosa de Cristo, tal qual existe no céu, con­
apiesenta dificuldadçs especiais quanto ao fa to r "tem po”. tem porâneam ente ao desenrolar da história. E sta hum a­
Uma vez constituído pela Paixão o "tesouro" do.s m ereci­ nidade foi m arcada, m odificada, de modo perm anente, pe­
mentos, a aplicação a cada homem será feita pela fé e os los m istérios do Salvador. Êles perduram , p o r seus efei­
sacram entos, neste ou naquele m om ento da história. Tal tos, nesta hum anidade. A Paixão p o r exemplo, é um pro­
aplicaçao é possível pois que o "tesouro” sendo infinito — cesso histórico, cujo desfecho foi a ressurreição, na qual a
os atos de um a pessoa divina têm infinito valor — é inexau- m orte está presente como princípio ou causa, provas sejam
rivel; e tam bém porque um ato iá passado, pode continuar os sinais dos cravos e a cicatriz do Tado, que perm anecem
a ser eficaz no plano da causalidade m oral. Assim o lesgi- no corpo glorioso de Cristo. Na ressurreição, a m orte ad­
ador pode estatu ir que tal lei só com eçará a vigorar den­ quire um a atualidade perm anente, pois a ressurreição é o
têrm o da m orte, seu resultado.
tro de um lapso determ inado de tempo, seis m eses, por
exemplo. Passado êste prazo, sem qualquer ato nôvo do Outros preferem advogar a instrum entabilidade dos mis­
legislador, a lei com ecará autom àticam ente a ser exercida. térios conm sinais m anifestativos da vontade salvífica de
De modo sem elhante, Deus no seu decreto ete rn a de predes- ' Deus. De tôda a eternidade, Deus decretou a salvação dos
hom ens pelos m istérios de seu Filho. Êste, conhecedor do
decreto do Pai, dirige por sua inteligência e vontade hu­
m anas, todos os seus atos de m aneira a cum prir a vontade
« " h s- divina. Os m istérios são, pois, sinais m anifestativos da von­

v irtu d e s e t o s
SSüSS«5S*«S
* * * * Teãen<íío’ fr a n q u e ia a o s fié is a s riq u e z a s d a s
tade divina. Como sinais, êles m anifestam ; como instrum en­
tos da divindade, êles realizam o que significam ou mani­
oL t o r n a p re s e n te ^ em SCnh° r ' dC t a l SOrte « u e - a lg u m a fo r m a , festam . Deus a um tem po m anifesta e realiza seu desígnio
to s d a g r a ç a d a salv ac& n SIes 03 p e n e tre m e s e ja m re p le -
a b a ix o , p. 156 n 3 2 5 ’ C o n s titu i^ ° sõ b re a s a g r a d a L it u r g ia , n. 102: cf. salvador, servindo-se, como de outros tantos instrum entos,
da vontade hum ana de Cristo e dos m istérios de sua vida, a

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prim eira como instrum ento principal, os outros como ins­ Cristo continuado
trum entos secundários, dependentes da prim eira e subordi­
nados uns aos outros.
Se atentarm os, de um lado, na m ultiplicidade e estrei-
Alguns teólogos enfim, preferem dizer que não im porta teza dos laços que nos prendem à m ística cabeça, e de outro
que os m istérios sejam atos transitórios que o tem po levou, lado, no fato dos m istérios de Cristo não serem apenas
pois que a virtude divina que os move é dotada de ubiqüi- acontecim entos passados, senão realidades "sem pre presen­
dade e eternidade, pode em conseqüência, e sta r presente tes e atuantes” 31 com preenderem os que, por seu influxo,
a todos os lugares e a todos os tempos. A noção divina co­ êles tendem a se reproduzir tanto no conjunto cabeça e cor­
m unica assim a um ato tem poral efêmero, um influxo ins­ po — no Cristo total — quanto em cada m em bro do corpo,
trum ental atingindo todos os m om entos do tem po e a to ­ individualm ente considerado. Assim Cristo se continua pe­
dos os lugares do espaço. los séculos a dentro, revivendo m isticam ente seus m isté­
0 Verbo, eterno e onipresente, como que erguia a vida rios no seu corpo que é a Igreja e nos seus m em bros vivos
que são os fié is 32. "D eseja Cristo que cada um de seus
terrestre de Jesus acim a dos lim ites espácio-tem porais, pa­
m em bros se lhe assem elhe; m as deseja igualm ente que se
ra que ela pudesse influenciar todo o decurso da história,
lhe assemelhe todo o corpo da Igreja. 0 que sucede
dando-lhe assim unidade e sentido sobrenatural. 0 Cristo
quando ela, seguindo as pisadas de seu fundador, ensina,
glorioso servir-se-ia de suas ações passadas — e notada- governa, e im ola o divino sacrifício; quando abraça os con­
m ente de sua Paixão — como de outros tantos in stru m en ­ selhos evangélicos, e reproduz em si m esm a a probreza, a
tos de nossa santificação c de nossa ressurreição futura. obediência, e a virgindade do Redentor; quando nos muitos
Esparge luz sôbre nós por meio de um raio tin to de sangue. e variados In stitu to s que como jóias a adornam , nos faz
Assim os m istérios do Senhor são, em verdade, reali­ de certo modo ver a Cristo, ora no m onte contem plado, ora
dades "presentes e o p eran tes”. 0 Pai nos perdoa os pe­ pregando às turbas, ora sarando os enferm os e feridos, e
cados pela paixão, nos faz renascer à vida da graça pela convertendo os pecadores, ora enfim fazendo o bem a todos.
ressurreição e subir ao céu pela ascenção, como p o r outros Não é pois de se ad m irar se ela, enquanto vive nesta terra, se
tantos instrum entos, movidos pela virtude divina. vê exposta a perseguições, vexações e sofrim entos” 33.
N esta perspectiva, a hum anidade de Cristo é um ins­ O senso cristão in te rp re ta as perseguições que sofre a
trum ento : Igreja, como um reviver da paixão do Senhor. B aste citar
as palavras de três papas, p a ra comprová-lo. Na encíclica
a) unido pessoalm ente ao Verbo divino, o que lhe dá com m unium rerum , Pio X ensina: "Não deve a Igreja,
possibilidade de a tu a r além do plano hum ano ,e de seus li­
m ites espácio-tem porais. 31 P io XIX, E n c . M e d ía to r D e i, D oc. P o n t. 54; n. 3 60.
32 C om o fo i d ito a c im a , p. 154 n . 30, o C o n cilio V a tic a n o I I in s is te
b ) universalm ente eficaz, como partícipe do poder di­ sObre e s t a p r e s e n ç a m is te r io s a de C ris to ao seu C orpo m ís tic o , s o b re tu d o
p elos s a c ra m e n to s e p e la l i t u r g i a ; “ P a r a le v a r a e fe ito o b ra tã o im p o r ta n ­
vino, podendo pois atingir todos os homens. te ( d a s a lv a ç ã o ) C ris to e s t á p r e s e n te s e m p re em s u a I g r e ja , s o b re tu d o n a s
a ç õ e s litú r g ic a s . P r e s e n te e s tá n o s a c r if íc io d a m is s a , ta n to n a p e ss o a do
c) livre e animado, capaz de tran sm itir um a fôrça es­ m in is tr o pois a q u ê le que a g o r a o fe re c e p e lo m in is té rio dos s a c e rd o te s é o
piritual; capaz tam bém de executar a vontade do Pai. m e sm o que, o u tr o r a , se o fe re c e u n a c ru z , q u a n to s o b re tu d o so b as es­
p é cies e u c a r ís tic a s . P r e s e n te e s t á p e la s u a f ô r ç a n o s s a c ra m e n to s , d e fo r m a
d) dotado d a visão beatifica, logo conhecedor dos pla­ q u e q u a n d o a lg u é m b a t i z a é o C ris to m e sm o que b a tiz a . P r e s e n te e s t á p e la
s u a p a la v r a , pois é êle m e sm o que f a l a q u a n d o se ISem a s S a g r a d a s E s c r itu ­
nos do Pai relativam ente às criaturas; conhecedor tam bém r a s n a I g r e ja . E s t á p re s e n te f in a lm e n te q u a n d o a I g r e j a o r a c s a lm o d ia ,
êle que p ro m e te u : "O nde d o is ou t r ê s e stiv e re m re u n id o s em nom e, aí
das necessidades de todos os homens. e s ta r e i n o m eio d ê le s" ( C o n s titu iç ã o s ô b re a litu r g ia , n. 7 ).
33 P io X II, E n c . M y s tic i c o rp o ris C h ris ti, n. 46.

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osi

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do cristianism o é que tudo quanto aconteceu a Jesus Cristo
de dia p ara dia, assem elhar-se mais a Cristo? Não deve ser deve se reproduzir na alm a e no corpo de cada cristão. Co­
a imagem viva daquele que sofreu tais e tantos torm entos?” mo Jesus Cristo sofreu durante sua vida m ortal, e ressus­
Pio XI de seu lado, doutrina: "A paixão expiatória de Jesus citou com vida nova, subiu ao céu, está sentado à direita
Cristo se renova e em certo modo se continua em seu corpo do Pai; assim nosso corpo e nossa alm a devem sofrer, m or­
místico, a Igreja. Com efeito, para nos servir das palavras rer, ressuscitar, subir ao céu, se assentar à direita do Pai".
de Sento Agostinho: “Cristo padeceu tudo o que devia so­ De fato, cada cristão revive, no batism o, a m orte e a
frer, nem falta coisa alguma a seus padecim entos. Cum­ ressurreição de Cristo (Rom 6,3-5) e sua vida espiritual con­
priu-se pois a paixão, mas somente na Cabeça; restam por siste no conformar-se, sem pre m ais estreitam ente, aos mis­
preencher os sofriinentos dc Cristo em seu co rp o ” (In térios de Cristo, no viver as virtudes de Cristo, assim as­
Psalm. 86). É o que declarou o próprio Jesus quando a semelha-se cada vez m ais ao Salvador. “Os que (Deus) co­
Saulo, "que ainda respirava ameaças e ru ín a co n tra os dis­ nheceu de antem ão, tam bém os predestinou p a ra serem
cípulos” (At 9,1), disse: "E u sou Jesus que tu persegues" conform es à imagem de seu Filho" (Rom 8,29). "Filhinhos
(At 9,5), dando claram ente a entender que as perseguições meus, por quem sinto de nôvo dores de parto, até que Jesus
movidas contra a Ig reja vão atingir gravem ente seu divino Cristo se form e em vós" (Gál 4,19). "Estou crucificado
Chefé. Com todo o direito, pois, Cristo, que ainda sofre em com Cristo, e já não vivo eu, é Cr-isto que vive em mim"
(Gál 2,19-20). "Todos vós que fôstes batizados em Cristo,
seu corpo m ístico, deseja que lhe façamos com panhia cm sua
vos revestistes de Cristo" (Gál 3,27).
expiação; e tam bém o req u er a nossa união com êle, p o r­
quanto, sendo nós o corpo de Jesus e seus m em bros (IC or Daí o desejo que tiveram tantos santos — de Inácio
12,27), quanto sofre a Cabeça, tanto com ela devem sofrer de Antioquia a Teresa de Lisieux — de m orrerem m ártires,
os m em bros tam bém (cf. 1Cor 12,26)”34. pois o m artírio é o ato suprem o de configuração ao Cruci­
Pio X II enfim escreve: “Assim como o R edentor do ficado.
gênero hum ano foi perseguido, caluniado, atorm entado por S anta Felicidade, hum ilde escrava, deu à luz um a filhi-
aquêles m esm os que vinha salvar, assim a sociedade por nha, na prisão. Como o p arto fôsse difícil, ela gemia. In­
êle fundada, tam bém neste ponto se parece com seu divi­ terpelou-a um carc e re iro : "Se gemes, agora, que farás quan­
no F undador”35. do fôres atirada àquelas feras que entretanto desprezaste,
Se a lei do Corpo é ser prolongam ento de Cristo, a lei recusando sacrificar aos im peradores?” R etrucou a m ár­
do m em bro individual será a configuração a C risto nos seus tir: “Aqui sou eu quem sofre, m as lá haverá outro que so­
m istérios. E sta configuração não é sim ples im itação de fre rá p o r mim, porque por êle deverei sofrer”37.
Cristo, senão um processo interior, vital, um crescer de Fé e am or que d itaram a S. João Eudes bela e longa
Jesus na alm a: nela Jesus revive sua vida, reza, ensina, sofre, "elevação” sôbre o m artírio, da qual reproduzirem os um
m orre, salva; “É preciso qüe nos habituem os a ver' na pequeno trecho: "Ó desejável Jesus, não mais podeis so­
Igreja o pró p rio Cristo. Pois que Cristo vive na Igreja, por fre r nem m orrer e en tre tan to tendes m ui grande desejo de
ela ensina, governa, santifica; é Cristo que de vários modos so frer e de m orrer em vossos m em bros, a fim de glorificar
se m anifesta nos vários m em bros de sua sociedade”36. vosso Pai, por meio dos sofrim entos e da m orte dêles, até
Pascal expressou com felicidade essa lei de configura­ o fim do mundo. E vós procurais pór todo canto pessoas
ção dos m em bros à cabeça: "Um dos grandes princípios nas quais possais cum prir êste intento. Eis-nos ó bom

34 P io X I, 32nc. M is e r e n tis s im u s R e d e m p to r , n . 15. 37 11. r u n z BUENO, A a ta s d e los m á r tir e s . M a d r i 1951, pp. 433-434.
35 P io X II, E n c . M y s tic i C o rp o ris C h ris ti, n. 2.
3G Op. l a u d . n. 93.
1 57
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Jesus, eis-nos: nós nos oferecem os de todo o coração — ou b ) ciência infusa. Com unicada diretam ente p e r Deus,
m elh o r: com mil corações e com mil vontades — a fim de sem p assar pela essência divina; sem pressupor o esforço
que digneis servir-vos de nós p a ra êsse fim. Eis nossos da inteligência hum ana. E m Cristo era na m aior parte
corpos, e todos os m em bros de nossos corpos, prontos, m e­ "h ab itu al”, virtual.
diante vossa graça, a sofrer tôda espécie de torm entos, p a­ c ) ciência adquirida. Cristo como verdadeiro homem
ra que vosso desejo seja satisfeito, e que a sêde ard en tís­ que era, conheceu a realidade pela experiência sensível e
sim a que tendes de sofrer e de m o rrer em vossos m em bros, pela atividade racional. Atestam-no a Escritura. Contu­
por am or de vosso Pai, seja um pouco saciada em nós"38. do, não podem os colocar em Cristo "ignorância" do que
êle devia saber; ainda m enos podem os colocar nêle "ê rro ”,
Síntese pois seria incom patível com sua inteligência sem defeito,
e a sublim idade de sua missão. Objeções dos m odernistas.
O corpo de Cristo. A integridade da natureza hum ana
Duas vontades harmônicas. Às duas inteligências cor­
de Cristo, afirm ada pela fé católica, exigia um corpo não
ilusório ou fictício, senão real e perfeitam ente constituído, respondem , em Cristo, duas verdades. Ê rro m onotelista.
sem falhas individuais como a doença ou a feiúra. Beleza A vontade hum ana não resistia à vontade divina, m as antes
subm etia-se a ela. A oração de Jesus no H ôrto m anifesta
de Jesus. Sua sensibilidade apuradíssim a era fonte de gôzo
diversidade de volições m as não conflito. Nem um só ins­
e de sofrim ento excepcionais. E sta sensibilidade jam ais
tan te a vontade hu m an a quis subtrair-se à vontade divina.
in terferiu na razão.
A alma de Cristo. Uma alm a hum ana perfeitíssim a Tríplice amor de Cristo. A dualidade de natureza e de
vontade pedia um a pluralidade de a m o re s: divino, hurnano-
aviventava o corpo de Cristo. Da união hipostática das
-espiritual, humano-sensível. N essa doutrina encontram os
duas naturezas, seguiu-se a existência de duas inteligências
e de duas vontades — hum ana um a, divina a o u tra — am bas o fundam ento teológico da devoção ao Coração de Jesus.
Fazendo cessar a confusão quanto ao objeto do culto,
ao serviço da Pessoa do Verbo.
Pio X II determ inou que êste é constituído pelos três amores
As ciências hum anas de Cristo. A ciência divina do Ver­
do Salvador, sim bolizados p o r seu coração de carne, ferido
bo não to rn a supérfluas as ciências hum anas de Cristo. A na cruz. _
realidade da inteligência h u m an a exige um a intelecção hu­
m ana, sob pena de ser inútil. Ademais, o mesmo objeto pode Im pecabilidade e liberdade de Cristo. Jesus não só não
ser conhecido de várias m aneiras possíveis. Donde a trí­ com eteu pecados com o não podia pecar. Funda-se sua im­
plice ciência de Cristo-homem: pecabilidade s ô b re : a) a união hipostática (todos os atos
a) ciência beatífica. Da visão intuitiva da essência di­ de Cristo pertencem à Pessoa do Verbo); b) a plenitude de
vina, dim ana a ciência beatífica. Desde o p rim eiro in stan­ graça; c) a visão beatífica. N ecessitado pelo Bem absolu­
te da Encarnação, Cristo tudo conhecia em Deus. Ciência to visto às claras, Cristo é soberanam ente livre em relação
intensiva e extensivam ente m áxim a. Atinge ainda os m isté­ aos bens finitos. P oder p ecar não é um privilégio senão
rios os m ais recônditos: Trindade, Encarnação . . . A vi­ um a fraqueza. Difícil problem a constitui a conciliação da
são facial de Deus gera necessàriam ente intensíssim a ale­ liberdade do Filho com sua obediência ao Pai. Os evange­
gria, m as não im pedia a existência em Cristo da sum a dor. lhos afirm am um a e o u tra coisa e os teólogos forcejam de-
Conciliação m isteriosa e m ilagrosa. balde para m o stra r que um a não destrói a outra. Só a vi­
são facial nos a clarará o m istério.
38 S, J kan E ud es , V ie et ro y a u m e de Jésus. Nouvelle é dit lo n, Paris, Atos teândricos. Em sentido estrito m erecem êste no­
1950, p.’ 95. . me os atos de C risto nos quais se revela a colaboração de

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am bas as naturezas, a ação hum ana servindo de in stru m en ­
to a açao divina, como os milagres. Mo Evangelho as mãos Cristo, a eucaristia a cim enta e estreita. Nas cartas aos co-
de Cristo aparecem -nos como instrum entos da virtude que lossenses e aos efésios, o apóstolo desenvolve em tôda a
obra o milagre. 4
sua am plidão a doutrina. D enom ina a Igreja o Corpo de
Todos os teólogos adm item a causalidade m oral da hu- Cristo, "plenitude de Cristo" e Cristo, Cabeça da Igreja e
m am dade do Senhor na produção da graça e n a realização seu Esposo am antíssim o.
milagres. Alguns dêles não vão mais além. Outros M otivos da “graça capital”. Pio X II na encíclica Mys-
porem adm item um a causalidade eficiente de ordem ins­ tici Corporis Christi aponta seis motivos de atribuição a
trum ental.
C risto da noção de Cabeça, em relação aos h o m e n s: exce­
A santidade de Cristo. Tríplice graça de C risto: a) lência, govêrno, m útua necessidade, semelhança, plenitude,
f ' UÇa dl u m a o ' é ° dorn am oroso da pessoa do Filho à na­ influxo.
tureza hum ana de Cristo, de m odo que êle é filho n atu ral O cristão e a hum anidade de Cristo. Dois perigos am ea­
ad,0 tir } d o . P ai- É um a unção ou consagração on- çam a vida espiritual do c ris tã o : o m oralism o e o falso m is­
tologica da hum anidade de Jesus, b) graça santificante, ticism o que desconhecem a função central da hum anidade
que eleva a natureza hum ana à ordem sobrenatural, habili­ de C risto na vida do cristão, Por esta hum anidade nos
tando-a a conhecer e possuir o Deus uno e trino, a conhecer
vêm tôdas as graças, e o caráter batism al nos prende a ela
tam bém sua elevação à ordem hipostática. P lenitude de
infrangivelm ente, dando-nos direito aos meios de santifica­
graça que aperfeiçoa infinitam ente o Salvador e o habilita
ção. Confiança inabalável e triunfal.
rnncfn C°tm ,u m car a §ra Ça - E ^ a plenitude de graça trazia
consigo todas as virtudes sobrenaturais convenientes ao es­ Perm anência dos m istérios de Cristo. A inserção dos
tado e m issão do Salvador. Assim é que Cristo não tinha m istérios de Cristo no tem po propõe aos teólogos difíceis
nem fe nem esperança teologais. Em com pensação, ardia problem as. Como é que acontecim entos ocorridos há quase
da m ais a r Gente caridade pelo Pai e pelas almas dos homens. dois m il anos podem ser atuantes ainda hoje? — A causalida­
Alem das virtudes sobrenaturais Cristo recebeu a plenitude de m oral da hum anidade de Cristo não apresenta dificulda­
dos dons go E spírito Santo que guiaram e in sp iraram tôdas des m aiores. A dificuldade surge quando tentam os fazer
as suas atividades m essiânicas. Podemos dizer que a graça dessa hum anidade sagrada um a causa eficiente e instrum en­
de Cristo e m oralm ente infinita, ilim itada; atingiu o grau tal da produção da graça. Alguns teólogos apelam à "pre­
máximo de que era capaz, c) graça capital. É a graça de sença m istérica"; outros apelam à hum anidade gloriosa do
Cristo encarada como fonte de nossa graça. S. João com a S enhor na qual perduram , por seus efeitos, os m istérios
s u a ^ a e Boria da vide e S. Paulo com sua com paração do Salvador; outros ensinam que os m istérios são sinais
ao corpo revelam a estreiteza de nossa união orgânica m anifestativos da vontade divina: como sinais êles m ani­
com o Senhor. A d o u trin a do Corpo m ístico é o capítulo festam , como instrum entos da divindade êles realizam o que
central do ensinam ento do apóstolo sôbre nossa vida em os m anifestam ; outros ponderam que a virtude divina que
Cristo. Na 1- epístola aos coríntios Paulo ensina que os move os atos de Cristo é dotada de ubiqüidade e de eterni­
cristãos form am um a unidade sobrenatural, um conjunto dade, logo pode atu ar em todos os lugares e em todos os
criado pelo batism o que une os cristãos a Cristo e en tre si. tem pos, ergue pois os atos de Cristo acima do plano e dos
E ste conjunto m ercê da coesão in tern a que lhe provém da lim ites espácio-tem porais. Nessa perspectiva, a hum anida­
um ao a Cristo, fo rm a um corpo sagrado que é o m esm o cor­ de de Cristo é um instrum ento unido pessoalm ente ao Ver­
po e. n sto . Se o batism o funda e alicerça nossa união a bo, universalm entc eficaz, livre e animado, dotado de visão
bealílica.

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11. - M is té r io d c C ris to

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Cristo continuado. Sem pre presentes e atuantes, os m is­
térios do Salvador tendem a se reproduzir tanto em cada
m em bro individual quanto no conjunto Cabeça e corpo, ou
seja na Igreja. O senso da fé in terp reta as perseguições que
a Igreja sofre como um reviver da paixão do Chefe. A
configuração a Cristo não é apenas um a im itação, m as um
processo interior, vital, um crescer de Jesus nas almas, p a­
ra nelas reviver a sua vida.
CAPÍTULO IV

0 REDENTOR

Divinização do hom em

- "O Verbo se fêz hom em para que nós nos tornássem os


Deus; êle se fêz visível em seu corpo, para que tivéssemos
um a idéia de seu Pai invisível; êle suportou os ultrajes dos
hom ens, a fim de que participássem os da im ortalidade” ’.
Assim resum e Sto. Atanásio a teologia da Encarnação
redentora. Concepção que Ihè veio de Sto. Irineu e de
Clemente Alexandrino e que se tornou "clássica" entre os
gregos. Alguns críticos até arm aram um a oposição entre
pensam ento grego e pensam ento latino; os gregos acentuan­
do a Encarnação, os latinos acentuando a Redenção san­
grenta, na obra da salvação do hom em pecador. Segundo
os prim eiros, b astaria a simples Encarnação para nos di-
vinizar, segundo os outros, ao contrário, o essencial é a m or­
te do Verbo encarnado. . .
Não olvidemos todavia, que diversidade de pontos de
vista ou de perspectivas, não im plica necessariam ente opo­
sição. Os latinos conheceram e não rejeitaram a opinião
dos gregos, prova seja o seguinte trecho de Sto. Tomás de
A qu ino: "Tendo Cristo recebido a plenitude suprem a da
graça, como Filho único do Pai segue que dêle ela di-
m ana até os outros, de sorte que o Filho de Deus feito ho­
mem, faz dos hom ens deuses e filhos de Deus" 2.

? A íb .in a a c d ‘ A1e x a m in e . íie n lr e les psuens et auv rine.ariiiiI ion dit Verbe.
Sourccs C hrétiennes, 18; t r a d . C a m e lo t, p. 312, P a r is , ed. du C e rf. 1947.
2 C om p. th e o l. c. 214.

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m o r ° S/ „ X j L S; U
ro c e t ; r ~ a < > ™ <- valor da de passagem que a Encarnação repercute sôbre a mesma
especie humana. O falo de se te r Cristo feito nosso consan-
^ a d ~ S “ guineo num corpo passível e m ortal, tornando-se irm ão de
todos os homens sem exceção alguma, nobilitou-os a to­
- r P
T o & : dos, valendo-lhes a todos o privilégio da ressurreição.
corpo do Senhor, e de o u tn T to rf' d° t0 d ° S Cün'l p n a 'se no O corpo hum ano recebera em Adão o dom gratuito e
eram destruídas pelo Verhn ado' a m o rte e a corrupção p rete rn atu ral da im ortalidade, perdida essa prerrogativa _
m orte era necessária ê l X habltava êste corP°- A que era um dos constitutivos da justiça original — estava
pagar a dívida de todos fY>eC1SX / n o rre r P o r tQdos, p ara nosso corpo fadado a se dissolver p ara sempre, como todo
ôlc era im ortal tnTX m ° Verb° não Podia m o rrer - e qualquer com posto m aterial, sem título ou direito algum
oferecê-to pôr todos c o m r e e C° rr ^ de m ° m r ' a fi"> a ser de nôvo anim ado. Cristo, é verdade, não restituíu à
mesm o p 0? todos neste cornn m p r,°prÍO’ e' sofrendo êle nossa carne a prim eva im unidade em relação à m orte; ar­
a nada o senhor da m n rt ^ ^ ^ Ua .tlrdla vm do reduzir rancou-a contudo à m orte perene, dando-lhe o dom d e ”res­
suscitar, como êle ressuscitou (IC or 15,12ss). E note-se que
escravfdão"° (fíX **** ^ s u ^ itT à não é um dom ligado à graça, antes é um dom feito à pró­
p ria natureza hum ana, tanto assim que as criancinhas m or­
tas no seio m aterno — que po rtan to não puderam receber
a ê ra ?a ressuscitarão em virtude da conform idade de
do outro. 6m contudo os separarem um sua natureza com Cristo.
Sobrepuja ao infinito êste privilégio da im ortalidade
corporal, o dom da graça feito à alma. Exclama S. Leão
E n c a X ^ ã o ^ X h X X X ^ p í o 3 X IIda hum ana PeIa Magno no seu VI Serm ão de Natal: "Êste dom excede a
queda de Adão • “T W P ° X IÍ'. apos hav er recordado a
tanto o m u n d o ’ que lh e de ^ m isericórdia, “amou todos os o u tro s : que Deus cham e ao h o m e m : m eu filho;
e o Verbo do eterno p í X llh° uniSên ito ” (J ° 3,16); e que o homem cham e a D eus: meu Pai!” 5.
revestiu a natureza h ’ T a m esm a divm a caridade P ara expor êste m istério, carecem os de vocábulos apro­
inocente e " m a c S a d a n a X ^ deSCe“ dêncÍa d* Adão, mas priados: hum anas são nossas expressões, divino é o misté-
rio.^Diz S. Paulo (Gál4,5; Rom8,15) que somos "filhos adoti­
m anasse a m do L X T ? ^ 6 CeIeSte Adâo di‘
m eiro pai- e S te s a u e d n ° & ÍOd° S ° S fÜhos do Pri‘ vos de Deus. A expressão é consagrada, significa que,
ap esar de participarm os da herança sobrenatural, não somos

S ~ ^ ^ 5
recebessem o p oder de virem a ser filhos de D eus” «
S S £ £ todavia filhos do Pai p o r natureza, como era Jesus; de
o u tro lado a expressão é inapta, pois que a filiação adotiva
rep o u sa sôbre um a ficção legal, enquanto somos realm ente
tic u b r q u ê T v e r h T ’ afeta a Penas a "« tu reza hum ana p ar­ filhos de Deus, já que a graça é participação intrínseca à na­
tureza divina (2Pdr 1,4). O próprio Jesus no-lo revelou, na
alegoria da videira, afirm ando ser -êle a cêpa e nós os sarm en­
tos (Jo 15,1 s s ). Esta união não é fictícia, pois a seiva corre,
que dim ana do V eT b o ^ èL aín ad o ;'^com ud^poT em os" noto? sem interrupção, do tronco às vides. Não existe, entre
J A liian a.se. nu. c it., p. 215

U X I1 - ,5 n c' c ò ru o r lu C h ris ti, n. 7 . 5 T.éon le G ra n d e : S e r m o n s , S o u rc e s C liré tie n n e s 22, tr a d . 17 . M olle, p. 131,


P a r is , E d . d u C erf, 1949.
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S d f r , L / ní ; , ^ ! k 'aí í' p ad,e ape" a5 *•»*> solidarie- tam bém pela graça em um a só pessoa mística, às persona­
„-1 ’ _ g 'a ' S- 1 aul° exprime a m esm a verdade com lidades particulares de seus m em bros.
b l s e ° mParaÇa0 da CabEÇa e do corP°; ainda aqui há s T ti im portantíssim o n o ta r que a segunda união c efeito da
p rim eira: a graça criada que circula em nossas alm as qual
q u e e n ^ C r k m .5 tÔ da & p u j a n Ça d e v itla s o b r e n a t u r a l divina seiva, jo rra da graça incriada que é a união hipos-
b n idan te d í e f contrad c m o d o em in e n te e supcra- tática, de sorte que Cristo se prolonga no espaço e no tempo
pelos seus m em bros.
S alv ad n r ^ a nÓS' a0 P °nto Que o P r ó p r i o
com parar T uniãb dita "sa^ r d o t a l”, não duvida em Assim pois devemos conceber a divinização do homem
com parar a um ao entre ele e os seus, à m aravilhosa unidade pela Encarnaçao do Verbo. Ela se funda sôbre a rnística
m que o Pai está no Filho e o Filho no Pai (Jo 17,21-23). solidariedade entre Cristo e nós. Solidariedade que perm i­
Sem em bargo, as imagens da videira e da cabeca se to­ te a S. Paulo de dizer e rep etir que revestimos a Cristo no
adas ao pe da letra, poderíam insinuar um panteísm o m ís­ batism o, com êle fomos crucificados, com êle m orrem os e
tico, como se da conjunção do Filho de Deus e ^ o s seus fiéis fomos sepultados, com êle enfim ressuscitam os c subimos
aos céus.
eraca.5^ ^ e_uta P ^ p e ç t i v a a filiação da
Sto. Irineu, o príncipe dos teólogos da Igreja prim itiva,
o Filho de11^ ^ COm° "aqUek inefável uniao com que traduziu essa solidariedade pelo conceito de "recapitulação”.
n a ™ form ,de,Ud„aSSUm,U Uma natureza hum ana d« ™ i - É um têrm o paulino: Deus Pai "deu-nos a conhecer o m is­
v êies P x n l 1 , iangl;e pu n ssim o Maria. Por várias
• 10 X II insistiu sobre o equívoco e o dissipou. Baste tério de sua vontade, conform e o beneplácito que nêle se
rínhn°ra , Con(S! d erar 9ue a natureza hum ana de Cristo não propôs, a fim de realizá-lo na plenitude dos tem pos: unir
nha subsistência própria, enquanto todos os fiéis mesmo sob uma cabeça (anakephalaio.sasthai) tôdas as coisas em
os mais divimzados en tre os santos, “conservam perfeita a Cristo, as que estão nos céus e as que estão na te rra " (Ef
p rópria personalidade" «. Essa união en tre Cristo e o l i e i 1,10). E Irineu com enta: "Quando o Verbo se encarnou e
nao poderá ser, p o rtanto, substancial, pelo que estará à se tornou homem, êle recapitulou em si mesmo a longa
série dos homens e nos valeu a salvação em com pêndio —
probos d3 d,SSOlUÇã°- meSm° p ere“ ' n e o n ,e c e a o s r “ em sua carne — de sorte que o que ..havíamos perdido em
Adão — a saber o fato de serm os criados à imagem e seme­
r a I " P m ^ ° bV-,a r “ ínconven’ente, falam os em "união mo- lhança de Deus — isto m esm o nós poderiam os recobrar
em Cristo J e s u s ... O que êle parecia ser o era em ver­
tic o 'a p e n a s7 a ra m cãira nomr i° d° pantt!ism ° mis-
iá ruip no air no ^ da do exí:nnsecism o p ro testan te dade, a saber: Deus recapitulando em si mesmo esta carne
siríoncebeu
p
“L ie i 1 ° “*"?
u ■ Lutero nossa justificação por Cristo.
.‘í S de hom em o utrora plasm ada, a fim de vencer a m orte, ani­
q uilar o pecado e vivificar o h o m em . . . Lucas m o stra que
nera tnrL esiSn ^ r u m a conjunção, única no gênero que su- a genealogia que vai do nascim ento de nosso Senhor até
Adão, com porta 72 gerações, pelas quais êle une o fim à
emborfsupeiir T?™ ' " , a h i p o “t f t a origem; êle significa assim que é êle que recapitulou em
si mesm o todos os povos dispersos desde Adão, tôdas as lín­
qüêhoa ™ ,o a d T e u Sf ° de/ PeSSOa m íStk “ t ó S guas, tôda a geração dos hom ens e o próprio A d ão "7.
?eza humLna o a ', ■d " m do-se Pala E ncarnação a unia natu-
P icular, em um a só pessoa física, uniu-se 6
7 I rénée DE LYON, C o n tre lea H é ré sie s , I.iv re I I I , c. ■ 18, 1. 7 ; 22, 3.
6 E nc. M y s tic i C arporla C h risU , nn. 53, 62. S o u r c e z C h ré tie n v e s , 34; t r a d . S a g n a rc l, pp . 311, 329, 379, P a ris , E d . du C erf,
1952.

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R ecapitular é pois retom ar — resumindo-a cm Crislo
“ buscavam o Senhor se porventura, tateando o pudessem
toda a história, tôda a hum anidade — para fazê-la voltar à
achai (At 17,27) até que o Filho de Deus encarnando-se e
p e re iç ã o prim eira que é a união de am or das criaturas
com Deus entre si. m orrendo p o r nós, restabelecesse, quanto ao essencial, a
ordem prim itiva. A esta restauração cham am os de Reden­
i ^ A<? ° f0Í CrÍT a d° “à im aSem e sem elhança de D eus” (GÔn ção, que se pode definir teologicam ente: a restituição, por
' iv,ara S,!°- I,n n eu 0 hom em é "im agem ” p o r sua alma e Cristo, da amizade entre Deus e o hom em pecador. Dogma
sem elhança pela graça. Por sua desobediência Adão p er­ complexo que nos foi revelado sob ângulos diversos. Assim
deu a sem elhança” divina, m as Deus não quis que seu podem os colhêr diferentes aspectos de um a só realidade al­
plano prim itivo fôsse definitivam ente arruinado, pelo con- tíssim a. A Sagrada E scritura delineia ora os efeitos coleti­
tra n o ele o restaurou p o r Cristo, Verbo encarnado. Para vos da paixão e m orte de Jesus (Redenção objetiva) ora os
’Sm° r e e recapitula" em Cristo, isto é, com pendia, inclui efeitos da libertação individual (Redenção subjetiva). Em
em Cristo todos os descendentes de Adão — e o próprio
outros passos ela nos dá a conhecer os elementos constitu­
A dao. . . Assim Deus recom eça a sua obra estragada pelo
tivos da obra redentora do Senhor: a satisfação, o mereci­
pecado e faz de Cristo um segundo Adão, no qual está p re­
m ento, o sacrifício. Desta m aneira nos é indicado um ro­
sente, de certa m aneira, a hum anidade inteira. E como
teiro seguro. Seguindo-o, conquistarem os um a idéia sufi­
n s to e o Verbo de Deus, êle com unica aos hom ens sua
sem elhança , renovando-os. cientem ente com pleta da Redenção e encontrarem os ali­
m ento substancial para nossas m editações teológicas.

A Redenção O amigo dos pecadores ,

O leitor dos evangelhos logo percebe a estranha predi­


Nesse processo de salvação da hum anidade pecadora,
leção de Jesus pelos pecadores. Já seus inimigos lha ex-
J á eouv?mneXatamea te ° CUpa a m ° rte do Verbo a c a m a d o ? probravam : É amigo dos publicanos e dos pecadores” (Mt
mnrrn ° S padrCS gregOS en sin ar que Cristo, p o r sua 11,19). "Ê ste acolhe os pecadores e, come com êles" (Lc
i ienC6U a m ° rte 6 ° peCado' causa da m orte. Os teó- 15,1). ‘Se êste fôsse profeta, conhecería quem e qual é a
ogos latinos — que vamos agora ouvir — estu d aram com
especial cuidado, o m istério da m orte redentora. m u lh er que o toca, porque ela é um a pecadora” (Lc7,39).
Todos m urm uravam dizendo: Êle entra pãra se alojar
f 3 ,°S Iatl_n°s, como p ara os gregos, a história das re- em casa de um pecador” (Lc 19,7).
Iaçoes entre a hum anidade e Deus pode ser descrita como
Mas Jesus não aceitava a censura; antes justificava es­
I ^ t i t S S n T tr ? ato si^ in stituição, destituição, restituição. ta sua predileção, ensinando as três parábolas do am or mi­
Instituição da ordem so brenatural, com Adão e Eva criados
a im agem e sem elhança de Deus, com êle privando um a do­ sericordioso: a ovelha tresm alhada, a dracm a perdida, e o fi­
ce m tim idade. Porem a serpente os induz a p ro cu rar mais lho pródigo (Lc 15,3-32). Justificava-se sobretudo, invocan­
do que a intim idade, a igualdade: "sereis como Deus, saben- do a m issão que recebera de seu Pai — "Deus não enviou o
Filho p ara ju lg ar o m undo, m as para que o m undo seja sal­
d i r í n ^ T t ° m-a1”- ( Gên 3 ,5). Vem a q u ed a-ferir a am izade vo p o r êle”-(Jo 3,17). “Eu jião vim para os. justos mas sim
divma, destroçar a harm onia íntim a da alma, p riv ar o homem
para os pecadores" (M t 2,17). "Não fui enviado senão às
dos poderes extraordinários sobre o próprio corpo, sobre a
ovelhas perdidas da casa de Israel” (M t 15,24). "Não têm
natureza. Seguem-se m ilênios de vida caótica d u ran te os
necessidade de médico os sãos senão os enferm os, e eu
quais os hom ens im ersos num oceano de erros e de vícios
não vim para cham ar os justos -senão os pecadores à con­

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versão" (Lc 5,31-32). "O Filho do homem veio para p ro cu rar
Êslc servidor, celebrado pelo profeta, c. uma persona­
e salvar o que estava p erd id o ” (Lc 19,10).
gem m isteriosa c excepcional, que Deus chama desde o seio
O próprio nome que lhe dera o anjo, falando a Josc,
m aterno (Is 49,3), cum ula de seus dons (Is 42,1) c lhe dá
indicava a sua razão de ser: "(M aria) dará à luz um filho a
como missão, salvar não só Israel (49,5), senão tôdas as
quem porás o nom e de Jesus porque êle salvará o povo de
nações (49,6). Como servo fiel que é, cum prirá sua missão,
seus pecados” (M t 1,21). Aos pastores anunciam os anjos:
“Nasceu-vos hoje um S alvador” (Lc 2,11). ensinando e estabelecendo a justiça (42,3-4), tom ando sôbre
si os pecados dos hom ens, sofrendo por êles m orte igno-
Com grande escândalo dos fariseus, Jesus cum pria sua
miniosa. "Desprezado e o mais indigno entre os homens,
missão: “Filho, estão perdoados teus pecados" (Mt 2,7).
hom em de dores, e experim entado nos trabalhos; e como um
"Perdoados lhe são seus m uitos pecados, já que ela m uito
de quem os homens escondiam o rosto, era desprezado, e
a m o u ... E disse a ela: Teus pecados te são perdoados”
não fizemos dêle caso algum. V erdadeiram ente êle tomou
(Lc 7,47). E, no cenáculo, consagrando o cálice, " ...ê s t e é
sôbre si as nossas enferm idades e as nossas dores levou
m eu sangue, do Testam ento, que será derram ado p o r m uitos
para rem issão dos pecados” (Mt 26,28). sôbre si; e nós o reputam os p o r aflito, ferido de Deus e opri­
mido. Mas êle foi ferido pelas nossas transgressões, e moíclo
pelas nossas iniqüidades; o castigo que nos traz a paz estava
O servo padecente sôbre êle, e por suas pisaduras fomos sarados” (53,3-5).
Tendo Deus aceito a m orte do servidor como expiação
A pouco e pouco Jesus vai descobrindo aos apóstolos pelos pecados, êle se tornou fonte de salvação universal
o quanto lhe cu stará salvar os pecadores, obtendo-lhes o (49,6; 53,10-11).
perdão e destruindo o pecado. Êsse trabalho de salvação Cristo identificou-se c o m ' o servidor padecente, afir­
teria um desfecho trá g ic o : m orte crudelíssim a. Repelidas m ando o valor salu tar de sua m orte (Mt 26,28; Lc 22,20); e
vêzes anunciou que m uito havería de sofrer às mãos dos os evangelistas cham am a atenção sôbre esta identificação.
anciãos, dos príncipes dos sacerdotes e dos esc rib a s: seria Descrevem o batism o de Jesus, p o r exemplo, como a reali­
entregue aos gentios, escarnecido, cuspido, flagelado e m or­ zação da profecia de Isaías (42,1) sôbre o servidor, eleito
to (Mt 16,21; 17,22; 20,18 e paralelos). Pedro repele a do­ p o r Deus e por êle preferido: "Ê ste é'm eu Filho m uito am a­
lorosa perspectiva, o que lhe vale severa repreensão do Mes­ do, em que pus m inhas com placências" (Mt 3,17). Por
tre; seus com panheiros quedam consternados (M t 17,20); duas vêzes o prim eiro evangelista apela explicitam ente ao
não entendem n ad a: "eram coisas ocultas p ara êles” (Lc servidor, que êle identifica com Cristo: "para se cum prir
18,34). Jesus não atenua suas predições, bem mais, apela o que foi anunciado pelo profeta Isaías: êle tirou as nos­
às E scrituras: "Cumprir-se-ão tôdas as coisas escritas pe­ sas e n fe rm id a d e s ...”; "para que se cum prisse o anúncio
los profetas sôbre o Filho do hom em " (Lc 18,31). “O Filho do p ro feta Isaías que d iz : Eis aqui meu servo, a quem
do hom em segue seu cam inho como dêle está escrito" e s c o lh í...” (Mt 8,17; 12,18). Nos Atos dos Apóstolos vemos
(M t 26,24). o diácono Filipe in stru ir e converter um etíope, partindo
A que profecia aludia Jesus? Êle mesmo esclarece: da profecia de Isaías (At 8,32-33). E S. Pedro, na sua Ia
"Vos digo- que se há de cu m p rir de m im esta E s c ritu ra : epístola, cita quatro textos do profeta, aplicando-os a Cristo
Foi contado entre os m alfeitores” (Lc 22,37). ( lP d r 2,21-24). '
O texto invocado é de Isaías (53,12) e faz p arte da 4a Mas como a m orte do Justo pode ter um valor universal
canção sôbre o servidor padecente, que já tivemos ocasião
de salvação? Difícil questão, à qual procurarem os respon­
de encontrar em nosso F capítulo. der m ais longe.
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O Cordeiro de Deus
epístola. S. João escreve: "Vi no meio do trono (de Deus)
João viu Jesus vir a si e disse: Eis o Cordeiro de Deus um Cordeiro que estava como imolado, em p é . . . e canta­
que tira o pecado do m undo” (Jo 1,29). "No dia seguinte, ram um cântico nôvo que dizia: Digno és de tom ar o livro
achando-se João o utra vez com dois de seus discípulos, fitou e de lhe ab rir os selos, porque fôste imolado e com teu san­
a vista em Jesus que passava e d isse : Eis o Cordeiro de gue com praste para Deus hom ens de tôda tribo, língua e
D eus” (Jo 1,35-36). nação. . . ” (Apoc 5,6-9). E S. Pedro rem ata: "Sabeis que fos­
tes resgatados de vossa conduta vã segundo a tradição de
Que despertaria na m ente dos ouvintes do Batista, es­ vossos pais, não por coisas perecíveis como p rata e ouro,
ta qualificação de Jesus como Cordeiro de Deus? Sem porém pelo sangue precioso de Cristo, como de Cordeiro sem
duvida um a prerrogativa messiânica, tanto assim que os defeito nem m a n c h a ...” (lP d r 1,18-19).
dois discípulos de João, ouvindo-o, seguiram a Jesus, e ex­ Mas, indagará alguém, como o Cordeiro tiraria o pecado
plicaram sua adesão, declarando: "acham os o M essias” (Jo do m undo? Responde S. João na sua Ia epístola: "Nêle
1,41).
não há pecado e quem perm anece nêle não peca" (lJ o 3,5).
Mas p o r que qualificar o Messias de Cordeiro? O Cor- Inocente, o Cordeiro com unica essa inocência a quem nêle
eiro logo evocaria à m o rte dos ouvintes a festa da Páscoa, perm anece, dando-lhe um a "sem ente de Deus", em virtude
logo a hbertaçao do cativeiro do Egito, e a patuação, no de­ da qual êle "não pode p ecar” (1 Jo 3,9). Quanto aos pecados
serto, da Aliança que faria de Israel o povo de Deus. No passados, o sangue do Cordeiro nos limpa dêles todos ( Uo
texto do Êxodo nada indica que a imolação do Cordeiro fôra 1,7).
um sacrifício oferecido a Deus; apenas o sangue da vítima
seria um sinal que m arcaria as casas dos israelitas, acober­
tando-as da sanha do anjo exterm inador. O resgate
A pontando Jesus como Cordeiro, o B atista quereria in­
sinuar que Cristo, im olado qual nôvo cordeiro pascal, nos A libertação do pecado, logo evocaria a idéia de cativei­
libertaria do cativeiro do pecado p o r seu sangue derram ado ro e esta, por sua vez — num regim e social fundado sôbre
por nos. O próprio evangelista parece indicar isto, ao nar- a escravidão, como era o regim e greeo-romano — faria pen­
ra r,cquf os s°ldados rom anos quebraram as pernas dos dois sar no resgate, isto é na quantia paga ao senhor p ara que
m alfeitores supliciados, m as, "chegando a Jesus, como o vi­ êle alforriasse o cativo. Donde a tendência a in terp reta r a
ram ja m orto, não lhe q u eb raram as p ern as”. E o evange­ "R edenção" de que fala a E scritu ra (" 0 Filho do homem
lista explica que "isso sucedeu p ara que se cum prisse a v eio . . . para servir e dar a sua vida em redenção de m uitos”
E sc ritu ra : Não lhe quebrareis nenhum osso” (Jo 19,33-36). (M t 20,28; Mc 10,45). "Cristo Jesus que se entregou p ara re­
Dois são os passos da E scritu ra aqui in v ocados: um a pres­ denção de todos” (lT im 2 ,6 ). " . . . Sabeis que fostes res­
crição do Êxodo relativa ao cordeiro pascal: "Não quebra­ gatados de vossa conduta v ã . . . ” ( l P d r 1,18), como paga­
reis nenhum osso da vítim a" (Êx 12,46) e um trecho do m ento de um "preço” para lib ertar as almas cativas, êste
salm o 34: 'Javé guarda todos os seus ossos; nenhum será "p reço ” sendo o sangue do Salvador.
rom pido" (v. 21). Ê ste salm o celebra o ju sto perseguido', e Mas resgate supõe cativeiro. De quem seriam os ho­
taz lem b rar o servidor, cantado p o r Isaías, que carrega os m ens cativos? Responde a E scritu ra: "Todo aquêle que
pecados da m ultidão (Is 53,12). com ete pecado é servo” (Jo8,34). Servo de quem ? Do
A junção do tem a do Cordeiro e do tem a do servidor é próprio pecado (id; Rom 6,16); logo servo do demônio,
leita por S. João no Apocalipse e p o r S. Pedro na sua I a au to r do p eca d o : "Quem com ete o pecado êsse é do diabo,
p orque o diabo desde o início peca” (1 Jo 3,8).
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Donde alguns padres da Igreja (Orígenes, Ambrósio, os príncipes dos sacerdotes c os chefes dos guardas, sôbre
Gregório de Nissa etc.) im aginaram a hum anidade qual ca­ a m aneira de o entregar a êlcs" (Lc 22,3-4). " ...C o m o o
tiva de satanás, seja p o r se ter ela entregue a êle desde Adão diabo já houvesse posto no coração de Judas Iscariotes,
3 Eva, seja p o r ju sta punição de Deus. Cristo nos teria filho de Simão, o propósito dc entregá-lo" (Jo 13,2). " .. .d e ­
rem ido do jugo de satanás, pagando ao demônio o preço pois do bocado, no mesm o instante, entrou nêle satanás"
aju stad o : seu próprio sangue. (Jo 13,27).
O tema se p restava a efeitos oratórios im pressionantes, Jesus sabe-se im une à sanha diabólica: " ...v e m o prín­
mas em verdade nada, na E scritura, nos autoriza a falar cipe dêste m undo que em mim não tem n ad a” (Jo 14,30).
neste pretenso preço ajustado com o maligno. Já Sto. Éle cam inha livre e serenam ente ao enconLro da m orte (Mc
\nselm o m o s tro u 8 que Deus e o diabo não são dois con­ 10,32-34; Lc 18,31-34; 22,37; Jo 13,1) pois sabe que, destro­
correntes disputando o domínio da hum anidade. Ainda me­ çando o pecado por sua m orte, destroçará pelo fato mesmo,
nos podem os ad m itir um a cessão dos direitos divinos sôbre o pai do pecado: "Agora é o juízo dêste m undo; agora o
o hom em ao demônio. O diabo não é senhor, êle é algoz, príncipe dêste m undo será lançado fora. Eu, quando fôr le­
verdugo, instrum ento da ju stiça divina, que ato rm en ta o vantado da terra, atrairei todos a mim; isto dizia indicando
gênero hum ano, p ara castigá-lo de sua rebeldia contra a lei de que m orte haveria de m o rrer” (Jo 12,31-32). "O príncipe'
de Deus. Bem longe de d ar qualquer com pensação a sata­ dêste m undo já está julgado” '(Jo 16,11).
nás —. aliás que vantagem poderia êste enco n trar em exi­
Com pletando os ensinam entos evangélicos, São Paulo
gir o sangue de Cristo como resgate? — Jesus não lhe dá
nos m ostra os céus e os ares povoados por espíritos angé­
trégua. "Para isto apareceu o Filho de Deus: — p ara des­ licos que governam o mundo. Êle lhes dá diversos nomes,
tru ir as obras do diabo" (lJ o 3,8). "Se eu expulso os dem ô­ assaz m isteriosos, mas que todos êles inculcam um poderio:
nios pelo espírito de Deus, então é que a vós chegou o
principado, virtude, dominação (E f 1,20; Col 2,10; Rom
Reino de Deus" (M t 12,28).
8,38). Dêstes espíritos alguns são bons, foram m ediadores
Abre-se a n arrativ a da vida pública de Jesus, com a ten­ da Revelação contida na antiga lei (H ebr 2,2; cf At 7,38);
tação por satanás e a sua derrota. Os sinópticos cornpra-
outros são m aus, seduziram os pagãqs e tentam seduzir os
zem-se com visível deleite, em ressaltar o poder de Cristo,
cristãos. Chefe dêles é o "príncipe das potestades aéreas"
sôbre os espíritos im undos (M t 4,24; 8,16; Mc 1,27; 3,11; 5,8; (E f 2,2) Cristo, por sua m orte e ressurreição subm eteu
Lc 4,36; 8,30; 1 1 ,1 4 ...). São M arcos m enciona 35 vêzes es­
os bons anjos, cuja revelação está doravante caduca, e des­
tes espíritos.
troçou o poderio dos anjos maus: "Despejando os princi­
Quando m anda seus discípulos m issionar "deu-lhes Je­ pados e as potestades, os expôs públicam ente à vergonha,
sus poder sôbre os espíritos im puros para os expulsarem " arrastando-os em cortejo triunfal" (Col 2,15). Deus Pai
(M t 10,1). Regressam jubilosos: "Senhor, até os demônios "nos livrou do poder das trevas e nos tran sp o rto u ao reino
se nos subm etiam em teu nome! E êle lhes disse: Eu vi do Filho de seu am or, no qual temos a redenção: a re­
satanás caindo do céu como um ra io ” (Lc 10,17-18). missão dos pecados” (Col 1,13-14). Cristo nos dá forças
Todavia os diabos não aceitam a derrota, tentam volLar p ara vencer os anjos m a u s : "Nossa luta não é contra o
c subjugar suas antigas vítim as (Lc 11,24-27). Sobretudo ar­ sangue e a carne, m as contra os principados, contra as
quitetam a m orte do seu inimigo: "satanás entrou em Judas potestades, contra os dom inadores dêste m undo tenebroso,
Iscarioles, que era do núm ero dos doze. Ele foi tra ta r com contra os espíritos m aus dos ares. Tomai a arm adura
de Deus, para que possais resistir no dia mau, e, vitoriosos
8 A n .s-ki. m e dk O a NTORiitèiíY,
S u u rco s C h ró tien n c s, 91, P a r is ,
P o u rq u o i Difíu H'vNt-il f u i l hommVj
E d . d u C e rí, 1903.
L. 1. c. 7. em tudo, vos m antenhais firm es" (E f 6,11-12). Se, ainda

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depois da paixao de Crislo, o demônio ato rm en ta os ho­ aos rom anos: "Deus enviou seu Filho na sem elhança da
mens, mesmo santos (p o r exem plo: os solitários da Tebaida carne do pecado, e por causa do pecado, condenou o peca­
ou o Cura d’Ars) é por especial disposição da m isteriosa do na carn e” (Rom 8,3). Cristo "foi feito pecado” signifi­
Providência divina que, aliás, sem pre dá a essas vítim as do caria que êle revestiu um corpo sem elhante ao nosso, que é
diabo, fôrças suficientes p ara vencê-lo. em verdade "carne do pecado” porque é dom inado pelo
Nossa libertação do jugo do pecado foi prefigurada pela pecado. De sorte que, por sua Encarnação, Cristo revestiu
libertação dos hebreus do cativeiro do Egito; era tal liber­ a condição de pecador: solidarizou-se estreitam ente com a
tação que se fêz sem resgate pago a quem quer que seja. E hum anidade culposa, identificou-se com ela, para resgatá-la.
os piofetas vaticinaram a libertação messiânica, inteiram en­ E ntregando seu corpo à m orte, venceu o pecado na própria
te gi atuita, que apagaria todos os pecados de Israel, recon­ sede: "condenou o pecado na carne", fonte e instrum ento
ciliando-o com Deus (Ez 36,22-32). do pecado. No Calvário, m orreu nosso corpo pecaminoso,
Todavia, S. Paulo em prega várias expressões de cunho p ara ser substituído por um corpo regido pelo espírito
juiídico, que levaram alguns teólogos — sobretudo de orien­ (R om 8,9).
tação p rotestante — a elab o rar um a teoria p uram ente penal | Aos gálatas S. Paulo escreve: "Cristo resgatou-nos da
da Redenção. Cristo se to rn a o substituto legal da hum ani­ m aldição da lei fazendo-se p o r nós maldição, pois está escri­
dade pecadora, em face da vindita divina. Êle é castigado to : "M aldito é todo aquêle que é pendurado no m adeiro"
e m aldito em nosso lugar; sofre até os torm entos do infer­ (Gál 3,13). S. Paulo p o r certo não intende dizer que Jesus foi
no, em p articu lar o desespêro dos condenados. N esta teo- m aldito por seu Pai, mas que êle, p ara nos lib ertar da m aldi­
1ia, rep arar é sofrer a devida pena; e o meio de expiar é a ção da lei, aceitou de sofrer um suplício apontado como in-
dor. A paixão se to rn a o dram a da vindita divina. fam ente pela lei mosaica, que considerava o supliciado como
Esquecem êsses teólogos que, em. relação à criai.ura pe objeto da maldição divina (D t 21,23).
cadora, Deus não é, em prim eiro lugar, o vingador senão o N a epístola aos colossenses lem os: " ...a p a g a n d o o
m isericordioso: "Deus, ao qual é próprio te r com paixão e título da dívida que havia contra nós, cujos dispositivos
p e rd o a r.. reza a liturgia dos defuntos.
nos eram contrários, tirou-o do meio, cravando-o na cruz”
Esquecem tam bém de que no pecado, o essencial é a (Col 2,14). O apóstolo ensina aqui a lib ertaç ão pela cruz,
culpa e não a pena a pagar. Cristo nos salvou não pela
m as não indica o "com o” de tal libertação.
quantidade e o grau de sofrim entos que suportou, m as pelo De tudo quanto tenham os dito segue que a Redenção
am or com que sofreu. Cada nôvo sofrim ento, lhe oferecia
como preço pago ao dem ônio é um a teoria falsa e que a
um a nova ocasião de testem u n h ar am or, e assim rep arar a explicação baseada no direito penal, sem ser inteiram ente
culpa do pecado.
falsa — pois Cristo de fato pagou a pena devida a nossos
Sem dúvida S. Paulo escreve: "Aquêle Jesus que não
pecados — é todavia inadequada porque deixa escapar o
conheceu o pecado, êle (D eus) o fêz pecado p o r n ó s” (2Cor
essencial, que é o am or.
5,21). Mas não se pode in te rp re ta r êste "fêz pecado” como
Tentem os pois, encontrar outros e m elhores caminhos.
um carregar a culpabilidade dos pecados dos homens,
pois o próprio texto di^ que Cristo "não conheceu pecado"
e a epístdla aos hebreus ensina que Jesus "foi tentado em A satisfação
tudo à nossa sem elhança, afora o pecado” (H eb r 4,15). É
pois preferível dizer que Cristo foi "feito pecado” porque Um hom em comete um êrro m oral, e um êrro grave.
assum iu a pena do pecado, ou, m elhor ainda, in terp reta r o Ao depois, cai em si, arrepende-se. Como o rem orso o ate-
dito de S. Paulo em função do texto paralelo da epístola nalha! A m em ória fá-lo continuam ente voltar ao passado,

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12. - M is té r io d e O risto

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e reviver aquêles m alsinados m om entos de loucura! Como
gostaria de te r vencido a tentação, em vez de dar-lhe gua­ ram a insinuação. Em vez de d ar ao Senhor o lugar que
rid a a acabar deixando-se subjugar p o r ela! N ão encontra lhe com pete — o prim eiro — rebelam-se e dão êsse prim ei­
censuras b astan te fortes p ara qualificar devidam ente o seu ro lugar a si mesm os. Desordem inom inável; malícia de
procedim ento. Em vão! Ê ste rem orso, esta d o r de te r er­ certo modo infinita, já que a gravidade da ofensa está em
rado, p o r certo não são inúteis, pois desapegam a vontade função da qualidade do ofendido — dizer palavras injurio­
do m al com etido que ela repudia doravante, com tô d a a sas aos próprios pais é m uito mais grave do que dizê-las a
energia. Mas não pode fazer que não tenha com etido êste um hom em qualquer. Não podem os afirm ar em rigor, que
ato que agora detesta. O tem po é irreversível; o pró p rio a m alícia do pecado é infinita, pois todo ato hum ano é finito,
Deus todo-poderoso não pode fazer que o que foi não te­ mas devemos ad ian tar que êle toca as raias do infinito. Se
n ha sido. Logo o d esastre é, de certo modo, irrem ediável. êle não atinge intrinsecam ente a Deus, isto é devido às con­
Surge en tretan to , no meio dêsse desalento, um pensa­ dições^ peculiares do ser divino, m as de si, n a sua perversi­
m ento esperançoso: se eu praticasse um ato que reparasse dade, êle tende a fe rir a p rópria natureza de Deus. A epísto­
o m al com etido, com pensasse o êrro? Um ato virtuoso la aos hebreus afirm a que os pecadores "de nôvo crucificam
to m aria o lugar do ato delituoso, como que a lhe paralisar p ara si m esm os o Filho de Deus e o expõem à afronta”
ou m esm o an u lar a malícia. Assim estaria restabelecido (H ebr 6,6). . '
o equilíbrio, a ordem , que m eu êrro p ertu rb ara. Dizer "não" ao Senhor suprem o; dizer "não" ao mais
Tal m odo de agir cham a-se: "satisfazer”, "com pensar”, am oroso dos pais; recusar de am ar o Amor; d estru ir em si
"desagravar", "rep arar". Em se tratan d o de danos de ordem a vida divina — a graça — tudo isso é de um a gravidade
m aterial, não oferece m aiores dificuldades. Mas quando o im ensa, incom ensurável. Se um a satisfação é possível por
procedim ento ofensivo não lesa qualquer interêsse m ate­ tam anho crim e, Deus deve exigi-la. E m bora não sofra pre­
rial? Uma rebeldia p o r exemplo, ou um a ingratidão. Como juízo algum, êle — como guardião da ordem m oral — não
repará-las? Só m esm o oferecendo à pessoa ofendida algo pode to lerar que o m al não seja objeto de sanção; nem que
que lhe agrade tan to ou mais do que lhe desagradara a o hom em não subordine todos os seus atos ao últim o fim
ofensa. p o r Deus estabelecido. Além disso, Deus — como au to r da
A p rim eira vista parece im possível rem ediar desta sorte ordem sobrenatural — não pode to lerar que o hom em viva
o conflito que opõe Deus ofendido à c ria tu ra pecadora. fo ra d a am izade divina, e não cam inhe ao encontro de Deus
Com efeito, Deus é invulnerável, a cria tu ra nad a lhe pode a ser contem plado e possuído na bem -aventurança. Deus,
tirar, n ad a acrescentar. Todavia, se a natureza de Deus está como Pai am antíssim o, não pode deixar de querer que o
fo ra de nosso alcance, atingim os, em com pensação, suas p ró p rio volte a casa paterna, repudiando o que o afastara
obras, fru stram o s os seus desígnos, privamo-lo dos ob­ dela.
jetos de seu am or. Donde no Antigo Testam ento, tantos
Na verdade, poder-se-ia p ensar que Deus seria mais
textos sôbre o arrependim ento de Deus, sua decepção, sua
generoso, perdoando sem nada exigir. E n tretanto, êle pro­
tristeza, seu ciúme, sua ira. C ontrariam os as disposições
va um am or m ais forte, m ais alto e m ais generoso, exigindo
divinas sôbre as c ria tu ra s : Deus nos ditou norm as de ação,
reparação e dando-nos ao mesm o tem po, de que re p a ra r:
Deus nos ofereceu o seu amor! Pecando, a c ria tu ra procla­ seu próprio Filho, o Filho do seu am or.
m a que tudo isto não lhe interessa; que ela escolhe livre­
_ Mais belo, fru to de m ais alto am or, é dar-nos no seu
m ente suas norm as de ação e que não precisa do am or de
Filho, de que arrep iar caminho, desprender-se do mal,
Deus, basta-lhe o am or da criatura. "Sereis como deuses”
recuperar o am or de outrora, voltar à pureza antiga. O que
sussu rro u a serp en te a nossos prim eiros pais e êles aceita-
se nos afigura rigor e mesm o crueldade da divina justiça,
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corpo venerável" canta a liturgia (hino das vésperas no
é, no fundo, exigência do infinito Amor que não pode tole­ tem po pascal).
ra r que a cria tu ra não lhe corresponda. "Deus é am or. O Na base da Redenção encontram os, pois, uma iniciativa
am or de Deus p ara conosco se m anifestou em que Deus divina: o am or desinteressado de Deus, que nada tem a ga­
enviou ao m undo seu Filho unigênito p ara que nós vivamos n h ar com a salvação dos homens, como nada tem a perder
por êle! Nisso está o am or e não em que nós tenham os com sua condenação.
am ado a Deus, m as sim em que êle nos am ou e enviou seu Mas como explicar que um só ato redentor — a m orte
Filho, vítim a de propiciação p o r nossos pecados" (U o de Jesus — possa te r com pensado m iríades de pecados, pas­
4,8-10). "Vivo na fé do Filho de Deus que me am ou e se sados, presentes e futuros, da hum anidade?
entregou por m im " (Gál2,20). "Deus provou seu am or É por se tra ta r da paixão do Filho unigênito de Deus,
por nós pelo fato de te r Cristo m orrido p o r nós quando logo de um ato de valor infinito, e tam bém por se tra ta r da
éram os ainda pecadores" (Rom 5,8). " ...C r is to am ou a paixão do Filho bem -am ado em quem o Pai tem sua com­
Igreja e se entregou p o r ela" (E f 5,25). O dram a do Calvário placência (Mt3,17; 17,5) logo de um ato que m ais agrada
é um dram a de amor! a Deus do que lhe desagradam todos os pecados da hum ani­
A satisfação de Cristo foi querida e realizada de m anei­ dade.
ra a com pensar p erfèitam ente o cam inhar pecam inoso pe­
lo qual o hom em se afasta de Deus. O pecado de Adão e Dialética da redenção
Eva serviu como de paradigm a aos pecados pessoais de seus
descendentes. Ê ste pecado dos prim eiros pais nos aparece Sto. Anselmo elaborou, com ra ra felicidade, o conceito
como um a desobediência ("não com ereis” ) fru to do orgulho de "satisfação", no seu célebre opúsculo Cur Deus Homo.
("sereis como deuses"), com laivos de sensualidade ("á r­ Entusiam ou-se até ao ponto de pretender fazer da Reden­
vore boa de se com er e agradável aos olhos”). A reparação ção, algo de absolutam ente necessário. Dados os dois fun­
segue o cam inho inverso: obediência ("Assim como pela dam entos : Deus criador e o pecado universal, segue-se fatal­
desobediência de um , os outros foram feitos pecadores, as­ m ente a Redenção.
sim tam bém pela obediência de um , os outros serão feitos Deus criou o hom em p ara a visão face a face. Mas o
justos" (Rom 5,19); obediência hum ilde ("hum ilhou-se, fei­ pecado original ou pessoal, constitui intransponível obstáculo.
to obediente até a m orte" (Flp 2,8); sofrim ento físico acer- Logo Deus, p ara que sua obra não tenha sido vã — um ma­
bíssim o (Fil 2,8); a pena do pecado ("certam en te m orre­ logro — deve restabelecer a amizade entre êle e o homem.
reis" (Gên 2,17), livrem ente aceita ("N inguém m a tira — a Ora, tal restabelecim ento exige que o homem satisfaça, resti-
vida — sou eu que a dou p o r m im m esm o" (Jo 10,18). tuindo a Deus a honra que lhe roubara, revoltando-se. Mas
o hom em é radicalm ente incapaz de reparar. Com efeito, o
As dores de Cristo que tan to nos ferem a sensibilidade
pecado original viciou a p rópria natureza hum ana e um indi­
são ainda u m a m odalidade de satisfaç ão : havendo gozado
m ais do que era lícito, o pecador satisfaz, aceitando algo víduo só não pode regenerar tôda a natureza. Ademais um
que co n traria a sua vontade rebelde, algo que m ortifica sua pecador não pode re p a ra r por outro pecador; e como um
sensibilidade desenfreada. Assim Cristo, em bora inocen­ sim ples hom em poderia oferecer um a reparação digna de
tíssim o, quis padecer p o r nós um oceano de m ales (é o nú­ Deus? Resta, como único recurso, a reparação realizada por
cleo de verdade contido na teoria “p en al” da R edenção) não um Homem-Deus. P or conseguinte, para que a sua obra
não malograsse, Deus teve que se e n c a rn a r9.
já para satisfazer a ju stiça — b astaria o m ínim o ato do
Homem-Deus — m as p ara nos m o stra r quanto êle nos ama­ 0 ANRBI.MB de C antorbéry, P o u i’q u o i D lou s ’e s t f a i t hom m c. S ourcos
C h ró tie n n e s 91. T ra tl. R. R o q u es, P a r is . E d it. du C erf. 1963. L. I, cc. 19ss;
va. "O Amor é o sacerdote que im ola os m em bros de seu L . II, cc, 6ss.

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Sto. Anselmo não advertiu que a Redenção é dom gra­
tuito, libérrim o, de Deus m isericordioso: "Todos pecaram fação, pois reparar, desagravar, supõe um superior que
e todos estão privados da glória de Deus, e agora são gra­ desagravam os; ora, nada é superior a Deus. Logo torna-se
tuitam ente justificados pela sua graça, pela redenção em necessário que um a Pessoa divina se aproprie dum a natureza
Cristo J e s u s ..." (R om 3,23-24). hum ana. Em virtude desta últim a o ato poderá ser ofere­
Deus poderia te r perdoado sem nada exigir, ou conten­ cido a um superior: Deus; em virtude da Pessoa divina,
tar-se com um a satisfação inadequada, p o r ex em plo: um êste ato revestirá um valor infinito. A satisfação será pois
ato de am or penitente. perfeita.
A todo custo im p o rta salvaguardar a liberdade divina. A esta doutrina poder-se-ia objetar que o dever da repa­
Já dissemos, aliás, que o fato de Deus te r enviado seu p ró ­ ração nos incum be quando causam os um prejuízo real.
prio Filho, p ara nos salvar, m orrendo, quando nada o obri­ Ora o pecado não causa a Deus nem mesm o a som bra de um
gava a isso; o fato tam bém dêle te r exigido reparação con­ prejuízo. Deus é inacessível a nossa malícia, invunerável.
digna, dando-nos ao m esm o tem po de que rep arar, tudo-isto 0 m ais hediondo dos crim es não lesa, não altera a bem-aven-
nos m ostra a que ponto chegou seu amor. Não há aqui qual­ tu ran ça da Trindade.
quer exigência da justiça, m as p u ra exigência do Amor. Por que Deus exigiria reparação por um prejuízo ine­
Todavia, os sucessores de Sto. Anselmo, evidenciando a xistente?
influência do grande m estre da dialética, p assaram a deba­ T ratando da satisfação em geral, procuram os m ostrar
ter, com algum calor, a questão de saber se, no caso de que a objeção não procede. Invulnerável quanto à própria
Deus querer livrem ente u m a reparação adequada, a E ncar­ natureza, Deus é vulnerabilíssim o quanto a suas obras.
nação não se to rn aria necessária? Podem os fe rir e até aniquilar aquilo que Deus am a; assim
A m aioria dos teólogos responde afirm ativam ente. Ar- o pecado de escândalo atinge gravem ente os pequeninos
gúem êles do fato dum a satisfação adequada ou condigna am ados por Deus: "Aquêle que p o r am or de m im receber
ser aquela que oferece ao ofendido o que lhe agrada tan to um a criança como esta, a m im recebe; e ao que escandalizar
ou m ais do que lhe d esagradara a ofensa. Ora, a ofensa um dêstes pequeninos que crêem em mim, m ais lhe valeria
feita a Deus reveste u m a m alícia quase infinita, donde só que lhe pendurassem ao pescoço um a mó de atafona e o ati­
poderá ser com pensada adequadam ente, p o r um ato de valor rassem no fundo do m ar" (M t 18,5-6).'
infinito, que será um ato do Verbo hum anado. A m alícia Podemos tam bém desviar os sêres do fim ao qual
do pecado é de certo m odo infinita porque, como dissem os Deus os criara. Assim, em vez de dom inarem sôbre os ani­
acima, ofende a in fin ita santidade. Não se tra ta de infini­ mais, como fô ra instituído pelo Criador (Gên 1,26), os idóla­
to ontológico, m as de gravidade moral. O pecador pre­ tras adoram -nos (Rom 2,22-25).
fere um a sim ples c ria tu ra ao Criador, dela faz seu últim o E m bora a invulnerabilidade de Deus, o pecado tem in-
fim. Como com pensar tal afronta? Os atos de um a pessoa com ensurável malícia. E notam os ainda que, no caso, não
criada são sem pre lim itados. Tão só os atos teândricos te­ se tratav a de satisfazer p o r um só pecado, senão por m iríades
rão valor infinito p o r serem atos de um a Pessoa divina por de pecados, que ofendiam a Deus. Um oceano de iniqüida-
meio de um a n atu reza hum ana. E assim é que qualquer des. Como p o d e ria , um a simples criatu ra satisfazer por
dos atos de C risto revestia valor redentor. A com pensação,
tam ánho m al? Não só. Como poderia um a simples criatura
•não só iguala com o u ltrap assa a injúria.
d estru ir o pecado? Enquanto um a Pessoa divina hum ana­
Por outras p alav ras: um puro homem não lograria p ro ­ da p oderá produzir atos de valor infinito porque divinos;
duzir atos de valor infinito; um puro Deus p roduziría atos
poderá oferecê-los em desagravo porque hum anos; poderá
de valor infinito, m as não poderia oferecê-los como satis-
enfim, como santidade infinita, exterm inar o pecado.
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O Cristo total E sta apropriação dos atos de Cristo pelos seus mem­
bros é possível em virtude do am or que une o Senhor aos
Se o conceito de "satisfação adequada” não apresenta seus, pois o am or desinteressado identifica de tal m odo os
m aiores dificuldades, em compensação parece m enos inte­ amigos, que o que é de um tam bém pertence ao outro.
ligível à p rim eira vista, o conceito de "satisfação vicária” Vemos pois que, segundo revelou S. Paulo, os dois pólos
isto é, a substituição dos hom ens p o r Cristo, no ato satisfa­ da h istória religiosa da hum anidade, são constituídos por
tório. Afinal, cada um é responsável p o r seus atos. Como dois atos de soberana im portância: a desobediência de Adão
peca p o r conta p rópria, assim tam bém deve expiar p o r si no paraíso, pela qual a to rren te do m al irrom peu no mundo,
mesmo, pois p o r êle é responsável pessoalm ente. A "satis­ e a obediência de Cristo na cruz, pela qual o m undo soer-
fação vicária” tão decantada pelos teólogos, não seria p o r­ gueu-se, foi regenerado. É que êstes dois fatos capitais,
ventura m era ficção jurídica?
do u trina o apóstolo, não são apenas ações individuais, se­
A resposta m ais aceitável é que Cristo não padeceu co­ paradas da existência dos dem ais homens, sem comunica­
mo hom em isolado dos outros. Ao contrário, êle solidari­ ção com êles; antes, condicionam , regem a vida m oral da
zou-se a tal ponto conosco, incorporou-nos tão estreitam en­ hum anidade, pois que laços estreitíssim os nos unem a Adão
te a si, que fo rm a conosco um a só Pessoa mística, da qual e a Cristo: solidariedade no m al e no bem. Assim como a
êle é a cabeça e nós os m em bros. Humanando-se, êle in­ atividade da cabeça pertence de certa m anéira aos m em bros
corpora a si a hum anidade pecadora, de sorte que êle sofre porque ela age não apenas para si m esm a mas para todo o
e m o rre como chefe dos hom ens prevaricadores, e sua sa­ corpo, assim tam bém Cristo sofre e m erece por todos nós,
tisfação reveste um caráter quase coletivo. Cada pecador m em bros seus. Donde ao hom em batizado, enquanto se
como que sofre, expia, satisfaz, m orre, com Cristo. "Aquê- to rn a m em bro de Cristo, sã o , com unicados os sofrim entos
le que não conheceu o pecado, êle o fêz pecado p o r nós, da paixão, como se êle tivesse pessoalm ente sofrido e m or­
para que nêle fôssem os ju stiça de Deus" (2Cor 5,21). rido.
Chefe da h u m anidade pecadora, Cristo arrasta-a con­ Se nossas adorações, nossos sacrifícios, nossas preces,
sigo ao Calvário p a ra ser crucificada ju n tam en te com êle, têm um valor qualquer, no plano sobrenatural, é porque
de m aneira que, cada um de nós pode apropriar-se das sa­ são absorvidas pela intercessão de Cristo, que arrasta atrás
tisfações do Senhor, como se tivesse pessoalm ente sofrido de si a im ploração de todo o gênero humano, unindo nossas
no Calvário. N a verdade, cada u m de nós m orreu, ressusci­ pobres dádivas ao dom infinito de sua vida im olada por
tou, subiu aos céus "com C risto”. nós. Se nosso desejo de nos libertarm os do pecado não é
É d outrina certa de S. P au lo : "Um m orreu p o r todos, estéril e vão, é porque Cristo nos incorpora à sua pureza
logo todos m o rreram " (2Cor 5,14). "E stou crucificado com infinita, purificando-nos p o r seu Sangue e revestindo seus
C risto” (Gál 2,19). " 0 nosso hom em velho foi crucificado, m em bros de santidade e de luz.
p ara que fôsse destru íd o o corpo sujeito ao pecado e já não
sirvam os ao p ecado” (R om 6,8).
P ara frisa r a associação dos hom ens aos m istérios de O m erecim ento de Cristo
Cristo, S. Paulo cunhou u m a série de neologismos com o
prefixo grego "sy n ”, que significa "com". Assim ensina O concilio Tridentino, ao descrever as diversas etapas
êle que m orrem os ''co m ” Cristo, fomos sepultados "com" da justificação da alma, ensina: . .a causa m eritória (des­
Cristo, ressuscitam os "com ” Cristo, subim os aos céus "com ” sa justificação) é o Filho único, bem -amado do Pai: nosso
Cristo. M ostra desta m aneira a que ponto estam os "com" Senhor Jesus Cristo, que ao tem po em que éram os inimigos
Cristo, com ungando a seus m istérios. de Deus (Rom 5,10), por causa do extrem o am or com que

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nos am ou (E f 2,4) m ereceu nossa justificação, p o r sua san­ Pelo que tam bém Deus o exaltou e lhe outorgou o nome
tíssim a paixão no m adeiro da cruz, e satisfêz p o r nós a que é sôbre todo nom e” (Flp 2,8). "Aquêle que por um
Deus, seu Pai" 10. m om ento foi colocado abaixo dos anjos, isto é Jesus, nós o
Por "m erecim ento” entende-se, de um m odo geral, o "di­ vemos coroado de glória e de honra, por causa dos sofri­
reito ” a um prêm io ou recom pensa. Em pregado pelos teó­ m entos da m orte que padeceu" (H eb r 2,9). b) Cristo, como
logos, designa o "d ireito ” a um a recom pensa de ordem foi dito no capítulo anterior, era livre em relação à paixão
sobrenatural. e m orte, c) Cristo padeceu com extrem a caridade: "Con­
É bem de n o ta r que a criatu ra não possui "direito” al­ vém que o m undo conheça que eu amo o Pai, e que se­
gum em relação a Deus; é êle que se obriga livrem ente a gundo o m andato que o pai me deu assim eu faço” (Jo
recom pensar certos atos louváveis da sua criatura. P ortan­ 14,31).
to êsse "direito" e a "justiça" que o funda, assentam em úl­ Se os atos de Cristo são finitos enquanto procedem
tim a análise, sôbre a p u ra m isericórdia. de sua hum anidade, que é criada, logo finita, êles são mo­
E m sentido teológico, o m erecim ento é pois o direito a ralm ente infinitos enquanto atos do Filho, segunda Pessoa
um a recom pensa sobrenatural que, em virtude da prom essa da SSma. T rin d a d e 12. Êle poderá, em conseqüência,
divina deve ser outorgada fielm ente às boas obras dos m erecer estritam ente tôdas as recom pensas com que o
fiéis 11. Pai galardoará seus atos: haverá proporção estrita entre
Palavra de Jesus em S. M ateus: “Alegrai-vos e exultai, o m erecim ento e a recom pensa: os atos de Cristo são atos
porque grande é vossa recom pensa no céu. . . Abstende-vos do Verbo encarnado, que age hum anam ente (ou seja pela
de p ra tic a r vossas boas obras diante dos hom ens, com in­ natureza hum ana) dando-lhes um valor infinito que merece
tenção de serdes vistos p o r êles; do contrário, perdereis o rigorosam ente ser prem iado, recom pensado pela Trindade.
direito à recom pensa de vosso Pai que está no c é u . . . Quem Os atos m eritórios de Cristo têm um duplo v alo r:
d er de b eb er a um dêstes pequeninos, ainda que seja ape­ individual e social. O prim eiro lhe valeu a glória da ressur­
nas um copo de água fresca, a título de discípulo, na ver­ reição e da ascensão. "Não era necessário que o Cristo
dade vos digo, não p erd erá sua recom pensa” (M t 5,12; 6, sofresse estas coisas e assim entrasse em sua glória?”
1; 10,42). (Lc 24,26). Pouco im porta que esta glória já lhe fôsse devida
Condições de m érito são: a) a ordenação divina que em razão da união hipostática, o m erecim ento acrescenta
dispõe de recom pensar o esforço do hom em p ara atingir a êsse direito, um nôvo motivo de glória.
o fim so b ren atu ral constituído p o r Deus. b) a liberdade O valor social, o único que nos interessa presentem en­
dos atos a serem prem iados: o hom em deve poder corres­ te, h abilita Cristo a m erecer não só para si m as ainda
ponder livrem ente às iniciativas divinas, c) tais atos de­ p ara nós. Assim é que somos salvos pelos m erecim entos
vem pro ced er da virtude teologal da caridade: só quem de Cristo, que nos valeu todos os bens sobrenaturais per­
am a a Deus pode fazer ju s à rem uneração sobrenatural, didos em Adão (Rom 5,15-20). A justificação pela graça
que é o p ró p rio Deus. e o conseqüente perdão dos pecados, ressurreição da
E ’ claro que todos êsses requisitos se encontram em carne, a vida eterna, nos foram m erecidos pelo S e n h o rB.
Cristo: a) Deus se em penhara em recom pensar seu Filho, Mas, indagará alguém, como é possível êsse mereci­
glorificando-o como prêm io da paixão: Cristo "se hum i­ m ento? Como é possível que C risto m ereça por nós? O
lhou, feito obediente até a m orte, até a m o rte da cruz. m erecim ento se nos afigura algo estritam en te pessoal: me-

10 D e n z in g e r, n , 7 9 9 ; c f. 790, 820. 12 P o r isso C le m e n te V I q u a lific o u os m e re c im e n to s de C ris to de ''in f i­


11 D e n z in g e r, n. 809. n ito s ” (D e n z in g e r, n. 5 5 2 ).

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reço p ara mim, não p ara outrem ! — Responde o Triden-
tin o : Cristo m ereceu como cabeça n o s s a u. E n tre êle cendo a Deus como seu criador e fim derradeiro, o homem
é levado a expressar, a testem unhar, esta sua dependência,
e nós há um a solidariedade mística.
p o r atos sensíveis e públicos de reverência, consoantes
Bem assim como sua graça, seus m erecim entos se
a sua natureza de alm a encarnada e de anim al social.
estendem a todos os m em bros de seu corpo. Donde o Pai,
Ademais, se o hom em se reconhece culpado diante de Deus,
ao recom pensar os trabalhos de seu Unigênito, glorifican-
ju sto é que dê ao sacrifício um cunho expiatório, para
do-o, não pode deixar de ver que o Filho não está só, m as
ob ter o perdão, como tam bém é natural que dê graças
leva consigo a m ultidão dos homens pecadores, incorpo­
pelos benefícios recebidos e im petre auxílio para sua fra­
rando-os a si m esm o num só to d o : o seu corpo místico.
queza.
Ora o que faz a cabeça, aproveita aos m em bros todos; as­
sim, m erecendo p ara si mesm o, Cristo pelo fato mesmo, Tão capital a m atéria que o próprio Deus interveio
m erece p ara todos os que lhe são solidários. Não é possível pessoalm ente na vida cultuai de seu povo, distinguindo
separar o corpo da cabeça. os diversos tipos de oblação e os ritos que os deveríam
Indagar-se-á a in d a : se todos os atos de Cristo têm reger (Lev 1 a 7).
um infinito valor m oralm ente, como atos do V erbo encar- Mas, dada a natureza hum ana, um perigo m ortal es­
nàdo, segue-se que desde a sua conceição, êle produziu preitava êste c u lto : o form alism o: Por diversas vêzes, Deus,
atos que bastavam p ara nos m erecer a salvação. Não se pela bôca dos profetas, m anifestou seu desagrado, até
to rn ará supérflua a paixão? que, como castigo, gravasse de caducidade o culto mosaico.
Que o m ínim o ato livre de Cristo bastasse p ara m ere­ Seria substituído por um outro, plenam ente agradável ao
cer a salvação da hum anidade tôda, é um a verdade que Senhor. A epístola aos hebreus é consagrada a justificar
está fora de dúvida. Acontece porém que, nos desígnios a m udança e a m o stra r a superioridade do culto da nova
do Pai, êstes m erecim entos só se aplicariam aos hom ens Aliança. É a fonte onde devemos buscar a doutrina reve­
depois da paixão, a qual levaria ao auge os m erecim entos lada sôbre a sacrifício de Cristo. Ora, o sacrifício é cons­
do Salvador, porque exigiría dêle sofrim entos acerbos a tituído essencialm ente por três elem entos: o sacerdote, a
suportar, sacrifício total, extrem ado amor. vítim a e o ato sacrifical. Donde nossa tríplice tarefa.

O sacrifício do R edentor O sacerdócio de Cristo

São Paulo nos indicou quiçá o ângulo m ais propício A epístola aos hebreus é o único escrito inspirado que
para encarar a Redenção, quando escrevia aos efésios: dá a Cristo o título de sacerdote. A ela pois devemos re­
"Tomai o cam inho do am or, como Cristo nos am ou e se to rn ar desde que procuram os algum a luz sôbre o m istério
entregou p o r nós, em oblação e sacrifício a Deus, em suave do sacerdócio de Cristo.
odor” (E f 5,2). Ünica a v ersar o tem a, a epístola, em compensação
Tentam os m ç stra r alhures 13*5 a que ponto o sacri­ desdobra-se com abundância e riqueza surpreendentes. De
fício corresponde à atitu d e religiosa do homem. Reconhe- táo rica- e complexa doutrina, colherem os apenas os traços
fundam entais.
13 C o n cilio F lo ren L in o (D e n z in g e r , n. 7 1 1 ); C o n cilio T r id e n tin o (D en zlji- A encarnação do V erbo se nos apresenta, nos livros
g e r, nn. 799, 820).
.14 D e n z in g e r, n. 809. sagrados, como essencialm ente redentora. O Verbo hum a­
15 O M is té rio d o s s a c r a m e n to s , p. 257ss. nou-se a fim de rem ir os hom ens perdidos pelo pecado,

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feitos inimigos de Deus, restituindo-os à condição de filhos baixar sôbre os hom ens as m ercês de Deus (m ediação des­
am ados do Pai. Nessa epístola m antém a m esm a perspec­ cendente), caberá ao sacerdote ligar os dois extrem os, reno­
tiva; desde o 3? versículo desponta a vida te rre stre do Filho vando o único obstáculo intransponível entre Deus e os
como ordenado à "purificação dos pecados”. Todavia a hom ens: o pecado. Entendem os assim porque o Salvador
epístola enriquece a doutrina de m odo original, ensinando do m undo devia ser sacerdote, porque o ato redentor devia
que a E ncarnação redentora revestiu cunho essencialm ente ser um sacrifício pelo pecado.
sacerdotal. N ecessàriam ente hom em — bem mais, cabeça do gê­
D ecretada a salvação da hum anidade prevaricadora, nero hum ano pecador — a fim de poder representar a
podia Deus levar a cabo tão m isericordioso desígnio de hum anidade na oblação do sacrifício, todavia o sacerdote
diversas m aneiras. Não lhe escasseavam os meios. Ora Salvador não será puro hom em p a ra que o sacrifício seja
bem, a epístola revela que Deus escolheu de fato um ato grato a Deus e eficaz, isto é, produza frutos de salvação.
de cu lto : o sacrifício propiciatório perfeito. "Ê ste (C risto) Só um Deus hum anado vem ao encontro desta dupla con­
tendo oferecido um único sacrifício pelos pecados, para dição de sacrifício perfeito.
sem pre se sentou à direita de D eu s. . . De m aneira que Teremos assim : 1? consagração sacerdotal de um a natu­
com um a só oblação, êle consum ou p ara sem pre os san­ reza hum ana particular, que é posta de lado, reservada, a
tificados" (2,12-14). fim de rep resen tar os hom ens diante de Deus (5,1). 2? apro­
^ Mas o sacrifício exige um sacerdote, e o sacerdote por priação desta natureza pelo Filho de Deus, p a ra que o
força é tom ado entre os hom ens" (5,1). E m conseqüên- sacerdote fôsse plenam ente “santo, inocente, sem m ácula”
cia, o Pai p rep aro u a seu Filho um corpo p ara que êle (7,26), logo agradável ao Pai, capaz de nos m erecer a ami­
pudesse ser sacerdote e expiar os pecados dos homens, ofe­ zade divina, oferecendo um sacrifício propiciatório, salutar
recendo um sacrifício eficaz. e definitivo. "Tendo, pois, um grande pontífice que pene­
“Não quiseste sacrifício nem oblação, m as me pre­ tro u os céus, Jesus, o Filho de Deus, m antenham o-nos fir­
p araste um corpo; os holocaustos e sacrifícios pelos pe­ mes na confissão. . . Aproximemo-nos, pois, confiantem en­
cados não os recebeste. Então eu d is s e : Eis-me que ve­ te do trono da graça, a fim de receberm os m isericórdia
nho. . . p a ra fazer, ó Deus, a tua vontade” (10,5-7). e acharm os graça p a ra o auxílio oportuno" (4,14-16). "É
Por o u tras p a la v ra s: o Verbo, Filho de Deus, se hum a­ definitivo o seu po d er de salvar os que p o r êle se aproxi­
nou p a ra ser nosso sacerdote. m am de Deus" (7,25). "Um a só vez, na plenitude dos sé­
O m otivo da Encarnação red en to ra é pois sacerdotal. culos, êle se m anifestou p ara d estru ir o pecado pelo sacri­
Não nos surp reen d erá tal disposição divina, se aten­ fício de si m esm o" (9,26). "Em virtude dessa vontade
tarm os em que reconciliar pecadores com Deus é ofício (d e Deus) nós somos santificados pela oblação do corpo
próprio do sacerd o te: "Todo pontífice tom ado entre os de Jesus Cristo, um a vez para sem pre" (10,10).
hom ens, em favor dos homens, é instituído p ara as coisas
C ris to é o t r a ç o de u n iã o e n tre D e u s e os h o m e n s, com o S a lv a d o r, P r o ­
que dizem respeito a Deus, p ara o ferecer oblações e sacri­ f e t a e R ei. P o d e s ê - lo p o rq u e p e rte n c e ao s dois m u n d o s a re c o n c ilia r : é
fícios pelos pecados” (5,1). h o m e m •— re c a p itu ía n d o em si to d o s os h o m e n s — e é D e u s — d e se jo so que
to d o s se s a lv e m . “D e u s e s ta v a em C ris to , re c o n c ilia n d o o m u n d o c o n sig o ”
In term ed iário en tre Deus e os hom ens 16, fazendo subir (2 C o r 5 ,1 9 ). A ss im êle t r a n s m ite a o s h o m e n s os b e n s d iv in o s ( a n te s d e tu d o
a g r a ç a d a s a lv a ç ã o ) e a p r e s e n ta a D e u s a s p re c e s e a s s a tis f a ç õ e s dos
até Deus os votos dos homens (m ediação ascendente), e h o m e n s.
N ã o só m e d ia d o r, com o ú n ico m e d ia d o r. S. P a u lo a c a b a de no -lo dizer,
e a n te s dê le o p ró p r io J e s u s p r o c la m a r a : “E u sou o c a m in h o , a v e rd a d e
16 A m e d ia ç ã o d e C ris to é u m a v e rd a d e d e fé , c la r a m e n te e n s in a d a por e a v id a ; n in g u é m v e m a o P a i s e n ã o p o r m im ” (J o 1 4 ,6 ).
S’. P a u lo em lT l m 2 ,5 : “H á um só D eus e u m s ó m e d ia d o r e n tre D e u s e oa
O u tro s h o m e n s, re is , p r o f e ta s , s a c e rd o te s , só podem ser q u a lific a d o s
h o m e n s : C ris to JeB us, h o m e m , q u e se e n tre g o u a si m e sm o com o re s g a te por
to d o s " . m e d ia d o re s em r e la ç ã o a C risto , com o p re fig u r a d o r e s o u m in is tro s de único
M ed ia d o r.

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Cristo, Homem-Deus, será pois Sacerdote da nova Alian­ nha sido sacerdote desde tôda a eternidade. Não. O cha­
ça. Salvador pelo seu sacerdócio. mamento, a "vocação”, visavam não já o Verbo ou Filho,
" O cará ter sacerdotal de Cristo foi atestado pelo P ai: mas Cristo, Verbo hum anado, Homem-Deus. "Ninguém toma
"declarado p o r Deus pontífice segundo a ordem de Mel- para si esta honra, senão aquêle que foi cham ado p o r Deus
quísedeque” (5,10); pelo próprio Filho: "Os holocaustos e como Aarão. E assim Cristo não se exaltou fazendo-se
sacrifícios pelo pecado não os recebeste, então eu d is s e : Pontífice" (5,4-5). O apêlo à filiação eterna visa apenas fri­
Eis-me que venho" (10,7), e pelo E spírito Santo: "Com sar o nexo estreito que une êsse sacerdócio e a filiação
um a só oblação êle consum ou p a ra sem pre os santificados. divina. Só um sacerdote Filho de Deus pôde realizar as
Atesta-no-lo tam bém o E spírito Santo" (10,14-15). condições de um sacerdócio perfeito, inacessível à morte,
Im pressionados p o r tantos e tam anhos testem unhos, todo poderoso, agradável ao Pai.
alguns teólogos antigos como Eusébio e S. Cirilo de Jeru ­ A filiação divina dá pois, ao sacerdócio de Cristo, tôda
salém, ensinavam que já antes de se encarnar, o Verbo sua dignidade, eficácia e perenidade. Sacerdote segundo a
desem penhava um a função sacerdotal no seio do Pai. Mas . natureza hum ana, m as enquanto ela pertence ao Filho,
enganaram-se; não é exato, pois o sacerdócio im porta, em Jesus é M ediador perfeito, representante autêntico e' ca­
relação a Deus, um a inferioridade que não condiz com o bal da hum anidade, agradável a Deus.
Verbo: êle é perfeitam ente igual ao Pai, e não inferior Donde os teólogos medievais ensinavam que o elemento
ao Pai. Na verdade, o sacerdócio advém ao Filho ao m es­ constitutivo básico do sacerdócio de Cristo é a cham ada
mo tem po que a carne. Bem m ais, como todo sacerdócio "graça de u n iã o ” que liga a hum anidade de Cristo ao
legítimo, o sacerdócio de C risto supõe "vocação” — livre Verbo tão intim am ente quanto possível, fora do panteísmo.
iniciativa divina que escolhe e cham a um homem; livre Jesus m esm o declarou que foi consagrado pelo Pai e por
aquiescência dêste hom em ao divino cham am ento. êle enviado ao m undo (Jo 10,36). A unção que sagra, con­
N ossa epístola descreve o ato da encarnação como sagra, a hum anidade de Jesus é a divindade que a enche
realização concreta da p erfeita vocação sacerdotal — "en­ e santifica até suas últim as fibras, reservanclo-a a Deus.
trando neste m undo êle diz: Não quiseste sacrifícios nem Jesus só existe pela divindade, pertence ao Pai, e como homem
oblações, m as m e p rep araste um corpo. Os holocaustos se acha colocado no ápice da criação: sacerdote perfeito, é
e sacrifícios pelo pecado não os recebeste. E ntão eu disse: o único M ediador entre os homens e Deus. Suas diversas
Eis-me que v en h o . .. p ara fazer, ó Deus, a tu a vontade” ciências e sua plenitude de graça, aparelham -no a exercer ca­
(10,5-9). balm ente seu ofício de sacerdote.
Desde o prim eiro in stan te de sua conceição no seio Se o que em Cristo sacerdote agrada mais a Deus é,
da Virgem, Cristo foi constituído sacerdote. E n tro u no m un­ como veremos, a obediência am orosa, o que nêle mais
do p a ra cu m p rir sua m issão sacerdotal; orientou sua vida apraz aos hom ens, é a com passividade. Ensinam ento ori­
tô d a p ara aquêle ato cultuai que m otivara a sua vinda: o ginal, inesperado, da epístola aos hebreus. Ensinam ento
sacrifício da cruz, reparação p erfeita das injúrias feitas a im portante tam bém . Por três vêzes o texto inspirado volta
Deus pelos pecadores. E ncarnação sacerdotal. sôbre a indispensável com iseração do sacerdote pelos ho-
Sem dúvida, a nossa epístola p ara expressar a inves­ • mens, seus irm ãos. Insistência que é indício certo da im­
tid u ra sacerdotal de Jesus apela à filiação e te rn a : "Cristo portância da doutrina. ■
a si m esm o não exaltou, fazendo-se pontífice, m as aquêle Cristo "teve de se assem elhar em tudo a seus irmãos
que lhe disse: Meu Filho és tu, eu hoje te gerei” (5,5). a fim de vir a ser Pontífice m isericordioso e fiel nas coisas
Todavia, a E scritu ra não intende afirm ar que o Verbo te- que dizem respeito a Deus, para expiar os pecados do povo.

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13. de Crlxto

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Porque, enquanto ôle mesmo padeceu sendo tentado, é
capaz de aju d ar os ten tad o s” (2,17-18). "O nosso Pontífice cim ento aprendeu a obediência, c, por ser consum ado, veio
não é tal que não possa compadecer-se de nossas fraquezas, ■a ser, para todos os que lhe obedecem, causa de salvação
antes ern tudo foi tentado, à nossa semelhança, afora o eterna, declarado por Deus Pontífice segundo a ordem de
pecado (4,15). “ ...S e n d o quem possa compadecer-se dos M elquísedeque” (5,7-10).
ignorantes e extraviados, porquanto tam bém êle está cer­ Perfeitam ente obediente desde a Encarnação, Cristo
cado de fraq u eza” (5,2). ' não podia progredir nesta virtude, mas podia e devia exer­
Analisada, a com passividade se decompõe em dois ele­ cê-la até o grau heróico, saber experim entalm ente quanto
m entos. a) a participação do solrim ento alheio a ponto de custa ao hom em curvar-se ao querer divino. A luta do
senti-lo como sofrim ento próprio; b) o auxílio ao desven- H ôrto m ostra a que ponto o sofrim ento e a m orte con­
turado, para livrá-lo do mal que o prostou. Escola insubs­ trariavam não só a sensibilidade de Cristo, mas ainda re-
tituível desta com passividade é a experiência de sofrim en­ pugnavam ao ím peto espontâneo de sua vontade. Êle im­
to. Quem passou pela dor, pode reviver no seu coração plora, com gritos e lágrim as de sangue, êsse Deus, seu Pai,
a dor de seu irm ão, dando-lhe o conforto de saber que não que o podia livrar da m orte. Mas êle era, sobretudo, para
está sozinho em solidão de m orte. Por isso nosso divino que a vontade de Deus se cum pra. No seio de sua dor e
sacerdote, bem longe de se conservar impassível diante desam paro hum anos, Jesus conserva o respeito da vontade
da fiaqueza hum ana, quis não só conhecê-la senão experi­ de seu Pai, exprim e sua subm issão e m anifesta sua obediên­
mentá-la em tôda sua crueza. Nosso, p o r ser homem, Jesus cia. É a reverência m áior que hom em jam ais tenha profes­
e todo nosso p o r ser hom em das dores, 0 mal físico — so­ sado. Submete-se plenam ente a vontade hum ana de Cristo
frim ento e m orte — tragou-o plenam ente, tão apurada era à vontade divma. Assim êle “aprendeu" a obedecer, e
a sua sensibilidade, logo sua capacidade de sofrer. O mal adquiriu um a experiência psicológica, um a apreensão prá­
m oral êle o experim entou na m edida com patível com seu tica da obediência, e um a apreciação vivida do sofrim ento,
ser e sua missão. A bsolutam ente alheio ao pecado (4,15; 7, que lhe eram necessárias, indispensáveis, para poder com­
26-28), Cristo todavia pediu — e quis — sentir quanto preender hum anam ente seus irm ãos.
reluta nossa natureza a se d o b rar à vontade de Deus. Como A agonia e a m orte que a seguiu, pceitas com submissão
dissemos, podia — e quis — viver tôda a fraqueza hum ana ao Pai, constituíram o sacrifício perfeito do sacerdote per­
para dela m elhor se apiedar, e ampará-la. feito. Oblação que expiou nossos pecados, ao passo que
A nossa epístola concretiza a doutrina tôda, evocando dilatava ao infinito a com iseração de nosso sacerdote por
a cena do Getsêmani, a fim de nela m o strar um ato sa­ nós, seus irm ãos, sêres decaídos e tentados.
cei dotal perfeito, em que obediência e com passividade atin­ Doravante por m ais que um homem sinta a sua fraque­
gem suprem o acabam ento. Já os sinópticos haviam debu- za, tenha consciência de sua condição de pecador, nunca
xado um quadro apavorador: O tédio, a angústia, a tristeza, poderá recear de ir ter com seu sacerdote. Êle não é algoz,
as orações constantes, a procura de consolo humano, a ago­ nem mesmo juiz inexorável, êle é nosso irm ão ("não se
nia, o suor de sangue. Nossa epístola acrescenta dois traços envergonha de lhes cham ar irm ãos” (2,12) e um irm ão "em
que lhe são próprios: o grande clam or e as lágrim as — tudo tentado à nossa sem elhança" (4,15). Como não se
Havendo oferecido nos dias de sua vida m ortal, orações condoeria dos tentados, como não os am pararia? "E nquan­
e súplicas com grande clam or e lágrim as àquele que o to êle mesmo padeceu, sendo tentado, é capaz de aju d ar os
podia salvar da m orte, êle foi atendido por causa de seu te n tad o s” (2,18).
icverencial temor. E, em bora fôsse Filho, pelo seu pade- A própria com iseração devia levá-lo a nos livrar de
nossos males morais. E livrou-os de lato, oferecendo como
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sacei dote, uma vítim a que era êle mesmo. “Provou a m orte deixa de ser criatura, pode e deve rezar. Mas não é mais a
por todos" (2,9) e, por ela, venceu a m orte física: "Êle oração humilde c angustiada do H ôrlo, é uma intervenção
assum iu (o sangue e a carne) para d estru ir pela m orte autorizada, como advogado e defensor. Intervenção funda­
aquêle que tinha o im pério da m orte, isto é o diabo, e li­ da sôbre a Encarnação do Filho, o sacrifício do Sacerdote,
vrar aqueles que, pelo tem or da m orte, estavam a vida tôda a intercessão do Ressuscitado à destra do Pai. "Temos um
sujeitos à escravidão” (2,14-15). Venceu tam bém a m orte Pontífice que está sentado à direita do tronó da M ajestade,
moral que é o pecado. "Êle se m anifestou p ara d estru ir o nos céus” (8,1).
pecado pelo sacrifício de si mesm o" (9,26). "Somos santifi­ Intercessão por um a simples presença e tam bém por
cados pela oblação do corpo de Jesus Cristo um a vez para preces expressas. Tôda a obra do Salvador: seu nascer,
sem pre (10,10). "Remidos por nosso Sumo Sacerdote, pode­ sua vida, m orte, ressurreição gloriosa, colimam esta inter­
mos nos ap resen tar diante de Deus, plenam cnte confiantes cessão salvadora. Sem dúvida, Cristo não oferece novos
de obter m isericórdia" (4,16). sacrifícios no céu: a oblação da cruz foi única porque efi­
Sacerdote p ara sem pre, Cristo é com passivo para sem ­ caz; basta para sem pre; inútil pois reiterá-la (9,26; 10,10,14).
pre. A ascensão que o "coroou de glória e honra por haver E n tretan to a Redenção, acabada e definitiva em rela­
padecido a m orte" (2,9), bem longe de Jhe abolir o sacer­ ção a Cristo (redenção objetiva), é progressiva em relação
dócio, "consumou-o" (5,9), levando-o à m ais acabada p er­ aos indivíduos hum anos (redenção subjetiva). Cada qual
feição. Êle não sobe aos céus p ara quedar in erte m as para deverá, por sua vez, inserir-se na economia da Redenção,
exercer com eficácia m aior seu m inistério sacerdotal de ad erir pessoalm ente ao Redentor, apropriar-se dos efeitos da
compaixão e de misericórdia.-' ■ • • • m orte redentora, obedecer a Cristo como êle obedeceu ao
Como o sumo sacerdote mosaico, um a vez p o r ano, Pai (5,9). A paixão não se repete, repete-se a distribuição
penetrava além do véu do santuário de Jerusalém , no Santo dos frutos da paixão. Em conseqüência, a mediação do
dos Santos, num a tentativa vã de expiar os pecados do Sacerdote celeste visará "levar m uitos filhos à glória" (2,
povo, assim Cristo p enetrou nos céus, diante de Deus, p ara 10), aplicando sucessivam ente a cada homem que surge
sempre. Seu m inistério te rre stre só podia ser transitório. no decurso do tem po, os frutos da Redenção conquistada
Pela sua m orte, ressurreição e ascensão, êle p en etra no san­ de um a só feita para o conjunto dos homens 17.
tuário próprio e definitivo que é o céu, onde será p ara Cristo triunfante apresenta ao Pai as chagas gloriosas
sem pre m inistro do culto celeste. "Cristo não en tro u num de seu corpo, a obediência "vitim ai” 18 de sua alma, e
santuário feito p o r mão de homem, figura do verdadeiro,
17 H e b r (9 ,1 2 ; 1 0 ,1 2 -1 4 ). A u n iv e rs a lid a d e d a s a lv a ç ã o p o r C ris to , é um
porém, no próprio céu p ára com parecer diante da face de d o g m a de fé , c o n fo rm e e n s in a o T r id e n tln o : C ris to é v ítim a p ro p ic ia tó ria
Deus a nosso favor" (9,24). Por outras palavras: a eficácia “ p o r n o sso s p e ca d o s e n ã o só p elos nossos, m a s ta m b é m pelos p e ca d o s do
m u n d o in te ir o ; (D e n z in g e r n. 794). E co fiel de S. J o ã o : “ file é a p ro p ic ia ç ã o
do sacerdócio de Cristo lhe vem do acesso que tem à face pelos n o sso s p e ca d o s. E n ã o s ó p elos n o sso s, m a s ta m b é m pelos do m undo
do Pai. O sacrifício de seu sangue lhe franqueia êste aces­ in te iro . ( l J o 2 ,2 ); eco fie l ta m b é m de S. P a u lo : C ris to “3e e n tre g o u p a r a a
s a lv a ç ã o de to d o s ” (I T im 2 ,6 ). F o i c o n d e n a d o com o h e ré tic o q u em s u s te n ta s s e
so: Êle se apresenta diante do Pai, certo de ser atendido q u e C ris to m o rre u só p elos p re d e s tin a d o s (D e n z in g e r n. 1096). T o d o s sem
e x c e ç ã o , re c eb e m m eios s u fic ie n te s p a r a s a lv a r- s e , e m b o ra n ã o to d o s se s irv a m
(9,11-12). É definitivo o seu poder de salvar os que por d ê ie s.
êle se aproxim am de Deus, e êle sem pre vive p ara in ter­ E n s in a o V a tic a n o IX: “O V e rb o de D eus, p e la qual tõ d a s a s c o is a s fo ra m
fe ita s , ftle p ró p r io se e n c a rn o u , de ta l m odo que, com o h o m e m p e rfe ito s a lv a s s e
ceder por êles (7,25). O poder da ação sacerdotal de Cristo to d o s os h o m e n s e re e n c a b e ç a s s e tô d a s a s c o isa s . O S e n h o r é o fim d a h is ­
tó r i a h u m a n a , p o n to a o q u a l c o n v e rg e m a s a s p ir a ç õ e s , d a h is tó r ia e d a c iv ili­
lhe vem igualm ente de que êle é sacerdote eterno: a m edia­ z a ç ã o c e n tro d a h u m a n id a d e , a le g r ia de to d o s os c o ra ç õ e s e p le n itu d e de to d o s
ção perene é fruto do sacerdócio perene. os s e u s d e se jo s ” (n . 4 5 ).
18 “ F o i p a r a a d q u ir ir a I g r e j a que C ris to , e n q u a n to R e d e n to r, v e rte u
Esta ação celeste do nosso sacerdote, tom a a form a de o seu s a n g u e ; p a r a is to é que. e n q u a n to S a c e rd o te , se o fe re c eu e de c o n tín u o
intercessão. É oração, pois Cristo por ser glorioso, não co m o v ítim a ” . P io X I E n c íc lie a “Q u a s P r im a s ” n . 12.

196 Í9 7

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nos distribui a cada m om em o as graças que nos mereceu
outro ia. "É definitivo o seu poder de salvar os que, por sim tam bém a escolha dos apóstolos: "Aconteceu haver êle
ele, se aproxim am de Deus, e êle sem pre vive p ara in ter­ saído para a m ontanha a fim de orar, e passou a noite rezan­
ceder por êles” (7,25). Longe pois de nos olvidar, o nosso do a Deus. Quando chegou o dia, chamou a si os discípulos
bacerdote nos tem perpètuam ente presentes à sua interces- e escolheu doze dêles, aos quais deu o nome de apóstolos
sao, vela sôbre nós, am para-nos, dá-nos fôrça e coragem. (Lc 6,12). Assim ainda a revelação de sua m essianidade:
É em nome da hum anidade tôda que "o grande P astor das "Aconteceu que, orando êle a sós, estavam com êle os discí­
ovelhas (13,20) penetrou no santuário celeste; êle é nosso pulos aos quais êle perguntou: Quem dizem as multidões
P recursor (6,20), encabeçando o imenso cortejo que con- que eu sou?. . (Lc 9,18). Ainda: a transfiguração: "Aconte­
tm uam ente se alça da te rra ao céu, "levando m uitos filhos ceu que tom ando consigo Pedro, João e Tiago, subiu ao mon­
a glória” (2,10). te para orar. Enquanto orava, o aspeto de seu rosto trans­
A salvação, na epístola, aparece-nos como um a rom aria formou-se. . ." (Lc 9,28-29). Ainda: a Eucaristia foi instituí­
vitoriosa em dem anda do santuário celeste, com Cristo, da d u ran te um rito religioso, litúrgico, no qual eram canta­
um o Sacerdote, como guia e chefe. A ação redentora do dos os salm os de Hallel ou ação de graças (Mt 26,30; Mc 14,
Salvador é contínua; d u rará enquanto d u rar o universo; do­ 26). Ainda: "antes da paixão, Jesus, pôsto de joelhos, ora­
m ina o decurso da história. No fim do mundo, celebrada va. . . Cheio de angústia, êle orava com mais instância. . . Le­
a ultim a missa, cessará a im petração de Cristo: a liturgia vantando-se da oração. . . ” (Lc 22,41 ss). Enfim, na cruz orou
celeste com portará tão só adoração e ação de graças. por seus algozes: "Pai, perdoa-lhes porque não sabem o
que fazem ” (Lc 23,34); recitou pelo menos dois versículos
de salmos: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?
A oração de Cristo
(SI 22,1; Vulg. 21,1; Mt 27,46; Mc 15,34). "Pai, em tuas
mãos entrego meu espírito” (SI 31,6; Vulg. 30,6; Lc 23,46).
Ofício peculiar do sacerdote é o rar pelos hom ens. E ’
pois de presum ir que nosso Sumo Sacerdote Jesus, tenha Quais os objetos precípuos da oração de Jesus? Pode­
tido um a vida de oração particu larm en te intensa. riam os responder por um a dedução, m ostrando que êle —
Os fatos confirm am as presunções: os evangelhos, com não como Verbo, mas como verdadeiro homem — devia
efeito, nos m ostram Jesus em freqiienle oração. Observam oferecer a Deus sua ordenação e sua entrega total, dar
tam bém que êle se cercava das condições mais favoráveis graças pelos benefícios recebidos, pedir auxílio para si e
ao fervor da prece: solidão do deserto e das m ontanhas, p ara os outros, pois sua vontade hum ana não era todo-po-
escuridão da noite. "Tendo despedido (o povo) subiu (Je­ derosa como a vontade divina. Nem obsta a visão beatífica
sus) a um m onte afastado, p ara orar. Chegada a noite es­ que lhe descobria todo o futuro, tornando assim aparen­
tava ali só (Mt 14,23; Mc 6,46): "Pela manhã, m uito antes tem ente supérflua a oração, porquanto esta visão lhe des­
de am anhecer, êle se levantou, saiu, e foi para um lugar cobria tam bém que certos benefícios só seriam outorgados
deserto, e ali orava" (Mc 1,35). "Êle se retirava a lugares por Deus m ediante a oração de seu Filho, êle podia tam ­
solitários e dava-se à o ração ” (Lc 5,16). bém ap resen tar ao Pai, os desejos de sua sensibilidade, e
Os m om entos m ais im p o rtan tes da vida pública do Se­ o ím peto espontâneo de sua vontade hum ana, como acon­
nhor, foram perm eados de oração. Assim o batism o no J o r­ teceu no H ôrto. Podia, enfim, pedir o que faltava ainda à
d ão . Ao batizar-se o povo todo, quando tam bém Jesus se sua hum anidade, por exem plo: a ressurreição gloriosa.
batizava e orava, aconteceu abrir-se o c é u . . . ” (Lc 3,21). As­ De outro lado, sua vontade hum ana refletida, estava
perfeitam ente subm issa à vontade divina, de sorte que ain-
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da quando Deus não queria o que lhe pediam a sensibili­
dade e a vonlade espontânea de seu Filho, sua vontade Cristo insiste sôbre a eficácia de sua oração: "Pai, sei
refletida era atendida. que me ouves sempre, mas por causa da m ultidão que me
Preferim os todavia, deixar esta via dedutiva p ara nos rodeia, o digo para que creiam que tu m e enviaste” (Jo
11,42).
ater a letra dos evangelhos, que nos m ostram concretam en­
te, o Senhor pôsto em .oração. Até a oração angustiada do H ôrto, que parecería, à
Quais os objetos desta oração? Podemos encontrar, na prim eira vista, sem efeito, foi atendida; assegura-nos a
Sagrada Escritura, uma dezena de respostas a esta ques­ epístola aos hebreus: "Havendo oferecido nos dias de sua
tão • n vida m ortal, preces e súplicas com grande clam or e lágri­
mas àquele que o podia salvar da m orte, êle foi atendido,
1) Dar g ra ç a s: "Graças te dou, Pai, porque ocultaste
por causa de seu reverenciai tem or" (H ebr5,7). A ressurrei­
estas coisas aos sábios e prudentes, e as revelaste aos pe­
ção gloriosa foi a resposta do Pai ao pedido de seu Filho
quenos (Lc 10,21; Mt 11,25). "Pai, graças te dou porque homem.
me ouviste” (Jo 11,41).
Como foi dito acima, no céu a oração de Cristo conti­
2) Pedir a glorificação do Pai: "Pai, glorifica o teu nua, pois êle não deixa de ser criatura, por sua hum ani­
nom e” (Jo 12,29).
dade. Êle pede ao Pai que m ande o E spírito S anto: “Eu
3) Pedir a p ró p ria glorificação: "Pai, chegada é a hora, rogarei ao Pai e êle vos dará outro advogado, que estará
glorifica teu Filho” (Jo 17,1).
convosco p a ra sempre, o E spírito da v e r d a d e ...” (Jo
4) Pedir que o cálice da paixão fôsse afastado: "Pai, 14-16). Intercede pelos hom ens: "Êle sem pre vive para in­
se queres, afasta de m im êste cálice" (Lc 22,42). terceder por êles" (H ebr 7,25). " C ris to .. . entrou no próprio
5) Pedir que a vontade do Pai fôsse feita: “Não se faça céu, p ara com parecer agora na presença de Deus a nosso
a m inha vontade, porém a tua" (Lc 22,42). favor" (H eb r 9,24). "Se alguém pecar, temos por advogado,
6) Pedir pelos apóstolos: que o Pai os guardasse, santifi- perante o Pai, a Jesus Cristo, justo" (lJ o 2,1).
casse e unificasse na caridade (Jo 17,1 ss). Como Cabeça do corpo místico, o Salvador tom a as
7) Pedir que a fé de Pedro não desfalecesse (Lc 22,32). nossas preces, fá-las suas e as apresenta ao Pai, certo de
n 20) ^ eC^ r ^ ° r toc*°® os Tue creriam em seu nom e (Jo ser a te n d id o : "P or meio dêle oferecemos a Deus sacrifícios
de louvor, isto é, o fruto dos lábios que bendizem seu no­
9) In terced er p o r seus algozes (Lc 23,34). me" (H ebr 13,15).
it . Jesus ora tam bém p ara ensinar os seus a rezar:
Aconteceu que, achandó-se êle orando em certo lugar, as­
sim que acabou, disse-lhe um dos discípulos: Senhor, ensi­
a Uma das peculiaridades do sacrifício de Cristo é, que
na-nos a orar, como tam bém João ensinou seus discípulos. nêle a vítim a im olada é o próprio Sacerdote que oferece
Êle lhes disse: Quando o rard es dizei; Pai', santificado seja o sacrifício. Ensina-o expressam ente a E scritura: "Cristo,
teu n o m e ... (Lc 11,1-2). Ensina-lhes igualm ente a rezar
que pelo E spírito eterno a si m esm o se ofereceu im aculado
em oculto, a evitar a verbosidade (M t 6,6-8). Disse-lhes
a Deus” (H eb r 9,14). " ...Ê l e (C risto) se m anifestou para
ainda um a parábola "para m o stra r que é preciso o ra r em
d estru ir o pecado pelo sacrifício de si m esm o” (H ebr 9,26).
todo o tem po e não desfalecer" (Lc 18,1). Ensina-lhes so­
Ora, quem p ro cu ra Cristo como vítima, impressiona-se
bretudo o valor de sua m ediação: "Tudo quanto pedirdes
vendo a im portância que a E scritura atribui ao sangue de
ao Pai, êle vos d ará em m eu nome. Até agora nada pediste
em meu nome; pedi e recebereis” (Jo 16,23-24). Cristo vertido p o r nossos pecados. A liturgia do sangue é
um dos tem as principais da epístola aos hebreus. Ela con-
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lia sla os sacril feios da Auliga Lei, que derram avam o san­ O dciiam am enlo do sangue palenlcou seu valor reli­
gue de animais e o da Nova Aliança que derram ou o sangue gioso, por ocasião da prim eira Páscoa, na qual a elusão
de Cristo. "Se o sangue dos bodes e dos touros e a cinza de sangue revestiu uma virtude salvífica: "Pela fé celebrou
da vaca, com que aspergem os im puros, os santifica para (M oisés) a Páscoa e a aspersão do sangue, para que o ex-
a pureza da carne, quanto mais o sangue de Cristo, que lerm inador não tocasse nos prim ogênitos de Israel” (H ebr
a si mesmo se ofereceu, im aculado a Deus, lim pará a nossa 11,28)
consciência das obras m ortas para servirm os ao Deus Decisivo tam bém o papel do rito do sangue no pactuar
vivo” (H ebr 9,13-14). "Tendo nós pois, irmãos, em virtude Aliança entre Deus e o povo israelita ( Êx 24,6-8). "Nem o
do sangue de Jesus, firm e confiança de en tra r no san tu á­ prim eiro te sta m e n to 20 foi inaugurado sem sangue; por­
rio" (10,19) " . . . a aspersão do sangue que fala m elhor que que depois de anunciados ao povo todos os preceitos da
o sangue de Abel” (12,24). " ...J e s u s , a fim de santificar o lei de Moisés, tom ando o sangue dos bezerros e dos bodes,
povo com seu sangue" (13,12). " ...O sangue do eterno com água e lã tinta escarlate, e hissope, aspergiu o livro
te s ta m e n to ..." (13,19). e todo o povo, dizendo: êste é o sangue do testam ento que
Nem o m istério do sangue é próprio à epístola aos Deus nos ordenou. E o próprio tabernáculo e os vasos do
hebreus; encontram o-lo em diversos dos principais escritos culto êle os aspergiu igualm ente com sangue, e, segundo
neo-testam entários. Por exemplo: "êste é o meu sangue,- do a lei, quase tôdas as coisas devem ser purificadas com san­
testam ento, que será derram ado por muitos, p ara rem issão gue, e não há rem issão sem efusão de sangue” (H ebr 9,18-22).
dos pecados” (Mt 26,28; Mc 14,16; Lc 22,20; ICor 11,25). (Os Mas a aliança mosaica, unia a Deus apenas um só povo
hom ens) "são g ratuitam ente justificados pela sua graça, e lhe valia sobretudo favores tem porais e efêmeros, en­
pela redenção em Cristo Jesus, a quem Deus pôs como quanto a nova Aliança pelo Sangue de Cristo uniu a hum a­
sacrifício de propiciação, m ediante a fé em seu Sangue, nidade tôda a Deus e lhe valeu bens espirituais, para
para m anifestação de sua ju stiça. . . " (Rom 3,24-25). ". . .Ju s­ sem pre. Donde a menção do "Sangue do Nôvo T estam ento”
tificados p o r seu Sangue" (Rom 5,9). " ...N ê le tem os a na consagração do vinho (M t 26,28; Lc 22,20; ICor 11,25).
redenção pela virtude de seu sangue. . ." (Ef 1,7); " . . .eleitos D erram ando seu Sangue, Cristo sela a Nova Aliança
segundo a presciência de Deus Pai, na santificação do Es­ e reconcilia para sem pre o céu e a terra. Podemos, em
pírito para a obediência e a aspersão do Sangue de Jesus conseqüência, dizer que o Sangue de Jesus é o ponto de
C risto” (lP d r 1,2); " ...R e s g a ta d o s pelo Sangue de Cristo, junção entre o céu e a terra.
como cordeiro de Cristo, como cordeiro sem defeito nem Além de pactu ar a Nova Aliança, o Sangue preciosíssi­
m a n c h a ...” (lP d r 1,19); "o Sangue de Jesus, seu Filho, pu­ mo do Senhor, tem a virtude de expiar os pecados, confor­
rificamos de todo pecado” (lJ o 1,7). me expressa a fórm ula da consagração eu ca rístic a: “êste
Mas por que o sangue? Porque, para os sem itas, a
alma ou vida está no sangue (Lev 17,11; Dt 12,23). Ora 19 “ E to m a r ã o d o s a n g u e (d o c o rd e iro ) e p õ -lo -ã o em a m b a s a s u m b re l-
a vida só a Deus pertence. Donde a proibição de se alim en­ r a s e n a v e rg a d a p o r ta , n a s c a s a s em q u e o c o m e r e m .. . E a q u e le s a n g u e
vos s e r á p o r s in a l n a s c a s a s em que e s tiv e rd e s . V endo eu sa n g u e , p a s s a re i
ta r do sangue dos a n im a is: "A carne com sua vida, isto é p o r c im a d e v ó s . e n ã o h a v e r á e n tre v ó s p r a g a d e m o rta n d a d e , q u a n d o eu
f e rir a t e r r a d o E g i to ” (É x 1 2 ,7-13).
com seu sangue, não com ereis” (Gên 9;4). P roibição. sôbre 20 O tê r m o g re g o " d ia te k e ” s ig n ific a te s ta m e n to , p o ré m a B íb lia r a r a ­
a qual a legislação m osaica tanto insiste (Lev 17,11; Dt m e n te o e m p re g a n e s ta a c e p e ã o , m a s d e sig n a p o r êle a d is p o s iç ã o d a v o n ta d e
s o b e r a n a d e D e u s q u e re g u la a s re la ç õ e s e n tre êle e seu povo. D a í a tr a d u ç ã o
12,16). Derram ado, o sangue grita por vingança (Gên 4,10). íle ‘‘d ia te k e ” p o r a lia n ç a . T e m o s e n tã o a A n tig a A lia n ç a p a c t u a d a no S in a i
e n tre D e u s e o povo de I s ra e l, p o r in te rm é d io d e M oisés, e a N o v a A lia n ç a
Aos parentes da vítim a cabe o direito de d erram ar o san­ ( j á a n u n c i a d a p o r J e r e m i a s 31. 31) e n tre D eus e tó d a a h u m a n id a d e pec.adora,
gue do crim inoso como desforra (Núm 35,19). c o n c lu íd a p o r C ris to , no C a lv á rio , o n d e d e rra m o u seu S a n g u e a té a ú ltim a
g õ ta .

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é meu Sangue do Testam ento, que será derram ado por enquanto Cristo penetrou no santuário dos céus, diante dc
muitos, para rem issão dos pecados” (Ml 26,28). Deus um a vez por tôdas, para sem pre. E o pontífice antigo
A epístola aos hebreus ressalta êste valor purificador nenetrava sozinho além do véu, enquanto Cristo levou con­
do Sangue de C risto: "o Sangue de C ris to ... lim pará a sigo o seu rebanho todo. Doravante, cada crente tem asse­
nossa consciência das obras m ortas" (9,14). "Os corpos gurado um cam inho aberto ao santuário celeste "em virtu­
daqueles animais cujo sangue, para expiar os pecados, é de do Sangue de C risto” (10,19). "Co-ressuscitou-nos (Deus)
introduzido no santuário pelo pontífice, são queim ados e assentou-nos nos céus em Cristo Je su s” (E f 2,6).
fora do acam pam ento. Pelo que, tam bém Jesus, a fim de O Sangue de Cristo é pois fa to r decisivo n a perfeição
santificar o povo com seu Sangue, padeceu fora da p o rta da religião cristã. Bem se entende que o papa João X XIII
(de Jeru salém )” (13,11-12). tenha encarecido a devoção ao preciosíssim o Sangue dc
O princípio que serve de base ao sacrifício expiatório, J e s u s 21. Não há devoção mais fundada na E scritura.
é bem form ulado pelo Levítico: " 0 sangue opera a expia-
ção, pela vida que está nêle” (Lev 17,11). P ortanto quem
m ereceu a m orte pelo seu pecado, não podendo tirar-se Os sofrim entos de Cristo
.a vida própria, apresenta em lugar, a vida de um animal,
vertendo-lhe o sangue. E Deus aceita a substituição, o desa­ "B astaria um a pequena gôta de Sangue de Cristo para
gravo. Tal foi o sentido dos sacrifícios expiatórios da antiga rem ir o m undo inteiro em virtude da união do Sangue ao
Lei, m orm ente da grande festa da expiação que os israelitas Verbo encarnado” ensina Clemente V I 22. Com efeito é o
celebravam um a vez ao ano, p ara p urgar os pecados de Sangue, não de um puro homem, m as do Filho de Deus.
lodo o povo. O sum o pontífice, em vez de d erram ar o E n tretan to Jesus quis vertê-lo'todo, a fim de nos dar um
sangue da vítim a ao pé do altar, como nos dem ais sacri­ testem unho concreto e suprem o de am or. "Sabendo Jesus
fícios, fazia num erosas aspersões, e penetrava até o Santo que chegara a hora de p assar dêste m undo ao Pai, havendo
dos Santos, p ara realizar estas purificações (Lev 16). A am ado os seus que estavam no m undo, até o fim os am ou”
epístola aos hebreus ressalta a heterogeneidade en tre o (Jo 13,1). A m esm a resposta darem os a quem nos pergun­
sangue dos anim ais (m aterial) e o pecado- (e sp iritu a l): ta r qual o últim o "porquê” dos pa^decimentos de Jesus:
"im possível que o sangue dos touros e dos bodes apague ninguém foi mais além no amor.
os pecados” (10,4). Essa im possibilidade e a falta de dispo­ Nossa contem plação descobre na paixão, um excesso
sições m orais naqueles que ofereciam os sacrifícios, to r­ de dores quer físicas, quer morais.
navam essa liturgia ineficaz e desagradável a Deus. Só Sofrim entos físic o s: a crucifixão é um suplício acer-
valia como figura do sacrifício de Jesus Cristo. bíssimo e a sensibilidade de Cristo era apuradíssim a, como
À repetição incessante e estéril do derram am ento de convém a um corpo form ado pelo E spírito Santo. Ademais
sangue de anim ais, nos sacrifícios da antiga lei, a epístola Cristo não quis qualquer m itigação, segundo insinua São
contrapõe a efusão única, eficaz, definitiva, do sacrifício M arcos relatando que êle recusou a bebida entorpecente
da cruz. "Não se tra ta m ais de sangue de anim ais, mas do que lhe foi oferecida (Mc 15,23).
Sangue preciosíssim o do Filho de Deus encarnado” (10,1-8). Sofrim entos m orais: Cristo sofria ern saber que a sua
Não se tra ta mais de expiar as faltas legais, m as de rem ir vinda ao m undo seria inútil para m uitas almas que recusa­
faltas m orais. . riam a salvação que êle lhes oferecia. Do Pai, recebera uma
A nossa epístola insiste sôbre o fato de o pontífice
antigo te r que p en etrar cada ano no Santo dos Santos, 21 J o ã o X X 1JI le tr a s a p o s tó lic a s d e 20 d e ju n h o d e 19f>0.
22 C le m e n te V I. B ula " lln ip e n itu s Hei B iliiis” ( Denzíntjei* n. 550».

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m issão universal: salvar todos os homens mas, na teali- O esm agam enlo de Jesus na cruz, só pode ser atri­
dade, nem mesmo conseguira conquistar seu povo, antes buído ao seu desejo de nos provar o quanto êle nos amava
lo ra p o r êle renegado. M alogro aparente de sua obra, não e de nos levar a retrib u ir tam anho am or. Podia nos salvar
só naquele instante de tempo, mas através dos séculos. Ade­ eom m uito menos, mas, tendo escolhido ser vítima por
mais, sua alma perfeitíssim a apreendia com intensidade nós, de nos rem ir pelo sofrim ento, resolveu levar êsse so­
ím par os sofrim entos m orais da paixão: a ignom ínia do frim ento ao extrem o limite, cum prindo assim, de maneira
suplício, os u ltrajes e m otejos de seus inimigos, a fuga perfeita, sua m issão de Redentor. Os diversos episódios, as
dos discípulos, as negações de Pedro, as dores de sua Mãe, diversas circunstâncias, de sua paixão, foram apenas outras
o abandono aparente de seu P a i23, sobretudo o h o rro r tantas ocasiões dc nos testem unhar amor. Amor que não
de todos os pecados de tôda a hum anidade que ele devia só provocava nosso amor, mas vencia o pecado, destruidor
expiar como representante da hum anidade pecadora. Na
do am or. Se pecar é dizer "não ” ao amor, reparar plena­
essência divina, que dom ina o tempo, Jesus via, num ins­
m ente o pecado é dizer "sim '', em bora os suplícios, embora
tante único, todos os pecados, passados, presentes e fu tu ­ a própria m orte.
ros da hum anidade inteira, na sua malícia crua. Viu os
nossos pecados — os m eus pecados — sem om itir um só Prova perfeita de am or pelo Pai: "É preciso que o
dêles. Sua alma é subm ergida num oceano de m aldade. Êle m undo saiba que eu amo o Pai, e que segundo o m andato
vê o pecado em tôda sua fealdade; sente que tudo aquilo que o Pai me deu, assim eu faço” (Jo 14,31). Prova perfeita
é de certa m aneira seu, já que êle assum iu a responsabili­ de am or por nós: "Ninguém tem am or m aior do que êste:
dade de tudo, para tudo b an h ar no seu Sangue, tudo p u ri­ de d ar alguém a vida por seus am igos” (Jo 15,13).
ficar nas chamas do seu am or. Sto. Agostinho in terp retav a A contem plação dêste am or de nosso Salvador, gerou
o "tenho sêde” de Jesus crucificado, não apenas da sêde na Igreja, sobretudo por obra de Sta. M argarida Maria
física — que constituía aliás um dos piores suplícios da Alacoque, um a espiritualidade do desagravo, da reparação,
crucifixão — mas da sêde de almas, ou seja — explicava que visa com pensar, de qualquer modo, a ingratidão dos
Sta. Teresinha — da sêde de am or. hom ens para com o Coração de Jesus 24. E a contemplação
das chagas do Crucificado, foi sem pre fonte de paciência
23 A lg u n s in c ré d u lo s in te r p r e ta m e sse g rilo d o S a lv a d o r com o m a n if e s ­
ta ç ã o de d e se s p e ro . E n t r e ta n to o c r itic o u ltr a r a c io n a lis ta A lfre d D ouisy
e sc re v e u : E s t a q u e ix a n ã o e ra a de um re v o lta d o ou de um d e se s p e ra d o , m eu D e u s. p o rq u e m e d e s a m p a r a s te ? ” (M t 2 7 .4 6 ). N e s s a h o ra em q u e s o fria
e r a a d o ju s lo s o fre n d o , m a s c e r to a p e s a r de t r d o , d o a m o r e d a p ro te ç ã o o m a io r a b a n d o n o s e n s ív e l, re a liz o u a m a io r o b ra . q u e su p e ro u os g ra n d e s
q u e lhe c o n se rv a a té a m o rte , o D e u s d e tô d a s a n ti d a d e ’ (L e s é v a n g ile s m ila g re s e p ro d íg io s o p e ra d o s em tô d a s u a v id a : a re c o n c ilia ç ã o do g ê n ero
s y n o p tiq u e s 1,13 p. 685). O s a lm o d e o n d e é t i r a d a a q u e la e x c la m a ç ã o , longe h u m a n o com D e u s, pela g r a ç a . F o i p re c is a m e n te na h o r a de m a io r a n iq u ila ­
d e s e r m a n if e s ta ç ã o de d e s e s p e ro , e x p rim e pelo c o n tr á r io firm e c o n f ia n ç a em m e n to d o S e n h o r em tu d o . q u e e s s a o b ra se f ê z ; a n iq u ila m e n to q u a n to á
D e u s e no tr iu n fo fin a l d o M e s sia s . A liá s é bom r e c o r d a r q u e e ss e g rito d e a p a ­ sua r e p u ta ç ã o , re d u z id a a n a d a a o s o lhos d o s h o m e n s, e e s te s vendo-o
re n te d e s e s p e ro , foi s e g u id o p o r u m a p a l a v r a de c o n f ia n ç a t o t a l : “ P a i em m o r r e r n a c ru z . longe d e b s tim á -lo . d ê le z o m b a v a m : q u a n to ã n a tu r e z a , pois
t u a s m ã o s e n tre g o m eu e s p ír ito ” (E c 2 3 .4 6 ). n e la se a n iq u ila v a , m o rre n d o ; e e n fim q u a n to a o seu e s p ír ito ig u a lm e n te
Em v e rd a d e , d e v em o s v e r a í u m a e x c la m a ç ã o a r r a n c a d a pelo e x ce sso e x p o sto a o d e s a m p a r o p e la p riv a ç ã o d o eonsõlo in te rio r d o P a i q u e o a b a n d o ­
d e s o frim e n to . O m e sm o J e s u s q u e im p lo ra n e sse g r it o : “ P a i, tu d o te é n a v a p a r a q u e p a g a s * e p u ra m e n te a d ív id a d a h u m a n id a d e c u lp a d a , e fe tu a n d o
p o s sív e l, a f a s t a de m im ê s te c á lic e ” (M c 14,36) a g o r a se q u e ix a a m o ro s a m e n te a o b r a d a re d e n ç ã o n e sse a n iq u ila m e n to c o m p l e t o ... C o m p re e n d a a g o r a o bem
a o P a i d e s e r e n tre g u e ao ó d io de s e u s in im ig o s . N a P a ix ã o . J e s u s e s tá e s p ir itu a l, o m is té rio d e s ta p o r ta e d ê s te c a m in h o — C ris to — p a r a u n ir-se
in tn ir a m e n te s ó : tr a íd o p o r J u d a s , n e g a d o p o r P e d ro , a b a n d o n a d o p o r se u s com D e u s. S a ib a q u e . q u a n to m a is se a n iq u ila r p o r D e u s seg u n d o a s d u a s
d is c íp u lo s e a m ig o s. N em m e sm o o a n jo d a a g o n ia q u e o c o n f o r ta r a no H O rto p a r te s , s e n s itiv a e e s p ir itu a l, ta n to m a is se u n ir á a êle e m a io r o b ra fa rá .
( Ec 2 2 .4 3 ) e ste v e p re s e n te no C a lv á r io . E o P a i p a re c ia te r - s e e sq u e c id o dêle. E q u a n d o c h e g a r a re d u z ir-s e a n a d a . is to é. à s u m a h u m ild a d e , se c o n s u m a rá
E s m a g a d o de d o r, J e s u s , se la m e n ta , m a n if e s ta a a n g ú s ti a q u e o d ila c e r a . a u n iã o com D e u s. q u e é o m a is a lto e s ta d o q u e se pode a lc a n ç a r n e s ta v id a.
S. J o ã o d a C ru z c o n v id a o e s p ir itu a l a re v iv e r o d e s a m p a r o de J e s u s n a N ã o c o n s is te , p o is. em re c re a ç õ e s, nem gozos, nem s e n tim e n to s e s p ir itu a is , e
c ru z : ‘é m a n ife s to le r (N o s so S e n h o r) fic a d o n a h o ra d a m o rte a n iq u ila d o sim n u m a v iv a m o rte de c ru z p a ra u s e n tid o e p a r a o e s p írito , no e x te rio r
em s u a a lm a sem co n sô lo nem a liv io a lg u m , no d e s a m p a ro e a b a n d o n o do e no in te r io r ” (O b ra s de S. J o ã o chi C ru z : S u b id a do M onte C a rm e lo I.. 2.
P a i. q u e o d e ix o u em p ro f u n d a ‘ a m a r g u r a na p a r te in fe rio r d a a lm a . Tão v. 7, E d . V ozes. t. 1. p. 8 5 ).
g r a n d e fo i e sse d e s a m p a ro , q u e o o b rig o u a c la m a r n a c r u z : M eu D e u s. 24 P io X I E n e íe lie a M isvrrtilisN im us lic d e m i)to r n. J2ss.

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e resignação, de coragem e conforto para a alma que sofre. seqiiente sum o gôzo; sentia tam bém alegria diante da pai­
Jesus parece nos dizer: Vê como eu te amei! 25.
xão como meio escolhido pelo Pai p a ra salvação da hum ani­
dade; alegrava-se ainda pelo triu n fo final do amor. De
Dor e alegria em Cristo padecente outro lado, essa m esm a plenitude de graça, incendiava-lhe
o coração de am or pelos pecadores, de desejo de sofrer
para resgatá-los: "Tenho de receber um batism o e como
C ris m ^ í, a t“ rm entadü os teólogos, a conciliação, em me angustia até que êle se cum pra!" (Lc 12,50). Sofreria
efeito PadeCente’ da sTum a d o r a sum a felicidade. Com em conseqüência aquelas dores de que já falam o s: dores
naixão \ „ f T qUe SUS Ía sofrendo as dores acerbas da físicas e sobretudo dores m orais. Os motivos de tristeza
fece n VÍ r * era, lnundada de alegria, pois via a Deus e de alegria são pois bem diversos 27.
c u l f H f l / Ci' COmü Ja dlssem os' alguns, prem idos pela difi- O que perm anece sum am ente m isterioso é que, em
culdacie, chegaram a afirm ar que durante a paixão, Cristo Cristo, a visão da essência divina não tenha tido suas con­
nnrereV sequências norm ais, conferindo-lhe todos os dotes dos celí-
parece °inadmissível,
Ua pois se a alm * aleSrÍa
a vê àsdaclaras
visã° ' o ° sumo
que
colas (corpo glorioso, felicidade sem nuvens, im possibili­
cm, como deixaria de alegrar-se? dade de m erecer); Cristo, pelo contrário, unia em sua pessoa,
O utros — protestantes êstes, encabeçados por Calvino p o r m ilagre, as condições de celícola e de viajor. A trans­
.q u.e - n° O v á r io , Cristo deixou de figuração no m onte Tabor não foi um milagre, mas a
H e, " ° beatifica, foi de fato abandonado p o r seu Pai- cessação m om entânea de um m ilagre, porquanto norm al­
nrnho^e r° U"SH’ ^ sum a’ exPe r im entou o suplício dos ré- m ente, o corpo do Salvador deveria acom panhar o estado
probos, condenados ao inferno. da alm a beatífica, revestindo as qualidades do corpo glo­
s,V,UcarCCe ™ais ac<f ta d o , d istinguir tristeza e alegria sen- rioso. Só p o r m ilagre Jesus im pedia que, na sua vida quoti­
siv u s que sao de fato, incom patíveis, e tristeza e alegria diana, a visão beatífica repercutisse sôbre seu corpo.
d iv e ís o T ^ A^6 P m CoexÍstir' quando ^ u s m otivos são
íversos . Assim e que podem os nos en tristecer com- os
Doraueei? i7 sofre
f ^ santam
amÍg°ente.
' Ê 005 alegrar ao mesm o tempo, A imolação de Cristo
porqu e ele
Pjfnitude de êra Ça que ornava a alma de Cristo asse- Os evangelhos fazem questão de frisar a soberana li­
gurava-Ihe a visão as claras da essência divina, com o con-
berdade de Cristo diante da m orte. Êle prevê a sorte que
o a g u a rd a . Sabeis que daqui a dois dias, se há de celebrar
M o n in ó
u rd e d e a m o r p o r n ó s .. o lh a m ^
h m T ° r | r a : SÓr° r T e re S a d °
, , ^ L C elin a en? 1 8 8 9 : " J e s u s
a Páscoa, e o Filho do homem será entregue para ser cru­
e b a ix o s ! ... Olha- s u a s c h a - a s n i h „ e Ta ^ o r à v e l - 0 l h a se u s olhos a m o rte c id o s cificado” (M t 26,1). Êle prevê e aceita: "Meu Pai me ama
dle n o s a m a " ( I .e ttr e s de S a ín t T h í r i u . Je,l)9 s n a s u a F a c e -- - L á v e r á s co m o
S ta. G e m a G a . g a n i n a r r a L ™ L is > T 1948- P- porque eu dou m inha vida p ara de nôvo tomá-la. Ninguém
tr a n d o - m e s u a s cinco c h a g a s a b e r ta s d S " v a ° H o™e™ d a s d o r e s ^ "M o s-
a.rna. V ês e s ta c ru z , ê s te s esmnhn<? p Aet * m ird ia e a p re n d e com o se
d u r a s , e s ta s c h a g a s ? T u d o é o b ra do a m o r ^ d o f StaS ?a frneS ,ív id a s - e s ta s P isa - 27 N a v id a d o s s a n to s é fre q tie n te a c o e x is tê n c ia d a d o r com a a le g ria
te a m e i. Q u e re s a m a r-m e v e r d a d e i r a m e n te ’ A u r^ n d ln r,n .it0 -. E la a 9116 p o n to p a c ific a . A ss im S ta . T e re s in h a , no fim d a v id a , te v e d e s o f r e r m u ito f ís ic a
s o f r im e n to e n s in a a a m a r " P e P e r m e a ' X p r ®nde P rim e iro a s o f r e r : o e m o ra lm e n te : N u n c a a c r e d i t a r i a q u e fô s s e p o s s ív e l ta n to s o f r e r ! " (N o v ís s im a
G a lg a n i. a f lo r da P a ix ã o , p f r t o m o p 77®a n t ° E s ta n is la u - S a n ta G e m a v e r b a p. 1 9 4 ). D o re s fís ic a s d a d o e n ç a , d o re s m o r a is c a u s a d a s pelo a p a r e n te
e clip se d e s u a fé e d e s u a e s p e ra n ç a . M a s no s e io d ê s s e o c ea n o de d o r, re in a v a
ra x a o 6 r ' . " ' 1 0 de S t°- A B 0Stinh0 - trc a p a z e s o b re tu d o o a m o r : " V e ja v o cê ao lo n g e , p e rto d a s c a s ta n h e ir a s a q u ê le
te m p o r o b je to a s c o isa s te m p o ra is 1 e n fin d d m n as) e r a z a o in fe rio r (q u e b u ra c o p ie to o n d e n a d a se d is tin g u e , fi n u m b u r a c o com o ê s te q u e e sto u q u a n to
s u p e r io r que c o n tin u o u n Bo " á r d u r a n t e ”, ™ - '" 'e a v lsao c o n c e rn e a ra /.a o l„0n C r i t° í “ Í rÍ 1, .fL
r . a L’? a - ' - A h! s im q u e t r e v a s ! M a s e sto u n e la s, em p a z"
a r a z ü o in fe rio r, s e n tia m « „ maioA a s p ^ n a s ^ e " " " " ...... 6 (o p . c it. p. 1 64). C o n tin u o s e m p re n a p ro v a ç ã o , m a s ta m b é m n a p a z ” (op.
C lt. p. 1 7 ü J.

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m a tira, sou eu que a dou por mim mesmo. Tenho poder
para dá-la e poder p ara tomá-la" (Jo 10,17-18). "Pensas Cristo, o fogo m aterial foi substituído pelo fogo do am or
que eu não posso rogar a m eu Pai, c êle logo me enviaria (3 q. 46 a 4 ad 1). De fato, ninguém foi mais longe no am or
doze legiões de anjos?” (M t 26,53). do que êle.
Não só poderia escapar à sanha de seus inimigos, mas O concilio Tridentino expressou a fé da Igreja, ensinan­
ainda como seu corpo era instrum ento conjunto ao Verbo, do que a m orle de Cristo na cruz, foi um verdadeiro sacri­
êste poderia torná-lo invulnerável. De fato parece ter-lhe fício (Denz. 938,940,961). Nela encontram os, com efeito, os
conservado até o fim, o vigor natural, prova seja o "forte diversos elem entos que integram um sacrifício: o Sacerdo­
g rito ” que teve ainda fôrça de soltar, antes de expirar te, que é o próprio Cristo; a vítima, que aqui se confunde
(M l 27,50; Mc 15,37; Lc 23,46). Por um alo de soberana com o Sacerdote; a oblação que foi a livre e am orosa imo-
liberdade êle como que arran ca sua alma de seu corpo, lação, por Cristo, de sua vida, em obediência ao Pai, pela
perm itindo que os golpes dos algozes sobrepujem a vita­ salvação da hum anidade pecadora. Sacrifício plenam ente
lidade de sua carne. aceito pelo Pai, pois lhe agrada infinitam ente m ais do que
O m á rtir aceita a m orte que lhe é infligida; Cristo lhe desagrada o pecado. Êste é plenam ente compensado
m orre porque quer. Separa a alm a de seu corpo p ara en­ pelo excessivo am or do Filho. Em conseqüência, Deus re­
tregá-la ao Pai que a criara. O sacrifício de Cristo é pois concilia os hom ens -consigo mesmo, e restitui-lhes sua am i­
um a oblação ao Pai, p o r am or dos homens, pelas m ãos zade.
dos carnífices. Á separação violenta do corpo e da alm a, “Quando ainda éram os fracos, Cristo, a seu tempo,
na cruz, que colocava Cristo em estado de vítim a im olada m orreu pelos ímpios. Em verdade, haverá dificilm ente al­
ao Pai, foi a m anifestação exterior da oblação interior, pela guém que m orra p o r um justo; ou talvez haja quem se
qual o Filho se entregava ao Pai, sofrendo voluntàriam ente anim e a m o rrer por um hom em de bem. Mas Deus provou
a m orte, p o r obediência e am or. "Tal é o m andato que do o seu am or p a ra conosco pelo fato de ter Cristo m orrido
Pai recebi" (Jo 10,18). "Agora m inha alma sente-se co n tu r­ p o r nós, quando ainda éram os pecadores. . . Sendo inimi­
bada; e que direi? Pai, livra-me desta hora? Não. Para isso gos, fomos reconciliados com Deus pela m orte de seu fi­
vim a esta h ora!” (Jo 12,27). "Convém que o m undo conhe­ l h o ..." (Rom 5,6-10).
ça que eu amo o Pai, e que segundo o m andato que o Pai
m e deu, assim eu faço” (Jo 14,31). "Não se faça a m inha
vontade, porém a tua" (Lc 22,42). E esta vontade do Pai O sofrim ento na vida do cristão
era que "assim como pela desobediência de um, os outros
foram feitos pecadores, assim tam bém , pela obediência de "Cristo padeceu p o r vós, e vos deixou exemplo para
um , os outros serão feitos ju s to s ” (Rom 5,19). Em conse- que lhe sigais as pegadas” (lP d r 2,21). M embro de um
qüência, Cristo "obedeceu até a m orte e m orte de c ru z ” corpo imolado, cada cristão deve p artilh ar do sacrifício.
(Flp 2,8). E obedeceu porque am ava a seu Pai e a nós. Desde o seu nascer à vida sobrenatural, êle en tra em con­
Por isto a Igreja canta no hino de vésperas do tem po p as­ tato com a cruz: "Todos os que fomos batizados em Jesus
cal : "O am or é o sacerdote . que imola os m em bros do Cristo, fomos batizados em sua m o rte” (Rom 6,3). O ho­
sagrado Corpo”. Eco fiel de São Paulo "Cristo nos am ou m em só é regenerado como m em bro de Cristo crucificado;
e se entregou p o r nós em oblação e sacrifício a Deus, em donde a grande palavra de São Leão M agno: "Pelo batism o
suave ad o r” (Ef 5,2). nos tornam os carne do Crucificado”.
Observa Sto. Tomás que, nos holocaustos antigos, a Regenerado pela virtude da cruz, nossas alm as cres­
vítim a era consumida pelo fogo, mas no holocausto de cem espiritualm ente pela E ucaristia onde se estreita mais
ainda nossa união com Cristo sofredor, pois que comunga-
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m os ao Corpo e ao Sangue im olados de C risto : "Tôdas as são de Cristo, crucificaram a carne com as suas paixões
vêzes que com erdes êste pão e beberdes êste cálice, anun­ e concupiscências” (Gál 5,24). "Castigo o meu corpo e o
ciareis a m orte do Senhor até que êle venha" (IC or 11 reduzo à servidão” (IC or 9,27).
26 ) 28. Graças a êste contato íntim o e vivido com a cruz do 4) Sofrendo com Cristo, dem onstram os nosso amor
alvador, lograremos corresponder à exigência im prescri­ por êle não só em palavras, mas em obras. Assistimos no
tível do M estre: "Se alguém quiser vir após mim, negue-se cristianism o, a um a verdadeira transfiguração do sofrim en­
a _sl mesmo, tome a sua cruz e siga-me" (Mc 8,34). "Quem to : o cristão não padece com revolta, nem tão pouco com
não carregar a sua cruz e não vier após mim, não pode ser desalentada resignação — como quem aceita o inevitável —
meu discípulo” (Lc 14,27). cristão sincero encontra no seio do sofrim ento, verdadeiro
Adquire assim o sofrim ento um sentido inteligível. À ; gáudio: o m isterioso gáudio que lhe vem de saber que as­
luz da paixão êle nos aparece qual um "seguir as sangüi- sim se conform a à paixão daquele que lhe é caro sôbre
nolentas pisadas de nosso Rei, como exige a necessidade de tôdas as coisas.
assegurarm os a nossa salvação” 29. S. João Crisóstom o vigo­ 5) Sofrendo com Cristo, colaboram os à obra redentora
rosam ente proclam ava: "Se és corpo de Cristo, carrega a de nossa Cabeça. Função apostólica do sofrim ento, segundo
ciuz, pois Cristo carregou a cruz; suporta os escarros, as a m isteriosa palavra de S. Paulo: "Alegro-me nos sofrim en­
bofetadas, os cravos" -,0. tos p o r vós e em quê cum pro na m inha carne o que falta
_ Quando indagamos de que m aneira o sofrim ento cris- à paixão de Cristo, pelo seu Corpo que é a Ig reja” (Col
ta °_ ' isto é, o sofrim ento suportado com paciência, em 1,24). Não é que os sofrim entos de Cristo sejam insuficien-
união a Cristo padecente — assegura-nos a salvação, ocor­ ■ tes< m as que Cristo e sua Igreja form am uma só pessoa
rem várias razões que, bem longe de se excluir se com ple­ m ística; por conseguinte, Paulo com pleta, sofrendo, o que
tam : falta à paixão de tôda a Igreja cuja cabeça é Cristo. Faltava
1) Sofrendo com Cristo, expiamos nossos pecados. Nos­ com efeito, que os sofrim entos que Cristo padecera na sua
sa satisfação, não tem valor independentem ente de Cristo; i carne, êle os padecesse em São Paulo, seu m em bro e nos
só p o r êle é oferecida ao Pai, e, p o r ser êle quem oferece, outros m em bros seus. E Paulo sofre pela Igreja, porque
e aceita pelo Pai. Tal é a m ística solidariedade que une os ela foi rem ida pelos sofrim entos „de Cristo, aos quais
m em bros à Cabeça (Denzinger n. 904-906). êle quis e dignou-se associar os sofrim entos dos seus
2) Sofrendo com Cristo, m erecem os graças na vida m em bros. Os padecim entos da Cabeça e os padecimentos
presen te e glória no além. "Se filhos (de Deus) tam bém dos m em bros entrelaçam -se para form ar um só instru­
herdeiros; herdeiros realm ente de Deus e eo-herdeiros de m ento de salvação.
Cristo, isto porém , se padecem os com êle para que tam ­ Sendo a paixão de Cristo, em relação à justificação dos
bém com êle sejam os glorificados” (Rom 8,17; 2Cor 4 17; hom ens, causa satisfatória (porque expia nossos pecados)
lP d r 4,13). e causa m eritó ria (porque nos vale a graça) segue-se que a
A Sofrendo com Cristo, nos libertam os do dem asiado paixão dos m em bros de Cristo participa de am bas as cau-
apêgo às criaturas e m ortificam os nossas paixões. "Os que salidades, de m aneira longínqua, já se vê. Quanto ao prin­
cipal, a Paixão esta term inada, nosso parco "com pletar” só
„ ^ 8 . í ; a eiL ada E n c íc lic a M is e r e n tis s im u s R e d e m p to r P io X I põe era re iê v o cobra valor de nossa solidariedade com Cristo; por sermos
n o * 6 fosíò ° e v ,n m a q u e a p a r tic ip a ç ã o do s a c r if íc io do a l t a r d eve d e s p e r ta r
, n .™ m e m b ro d e C ris to é c h a m a d o a se to r n a r h ó s t i a a g ra d á v e l m em bros seus, recebendo a cada instante, o eficaz influxo
n « e rm e -o n . em e a s I,e g a d a s rt° C h e íe ; a f a z e r p e s s o a lm e n te seu
, , p “ d a C a b e 5 fU a tm o la r-s e com C ris to , q u e se im o la s ô b re o a lta r ,
da Cabeça m ística. Nesse sentido secundário e dependente,
z a P io X I I E n c íc lic a M y s tic i C o rp o ris C h H sti n 106
30 In E p is t. a d E p lies. c ap . 1, I-Iom 3,3.
não resta dúvida que o sofrim ento do cristão tem valor ex­
piatório e m eritório, não só para o que sofre, senão para
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todos aquêles que, m ísticam ente, lhe estão unidos, pois é
ainda Cristo que sofre, expia, merece, nesse seu membro, sos prim eiros pais, Noé, os patriarcas, Moisés, Samuel, Davi
pelos outros m em bros seus. os profetas etc. E tam bém o velho Simeão, João Batista,
"Trem endo m istério e nunca assaz m editado! Que a S. José etc. Hoje em vez de "inferno" preferim os dizer:
salvação de m uitos depende das orações e dos sacrifícios "seio de Abraão" como ensinou o próprio Cristo (Lc 16,23)
voluntários, feitos com esta intenção, pelos m em bros do ou ainda "lim bo”, de um a palavra latina que significa "orla”
Corpo m ístico de Jesus C risto "31. Trem endo sim, porém p ara indicar que a m orada dêsses justos era situada na "orla”
m istério de infinito amor. do inferno dos condenados (donde a possibilidade de de­
Não vejamos pois no sofrim ento um castigo, mas um nominá-la tam bém "inferno” ). E podia-se falar em "orla do
cham ado a colaborar na obra red en to ra de nossa Cabeça32. inferno" porque os justos da antiga lei estavam, como os ré-
Em vez de revolta ou de queixumes — am or. . . probos, privados da glória celeste. Desde a Idade Média, os
teólogos em sua m aioria, designam como "inferno” todo
lugar onde há privação da visão beatífica, donde a possibili­
A descida aos infernos dade de distinguir 4 infernos, ou 4 regiões diferentes de um
só inferno: dos demônios e dos hom ens condenados, das
S eparada sua alm a de seu corpo, Cristo m orreu. Mas crianças mortas, sem batism o; o purgatório; o limbo dos
esta separação não teve como conseqüência a separação de ju sto s da antiga lei.
am bos, da divindade. O corpo de Cristo, em bora m orto, con­ A que visitou Cristo os infernos? Qs padres latinos
tinua a ser o corpo do Verbo, e sua alma, em bora separada respondem que êle foi ilum inar os justos, anunciando-lhes
do corpo, continua a ser alm a do Verbo. Senão, o símbolo a boa nova da salvação da hum anidade, m ostrando-se a êles,
erraria ao confessar do Filho de Deus que êle "foi crucificado, fazendo cessar sua longa espera, transform ando assim o
m orto e sepultado; desceu aos infernos”. S eparada a divin­ lim bo em paraíso. Não prom etera êle ao ladrão penitente:
dade do corpo de Jesus, não seria m ais verdade que o Filho “H oje estarás comigo no paraíso (Lc 26,43)? Ê ste lugar
de Deus foi sepultado, m as sim um simples homem, um se to rn a um paraíso, no qual Cristo glorioso se dá a con­
cadáver. Nem seria verdade que a alm a do Filho de Deus tem plar.
tenha visitado os infernos, enquanto seu corpo descansava Alguns valem-se das palavras aliás bastante enigmáticas
no sepulcro. de S. Pedro em sua Ia epístola "(C risto) foi pregar aos es­
O artigo sôbre a descida aos infernos, foi inserido no p írito s que estavam na p ris ã o . . . foi anunciada a boa nova
símbolo, no 4o século de nossa era. Por "in fern o ” enten­ aos m o r to s ..." (lP d r 3,19; 4,6). Donde certos otim istas,
dia-se a m ansão das almas ju stas do Antigo T estam en to : nos­ influenciados por Orígenes, adm item não só um a pregação
aos justos m as aos m esm os infiéis, dando-lhes mais um a opor­
31 P io X I I E n c . M y s tic i C o rp o ris C h r is ti n. 44,
tunidade de salvação. . .
it 32 E d ith S te in , c a r m e lita ju d ia , v ítim a doa n a z is ta s , e sc re v e u b e la m e n te : Os padres gregos acentuam a libertação das almas cati­
'O s s o frim e n to s e a m o rte de C ris to , v ã o se p ro lo n g a r, c o n tin u a r , em seu
C o rp o m ís tic o . T odo h o m e m d e v e s o f r e r e m o r r e r ; m a s p a r a q u e m se to rn a vas de satanás, a vitória definitiva sôbre o demônio: Cristo
m e m b ro v iv o d e C ris to , êaae s o frim e n to e e s s a m o r te re v e s te m u m v a lo r c o -re - te ria descido aos infernos para im por sua soberania aos an­
d e n to r, E is a r a z ã o o b je tiv a p e la q u a l, co m o p o d em o s c o n s ta ta r , to d o s os
s a n to s p e d ira m s o frim e n to . N ão é d e se jo m ó rb id o . O que a o s olhos d a ra z ã o jos rebeldes.
n a tu r a l p a re c e p a ix ã o , a p a r e c e corno s u p r a - r a z o á v e l à lu z d o m is té rio d a
re d e n ç ã o . A ssim , ta l m e m b ro do C o rp o m ís tic o , s u p o r ta r á se m d e s fa le c e r, as Em todo o caso, o que não se pode adiantar é que no
tr e v a s d a n o ite e s c u ra , e do a b a n d o n o a p a r e n t e de D e u s, e n q u a n to D e u s n a
s u a p ro v id e n c ia , p e r m itir á e s ta t o r t u r a p a r a c o m p e n s a r o p e c a d o d e um o u tro inferno se tenha travado um derradeiro com bate, entre o
h o m e m q u e o m a l s e p a ro u v e r d a d e ir a m e n te d êle, e o b te r seu r e s g a te ” . C ita d o dem ônio e a m orte de um lado, e Cristo do outro. Como
p o r E lis a b e th de M irib e l em seu liv r o : E d ith S te in , P a r is , E d . d u Seuil 1954.
se o Calvário não fôra suficiente! Não. Desde a cruz, Cristo
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detém as chaves da m orte e do inferno" (Apoc 1 18). Mas
era de certo modo normal, que a alma desencarnada de pai a r um Jugar. . . Jesus nosso Senhor, que foi entregue por
Jesus fosse ter a m orada onde iam p arar lôdas as almas nossos pecados e ressurgiu para nossa justificação” (Rom
justas, para ter contato pessoal com elas, e que ao terceiro 4,25). S. Paulo jam ais dissociou paixão e ressurreição; ao
dia, unindo-se de nôvo ao corpo, levasse consigo aquelas contrário, um m istério evoca o outro, não só quanto aos efei­
alm as benditas, libertando-as do cativeiro do limbo, onde as tos salutíferos, mas quanto ao próprio C risto: a glorificação
detinha satanas, em conseqüência do pecado. "Subindo às era o fim e a paixão o meio. "Não era necessário que o
alturas levou cativo o cativeiro" (E f 4,8). Assim os poderes Cristo sofresse estas coisas e entrasse assim em sua glória5"
(Lc 24,26). ’
s i ; f s n , , r ados a "do,,r£,r ° diame ^ Aquela "h o ra” que Cristo a um tem po desejava e temia,
era constituída pela Paixão e Ressurreição conjuntam ente,
e a glória que Cristo pedia ao Pai (Jo 17,1) implicava sem
A ressurreição de Cristo dúvida a glorificação da m o rte : "Eu, quando fôr levantado
da terra, atrairei a mim todos os hom ens. Dizia isto para
Logo após o ofertório, a liturgia da m issa reza: "Re­ indicar de que m orte havia de m o rrer" (Jo 12,33). Mas
cebe!, Trindade santa, esta oblação, que vos ofèrecemos im plicava tam bém a glorificação celeste da Ascensão. “Eu
glorifiquei-te sôbre a terra, levando a cabo a obra que me
Cristo ^PaiXa°; ressu rre'Ção e ascensão de Jesus
Nosso S e n h o r... E logo após a elevação: "Senhor, deste a realizar. Agora tu, Pai, glorifica-me junto a ti mes­
nai-v5V°!iSOS servos'Te ° vosso povo santo, recordando a feliz mo com a glória que eu tive junto a ti antes que o mundo
paixao do mesmo Jesus Cristo, vosso Filho e Senhor nosso existisse” (Jo 17,4-5).
bem como a sua Ressurreição de entre os m ortos e a sua O evangelho nos descreve o fim da vida de Cristo,
gloriosa Ascensão aos céus, oferecem os. . . " como um m istério pascal; ora "páscoa” significa "passagem ” :
Fieis aos ensinam entos da Liturgia, os teólogos contem ­ assim Cristo "passou” da te rra ao Pai pela Paixão. Ressur­
porâneos insistem sôbre o encadeam ento da paixão do Senhor reição e Ascensão: são tres m om entos de um só movimento
com a Ressurreição e a Ascensão. Longe de se justapor, ês- de retorno ao Pai. "Antes da festa da páscoa, sabendo Jesus
ses tres m istérios se coordenam como diferentes m om entos que chegara a sua hora de p assar dêste m undo ao Pai, havendo
de um so processo de salvação33. M orrendo na cruz Jesus am ado os seus que estavam no m undo, amou-os até o fim ”
expia nossos pecados; ressuscitando, êle nos justifica, in- (Jo 13,1). "Pai, eu vou para ti” (Jo 17,11).
tundm do-nos vida divina; subindo aos céus, êlè vai nos pre- N esta perspectiva, a R essurreição aparece qual com­
plem ento da m orte e realização plena da prom essa messiâni­
ca. Nós vos anunciamos o cum prim ento da prom essa fei­
ta a nossos pais, a qual Deus cum priu em nós, seus filhos,
a n ta g O n ic a s , a m b a s f a ls a s p o rq u ê u n ila t“ l ” s Sc aS e s P i r i t u a IW ades ressuscitando Jesus" (At 13,32).
d a p u r a C ru z , d e n u ro s o frim m fn T ? ,u m la d o - u m a e s p ir itu a lid a d e
c a s c o is a s s ó tiv e s se m v a lo r nela ’ s u a ” 10 SS r) s t ° f 0 r a a p e n a s 0 C ru c ific a d o Temos pois uma só linha ascendente, ou seja um a só
m a is d o lo ro s a s ta n to m a £ ° v a C a s ““ faZ er S° £l'el' : q u a n t °
p u r a R e s s u r r e iç ã o n e e a d o r a rln a o u tr° a d o ' u m a e s p ir itu a lid a d e de viagem da te rra ao Pai, com três etapas in terd ep en d en tes: a
p r e te x to q u e o i i s t o lá p a d e c e u n n r nOs-’
re iç ã o , g o z a n d o em p le n a 'lib e r d a d e X
tq U a lq u er a ‘ ° de m o rtific a ç ã o , sob
a p e n a s p a r tic ip a r d a R e s s u r-
m o ite desabrocha em ressurreição, e esta leva à Ascensão.
q u e p a r tic ip a r c o n ju n ta m e n te d a m n r t p p à c ria d o s * . Com o se n ã o tiv é s se m o s São três m istérios fundam entais da fé c r is tã 34.
p rim e ir o com êle L ( 6 d a r e ? s p ^ e i ç a o do S e n h o r, m o rre n d o
co m êle p a r a ^ 0^ 0^ TR om ' pade< ;am ps
Encarnando-se, o Filho assum iu um a tríplice servidão:
p a c lf ic a m e n te d e tõ d a a c r ia c ã n ( R ° m 8 ,1 7 ) - 0 s a n to pode g o z a r
filh o s d e D eu s, m o rre n d o m i t i c a m e n t e com ã r i s t o ' a llb e rd a d e s ‘o rio s a do3 34 N ã o nos c a b e p r o v a r a r e a lid a d e d a r e s s u r r e i ç ã o : é
g é tic a . ta re fa da apolo-
V e r por ex em plo , J e a n G uit to n, Jésus. P a r i s . G r a s s e i . 1956.
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a m urte^o pecado sua causa, o jugo da loa do Moisés. Ressus­ prim ento da prom essa feita a nossos pais, a qual Deus cum­
citado, ele escapa a servidão da m orte, “ela não tem piais p riu em nós seus filhos, ressuscitando Jesus, segundo está
domínio sôbre ele” (Rom 6,9) pois ele escapa à condição car­ escrito no salmo segundo: "Tu és m eu filho, gerei-te hoje”.
nal, logo à m ortalidade. Liberta-se do pecado porque "m or­ "Pois o ressuscitou dos m ortos para não to rn ar à corrupção”
rendo, êlc m orreu para o pecado, um a vez para sem p re” (At 13,32-34). Das epístolas podem os citar, entre m uitos ou­
(Rom 6,10). Alforria-se enfim do jugo da lei mosaica, pois tros, os seguintes passos: "(C risto) foi crucificado cm fra­
a lei "dom ina o hom em todo o tem po que êste está vivo” queza, mas vive pelo poder de Deus” (2Cor 13,4). "E sta fôrça,
(Rom 7,1). M orrendo, está livre. "Príncipe da liberdade" êle (Deus) exerceu-a em Cristo, ressuscitando-o dos mortos
qualifica belam ente Louis Lallem ant a Cristo ressuscitado 35; e sentando-o à sua direita nos c é u s . .. ” (E f 1,20). "Cristo
êle vive de um a vida im ortal, divina. "A m orte foi tragada m orreu um a vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para
pela v itó ria” (IC or 15,55). A aceitação p o r Cristo em obe­ vos levar a Deus. M orreu na carne, m as tornou à vida pelo
diência ao Pai, da condição de hom em pecador, com a m orte E sp írito ” (!P dr3,18). Êste mesm o Espírito Santo que des­
como conseqüência, representou um suprem o esforço ao en­ cera sôbre a Virgem M aria a fim de que nela o Verbo se en­
contro de Deus, logo à suprem a negação do pecado. "Êle carnasse (L cl,35) desceu sôbre o corpo de Cristo adorm eci­
se m anifestou para destru ir o pecado pelo sacrifício de si do no sepulcro a fim de acordá-lo, unindo-o de nôvo à alma
m esm o” (Hebr'9,26).
p ara que êle vivesse não já a vida com um aos outros homens,
Encontram os na Escritura, textos aparentem ente con­ senão um a vida espiritualizada: "O prim eiro Adão foi feito
traditó rio s sôbre o autor da ressurreição: ora é Cristo que alma vivente; o últim o Adão, espírito vivificante" (IC or 15,45).
ressuscita a si mesmo, ora é Deus que o ressuscita. Porém, Desde o prim eiro instante da encarnação, como vimos
é um a simples aparência. Com efeito, considerando a pes­ a alm a de Cristo gozou de Deus contem plado face a face
soa divina à qual está unido um corpo hum ano, podemos e possuído perfeitam ente. Só p o r m ilagre esta vida gloriosa
e devemos dizer que êle ressuscita a si mesmo. "Por isto não repercutia sôbre o corpo, p ara que Jesus pudesse so­
m eu Pai me ama, porque eu dou m inha alm a p ara de nôvo frer a paixão. Acabada esta, cessou o milagre e a alma, reu­
tomá-la. Ninguém m a tira, sou eu que a dou por m im mesmo. nindo-se novam ente ao corpo, com unicou a êste a sua glória.
Tenho poder para dá-la e poder p ara to rn a r a tom á-la” (Jo Qual seja êste corpo espiritualizado, podem os vislum brar,
10,17-18). Mas se consideram os o corpo de Cristo como cria­ tom ando como ponto de p artid a o que S. Paulo nos revela
tu ra hum ana que é, devemos dizer que, por si só, êle não sôbre a ressurreição dos m ortos, que é um efeito da ressur­
tinha o poder dc se reunir à sua alma; p o rtan to foi Deus reição de Cristo: “Cristo ressuscitou dos m ortos como pri-
que o ressuscitou. Assim se expressa o mais das vêzes a mícias dos que m orrem . Porque assim como por um homem
Sagrada E scritu ra. S. Pedro por exemplo, no seu prim eiro veio a m orte, tam bém por um homem veio a ressurreição
discurso aos jerosolim itanos, ensinou que Davi, como profeta dos m o rto s” (IC or 15,20-21). Ora, para nos fazer entender
que era, anteviu Cristo "e falou da R essurreição de Cristo, que a ressurreição geral, Paulo recorre a um a com paração: a da
não seria abandonado no hades, nem sua carne veria a cor­ sem ente que, lançada na terra, m orre para que dela brote
rupção. Ê ste Jesus, Deus o re s s u s c ito u ..." (At 2,31-32). E um a vida nova. Assim nosso corpo m orto é enterrado: "Se­
no segundo discurso, diz: "M atastes o príncipe da vida,
meia-se em corrupção e ressuscita-se em incorrupção. Se­
que Deus ressuscitou dos m ortos. . . " (At 3,15). S. Paulo em
meia-se em ignom ínia e ressuscita-se em glória. Semeia-se
Antioquia da Pisídia pregou: “Nós vos anunciam os o cum-
em fraqueza e ressuscita-se em vigor. Semeia-se um corpo
35 L a v ie e t la d o c trin e s p iritu e lle d u P è re L o u is L a lle m a n t. P a r is 1694. anim al e ressuscita-se um corpo espiritual. Pois se há um
N o u v e lle e d itio n . D e se lé e de B ro m v e r. 1961, p. 286.
corpo animal, tam bém o há espiritual" (IC or 15,42-44).
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Dessas propriedades, enum eradas por S. Paulo, a mais
1” a Madalena, perto do sepulcro: "Ressuscitado Jesus
im portante é a últim a, fundam ento das demais.
na m anhã do prim eiro dia da semana, apareceu prim eiro a
O corpo ressuscitado de Cristo, não é por certo, um
M aria M adalena de quem expulsara sete dem ônios” (Mc
espírito. Aos apóstolos que o tom am p o r um fantasm a, 61,9; Jo 20,1);
Jesus contesta: "Apalpai-me e vêde, pois um espírito não
2" às santas m ulheres de volta do sepulcro. Tendo
tem carne nem ossos como vêdes que eu tenho” (Lc 24,39). recebido a m ensagem dos anjos, "partiram elas pressurosas
Todavia, êsse corpo não obedecia a certas leis da m a­ do m onum ento, cheias de tem or c de grande alegria, cor­
téria, tanto assim que podia en tra r num a sala, tôdas as rendo a comunicá-lo aos discípulos. Jesus saiu ao encon­
portas estando fechadas (Jo 20,19); aparecia e desaparecia tro delas, dizendo-lhes: Salve” (Mt 28,8-9);
à vontade (Lc 24,31). Tsso significa que o corpo ressuscita­ 3" a S. Pedro: "apareceu a Sirnão" (Lc 24,34);
do de Cristo, estava esp iritu alizad o 3Í>; era, em conseqüên- 4" aos dois discípulos de Em aús (Lc 24,13-35; Mc 16,12);
cia incorruptível e impassível — não podia mais sofrer nem 5" aos Apóstolos, ausente Tomé (Jo 20,19);
m orrer. "Cristo ressuscitado dos m ortos, já não m o rre” 6" aos mesmos, presente Tomé (Jo 20,26);
(Rom 6,9). A glória da alma transbordava sôbre o corpo,
7° a sete discípulos, à beira do lago de Tiberíades (Jo
como aconteceu quando da Transfiguração. Enfim a for­ 2U -14); .
ça ou vigor, dava-lhe especial agilidade p ara se locomover.
8” aos onze, num a m ontanha da Galiléia (M t 28,16);
Quem p erscru ta as E scrituras à cata de dados sôbre a
9? aos onze, em Jerusalém , estando êles à m esa (Mc
vida ressuscitada de Jesus im pressiona-se, sem dúvida, com
16,14). Esta aparição term inou com a Ascensão.
o núm ero relativam ente escasso das aparições e a pouca
S. Paulo acrescenta m ais duas, às nove aparições nar­
duração d e la s 37. Com efeito os 4 evangelhos registam ape­
radas pelos evangelhos: “Depois apareceu a m ais de qui­
nas nove aparições:
nhentos irm ãos de um a vez, dos quais m uitos ainda vivem,
e alguns m orreram . Depois apareceu a Tiago” (IC or 15,6-7).
36 V á rio s te ó lo g o s de v a lo r p e n sa m que e n t r a r e s a i r d u m a s a la . com Cada aparição era breve — ao menos a julgar pelos
a s p o r ta s f e c h a d a s , e x ig ia um m ila g re e sp e c ia l, logo n ã o s e r ia p ro p rie d a d e do
c o rp o g lo rio so . A e s p ir itu a líz a ç ã o c o n s is tir ía n a p e r f e ita d o c ilid a d e do c o rp o relatos que chegaram até nós. Jesus dava-se a conhecer,
em re la ç ã o à a lm a , e d a a lm a em re la ç ã o ao E s p ír i to d iv in o . N osso corpo,
p o r s u a c o n d iç ã o m a te r ia l e a s aeq tielas d a q u e d a o rig in a l, c e r c e ia a lib e rd a d e m inistrava alguns ensinam entos, form ulava ordens, fazia
d a a lm a . E n q u a n to o c o rp o re s s u s c ita d o , d e s e m b a r a ç a d o d e s s a s p e ia s, é p e rfe ito
in s tr u m e n to d a a l m a g lo rific a d a .
prom essas e. . . desaparecia.
S e r ia e rrô n e o c o n c e b e r a e s p ir itu a líz a ç ã o do c o rp o g lo rio so com o c e s s a ç ã o Talvez o motivo de tal procedim ento da parte do Senhor,
d a s v id a s s e n s itiv a e a f e tiv a , p e rm a n e c e n d o a p e n a s a s v id a s in te le c tiv a e
v o litiv a . P e lo c o n tr á r io , o c o rp o g lo rio so te m u m a s e n s ib ilid a d e e u m a a f e li- tenha sido o seguinte: urgia, antes de tudo, provar a reali­
v id a d e a p u r a d ís s im a s , fo n te de gô zo m u ito In te n so , e m b o ra n ã o c o n trá rio à
r a z ã o e à g r a ç a . F o i ta lv e z p a r a nos f a z e r e n te n d e r isso , q u e C ris to êle m e sm o
dade da ressurreição, para que os discípulos pudessem
c o m p a ro u o R ein o d o s c éu s a um fe s tim . “ D ig o -v o s que m u ito s v irã o do ser testem unhas do m ilagre (At 1,8). E ra pois necessária
le v a n te e d o p o e n te , to m a r p a r te no f e s tim , com A b ra ã o , I s a a c e J a c ó , no
R e in o do s c é u s ” (M t 8 .2 ). “O R ein o d o s c éu s é c o m o u m re i q u e p re p a ro u a presença do ressuscitado. Donde as aparições, com aquê-
u m fe s tim de n ú p c ia s p a r a s e u filh o ” (M t 22,2; c f. A poç 19,9: “ F e liz e s os les sinais sensíveis que Cristo m ultiplicava (At 1,3): fazia-se
c o n v id a d o s à s n ú p c ia s do C o r d e i r o . . . ” ). “ D o r a v a n te n ã o b e b e re i m a is d e s te
p ro d u to d a v in h a , a té o d ia em q u e b e b e re i c o n v o sc o v in h o nôvo. no R ein o de tocar e até apalpar, com ia diante dêles etc.
m e u P a i ” (M t 2 6 ,2 9 ).
• O gô zo do c o rp o f a z p a r te in te g r a n te d a fe lic id a d e c e le s tia l. D e fa to ,
De outro lado', não queria conviver com os seus como
o c r is tia n is m o n ã o é u m e s p ir itu a lis m o d e s e n c a r n a d o , co m o o p la to n is m o ou outrora, para que se persuadissem de que a ressurreição
o m a n iq u e ís m o . P a r a êle a s e n s ib ilid a d e n ã o é in tr in s e c a m e n te m á ; e la é
em n ó s p e c a d o re s , d e s o r ie n ta d a , p o r isso d e v e m o s m o r t if ic á - la ; m a s u m a vez não marcava o recom eçar da vida de antànho, logo um a vol-
p u r if ic a d a p e la g r a ç a , e la é fo n te de g ô zo líc ito , q u e rid o p o r D e u s. D onde o
a s c e tis m o c r is tã o v is a n ã o j á a d e s tr u iç ã o , m a s a p u rif ic a ç ã o .
37 T o d a v ia d e v e m o s no s p re c a v e r c o n tr a q u a lq u e r o p o s iç ã o e x a g e ra d a , d ia s e fa la n d o -lh e s d a s c o is a s r e f e r e n te s a o R eino de D e u s ” (A t 1 ,1 3 ). "D eus
e sq u e c e n d o o te x to do s A to s : “ a ê le s (o s A p ó s to lo s ) d e p o is d a s u a P a ix ã o re s s u s c ito u -o d o s m o rto s, e d u r a n te m u ito s d ia s êle a p a r e c e u a o s q u e h a v ia m
( C r is to ) se a p re s e n to u v iv o , em m u ita s p ro v a s , a p a r e c e n d o -lh e s d u r a n te q u a r e n ta s u b id o com êle d a G a lilé ia a J e r u s a lé m . Os q u a is s ã o a g o r a te s te m u n h a s
p e ra n te o povo” (A t 1 3 ,3 0 -3 1 ).

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Ia ao pasmado, mas uma nova ordem de coisas, o início dos êle nos abriu, como cam inho nôvo e vivo através do véu,
"últim os d ia s” dom inados pela esperança na segunda vinda isto é de sua carne. . ." (10,19-20). Sua carne im olada e glo-
do Senhor, a gloriosa Parusia. "À vista dêles foi elevado, rificada. No corpo que sofreu a paixão, Cristo ressuscitado
e um a nuvem ocultou-o a seus olhos. E estando com os conservou as cicatrizes, para nos fazer lem brar quanto êle
olhos fitos no céu, enquanto êle parLia, eis que dois varões nos am ou e para m ostrá-las ao Pai, como intercessão por nós.
com vestes brancas puseram -se diante dêles e lhes disse­ A cruz, a t é e n tã o in s tr u m e n to d e su p lício , se to r n a d o ­
ram : Varões galileus, por que estais olhando p ara o céu? r a v a n t e L ro fé u d e g l ó r i a .
Èsse Jesus, que de entre vós foi levado ao céu, virá assim S. Jerônim o — seguido por alguns autores — parece
como o vistes ir p ara o céu" (At 1,9-11). "Quando eu ti­ adm itir dois m om entos no m istério da Ascensão, invisível
ver ido e vos tiver preparado o lugar, de nôvo voltarei e um, visível o outro. O prim eiro seria urn triunfo celeste
vos tom arei comigo" (Jo l4 ,3 ). de Cristo, logo após a ressurreição; exaltação invisível mas
Falando aos discípulos, Jesus ressuscitado considera a real que o faz en tra r na glória à dextra do Pai. Assim en­
sua presença sensível en tre êles como algo passado, já tenderiam os m elhor a ordem de Jesus a Maria M adalena:
superado, a ser substituído pela presença invisível e pelo "Vai a meus irm ãos e dize-lhes: eu subo para meu Pai e vos­
dom do Espírito Santo. "É o que vos dizia, estando ainda so Pai, para m eu-D eus e vosso Deus” (Jo 20,17). Se Jesus
convosco” (L c 24,44). "Eis que eu estou convosco todos se referisse à ascensão visível que teve lugar 40 dias depois,
os dias até a consum ação do m u n d o ” (M t28,20). "Con­
p o r que encarregar M adalena de anunciá-la aos apóstolos,
vém a vós que eu me vá, porque se eu não me fôr, não virá
quando êle devia m ostrar-se aos m esm os apóstolos na tar­
a vós o Paráclito; m as se m e fôr, vo-lo enviarei” (Jo 16,7).
de daquele mesm o dia? (Jo 20,19).
De volta junto ao Pai, após o triunfo invisível do dia
de Páscoa. Jesus se to rn a presente a seus discípulos durante
A Ascensão
40 dias, dando-lhes de experim entar pelos sentidos, a reali­
dade de seu triunfo sôbre a m orte, dando-lhes tam bém en­
A epístola aos hebreus afirm a com insistência, que a en­ sinam entos e poderes diversos — "falando-lhes das coisas
tra d a gloriosa de Cristo no céu é p a rte essencial do sacrifício
referentes ao Reino de D eus” (At 1,3). Ao cabo, deixa de­
da Cruz, pois é no céu que o sacrifício se consuma, sendo
finitivam ente de estar presente ao mundo, de m aneira sen­
aceito por Deus.
sível, até a Parusia. E dessa Ascensão definitiva dá aos
Na antiga lei, como vimos, o sumo sacerdote judaico,
um a vez por ano, após haver im olado anim ais naquela p a r­ seus sinais sensíveis, como os havia dado de sua R essurrei­
te do santuário denom inada "S an to ”, penetrava, através do ção, para lhes firm ar a fé, aguçar a esperança, abrasar a
véu, no "Santo dos Santos", levando consigo o sangue das caridade. Foi a Ascensão visível, que S. Marcos relatou
vítim as, p ara cum prir o rito da expiação(10,4); pelo que (Mc 16,19) e S. Lucas por duas vêzes narrou (Lc 24,50-51;
o sacrifício antigo só podia ser a figura do verdadeiro sa­ At 1,9-12). Jesus levou os seus até determ inado ponto do
crifício, que foi a im olação de Cristo, vertendo seu san­ m onte das Oliveiras, perto de Betânia, e “à vista dêles foi
gue no Calvário (9,9). C risto "não entrou num santuário elevado, e um a nuvem ocultou-o a seus olhos”.
feito por mão de homem, figura do verdadeiro, porém no Segundo S. Jerônim o portanto, o m istério da Ascensão
próprio céu, para com parecer agora na presença de Deus com portaria dois aspetos bem distintos; diversos quanlo
a nosso fav o r” (9,24). Donde "tem os, em virtude do san­ ao tem po de ocorrência — um logo após a Páscoa, o outro
gue de Cristo, firm e confiança de e n tra r no santuário que 40 dias mais tarde — e quanto à índole — visível um,

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invisível outro porém am bos m isteriosos, logo am bos sua natureza hum ana, êle possui os bens divinos com uma
objeto de fé. plenitude que nenhum a criatura iguala. Podemos pois di­
Q ualquer que seja o valor da hipótese de S. Jerônim o, zer que tam bém como homem, Cristo está sentado à di-
um a coisa está fora de dúvida: tão logo subiu ao céu, Jesus j cita de seu Pai, exercendo um poder de rei sôbre as demais

sentou-se a mão direita de Deus Pai todo poderoso. Di-lo o criaturas. A exaltação de Jesus, pela ressurreição e a ascen­
Credo, e antes dêste di-lo com insistência a E scritura. Só são, o estabelece como "K yrios” ou Senhor de tôdas as coisas.
a epístola aos hebreus registra várias vêzes o fato: "As­ "Vereis o Filho do homem sentado à direita do poder e
sentou-se à direita da M ajestade, nas alturas" (1,3). "A vir sôbre as nuvens do céu" (Mt 26,64). Os judeus tradu­
qual dos anjos disse (Deus) jam ais: senta-te à m inha di­ ziam o nome próprio de Deus "Javé”, pelo grego "K yrios”;
r e it a ... (1,13). "Temos um pontífice que está sentado à d ar êste nome a Jesus equivalia, em conseqüência, a pro­
direita do trono da M ajestade, nos céus"(8,l). “Tendo ofe­ clamá-lo Deus. Assim íêz S. Pedro desde sua prim eira pre­
recido um único sacrifício pelos pecados, para sem pre se gação: "Tenha pois, por certo, tôda a casa de Israel, que
sentou à direita de D eus” (10,20). "Jesus o qual, em vis­ Deus fêz Senhor o Cristo, êste Jesus que vós crucificastes”
ta do gôzo que se lhe oferecia, suportou a cruz, sem fazer (At 2,36). E S. Paulo na epístola aos filipenses entoa um
caso da ignomínia, e está sentado à direita do trono de hino à realeza de Cristo, fruto e recom pensa da hum ildade
D eus” (12,2). Aos colossenses escreve S. Paulo: "Se pois, e obediência "...h u m ilh o u -se, feito obediente até a m orte
fôstes ressuscitados com Cristo, buscai as coisas do alto, de cruz. Pelo que tam bém Deus o exaltou e lhe outorgou
onde Cristo está sentado à d ireita de Deus” (Col 3,1). E o nom e que é sôbre todo o nome. Para que, ao nome de
S. Pedro, na sua prim eira epístola ensina: " . . . Jesus Cristo Jesus, se dobre todo o joelho de quanto há nos céus, na ter­
que subiu ao céu e que está sentado à direita de Deus” ra e nos abism os; e que tôda língua confesse que Jesus
( lP d r 3,22). Quanto ao diácono Estêvão, o p ro to m ártir, é Senhor p a ra glória de Deus Pai" (Flp 2,8-11).
êle viu “Jesus em pé, à direita de D eus” (At 7,55). Palavras Senhor dos céus, logo dos anjos que os povoam e gover­
de Cristo no A pocalipse: "Ao que vencer, darei de sen tar nam. Benfazejos uns, m aléficos outros, Cristo os domina
comigo em meu trono, assim como eu tam bém venci, e todos. O prim eiro capítulo da epístola aos hebreus é todo
me sentei com meu Pai no seu trono" (Apoc3,21). E o inteiro consagrado a m o strar a superioridade de Cristo
vidente divisou o Cordeiro de pé, "no meio do tro n o ” de sôbre os anjos bons. Quanto aos m aus — os demônios —
Deus (Apoc 5,6). Cristo triunfou definitivam ente dêles, por sua m orte, e, na
São m etáforas, é claro. Deus é puro espírito; não tem sua ascensão, levou — qual general rom ano — os inimigos
trono e tam pouco direita ou esquerda. Seria antropom ór- vencidos, acorrentados ao seu carro de triunfo. "Despo­
fico dar aos textos bíblicos sôbre a entrada de Jesus no jando os principados e as potestades, os expôs püblicamen-
céu, um sentido espacial. te à vergonha, arrastando-os em cortejo triunfal” (Col 2,15).
Mas que quer Deus nos ensinar por essas m etáfo­ E assim o inferno, ou como diz S. Paulo, os “abism os”, do­
ras? Que se esconde sob o véu das imagens? b raram os joelhos diante do Redentor.
E sta r sentado é descansar, e Cristo, no céu, cum prida Senhor do m undo tam bém , porque por sua m orte êle
sua m issão de Salvador, descansa na beatitucle do Pai, Sen­ apagou o pecado que dividia os homens para coaduná-los
tar-se no trono é possuir o poder do rei; o Filho, sentado todos num só ‘Corpo místico. Judeus e gentios, outrora
à direita do trono do Pai, reina com êle, com partilha seu inimigos, foram reconciliados no sangue de Cristo. "Lem­
poder, sua glória e sua bem -aventurança. Isso vale estri­ brai-vos de que, por um tempo, vós, gentios segundo a car­
tam ente de Cristo segundo sua natureza divina. Segundo ne, cham ados incircuncisos por causa da cham ada circunci-

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Mt stcnu í/t Cvixlo

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sao, que se laz na carne, eslivesLes enLão sem Crislo, afas­
tados da sociedade de Israel, estranhos à aliança da prom es­ Dessa realeza participam os fiéis de Cristo: " . . . e de
sa, sem esperança e sem Deus no mundo; ao passo que ago­ nós fêz (Cristo) um reino e sacerdotes de Deus seu Pai"
ra, em Cristo Jesus, vós que por um tem po estáveis longe, (1,6). ". .Dêles fizestes um reino e sacerdotes para nos­
tostes aproxim ados pelo sangue de Cristo; pois êle é nos­ so Deus; e êles reinarão sôbre a te rra ” (5,10). "Serão sacer­
sa paz, e fêz dos dois um, derrubando o m uro de separação, dotes de Deus e de Cristo. Com êle reinarão durante mil
a inimizade, em sua carne, anulando a lei dos m andam entos anos” (20,6). “Farão guerra ao Cordeiro, e o Cordeiro os
form ulada em decretos, para fazer, em si mesmo, dos dois vencerá, porque é o Senhor dos senhores e o Rei dos reis. Se­
um só hom em nôvo, estabelecida a paz, e reconciliando am ­ rão tam bém vencedores os que o acom panham , chamados,
bos num só corpo com Deus, pela cruz, m atando em si escolhidos e fiéis" (17,14; cf. 2,26; 3,21).“ . . .Êles reinarão pe­
mesmo a inim izade” (E f 2,11-16; cf. Col 1,19-22). Na cruz los séculos dos séculos" (22,5).
Jesus está de mãos estendidas, como para abraçar os povos Pio XI na Encíclica Quas primas, sôbre a realeza de
inimigos, estreitando-os sôbre o seu Coração. 0 m undo Cristo m ostra que esta dignidade assenta sôbre a união hi-
inteiro está suspenso a Cristo ressuscitado. Tudo foi cria­ postática, como fundam ento derradeiro. "É m anifesto que
do "por êle e p ara êle” (Col 1,16). "Subindo às alturas, o nome e o poder de rei, no sentido próprio da palavra,
levou cativo o cativeiro..'. Êsse " su b ir” o que significa com petem a Cristo em sua hum anidade, porque só de Cristo
senão que prim eiro êle desceu a estas partes inferiores enquanto hom em é que se pode dizer: do Pai recebeu "po­
da terra? O mesmo que desceu foi o mesmo que subiu der, honra e realeza” (Dan 7,13-14).
sôbre todos os céus, p ara encher tudo" (E f 4,8-10). Enquanto Verbo consubstanciado ao Pai, não pode
deixar de lhe ser em tudo igual e, portanto, de ter, como
êle, a suprem a e absoluta soberania e domínio de tôdas
A realeza de Cristo as criaturas 38.
Por sua vez, a união hipostática exige a plenitude de gra­
Senhor da terra, dos céus e dos infernos, Cristo é ver­ ça, que coloca Cristo-Homem no ápice da ordem sobrenatural,
dadeiro Rei. Não só como Deus, o que é evidente, senão aparelhando-o a exercer a prim azia efetiva nesta ordem. En­
tam bém como homem. Sentado à d ireita do trono do Pai fim, constituído Cabeça do Corpo místico, Jesus, extra­
eterno, êle lhe com partilha a realeza. Isso vale não só de vasando a plenitude de graça, governa os fiéis e leva-os ao
Cristo glorioso, mas desde a Encarnação, êle é chefe e pas­ fim comum.
to r que governa as criaturas e as encam inha a fim pre-esta-
belecido pelo Pai. Cristo é nosso rei, não só por direito de natureza mas
a título de redentor, pois nos resgatou com seu sangue
O Apocalipse canta, em tom triunfal, a realeza do di­
preciosíssimo, conquistou-nos sôbre o pecado e o inferno.
vino Ressuscitado. "Jesus Cristo, a testem unha fiel, o pri­
"Fostes com prados e pagos" (IC or 6,20).
m ogênito dos m ortos, o príncipe dos reis da terra" (1,5).
Pio XI não experim enta qualquer dificuldade em mos­
"Já chegou o reino de nosso Deus e de seu Cristo sôbre o
tra r que a dignidade real de Cristo encerra os podêres legis­
mundo, e êle reinará pelos séculos dos séculos” (11,15;
cf. 19,6). "Agora chega a salvação, o poder, o reino de lativo, executivo e judiciário. Com efeito os Evangelhos nos
nosso Deus e a autoridade de seu C r is to ...” (12,10). "Êle m ostram Jesus no ato de prom ulgar leis; êle mesmo decla­
(Cristo) traz em sua cabeça m uitos d ia d e m a s ..." (19,12). rou que o Pai lhe dera o poder de julgar; enfim "a Cristo
"Sôbre seu m anto e sôbre sua coxa tem escrito o seu nome: com pete o poder executivo, porquanto devem todos su-
Rei dos reis, Senhor dos senhores" (19,16).
38 lánc. cil n. JI.

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jcim r-sc ao seu domínio, e quem lô r rebelde não poderá evi- O Juiz. universal
íar a condenação e os suplícios que Jesus prenunciou".
■ Realeza sobretudo espiritual. Em bora lhe com peta so­ O poder de Cristo em bora universal (" 0 Pai am a o Filho
berania sôbre as coisas tem porais tôdas ("Todo o poder me e em sua mão pôs tôdas as coisas” Jo 3,35 ) 42 se manifesta
Ioi dado no céu e na terra" Ml 28,18). Jesus absteve-se de sobretudo de duas m aneiras: antes e depois da Parusia'41.
exercer êsse domínio Lemporal. "Meu reino não é dêste m un­ Antes da Parusia, visa aeima de tudo salvar a humanidade de
do , declarou êle a Pilatos (Jo 18,36). E àquele que pedia: quem êle foi constituído cabeça (Col 1,15-16) e, com o ho­
Mestre, dize a meu irm ão que rep arta comigo a herança”, mem levar o universo a seu fim. Mas é um a época de prepa­
Jesus contestou: "Mas homem, quem me constituiu juiz ração, aguardando a consum ação definitiva pela Parusia, que
ou p artid o r entre vós?” (Lc 12,13). "Desprezou a posse e sela a perfeição do universo.
regim ento das coisas hum anas, que deixou — e deixa ainda — O últim o artigo do Credo que se refere a Cristo, con­
ao arb ítrio e domínio dos hom ens. Verdade graciosam enle fessa-o como juiz dos vivos e dos m ortos. Êle mesmo
expressa no conhecido verso: Não arreb ata diademas te r­ proclam ara: "o Pai não julga ninguém, entregou todo o juízo
restres, que distribui coroas celestes" -w. Êle quer reinar ao Filho" (Jo 5,22). A catequese apostólica insistia sôbre
sôbre as inteligências pela fé e-sôbre as vontades pelo amor. essa judicatura. S. Pedro, por exemplo, assim pregou: Deus
O Reino que êle veio estabelecer sôbre a terra, é um "reino ressuscitou a Cristo e manifestou-o "a testem unhas de an­
de santidade c de graça, um reino de justiça, de am or e de tem ão escolhidas e ordenou-nos pregar ao povo e testem unhar
paz", como belam ente canta o Prefácio da Missa de Cristo Rei. que por Deus êle foi instituído juiz dos vivos e dos m or­
Reinado espiritual que, se aceito pelos homens, traria tos” 44.
im ensos benefícios à m esm a ordem tem poral, ■pondera Pio S. Paulo declarou aos atenienses: "não levando em conta
XI, pois os súditos veriam nos seus governantes outros os tem pos da ignorância, Deus intim a agora em tôda a parte
tantos representantes de Cristo, e os governantes teriam "a os homens, a que todos se arrependam , porque estabeleceu
persuasão de que regem m enos no próprio nome do que um dia, em que julgará a te rra com justiça, por meio de um
no nome e lugar do Rei divino”. Em conseqüência "é mani- hom em a quem constituiu juiz, acreditando-o perante todos
lesto que usariam do seu poder com tôda a prudência, com pela sua ressurreição de entre os m o rto s” (At 17,30-31).
toda a sabedoria possíveis" 3940. Donde a paz e a concórdia no A Igreja propõe à nossa fé a segunda vinda de Cristo em
seio das nações. "Se o reino de Cristo abarcara de fato, sua glória, a ressurreição de todos os m ortos •—■ prim eira
como de direito abarca, tôdas as nações, por que deveriamos m anifestação do poder de Cristo — e o juízo universal por
p erd er a esperança dessa paz que à te rra veio trazer o Rei Cristo, com a condenação dos m aus e a recom pensa dos bons,
p acífico ?... Oh! que ventura não poderiam os gozar, se os instaurando assim perfeita justiça no universo e aplacan­
indivíduos, a família, a sociedade se deixassem reger por do enfim nossa sêde inata de justiça, tantas vêzes ludibriada,
C risto ? "41. ■
42 “ C om o o P a i r e s s u s c ita os m o rto s e os dev o lv e à v id a . a ss im o P ilho
d á a v id a a q u e m êle q u e r ” ( J o 5 ,2 1 ).
43 R e s u m in d o , p o d e m o s d is tin g u ir a s s e g u in te s a tiv id a d e s d e C ris to H om em -
R e u s . t r i u n f a n t e nos c éu s. a n te s d a P a r u s i a : 1) ftle a d o r a seu P a i. 2) E n v ia
o E s p ír i to S a n to ( J o 15,26; 1 6 .7 ). 3 ) P r e p a r a u m lu g a r p a r a os s e u s . n a c a s a
39 Ene. c i t. n. 13. O verso filad o 6 tirad o do l l in u li tú r tr i c u das vésperas d o P a i (J o 1 4 ,2 ). 4) A s s is te a s u a I g r e j a (M t 2 8 ,2 0 ), 5) In te rc e d e pelos
da E p ifa m a . h o m e n s ju n to a o P a i. ( J o 1.1 6 -1 7 ; Pvom 8 ,3 4 ; H e b r 7 ,2 5 ; l J o 2 .1 ). A ge com o
4 0 E n e . cit n. 10. m e d ia d o r de tô d a s a s g r a ç a s ( I T im 2 ,5 ), s o b re tu d o nos S a c ra m e n to s .
41 Ene:, r i t . n. 17. C l. lanibém a Em dclicn de I. eiln X I I I litxi iiirxiiicm ilihiis 44 A t 10,40-42. P o r “ v iv o s” é d e s ig n a d a a q u e la f r a ç á o d a h u m a n id a d e que
<1)00. P o n t . n. 33 1. a P a r u s i a e n c o n t r a r á a i n d a em v id a . C f. IT e s s 4,15-17.

7.28 229

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pelo triunfo aparente do mal e o csm agam enlo da virtude.
Todos serão colocados, por Crislo, no lugar que mereceram . Depois da parusia, Crislo reinará como Cabeça da Igreja
De m enor certeza são as m odalidades de lal juízo. S. triunfante, levando os ju sto s à contem plação intuitiva de
M ateus, por exemplo, descreve-o à guisa de um juízo humano Deus, na qual tudo verão como luz e vida, sem qualquer
(Mt 25,31-48); já para S. João, o juízo parece coincidir com a interm ediário. Êle entregará ao Pai suas conquistas ou seja
ressurreição: "Aquêle que escuta m inha palavra e crê na­ seu reino, obra-prim a de sabedoria e amor. O reino de
quele que me enviou, tem a vida eterna e não será julgado, Cristo se identifica ao reino do Pai (Ef 5,5). Assim como
porque passou da m orte à vida" (Jo 5,24). A ressurreição Cristo era todo inteiro penetrado por Deus, assim o Corpo
de certo modo não precede o juízo, mas como que o contém. missão ao Filho é subm issão ao Pai, e, vice-versa, tôda sub­
Há com efeito duas ressurreições: para a vida e para a con­ m issão ao Filho é subm issão ao Pai, e, vice versa, tôda sub­
denação: "Chega a hora em que todos os que estão nos missão ao Pai é subm issão ao Filho.
sepulcros ouvirão a sua voz (do Filho) e os que operaram o A própria natureza m aterial será beneficiada. Ela foi
bem , sairão para a ressurreição da vida, e os que operaram criada para sevir a Deus através do homem. Mas o pecado
o mal para a ressurreição do juízo" (Jo 5,28-29). A vida e a perturbou esta ordenação. Amaldiçoada por Deus, a terra
m orte eternas estão já presentes na fé ou na incredulidade, tornou-se inimiga do hom em (Gên 3,11). Donde um a inquie­
e o juízo final só viria confirm ar a decisão do tem po p re­ tação, um sofrim ento, que repercute sôbre os próprios sêres
sente. inanimados, segundo S. Paulo: "Ê ste m undo criado aguarda
De qualquer modo, devemos crer na vitória final do ansiosam ente a m anifestação dos filhos de Deus; pois as cria­
Senhor, no seu triunfo definitivo sôbre as forças do mal. turas estão sujeitas à vaidade, não por gôsto, mas em razão
"Assim como em Adão todos havemos m orrido, assim tam ­ de quem as sujeita, todavia com esperança; porquanto tam ­
bém em Cristo todos somos vivificados. Porém cada um a bém elas serão libertadas da servidão da corrupção, para
seu tem po; em prim eiro lugar, Cristo; depois os de Cristo participarem da liberdade dos filhos de Deus. Pois sabemos
na sua vinda: depois será o fim, quando êle entregar a Deus que a criação tôda inteira até agora geme e sente as dores
Pai o reino, quando houver reduzido ao nada todo principado, cie p a rto ” (Rom 8,19-22). Regenerado o homem, cabeça do
tôda potestade e todo poder. . . Quando tôdas as coisas lhe universo, tam bém êste será am olierado.
ficarem subm etidas, então o próprio Filho se su jeitará àque­ Como se processará a libertação do m undo m a teria l?46
le que a êle subm eteu tudo, p ara que Deus seja tudo em tô­ Cristo falou em "palingenesia", regeneração, segundo nasci-
das as coisas" (IC or 15,22-29).
Não é que o reino de Cristo deva cessar após a parusia; e s tã o ta m b é m p re s e n te s à re d e n ç ã o s u b je tiv a , co m o m e m b ro s d a d iv in a C ab e ç a
e in s tru m e n to s seu s. D e f a to . e n q u a n to a re d e n ç ã o o b je tiv a se c u m p riu de
não, êste reino é eterno (2Pdr 1,11 ) mas diversas são as u m a fe ita , pelo s a c rif íc io do C h efe, a re d e n ç ã o s u b je tiv a é um p ro c e ss o p ro ­
g re s siv o , q u e se d e s d o b ra a t r a v é s d o s séc u lo s, e n q u a n to h o u v e r h o m e n s a s a lv a r.
m odalidades de sua m anifestação. Como já dissemos, antes P ro c e s so n o q u a l to d o s os h o m e n s s ã o c h a m a d o s a to m a r p a rte , re v iv e n d o p e ss o a l­
da parusia, Cristo enquanto cabeça da Igreja m ilitante visa m e n te a m o rte e a r e s s u rr e iç ã o d o S e n h o r, com o m e m b ro s seu s. e c o la b o ra n d o ,
co m o in s tru m e n to s , à o b ra c o le tiv a d a re g e n e r a ç ã o do m u n d o e d a d iv in íz a ç ã o
realizar a "redenção subjetiva” vencendo o demônio e o pe­ d o s h o m e n s.
32 u m p e n s a m e n to te r r ív e l ê s te : que p odem os f a c i l i t a r a s a lv a ç ã o do
cado, aplicando aos diversos m em bros seus os m éritos da m u n d o , m a s p o d em o s ta m b é m o b s tr u ir o c a m in h o d a g ra ç a , s e rm o s in s tru m e n to s
d e p e rd iç ã o ! Só nos im p e d e de d e s e s p e r a r , a c e r te z a de que a g r a ç a d iv in a
paixão, triunfando da m orte, assegurando a todos seus m em ­ s a b e a b r i r c a m in h o m esm o a tr a v é s de n o sso s p e ca d o s, e C ris to pode s e r v ir-s e
bros vivos, a ressurreição gloriosa, e dando aos réprobos o de n o s s a s d e fic iê n c ia s p a r a r e a liz a r s u a o b r a s a lv íf ic a .
46 N a C o n stitu iç ã o G a u d iu m et S p e s n. 39 o V a tic a n o I I e n s in a : “N ó s
m erecido castigo 45. ig n o ra m o s o te m p o d a c o n s u m a ç ã o d a te r r a e d a h u m a n id a d e e n ã o c o n h e ­
cem o s a m a n e ir a de t r a n s f o r m a ç ã o do u n iv e rs o . P a s s a a f ig u r a d ê s te m u n d o ,
45 Q u an d o C ris to re a liz a v a no C a lv á r io , a re d e n ç ã o o b je tiv a , os hom ens d e f o r m a d a pelo p ecado, m a s a p re n d e m o s que D eus p r e p a r a u m a n o v a m o ra d a
e s ta v a m p re s e n te s n a s u a C a b e ç a q u e e n f e ix a v a o g ê n e r o h u m a n o toclo. K êle.s e u m a n o v a te r r a n a q u a l h a b i t a a j u s tiç a e c u ja fe lic id a d e i r á s a ti s f a z e r
to d o s os d e se jo s d a p a z q u e so b em nos c o ra çfie s d o s h o m e n s. K n tã o , v e n c id a

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mento (Mt 19,28). S. Pedro anunciou a "restauração de to­ Cristo, luz do mundo; que nenhum a ou Ira verdade nos in-
das as coisas" (At 3,21) sem explicar detalhadam ente em que leressc, que não sejam as palavras do Senhor, nosso único
consistirá tal translorm ação do cosmos. Tampouco sabe­ McsLre; nenhum a ou Ira inspiração nos guie, que não seja
mos se deve ser tom ado ao pé da letra o texto de 2 P d r3 , o desejo de ser-lhe totalm ente fiéis; nenhum a outra confiança
12-13, sôbre o abrasam ento do universo como prelúdio à cria­ nos sustente, senão aquela que conforta, m ediante a sua
ção dos "novos céus e da nova te rra ” (L.c.; cf. Apoc 21,1).
palavra, a nossa fraqueza: "E eis que eu estarei convosco
Podemos co n jectu rar que o renovam ento do m undo m aterial
todos os dias até a consum ação dos séculos" (Mt 28,20).
asseguiara aos corpos gloriosos, um receptáculo mais adap­
tado. 0 certo é que Cristo glorioso será princípio de unidade
do m undo regenerado, centro de atração de todos os homens Síntese
enfim justificados. Em Cristo ressuscitado as coisas serão
reconciliadas entre si e com Deus. "Deu-nos (Deus) a conhe­ Divinização do hom em . Os padres gregos contem plam
cer o m istério de sua vontade, conform e o beneplácito que de preferência a divinização do homem pela E n carn ação : o
êle se propôs, a fim de realizá-lo na plenitude dos tempos: Verbo se fêz carne, para que o homem se tornasse Deus.
u n ir sob um a cabeça, Cristo, tôdas as coisas, as que estão Pela- Encarnação um a qualidade divina — a im ortalidade —
nos céus e as que estão na te rra ” (E f 1,9-10). é com unicada à p rópria natureza hum ana: todos os homens
E a Igreja, em perpétuo advento, suspira e tende ressuscitarão. E cada hom em em particular pode ser feito
com tôdas suas energias, p ara essa vinda gloriosa do Se­ filho de Deus pela participação intrínseca à vida divina.
nhor, seu esp o so : Muranatha, vem, Senhor Je su s1 (Apoc M embros vivos do Filho de Deus, form am os com êle uma
22,20; ICor 16,22).
só pessoa m ística, em virtude dessa solidariedade sobrena­
tural, o Verbo encarnado "recapitula” tôda a hum anidade,
Conclusão p ara fazê-la voltar à sua prim eira perfeição.
A Redenção. É a restituição, pela m orte de Cristo, da
Para en cerrar o presente opúsculo, não encontram os m e­ am izade entre Deus e o hom em pecador. Dogma complexo
lhor feixe do que as palavras pronunciadas p o r Paulo VI que constitui o objeto p articu lar da m editação dos teólogos
ao iniciar a segunda sessão do Concilio Vaticano II, palavras latinos.
que valem não apenas p ara conciliares m as p ara tôdas as O amigo dos pecadores. Os evangelhos insistem sôbre
alm as de boa vontade: "Cristo! Sim Cristo nosso princípio, a am izade de Jesus pelos pecadores, êle se apresenta ao
nosso guia e riossa vida. Cristo nossa esperança e nosso fim.
m undo como o Salvador dos que estavam perdidos.
Oh! que êste Concilio tenha sem pre diante dos olhos esta re­
O servo padecente. Cristo anuncia aos seus, e por êles
lação m últipla, única, fixa e estim ulante, m isteriosa e claríssi­
ao m undo, que vem cum prir a profecia de Isaías sôbre o
ma, urgente e beatificante, relação en tre nós e o bendito
servo padecente, que salva não só Israel como o m undo
Jesus, entre esta Ig reja santa e viva que somos nós, e Cristo
de quem provim os e a quem irem os, p ara quem vivemos. todo, tom ando sôbre si os pecados dos homens e por êles
Nenhuma o u tra luz paire sôbre esta assembléia, que não seja sofrendo m orte ignominiosa.
O Cordeiro de Deus. A presentando Jesus como Cordeiro
a m o rte , os filh o s cie D e u s r e s s u s c ita r ã o em C risto , e o que foi sem e a d o n a de Deus, o B atista parece insinuar que Cristo, imolado qual
f r a q u e z a e n a c o rru p ç ã o r e v e s tir - s e - á d e in c o rru p ç ã o . E , p e rm a n e c e n d o o a m o r
e s u a o b ra . s e r a lib e r ta d a d a s e r v id ã o d a v a id a d e tõ d a a q u e la c ria ç ã o que
nôvo cordeiro pascal, nos libertou da servidão do pecado.
n e u s fê z p o r c a u s a d o s h o m e n s" . Mas como?
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O resgate. A libertação evoca o cativeiro e o resgate. A oração de Cristo. Vida de oração intensa. Objetos
Cativo do pecado, logo do demônio, au to r do pecado. Donde dessa oração; sua eficácia.
alguns antigos im aginaram a Redenção como o resgate do Cristo vítim a. A liturgia do Sangue. Seu valor purifi­
homem, cativo do diabo, pelo pagam ento do prêço aju sta­ cador e expiador. O sangue de Cristo, fator decisivo na per­
do: o sangue de Cristo. Sto. Anselmo refutou essa teoria. feição da religião cristã.
De fato a m orte de Cristo nos libertou do jugo do pecado
Os sofrim entos de Cristo. Dores físicas e morais. 0 es-
e do poder do demônio, mas Cristo não pagou qualquer
m agam ento de Cristo na cruz revela seu am or pelo Pai e
espécie de resgate a quem qu er que seja. — "Juridism o” por nós.
p ro te s ta n te : teoria penal da redenção.
A satisfação. Satisfazer é com pensar, reparar, o mal Dor e alegria em Cristo padecente. Como conciliar a
feito, cometido. Dificuldade de satisfazer pelas ofensas fei­ sum a dor com a sum a felicidade?
tas a Deus. Justiça divina, exigência do infinito amor. A A imolação de Cristo. Liberdade de Cristo diante da
perfeição da satisfação de Cristo. m orte. A separação violenta da alma e do corpo, na cruz,
Dialética da Redenção. Paralogism os de Sto. Anselmo. foi um verdadeiro sacrifício.
A Redenção é um dom gratuito da m isericórdia divina. Ela O sofrim ento na vida do cristão. A vida - cristã exige
só é necessária se Deus q u er livrem ente um a reparação um contato constante e íntim o com a cruz de Cristo Sal­
adequada, a qual exige um ato de valor infinito. vador. Motivos pelos quais sofrer, em união com Cristo
O Cristo total. Conceito de "satisfação vicária”. Cristo padecente, assegura nossa salvação e santificação. 0 que
padecente form a conosco um a só pessoa mística, da qual é "com pletar" a paixão de Cristo.
êle é a cabeça e nós os m em bros. Solidariedade do Salvador A descida aos infernos. Que se entende por "infernos”.
com a hum anidade pecadora. A que visitou-os Cristo.
Os m erecim entos de Cristo. Cristo causa m eritória de A ressurreição de Cristo. Encadeam ento dos m istérios
nossa salvação. Conceito teológico de m erecim ento. Condi­ da Paixão, da Ressurreição e da Ascensão. A Ressurreição
ções do m erecim ento; sua aplicação a Cristo. Valor social como com plem ento da m orte e a realização plena das pro­
do m erecim ento de nossa cabeça. .
m essas m essiânicas. Cristo ressuscita a si mesm o e é res­
O sacrifício do Redentor. Ângulo mais propício p ara suscitado p o r Deus. Espiritualização do corpo glorioso do
encarar a redenção. Papel essencial do sacrifício na religião. Senhor. As aparições do divino ressuscitado.
Três elem entos constituem -no: o sacerdote, a vítima, o ato
sacrificial. A ascensão. A en trad a gloriosa de Cristo no céu, consu­
Sacerdócio de Cristo. Tem a da epístola aos hebreus. A m a o sacrifício da Cruz. Duas ascensões: visível uma, invisí­
redenção reveste cunho sa c e rd o ta l: Deus escolheu como vel a outra. O lugar à direita do Pai. Senhorio universal
satisfação um ato c u ltu a i: o ato sacrifical expiatório no de Cristo glorioso.
qual seu Filho seria o sacerdote. Só um Deus hum anado A realeza de Cristo. Êle é Rei, não só como Deus, senão
realiza o sacrifício expiatório perfeito. Desde sua conceição, tam bém como homem. Reinado tem poral sobretudo es­
Cristo foi constituído sa c e rd o te : a graça de união consagra piritual; quer rein ar sôbre nossas inteligências e nossas
sua hum anidade e a constitui sacerdote p ara salvar os ho­ v o n ta d es: reinado de santidade e de graça, de justiça, de
mens. Compassividade de Cristo sacerdote; sua obediência. am or e de paz.
O sacrifício perfeito do sacerdote perfeito. Intercessão O Juiz universal. Antes da Parusia, Cristo exerce seu
celeste. poder universal, procurando realizar a redenção subjetiva,

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salvar os homens Iodos. Na Parusia, ele aparece como Juiz
dos vivos e dos mortos, triunfando definitivam ente sôbre
as lorças do mal; recom pensando o hem e castigando o mal.
A própria natureza m aterial será beneficiada pelo triunfo
do Salvador. Após a Parusia, Cristo reinará para sem pre
como cabeça da Igreja triunfante.
Conclusão — Jesus Cristo, nosso tudo.

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83 § 3 A união hiposlática 209 A imolação de Cristo
83 21J O sofrimento na vida do cristão
Duas naturezas diversas e inconfusas 214 A descida aos infernos
86 Uma só Pessoa
94 216 A Ressurreição dc Cristo
Nestório e Eutíques 222 A Ascensão
96 A "comunicação dos idiom as”
98 226 A realeza de Cristo
A consciência hum ana dc Cristo 229 O Juiz universal
232 Conclusão
3. - A.v p erfeições de Crislo

110 O corpo de Cristo


i 13 A alma de Cristo
114 As ciências de Cristo
122 Duas vontades harmônicas
124 O tríplice am or de Cristo
127 Im pecabilidade e liberdade de Cristo
130 'A tos teândricos
132 A santidade de Cristo
139 A graça capital de Cristo
148 Motivos da graça capital
149 O cristão e a hum anidade de Cristo
150 Perm anência dos m istérios de Cristo
155 Cristo continuado

4. - O R edentor

163 Divinização do homem


168 A Redenção
169 O amigo dos pecadores
170 O servo padecente
172 O Cordeiro de Deus
173 O resgate
177 A satisfação
181 Dialética da Redenção
184 O Cristo total
185 O m erecim ento de Cristo
188 O sacrifício do Redentor
189 O sacerdócio de Cristo
198 A oração de Cristo
201 Cristo vítima
205 Os sofrim entos de Cristo
208 Dor e alegria em Cristo padecente N ih il o b s tiit: Sac. João R oaüa, ssp. • Sãu Paulo, 10-6-1968
I w p r h if t ilu r : f J. Lafaycüc, Vig. G ct. - São Paulo, I2-6-J968
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