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O ESPÍRITO FAMILIAR
no Lar
na Cidade
e no Estado
2
NIHIL OBSTAT:
Insulis, die 18 Septembris 1910.
H. QUILLIET,
librorum censor.
IMPRIMATUR:
Cameraci, die 19 Septembris 1910.
A. MASSART,
vic. Gen.
Domus Pontificiae Antistes.
3
À
JUVENTUDE
QUE ESPERA
QUE QUER
4
5
PR E F Á C I O
6
7
CAPÍTULO I
1
Platão escreveu com muito acerto que nascemos homens não somente por termos sido gerados por
homens, mas também para que possamos ser úteis uns aos outros. (N. do T.)
2
Cada anjo forma por si mesmo uma espécie distinta dos outros. A espécie humana, partindo da
unidade, decompõe-se em pessoas e recompõe-se em famílias ou em nações, pelo parentesco ou pela
afinidade.
"Uma nação é um conjunto de indivíduos provindos de diferentes raças, mas unidos por liames
complexos de família, cujos ancestrais historicamente agiram uns sobre os outros, submetidos às
seleções comuns. Ela compreende os vivos, e mortos em maior número, e a posteridade até o fim dos
séculos, porque a nação, de uma maneira necessária, tende à eternidade e à universalidade, isto é, a
8
Deus criou Adão; depois tirou do corpo de Adão a carne da qual fez o corpo
de Eva. Então abençoou o homem e a mulher e disse-lhes: "Sede fecundos,
multiplicai-vos, povoai a terra e submetei-a".
Deus criou assim a família; fez dela uma sociedade, e constituiu-a sobre um
plano bem diverso do da igualdade social: a mulher submissa ao homem e os
filhos submissos aos pais.
Encontramos, pois, nas próprias origens do gênero humano as três grandes
leis sociais: a autoridade, a hierarquia e a união; a autoridade, que pertence aos
autores da vida; a hierarquia, que torna o homem superior à mulher e os pais
superiores aos filhos; a união, que entre si devem conservar os que são
vivificados por um mesmo sangue.
Os Estados saíram dessa sociedade primeira.
"A família, diz Cícero, é o princípio da cidade e de alguma forma a semente
da República. A família divide-se, mesmo permanecendo unida; os irmãos, seus
filhos e os filhos destes, não tendo mais lugar na casa paterna, saem para ir
fundar, como tantas colônias, novas casas. Eles formam alianças; daí as
afinidades e o crescimento das famílias. Pouco a pouco as casas se multiplicam,
tudo cresce, tudo se desenvolve e nasce a República". 3
Bodin (século XVI), na sua obra Les Six Livres de la République, consagra,
no livro III, o capítulo VII à demonstração de "como a origem das corporações e
das comunidades veio da família". E Savigny, no seu Traité du Droit Roman,
também diz: "As famílias formam o germe do Estado".
4
Nome dado em Roma a um grupo de várias famílias descendentes de um mesmo ancestral. A gens
romana assemelhava-se ao clã primitivo. Seus membros usavam o nome gentilício, que era o indício
dos seus direitos políticos. Os chefes das gentes, na época primitiva, eram os patres ("pais"),
membros natos do senado. As gentes cresceram, passaram a compreender milhares de pessoas e,
em conseqüência dessa evolução, dissociaram-se a partir do fim da época real, permanecendo o
gentilício como único indício do antigo parentesco. As velhas gentes romanas formavam o
patriciado, distinguindo-se das gentes plebéias, que também chegaram a exercer importantes
funções públicas. (Grande Enciclopédia Delta Larousse, ed. 1978, vol. 7, p. 3038, verbete "gens" —
N. do T.).
5
Mesnie, Magnie: casa, família, como ainda hoje se diz "a casa de França".
6
Les Origines de l'Ancienne France.
10
"Um maior desenvolvimento da família dá origem ao barão de categoria mais
elevada". Do pequeno feudo brota o grande feudo. A aglomeração dos grandes
feudos formará os reinos.
Foi assim que se formou nossa França. Tanto a língua como a História o
atestam.
O conjunto de pessoas colocadas sob a autoridade do pai de família é
chamado: família. A partir do século X, o conjunto de pessoas reunidas sob a
autoridade do senhor, chefe da mesnada, é chamado: família. O conjunto de
pessoas reunidas sob a autoridade do barão, chefe do feudo, é chamado: família.
E veremos que o conjunto das famílias francesas foi governado como uma família.
O território sobre o qual se exerciam essas diversas autoridades, quer se tratasse
de um chefe de família, do chefe da mesnada, do barão feudal ou do rei, chama-
se, uniformemente, nos documentos: pátria, o domínio do pai. "A pátria, diz Franz
Funck-Brentano, foi na origem o território da família, a terra do pai. A palavra
estendeu-se ao senhorio e ao reino inteiro, sendo o rei o pai do povo. O conjunto
dos territórios sobre os quais se exercia a autoridade do rei chamava-se, pois,
"Pátria".
"Uma senhoria, escreve Seignobes, é um Estado em miniatura, com seu
exército, seus costumes, seu ban, que é a lei do senhor, seu tribunal. A França foi,
mais do que qualquer outro país, sobretudo no século X, dividida em soberanias
desse gênero. Não foi feito o cálculo: ele alcançaria certamente uma dezena de
milhar".
11
Rousseau; e se seus discípulos tentaram em algum lugar assim se constituírem
em Estado, sua sociedade fictícia não deve ter tardado em se dissolver. Nada
subsiste se não é feito pela natureza e segundo suas leis. Vimos essas leis agir
nas origens das civilizações grega e romana, como nas origens da civilização
moderna. Os missionários e os exploradores confirmam sua existência entre os
selvagens. Tanto entre estes quanto em qualquer outro lugar, não existe tribo
senão onde há um começo de organização, e esta organização a tribo recebe da
proeminência de uma família à qual as outras estão subordinadas.
É a hierarquia na sua primeira formação e a aristocracia no seu primeiro
estado.
7
As monarquias cristãs da Europa, diz Dom Besse, são todas obra de uma família. A França deve sua
existência política à família de Hugo Capeto. Hugo e seus ancestrais haviam fornecido múltiplas
provas de seu valor e de sua capacidade. Eles mereciam confiança. Sob sua proteção, as famílias
gozavam da paz necessária à sua conservação e ao seu desenvolvimento. Foi concluído um pacto
entre a casa dos Capetos e as casas que tinham autoridade sobre terras e famílias. Desse pacto
resultou o núcleo primitivo, que, com acréscimos regulares, devia atingir os limites do grande reino
de França.
Note-se bem: o pacto real não ligava a França a seus simples soberanos. A França estava unida à
família de Hugo Capeto, à dinastia capetíngea; e, como garantia de união, ela deu a essa augusta
dinastia o direito de usar seu nome; ela é para sempre a Casa de França.
O desenvolvimento extraordinário que sofreu o governo da França, sobretudo a partir do século
XVI, e a organização da vida de Corte diminuíram a ação direta da família real sobre a França. No
entanto, ela permaneceu considerável; mesmo sob Luís XIV e sob Luís XVI, a França tinha uma
família à sua frente. Isto é tão verdadeiro que Napoleão não hesitou um instante em entrar nessa
via. Ele carregou na sua ascensão todos os Bonapartes. Na Áustria, na Alemanha, na Bélgica, na
Inglaterra, ainda em outros lugares, uma família preside os destinos da nação. Essa família é
amada e respeitada como a primeira do país. Ela personifica suas tradições e suas glórias. Sua
prosperidade e a do país são uma só. Ela carrega em si as esperanças do futuro. Todos sabem disso e
vivem em paz.
8
No que diz respeito à santidade, basta, para convencermo-nos disto, percorrer qualquer Vida dos
Santos. Limitando-nos ao breviário, percebemos — a observação é de Blanc de Saint-Bonnet — que
as famílias nobres, reunidas, produziram mais de trinta e sete por cento dos santos, e apenas as
12
A obra que ela realiza atesta que a mão que a escolheu a sustenta e a guia.
"Partindo do nada, disse Taine, o Rei de França constrói um Estado
compacto que (no momento em que estoura a Revolução) abriga vinte e seis
milhões de habitantes e QUE É ENTÃO O MAIS PODEROSO DA EUROPA. Em
todo esse tempo ele foi o chefe da defesa pública, o libertador do país contra os
estrangeiros.
"Internamente, desde o século XII, com o elmo na cabeça e sempre pelos
caminhos, ele é o grande justiceiro, demole as torres dos malfeitores feudais,
reprime os excessos dos fortes, protege os oprimidos, abole as guerras
particulares, estabelece a ordem e a paz: obra imensa que, de Luís, o Gordo, a
São Luís; de Filipe, o Belo, a Carlos VII e Luís XI; de Henrique IV a Luís XIII e a
Luís XIV, continua sem interrupção.
"Durante esse tempo, todas as coisas úteis executadas por ordem sua ou
desenvolvidas sob seu patrocínio, estradas, portos, canais, asilos, universidades,
academias, estabelecimentos de piedade, de refúgio, de educação, de ciência,
de indústria e de comércio, levam sua marca e o proclamam benfeitor público". 9
Mignet, apesar da singular indulgência que mostra na sua Histoire de la
Révolution para com os homens que derrubaram a realeza, faz, de sua parte,
esta observação: 10
"A França foi obra da dinastia capetíngea, que trabalhou, durante sete
séculos, pelo estabelecimento desta preciosa unidade de território, de espírito, de
língua, de governo. Foi do próprio centro do país que a dinastia capetíngea partiu
para essa conquista de reunião. Paris, às margens do Sena, e Orleans, às
margens do Loire, foram seus pontos de partida; o Oceano, os Pirineus, o
Mediterrâneo, os Alpes, o Reno, seus pontos de chegada... Mas, sempre
marchando em direção a seu objetivo, a unidade de território e a unidade de
poder, a dinastia mostrou uma hábil moderação. Ela incorporou as províncias sem
as destruir, deixando-lhes os costumes civis sobre os quais repousavam suas
existências e uma parte dos privilégios de que gozavam". 11
famílias reais seis, isto é, mais de vinte por cento! Mesmo no século XVIII, em que a nobreza estava
tão decaída, as filhas de nossos reis eram santas e seus netos heróis.
Admitindo-se uma família nobre em cem famílias e uma família real ou principesca em duzentas
mil, teríamos esta proporção: o mesmo número de famílias produziu, na nobreza, cinqüenta vezes
mais santos do que no povo, e, nas casas reais, quatrocentas vezes mais do que na nobreza, ou vinte
mil vezes mais do que no povo.
O que são, diante desses fatos, as declamações da democracia, mesmo cristã, sobre as virtudes do
povo e os vícios dos grandes! Os néscios buscam argumento contra a instituição monárquica nas
desordens de Luís XV. Eles não pensam nas seduções das quais não cessou de estar cercado, e diante
das quais eles não teriam feito, eles, sem dúvida, melhor figura. Eles também não pensam na
inacreditável força de virtude que foi necessária a uma família, mergulhada durante oito séculos no
banho dissolvente das maiores prosperidades, para não cair no egoísmo, e para produzir ainda, no
fim desse período, a santidade.
9
Taine, L'Ancien Régime , p. 14 e 15.
10
Essai sur la Formation Territoriale et Politique de la France.
11
A propósito do nascimento de Filipe Augusto em 21 de abril de 1165, Luchaire notou com muita
precisão a que ponto o sentimento de unidade moral se traduzia desde aquela época na pessoa do
rei. Um estudante parisiense, Pierre Riga, contou a cena; ele mostrou a Casa do rei, no lugar do
atual Palácio da Justiça, rodeada de palacianos e de burgueses que aguardam febrilmente o parto da
rainha. É um filho! A rainha chora de alegria: a notícia voa de boca em boca; ela corre de uma
extremidade a outra da França com uma rapidez surpreendente, "porque, se bem que o quarto real
estivesse fechado, diz Riga, pessoas impacientes acharam um meio de olhar por uma fresta e de ver
o menino". Paris desperta na alegria; as ruas e as praças se iluminam. Trompetes soam nas
esquinas dos cruzamentos; os sinos repicam à toda força nas altas torres das igrejas. Um estudante
inglês, o futuro historiador Giraud de Barri, dormia profundamente quando foi acordado pelos
ruídos e pelas luzes da rua.
13
Quando se se refere à época do desmembramento do império de Carlos
Magno, vê-se sair do tratado de Verdum três Estados de importância mais ou
menos igual, formados cada um por elementos díspares, que se tornaram, com
o tempo, a França, a Alemanha e a Itália. Destes três Estados, somente um
chegou muito rapidamente à constituição de sua unidade; foi a França. No
começo do século XIII, a França, com Filipe Augusto, está na posse de sua
unidade nacional, existe como corpo de nação uno e homogêneo. Desde o fim
do século XIII, um século e meio antes de Joana d'Arc, Filipe, o Belo, deu uma
bela definição da idéia de pátria. As armas francesas acabavam de
experimentar, no dia 11 de julho de 1302, o terrível desastre de Courtrai. No dia
29 de agosto, de Paris, dirigindo-se ao clero da França, Filipe, o Belo, pinta-lhe a
situação do país, pedindo-lhe que contribua com subsídios para a defesa da
pátria: "Refleti bem, diz o rei aos prelados de seu reino, que se trata das vossas
conveniências, de cada um dentre vós, nas quais cada um de vós tem interesse;
assim, aplicando toda a vossa afeição, todos os vossos esforços na defesa desta
pátria que vos viu nascer — desta pátria pela qual a tradição venerada dos
ancestrais nos ensinou que era preciso combater, preferindo o amor a ela ao
amor de nossos próprios filhos — nós vos pedimos que venhais em auxílio com
os mais fortes subsídios de que possais dispor..."
Izoulet, professor no Colégio de França, expôs esta concepção do amor da
pátria: "O amor da pátria não é um sentimento simples e superficial, fácil de
improvisar. Não é um cogumelo que cresce em uma noite. É uma planta de raízes
profundas e lentas. O amor da pátria é uma complexa resultante de obscuros
componentes. A pátria mergulha sua tríplice raiz nas secretas profundezas dos
hábitos terrenos, das piedades domésticas e das emoções religiosas. Deus, o
solo e o lar são o tríplice ingrediente desse ditame.
"Que se pode, pois, esperar do patriotismo de um povo em que muitas
pessoas não pensam senão em abandonar a terra, em quebrar o lar, em renegar
a Deus? Quando a tríplice raiz seca, como poderia a planta deixar de definhar e
de morrer?"
De onde vem essa diferença? Do fato de que na França foi melhor seguida a
lei da natureza. Foi a família capetíngea, foi a fixidez da dinastia real, fundada
sobre a lei sálica, que formou e manteve a unidade nacional. Foi graças a esse
princípio de hereditariedade, que em nenhuma outra parte se exerceu com tanta
continuidade e regularidade, que a realeza francesa pôde adquirir, no curso dos
séculos, as condições de força e de duração necessárias à realização da grande
obra nacional. 12
"Pulo de minha cama, escreve ele, corro à janela e vejo duas pobres velhas que, carregando cada
qual uma tocha acesa, gesticulavam e corriam como loucas. Pergunto-lhes o que há com elas:
"— Nós temos um rei que Deus nos deu, responde uma delas; um soberbo herdeiro real, pela
mão do qual vosso rei, o vosso, receberá um dia opróbrio e infelicidade!..."
Luchaire acrescenta: "As populações mais afastadas de Paris já tinham o sentimento — por vago
que fosse — da unidade moral do país francês; elas sentiam que faziam parte de um corpo cuja
cabeça era o rei de França. A correspondência de Luís VII está repleta de testemunhos dessa
solidariedade mais forte do que o liame feudal".
12
O fato reveste-se de um caráter providencial, que os verdadeiros historiadores não deixaram de
notar. Foi Deus, com efeito, nos Seus desígnios sobre a França, que permitiu que, nessa grande
linhagem capetíngea, na qual não se conta, durante mais de três séculos, um só príncipe adulterino,
14
CAPÍTULO II
16
acordo sobre esse ponto. "Os gregos e os romanos, diz o abade Fleury, 2
reputados pela sabedoria deste mundo, aprendiam a política governando suas
famílias. A família é a imagem reduzida do Estado. Significa guiar os homens que
vivem em sociedade".
"O governo da casa, diz Jean Bodin no segundo capítulo do primeiro livro de
sua obra, é um governo direto de vários sujeitos sob a obediência de um chefe de
família. A república é um governo direto de várias famílias e do que lhes é comum
com força soberana. É impossível que a república valha alguma coisa se as
famílias que são os seus pilares estão tão mal organizadas".
Leão XIII diz a mesma coisa: "A família é o berço da sociedade civil e é em
grande parte no recinto do lar doméstico que se prepara o destino dos Estados. 3
Alhures: "A sociedade doméstica contém e fortifica os princípios e, por assim dizer,
os melhores elementos da vida social: assim é que dela depende em grande parte
a condição tranqüila e próspera das nações". 4 É, pois, com razão que Bonald diz:
"Quando as leis da sociedade dos homens são esquecidas pela sociedade
política, elas podem ser reencontradas na sociedade doméstica".
Na nossa França, a sociedade conservou o modelo familiar até a Revolução.
No século XVIII, em 14 de fevereiro de 1774, o Parlamento de Provence podia
ainda escrever ao rei: "Entre nós cada comuna é uma família que governa a si
mesma, que se impõe suas leis, que vela por seus interesses. O oficial municipal
é o pai da comuna".
2
Opuscules I , p. 292.
3
Encíclica Sapientiae Christianae.
4
Encíclica Quod Multum.
17
Os seis grandes oficiais da coroa, 5 que assistiam o rei em todos os atos de
poder, tinham tido, na origem, funções domésticas nitidamente marcadas pelos
próprios títulos de suas dignidades. O senescal, o condestável, o despenseiro, o
copeiro, o camareiro, o chanceler tomaram seus nomes dos diferentes serviços da
casa do rei, e sucedeu que o Palácio do Rei transformou-se pouco a pouco em um
seminário de homens de Estado.
Viollet, na sua Histoire des Constitutions de la France, definiu assim o caráter
de nossa antiga monarquia: "A autoridade do rei era semelhante à do pai de
família; assim, o poder patriarcal e o poder real são por suas origens parentes
muito próximos". E mais adiante, voltando à mesma idéia, diz ainda: "É manifesto
que o rei desempenha o papel de um chefe de família patriarcal".
Como o pai de família, o rei era a fonte de toda a justiça no reino. Summum
justitiae caput foi assim que Fulbert de Chartres definiu o rei no século XI. Cada
grupo natural, local ou profissional tinha organização e autoridade próprias: a
família tem seu chefe, a oficina seu mestre, a comuna seus magistrados, as
corporações seus síndicos, a Igreja seus bispos. A idéia de uma regra comum
estabelecida por um poder qualquer para o conjunto dos habitantes teria então
parecido uma monstruosidade. Cada grupo administra a si mesmo. Mas entre
essas liberdades e franquias locais, entre esses pequenos estados múltiplos e
independentes é preciso manter a harmonia, a paz, assegurar o respeito aos bons
costumes. É o papel mais importante do rei: ele é o justiceiro pacificador, o
apaziguador de discórdias, o guardião das liberdades e da paz pública, a qual veio
a ser chamada de paz do rei. Na origem esse papel foi exercido a fortes golpes
de espada. Harnulf chama Luís, o Gordo, de batalhador infatigável: "Luís, agora o
pacífico, com o cetro à mão, dá a cada um o seu direito". Mas logo o rei distribuiu
a justiça de maneira diferente. O rei escutava os queixosos como um senhor a
seus vassalos, como um pai aos seus filhos. Ele tratava seus súditos com inteira
familiaridade. "Todos os dias, diz Joinville, falando de São Luís, ele dava de comer
com abundância aos pobres, no seu quarto, e freqüentes vezes vi que ele próprio
cortava-lhes o pão e dava-lhes de beber". Seria um erro crer que esses traços
tenham sido particulares à magnífica bondade de São Luís; Roberto, o Piedoso,
entre outros, agia do mesmo modo. Foi uma tradição, entre nossos antigos reis,
mostrarem-se acolhedores e benfeitores, sobretudo em relação aos pequenos e
aos humildes".6
5
O senescal era o escudeiro que, na guerra, seguia seu mestre nas expedições, velando pela
instalação da tenda real. Na ausência do rei, ele comandava o exército. Essas funções derivam
hereditariamente das Casas de Rochefort e de Giuerlande; Luís VI diminuiu-lhes o alcance, Filipe-
Augusto suprimiu-as.
Quando Filipe-Augusto fez desaparecer o ofício de senescal, o condestável tornou-se o chefe do
exército, e o rei acrescentou-lhe dois marechais. O ofício foi suprimido por Richelieu.
O despenseiro velava pelo cozimento do pão. O ofício teve como titulares os maiores nomes da
França, entre outros o de Montmorency.
O copeiro tinha a administração dos vinhedos reais, e deles gerava os rendimentos. Ele teve a
intendência do tesouro real e a presidência da Câmara dos Condes. A partir do século XII essas
funções tornaram-se hereditárias na Casa de la Tour. Foram suprimidas por Carlos VII.
O camareiro dirigia o serviço dos quartos privados. Ele tornou-se o tesoureiro do reino, e nessa
qualidade estava colocado, como dissemos, sob as ordens da rainha. O encargo foi suprimido em
1445.
A origem do grande chanceler é religiosa e ao mesmo tempo doméstica. Os reis merovíngios
conservavam entre suas relíquias a pequena capa (chape) de São Martinho. Daí o nome de capela
(chapelle) dado aos lugares onde eram guardadas as relíquias dos reis. Os arquivos eram conservados
junto às relíquias. O chefe dos capelães foi o grande chanceler, que carregava constantemente no
pescoço o grande sinete real.
6
Eis o que Francisco I, no início de seu reinado, escrevia no cabeçalho da ordenação de 23 de
setembro de 1523:
18
No século XIII o rei passeava a pé pelas ruas de Paris, e cada qual se
acercava dele e lhe falava sem cerimônia.
O florentino Francesco da Barberino registra sua surpresa de ver Filipe, o
Belo — cujo poder se fazia sentir até no fundo da Itália — passear assim em Paris
e cumprimentar com simplicidade as pessoas que passavam. É desnecessário
contrapor essa bonomia à arrogância dos senhores florentinos.
Segundo o testemunho do cronista Chastellan, Carlos VII "despendia dias e
horas a cuidar de homens de todas as condições, e assistia pessoa por pessoa,
cada qual distintamente".
Os embaixadores venezianos do século XVI atestam, em suas célebres
correspondências, que "ninguém é excluído da presença do rei e que as pessoas
da classe mais vil penetram ousadamente e à vontade no quarto íntimo". O rei
comia diante de seus súditos, em família. Cada qual podia entrar na sala durante
as refeições.
"Se há um característico singular nesta monarquia, escreve o próprio Luís XIV,
é o acesso livre e fácil dos súditos ao príncipe".
E de fato, apesar da multiplicação dos meios de transporte e do prodigioso
crescimento de uma cidade como Paris nas proximidades da residência real,
vemos o grande rei receber cada semana todos os pedintes que se apresentam,
por pobres e mal vestidos que sejam.
"Eu ia ao Louvre, escreve Locatelle em 1665, e aí passeava com toda a
liberdade, e, passando pelos diversos corpos da guarda, chegava a esta porta que
é aberta logo que nela se toca, e o mais freqüentemente pelo próprio rei. Basta
tocar levemente e em seguida se vos introduz. O rei quer que os súditos entrem
livremente".
Os acontecimentos que concerniam diretamente ao rei e à rainha eram para a
França inteira acontecimentos de família. A casa do rei era, no sentido próprio, "a
casa de França".
As Lettres d'un Voyageur Anglais sur la France, la Suisse et l'Allemagne
oferecem os mesmos testemunhos referidos acima. Eis algumas linhas da citação
que dela faz J. de Maistre em um de seus opúsculos:
"O amor e o apego dos franceses pela pessoa de seus reis é uma parte
essencial e tocante do caráter nacional... A palavra rei excita, no espírito dos
franceses, idéias de beneficência, de reconhecimento e de amor, simultaneamente
com aquelas de poder, de grandeza e de felicidade... Os franceses acorrem em
"Como prouve a Deus chamar-nos, na flor de nossa idade, como um dos seus principais mestres do
governo desse belo, nobre e digno reino de França, divina e miraculosamente instituído para a
direção e proteção de todas as suas classes: Especialmente para a conservação, elevação e defesa da
classe comum e popular, que é a mais fraca, e por isso a mais fácil de oprimir, e naturalmente tem
maior necessidade do que todas as outras de boa guarda e defesa, e singularmente o pobre comum
homem da França, que sempre tem sido doce, simples e gracioso em todas as coisas, e obsequioso
para com o seu príncipe, e senhor natural, que ele sempre tem reconhecido, tendo-o servido e
obedecido sem mudar, nem variar, preferindo sofrer a receber a dominação de outro príncipe. De tal
maneira que entre os reis da França e seus súditos tem havido sempre a maior aglutinação, liame e
conjunção de verdadeiro amor, natural devoção, cordial concórdia e íntima afeição do que em
qualquer outra monarquia ou nação cristã.
Os quais amor, devoção e concórdia bem conservados entre o rei e seus súditos sob o temor e o
amor de Deus (que sempre tem sido servido devotadamente na França) tornaram o reino florescente,
triunfante, temido e estimado por toda a terra... Ora, o verdadeiro meio pelo qual os reis podem e
devem perpetuar e aumentar esse amor consiste na justiça e na paz: na justiça, fazendo-a distribuir e
administrar pura, boa, igual e concisa, sem nenhuma acepção de pessoa e sem suspeita de avareza a
nossos súditos; em paz fora e dentro do reino: sobretudo na paz intrínseca fazendo viver o homem de
bem sob a ajuda e proteção de seu rei, em boa e amorosa paz comer seu pão e viver na sua
propriedade em repouso , sem ser humilhado nem atormentado sem propósito, que é a maior
felicidade, contentamento e tesouro que um rei pode conquistar para seu povo..."
19
multidão a Versalhes, nos domingos e dias de festa, olhando o rei com uma avidez
sempre nova, e o vêem pela vigésima vez com tanto prazer quanto da primeira.
Eles o encaram como seu amigo, como seu protetor, como seu benfeitor".
"Antes da Revolução, diz também o general de Marmont, tinha-se pela pessoa
do rei um sentimento difícil de definir, um sentimento de devoção com um caráter
quase religioso. A palavra "rei" tinha então uma magia e um poder que nada
havia alterado. Esse amor redundava numa espécie de culto".
"Lembrai-vos de amar com ternura a pessoa sagrada de nosso rei, dizia em
1681 a seus filhos no seu livro de razão, 7 um modesto habitante de Puy-Michel
(Baixos Alpes), de ser-lhe obedientes, submissos e cheios de respeito às suas
ordens". Recomendações semelhantes encontram-se em outros livros de razão,
publicados por Charles de Ribbes; e as divisas das famílias senhoriais exprimem
freqüentemente os mesmos sentimentos.
Tais sentimentos jamais se manifestaram de maneira tão ruidosa como por
ocasião do nascimento de Luís XVI.
"Os gritos de Viva o Rei!, que começaram às seis horas da manhã, não foram
interrompidos até o pôr-do-sol. Quando nasceu o Delfim, a alegria da França foi a
de uma família. As pessoas paravam nas ruas, falando umas com as outras, sem
se conhecerem, e os conhecidos se abraçavam". 8
10
Augustin Thierry, Essai sur la Formation du Tiers-Etat, p. 89.
11
Depois dessa data fatal de 21 de janeiro de 1793, não houve nenhum fracasso nacional que não
tenha sancionado alguma ruína, se não definitiva, pelo menos muito durável, pois o dano dessa data
subsistiu até nossos dias. E não houve nenhum sucesso, nenhuma glória, nenhuma conquista,
nenhuma alegria nacional que não tenha tido os mais dolorosos dias seguintes. A seqüência de nossos
reis representa a mais admirável continuidade de um crescimento histórico, e o assassinato de um
deles dá o sinal dos movimentos inversos, os quais, apesar da multidão das compensações
provisórias, tomam, no seu conjunto, a forma de uma regressão. Para o progresso social, assim como
para os costumes, para a ordem política, assim como para a extensão territorial ou o número de
habitantes relativamente a outras nações da Europa, a França caiu abaixo do que era em 1793.
Primeiro fato! Segundo fato: com recursos admiráveis e incomparáveis meios, a França tende a
perseverar nessa queda, em razão dos mesmos princípios que a determinaram, faz cento e dezesseis
anos, ao regicídio. É, pois, verdadeiro, que cortando a cabeça de seu Rei, a França cometeu
suicídio.
21
apareça melhor o caráter das relações que, tradicionalmente, instintivamente,
tinham-se estabelecido entre o rei e a nação... 12
Foi ao espírito familiar da monarquia que a França em muito boa parte deveu
sua prosperidade. E essa prosperidade foi tal que a França era, sem contestação,
a primeira nação da Europa. O grande orador inglês Fox reconhecia-o, não sem
amargor, na Câmara dos Comuns, quando exclamava, em 1787:
"De Petersburgo à Lisboa, se se excetua a Corte de Viena, a influência da
França predomina em todos os Gabinetes da Europa. O Gabinete de Versalhes
apresenta ao mundo o mais incompreensível paradoxo: é o mais estável, o mais
constante e o mais inflexível que há na Europa. Após vários séculos, ele segue
12
Os mesmos sentimentos manifestaram-se na Restauração. Madame de Marigny, irmã de
Chateaubriand, estava em Paris em 1814, no momento da entrada dos Aliados. Ela anotava, dia a
dia, em finos cadernos, as notícias e os boatos da cidade . Assim que um caderno era completado, ela
o enviava a seus pais, na Bretanha. Esses cadernos acabam de ser publicados por M. J. Ladreit de
Lacharrière. Eis o relato que ela faz da entrada do conde d'Artois:
Terça-feira, 12 de abril — Levantei-me muito doente, mas decidida a fazer o impossível para ver o
Príncipe tão querido dos franceses. Tomei café para reanimar-me e, como guia das senhoritas Verpier,
cuja mãe estava muito indisposta, pus-me a caminho, com a esperança de poder entrar em Notre-
Dame; coisa que tentei inutilmente, mesmo com dinheiro que ofereci a um pobre homem que vigiava
uma pequena porta pela qual entravam os cônegos. Não sabendo que decisão tomar, sentindo-me
incapaz de permanecer de pé na rua durante cinco ou seis horas, retornei com minhas companheiras,
muito triste. Passando diante do estabelecimento de um comerciante de vinho, perguntei-lhe se ele
tinha uma janela sobre a rua e se ele queria alugá-la; ele ficou maravilhado. O negócio foi logo
concluído.
O afluxo de pessoas e de carros que iam a Notre-Dame era tão prodigioso que nele não se podia
fixar o olhar por muito tempo; fui obrigada a retirar-me da janela várias vezes; eu estava aturdida.
Entre as senhoras que não puderam encontrar lugar, percebi Mme. de Gois; chamei-a. Ela veio com
suas amigas ocupar uma janela que ainda estava por alugar e pagou-a. Notava-se, dentro dos carros,
belíssimos trajes, e mesmo mulheres a pé que estavam muito bem vestidas; quase todas portavam
flores de lis sobre os chapéus, ou em buquês que carregavam diante de si. Algumas tinham três flores
de lis bordadas em ouro sobre as mangas fofas.
O pavilhão branco drapejava sobre as torres de Notre-Dame, com o escudo da França. Enfim, ao
meio-dia soou o grande sino e soube-se que Monsieur estava na porta do bairro Saint-Denis. Um
numeroso destacamento da guarda nacional aguardava-o lá; a guarda atirou as armas aos pés do
príncipe, num transporte de respeito e de amor. Ele pareceu sensibilizar-se. Sua Alteza abraçou
alguns que ele reconheceu...
No meio dessa multidão de penachos brancos e de senhores de seu séquito, o conde d'Artois pôs-se
a caminho para Notre-Dame, mas a quantidade de pessoas que o interceptavam e as igrejas onde se
lhe ofereceu incenso entravaram e retardaram de tal forma sua passagem que eram duas horas e meia
quando ele chegou na rua onde eu estava, e que conduz à catedral.
À sua passagem sob o arco do triunfo da porta Saint-Denis, o grande sino soou de novo; mas à sua
aproximação da metrópole, todos os sinos repicaram; eles não podiam abafar as aclamações, a
música misturava-se-lhes. Não, jamais se poderá pintar esse entusiasmo. Poder-se-ia dizer que a
alegria havia transbordado, chorava-se, gritava-se pela sua felicidade; temia-se não ter forças de
suster-se para vê-lo passar, e eu me incluía entre estes. Mme. de Gois repreendeu-me fortemente por
minha sensibilidade; ela fez-me bem; eu resisti contra o mal-estar que experimentava, e lancei-me
irrefletidamente à sacada, tão feliz em lhe dar meu derradeiro suspiro. Deixei escapar a felicidade do
meu coração, meus votos por ele, meu enternecimento pela lembrança de seus infortúnios, ou melhor,
eu lançava todos esses sentimentos, porque estava fora de mim...
A santidade do lugar não pôde estancar os transportes das pessoas que estavam na igreja; as
abóbadas tremiam com as aclamações. Mas esse Príncipe religioso, logo que se começou a cantar o
Te Deum, voltou-se e fez sinais reclamando silêncio. Ao Domine salvum fac regem viram-se grossas
lágrimas correr de seus olhos.
Enfim, o cortejo retomou seu caminho, e, para nossa satisfação, fez ainda S.A. passar sob nossas
janelas, onde de novo estávamos com meio-corpo para fora, apaixonadas, gritando num derradeiro
esforço: "Viva Monsieur! Faça o céu que seja sempre feliz!" Nossos chapéus ornados de lis, nossa
ação, nossos lenços no ar foram fixados um momento pelos olhares do Príncipe, que nos
22
invariavelmente o mesmo sistema, e, no entanto, a nação francesa prossegue
como a mais ágil da Europa".
Dá-se que, com efeito, toda sociedade que conserva o espírito familiar, uma
vez que permanece submissa à lei natural, progride, por assim dizer,
necessariamente. "Nada na história, diz Frantz Funck-Brentano, jamais negou
essa lei geral: tanto quanto uma nação é governada segundo os princípios
constitutivos da família, tanto ela é florescente; no dia em que ela se afasta
dessas tradições que a criaram, a ruína está próxima. O que dá fundamento às
nações serve também para mantê-las".
Edmond Burke, nas suas Réflexions sur la Révolution Française, dirigia aos
franceses de 1789 sábias palavras. Quão pouca atenção se lhes deu! "Quereis
corrigir os abusos de vosso governo; mas por que criar novidades? Por que não
vos reatais a vossas antigas tradições?"
cumprimentou com aquela graça e aquele sorriso amável que não pertencem senão a ele.
Então, no cúmulo da alegria, não sabendo mais o que fazia, pareceu-me que eu não devia olhar para
mais ninguém, que nenhum outro objeto era mais digno de ser observado. Sentei-me para respirar, eu
sufocava, minha voz se extinguia, eu respondia apenas através de sinais.
Foi preciso pensar na volta para meu colégio. Propus às companheiras irmos a Notre-Dame e
darmos graças a Deus por nos ter conservado a família de São Luís... Entrei em casa extenuada de
calor e de fadiga, mas sobretudo sobrecarregada de felicidade e de alegria, tanto que não dormi.
23
24
CAPÍTULO III
Para que a coesão exista no corpo social e lhe dê vida e prosperidade, não
basta que o amor ligue o soberano aos súditos e os súditos ao soberano; ele deve
unir os súditos entre eles pela dedicação das classes superiores às classes
inferiores e pelo serviço das inferiores às superiores.
A antiguidade não ignorou completamente esse dever, ou pelo menos
concordou que era necessário. Cícero diz que Rômulo deu aos senadores o nome
de "pais" para marcar a afeição paternal que eles tinham pelo povo.
Conhecemos a posição que ocupou na organização de Roma a clientela.
Essa instituição estabelecia relações determinadas e constantes entre um certo
número de pessoas do povo e uma gens dos patrícios. O chefe dessa gens , nas
relações com seus clientes, usava o nome de "patrão", criado para ressaltar os
sentimentos de paternidade relativamente a eles. Por seu turno, a qualificação de
cliente marcava naquele que a usava uma disposição habitual de estar pronto
para o serviço (cluere, ouvir, ter o ouvido aberto). As obrigações recíprocas
correspondiam às palavras. O patrão tinha o dever, a obrigação de ajudar seu
cliente com conselhos e crédito, de defendê-lo perante os tribunais, de sustentá-lo
com sua influência nos processos e litígios, e mesmo com armas, a fim de prover
às suas necessidades em caso de miséria. De sua parte, o cliente devia ao patrão
o respeito, obsequium , e a dedicação pessoal: dando-lhe o voto nos comícios,
armando-se e combatendo por ele, contribuindo no pagamento de seu resgate, no
dote de sua filha etc. Existia nisso, em uma palavra, uma troca regrada e contínua
de serviços. Estivesse ou não sempre presente essas relações a afeição, do
ponto de vista social o resultado era o mesmo.
Quando o feudalismo nasceu, a clientela havia desaparecido há séculos.
Como por efeito de um instinto natural, este encontrou-se baseado no mesmo
princípio da assistência mútua. O suserano devia prestar socorro e proteção a
seus vassalos, como o pai a seus filhos, assegurar-lhes justiça, manter a ordem e
a segurança no feudo, providenciar a subsistência dos necessitados. Em troca,
vassalos e proprietários deviam fidelidade e assistência a seu suserano na paz e
na guerra, e também em circunstâncias idênticas àquelas em que o cliente tinha
deveres para com seu patrão, por exemplo, no caso do casamento da filha do
suserano.
"A experiência quotidiana que o homem faz da exigüidade de suas forças, diz
Leão XIII, obriga-o e leva-o a associar-se a uma cooperação estrangeira. Lemos
nas Santas Escrituras esta máxima: "É melhor que dois estejam juntos do que
estarem sós, porque então eles tiram proveito de sua sociedade. Se um cai, o
outro o sustenta. Infeliz do homem só! porque cairá e não haverá ninguém para
levantá-lo". E estoutra: "O irmão que é ajudado por seu irmão é como uma cidade
forte". Desta propensão natural nascem as sociedades". 7 Antes de escrever estas
máximas nos santos Livros, Deus gravou-as no coração do homem; e é o que
explica como as instituições, repousando sobre os mesmos princípios, puderam
nascer espontaneamente na antiguidade pagã assim como no seio do
cristianismo.
Entre nós, desde a época merovíngia vê-se um certo número de pequenos
proprietários, chamados vassi, recomendarem-se a homens mais poderosos e
mais ricos, chamados seniores . Ao seu senior, que lhe dá um presente em terras,
o vassus promete assistência e fidelidade. Pela metade do século IX o movimento
se precipita, uma multidão de famílias suplica à família senhorial de tomá-las sob
6
Dieu a fait la France guérissable , pelo abade Augustin Lémann.
7
Encíclica Rerum Novarum.
28
sua proteção: Defendei-nos, defendei a terra que possuímos e aquela que ireis
conceder-nos, e nós vos prestaremos todos os serviços de um fiel vassalo. Foi no
século XIII que essa organização social, fundada na dedicação e nos serviços
recíprocos, atingiu seu apogeu. E foi também naquela época que a nação
francesa alcançou o mais alto grau de prosperidade, que ela pôde exercer sobre
todas as nações da Europa uma ascendência que não mais reencontrou.
A maioria dos historiadores assinalou que o regime feudal estabeleceu-se
entre quase todos os povos da Europa, sem que nenhum deles o tivesse tomado
emprestado de outro. E achou-se tão resistente que Le Play pôde observá-lo
ainda cheio de vida nas planícies orientais da Rússia. Eis o que ele diz: "As
relações da família com o senhor têm simultaneamente o respeito e a familiaridade
que reinam entre os filhos e o pai. Sua autoridade fornece ao camponês um ponto
de apoio para a conservação da propriedade. O senhor exerce a autoridade,
como fazia o suserano da Idade Média, pela manutenção do regime de comunhão
em família. Ele a protege contra a deterioração... O senhor concede recursos à
família em todas as circunstâncias em que seus meios de existência se achem
comprometidos, por exemplo, em caso de incêndio, de fome, de epizootia e de
doenças epidêmicas. E o senhor pode contar com o trabalho dos camponeses
para o sucesso de sua própria atividade".
Esse patronato que vemos estabelecer-se assim sob formas muito parecidas,
em tempos tão distantes e em tantos lugares, saiu evidentemente da família, é
uma extensão do seu espírito. A prosperidade da família, dissemos, tem seu
princípio na união, união proveniente da comunhão de afeições e de esforços. Foi
a visão dos felizes efeitos que produz essa união, que levou-a a espraiar-se além
dos limites da família e que fez nascer a clientela entre os romanos, o feudalismo
entre nós. Da família embrionária, se posso assim dizer, o espírito familiar
ampliou-se com o desenvolvimento que teve a família patriarcal, e daí ganhou e
animou a fraternidade, a gens , o feudo, e enfim as nações, que não podem, elas
também, viver e prosperar senão na união e pela comunhão dos esforços.
A Idade Média estava plenamente convencida disso. O espírito de proteção
penetrava-a tão perfeitamente que, ao mesmo tempo em que realizava o
feudalismo no campo, criava nas cidades mesnies urbanas, depois estabelecia
entre as cidades vizinhas as lignages das cidades francesas, as paraiges das
cidades lorenas, as geslachten das cidades flamengas etc., todos nomes que, por
si sós, bastam para mostrar o princípio de onde esses grupos saíram, o espírito
que lhes deu luz, posto que todas essas palavras são tomadas do vocabulário da
família. Cada um desses grupos tinha uma organização comum, de caráter
familiar e ao mesmo tempo militar, como o grupo feudal.É necessário conhecer
esses fatos, se se quer ter a exata dimensão do mal que ronda a sociedade atual
e do remédio que se lhe deve aplicar.
29
30
CAPITULO IV
33
para os campos. Aí, em meio a imensos domínios, reinando sobre povos de
pobres e de escravos, grandes famílias viviam apenas para o prazer. Os francos
dividiram essas terras com a mesma avidez que presidira outrora a partilha dos
cavalos, das armas e dos tesouros. Cada qual estabeleceu sua morada no lote
que passara a ser seu e identificou-se com essa terra, transformada em sua
herança (Alod) e de seus filhos.
Tais foram as origens dos primeiros senhores. Alguns continuaram pagãos;
outros, após terem recebido o batismo, continuaram a colocar em suas relações
sociais uma odiosa crueldade. Mas
houve também famílias nas quais a graça de Cristo, encontrando um sangue
generoso, produziu as virtudes que fizeram delas nossa aristocracia, primeira na
ordem temporal e também no valor moral e guerreiro. Sob os auspícios da Igreja,
elas aprenderam a conhecer e a praticar os deveres em relação ao próximo, e a
caridade começou a estabelecer seu império entre nós. Todos os registros de
atos de emancipação que nos foram legados pelos primeiros séculos da Idade
Média atestam o pensamento religioso que os ditou: "Não é preciso prender com
cadeias aqueles que Cristo tornou livres pelo batismo, porque não há diferença de
condição a Seus olhos, pois somos todos unidos e iguais perante Ele".
As instituições sociais que então se ergueram nasceram desse espírito. "Não
foi de instituições envelhecidas de uma nação em decadência (os romanos), diz
o editor da obra econômica de Montchrétien; menos ainda dos hábitos
grosseiros de bandos a custo disciplinados (os germanos), que saiu a civilização
moderna, mas da força, da intensidade das afeições difundidas na população
inteira (pelos monges, bispos e santos), afeições que se transformam em
obrigações mútuas e costumeiras e, em conseqüência, em direitos recíprocos".
Vêem-se reaparecer aqui, mais depuradas e santificadas, as relações sociais
que admiramos na clientela romana e na clientela grega. Elas envolveram toda a
sociedade como uma imensa rede, não somente de grandes feudatários a
pequenos senhores e de senhores a vassalos, mas também de patrões a
operários. Conhecemos a bela legislação que Etienne Boileau deu às
corporações de operários no século XIII.
O século XIII constituiu o apogeu da aristocracia feudal e da grandeza da
França. Ela havia então estabelecido seu território e criado o gênio francês, feito
sobretudo de generosidade.
34
Quando não havia outra fonte de riqueza além da cultura, toda família rica era
rica apenas porque se tinha pouco a pouco enobrecido nos seus sentimentos por
uma longa prática das virtudes familiais, e desde então ela podia ser enobrecida.
Era uma família antiga, respeitável, uma boa família, segundo a expressão que
ficou. Para isso foi-lhe necessário educar e educar cada vez melhor uma longa
seqüência de gerações; e foi necessário que, nessa seqüência, não ocorresse a
fraqueza de nenhum dos elos da cadeia, porque então tudo teria que ser
recomeçado. Como disse Blanc de Saint-Bonnet: "Os séculos vinham colocar-se
como florões sobre sua coroa, e foi a mão do tempo que se apressou em sagrá-
la".
Essa segunda aristocracia viveu como a primeira, militarmente,
patriarcalmente e agricolamente, submetendo ao cultivo a terra adquirida por seus
pais, defendendo-a e espalhando ao redor dela a justiça, a bravura e o
desinteresse. Dessa maneira ela manteve o tríplice capital da nação: capital
material, capital intelectual e capital moral. Eis os termos que Taine usa para
falar disso: "O senhor é proprietário residente e benfeitor, promotor de todos os
empreendimentos úteis, tutor obrigatório dos pobres, administrador e juiz gratuito
da região, deputado sem paga junto ao rei, isto é, condutor e promotor, como
outrora, mediante um patronato novo, apropriado às circunstâncias".
Infelizmente, esses costumes salutares, esses laços de união e de afeição
que ligavam todos os cidadãos de alto a baixo da escala social relaxaram-se
imperceptivelmente. A política de Luís XIV obstinou-se em separar os gentis-
homens do povo, atraindo-os à corte e aos empregos. Crendo fortalecer-se, a
realeza destruiu com suas próprias mãos o fundamento sobre o qual estava
estabelecida. 4 Henrique IV fora melhor inspirado. "Ele declarou à sua nobreza,
diz Perefixe, que queria que cada qual se acostumasse a viver de seus bens, e
que para esse efeito ele estava bem à vontade, visto como gozavam de paz, que
fossem ver suas casas e dessem ordem de valorizar suas terras. Assim, ele os
aliviava de grandes e ruinosas despesas na corte, reenviando-os às províncias,
e ensinava-lhes que o melhor fundo que se pode construir é o de uma boa família.
Com isto, sabendo que a nobreza francesa era melindrosa no imitar o Rei em
todas as coisas, ele lhes indicava, por seu próprio exemplo, a supressão da
superfluidade nos trajes; porque ele ia ordinariamente vestido de tecido cinza,
com um gibão de cetim ou de tafetá sem cortes, passamanes ou enfeites. Ele
louvava os que se vestiam dessa maneira e ria-se dos outros, que carregavam,
dizia, seus moinhos e suas ramarias de árvores altíssimas nas costas ".
4
Bourdaloue lembrava assim aos senhores do grande século seus deveres.
"Aristóteles, o Príncipe dos Filósofos, não possuía nenhum princípio de cristianismo, no entanto
compreendia essa obrigação quando dizia que os reis, nesse alto grau de elevação que nos faz olhá-
los como divindades da terra, não são mais do que homens feitos para os outros homens, e que não
é para eles mesmos que são reis, mas para os povos.
"Ora, se isto é verdadeiro em relação à realeza, ninguém poderá acusar-me de levar, a esse
respeito, a coisa longe demais, se adianto que não se pode ser nada no mundo, nem se elevar, ainda
que pelas vias retas e legítimas, às honras do mundo, senão pela disposição de empregar-se,
interessar-se e consagrar-se e mesmo de devotar-se ao bem daqueles que a Providência faz
depender de nós; que um homem, por exemplo, revestido de uma dignidade, não é senão um súdito
destinado por Deus e escolhido para o serviço de um certo número de pessoas às quais ele deve
suas preocupações; que um particular que toma um encargo, desde então não existe mais para si, mas
para o público; que um superior, que um professor, não tem a autoridade à disposição senão
porque deve ser útil a toda uma nação, posto que, sem autoridade, ele não pode sê-lo. Praes, dizia
São Bernardo, escrevendo a um grande do mundo, pondo diante dos olhos deste a idéia que ele
devia ter de sua condição, praes non ut de subditis crescas, sed ut ipsi de te. Estais no lugar de
comando, e é justo que se vos obedeça. Lembrai-vos, porém, que essa obediência vos é dada a título
oneroso e que sereis prevaricador se não a fizerdes servir inteiramente em benefício dos que vo-la
prestam".
35
Sob Luís XIV, a nobreza recebeu outras lições e infelizmente deixou-se levar
por outros exemplos; sabemos quais foram as conseqüências.
"O afastamento físico, diz Tocqueville, produziu pouco a pouco entre os
senhores um afastamento de coração. Quando o gentil-homem reaparecia no
meio dos seus, ele revelava os desígnios e os sentimentos que tivera seu
intendente na sua ausência. Ele não via mais em seus arrendatários senão os
devedores dos quais ele exigia com rigor o que lhe cabia segundo a lei ou o
costume. Daí os sentimentos de rancor e de ódio. Além disso, por efeito desse
mesmo afastamento, toda a direção geral falhava, as terras caíam em deplorável
abandono. A nobreza logo formou uma casta, ciosa de seus títulos, ciumenta de
seus privilégios, e que não mais se justificavam, nem uns nem outros, em razão
da direção imprimida à vida da nação".
Quando estourou a Revolução, fazia já um século que cada classe vinha
caminhando à parte, entretendo e avolumando seus preconceitos e seus ódios
contra a classe que, antes aliada, se tornara rival.
É isto que explica, pelo menos em parte, o que aconteceu no campo.
Podemos observar que por toda a parte onde os proprietários imobiliários tinham
conservado o contato com seus arrendatários, o antagonismo de classes não se
manifestou. Testemunha isto o que se fez na Vandéia, em Anjou, em Poitou, na
Bretanha e na Normandia. Ao contrário, em toda a parte em que os senhores
administraram seus bens pelo intermédio de intendentes e onde, em
conseqüência, eram desconhecidos de seus arrendatários, em toda a parte, em
uma palavra, em que se perdeu o contato entre ricos e pobres, o antagonismo
social revelou-se com grande violência. Taine estabeleceu esse fato em várias
passagens de seus escritos.
A aristocracia imobiliária, assim caída, deu lugar, como em Atenas e em
Roma, à aristocracia de dinheiro, que a Revolução nos legou.
Segundo o visconde d'Avenel, 5 os riquíssimos de hoje, na França, o são doze
vezes mais do que os mais ricos personagens do Ancien Régime; eles são dez
vezes mais ricos ou vinte vezes mais numerosos do que os mais opulentos
príncipes dos tempos feudais. Há hoje na França 1.000 pessoas que têm
200.000 francos de rendas mobiliárias ou imobiliárias. Entre essas 1.000, há
350 que têm 500.000 francos de rendimentos. Dessas 350 podemos citar 120 que
dispõem anualmente de mais de um milhão de francos de receitas; 50 dentre elas
têm um orçamento normal de 3 milhões de francos; e dessas 50, há uma dezena
que tira de seus capitais uma soma superior a 5 milhões por ano. Não se
conhece ninguém da Idade Média que possa ser comparado aos 50 particulares
que formam as duas categorias mais altas. Há coisa pior para um povo do que a
destruição de seus exércitos e de suas frotas, a bancarrota de suas finanças e a
invasão de seu território; é o abandono de suas tradições e a perda de seu ideal.
A história de todos os povos aí está para no-lo atestar.
5
Revue des Deux-Mondes
36
37
CAPÍTULO V
QUE DESTINO A ARISTOCRACIA DE DINHEIRO
RESERVA PARA SI E PARA A F RANÇA?
Nos nossos dias a suserania pertence ao ouro. Esse metal coloca aos pés
de seu possuidor todas as forças, não somente da França, mas do mundo.
Havia, sem dúvida, um grande poder nos séculos que precederam a Revolução,
mas ele encontrava uma rivalidade na aristocracia, que numerosas vezes o
suplantou. Hoje, o ouro quase passou ao estado de divindade; em toda a parte
ele comanda, em toda a parte é adorado.
Esse novo poder tomou dos poderes que o precederam apenas os abusos
nos quais tinham-se deixado levar.
"Os homens da Revolução, diz Vogue, 2 não duvidavam de que iriam abolir
todos os privilégios e assegurar o reino da igualdade.
"Na pressa do seu otimismo, não refletiam sobre uma lei da história: cada vez
que uma sociedade se desembaraça de antigas dignidades, de antigos poderes
espirituais e temporais, um senhor permanece, inexpugnável, o mais duro e o mais
sutil dos senhores, o dinheiro.
"Ele se insinua nas elevadas posições deixadas vazias, recolhe toda a
autoridade tirada de seus rivais, restabelece em seu benefício, sob outras formas,
dignidades e privilégios. Todos lhe obedecem, porque só ele concede tudo o
que dá valor à vida".
1
A avareza não é satisfeita, mas sim estimulada, pelo lucro. Tem como que algo da condição da
cobiça, pela qual, quanto mais cresce, por isso mesmo mais corre para o alto: por onde produz grave
destruição, em razão da qual há de cair. (N. do T.).
2
Un siècle, mouvement du monde de 1800 à 1900.
38
A aristocracia francesa deveu sua grandeza àquilo que havia feito a
grandeza das aristocracias antigas: a dedicação das classes dirigentes pelas
classes dirigidas, a afeição das classes dirigidas pelas classes dirigentes, a união
dos esforços para o maior bem de todos. Entre nós, como nas antigas
civilizações, a decadência foi a conseqüência natural da separação que se deu
entre a nobreza e o povo, que viviam cada qual sua vida, não mais se amando,
não mais se auxiliando mutuamente, não mais se conhecendo. A nobreza havia
desertado dos campos para ir perder-se na corte dos reis, e aí gastar em prazeres
e em luxo o dinheiro que o trabalho dos lavradores lhe obtinha. "Pode-se
permanecer ligado e afeiçoado, pergunta Tocqueville, a pessoas que não
significam nada pelos laços da natureza e que não mais são vistas? É sobretudo
nos tempos de privação que se percebe que os laços de proteção e de
dependência que outrora ligavam o proprietário rural aos camponeses estão
frouxos ou rompidos. Nesses momentos de crise, o governo central assusta-se
com seu isolamento e sua fraqueza; ele quereria fazer renascer para o momento
as influências individuais que ele destruiu; ele as chama em seu socorro: ninguém
vem, e ele se espanta em encontrar mortas as pessoas às quais ele próprio tirou
a vida". Alguns anos antes da Revolução, a nobreza quis reaproximar-se do povo;
era tarde demais. Fazia um século que cada classe vinha percorrendo seu
próprio caminho, aumentando, de geração em geração, os ódios e preconceitos
contra a classe rival que não mais conhecia, que não mais compreendia.
Sabemos o que resultou disso. A sociedade desmoronou em ruínas e em sangue.
O conde de Chambord quis persuadir ao que restava da aristocracia, de
retomar, tanto quanto as circunstâncias permitiam, seu papel providencial. "Não
cessarei, dizia, de recomendar a todos aqueles que permaneceram fiéis à nossa
causa, de habitar suas terras o mais possível, e de dar o exemplo de todas as
melhorias possíveis. É o verdadeiro e o único meio de destruir as prevenções
injustas, e de dar à propriedade imobiliária a parte de influência que lhe pertence,
e que seria tão útil que ela alcançasse na administração e na condução dos
negócios do país". Ele felicitava os que tinham "conservado, com a fé de seus
pais, o culto do lar e o amor ao solo natal". "As seduções revolucionárias, dizia,
exercem seus estragos sobretudo sobre as populações desamparadas por seus
protetores naturais. Rápidas aparições não substituirão jamais a afeição no
relacionamento, o desinteresse nos serviços, a adesão aos conselhos". Não foi
escutado tanto quanto deveria ter sido.
39
vestígios dessas tocantes relações. Verifiquei, sobretudo, a falta da afeição e do
respeito".
A razão disto está indicada nestes termos por Funck-Brentano, em A Política:
"Aqueles que, oriundos das classes médias, chegam rapidamente à riqueza e às
honras, sem encontrarem neles os recursos para aí chegar, nem sempre
adquirem, por esse fato, o que somente a tradição e a educação desenvolvem: as
qualidades necessárias ao exercício de suas novas funções sociais. Criados nas
privações, eles possuem necessidades insaciáveis como sua ambição e seu
egoísmo: ganhar mais, chegar mais longe! Os que dependem deles, operários
ou empregados, permanecem como trampolins para suas fortunas ou vítimas de
suas ambições. Enfim, como não receberam pela educação, diríamos quase pelo
aprendizado, as qualidades morais próprias à sua situação elevada, vemo-los
cada vez menos delicados na escolha dos meios; sua moralidade se altera assim
como seu caráter e não valem mais do que seu instinto pelos negócios ou por
seu espírito de intriga. Na geração seguinte, o mal se apresenta. Os filhos não
podem receber de seus pais uma educação que aqueles mesmos não tiveram;
mas, por efeito da riqueza ou da posição que seus pais adquiriram, os filhos
procuram apenas a satisfação de seus gostos, de seus prazeres. Os caracteres
se degradam, e freqüentemente a terceira ou quarta geração acaba no hospital
ou numa casa de saúde, enquanto novas famílias, chegadas à fortuna da mesma
maneira, substituem as primeiras".
Em todos os pontos da França seria fácil colocar nomes sob cada uma das
fases desse quadro.
Quase não poderia ser de outra maneira.
A riqueza cuja fonte está na terra encontra aí os limites de sua ambição: a
que provém da indústria, do comércio, dos bancos, não conhece limites; tendo
chegado a ser milionária, ela aspira a ser bilionária, e sabemos que chega a sê-lo
várias e várias vezes. Nisso está todo seu objetivo, e, para alcançá-lo, ela
explora o homem como explora a matéria, em vez de amá-lo e servi-lo. O homem
se apaga aos olhos do capitalismo, ele não é mais do que um meio nas mãos
daqueles cujas faculdades, todas, são dirigidas para o objetivo que perseguem: a
fortuna.
A Revolução havia proclamado a igualdade de todos. Mas, observa Le Play,
tornando teoricamente o operário igual ao patrão, o patrão estava dispensado
relativamente àquele da obrigação moral de assistência e proteção.
Ela havia proclamado a liberdade de trabalho. A burguesia, rica de
experiência, de recursos e de capitais, podia trabalhar ou não trabalhar, de
acordo com a sua vontade; mas o operário ficava preso à necessidade implacável
do labor quotidiano. Com os privilégios da nobreza, a Revolução havia jogado
fora os privilégios dos operários, isto é, as regras e os costumes que, na
corporação, os protegiam. A burguesia, não vendo mais entraves à cupidez tão
natural do homem, tratou o operário como um utensílio do qual se tira tudo o que
se pode, sem maiores preocupações, seja com a sua saúde, seja com a sua
moralidade.
Ela assim procedeu, sem ser barrada pelas condições econômicas que,
outrora, se lhe teriam oposto. 3
3
Em nenhum lugar a mentira da liberdade se revelou mais abertamente do que na ordem econômica.
Sua miragem evanesce como um sonho tão logo a vida põe em contato indivíduos isolados. O
operário tem diante de si um patrão que lhe propõe um determinado salário. É louvável que o
operário o recuse? Não, as necessidades da existência, talvez uma família da qual cuidar,
obrigam-no a aceitar as condições que lhe são oferecidas.
O patrão também não é livre. Ele apreciaria, na maioria dos casos, retribuir convenientemente
seus empregados e operários. Apenas ele não pode, sendo prisioneiro de uma concorrência sem
limites. E ele se esforça em vão para ter acesso a toda sorte de expedientes para escapar aos efeitos
40
À falta de freio junta-se a falta de escrúpulos. A continuidade do trabalho e
da parcimônia, durante numerosas gerações, transmite a cada uma delas as
virtudes que começaram a prosperidade da família. Mas essas tradições não se
formam nas famílias que, ocupando-se da indústria, do comércio, dos bancos,
chegam rapidamente ao cume, mediante golpes de sorte. Vemo-las, como
acaba de observar Funck-Brentano — falando de maneira genérica, e salvo as
exceções que a virtude do cristianismo pôde produzir —, pouco desinteressadas,
pouco sensíveis à honra, pouco aplicadas aos nobres pensamentos que inspiram
a fé e a caridade cristãs; e, em conseqüência, mais hábeis em seus negócios do
que devotadas ao bem, aspirando a abandonar-se cada vez mais ao bem-estar,
ao luxo, aos prazeres que o dinheiro lhes permite obter.
Nessas condições, as boas relações sociais com aqueles cujo trabalho
serviu para elevá-los e continua a mantê-los em sua posição ou a nela crescerem,
são muito raras e muito fracas, para não dizer nulas.
Elas o são ainda por um outro motivo. Tocados pelo desejo de se enriquecer
sempre mais, os grandes industriais multiplicam suas indústrias ou
desenvolvem-nas em imensas proporções. Atraem para lá, ao redor deles,
populações cada vez mais numerosas. O contato do patrão com os operários
torna-se quase impossível: entre eles são encontrados mestres e contramestres, e
acima de todos, os acionistas, pois essas grandes empresas não podem
prosseguir sem grandes capitais tirados de numerosas bolsas. Pode-se pôr a
questão da proteção e sobretudo de paternidade para esses homens cujas ações
repousam no fundo de um cofre forte, e que de nenhum modo conhecem os
trabalhadores cujo labor dá valor a seus papéis?
Por todas essas razões, o burguês opulento também acabou por viver
separado do povo, como o gentil-homem dos últimos tempos. Ele terá
necessariamente a mesma sorte. Podemos mesmo dizer uma sorte pior: porque
em todas as épocas e entre todos os povos, a queda da aristocracia financeira,
industrial e comercial foi acompanhada de desordens mais violentas e mais
sangrentas do que as causadas pela suplantação da aristocracia feudal pela
aristocracia imobiliária.
dessa concorrência, e ele não é menos constrangido em sofrer os efeitos de sua lei. Lei implacável
que o coloca na impossibilidade material de dar a seus colaboradores uma remuneração condizente
com as condições da existência.
Assim, não é a independência, nem a liberdade, que o estado individualista engendra: é a servidão,
é a dependência: dependência do empregado relativamente ao patrão, dependência do patrão
relativamente à concorrência, dependência de todos relativamente às condições econômicas.
41
povos; menos ainda a fonte impura na qual várias se abeberaram. Enfim, a
desigualdade das condições que elas criam na mesma classe desencadeia as
cobiças e os apetites.
De maneira geral, o burguês pouco faz para apaziguá-las, não procura
aproximar-se da classe inferior, conhecer-lhe as aspirações e as necessidades;
ele foge do contato com suas misérias, longe de unir-se a ela para procurar
abrandar-lhe os sofrimentos, afastar o vício, restringir a pobreza.
Certamente, nesses últimos tempos um certo número de patrões deu ouvido
à voz da humanidade e da religião e fez grandes sacrifícios para a melhoria da
condição física e moral de seus operários. Encontram-se mesmo acionistas que,
nas assembléias, tomam a peito e em suas mãos seus interesses.
Todavia, não passam ainda de exceções.
O estado atual é este. Ao redor das fábricas amontoam-se multidões vindas
de todas as partes, desenraizadas dos campos que as viram nascer, arrancadas
dessa forma a todas as influências da família, da vizinhança, da paróquia.
Todos os laços que as retinham no bem, a honra da família, o respeito próprio em
relação aos que nos conhecem, a ação da religião através de suas instruções e
sacramentos, tudo isto é quebrado e logo substituído por outras influências: a
taberna, o jornal, o sindicato; a taberna, que corrompe o coração; o jornal, que
corrompe o espírito; o sindicato que acorrenta a vontade. O operário torna-se
assim muito facilmente e muito prontamente presa dos ambiciosos que adulam
seus piores instintos, dos escritores que espalham as idéias mais falsas, dos
camaradas através dos quais todas as sãs tradições são combatidas e
derrubadas, uma a uma. Os cérebros são invadidos pela dominação cega das
palavras: progresso, igualdade, liberdade, democracia; e as mãos seguram a
arma invencível do sufrágio universal.
Tudo isso não anda sem carregar consigo uma profunda desmoralização e a
desmoralização não tarda a produzir seu fruto: a pobreza. Os apetites devoram o
salário todos os dias; mais ele cresce, mais alimenta os apetites, e mais a
miséria se desenvolve.
Ela se abate sobre essas massas que, não mais tendo fé, nem lei, nem
fogo, nem lugar, não são contidas por mais nada, e estão dispostas a tudo para
alcançarem os gozos nos quais vêem seus patrões se fartarem.
Tocqueville escreveu: "É sempre com grande dificuldade que as classes altas
chegam a discernir claramente o que se passa na alma do povo. Quando o pobre
e o rico não têm praticamente mais interesses comuns, dificuldades comuns e
negócios comuns, essa obscuridade que esconde ao espírito de um o espírito do
outro torna-se insondável, e esses dois homens poderiam viver eternamente lado
a lado, sem jamais se compreenderem. É curioso ver em que estranha segurança
viviam todos os que ocupavam os estágios superiores e médios do edifício social
no exato momento em que a Revolução começava, e de ouvi-los discorrer
habilmente entre eles sobre as virtudes do povo, sobre sua candura, quando 1893
já estava sob seus pés".
Hoje a ilusão não é mais tão fácil. Para estar esclarecido, basta abrir os
jornais populares e os livros daqueles que são os únicos doutores ouvidos pelo
povo. Eles convencem que a condição do operário, na nossa sociedade, é pior do
que a do antigo escravo. Eles vão bem longe. "A propriedade, eis o roubo",
escreveu Proudhon. "O capital não passa de trabalho morto, escreveu Karl Marx,
e que, semelhante ao vampiro, só se anima sugando do trabalho vivo, e sua vida é
tanto mais alegre quanto mais ele sorve". "À medida que diminui o número dos
potentados do trabalho, escreve ainda, pela concorrência que fazem entre si,
aumentam as misérias, a opressão, a escravidão, a degradação, a exploração,
42
mas também a resistência da classe operária, sempre crescente e cada vez mais
disciplinada, organizada, unida pelo próprio mecanismo da produção capitalista.
Socialização do trabalho e centralização que chegam a um ponto que, não
podendo mais ser mantidas dentro do invólucro capitalista, rompem esse
invólucro em estilhaços. Soou a última hora da propriedade; os expropriadores
serão por sua vez expropriados".
E de que maneira se operará essa expropriação? Marc Stirmer di-lo: "Se
alguém se opõe à nossa marcha, como uma pedra no caminho, nós o faremos ir
pelos ares".
Essa catástrofe foi anunciada há muito tempo pelos clarividentes. Basta que
sejam lembradas as palavras de Le Play, Blanc de Saint-Bonnet, Donoso Cortez
etc.
Mas, ao lado dos clarividentes, quantos outros parecem tocados por essa
cegueira de que fala Pierre Leroux:
"Há homens verdadeiramente cegos, que não vêem nada nem pelo coração
nem pelo pensamento, que não vêem senão com os olhos do corpo. Se lhes
perguntardes: Babilônia ou Palmíria existiram e foram destruídas? Eles vos
responderão: sim; porque eles podem vos mostrar ruínas materiais, escombros
de edifícios enterrados nas areias do deserto..., mas se vós lhes disserdes que a
sociedade social está destruída, eles não vos compreenderão e rirão de vós,
porque eles vêem por todos os lados campos cultivados, casas e cidades cheias
de homens. Que dizer a esses cegos, senão o que Jesus dizia a seus
semelhantes: Oculos habentes, non vident”.
E no entanto, a Providência não lhes poupa os avisos.
"Quando uma sociedade não vê mais ou não quer ver o que deve fazer, diz
Alexandre Dumas Filho, essa Providência indica-lhe o caminho inicialmente
através de pequenos acidentes sintomáticos e facilmente remediáveis; depois,
persistindo a indiferença ou a cegueira, Ela renova Seus indicativos mediante
fenômenos periódicos, aproximando-os um dos outros cada vez mais,
acentuando-os cada vez mais, até alguma catástrofe de uma demonstração de
tal maneira clara que ela não deixa nenhuma dúvida sobre a vontade da dita
Providência. É então que a sociedade imprevidente se assusta, se amedronta,
grita contra a fatalidade, contra a injustiça das coisas".
Não é pouco provável que assistamos novamente às cenas horríveis que
desolaram a Grécia nos seus últimos tempos. Já temos o prólogo disso nas
greves que se multiplicam, que se alastram, que preparam a greve universal, à
qual o mundo operário todo se dispõe, e para a qual se organiza.
Mas toda a greve aumenta a miséria e toda a miséria maior atiça os ódios.
Em que abismo a greve geral fará cair a sociedade! E em que estado ela colocará
os espíritos e os corações! O judeu Henri Heine não profetizava às cegas quando
dizia: "Não está longe o dia em que toda a comédia burguesa na França terá um
fim terrível e em que se representará um epílogo intitulado: o reino dos
comunistas. Em Paris podem então passar-se cenas perto das quais as da
antiga Revolução pareceriam serenos sonhos de uma noite de verão".
Isto não seria apenas a ruína da burguesia, mas da pátria e da sociedade
inteira.
Por quê? Porque a lei das sociedades humanas terá cessado de ser
observada. Suspendei a lei da atração e o mundo cairá num terrível caos, os
astros se chocarão e se despedaçarão uns contra os outros. Suspendei no mundo
social a lei da harmonia entre as classes, e elas também se devorarão.
Nada pode salvar nossa sociedade de uma ruína irremediável, se não for o
restabelecimento dessa harmonia que Leão XIII mostrou como devendo ser a
salvação e à qual muito pouco numerosos patrões se têm dedicado. Afora isso,
43
todo outro meio é insuficiente. "Um, diz Monsenhor Ketteler, quer nos curar por
uma melhor divisão dos impostos, outro por diferentes categorias de caixas de
poupança, o terceiro pela organização do trabalho, o quarto pela emigração,
este pelo protecionismo, aquele pelo livre comércio, este outro pela liberdade das
associações de classe ou pela divisão do solo e da fortuna, este outro
precisamente pelos opostos, e outros ainda pela proclamação da República que
suprimiria toda a miséria e realizaria o paraíso sobre a terra. Esses meios têm,
certamente, maior ou menor valor, e alguns podem agir eficazmente; mas, para
curar nossas chagas sociais, eles não são mais do que uma gota de água no
oceano. A reforma interior de nosso coração, eis o que nos salvará. As duas
poderosas doenças do nosso coração são, de um lado, a sede insaciável de
gozar e de possuir, de outro lado, o egoísmo que matou em nós o amor ao
próximo. Essa doença atingiu tanto os ricos como os pobres. Que podem contra
isso uma nova divisão do imposto, ou das caixas de poupança..., enquanto
viverem esses sentimentos em nossos corações"? 4
4
L'un des six sermons prononcés à Mayence. Tradução de Decurtins.
44
45
CAPÍTULO VI
1
O espírito humano jamais dá vida aos membros do corpo se não estiverem unidos; assim o Espírito
Santo nunca dá vida aos membros da Igreja, se não estiverem unidos na paz. (N. do T.).
2
Encíclica Rerum novarum.
46
Foi assim que nasceu o regime administrativo inaugurado por Luís XIV,
constituído pela Revolução, consolidado e fixado por Napoleão I.
"Esta nação, dizia o imperador, está toda dispersa e sem coerência; é preciso
refazer alguma coisa; é preciso lançar no solo alguma base de granito". As bases
que ele lançou foram as instituições administrativas. Não há nada de granítico
nelas. As instituições sólidas e duráveis são aquelas que reúnem os homens que
comungam as mesmas idéias, os mesmos sentimentos, os mesmos interesses.
O regime administrativo não tem nenhuma raiz nas almas; ele é inteiramente
feito de regulamentos rígidos, aplicados por homens que têm a inflexibilidade da
máquina da qual são apenas as engrenagens. A máquina administrativa rebaixa
tudo, tritura tudo, mesmo as consciências; mas não pode deixar de lhe acontecer
o que acontece a toda máquina: um dia ou outro ela voará em estilhaços. Já se
fazem ouvir de todas as partes e em todas as coisas sinistras explosões,
precursoras da catástrofe final.
Teremos a sorte das antigas sociedades? Desapareceremos nesse desastre?
Ou poderemos nos reconstituir? O cristianismo oferece-nos recursos que o
paganismo não conhecia.
Ele soube recolher os destroços das civilizações antigas, e animando-os
com seu espírito, fez surgir dessas ruínas a civilização moderna. Poderá ele
restaurá-la e nos dar a vida? Certamente pode, se nós quisermos.
Ele é a fonte pura da caridade, quer dizer, do mais poderoso princípio
gerador das afeições recíprocas, da dedicação, do respeito, da fidelidade, de tudo
que garante a estabilidade, de tudo que nossos antepassados tinham encerrado
nesta palavra: "A PAZ".
São Denis, o Areopagita, cujas idéias tiveram tão grande influência sobre a
Idade Média, no seu livro Des Noms Divers, cantou a caridade nestes termos:
"E agora honremos, pelo louvor de suas obras harmônicas, a paz divina, que
preside toda aliança. Porque é ela que une os seres; que os concilia e produz
entre eles uma concórdia perfeita; assim, todos a desejam, e ela restaura na
unidade a multidão tão diversificada deles; combinando suas forças
naturalmente opostas, ela coloca o universo num estado de regularidade pacífica.
"É por sua participação na paz divina que os primeiros dentre os espíritos
conciliadores estão unidos, primeiramente entre eles mesmos, depois uns aos
outros, enfim ao soberano autor da paz universal; e que, por um efeito ulterior,
unem as naturezas subalternas a elas mesmas, e entre elas, e com a causa
única da harmonia geral... Dessa causa sublime e universal, a paz desce sobre
todas as criaturas, está presente entre elas, e penetra-as, guardando a
simplicidade e a pureza de sua força; ela as ordena, ela aproxima os extremos
com a ajuda das melhores, e as une assim como pelos vínculos de uma mútua
concórdia".3
Esses pensamentos tão elevados haviam penetrado as almas. Citemos como
exemplo o preâmbulo da "caridade" com a qual o conde de Flandres, Balduíno
III, dotou, em 1114, a cidade de Valenciennes.
"Em nome da Santa Trindade, paz a Deus, paz aos bons e aos maus.
Falamos de paz, meus caríssimos irmãos, para vosso proveito. A paz deve ser
desejada, deve ser procurada, deve ser guardada, pois nenhuma outra coisa é
mais doce, nem mais gloriosa. A paz enriquece os pobres e honra os ricos; a paz
dissipa todo o medo, traz saúde e confiança. Quem poderia enumerar todos os
seus benefícios? As divinas Escrituras dizem em seu louvor: "Ó Deus, como são
belos os pés do mensageiro que anuncia paz e boa nova!" E posto que a paz é
tão louvável e que produz bens em abundância, amai-a, meus caros irmãos, de
todo o vosso coração, mantende-a em vosso pensamento, guardai-a com toda a
3
Cap. XI, tradução de Monsenhor Darboy.
47
vossa força, a fim de que, por ela, possais viver em honra e chegar à paz eterna,
da qual disse Nosso Senhor: "Eu vos dou a minha paz".
Na mesma época, a "confraria" dos comerciantes de tecidos da mesma
cidade publicava suas ordenações, que começavam assim: "Irmãos, nós somos
imagens de Deus, porque está dito no Gênese: "Façamos o homem à nossa
imagem e semelhança". Nós nos unimos nesse pensamento e, com a ajuda de
Deus, poderemos realizar nossa obra, se a dileção fraterna estiver difundida entre
nós; porque pela dileção do próximo, elevamo-nos àquela de Deus. Por isso,
irmãos, que nenhuma discórdia haja entre nós, segundo a palavra do Evangelho:
"Eu vos dou um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros, como vos
tenho amado, e conhecerei que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos
outros".4
Reproduzindo esses documentos — que foram atos, e atos que produziram
durante séculos a razão de terem sido emitidos — queremos dizer que seja
necessário retornar ao feudalismo ou aos quadros estreitos das corporações de
outrora? Certamente não. Não se pode retornar às formas sociais do passado;
é coisa impossível, e nada há para lamentar. Mas o que é necessário, e o que
basta, é restaurar nos corações os nobres sentimentos que inspiraram as
instituições do passado, e na sociedade as relações que esses sentimentos
produziram. Desses sentimentos e dessas relações nascerão novas instituições,
conformes ao estado presente da sociedade.
Leão XIII não cessou de exortar a esse propósito. Comentando a palavra de
São Paulo aos Colossenses: "Mas sobretudo tende a caridade, que é o vínculo
da perfeição", ele disse: "Sim, na verdade, a caridade é o vínculo da perfeição...
Ninguém ignora qual foi a força desse preceito da caridade, e com que
profundidade, desde o começo, ela se implantou no coração dos cristãos, e com
que abundância ela produziu frutos de concórdia, de mútuo bem-querer, de
piedade, de paciência, de coragem! Por que não nos aplicaríamos em imitar os
exemplos de nossos pais? O próprio tempo em que vivemos não deve excitar-
nos mediocremente à caridade". 5
"Nós vos recomendamos, acima de tudo, a caridade sob suas formas
variadas, a caridade que dá, a caridade que une, a caridade que restaura, a
caridade que esclarece, a caridade que faz o bem pelas palavras, pelos escritos,
pelas reuniões, pelas sociedades, pelos socorros mútuos. Se essa soberana
virtude fosse praticada segundo as regras evangélicas, a sociedade civil se
conduziria bem melhor".6
"Para conjurar o perigo que ameaça a sociedade, nem as leis humanas,
nem a repressão dos juízes, nem as armas dos soldados seriam suficientes; o
que importa acima de tudo, o que é indispensável, é que se deixe à Igreja a
liberdade de ressuscitar nas almas os preceitos divinos e de estender sobre todas
as classes da sociedade sua salutar influência". 7
"Da mesma forma como no passado nenhuma força material pôde
prevalecer contra as hordas bárbaras, mas, bem ao contrário, foi a virtude da
4
O espírito de caridade, diz Luchaine, era muito desenvolvido em todas as corporações industriais e
comerciais, com mais forte razão quando elas se constituíam em confrarias. Não somente as
confrarias são, sob todos os pontos de vista, sociedades de socorro mútuo, mas uma parte de seu
tesouro comum é geralmente consagrada ao alívio dos infelizes. Grandes esmolas feitas no dia da
festa do patrono, convite a um certo número de pobres para a refeição da corporação, dinheiro
fornecido aos hospitais e leprosários, fundação de hospícios: tais são os usos beneméritos que estão
em prática na maior parte dessas associações (Manuel des Institutions Françaises, período dos
Capetos diretos, p. 368).
5
Encíclica Sapientiae Christianae.
6
Discurso ao Patriciado romano, maio de 1893.
7
Discurso aos operários franceses, 20 de outubro de 1889.
48
religião cristã que, penetrando seus espíritos, fez desaparecer sua ferocidade,
abrandou seus costumes e tornou-os dóceis à voz da verdade e da fé
evangélica; assim, contra os furores de multidões desenfreadas, não haveria
proteção segura sem a virtude salutar da religião, que, difundindo nos espíritos
a luz da verdade, insinuando nos costumes os preceitos da moral de Jesus Cristo,
far-lhes-á ouvir a voz da consciência e do dever, e porá um freio às
concupiscências antes mesmo que se ponham em ação e amortecerá a
impetuosidade das más paixões". 8
Conjurar o perigo da situação presente é apenas o primeiro serviço que o
retorno à caridade cristã pode nos conceder. Pertence-lhe ainda o
restabelecimento da sociedade na sua verdadeira constituição.
Ainda uma vez, não dizemos que seja necessário voltar aos sistemas das
castas do Egito ou da Índia, nem reconstituir o feudalismo, nem seguir os
métodos do Ancien Régime, mas é necessário compenetrar-se bem desta idéia:
que para escapar dos funestos efeitos do individualismo que, transformando
tudo em migalhas, reduz tudo à impotência, é absolutamente necessário refazer
as associações e organizá-las segundo a diversidade de seus fins e das funções
exigidas pela sociedade. Para alcançar esse objetivo basta a constituição de um
bom e saudável regime corporativo.
"Da mesma forma que no corpo humano os membros, apesar de sua
diversidade, se adaptam maravilhosamente uns aos outros, de modo a formar um
todo exatamente proporcionado e que poderíamos chamar de simétrico, assim, na
sociedade, as duas classes estão destinadas pela natureza a se unirem
harmoniosamente e a se manterem mutuamente em perfeito equilíbrio. Elas têm
imperiosa necessidade uma da outra: não pode existir capital sem trabalho, nem
trabalho sem capital. A concórdia engendra a ordem e a beleza; ao contrário, de
um conflito perpétuo só pode resultar a confusão das lutas selvagens”. 9
"Fazer cessar o antagonismo entre os ricos e os pobres, não é o único
objetivo perseguido pela Igreja; instruída e dirigida por Jesus Cristo, Ela dirige
Suas vistas para mais alto. Ela propõe um corpo de preceitos mais completo,
porque Ela ambiciona restaurar a união das duas classes até uni-las uma à outra
pelos vínculos de uma verdadeira amizade". 10
"A simples amizade será muito pouco; se se obedecem os preceitos do
cristianismo, é no amor fraterno que se opera a união de todos, ricos e pobres". 11
Reintegrada nos corações, essa caridade fixar-se-á por ela mesma nas
instituições, por pouco que se deseje isto.
"O que pedimos é que se cimente de novo o edifício social, pelo retorno às
doutrinas e ao espírito do cristianismo, fazendo reviver, pelo menos quanto à
substância , na sua virtude benfazeja e múltipla, e de tal forma que possam
permitir-lhe as novas condições do tempo, essas corporações de artes e de
ofícios que outrora, informadas pelo pensamento cristão, e inspirando-se na
solicitude maternal da Igreja, proviam as necessidades materiais e religiosas dos
operários, facilitavam-lhes o trabalho, cuidavam de suas poupanças e
8
Carta aos italianos.
9
Encíclica Rerum novarum. Na fábrica, como no ambiente doméstico, a matéria do contrato que
intervém entre o empregador e o empregado não é somente o trabalho a produzir, mas a pessoa
chamada a produzir. De onde segue que o contrato liga essas duas pessoas uma à outra. De onde
segue ainda que o vínculo formado é um vínculo moral que coloca um numa posição superior e o
outro numa posição inferior. Ora, justamente por existir um vínculo de superioridade, há obrigação
de proteção, de paternidade, de um lado, e de deveres filiais de outro, e aí está a razão pela qual as
questões que dizem respeito ao trabalho interessam simultaneamente à religião, à moral e à política.
10
Encíclica Rerum novarum.
11
Encíclica Rerum novarum.
49
economias, defendiam seus direitos e apoiavam, na medida desejada, suas
justas reivindicações". 12
Restabelecidas as corporações, não na sua antiga constituição, mas no seu
espírito, nesse espírito que Leão XIII acaba de descrever, elas muito
contribuiriam para o restabelecimento da "paz".
Um ilustre naturalista julgou poder dar a suas estudiosas observações esta
conclusão: A luta pela existência é a lei do reino animal. O estudo da história
permite afirmar com mais certeza que uma das principais leis da humanidade é o
"acordo pela vida".
Nosso Senhor Jesus Cristo impôs a prática desse acordo nestes termos:
"Tudo que quereis que os homens vos façam, fazei a eles". "Esta fórmula, diz o
Padre Gratry, tão curta e mais simples que a da atração, parece ser, como a lei
dos astros, um princípio completo, o princípio de uma ciência mais rica, mais bela,
mais importante que aquela do céu estrelado. Eis a lei primeira, a lei moral,
causa única de todos os progressos humanos". 13 De fato, a prosperidade se
estabelece e se desenvolve em toda a parte onde esta lei é observada, assim
nas nações como nas tribos, e nas corporações assim como nas famílias. Ao
contrário, a discórdia, a guerra, a ruína, fixam-se em toda a parte em que essa lei
deixa de ser respeitada.
O acordo pela vida tem sua primeira sede na família. É aí que ele
primeiramente se impõe com as mais evidentes razões e pelos mais fortes
sentimentos. "O amor provocado pelo vínculo do sangue, diz Jacques Flach, 14 a
comunhão de vida e de perigo, a necessidade de proteção em comum sob a
égide de um chefe, engendram a solidariedade familiar". As tribos se formaram
somente onde os mesmos sentimentos produziram o mesmo efeito, somente onde
a necessidade de se porem de acordo pela vida, irradiando-se além do lar
doméstico, atraiu as forças vizinhas e fe-las concorrer para um maior
desenvolvimento de ação e de vida. As nações não se formam de outra maneira.
Se tal é a lei da formação das sociedades, se o acordo pela vida é
exatamente a lei da humanidade, e se é exatamente na família que esta lei tem
seu início, assim que uma sociedade começa a se dissolver, que é necessário
para parar essa dissolução? Retornar ao princípio; fazer reviver a lei; e para
acender essa chama, retomar a fagulha do seu fogo, da morada familiar.15
Os franceses eram felizes e prósperos quando a família estava solidamente
constituída entre eles, quando o espírito de família animava a sociedade inteira, o
governo do país, da província e da cidade, e presidia as relações das classes
entre si.
Hoje, a família existe entre nós somente no estado elementar. Reconstituí-la
é obra fundamental, sem a qual toda tentativa de renovação será estéril. Jamais
a sociedade será regenerada, se a família não o for em primeiro lugar. "Ninguém
ignora, disse Leão XIII, que a prosperidade privada e pública depende
principalmente da constituição da família". 16
Balzac também disse: "Nada é sólido e durável se não for natural, e a coisa
natural em política é a família. A família deve ser o ponto de partida de todas as
instituições".
12
Aos operários franceses, 20 de outubro de 1889.
13
La Loi Morale et la Loi de l'Histoire , t. I, p. 11.
14
Les Organes de l'Ancienne France.
15
O autor vale-se aqui dos diversos sentidos da mesma palavra para tornar sua conclusão mais
precisa e literariamente mais bela, nela aglutinando a argumentação que vem desenvolvendo desde o
início da obra e a que acaba de expor neste capítulo. Em francês, foyer significa lar, lareira, foco de
luz, casa, morada, família , e em sentido figurado, centro, sede. (N. do T.).
16
Carta sobre a família cristã, 14 de julho de 1892.
50
CAPITULO VII
"Não são as vitórias dos militares, diz Funck-Brentano, nem os sucessos dos
diplomatas, nem mesmo as concepções dos estadistas que conservam a
prosperidade e a grandeza das nações e sobretudo que podem devolvê-las
quando perdidas ; é a força de suas virtudes morais". Essa convicção, formada
no seu espírito pelo estudo aprofundado das diversas civilizações, é a conclusão
do seu livro La Civilisation et ses lois.
É ilusão perigosa crer que um homem, seja ele um gênio, possa, da noite
para o dia, tirar-nos da situação em que nos encontramos e devolver à França sua
antiga grandeza. A queda é profunda demais, e data de muito tempo: começou
há vários séculos. Esse homem poderia apenas levantar-nos e recolocar-nos no
caminho. Ora, não há outra via de salvação senão aquela das virtudes, das
virtudes morais e sociais, que se encontram na origem de todas as sociedades,
propiciando-lhes o nascimento e, em seguida, construindo sua prosperidade
através da concórdia e do auxílio mútuo.
Também não é suficiente que se obtenha dos indivíduos, por mais
numerosos que sejam, a prática dessas virtudes; é preciso que elas sejam
incorporadas às instituições. As virtudes particulares passam com os homens que
as praticam. As nações são seres permanentes. Se as virtudes são o seu
1
Desconheces que tudo quanto existe costuma durar e subsistir enquanto é uno, mas costuma
igualmente perecer e se dissipar quando a unidade se desfaz? (N. do T.).
51
sustentáculo e fundamento, devem ser perpétuas; e essa perpetuidade só pode
ser encontrada nas instituições estáveis.
A primeira dessas instituições, a mais fundamental, aquela que é de criação
divina, é a família. A família, dissemos, é a célula orgânica do corpo social. É nela
que se encontra o centro das virtudes morais e sociais; é dela que as vimos
espraiar-se e penetrar com sua força todos os organismos sociais e o próprio
Estado.
Passou-se dessa maneira com todos os povos que chegaram a uma
civilização.
Ora, a família não existe mais na França. Esta afirmação poderá
surpreender; mas ela espanta apenas aqueles que, vendo nosso país no seu
estado atual, jamais tiveram idéia do que ele era outrora e do que ele deve ser.
Em tempos idos, a família francesa, como a família da sociedade antiga,
constituía um todo denso e homogêneo, que se governava com inteira
independência relativamente ao Estado, sob a autoridade absoluta de seu chefe
natural, o pai, e na via das tradições e dos costumes legados por seus ancestrais.
Atualmente, a família está a tal ponto dependente do Estado que o pai não
tem mais nem mesmo a liberdade de educar seus filhos como sua consciência e
as tradições de família dizem que deve ser. O Estado se apodera deles, com a
vontade legalmente proclamada de fazer desses meninos crianças sem-Deus e,
conseqüentemente, sem-costumes. E os pais de família perderam de tal maneira
o sentimento do que eles são, que deixam acontecer!
É que não temos mais na França, acerca da família, a idéia que dela se tinha
outrora, a idéia que dela tiveram todos os povos que vivem e que progridem.
Nós não a percebemos mais senão como ela é na presente geração. Ela não
forma mais em nosso pensamento, e mesmo na realidade, com as gerações
precedentes e as gerações subseqüentes, esse todo homogêneo e solidário que
atravessava os tempos com sua viva unidade.
Em uma das conferências que proferiu no Oratório, monsenhor Isoard disse
acertadamente:
"A vida do indivíduo é una, mas a análise descobre nela três elementos, as
forças diversas de três tempos distintos. Esse homem já viveu em outras
existências. Ele tem o sentimento de ter vivido em seu avô, em seu bisavô. O
que eles pensaram, ele reencontra dentro de si mesmo. A vida de seus ancestrais
é o começo da sua, é sua primeira época. A segunda, a presente, a vida
individual, é como uma eflorescência da primeira. Eu continuo a obra do meu
bisavô, acrescento ao seu pensamento; o que ele desejaria fazer, eu faço, eu
prolongo sua ação neste mundo. Ah! viverei longamente sobre esta terra, na
qual já conto tantos anos de infância pelos meus antepassados, de adolescência
pelo meu pai, de maturidade por minha própria existência! É esta terceira vida
que ele ama, que ele contempla incessantemente. Ele viverá no filho, no neto, no
bisneto. Seu bisavô percebia-o de bem longe, na bruma, quando trabalhava,
conservava, entesourava. E ele, ele olha desse mesmo ponto de vista para a
frente: ele pensa, deseja, edifica para o bisneto, para aqueles que estão lá, tão
distantes, nos limites do horizonte. E, dessa forma, todo o homem que vive em
um tempo no qual reina o espírito de tradição é um em meio a numerosas
gerações. Ele vive nelas. Ele tem esse sentimento, de preparar sua própria vida
naqueles que o precederam, que ele continuará a viver por muito tempo
naqueles que virão após ele".2
2
O japonês Naomi Tamura, voltando de uma viagem aos Estados Unidos, publicou um livro sobre a
família. Ele explica que no seu país o casamento repousa sobretudo sobre a idéia de estirpe. "A vida
de um homem, diz ele, tem menos importância que a vida de uma família. Sob o regime feudal, o
castigo mais terrível era a extinção de uma família que existia há centenas de anos; e ainda nos
52
Em seguida ele relata um colóquio que tinha ouvido um mês antes entre
nosso Monsieur e seu capataz. Este dizia: "No último mês de dezembro fez
trezentos e quarenta e sete anos que nós estamos com Monsieur, e o outro
respondia: Nós , nós estávamos aqui antes de você; não sei exatamente o
número de anos, sei apenas que faz mais de seiscentos anos". Monsenhor
Isoard assinala: "Eis aí dois homens nos quais ainda não foi esmagado,
torturado, um dos mais profundos, dos mais poderosos sentimentos do homem. É
este sentimento que faz o espírito de tradição, espírito que pode ser contrariado
na sua expansão, cujo esforço, por um momento, pode ser quebrado, mas que é
indestrutível, porque o homem é feito para a vida".
O Estado, nascido da Revolução que retirou da família francesa sua
independência, também elaborou leis para tirar-lhe essa coesão e essa
estabilidade. 3
Entre os numerosos sofismas que J. J. Rousseau, o doutor do Estado
revolucionário, o evangelista da sociedade moderna, tirou da pretendida bondade
inata do homem, encontra-se este: "Os filhos não permanecem ligados aos pais
senão pelo tempo em que têm necessidade dele para se conservarem. Logo que
essa necessidade desaparece, o vínculo natural se dissolve. Os filhos, livres da
obediência que devem ao pai, o pai, livre dos cuidados que devia aos filhos,
retornam todos igualmente à sua independência; se continuam a permanecer
unidos, não é mais naturalmente, é voluntariamente, e a própria família só se
mantém por convenção".4
Essas palavras rebaixam o homem ao nível dos animais. Aí, com efeito, o
vínculo se dissolve assim que cessa a necessidade. A Revolução, que quis fazer
entrar nos costumes, por suas leis, todas as idéias de Jean-Jacques, não deixou
de apoderar-se desta e dela tirou a lei do divórcio. Abolida pela Restauração,
essa lei antifamiliar foi promulgada de novo pela atual República, que a agrava a
cada dia.
A lei de 1884 5 fez esta restrição, que o artigo 298 do Código Civil, que proibia
em caso de adultério o casamento entre os cúmplices, tinha conservado.
A lei de 15 de dezembro de 1904 ab-rogou o artigo 298.
No dia 13 de julho de 1907, o interstício imposto aos divorciados para que
pudessem contratar novo casamento, foi abreviado, com antecipação do seu
início. No dia 5 de junho de 1908 uma nova lei tornou automática a conversão das
separações de corpos em divórcio, que, até então, era facultativa. Ao mesmo
tempo foi autorizada a legitimação dos filhos adulterinos e incestuosos.
Um projeto de lei que estabelece o divórcio por mútuo consentimento é objeto
de um parecer muito favorável na Câmara dos Deputados. 6
nossos dias todo japonês instruído crê que a extinção de sua estirpe é a maior calamidade que pode
tocar um ser humano.
3
Não somente as leis, mas quantas instituições parecem feitas para contribuir para o deslocamento
da família! Tomemos por exemplo as sociedades de auxílio mútuo; elas são certamente dignas de
encorajamento e de elogio. Elas põem em comum os riscos,para tornar seu peso mais leve, e as
economias, para aumentar-lhes a eficácia pela segurança. Mas é a individualidade que lhes serve de
base; elas ignoram a família. Nós temos sociedades de homens, sociedades de mulheres, e mesmo
sociedades de crianças. Elas não vêem na família uma sociedade indissolúvel, um todo compacto.
Elas quebram-lhe a coesão.
4
O Contrato Social , cap. II.
5
O promotor do divórcio é o judeu Naquet. Ele recebeu em 1884 as felicitações da Maçonaria. A
Loja de Bar-le-Duc escreveu-lhe: "É uma desforra do Estado sobre a Igreja, e um caminho para a
separação desses dois velhos aliados".
6
"A lei do divórcio, disse Paul Bourget, foi feita em nome dos direitos do indivíduo, contra o vínculo
da família. É inevitável que ela tenda cada vez mais a desatar esse vínculo até que acabe por
rompê-lo inteiramente. Todas as razões que foram válidas para autorizar o divórcio, são igualmente
válidas para sua indefinida extensão, e asseguro jamais ter compreendido que objeção os partidários
53
A lei de 13 de julho de 1907 trouxe um outro atentado à família,
enfraquecendo-lhe de novo a autoridade. Sem dúvida é necessário um chefe em
toda sociedade. O chefe da família é o homem; o apóstolo São Paulo limita-se a
lembrar, sobre esse ponto, a instituição divina. A nova lei decidiu que, qualquer
que seja o regime adotado pelos esposos, a mulher poderá administrar os
produtos do seu trabalho pessoal e as economias daí decorrentes, sem
autorização do seu marido.
Sem dúvida, havia mulheres que sofriam com isso; mas não se remediam as
desordens particulares mediante atentados contra os princípios.
Um dos órgãos da democracia cristã, o Le Peuple Français, felicitou os
legisladores por esse "retorno ao princípio superior do nosso direito, que é o
respeito à dignidade e à independência da pessoa humana", quer dizer, felicitava
o legislador pela introdução da democracia na família.
A Restauração, que havia anulado a lei do divórcio, tinha feito o trabalho
pela metade. Ela tinha deixado subsistir o casamento civil, outra invenção
revolucionária, cujo objetivo era retirar do casamento a sanção divina, e cujo
efeito era de retirar da família a coesão que lhe dão os vínculos selados pelo
próprio Deus.
Para rematar a desorganização da família, o Código Civil prescreveu a
partilha igual e em natureza, entre os filhos, dos bens móveis e imóveis deixados
pela morte do pai. 7 Os efeitos dessa lei são desastrosos, tanto para o Estado
quanto para a família; ela vem juntar-se ao divórcio e ao casamento civil para
obter que a família francesa não tenha mais, não possa mais ter a estabilidade
que lhe permitia outrora atravessar os séculos. E no entanto, essa estabilidade
se coaduna tão bem com a ordem desejada por Deus, que a encontramos
ensinada em toda a Bíblia.
do princípio individualista, do qual falam os autores de Duas Vidas , puderam encontrar na lógica
desse memorável escrito. (No romance Duas Vidas, Paul e Victor Margueritte acabavam de fazer-se
os apóstolos do "alargamento do divórcio").
"Esses romancistas tiveram o mérito não somente de corporificar suas teorias numa fábula
emocionante e forte, mas também de tirar as conclusões com uma singular nitidez. Estou persuadido
de que o essencial de seu projeto não tardará a entrar no Código, posto que num intervalo de tempo
muito curto será ultrapassado, e que essa oferta extra de facilidade irá assim se agravando até o dia
em que a lei do divórcio tiver manifestado a conseqüência que realmente traz consigo: a substituição
da Família pela União livre".
7
Os laços de família, tais como o Código os deixou subsistirem, são ainda estreitos demais para o
gosto da democracia. O relator do projeto de lei sobre a aposentadoria dos trabalhadores, Colin,
professor de direito em uma faculdade do Estado, pensa que é chegada a hora de dar à constituição
da família um novo golpe de picareta.
"Quanto à preocupação, diz em seu relatório, de manter os vínculos nas mesmas famílias,
preocupação que era dominante no nosso antigo direito, e da qual não souberam talvez libertar-se os
redatores do Código Civil, é evidente que ela não deveria ter nenhum peso nas preocupações de um
legislador que estabelece normas para uma sociedade na qual o triunfo das idéias democráticas não
se discute mais..."
Após considerações de ordem moral, ou melhor, imoral, Colin chega às conclusões práticas de seu
projeto, que são:
"1ª A supressão da herança colateral, a partir do quarto grau;
"2ª A redução dos direitos do cônjuge sobrevivente à metade da sucessão de seu consorte, devendo
a outra metade retornar ao Estado;
"3ª A proibição de qualquer devolução de linha paterna à linha materna, e reciprocamente, nas
sucessões deferidas aos ascendentes e aos colaterais..."
Assim, o Código Civil, que já havia desenraizado a família francesa, não realiza com suficiente
pressa sua obra de destruição.
54
Maria e José, como ademais todos os hebreus, sabiam que eles compunham com
seus ancestrais uma só e mesma família, que remontava a David, como David
remontava a Judá, um dos filhos de Jacó, como Jacó remontava a Noé, o
restaurador da raça humana. De Noé tinham saído três grandes ramificações
que, a cada geração, produziam novos troncos; e cada um desses troncos
guardava religiosamente as genealogias, através das quais eles se ligavam ao
tronco comum.
Durante muito tempo foi assim na nossa França. Citemos, por exemplo,
essas linhas tiradas do livro de família de André d'Ormesson, conselheiro de
Estado no século XVII: "Que nossos filhos conheçam aqueles dos quais
descenderam de pai e de mãe, que sejam incitados a rezar a Deus por suas
almas, e a abençoar a memória dos personagens que, com a graça de Deus,
honraram sua casa e adquiriram os bens dos quais eles fruem".
Pierre de C. escreve, ainda mesmo em 1807: "Encontrareis, meus filhos,
uma série de antepassados estimados, considerados, honrados em sua região e
por todos os seus concidadãos. Uma existência honesta, uma fortuna medíocre,
mas uma reputação sem mancha: eis o capital que transmitiram, durante
quatrocentos anos, onze bons pais de família, que jamais abandonaram o nome
que tinham recebido, nem a pátria onde nasceram".
Por essa expressão "a família", não se compreendia, pois, como hoje,
somente o pai, a mãe e os filhos, mas toda a linhagem dos ancestrais e aquela
dos filhos por vir.
Para ser assim una e contínua através dos séculos, ela tinha não somente a
comunhão do sangue, mas, se posso dizer dessa forma, um corpo e uma alma
perpétuos. O corpo era o bem de família que cada geração recebia dos
antepassados como um depósito sagrado: ela o conservava religiosamente, ela se
esforçava para aumentá-lo, e ela o transmitia fielmente às gerações seguintes. A
alma eram as tradições, quer dizer, as idéias dos antepassados e seus
sentimentos, os usos e os costumes que daí decorriam.
Foi dentro dessa compreensão abrangente que a família se manteve na
França, como ademais por quase toda a parte, até a Revolução.
Uma lei escrita no coração dos franceses, consagrada por um costume muitas
vezes secular, assegurava a transmissão do patrimônio de uma geração a outra; e
um tríplice ensinamento, aquele dado pela conduta dos pais que os filhos tinham
diante de seus olhos, aquele das exortações, dos conselhos, das admoestações
que eles recebiam, e aquele dos escritos chamados livros de razão ou livros de
família, mantidos atualizados por cada geração, assegurava a transmissão das
tradições familiares.
Atualmente, os livros de razão não mais existem, nem mesmo na condição de
recordações, salvo apenas entre os eruditos; o patrimônio é considerado pelos
filhos apenas como uma presa a partilhar; e quantos há entre nós que poderiam
dar o nome de seus bisavós?
A família não existe mais na França. E aí está, para dizê-lo de passagem, a
explicação para os poucos resultados obtidos pelos padres e religiosos que
tiveram em mãos, durante meio século, o ensino primário e secundário de mais
da metade da população. Suas lições não encontravam mais, para se
sedimentarem, o fundamento sólido que as tradições de família devem colocar
na alma da criança.
Não somente a família não existe mais na França, mas não resta mais nada
da constituição social que a história viu sair da família entre todos os povos
civilizados. A família real foi decapitada; as famílias aristocráticas foram
dizimadas, e as que escaparam ao massacre e à ruína foram colocadas, pelas
leis, na impossibilidade de agir e mesmo de conservar sua posição. Enfim, as
55
mesmas leis colocam as famílias burguesas e proletárias na impotência de se
elevarem de uma maneira contínua.
Nem em Atenas, nem em Roma, a sociedade, assim desmoronada sobre si
mesma, se levantou. O cristianismo dá-nos meios de regeneração de que as
sociedades pagãs não dispunham. Saberemos empregá-los?
Faz um século que nossos esforços têm fracassado. Por quê? Porque,
sofrendo a ação deprimente das leis e dos costumes, tirados dos sofismas de
Jean-Jacques, nós vimos apenas o indivíduo, trabalhamos sobre o indivíduo, em
vez de considerar a família e de conduzir nossos esforços para reconstitui-la. A
família reconstituída produziria de novo homens. É o grito geral: não temos mais
homens! Se não temos mais homens é porque não temos mais famílias para
produzi-los; e não temos mais famílias porque a sociedade perdeu de vista a
finalidade de sua própria existência, que não é obter para o indivíduo a maior
quantidade de gozos possível, mas proteger a germinação das famílias e ajudá-las
a se elevarem sempre mais alto.
A família, dissemos, tem dois suportes: o Lar e o Livro de família, na França
chamado Livro de razão. Esses dois suportes foram quebrados, um e outro, pela
lei: o primeiro diretamente, o segundo por via de conseqüência. A transmissão da
casa e do patrimônio que a envolve, formava entre as sucessivas gerações o
vínculo material que as ligava umas às outras. A esse primeiro vínculo juntava-se
um outro: a genealogia e as lições dos antepassados, consignadas no livro no
qual a genealogia estava fixada. O Código Civil opôs-se à transmissão da casa;
ele decretou a partilha igual dos bens móveis e imóveis: por aí, ele isolou todas as
gerações, tornou cada uma delas independente, e independentes daquelas que
a precederam e daquelas que estavam por vir; e para todas modificou pouco a
pouco a maneira de pensar relativamente à herança paterna. Não se vê na
herança senão uma fonte de prazeres pessoais. Outrora, era um depósito, um
depósito sagrado que se tinha a obrigação de transmitir como fora recebido.
O estado dos bens da família de Antoine de Courtois, cujo livro de razão foi
publicado por Ribbe, estava precedido dessas linhas, endereçadas aos filhos:
"Meus bem-amados, nós temos o gozo de nossos bens, mas podemos consumir-
lhe apenas os frutos. Nossos bens estão em nossas mãos para que trabalhemos
sem cessar para melhorá-los, e em seguida para que os transmitamos após nós
àqueles que nos seguirão no curso da vida. Aquele que dissipa seu patrimônio
comete um roubo horrível: ele trai a confiança de seus pais, desonra seus filhos;
melhor teria sido, para ele e para sua descendência, que jamais tivesse nascido.
Receai, pois, comer o bem de vossos filhos e cobrir vosso nome de opróbrio".
Esses sentimentos decorriam naturalmente do pensamento que todos
tinham no espírito, a saber: que o lar e o domínio patrimonial eram objeto de uma
espécie de fideicomisso 8 perpétuo; que não era permitido diminuir, que todos
deviam se esforçar para aumentar.
"Eu me vanglorio, escreve, no seu Livro de família, Pierre de Fresse de
Morival, que meus filhos se lembrarão com reconhecimento e jamais esquecerão
que sempre usei, relativamente a mim e para minhas necessidades pessoais, a
mais rigorosa economia; que, juntamente com minha cara e bem-amada esposa,
trabalhamos constantemente e sem descanso, durante todo o curso de nossa
vida, para a conservação de nossa pequena fortuna, e que, a nosso exemplo,
para reconhecer o que fizemos por eles e para secundar nossos desejos, eles
viverão em paz, cooperando mutuamente para o bem-estar recíproco deles".
8
Disposição testamentária pela qual o testador institui dois ou mais herdeiros ou legatários,
impondo a um (ou alguns) deles a obrigação de, por sua morte, transmitir ao(s) outro(s), a certo
tempo e sob certa condição, a herança ou o legado. (N. do T.).
56
"Cada família de Judá e de Israel, diz a Sagrada Escritura, vivia em paz sob
sua vinha e sua figueira". 9 Era assim na nossa França, e para que assim fosse,
os filhos eram criados no pensamento de que, após a morte dos pais, o
patrimônio não podia ser dividido, e a casa paterna, asilo de paz consagrado
por tantas lembranças e virtudes, não podia ser vendido sem crime. O que
podia ser partilhado era o produto líquido do trabalho comum, para o qual tinham
concorrido os diversos membros da sociedade doméstica atual; mas a obra dos
ascendentes devia ser conservada intacta, para ser recolocada fielmente nas
mãos daqueles que, amanhã, nos séculos seguintes, continuariam a manter a
família que os primeiros autores tinham fundado. Se um de seus descendentes
violasse o pacto e dissipasse o bem comum, carregaria diante de sua
posteridade a vergonha de haver feito decair a família. "Nosso pequeno bem, diz
Pierre-César de Cadenet de Charleval, cresceu pouco a pouco pela boa
administração de nossos fundadores. É preciso reconhecer que o luxo não estava
tão difundido como no presente. O primeiro que se afastou desse uso foi meu
avô. Ele quis ir a Paris, e em um ano gastou 14.000 libras... Pouco a pouco o
luxo imperou, e não se fizeram mais capitais; hoje temos muita dificuldade de nos
manter com o que resta".
E Antoine de Courtois, que já citamos: "Enquanto este domínio estiver com a
família, ela sempre terá uma existência honrada. Não me detenho no pensamento
de que meus descendentes possam se ver na necessidade de vendê-lo. Vender
os campos paternos é renegar o nome dos pais e deserdar seus filhos".
Charles de Ribbe, que estudou numerosas famílias antigas nos documentos
que elas deixaram, e particularmente nos livros de razão, diz: "Na sua maioria
humildes na origem, elas se elevaram degrau a degrau; cada geração acrescenta
uma nova pedra ao edifício de sua fortuna. Elas trabalham energicamente, elas
se empenham em bem pensar e em bem agir, elas constróem boas casas (era o
nome então consagrado), casas paternas, honradas, e que são o centro de uma
dignidade respeitada por todos".
Com sua estabilidade, seu espírito de união, suas tradições de trabalho e de
vida austera, a casa paterna de outrora, na qual se formava uma longa série de
gerações de pessoas de bem, foi uma instituição eminentemente social e
verdadeiramente cristã. Assim, ela era objeto da veneração dos homens.
Hoje, a casa paterna não merece mais esse nome, porque ela não é mais a
sede permanente e durável da paternidade. Com a morte dos pais, ela é
vendida a preço que será dividido, como se ela não pertencesse à família, como
se nada fosse além de um hotel momentaneamente alugado. Com ela é vendido
o patrimônio. Por pequeno que seja, ele é objeto de reivindicações que se
apegam às menores parcelas; seus fragmentos se dispersam, como uma poeira
infecunda. Quanto mais filhos há, quer dizer, quanto mais moral é a família, mais
é impossível de fugir às conseqüências dessa irresistível liquidação. A família
fica condenada ao estado nômade, ela fatalmente perece. A cada trinta anos, em
média, uma liquidação forçada é executada. "Funcionando, diz Ribbe, à maneira
de uma foice, ela [a partilha obrigatória] corta a cepa do tronco doméstico".
9
Livro dos Reis, III, cap. IV, 25.
57
CAPITULO VIII
FAMÍLIAS-TRONCOS
1
Depois da morte de sua mãe, Tobias partiu de Nínive com sua mulher, seus filhos e seus netos, e
voltou parar a casa de seus sogros. Encontrou-os em perfeita saúde, numa ditosa velhice. Teve para
com eles todas as atenções, e fechou-lhes os olhos. Tomou posse da herança da casa de Raguel, e viu
os filhos de seus filhos até a quinta geração. Morreu com alegria, tendo vivido noventa e nove anos
no temor do Senhor, e seus filhos sepultaram-no. Toda a sua parentela e toda a sua descendência
perseverou numa vida íntegra e santo procedimento, de modo que foram amados tanto por Deus
quanto pelos homens e por todos os seus compatriotas.
58
dos ancestrais, pelo espírito da estirpe. O lado ruim desse regime é a rotina, a
ausência de progresso.
A família-tronco mantém-se através das gerações como a família patriarcal,
mas ela tem mais flexibilidade e se presta melhor ao aperfeiçoamento.
Ela tem, como a família patriarcal, um duplo elemento de estabilidade e de
perpetuidade: um, material, o lar; outro, moral, a tradição.
O interesse que a família-tronco considera como maior e que ela coloca antes
de todos os outros é a conservação do bem patrimonial transmitido pelos
antepassados. A família é semelhante a uma colméia: novos enxames de abelhas
aí nascem e dali partem, mas a colméia não deve perecer.
Para mantê-la, os pais, a cada geração, associam à sua autoridade aquele de
seus filhos que julgam mais apto para trabalhar segundo o propósito deles, e a
continuar após sua morte a obra da família: o cultivo da propriedade familiar ou o
funcionamento da indústria. Este filho não é de direito o primogênito, ele o é
quase sempre de fato. O primogênito parece designado pela Providência, ele se
presta melhor a dar seu apoio ao pai, ele pode melhor cuidar da educação de seus
irmãos e irmãs. Ele se prepara desde cedo para as obrigações que lhe são de
alguma forma impostas pela vontade divina. No momento de seu casamento ele é
instituído herdeiro da casa e do domínio ou da oficina; ou melhor, ele é constituído
depositário para transmitir esses bens, após tê-los feito valorizar, à geração
seguinte. Em Provence, ele é chamado o sustentáculo da casa.2
Essa qualidade impõe-lhe os encargos de chefe da família. Ele tem a
obrigação de criar os irmãos mais jovens, de dar-lhes uma educação de acordo
2
Te voilà fort et grand garçon Eis-te homem quase feito,
Tu vas rentrer dans la jeunesse Vais entrar na puberdade;
Reçois ma dernière leçon Recebe minha última lição:
Apprends quel est ton droit d’ainesse. Saibas qual é teu direito de primogenitura.
Ainsi que mon père l’a fait Assim como meu pai procedeu,
Un brave aîné de notre race Um bravo primogênito da nossa estirpe
Se montre fier et satisfait Mostra-se orgulhoso e satisfeito
En prenant la plus dure place. Em tomar o lugar mais difícil.
Du poste où le bon Dieu l’a mis Do posto no qual o bom Deus o colocou
Il ne s’écarte pas une heure; Ele não se afasta um só momento;
Il y fait tête aux ennemis, Aí ele enfrenta os inimigos,
Il y mourra s’íl faut qu’il meure! Aí ele morrerá se for preciso!
Nos chers petits seront heureux, Nossos queridos filhos serão felizes,
Mas il faut qu’en toi je renaisse. Mas é preciso que eu renasça em ti.
Veiller, lutter, souffrir pour eux... Vigiar, lutar, sofrer por eles...
Voilà, mon fils, ton droit d’aînesse! Eis aí, meu filho, teu direito de primogenitura!
Victor de Laprade
59
com a condição da família, de dotá-los e de estabelecê-los com a economia
realizada ano após ano pelo trabalho de todos. Se o herdeiro morre sem deixar
filhos, um dos membros estabelecidos fora do lar deixa sua casa e retorna para
assumir os deveres de chefe. Esses deveres compreendem, além dos que já
mencionamos, a manutenção do lar e de suas dependências, a guarda do jazigo
dos ancestrais, a celebração dos aniversários religiosos etc. Tudo isso impõe-lhe
uma existência severa e frugal cujo exemplo é bom para iniciar as gerações jovens
na virtude.3
"Não se é digno de governar os homens, diz Bonald, quando não se percebe
a influência sobre os hábitos de um povo, quer dizer, sobre suas virtudes, de uma
lei que, constituindo cada família como a própria sociedade, aí estabelece de
alguma maneira a realeza pelo direito de primogenitura, e a indivisibilidade e
quase inalienabilidade do patrimônio pela necessidade de conveniência em que
estão os irmãos de pegar em dinheiro sua porção legítima, e de deixar na casa
paterna a integridade das posses. Essa casa foi a residência de meus pais, ela
será o berço dos meus descendentes. Aí vi a velhice sorrir para meus primeiros
trabalhos, e verei eu mesmo a infância ensaiar suas formas nascentes. Esses
campos foram cultivados por meus pais e eu mesmo os cultivo para meus filhos.
Lembranças assim caras, sentimentos tão doces ligam-se ao mais poderoso
gosto do coração do homem, o gosto da propriedade, e faz a felicidade do
homem, assegurando-lhe o repouso da sociedade; digo mais, asseguram a
perpetuidade. No país onde, pela igualdade das partilhas, a lei força os filhos a
venderem tudo o que poderia lembrar-lhes os pais, jamais há família; direi mais,
jamais há sociedade, porque a cada geração a sociedade termina e recomeça.
3
Edmond Demolins viajava um dia a bordo de um navio norueguês. Ele sabia que a propriedade do
camponês da Noruega é um pequeno reino que o pai transmite integralmente a um de seus filhos.
"Eu quis, conta Demolins, saber o que o capitão do navio pensava da partilha das sucessões no seu
país. Sua opinião me interessava tanto mais quanto nosso homem, não tendo sido designado herdeiro
por seu pai, parecia não possuir nenhuma razão pessoal para ser favorável à transmissão integral.
"No que concerne à sua sucessão, o pai, disse-me textualmente, faz o que lhe dá na cabeça . Ele
escolhe sozinho e sem controle aquele de seus filhos ao qual quer deixar seu barco de pesca e sua
propriedade rural.
Nessas condições, disse-lhe eu, qual é o destino dos filhos que não herdam da propriedade?
O pai ajuda-os a se estabelecerem, dando-lhes somas de dinheiro de que pode dispor.
Ele dá a cada um deles uma soma igual?
Fiz essa pergunta a fim de saber se as idéias de partilha igual, tão caras aos franceses, excitariam
alguma simpatia no espírito de meu interlocutor.
Ele me olhou com espanto, depois respondeu: "Mas isso não seria justo. Os filhos não são todos
iguais: uns têm mais sorte ou mais qualidades do que os outros, e logram rapidamente obter uma
posição; para esses o pai dá pouco ou não dá nada, a fim de poder ajudar mais eficazmente os outros.
"Ademais, acrescentou, o sucesso na vida não provém do dinheiro de que se dispõe, mas das
qualidades pessoais. Tanto vemos ricos que se arruínam por sua incapacidade, quanto pobres que se
elevam à riqueza pelo trabalho. Um homem deve saber prover a si próprio".
Essa resposta me surpreendeu: ela coloca a questão no seu verdadeiro terreno. Com sua brutalidade,
nossa partilha igual não é, em cada família, senão uma fonte permanente de desigualdades. A
apreciação do pai é mais justa, porque ela pesa, para cada filho, as desigualdades da natureza. Ela
restabelece o equilíbrio e disso resulta dar a cada um o socorro proporcionado à sua necessidade. Ela
não rebaixa o pai ao papel de um simples caixa, mas eleva-o à dignidade de juiz e de eqüitativo
despenseiro da fortuna que soube ganhar ou conservar.
Nessas condições, o pai não é levado a limitar o número de filhos, porque ele não considera cada
recém-nascido como um credor que deve reclamar sua parte do domínio ou diminuir aquela de seus
irmãos e irmãs.
Interroguei o capitão a propósito da situação dessas últimas.
Elas não têm dote. "Em semelhantes condições, observo, uma francesa dificilmente encontraria um
marido. Não conheço nenhum norueguês, respondeu o capitão, que se tenha detido por essa
consideração. Nós pensamos que um marido deve ser capaz de sustentar sua família".
60
"Aí, nenhum dos filhos tem interesse em permanecer perto de seus pais
para trabalhar gratuitamente para melhorar um bem do qual os irmãos, por
ocasião da morte do pai, retirarão tanto quanto ele. Os filhos, quando estão
com idade de trabalhar, deixam a casa paterna para procurar salários mais altos
em outras explorações agrícolas ou em estabelecimentos industriais. Os pais,
entretanto, avançam em idade e logo a velhice ou as enfermidades não mais lhes
permitem cultivar seu bem. Eles o vendem, pedaço a pedaço, na medida de suas
necessidades, ou o deixam depreciar; e desde que não mais estão nesta terra,
os filhos vêm partilhar o que resta, algumas vezes amaldiçoam seu pai pelo que
ele deteriorou do patrimônio, ou mais freqüentemente brigam entre si por essa
partilha; e os corações ficam ainda mais divididos do que retalhadas as
propriedades.
"E a mãe, se sobrevive ao esposo, a mãe, única autoridade que a infância
reconhece e que a juventude ainda respeita, que se tornará? Viúva de seu marido,
viúva de seus filhos, os quais, sem ponto de referência que os una, vão cada qual
para seu lado; ela vê o leito nupcial ser vendido, o berço no qual ela tinha aleitado
seus filhos, a casa pela qual ela deixou a casa paterna e na qual ela acreditava
terminar seus dias; ela fica isolada, sem consideração e sem dignidade,
abandonada ao mesmo tempo pela família à qual ela deu a vida, e por aquela da
qual ela a havia recebido.
"E os mais moços têm motivo para se felicitarem, tanto quanto se tem para
crer na igualdade das partilhas? Sem dúvida, em algumas famílias opulentas e
pouco numerosas, as primeiras partes são maiores; mas cada filho quer constituir
uma família; e esse bem inicialmente dividido em pequeno número, divide-se
de novo entre um número maior, e cedo ou tarde esse desmembramento cresce
em proporção geométrica. Entre os pequenos proprietários esse mal faz-se sentir
na primeira geração; cada qual, no entanto, permanece ligado à sua pequena
fração de propriedade, atormenta-se e extenua-se para dela retirar uma
subsistência medíocre, que teria obtido com menos esforço e mais proveito numa
outra profissão.
"A igualdade das partilhas dá um golpe mortal na propriedade. Que interesse
pode colocar um proprietário na aquisição e na melhoria de uma propriedade que
lhe causa tanto embaraço durante sua vida, e que deve, com sua morte,
desaparecer em frações imperceptíveis e ir engordar o patrimônio de uma família
estranha? Como ousaria ele se dedicar a especulações para melhorias que ele
pode não concluir e que ninguém depois dele continuará?"
61
sacrifícios, nossos pais, numerosos monumentos de nossos ancestrais. Vede
esta casa, nasci neste lugar. Não sei que encanto aí se encontra que toca meu
coração e meus sentidos".4
Quanto ao herdeiro da velha casa, ele oferece durante meio século a
educação, depois o estabelecimento de duas gerações, a de seus irmãos e a de
seus próprios filhos. Após ter por sua vez instituído e guiado o herdeiro , morre
feliz no pensamento de que todo o seu mundo está na via do bem e que a família
nele perseverará por tempo infinito.
Sua memória, aquela de seus pais e de seus antepassados, é guardada
piedosamente no lar paterno, no coração de seus descendentes e no livro de
razão. É igualmente guardada a totalidade das forças morais e materiais
acumuladas pelas gerações precedentes e destinadas a ainda se desenvolverem
pelo trabalho e pela virtude das gerações que virão, para fazer subir a família,
degrau a degrau, na hierarquia social.
Como assinalou muito bem o abade Pascal, "grupo primordial e necessário
da sociedade, a família estava assim solidamente constituída e defendida,
enraizada profundamente no solo, possuindo, graças ao sistema geral da
legislação escrita ou consuetudinária, sérias garantias de estabilidade e de
continuidade. Sob esse regime, a França estava povoada por famílias
profissionais que se transmitiam, simultaneamente com o amor da profissão,
aptidões inatas a serem de alguma maneira exercidas , e uma educação
especial haurida no aprendizado familiar, e isso em todos os níveis da sociedade:
famílias de camponeses, de artesãos, de tabeliães, de magistrados, de
diplomatas, de militares, e pode-se dizer que o país viveu até nossos dias dos
destroços dessas famílias profissionais". 5
A organização da família-tronco, boa para a sociedade, é boa para os
indivíduos. Ela distribui eqüitativamente as vantagens e os encargos entre os
membros de uma mesma geração. Ao herdeiro, em compensação aos pesados
deveres, ela confere a consideração ligada ao lar dos antepassados. Aos
membros que se casam fora da família, ela assegura o apoio da casa-tronco com
os encantos da independência que a família patriarcal não concede. Aos que
preferem permanecer no lar paterno, ela dá a quietude do celibato com as
alegrias da família. Para todos ela administra, até à mais extrema velhice, a
alegria de reencontrarem no lar paterno as lembranças da primeira infância. Ela
é igualmente boa e benfazeja para todas as classes da sociedade. Ela preserva
os mais ricos da corrupção, impondo-lhes severos deveres; ela fornece aos
menos abastados os meios de poupar seus rebentos das duras experiências da
pobreza.
4
De Lig., II, 1.
5
E mais adiante:
"Parece-me pouco científico negar a fecundidade da lei de hereditariedade, num tempo em que a
ciência demonstrou-lhe os efeitos, seja para o bem, seja para o mal, com um verdadeiro luxo de
argumentos tirados da experiência quotidiana. Qual! a história mostra-nos que se criam literalmente
raças de governantes, de combatentes, de diplomatas, de magistrados, que um dos grandes objetivos
da educação é precisamente desenvolver os bons germes depositados pela hereditariedade e eliminar
os ruins; e vós vos privaríeis dos benefícios de uma lei natural de tal poderio! Vós dizeis: a
hereditariedade é uma lei brutal e animal, que tende à formação de castas fechadas na ordem pública.
E eu respondo: a hereditariedade, pela continuidade que ela garante ao corpo social, é uma imitação,
ínfima sem dúvida, da perenidade divina; regrada, contida, modificada pelo espírito cristão, pelos
usos, pelos costumes, ele tende não à casta, mas à tradição profissional, coisa que, aos olhos de todo
o verdadeiro filósofo político, é um bem de primeira ordem. Compreendo perfeitamente que a
hereditariedade política e social seja repelida por aqueles que, como os socialistas, rejeitam a
hereditariedade econômica; mas, desde que se admite esta, que dificuldade se vê para admitir que a
hereditariedade social tende por ela mesma à juntar-se à hereditariedade econômica?" Philosophie
morale et sociale. Formes du pouvoir.
62
Esse regime constitui-se espontaneamente, com seus principais caracteres,
entre os povos sedentários, fecundos, dedicados a um trabalho assíduo.
Fundado sobre a própria natureza do homem, ele foi em toda a parte obra do
costume, não da lei escrita. Ele ainda existe entre quase todos os povos da
Europa. Apesar da lei da partilha forçada, ele ainda está representado na França,
sobretudo na vizinhança dos Pireneus, por admiráveis modelos. As famílias-
troncos contam-se ainda atualmente na França em dezenas de milhar, e no resto
da Europa, em dezenas de milhões, fazendo reinar nelas e ao redor delas, a paz,
a prosperidade e a verdadeira liberdade.
O feudalismo fora favorecido na sua evolução pelo regime que acabamos de
descrever. O regime feudal, com efeito, agrupava os senhores numa hierarquia
superior, no cume da qual se encontrava o suserano, assim como agrupava as
diferentes classes de proprietários sob a autoridade e a proteção dos senhores de
cada feudo. A propriedade do feudo e a função senhorial transmitiam-se àquele
dentre os filhos ao qual o pai se tinha associado durante sua vida. O herdeiro
devia tomar a seu encargo todas as obrigações de sua gente. Ele devia conservar
a memória dos ancestrais, dotar irmãos e irmãs, assegurar os haveres dos
descendentes, praticar, em uma palavra, todos os deveres impostos à uma
família-tronco agrícola e guerreira. O proprietário tinha no gozo de seu domínio
direitos análogos aos que o senhor feudal exercia sobre a propriedade de seu
feudo e ele os transmitia, nas mesmas condições, a um herdeiro livremente
escolhido.
A sociedade era assim tão sólida e tão estável quanto a família. Ela tinha uma
situação que nada podia abalar.
"A família dominante estava fixada ao solo por um feudo, diz la Tour du Pin
Chambly, a família serva por uma gleba, a família livre por uma renda anual paga
ao senhor do feudo: o mesmo solo carregava e nutria esses três troncos, não
como três árvores isoladas sem nenhuma relação que não fosse a sombra que
elas produzem, mas como três ramos cujas raízes estavam entrelaçadas de uma
maneira inseparável. Uma não sofria sem que as outras duas lhe viessem em
socorro, porque elas eram incapazes de viver uma sem a outra; direi mais, a vida
de uma era a vida da outra: esta protegia aquela, aquela alimentava esta". O
povo encontrava, nesse regime, as forças materiais e morais que
salvaguardavam a independência do território; ao mesmo tempo em que o
regime o mantinha numa poderosa e vivificante hierarquia, permitindo a todos os
talentos se desenvolverem, impedindo a desclassificação e suas conseqüências,
com as quais tanto temos sofrido.
trono e que permaneçam como as únicas consideradas. O que não for elas vai se dispersar por
efeito do Código Civil. Estabeleça o Código Civil em Nápoles; tudo o que não lhe estiver ligado vai
se destruir em poucos anos, e o que quiser conservar se consolidará".
No século XVIII, a rainha Ana tinha também aplicado aos irlandeses católicos a partilha igual e
forçada, conservando aos protestantes a faculdade de testar segundo as leis inglesas; e o solo da
Irlanda passou pouco a pouco às mãos dos lordes protestantes.
8
Os números também têm sua eloqüência. Le Play cita, no norte, seis lotes de terra, vendidos pelo
preço total de 36 francos: exigiram 758 francos e 85 centavos de taxas. No mesmo departamento,
lotes vendidos a 51, 58 e 55 francos, deram lugar a taxas que se elevam respectivamente a 210, 250
e 501 francos e 92 centavos. Em Pas-de-Calais, 37 ares de terra foram vendidos a 845 francos; as
taxas preparatórias elevaram-se a 1.862. Após muitos outros exemplos, ele diz: "Nós poderíamos
apoiar esses fatos com cem mil outros da mesma natureza. Eles se reproduzem sem cessar em cada
uma de nossas localidades".
Georges Michel demonstrou que, na venda das pequenas heranças, a soma das taxas é sempre
superior ao montante do preço de adjudicação. (Une iniquité sociale. Les frais des ventes judiciaires
d'immeubles ). A lei de 1884, é verdade, exonerou os imóveis de valor inferior a 2.000 francos de
certos encargos, mas as estatísticas oficiais estabelecem que as taxas de vendas judiciais são iguais,
se não mais altas do que antes. Há taxas e formalidades demais. Sobre 100 francos o fisco retém
antecipadamente 90 francos, de sorte que a parte dos homens da lei representa apenas 10%.
64
da vida nas mesmas condições, em que a propriedade é concebida não como
uma coisa moral, mas como uma coisa equivalente a um gozo sempre apreciável
em dinheiro, um tal código, digo, não pode engendrar nada além de fraqueza e
pequenez. Com sua concepção mesquinha da família e da propriedade, aqueles
que de forma tão triste pagaram as dívidas da falência da Revolução... prepararam
um mundo de pigmeus e de revoltados". 9
Se queremos que a França ainda tenha um futuro, nada mais fundamental,
nada mais necessário do que restituir à família francesa a faculdade de se
recolocar sob o regime da família-tronco, que tenha um lugar de trabalho perpétuo
(campo, fábrica, casa de comércio), encarregado de produzir não somente o pão
quotidiano, mas aquele dos velhos dias e o estabelecimento dos filhos, que
tenha também seu lar encarregado da educação das jovens gerações segundo as
tradições dos ancestrais. Desde que essa liberdade seja devolvida, um certo
número de famílias entrará por elas mesmas nesse caminho, e, após algumas
gerações, encontrar-se-ão muito naturalmente acima daquelas que permanecerão
na instabilidade.
A hierarquia social delinear-se-á de novo pelo próprio fato. A sociedade
fortalecer-se-á na mesma proporção e acabará por se reconstituir.
"Tudo na história, disse muito bem Paul Bourget, demonstra que a energia do
corpo social sempre esteve, como dizem os matemáticos, em função ou em
proporção com a energia da vida de família".
67
Na América do Norte, as filhas, não tendo dote, são procuradas apenas por
suas qualidades; e os filhos, não contando com a fortuna paterna, trabalham.
Cada geração deve buscar sua própria subsistência: tal é a máxima colocada
em prática na Inglaterra assim como na América.
68
CAPÍTULO IX
FAMÍLIAS TRADICIONAIS
1
Interroga as gerações passadas, e examina com cuidado a experiência dos antepassados:
por sermos ignorantes das coisas de ontem, nossos dias sobre a terra passam como a sombra.
Eles podem instruir-te, falar-te, e de seu coração tirar este discurso:
"Pode o papiro crescer fora do brejo,
e o junco germinar sem água?"
69
Há quarenta anos, em 15 de novembro de 1871, Emile Montégut escrevia na
Revue des Deux-Mondes: "Enquanto um vestígio de tradição uniu a nova França
à França antiga, as conseqüências da Revolução não puderam vir à tona. Mas
logo que a roda do tempo girou o suficiente para que não subsistisse nenhum
resquício de tradição, a hora da lógica soou; e as gerações contemporâneas,
criadas numa sociedade em que somente a revolução está de pé, escutam sem
admiração palavras que, trinta anos antes, lhes teriam enchido de horror e de
medo".
Desde 1871 a roda do tempo produziu quarenta novos anos, durante os quais
o espírito revolucionário acabou por triturar os últimos vestígios das tradições da
antiga França. E se, há quarenta anos, tinha-se chegado a escutar sem
admiração palavras que antes teriam enchido de horror e de medo, hoje
assistimos impassivelmente a atos que, na antiguidade pagã, teriam revoltado os
povos mais bárbaros. Em toda a extensão da França, as escolas nas quais se
ensinava às crianças a conhecer, amar e adorar a Deus, estão fechadas por este
motivo abertamente declarado pelos governantes: eles querem uma sociedade na
qual só haja ateus.
De onde vem essa impassibilidade? Do fato de que não há mais nos espíritos
idéias fixas, princípios solidamente ancorados nas almas, mas somente idéias
vagas e flutuantes, incapazes de porem energia nos corações. E por que, nos
nossos dias, as idéias flutuam assim? Porque as idéias-mães, as idéias-
princípios não foram impressas nas almas das crianças por pais que tivessem
sido, eles próprios, petrificados pelos ensinamentos dos antepassados, imbuídos
já dessas verdades pelos seus ancestrais. Em uma palavra, porque não há mais
tradições nas famílias.
Havia outrora, e por toda a parte, uma idéia quase religiosa ligada a essa
expressão "tradições de família", entendida em seu significado elevado, enquanto
designativa da herança das verdades e das virtudes, no seio das quais se
formaram os caracteres que forjaram a duração e a grandeza da casa.
Hoje, essa palavra não diz mais nada às novas gerações que chegam à vida.
Elas aparecem num dia para desaparecer no dia seguinte, sem ter recebido e sem
deixar após elas essa fonte de lembranças e de afetos, de princípios e de
costumes, que outrora passavam de pai para filho e faziam chegar as famílias
que lhes eram fiéis acima daquelas que os menosprezavam. Toda a família que
tem tradições deve isso, geralmente falando, a um de seus ancestrais, no qual o
sentimento do bem foi mais forte do que no comum dos homens e ao qual foi dada
a sabedoria e a vontade para inculcá-lo nos seus.
“A verdade é um bem, diz Aristóteles, e uma família na qual os homens
virtuosos se sucedem é uma família de homens de bem. Essa sucessão de
virtudes ocorre quando a família remonta a uma origem boa e honesta; porque
isso é próprio de um princípio que produz muitas coisas semelhantes a ele próprio;
é de alguma maneira sua obra formar seu semelhante. Quando, pois, existe numa
família um homem tão ligado ao bem que sua bondade se comunica a seus
descendentes durante várias gerações, segue necessariamente que é uma família
virtuosa".2
Todo o homem que quer fundar uma "família virtuosa" deve primeiro
persuadir-se de que seu dever não se limita, como quer J.J. Rousseau, a prover
às necessidades físicas de seu filho, tão longamente que este fique na impotência
de manter por si próprio sua vida corporal. Ele lhe deve a educação intelectual,
moral e religiosa. O animal tem a força pela qual ele socorre as necessidades
corporais de seus filhotes, e isto lhes basta. A criança, ser moral, tem outras
2
Fragmento conservado por Stobée.
70
necessidades, e é por isso que, além da força, Deus deu ao pai de família a
autoridade para regrar a vontade de seus filhos, fazê-los entrar na via do bem,
nela mantê-los e nela fazê-los progredir. Essa autoridade Deus a quis
permanente, porque o progresso moral é obra de toda a vida. E como, segundo as
intenções da Providência, o progresso deve se desenvolver e crescer de geração
em geração, é necessário que a família humana não se extinga a cada geração: o
vínculo familiar deve subsistir entre mortos e vivos, atar umas às outras todas as
filiações de uma mesma descendência, e isto entre as raças vigorosas que duram
séculos.
O pensamento do homem de bem não deve pois parar em seus próprios
filhos, ele deve ir além, sobre as gerações que seguirão e fazer com que aquilo
que é virtude se torne tradição entre elas.
71
netos. O livro de razão bem organizado contém assim um resumo de tudo aquilo
que constitui moral e materialmente a família.
Primeiro, a genealogia: "Que nossos filhos, diz André Lefèvre d'Ormessan,
que já citamos, conheçam aqueles dos quais descenderam de pai e de mãe". Por
que principalmente esse conhecimento? "Para que sejam incitados a rezar a
Deus por suas almas e a abençoar a memória dos que, com a graça de Deus,
honraram sua casa e adquiriram os bens dos quais fruem seus descendentes, e
que passarão às outras gerações, se agrada à bondade de meu Criador de dar
para isso Sua benção, como o suplico de todo o meu coração". Em outros termos,
a genealogia da família é a condição primeira para criar e manter o espírito de
família.
Tanto quanto possível, uma curta nota deve ser juntada a cada nome. Toda
família deve tender a ter uma história. O livro de razão é o guardião dessa história.
Os livros de razão publicados nesses últimos tempos mostram-nos, através dessas
curtas observações, como numerosas famílias modestas puderam, pela força dos
costumes, se perpetuar durante vários séculos na mesma região, com as mesmas
virtudes.
72
Deploráveis épocas aquelas em que cada homem pesa tudo segundo seu próprio
peso, e caminha, como diz a Bíblia, à luz de sua lâmpada". 3
É exatamente aí que nos encontramos. Havia, outrora, em cada casa, um
caráter próprio que a distinguia, e em virtude do qual se podia dizer: Reconhece-
se aí um membro de tal família. Esse caráter havia sido formado pelos
ancestrais e mantido pela tradição. Isto não existe mais, e eis a conseqüência:
enquanto viveram alguns dos representantes das antigas gerações, havia
sempre um clarão que iluminava a vida. Mas, à medida que desapareceram os
anciãos, cuja educação fora feita de tradições, os jovens se encontraram na
presença do vazio. Nada lhes resta a respeito das grandes verdades que
constituem a família e sobre aquelas que constituem a sociedade. Esses jovens
tornam-se pais de família em meio à invasão de um luxo espantoso e isso sob o
golpe de revoluções ameaçadoras, que acabam de destruir no coração do país
as últimas forças da vida.
Após as desordens do século XVI, uma multidão de pais modelares se
esforçaram, em seus lares, em defender seus filhos e seus empregados contra
o contágio do mal. Desta época datam os melhores livros de razão. Eles foram
os guias e os sustentáculos das nobres famílias que ilustraram a época de
Henrique IV e de Luís XIII.
Pudesse ser assim nos nossos dias! Não é temerário esperar por isso. Em
diferentes classes da sociedade recomeça-se a compreender a utilidade, a
necessidade das tradições.
No dia seguinte ao da morte de seu pai, o antigo redator do Petit Journal ,
Ernest Judet, publicou na primeira página do Eclair essas fortes palavras:
"Jamais eu compreendi tão bem a força da tradição, a lição da
hereditariedade, a carga que um ser lega a outro ser saído de si, e a
responsabilidade de nosso desenvolvimento conforme o espírito daqueles que já
nos formaram ao nos criarem!"
Conhecemos a profunda impressão que causou sobre o público a Etape de
Paul Bourget. Lemaître, Drumont, Soury, Barrès, Charles Maurras, etc., etc.,
fazem promoções no mesmo sentido.
Charles de Ribbe, que consagrou a melhor parte de sua vida a pesquisar, a
estudar e a editar as tradições familiares da antiga França, chega a esta
conclusão: "Reforçado por testemunhos que não podemos desejar mais
probantes e decisivos, que nos são fornecidos pela história dos lares modelos,
afirmamos que, sempre e em toda a parte, a maior soma de bens reais e sólidos
foi possuída de uma maneira estável pelas famílias que caminharam pelas vias
traçadas pelo próprio Deus (vias relembradas a cada geração pelos livros de
razão); que apenas essas famílias, após se terem elevado à prosperidade pelo
trabalho e pela economia, conseguiram, pela virtude, pelo poder da educação
seriamente cristã, triunfar sobre o vício e as causas fatais de queda que a
prosperidade adquirida não tarda a provocar".
Num livro intitulado Quelques réflexions sur les lois sociales, o duque
d'Harcourt faz uma observação sobre a qual não se chamaria suficientemente a
atenção das famílias. Falando dos sentimentos íntimos da classe aristocrática do
século XVIII, ele diz: "Sabemos que a irreligião ali reinava. Os dogmas eram
escarnecidos, as tradições ridicularizadas. Nos nossos dias, ao contrário, os
representantes dessas mesmas famílias são, em geral, religiosos". Ele pergunta
como se produziu essa mudança. "Foi visto, no fim do século passado, um
grande número de indivíduos que, por ódio à Revolução, tenham mudado seus
sentimentos? Não. Também não foram os filhos educados pelos espíritos fortes
que tiveram espontaneamente sentimentos piedosos, exatamente opostos aos de
3
Pensées de Joubert. Livro XVI.
73
seus pais; vimo-los, mas muito raramente. Essa transformação se explica muito
naturalmente pela SUPRESSÃO QUASE COMPLETA da descendência cética do
século passado. MUITOS DE NÓS SE EXTINGUIRAM; e para os outros eles se
perpetuaram, seja pela minoria que, mesmo na Corte, havia escapado ao
contágio, seja pelos colaterais obscuros, perdidos no fundo das províncias, que
ali tinham CONSERVADO, COM AS ANTIGAS TRADIÇÕES, as idéias religiosas
sem as quais as famílias não se perpetuam".
Possa esse memorável exemplo persuadir as famílias que querem se
perpetuar a restabelecer entre elas as tradições que edificaram a antiga
aristocracia! E por esse caminho, que se retome por toda a parte, nas famílias
cristãs, o uso dos livros de razão. Eles tiveram prestígio não somente na França,
mas na Itália, na Suíça, na Holanda, na Alemanha, na Polônia etc. Descobrem-
se traços deles um pouco por toda a parte, mesmo no Oriente, sob formas
diversas. Uma instituição nascida espontaneamente em tantos e tão diversos
países, não pode ser senão uma instituição inspirada pela própria natureza, ou
melhor, pelo Autor de nossa natureza. Tê-la abandonado ter-nos-á sido
extremamente funesto; retomá-la não nos seria menos favorável.
74
CAPÍTULO X
3
Les Six Livres de la République, cap. IV.
4
Cambacérès. Moniteur de 23 de agosto de 1793.
5
T. II, 3ª parte, cap. VIII.
76
Os fatos são contrários a essas previsões, as quais, ademais, a razão não
podia admitir. Hoje todos deploram a ruptura dos laços familiares e suas
conseqüências, que são: o desaparecimento do respeito e da obediência entre
os jovens, sua emancipação, e, como conseqüência, uma extrema corrupção dos
costumes privados e dos costumes públicos; enfim, a decadência da raça e a
sociedade francesa colocada em perigo. Nas classes inferiores o mal se revela
com cinismo. Le Play, no livro L'Organisation du Travail, traz em testemunho os
quadros pungentes traçados por Pénart, no seu discurso de reentrada na corte
de Douai, em 1865; por Bougeau, no seu discurso no Senado, em 23 de março
de 1861; e por Legouvé: Les Pères et les Enfants au XIX ème. Siècle. Quanto o
mal se agravou ainda mais na última metade do século! Nas classes superiores,
as aparências são mais bem mantidas, mas a realidade não é melhor. Fortalecida
pelo direito à herança, a juventude se revolta freqüentemente contra a disciplina
do lar; ela pretende gozar na ociosidade e na libertinagem a riqueza criada pelo
trabalho dos antepassados.
77
"Feliz o homem ao qual Deus deu uma santa mãe!", disse Lamartine. 6 Ele
foi dos que tiveram essa felicidade, e jamais se cansou de reconhecer a dívida de
reconhecimento de que ela era credora, "por haver observado diariamente o
pensamento desse filho para voltá-lo para Deus, assim como se procura
descobrir a fonte do riacho para dirigi-lo em direção ao campo no qual se deseja
fazer reflorescer a relva nova". 7
Quantas outras mães imprimiram profundamente, na alma de seus filhos, o
respeito, o culto, a adoração de Deus, virtudes das quais elas eram para eles,
pela pureza de suas vidas, a imagem viva! "A minha, diz ainda o poeta, tinha a
piedade de um anjo. A beleza de seus traços e a santidade de seus
pensamentos lutavam juntas para se realizarem uma pela outra". 8
Mãe, a mulher cristã santifica o filho homem; filha, ela edifica o homem pai;
irmã, ela melhora o homem irmão; esposa, ela santifica o homem esposo.
"Quero fazer de meu filho um santo", dizia a mãe de Santo Atanásio.
"Mil vezes obrigado, meu Deus! por nos terdes dado por mãe uma santa",
exclamavam por ocasião da morte de Santa Emília, seus dois filhos, São Basílio e
São Gregório Nazianzeno.
"Ó meu Deus! devo tudo à minha mãe", dizia Santo Agostinho.
Por reconhecer ter sido por sua mãe tão profundamente impregnado da
doutrina de Cristo, São Gregório, o Grande, fez pintar sua mãe, Sílvia, a seu lado,
trajada com veste branca, com a mitra dos doutores, estendendo dois dedos com
a mão direita, como para abençoar, e segurando na mão esquerda o livro dos
Santos Evangelhos sob os olhos de seu filho.
Quem nos deu São Bernardo, quem o fez tão puro, tão forte, tão abrasado
de amor por Deus? Sua mãe, Aleth.
Mais próximo de nós, Napoleão I disse: "O futuro de um filho é obra de sua
mãe". E Daniel Lesueur: "Quando se é alguém, é muito raro que não se o deva
à sua mãe". Ó meu pai e minha mãe, que vivestes tão modestamente, disse
Pasteur, a vós devo tudo!
Teus entusiasmos, minha brava mãe, tu os passastes para mim. Se sempre
associei a grandeza da ciência à grandeza da pátria, é porque estava impregnado
dos sentimentos que me havias inspirado. A alguns que o felicitavam de ter tido
desde cedo o gosto pela piedade, o santo cura d'Ars dizia: "Após Deus, é obra
de minha mãe".
Quase todos os santos retrocedem as origens de sua santidade às suas
mães.
6
Lamartine, Harmonies Poétiques, III, 9. Apesar dos desvios de sua imaginação, Lamartine sempre
guardou a lembrança de uma educação cristã que sua mãe lhe havia dado. Mais de dois anos antes de
sua morte, ele se ajoelhou, na semana da Páscoa, na Santa Mesa ao lado de sua mãe. Como disse J.
de Maistre: "Se a mãe se impôs o dever de imprimir profundamente sobre a fronte de seu filho o
caráter divino, pode-se estar mais ou menos seguro de que a mão do vício jamais o apagará
inteiramente".
A lembrança de uma santa mãe acompanha por toda a parte o homem virtuoso! Ozanam, falando
de sua mãe, dizia: "Quando sou bom, quando faço alguma coisa pelos pobres que ela tanto amou,
quando estou em paz com Deus ao Qual ela tão bem serviu, vejo que ela me sorri de longe.
Algumas vezes, se rezo, creio ouvir sua oração que acompanha a minha, como fazíamos juntos, à
noite, ao pé do crucifixo. Enfim, freqüentemente, quando tenho a felicidade de comungar, assim que
o Salvador vem me visitar, parece-me que ela O segue no meu miserável coração, como tantas vezes
ela O seguiu, levado em viático, a casas de indigentes".
7
Cours familier de littérature, 1ª conversação, p. 9.
8
Idem.
78
Um servidor a mais para servir o Grande-Mestre,
Um olho, uma razão a mais, para conhecê-Lo,
Uma língua a mais no coro infinito,
Pelo qual, de século em século, Ele deve ser bendito!
10
Isto foi escrito em 1862, quando os zuavos pontifícios vertiam seu sangue em defesa da Santa Sé.
80
"Foi da mulher, diz Favière, que as nações cristãs receberam o dom da
piedade, é delas que têm essa faculdade das emoções comunicativas que
enternecem as multidões, esses súbitos e irresistíveis despertares que às vezes
erguem os povos acima deles mesmos, de seus interesses comerciais e de seu
repouso, para precipitá-los na via das aventuras sublimes que constituem as
grandes etapas da Humanidade. Que povo sabe melhor disto do que o nosso?
Não foi somente pelo coração que a mulher se associou à obra do progresso; não
foi somente pelo calor e pelo movimento que ela lhe comunicou, que ela veio a
elevar a civilização cristã acima do que o mundo tinha visto; o progresso não foi
menos bem servido por sua inteligência. A inteligência pronta e instintiva da
mulher tem, sobre o mundo moral, olhos cuja penetração não é igualada pela
inteligência masculina... Ela cultiva na família o senso do bem, ela lhe dá a
compreensão das verdades primeiras, ela as ensina por seus atos, por seus
julgamentos, pelas manifestações de sua estima e de sua censura."
Há bem poucos homens entre nós que, de dois séculos a esta data, mesmo
sem o querer, não se deixaram enlaçar pela Revolução. As mulheres, ao contrário,
têm o instinto da verdade como o da caridade. Toda apostasia, toda
pusilanimidade, toda fraqueza de espírito ou de coração encontra nelas juízas
inflexíveis. Elas amam a Igreja e a Pátria, Cristo e Sua Mãe; elas os amam mais
do que a elas mesmas, mais do que às riquezas, mais do que a seus próprios
filhos. Vimos isto, há pouco, em Mentana e em Castelfidardo. E esse amor lhes
confere posição de ciência. Elas são entre nós o firme apoio da sociedade e da
Igreja. A Revolução sabe-o bem. Ela conhece o número de irmãos, de filhos e de
maridos preservados, desviados das sociedades secretas por simples operárias,
por simples camponesas. Sem trégua, o revolucionário é atormentado por essa
guerra feminina. Daí suas queixas, suas conspirações para perverter o coração
da mulher. Mas as mulheres de França tornaram-se aguerridas por cem anos de
lutas incessantes!
O espírito de família engendra o que com muita razão se chamou de culto dos
ancestrais e dele se nutre.
Esse culto existiu entre as nações pagãs, mas logo degenerou. Ele está
vivo nas sociedades cristãs, e nós o vemos, na China, constituir quase toda a
religião.
Entre os pagãos, ele não deve ter consistido, inicialmente, senão de
sentimentos de gratidão: dos filhos pelo pai que os havia educado, e da família
pelo antepassado que havia construído sua condição social, que lhe tinha dado a
lição e o exemplo das virtudes morais em razão das quais prosperara.
Pouco a pouco, à medida que se distanciava a imagem venerada do
fundador, ela tomava um aspecto mais misterioso e produzia nos corações
sentimentos de um caráter mais religioso.
Logo eles se traduziram num culto propriamente dito. Ofereciam-se ao
ancestral sacrifícios sobre sua tumba, e dizia-se-lhe: "Deus oculto, sede-nos
propício!"
Ademais, um altar era erguido no lar da casa familiar. Carvões iluminados ali
brilhavam noite e dia. Eles simbolizavam a alma da família, o espírito da família
recebido dos ancestrais e sempre vivo nela. Infeliz da casa em que o braseiro
viesse a se extinguir! O fogo não devia parar de queimar sobre o altar senão
quando a família tivesse perecido inteira. Braseiro extinto, família extinta, eram
expressões sinônimas.
O cristianismo não destruiu nada do que brotou naturalmente da alma
humana. Mas tudo purificou. Ele quer, assim, que guardemos religiosamente a
81
lembrança dos autores de nossos dias, que conservemos suas lições e seus
exemplos e que os façamos passar às gerações seguintes.
Mas, além disso, a santa Igreja quis que permanecêssemos em comunhão
com nossos ancestrais, como o pai e a mãe, os irmãos e as irmãs que nos
precederam no mundo superior. Ela quer que rezemos por eles e que os
invoquemos, que corramos em seu socorro e que tenhamos confiança no deles,
sobretudo para nos mantermos no caminho no qual eles nos colocaram e pelo
qual nos guiam.
82
CAPÍTULO XI
RECONSTITUIÇÃO DO CORPO SOCIAL
A classe dos que consideram o bem público mais que o próprio, foi sempre
chamada aristocracia, a classe dos melhores, aristoi, denominação tão honrosa
quanto justa. A Revolução fez dessa palavra e da coisa que ela exprime um
objeto de horror: ela tinha suas razões para isso e nós temos as nossas para não
compartilhar desse sentimento.
Observemos primeiramente, com Blanc de Saint-Bonnet, que compreendida
em lato senso, a aristocracia, num povo, se compõe de todas as pessoas de
bem, de todos os que se consideram ser melhores do que o grosso da nação.
Existe aristocracia bem no meio do povo: é a que se forma pelo trabalho, pela
poupança, pelo freio que sabe pôr a seus apetites. E há povo nas classes
altas: as famílias que por seus vícios se deformam, se destróem e tornam a cair
na multidão.
3
Législation primitive. Discurso preliminar.
84
Mas o que geralmente se entende por essa palavra "aristocracia" é o conjunto
das famílias que, por uma longa tradição de virtudes, de nobres sentimentos e
de serviços prestados ao país, se elevaram ao cume da hierarquia social.
A democracia coloca-se como adversária dessa aristocracia. Ela se esforçou
para aniquilá-la, e para tanto confiscou, faz um século, os direitos adquiridos nos
séculos precedentes. Hoje ela quereria impedi-la de renascer; esta a razão pela
qual faz leis para que as famílias-troncos não mais possam se reconstituir, elas
que são as únicas em que as tradições podem se transmitir e em que os méritos
podem se acumular pelos esforços contínuos de uma seqüência de gerações.
Mas tirar assim dos homens o grande estímulo para o bem, não lhes permitir de
endereçar seus olhares para o futuro e de nele ver sua descendência crescer e
se elevar pelo impulso que eles terão dado, é aniquilar de vez a natureza humana,
fixar a sociedade na inércia, e ao mesmo tempo reduzir o agregado humano à
condição de manada. Aí, com efeito, todas as cabeças são iguais, a hierarquia
não poderia se produzir, porque não há liberdade e, conseqüentemente, méritos,
posição adquirida por esses méritos.
5
Considérations sur la France, p.49.
6
As classes ricas de uma sociedade não podem cumprir seu dever social senão quando o Estado
torna-lhes possível esse cumprimento. Os homens dessa classe não podem utilizar sua instrução,
seu tempo disponível, sua fortuna e sua boa vontade em benefício do Estado senão quando o Estado
se presta a isso, como ele fazia na França e como ainda faz na Inglaterra.
86
"Não é para adular um orgulho tolo, que Nós vos lembramos essas coisas,
caros filhos; mas sobretudo para vos reconfortar nas obras dignas de vossa
posição. Todo indivíduo, toda classe de indivíduos tem suas funções e seu valor
próprios, e é do conjunto de todos que brota a harmonia da sociedade humana.
No entanto, é inegável que, nas instituições privadas e públicas, a aristocracia
do sangue é uma força especial, como a fortuna, como o talento. Se houvesse
nisso dissonância com as disposições da natureza, tal fato não teria sido, como o
foi em todos os tempos, UMA DAS LEIS MODERADORAS DOS
ACONTECIMENTOS HUMANOS. Por isso, julgando conforme o passado, não é
ilógico inferir que, quaisquer que sejam as vicissitudes do tempo , um nome ilustre
não deixará jamais de ter alguma eficácia para quem sabe usá-lo dignamente".
Leão XIII terminou seu discurso com essas palavras: "Mantende os olhos
abertos para os acontecimentos que amadurecem e jamais percais de vista que
no meio do fermento crescente das concupiscências populares, a franca e
constante virtude entre as classes mais elevadas é um dos mais necessários
meios de defesa".
Em janeiro de 1903, Leão XIII diz ainda: "Se Jesus Cristo quis passar Sua
vida privada na obscuridade de uma humilde morada e como filho de artesão; se,
na Sua vida pública, amou viver no meio do povo, fazendo-lhe o bem de todas as
maneiras, quis entretanto nascer de estirpe real, escolhendo Maria por mãe, como
pai adotivo José, ambos descendentes da estirpe de David. Hoje, na festa de
seus esponsais, poderíamos repetir com a Igreja essas belas palavras: Maria
mostra-se-nos brilhante, saída de uma estirpe real.
"Assim, a Igreja, pregando aos homens que todos são filhos do mesmo Pai
celeste, reconhece como uma condição providencial da sociedade humana a
distinção das classes; por isso ela ensina que só o respeito recíproco dos direitos
e dos deveres, e a caridade mútua proporcionarão o segredo do justo equilíbrio,
do bem-estar honesto, da verdadeira paz e da prosperidade dos povos".
Em 1872 Pio IX havia dito o mesma coisa:
"O próprio Jesus Cristo amou a aristocracia, Ele também quis pertencer à
nobreza por Seu nascimento e descender da estirpe de David". Lembra-nos o
Soberano Pontífice que quando era ainda jovem um príncipe romano Lhe havia
exposto "o papel da nobreza na sociedade". "Agora, diz Pio IX, esclarecido por
uma longa experiência e pela luz do soberano Pontificado, declaro QUE ESSES
PRINCÍPIOS SÃO VERDADEIRAMENTE CATÓLICOS". 7
Como, nessas condições, pôde a França se desfazer de sua nobreza? É
preciso dizer que a nobreza se desfez a si mesma. A partir do século XIV, a
partir da Renascença, começou a se produzir no seu interior um rebaixamento
moral que prosseguiu de maneira quase contínua. Com a chegada do século XVIII
não se via mais a nobreza preencher, na França, os deveres de uma verdadeira
aristocracia; e foi por essa razão que a Revolução pôde derrubá-la. "A nobreza
francesa, disse de Maistre, não deve atribuir senão a ela mesma todas as suas
desgraças".8
Teria sido necessário recolocar nas almas o antigo espírito, a antiga
dedicação. A França teria então assistido a uma evolução, em lugar de sofrer
uma revolução. Adaptando-se às condições presentes da sociedade, o antigo
espírito teria feito avançar pelos caminhos de um verdadeiro progresso a
sociedade que vemos retroceder. Liberada que está aos impulsos da massa, ela
cede à quantidade, como o corpo ao mais forte peso; ela desce os degraus da
civilização, ela reentra na barbárie.
7
Discours de N.-S.-P. le Pape Pie IX, t. I, p. 122.
8
Considérations sur la France, p. 151.
87
Se aprouver a Deus desviar-nos desse declive, no momento em que se
reorganizar nossa sociedade talvez se perceba a necessidade de reconstituir
como nobreza o que restará em termos de aristocracia, isto é, de famílias que
terão sabido subtrair-se ao contágio de todos os males que nos devoram. A
fonte da soberania está em Deus, mas o depósito dela no soberano não pode ser
exercido inteiramente apenas pelo soberano; todo chefe tem necessidade de
lugares-tenentes. Estes devem ser funcionários sem raízes, ou homens cercados
de respeito, com uma fortuna que lhes garanta a independência, a conduta e a
capacidade? A questão toda se resume nisso. Se as famílias que se
aristocratizam permanecem isoladas umas das outras, se elas não formam um
corpo que tenha recebido uma investidura, não agirão junto ao povo senão de
uma maneira individual, e, por isso, toda a ação social deverá vir do poder, o que
representa um grande perigo de despotismo. A nobreza constituída é um corpo
protetor para o povo, relativamente ao soberano, como também para o soberano,
relativamente à multidão. Esta é a razão pela qual toda nação que quer
conservar suas liberdades deve ter uma nobreza, assim como todo poder deve
ter uma nobreza para possuir apoios.
Colocando-se sob outra perspectiva, Taine disse: "Não se pode suprimir a
aristocracia sem perigo. Em todas as sociedades que existiram houve sempre
um núcleo de famílias cuja fortuna e consideração são antigas. Suprimida pela
lei, a aristocracia se reconstitui na prática, e o legislador pode apenas escolher
entre dois sistemas: aquele que a deixa desprotegida, ou aquele que lhe propicia
lucros; aquele que desserve o serviço público ou aquele que a aglutina em seu
favor; e ele fornece excelentes razões para demonstrar que esse último partido é
sobejamente preferível.
O melhor governo é o que dá pleno curso ao desenvolvimento da natureza
humana, mantendo aberta a entrada da nobreza à burguesia pelas nobilitações
legítimas, e a entrada da burguesia aberta ao povo por institutos que favoreçam
a formação do capital e consagrem seus direitos.
"Se houvesse no campo e em cada cidadezinha, diz Bonald, uma família à
qual uma fortuna considerável, relativamente à de seu vizinho, assegurasse uma
existência independente de especulações e de salários, e essa espécie de
consideração de que gozam junto aos habitantes rurais a antiguidade e a
extensão das propriedades territoriais; uma família que tivesse simultaneamente,
no seu exterior a dignidade, e na vida privada muita modéstia e simplicidade; que,
submissa às leis severas da honra, desse o exemplo de todas as virtudes ou de
todo o decoro; que aliasse às despesas necessárias do seu estado e a um
consumo indispensável, que já é uma vantagem para o povo, essa beneficência
diária que, no campo, é uma necessidade, se é que não constitui uma virtude;
uma família que estivesse unicamente ocupada com os deveres da vida pública,
ou exclusivamente disponível para o serviço do Estado; pensemos no que não
resultaria de vantagens, para a moral e o bem-estar dos povos, dessa
instituição que, sob uma forma ou outra, tão duradouramente tem existido na
Europa, mantida pelos costumes, e à qual só falta o regulamento das leis?" 9
"Essas autoridades sociais, diz Le Play, resolvem certamente o grande
problema, que consiste em fazer reinar a paz pública sem o recurso da força.
Para alcançar esse objetivo, todas elas empregam os mesmos meios: dão o bom
exemplo à sua localidade, inspirando a seus servidores, operários e vizinhos o
respeito e a afeição. Quando elas agem com toda a liberdade, elas criam
sociedades estáveis e prósperas; mas quando são paralisadas pelos governos e
9
Pensées de Bonald.
88
pelas constituições escritas, elas não podem mais conjurar nem as revoluções,
nem as decadências". 10
11
Isaías, I, 9.
12
Cap. I.
13
Na Réforme Sociale, 1º de junho de 1886.
90
todos".14 Essa via é seguramente menos rápida que a da legislação, mas somente
ela pode conduzir ao objetivo. O objetivo é a elevação de todos, a extensão das
classes superiores à toda a nação pela dilatação das aristocracias, pela
generalização do capital das virtudes que o criam. É preciso chamar isso de
"democracia"? Evidentemente não, pois o povo é chamado a fazer parte da
aristocracia, e assim não pode ser esclarecido ou socorrido senão pelos que já
chegaram a ser melhores, em uma palavra, pela aristocracia.
14
Mateus, XX, 27.
91
92
CAPÍTULO XII
A FRANÇA. SUAS ORIGENS E SUA MISSÃO.
93
"Na capela do palácio dedicado a São Pedro, estavam sentados São Remi,
Clóvis e Santa Clotilde, rodeados de clérigos que haviam acompanhado o
Pontífice, e dos oficiais do Rei e da Rainha. O prelado transmitia ao Rei
ensinamentos salutares e lhe inculcava os mandamentos evangélicos. Para
confirmar a prédica do santo bispo, Deus quis mostrar visivelmente o que Ele diz a
todos os fiéis: 'Quando dois ou três estão reunidos em Meu nome, Eu estou no
meio deles'.
"Subitamente, com efeito, uma abundante luz, mais brilhante do que a do sol,
encheu toda a capela e ouviram-se ao mesmo tempo estas palavras:
"A PAZ ESTEJA CONVOSCO. SOU EU, NADA TEMAIS: PERMANECEI NO
MEU AMOR.
"Em seguida, após essas palavras, a luz desapareceu e um odor de uma
inacreditável suavidade perfumou o palácio, para provar com evidência que o
autor da luz, da paz e da suavidade tinha estado ali, porque, excetuado o bispo,
nenhum dos assistentes tinha podido vê-Lo, posto que estavam ofuscados pela
claridade da luz. Seu esplendor penetrou o Santo Pontífice, e a luz que este
irradiava iluminava o palácio com mais brilho do que os archotes que o
aclaravam...
"Um milagre digno dos tempos apostólicos, para servir-me das expressões de
Hormisdas, sucedeu a essa aparição, como contam Aimoin e Hincmar, bispo de
Reims; falo da ampola do santo crisma, trazida do céu por uma pomba, e que
serviu para sagrar Clóvis e, a seu exemplo, todos os reis de França, seus
sucessores".3
"Através desses deslumbrantes prodígios, prossegue o grande historiador da
Igreja, Deus quis manifestar claramente de que peso (quantae molis erat) era a
conversão do rei dos Francos e de seu povo". 4
A miraculosa conversão dos francos seguiu a do rei. A pedido de São Remi,
Clóvis foi falar aos francos.
"Mas antes que ele tivesse tomado a palavra, o poder divino toma a dianteira,
e todo o povo exclama a uma voz: 'Nós rechaçamos os deuses mortais, piedoso
príncipe; estamos prontos a seguir o Deus imortal anunciado por Remi'. A essa
notícia, o Pontífice, cheio de alegria, ordena se prepare o banho sagrado. Todo o
templo está perfumado por um odor divino, e Deus concede aos assistentes uma
graça tão grande que eles crêem estar perfumados por odores do céu". 5
Baronius acrescenta:
"Instruído acerca da via de Deus, o rei entrou com a corajosa nação dos
francos pela porta da luz eterna. Ela creu em Cristo e tornou-se uma nação santa,
3
Eis o que conta Hincmar: "Estávamos no batistério. O clérigo que levava o crisma, embargado pela
multidão, não pôde chegar até às fontes batismais; ia faltar o crisma. São Remi pôs-se logo em
oração, e eis que, de repente, uma pomba mais branca do que a neve apareceu, carregando em seu
bico uma ampola cheia de um crisma sagrado, que o venerável bispo derramou nas fontes batismais;
no mesmo instante espalhou-se um odor mais suave que todos os perfumes que se tinham vertido".
Tal era, desde o século IX, a tradição remigiana. Na sagração de nossos reis, as unções eram feitas
com um crisma preparado sobre a patena de ouro do cálice de São Remi, ao qual se adicionava uma
gota do bálsamo contido na Santa Âmbula, retirada com a ajuda de uma agulha de ouro.
A Santa Âmbula foi quebrada em 8 de outubro de 1793 por Philippe Rühl, deputado do Baixo-
Reno, no pedestal da estátua de Luís XV, na Praça Royale. Mas na véspera do dia em que sua
destruição foi ordenada, Seraine e Philippe Hourelle, como consta de uma depoimento autêntico,
retiraram, com ajuda da agulha de ouro, o mais que puderam do bálsamo miraculoso, ocultaram-no
em papel e o conservaram. Esses fragmentos permitiram reconstituir a Santa Âmbula, que foi
empregada como outrora para a sagração de Carlos X.
4
T. VI, p. 464. Ano 499, XVIII.
5
Ibid., p. 462, XX; edição de Veneza.
94
um povo de aquisição, a fim de que nele fosse anunciado o poder dAquele que
os chamou das trevas para Sua admirável luz".
É uma lenda, dir-se-á; mas Deus não pode fazer prodígios? Não tinha ele
razão suficiente de fazê-lo para consagrar e alistar em Seu serviço o povo que
Ele queria tornar Seu braço direito? E enfim, como negar um prodígio narrado por
graves e santos historiadores, implicitamente afirmado pelo testemunho do
Papa Hormisdas, que escreve a São Remi mencionando que milagres iguais aos
dos tempos apostólicos produziram-se na França, confirmados pela Santa Âmbula
e pelo dom de curar escrófulas, testemunho por assim dizer sancionado pelo
próprio Cristo, que mais tarde chamará o rei de França de "filho primogênito do
Seu Sagrado Coração"!
"A partir daí, diz monsenhor Pie, uma grande nação, uma outra tribo de Judá
começou no mundo. Os pontífices de Roma, segundo os bispos da Gália, não se
enganaram a esse respeito. Através da obscuridade profunda que lhes havia tão
duradoura e dolorosamente encoberto o mistério do futuro, eles logo saudaram
o novo astro que se levantava no Ocidente e conceberam presságios que não
eram enganosos".
Um historiador, daqueles que são os menos dispostos a ver nos
acontecimentos humanos a intervenção divina, Th. Lavalée, igualmente disse:
"A conversão de Clóvis foi um acontecimento imenso, ela iniciou a grandeza
dos Francos e da Gália. Desde esse momento, esse país torna-se o centro do
catolicismo, da civilização e do progresso. Desde esse momento ele assume a
magistratura do Ocidente, a qual não deixará de exercer".
Os papas e os bispos vislumbraram desde os primeiros dias essa gloriosa
carreira e a profetizaram.
O Papa Anastácio II escreveu a Clóvis:
"Louvamos a Deus que tirou do poder das trevas um tão grande príncipe, A
FIM DE PROVER A IGREJA DE UM DEFENSOR e o ornou com o elmo da
salvação para combater Seus perniciosos adversários. Coragem, pois, caro e
glorioso filho, a fim de atrair sobre vossa sereníssima pessoa e sobre vosso reino
a proteção celeste do Deus todo-poderoso; que Ele ordene a Seus anjos que vos
guardem em todos os vossos caminhos, e vos dê por toda a parte a vitória sobre
os vossos inimigos".6
E São Remi, antes de morrer, diz Baronius, inspirado pelo Espírito Santo, à
maneira dos patriarcas, deu à França uma benção consignada no seu testamento,
confirmada pela assinatura dos bispos (São Vaast, São Médard, São Loup), cujos
termos são os seguintes:
"Se meu Senhor Jesus Cristo dignar-se de ouvir a prece que faço todos os
dias pela casa real, a fim de que ela persevere na via em que dirigi Clóvis PARA O
ENGRANDECIMENTO DA SANTA IGREJA DE DEUS, possam as bênçãos que o
Espírito Santo derramou sobre sua cabeça pela minha mão pecadora
aumentarem pelo mesmo Espírito sobre a cabeça de seus sucessores! Que dele
saiam reis e imperadores que farão a vontade do Senhor através do crescimento
da Santa Igreja e que serão, pelo seu poder, confirmados e fortificados na justiça.
Possam eles aumentar cada dia seu reino, conservá-lo e merecer reinar
eternamente com o Senhor na Jerusalém celeste!"
Santo Ávito, bispo de Viena, que não tinha podido assistir ao batismo de
Clóvis, escreveu-lhe também uma carta "na qual não se sabe, diz Godefroid Kurth,
o que é preciso mais admirar: a elevação da linguagem, a justeza da perspectiva
6
Devemos dizer que a carta do Papa Anastácio II a Clóvis, ainda que não traga nenhum caráter
interno de suposição, (além disso ela é por demais curta para oferecer muita percepção à crítica),
deve ser tida como suspeita por causa de sua proveniência. Ela é, com efeito, referida pelo sábio
Jérôme Viguier, autor de documentos fabricados (Ver Clovis , por Godefroid Kurth).
95
ou a inspiração sublime do pensamento": "...De toda vossa antiga genealogia
nada quisestes conservar além de vossa nobreza, e desejastes que vossa
descendência começasse em vós todas as glórias que ornam um alto nascimento.
Vossos antepassados vos prepararam grandes destinos: vós desejastes preparar
maiores para os que viriam após vós... Posto que Deus, graças a vós, vai fazer
de vosso povo inteiramente o Seu, muito bem!, oferecei uma parte do tesouro de
fé que enche vosso coração a esses povos estabelecidos além de vós, e que,
vivendo em sua ignorância natural, não foram ainda corrompidos pelas doutrinas
perversas (o arianismo); não temais em enviar-lhes embaixadores e advogai
junto a eles a causa de Deus, o Qual tudo fez pela vossa". 7 É, diz Kurth, o
programa do povo franco que está aqui formulado. Quem, a quatorze séculos de
distância, vê desenrolar-se no passado o papel histórico desse povo, então
encoberto pelas trevas do futuro, parece ouvir um vidente de outrora predizer a
missão de um povo de eleitos. A nação franca foi encarregada, durante
séculos, de realizar o programa de Ávito: ela levou o Evangelho aos povos
pagãos, armada simultaneamente com a cruz e a espada, e mereceu que seus
trabalhos fossem inscritos na história sob este título: Gesta Dei per Francos. 8
Ao mesmo tempo em que lhes foi dada por Deus, indicada pelo papa e pelos
bispos, a missão de serem no mundo os defensores da Santa Igreja foi conferida
aos reis dos francos pelos imperadores romanos.
Ainda que exilado no Oriente, o império romano conservou durante muito
tempo seu prestígio no Ocidente. De tal maneira que Clóvis não se creu seguro
de suas conquistas senão quando recebeu do imperador Anastácio o título e as
insígnias de patrício, cônsul e augusto. Em sua alegria, como conta Gregório de
Tours, ao tomar posse solenemente de sua nova dignidade em Saint-Martin de
Tour, ele fez cunhar, para distribuir ao povo, moedas com a efígie de Anastácio,
com esta divisa no reverso:
Desde esse dia Clóvis foi pois igualmente investido, em nome do Imperador,
da dupla missão de proteger a Igreja e os pobres. E desde então essa missão foi
sempre olhada como a herança mais preciosa dos soberanos da França.
Conferindo o patriciado aos reis merovíngios, os imperadores do Oriente lhes
diziam:
"Como não podemos nos desincumbir sozinhos da carga que nos é imposta,
concedemo-vos a honra de fazer justiça às igrejas de Deus e aos pobres,
recordando-vos que prestareis contas ao Soberano Juiz". 9
Quando, pouco a pouco, os laços do Oriente e do Ocidente se romperam, os
Papas, em nome "de Pedro, presente em Roma na sua carne " e com o
consentimento dos romanos, deram sozinhos esse mandato. Gregório III investiu
no patriciado Carlos Martelo, título que a morte não lhe permitiu aceitar, mas que
passou a Pepino e a seus filhos. É isto que explica por que razão o Papa foi
consultado para a eleição de Pepino ao trono da França. Três anos após sua
sagração, Estêvão lhe escrevia nestes termos em nome de São Pedro e do seu:
"Pedro, apóstolo, chamado por Jesus Cristo, Filho de Deus vivo, e comigo a
Igreja católica, apostólica, romana, mestra de todas as outras, e Estêvão, bispo
de Roma:
7
A. Avitus, Epist., 46 (41).
8
Clovis, p. 355.
9
Ozanam, Civilisation Chrétienne.
96
"A vós, homens excelentíssimos, Pepino, Carlos e Carloman, todos os três
reis; aos bispos, abades, duques, condes, a todos os exércitos e a todos os
povos dos francos.
"Eu, Pedro, por Deus mandado a esclarecer o mundo, escolhidos como meus
filhos adotivos , a fim de que defendais contra seus inimigos a cidade de Roma, o
povo que Deus me confiou e o lugar onde repouso segundo a carne . Concito-
vos, pois, a que liberteis a Igreja de Deus, que me foi recomendada do Alto; e
peço-vos urgência, porque Ela sofre grandes aflições e opressões extremas...
Rogo-vos e conjuro-vos, como se estivesse presente diante de vós; porque,
segundo a promessa recebida de Nosso Senhor e Redentor, distingo o povo dos
Francos dentre todas as nações... Emprestai aos romanos, emprestai a vossos
irmãos todo o apoio de vossas forças, a fim de que eu, Pedro, cobrindo-vos
com meu patrocínio neste mundo e no outro, erga tendas para vós no reino de
Deus".10
Assim, os francos são irmãos dos romanos não somente como todos os
católicos enquanto filhos espirituais de Pedro, mas como seus filhos adotivos,
como concidadãos, título que outros Papas nos dão.
10
Ozanam acompanhou a publicação desta carta com as seguintes reflexões:
"Ao citar a carta escrita pelo papa Estêvão em nome do apóstolo São Pedro, limitei-me às
passagens mais decisivas. A crítica moderna não mais permite considerar esta carta como uma
trapaça religiosa, nem mesmo como uma vã prosopopéia" (Etudes Germaniques, t. II, p. 250).
11
Ozanam, Civilisation Chrétienne.
97
jamais deixou perecer no seu seio a liberdade eclesiástica; jamais consentiu que a
fé cristã perdesse sua energia própria; mais que tudo isso, para a conservação
desses bens, reis e povos não hesitaram em se expor a todas as espécies de
perigos e a derramar seu sangue.
"É pois manifesto que esse reino abençoado por Deus foi escolhido pelo
nosso Redentor para ser o executor de Suas vontades divinas. Jesus Cristo
tomou-o sob Sua posse, como a uma aljava da qual freqüentemente tira flechas
escolhidas, que lança com a força irresistível do Seu braço, para a proteção da
liberdade e da fé da Igreja, o castigo dos ímpios e a defesa da justiça". 12
Antes dele, Honório III chamara a França de "muro inexpugnável da
cristandade"; Inocêncio III dissera: "Os triunfos da França são os triunfos da Sé
Apostólica"; e Alexandre III: "A França é um reino abençoado por Deus, cuja
exaltação é inseparável da da Santa Sé".
Para abreviar, cheguemos a Leão XIII, que resume assim nossa história: "A
nobilíssima nação francesa, pelas grandes coisas que realizou na paz e na guerra,
adquiriu, relativamente à Igreja Católica, méritos e títulos para um reconhecimento
imortal e para uma glória que jamais se extinguirá". — "À medida que ela
progredia na fé cristã, vimo-la subir gradualmente a essa grandeza moral que
alcançou como potência política e militar". — "Em todos os tempos a Providência
comprazeu-se em confiar aos braços valentes da França a defesa da Igreja, e
quando Ela a via cumprir fielmente sua missão, não deixava de recompensá-la
mediante um aumento de glória e de prosperidade. Ah! pedimos ao Céu com
insistência, possa a França de hoje, por sua fé religiosa, mostrar-se digna da
França do passado! Possa ela permanecer fiel às grandes tradições de sua
história, e assim trabalhar para sua verdadeira grandeza!" 13
12
Labbe, Collection des Conciles , t. XIV, p. 266.
13
Encíclica Nobilissima Gallorum gens. — Encíclica Au milieu des sollicitudes. — Discurso aos
peregrinos franceses, 8 de maio de 1881.
— Se a distinção entre as ciências naturais e as ciências morais, judiciosa e fortemente assinalada
pelo professor Grasset num célebre livro (Les Limites de la Biologie , pelo doutor Grasset, 1 volume,
Alcan.), deve ser mantida da maneira mais estrita, diz Paul Bourget, isto não constitui motivo para
renunciar à comparação entre os últimos resultados dessas ciências. Reservamo-nos o direito de
assinalar, a propósito desses resultados, analogias que adquirem, quando chegam à identidade, o
mais alto valor de verificação. Ora, conhecemos a doutrina de Claude Bernard sobre a vida, esta
nutrição dirigida: "A vida, escreveu ele, é a criação. O que não é essencialmente do domínio da vida,
o que não pertence nem à física, nem à química, nem a nenhuma outra coisa, é a idéia diretriz dessa
evolução vital... Em todo o germe vivente há uma idéia criadora que se desenvolve e se manifesta
pela organização. Durante toda a sua vida, o ser vivente permanece sob a influência dessa mesma
força vital criadora , e a morte chega quando ela não pode mais se realizar... É sempre a mesma
idéia vital que conserva o ser, reconstituindo as partes vivas, desorganizadas pelo exercício, ou
destruídas pelos acidentes e doenças..." (Ver a Introduction à la Médecine Expérimentale, edição de
Sertillanges, M. Levé, 17, rua Cassette). Estudando, como ele fez, a história dos povos em todas as
civilizações, o abade Pascal verificou com que surpreendente exatidão essa fórmula se aplica às
grandezas e às decadências de todos os países... Modificai-lhe alguns termos, a fim de passar da
ordem da biologia para a ordem da história. Esquecei por um momento a frase de Bernard e lede
esta: "Um povo é uma criação contínua. O que é essencialmente do domínio desse povo, o que não
pertence a nenhum outro, é a idéia diretriz que se desenvolve e se manifesta pela organização.
Durante toda a sua vida, esse povo permanece sob a influência dessa mesma força nacional criadora,
e sua morte chega quando ela não pode mais se realizar... É sempre essa idéia nacional que
conserva esse povo, reconstituindo as partes vivas, desorganizadas pelos abusos, ou destruídas pelos
acidentes exteriores e pelas Revoluções..." Não há nessa série de afirmações uma verdade que não
seja de experiência histórica, assim como não havia uma verdade, na série das afirmações de
Bernard, que não fosse de experiência biológica. É apenas um paralelo, mas de que alcance. Pascal
vai medi-lo para nós.
Esse princípio da idéia diretriz domina sua pesquisa com aquilo que ele qualifica, com Bossuet,
de seqüência de nossa história, sentido de nossa vida nacional, função étnica, ele diz, ele, "a
98
A cada renovação de reinado, a sagração do rei vinha selar de novo a aliança
firmada entre Cristo e a França, tão freqüentemente registrada em cartório, por
assim dizer, pelos soberanos Pontífices.
A sagração dos reis foi um privilégio reservado durante muito tempo à França.
Nenhum imperador romano, nem Constantino, nem Teodósio, pediu à Igreja
consagração religiosa. Chegado o momento em que a Providência quis ter na
França reis protetores da Santa Sé e propagadores da Fé católica, São Remi,
como um novo Samuel, deu a unção ao fundador da monarquia francesa.
Foi apenas muito mais tarde que a Espanha quis ter, também ela, o rei ungido
com o Óleo santo. A Inglaterra e depois as outras nações da Europa expressaram
em seguida o mesmo desejo.
Mas a sagração dos reis de França conservou um cerimonial particular. Seria
demasiado longo reproduzi-lo, bastando que se assinalem seus pontos principais.
Antes de celebrar a missa da sagração, o prelado consagrador lembrava ao
rei seus deveres:
"Como hoje, excelente príncipe, ireis receber a unção santa e as insígnias da
realeza por nossas mãos, e como (ainda que indigno) ocupamos o lugar de Cristo,
nosso Salvador, é bom que vos advirtamos a respeito da responsabilidade que
ireis assumir. Essa posição é ilustre, mas cheia de perigos, de trabalhos e de
solicitudes. Considerai que todo o poder vem do Senhor Deus, pelo Qual os reis
reinam e os legisladores decretam as leis justas , e que vós também dareis contas
a Deus do rebanho que vos é confiado.
"Primeiramente guardai a piedade, prestai culto a Deus, vosso Senhor, com
todo o vosso espírito e com um coração puro. Defendei constantemente contra
todos a religião cristã e a fé católica , que professais desde vosso berço. Rendei
aos prelados e aos demais sacerdotes a honra que lhes é devida. Administrai
invariavelmente a justiça, sem a qual nenhuma sociedade pode durar muito tempo,
recompensando os bons e castigando os maus. Defendei contra toda opressão
as viúvas, os órfãos, os pobres, os fracos. Mostrai-vos com uma dignidade real,
suave, afável, cheia de benignidade para com os que se aproximem de vós.
Conduzi-vos de tal maneira que pareçais reinar não em vosso interesse, mas no
interesse do povo inteiro , e aguardai não da terra, mas do Céu, a recompensa de
vossas boas obras".
O príncipe prometia defender a fé católica, o poder temporal das igrejas
confiadas à sua guarda e de fazer justiça a todos. 14
O povo aceitava essa promessa e, por seu turno, ligava-se a ele.
vocação da França". Ele é cristão. Reconheceis, nessa última palavra sua fé numa Providência. Mas
se ele se ativesse à atitude positivista, ao determinismo puramente naturalista, ele não raciocinaria
de outra maneira. É um dos casos mais notáveis do completo acordo entre as instituições tradicionais
e as conclusões de ordem experimental, quando se trata das leis das sociedades. Que um ateu
declarado, ou — posto que o ateísmo não é um estado de espírito científico — que um agnóstico
irredutível queira considerar o fenômeno francês como um simples produto da Natureza Social, e
descobrirá que esse produto se caracteriza pelos dois princípios diretores que são o credo
hereditário dos tradicionalistas. A França nasceu e viveu católica e monarquista. Seu crescimento e
sua prosperidade estiveram na razão direta do grau em que ela esteve unida à sua Igreja e ao seu
Rei. Todas as vezes que, ao contrário, suas energias foram exercidas contrariamente a essas duas
idéias diretrizes , a organização nacional foi profundamente, perigosamente perturbada. De onde
esta imperiosa conclusão: a França não pode deixar de ser católica e monárquica, sem deixar de
ser a França — da mesma sorte que um fígado não pode deixar de produzir a bile sem deixar de ser
um fígado, um estômago de secretar o suco gástrico sem deixar de ser um estômago. Essas simples,
essas grosseiras assimilações são apenas o enunciado de uma lei que domina a metafísica mais
comum. Os filósofos cartesianos conferiram-lhe uma expressão, também ela axiomática, quando
afirmaram que "todo ser tende a perseverar no seu ser". É o mesmo que dizer que dois mais dois
são quatro e que a linha reta é o caminho mais curto entre dois pontos.
99
O Pontífice perguntava ao povo se ele queria se submeter a esse príncipe e
obedecer às suas ordens. Somente após a resposta unânime do clero e do povo
o bispo pedia a benção de Deus sobre a cabeça do príncipe. Ele lhe devolvia a
coroa e a mão da justiça, retiradas de sob o altar, 15 como se lhe fazia notar; o
arcebispo fazia-o sentar-se ao trono, dizendo-lhe:
"Sê firme e guarda o Estado que recebes da sucessão paterna e que te é
delegado pelo direito hereditário, pela autoridade de Deus todo-poderoso e pela
tradição de todos os Bispos e dos outros servidores de Deus; que o mediador de
Deus e dos homens te estabeleça sobre esse trono real, mediador do clero e do
povo; e que Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei dos reis e Senhor dos senhores, te
confirme sobre o trono desse reino e te faça reinar com Ele em seu reino eterno".
Todo o direito cristão era expresso nessas palavras: 1º — o direito humano do
príncipe, hereditário; 2º — o direito humano do povo que aprovava a transmissão
da coroa ao herdeiro legítimo; 3º — o direito divino que investia o príncipe "pela
autoridade de Deus todo-poderoso e pela tradição dos bispos"; 4º — a realeza
soberana e eterna de Cristo.
Ao poder humano, que não vem dEla, mas que Ela confirma, como Ela
confirma o contrato que entre si fazem os esposos, a Igreja junta alguma coisa,
como ela junta ao matrimônio de direito natural a graça do sacramento. Essa
alguma coisa era uma missão e um dom: a missão que vimos ser conferida pelos
Papas e pelos imperadores romanos, o dom sobrenatural exposto no que segue.
O Rei de França era sagrado com o Santo Crisma, o mais nobre dos Santos
Óleos, aquele que é empregado na sagração dos bispos. Assim que outros reis
pediram à Igreja que também os sagrasse, Ela quis aplicar apenas o óleo dos
catecúmenos.
O rei era ungido primeiramente na cabeça, como o bispo, para mostrar que,
assim como o bispo tem a primeira dignidade no clero, o rei de França tinha a
preeminência sobre todos os soberanos. Era ungido nas mãos, como o sacerdote,
não para o ministério do altar, mas para a força a ser exercida contra os inimigos
da Igreja e de seu povo, e também, como veremos, para conferir-lhe o dom da
cura. Era ungido nos ombros "para carregar o fardo dos negócios, da paz e da
guerra". Era ungido nos cotovelos "para torná-los invencíveis a seus inimigos".
A unção santa assim praticada fazia o rei.
Sabemos que Joana d'Arc chamava Carlos VII apenas de "gentil delfim" antes
que ela o tivesse levado sagrar em Reims.
A unção santa dava à França a pessoa do rei, de tal sorte que o rei pertencia
mais ao país do que a ele mesmo. Após os Estados da Igreja, a realeza da França
era a mais desimpedida dos laços terrenos, podemos dizer a mais espiritualizada.
14
Suger dizia, desde o século XII: "na coroação, o Rei abandona sua espada, o exército secular, e
cinge o gládio eclesiástico para a punição dos maus". "Historicamente, diz Paul Bourget, o Rei,
aceitando a investidura da Igreja, afirma sua vontade de manter a mais preciosa conquista da
civilização romana sobre os bárbaros, essa unidade moral, essa pax romana transmudada para pax
christiana por um mistério dessa sublime alquimia impressa por toda a parte no universo, para quem
sabe pensar. Mas se o Rei, para dar a seu poder a consagração religiosa, submetia-se assim à Igreja,
a ela se submetia sem que essa Igreja o obrigasse. Ele era sagrado Rei — hereditariamente —,
quer dizer, ele se afirmava como o chefe nacional, por direito de nascimento, de ma outra unidade,
a unidade cívica, separada do mesmo império romano, e assegurada em sua autonomia pelos usos,
costumes, por leis específicas.
15
Os que quiseram derrogar esse cerimonial não foram felizes em seu reinado. Carlos Magno
recebeu a coroa por seu filho, Luís, o Bonachão; Luís, o Bonachão, deveria deixá-la cair de sua
cabeça. Napoleão tomou ele próprio a coroa e colocou a da imperatriz sobre a cabeça de Josefina:
Josefina foi repudiada algum tempo depois e o poderoso imperador morreu descoroado numa ilha
perdida no meio do oceano.
100
O rei era mais verdadeiramente o pai de seu povo do que de seus próprios filhos.
Ele devia sacrificar estes àquele, e ele sabia fazê-lo, como as lápides de mármore
de Versalhes testemunham. Ou melhor, seus filhos não mais lhe pertenciam,
eram "os filhos da França".
A unção santa conferia ao rei um certo caráter de santidade, não dessa
santidade que torna o homem capaz de ver a Deus tal qual Ele é nos Seus
esplendores eternos, mas daquela que estabelece relações particulares entre
Deus e tal ou qual de suas criaturas. Foi Santo Tomás de Aquino que as qualificou
com este nome: santidade. 16 E ele dá como prova de sua existência o que
aconteceu no batismo de Clóvis, e o que Deus tem renovado de século em século
até nossos dias.
"Encontramos, diz ele, uma prova dessa SANTIDADE nas gestas dos francos
e do bem-aventurado Remi. Encontramo-la na Santa Âmbula trazida do alto por
uma pomba para servir na sagração de Clóvis e de seus sucessores, e nos sinais,
prodígios e diversas curas operadas por eles" (De Reg. Princ., II-XVI).
São Tomás quer referir-se aqui ao poder dado aos reis de França de curar
escrófulas. 17
É um fato constante, apoiado pelo testemunho de um grande número de
teólogos, de historiadores e de médicos, que os reis legítimos de França gozaram
desse privilégio. O venerável Guibert, abade do mosteiro de Saint-Marc à
Nogent-sur-Coucy, na diocese de Laon, uma das luzes da França no início do
século XII, fala dessa prerrogativa nestes termos:
"Que direi do milagre diário 18 que VEMOS se operar por nosso mestre o rei
Luís? EU VI aqueles que têm escrófulas no pescoço ou em outras partes do
corpo, se comprimirem em multidão ao redor dele, a fim de que ele os tocasse,
marcando-os com o sinal da cruz; eu estava ao lado dele e queria impedi-los,
mas ele, com sua bondade natural, estendia-lhes afetuosamente a mão e fazia
sobre eles o sinal da cruz com muita humildade". Ele acrescenta que o rei Filipe,
pai de Luís, havia inicialmente exercido, "com a mesma facilidade esse glorioso
poder". "Ignoro, aduz, que tipo de faltas fizeram-no perdê-lo". Guilherme de
Nangis conta que ao pronunciar as palavras usuais: O rei te toca, o rei te cura,
ditas para a cura dos escrofulosos "acerca dos quais Deus concedeu aos reis de
França uma graça singular", o rei São Luís tinha o costume de ajuntar o sinal da
cruz, porque desejava que a cura fosse atribuída ao sinal salutar da Redenção. O
que continuou a ser observado dali para a frente. Estêvão de Conty, sábio monge
de Corbie em 1400, na sua história manuscrita do rei de França diz: "Est veritas
quo innumerabilis sic de hac infirmitate fuerunt sanati per plures reges Franciae".
102
escrofulosos. O quarto, Marie-Elisabeth Colin, com nove anos de idade,
apresentava várias chagas. O quinto, Marie-Anne Mathieu, com quinze anos,
tinha um tumor escrofuloso e uma chaga no pescoço. Redigiu-se ata dessas
curas e se aguardou cinco meses antes de conclui-la e publicá-la, a fim de se ter
certeza de que o tempo confirmaria as curas. "São Marcoul não pôde obter mais
curas, observa um historiador da abadia, como aconteceu ao próprio Jesus, por
causa da incredulidade dos doentes".
O sábio papa Bento XIV creu no privilégio dos reis de França, assim como
São Tomás de Aquino. Ele mostra que há graças miraculosas, que não são
concedidas em razão da santidade daquele do qual são o instrumento, e depois
acrescenta: "Citemos, por exemplo, o privilégio que têm os reis de França de
curar as escrófulas, não por uma virtude que lhes é inata, mas por uma graça que
lhes foi dada gratuitamente, assim que São Marcoul a obteve de Deus para todos
os reis de França".
A missão que a França devia cumprir através de seus reis, como já vimos,
descia do coração de Deus para o coração dos papas e dos bispos; a boca dos
pontífices a confiara aos reis, e a conduta quatorze vezes secular dos soberanos a
imprimira no coração dos franceses.
103
A lei sálica foi, desde o primeiro dia, a expressão viva dessa missão. 20 Eis
aqui o primeiro prólogo da lei:
"A ilustre nação dos Francos, constituída pela mão de Deus, forte na guerra,
firme nos tratados de paz, profunda no conselho, de uma nobre estatura, de uma
beleza primitiva de sangue e de forma, cheia de coragem, de prontidão e de
entusiasmo, recentemente convertida à fé católica e isenta de heresia; quando ela
estava ainda no estado bárbaro, procurando a ciência sob a inspiração de Deus,
desejando a justiça e guardando a piedade segundo seus costumes, ditou a lei
sálica pela voz dos grandes, seus chefes eleitos dentre diversos, de nomes
Wisogast, Bodogast, Salegast, Wodogast, os quais, em três assembléias reunidas
nos lugares chamados Salachem, Bodochen e Widochem, após haver discutido
cuidadosamente as origens de todas as causas e tratado de cada uma em
particular, decretaram o seguinte julgamento.
"Mas desde que, pela graça de Deus, o rei dos Francos, grande e invencível,
Clóvis, recebeu o batismo católico, o que não mais convinha no pacto foi
lucidamente corrigido tanto pelo rei vencedor quanto por Childebert e Clotaire.
"VIVA CRISTO, QUE AMA OS FRANCOS"! que o Senhor Jesus Cristo guarde o
reino deles e encha os chefes com Sua luz e Sua graça; que Ele proteja seus
20
Os trabalhos mais sérios da erudição contemporânea estabelecem que a redação latina da lei
sálica foi inicialmente promulgada por Clóvis, antes de sua conversão ao cristianismo, isto é, do ano
481 ao ano 496; e que o rei, após sua conversão, de 497 a 511, acrescentou um certo número de
títulos; o que fizeram, a seu exemplo, seus sucessores. O precioso manuscrito 4404 da Biblioteca
Nacional, publicado por Pardessus, é tido como o texto mais antigo e mais completo da lei sálica.
Ela foi redigida e promulgada, segundo todas as probabilidades, na Toxandrie, nessa parte norte da
Bélgica, entre Escaut e o Baixo-Reno, onde Julien permitiu aos sálicos residirem.
A lei é precedida de dois prólogos, acrescentados após a conversão de Clóvis, um grande, e um
pequeno, seguidos de um epílogo. O grande prólogo, Gens Francorum, é reproduzido, diz
Laferrière (Histoire du droit français, tomo III, p. 78 e seguintes), em onze manuscritos, dos quais
vários são anteriores à revisão de Carlos Magno, e o relato que ele contém é confirmado por um
outro prólogo, Placuit atque convenit, mais simples na expressão, idêntico pelos fatos, o qual
acompanha o grande prólogo em cinco dos onze manuscritos.
Esse grande prólogo se encontra numa compilação do século VIII, a coleção dos Gesta
Francorum. Alguns críticos acreditaram poder atribuir a paternidade desse admirável monumento
histórico ao compilador do século VIII. O próprio caráter do documento não deixa essa hipótese de
pé. Carlos Magno revisou sua lei sálica. Resta, dessa lei revisada, lex emendata , uns cinqüenta
manuscritos conhecidos. A obra de Carlos Magno não alterou a de Clóvis; ela somente acrescentou
novas disposições, tornadas necessárias pelo estado dos costumes e pelos interesses da Igreja e da
sociedade. O grande prólogo foi chamado em um dos mais antigos manuscritos Laus Francorum, e
é exatamente o nome que merece. Nada foi escrito de mais honroso à nossa raça. "Sentimos ao lê-
lo, diz Ginoulhiac (Histoire générale du droit français, 1884, p. 143), que ainda estamos numa época
vizinha da conquista, sob a influência das vitórias recentes de Clóvis e da derrota dos romanos. É,
ademais, o que nos ensina o próprio redator do prólogo, com estas palavras: Ad catholicam fidem
NUPER conversa, que indicam por sua redação uma época próxima da conversão de Clóvis ao
catolicismo".
Dispomos apenas de textos latinos da lei sálica; é provável, entretanto, que a primeira redação
tinha sido feita na língua franca, mas essa redação deve ter sido oral e não escrita. Os francos, antes
do século VIII, não tinham língua escrita. Aí está, para mencionar de passagem, o que explica a
raridade dos documentos relativos às nossas origens. Quando a escola hipercrítica, com seu desdém
pelas tradições, rejeita as lembranças mais bem estabelecidas, com este único argumento de que não
há documentos, ela esquece que os francos não escreviam, mas conservavam em cânticos a memória
de seus fundadores e dos acontecimentos marcantes da vida nacional. Somente aqueles que
possuíam a língua latina podiam fixar pela escrita seu pensamento, e estes eram então em número
muito pequeno. Como quer que seja, e para não fugirmos do nosso as sunto, diremos com o
historiador do direito francês Laferrière, inspetor geral das Faculdades de Direito: "É preciso olhar
os prólogos e o epílogo da lei sálica como documentos autênticos" (Histoire générale du droit
français, 1884, p. 70) (Semana Religiosa de Rouen).
104
exércitos, sustente sua fé e conceda à sua piedade a alegria, a felicidade, a paz
e a perenidade de sua soberania!
"É esta raça de homens, com efeito, que, pouco numerosa ainda, mas valente
e forte, nos combates sacudiu e retirou de sua fronte o jugo tão duro dos romanos;
são os Francos que, após sua admissão ao batismo, procuraram e cobriram de
ouro e de pedras preciosas os corpos dos santos mártires que os romanos tinham
mutilado com a espada, abandonado às chamas ou jogado aos animais ferozes
para serem devorados".
Um pouco mais tarde, a Igreja da França pediu, na própria oblação do Santo
Sacrifício, a graça para que os franceses sempre fizessem as obras que sua
vocação lhe impunha:
"Deus todo-poderoso e eterno, que, para servir de instrumento à Vossa divina
vontade no mundo, e para o triunfo e a defesa de Vossa Santa Igreja,
estabelecestes o império dos Francos, iluminai sempre e em toda a parte seus
filhos com vossas luzes divinas, a fim de que conheçam o que devem fazer para
estabelecer Vosso reino no mundo, e que, perseverando na caridade e na força,
realizem o que conheceram que devem fazer, por Nosso Senhor Jesus Cristo..." 21
Não foi somente no santo altar que a França exprimiu o sentimento inato de
sua sublime missão. Em uma de suas canções de gesta, ela se gloriava de que
Deus tenha feito coroar pelos anjos seu primeiro rei, para ser Seu oficial.
Casamento em família
Da Igreja e das flores de lis.
Quando um ou outro partir,
2
Cada um deles se ressentirá. 2
21
Esta oração foi tirada de um missal do século IX. Suas origens remontam ao século VII. (Dom
Pitra, Histoire de Saint Léger, Introdução, p. XXII).
22
Guilherme de Nangis, na Chronique de Saint Louis, explica de maneira curiosa e profética o
simbolismo do brasão da França.
"Visto como Nosso Pai Jesus Cristo quer especialmente iluminar acima de todos os outros reinos o
reino de França com Fé, Sabedoria e Cavalaria, os reis de França se acostumaram a levar em suas
armas a flor de lis pintada com três folhas, assim como se eles dissessem a todo o mundo: Fé,
Sabedoria e Cavalaria estão, pela provisão e pela graça de Deus, mais abundantemente em nosso
reino do que em outros. As duas folhas que formam asas significam Sabedoria e Cavalaria, que
guardam e defendem a terceira folha, que está no meio delas, mais longa e mais alta, através da qual
a Fé é compreendida e significada, porque ela é e deve ser governada pela Sabedoria e defendida pela
Cavalaria.
105
As moedas que os reis mandavam gravar, e que o povo tinha diariamente nas
mãos, eram feitas com a expressa intenção de manter no público o pensamento
do papel reservado à França e de induzi-lo a render graças ao divino Rei. 23
Em outras:
Lilium elegisti tibi.
"Cristo vence, Cristo impera, Cristo reina; — Que o nome de Jesus Cristo,
Nosso Senhor e nosso Deus, seja bendito. — Ele reservou o lis para Si".
Qualquer que seja o estado a que estejamos reduzidos, não cessemos de ter
esperança. Há castigo naquilo que nós sofremos. Mas se Deus pune, Ele não se
arrepende de Seus dons. Um dia ou outro, Ele recolocará a França nas vias de
sua juventude. Várias pessoas têm o pressentimento de que isto acontecerá logo.
Edouard Drumond, apesar de seu pessimismo habitual, terminava seu artigo
de 27 de julho de 1905 com essas palavras: "Podemos perfeitamente conceber, na
seqüência dos acontecimentos que não tardarão a se produzir, uma reconstituição
dos elementos franceses, dos elementos de estirpe ao redor de um chefe que
personifique essa estirpe".
O patriotismo, na falta da lei, abre os olhos a muitos publicistas acerca das
condições necessárias à nossa vida nacional. O estudo aprofundado da história
da França, das causas que construíram sua prosperidade e sua preponderância
no mundo, e daquelas que redundaram na sua decadência, convenceu-os de que
os destinos de nosso país estão intimamente ligados aos do catolicismo, e de que
apenas uma coisa pode nos dar, juntamente com a vida, a posição que nos
pertence: retemperar a alma francesa no espírito do passado. Mirabeau deu todo o
argumento da Revolução nessas poucas palavras: "É preciso descatolicizar a
França para desmonarquizá-la, e desmonarquizá-la para descatolicizá-la". É
sempre a mesma palavra de ordem.
"Apenas o cristianismo, diz o positivista Taine, pode travar o resvalamento
insensível através do qual, e com todo seu peso original, nosso povo retrograde
em direção ao fosso; e o velho Evangelho é ainda hoje o melhor auxiliar social".
1
Na verdade, ninguém é tão cuidadoso como as abelhas acerca de suas coisas. Por isso que a
incolumidade da rainha constitui para todas um desígnio comum; e se esta morre, em razão da
quebra da fidelidade ou da perda do mel acumulado, morrem todas. (N. do T.).
109
E Brunetière:
"É uma ilusão crer que triunfaremos com um vago liberalismo da ação
combinada do jacobinismo e da franco-maçonaria... São cegos os que não
vêem que sendo o programa de nossos adversários a descristianização da
França, fugimos do combate e abandonamos a pátria se fingimos crer que a luta
se fere em outro lugar".
Num livro que acaba de publicar, Le Sentiment Religieux en France, Lucien
Arréat, que coloca todas as religiões no mesmo nível e parece não seguir
nenhuma delas, é levado a reconhecer isto (p. 27): "A alma francesa carrega a
marca do catolicismo, isto não é contestável". E um pouco mais longe (p. 31):
"O declínio da religião católica pôde parecer para nós uma enorme vantagem,
enquanto as esperanças da escola enciclopedista brilharam diante de nossos
olhos e a sorte de nossa pátria não estava colocada em perigo. Passados
quarenta anos, não é mais assim, de maneira nenhuma; nossas agitações
desordenadas conduziram-nos a uma crise funesta, a uma dessas batalhas que
mudam o destino das nações".
E ainda: "A ruína das idéias tradicionais freqüentemente decide o retorno a
um estado inferior, não somente nas classes dirigidas, mas ainda naquelas que
têm o verniz da mais alta cultura" (p. 91).
Léon Daudet terminava recentemente um artigo intitulado Les Chemins de
Damas2 [Os Caminhos de Damasco] com estas linhas:
"A verdade é que os franceses de hereditariedade católica, que os desafetos
do catolicismo que se julgam os mais distanciados da crença de seus ancestrais,
estão separados dele apenas por uma tênue cortina, que eles tomam por um muro
blindado... Essa tênue cortina, que separa da fé os homens de temperamento
católico, jamais foi tão flutuante quanto na nossa época, na qual, de um lado a
superabundância das noções, a superatividade intelectual provocam e necessitam
de crises do sensível, — de outro lado a causa da Religião e aquela da Raça
aparecem como inseparáveis. Esta a razão pela qual o caminho de Damasco
jamais foi tão freqüentado, tão transitável. Prevejo que muitos de nossos
contemporâneos nele transitarão de automóvel. O gosto desenfreado da
velocidade aplicar-se-á até mesmo à conversão".
Quase toda semana encontramos essas idéias expressas em jornais, em
revistas, em livros, fato que nos teria deixado muito admirados há alguns anos. A
verdade expressa por L. Veuillot torna-se cada vez mais evidente aos olhos de
quem sabe ver:
"O tempo do meio-termo passou; não há futuro no mundo senão para os
socialistas como Proudhon, ou para os católicos como nós, porque o mundo
chegou a um ponto no qual ele deve perecer ou renascer. Todas as coisas
intermediárias serão esmagadas pela destruição ou rejeitadas com desdém pela
reconstrução" .
2
La Libre Parole , número de 12 de abril de 1903.
3
A Santa Igreja encorajou, desde antes do século XIII e em Roma mesmo a oração pelo rei de
França.
Em Saint-Louis-des-Français lê-se em cada um dos pilares que fronteiam a porta de entrada:
QUICUNQUE ORAT PRO REGE FRANCIAE HABET DECEM DIES INDULGENCIAE, A PAPA
INNOC. IV. Quem rezar pelo rei de França ganha dez dias de indulgência, concedida pelo papa
Inocêncio IV.
São Tomás de Aquino recolheu esta inscrição e a inseriu na Suma Teológica e no Livro de
Sentenças (in Supp. XXV, art. III, ad. 2 et in IV sent. Dist. XX, q. 1, art. III).
A mesma inscrição encontra-se em Saint-Claude des Bourguignons.
110
Um corpo não pode existir sem cabeça; e o corpo social, não menos que um
outro corpo, não pode viver, e sobretudo se reconstituir, sem a influência da alma
que, da cabeça, aciona os outros membros.
Há mais de um século a França está decapitada. Por que, pois, espantar-
se com o estado de decomposição em que ela se encontra?
Se Deus tem piedade de nós, parece que Sua primeira obra de misericórdia
será de recolocar, no cimo da pirâmide que as famílias constituem em toda
sociedade, a família que, durante tantos séculos, tem sido a primeira, e que por
um trabalho lento reuniu em torno dela os elementos da nacionalidade francesa, 4
petrificando-os com suas mãos possantes para fazer deles um só povo, e neles
vertendo sua alma cheia do pensamento que Clóvis recebeu do céu no dia de seu
batismo.
Buffet, presidente da Assembléia Nacional, gostava de dizer a seu filho acerca
de seus últimos dias:
"Uma dúvida, uma dúvida profunda e crescente não pára, faz alguns anos, de
nos atormentar. Após tantas infelicidades passadas, diante de tantas crises
presentes e de outras tantas que se preparam, fico hoje a me perguntar se a
França ainda pode ser salva...
"Creio, entretanto, que a salvação ainda é possível. Mas eis a última certeza
de minha vida: se a França deve ser salva, ela não o será senão pela monarquia".
Não por uma monarquia qualquer, como se quis de 1871 a 1875, mas pela
verdadeira monarquia francesa e cristã; nas condições, todavia, que as
ocorrências do século presente reclamam.
Lur-Saluces disse com acerto:
"O papel do rei de França não poderia consistir em tentar essa obra absurda
que seria desastrosa se não fosse impossível, e que consistiria em querer forçar
um país a reviver sua vida às avessas. Não se pára a evolução de um povo como
a de um corpo vivo qualquer; o papel do poder é o de regularizá-la e dirigi-la sem a
entravar, de maneira a torná-la fecunda.
"A monarquia é um centro fixo. Eu não poderia melhor compará-la do que a
um desses eixos que, sem estar imóveis, permanecem no mesmo lugar, enquanto
evoluem. Restabelecido esse pivô, a antiga evolução, regular e feliz, poderá
recomeçar". 'Juntos e quando quiserdes, retomaremos o grande movimento de
1789'. Esse convite do conde de Chambord à França traça, ao que me parece, o
programa da realeza futura".
Monsenhor Gerbet, nos seus Esquisses de Rome Chrétienne [Esboços da
Roma Cristã] lembra um fato cuja reprodução, deve-se esperar, ainda veremos.
Falando sobre a basílica Ulpiana, diz:
"Nessa mesma basílica, Constantino convocou uma assembléia do povo
romano. O Imperador colocou-se na abside... Dali fez-se ouvir uma das
proclamações mais solenes cujo texto a História conservou, aquela que anunciou
oficialmente os funerais do mundo pagão e o coroamento cristão do novo mundo.
"Do alto dessa tribuna, Constantino dirigiu estas palavras à assembléia:
4
"A história de meus antepassados, disse com inteira verdade o conde de Chambord, é a história da
grandeza progressiva da França".
Sua política hábil e invariável nos deu Berry sob Filipe I; Normandie e Touraine sob Filipe-
Augusto; Languedoc sob São Luís; Champagne e Lyonnais sob Filipe-o-Belo; Dauphiné sob Filipe
VI; Limousin, Saintonge, Angoumois, Aunis e Poitou sob Carlos-o-Sábio; Guyenne sob Carlos VII;
Bourgogne, Provence, Anjou, Maine sob Luís XI; Bretagne sob Carlos VIII; Bourbonnais, Marche e
Auvergne sob Francisco I; Metz, Toul e Verdun sob Henrique II; Navarre, Béarn, Périgord, o condado
de Foix sob Henrique IV; Alsace, Roussillon, Artois sob Luís XIII; Flandre, Franche-Comté,
Nivernais sob Luís XIV; Lorraine, Corse sob Luís XV; Algérie sob Carlos X.
Tal foi a obra da Monarquia.
111
"As funestas divisões dos espíritos não podem ter um fim feliz, enquanto um
raio da pura luz da verdade não iluminar aqueles que estão cobertos pelas trevas
de uma profunda ignorância. É preciso, pois, abrir os olhos das almas. É dessa
maneira que deve morrer o erro da idolatria. Renunciemos a essa superstição que
a ignorância gerou e que o contra-senso alimenta. Que o Senhor único e
verdadeiro, que reina nos céus, seja o único a ser adorado..."
"...Então a voz do povo explodiu e fez ouvir durante o espaço de duas horas
estas exclamações:
"Infelizes dos que negam Cristo! O Deus dos cristãos é o único Deus! Que
os templos sejam fechados e que se abram as igrejas!
"Aqueles que não honram Cristo são inimigos dos Augustos! Aqueles que
não honram Cristo são inimigos dos romanos! Aquele que salvou o Imperador é
o verdadeiro Deus!
"AQUELE QUE HONRA CRISTO SEMPRE TRIUNFARÁ SOBRE SEUS
INIMIGOS!"5
Um dia ou outro, um príncipe dirá à França: "As funestas divisões dos
espíritos não podem ter um fim feliz, enquanto a pura luz da verdade não tiver
iluminado os ignorantes... É preciso abrir os olhos das almas". Como
Constantino, ele pedirá essa luz ao Vigário de Jesus Cristo; e como o povo
romano daquele tempo, o povo francês exclamará: "O Deus de nossos pais é o
único Deus! Que as lojas sejam fechadas e que as igrejas se abram. O povo que
honra Cristo sempre triunfará sobre seus inimigos!"
A partir desse dia, mas apenas desse dia, a REVOLUÇÃO terá deixado de
existir e começará a RENOVAÇÃO. Ela começará não somente para a França,
mas para a Europa e para o mundo.
No dia das grandes peregrinações a Paray-le-Monial, milhares de cristãos,
belgas, americanos, ingleses, italianos, assim como franceses, levam ao céu, a
uma só voz, esta súplica:
Deus de clemência,
Ó Deus vencedor,
Salvai Roma e a França
Por vosso Sagrado Coração.
Por que essa oração, que associa num mesmo pensamento a salvação de
um povo e a independência da Santa Sé, era comum aos peregrinos de todos os
povos? Não é por se encontrarem em todos o sentimento da missão dada à
França e o instinto secreto do papel que ainda é chamada a desempenhar essa
nação privilegiada, costumeira nos reerguimentos repentinos?
"Aí está uma afirmação que não sofre desmentido, escrevia naquela época
monsenhor Pie; além dos montes, aqueles que esperam e aqueles que temem o
restabelecimento da ordem cristã no mundo, estão de acordo em não julgar esse
fato possível e realizável senão através da França. Quando e como? perguntar-
me-eis. Esta não é a questão, e é o segredo somente de Deus.
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Leibnitz já exprimia, há dois séculos, esse desejo: "Se nós fôssemos suficientemente felizes para que
um grande monarca tomasse a peito os interesses da religião, para atribuir todas as descobertas
presentes e futuras ao louvor do Mestre supremo do universo e ao crescimento do amor divino, que
não seria sincero em nós se não contivesse também a caridade relativamente ao homens,
avançaríamos mais em dez anos na glória de Deus e felicidade humana como não faríamos por outra
maneira em vários séculos".
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ÍNDICE DAS MATÉRIAS
CAPÍTULO I
COMO SE FORMAM OS ESTADOS
CAPÍTULO II
OS ESTADOS DEVEM CONSERVAR
O MODELO FAMILIAR
CAPÍTULO III
A UNIÃO, LEI DAS FAMÍLIAS,
É TAMBÉM A LEI DOS ESTADOS
CAPÍTULO V
QUE DESTINO A ARISTOCRACIA DE DINHEIRO
RESERVA PARA SI E PARA A FRANÇA?
CAPÍTULO VI
A SALVAÇÃO ESTÁ NO RETORNO À PAZ SOCIAL
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da antiga França. — A antiga família francesa tinha, além da comuni-
dade do sangue, a transmissão das tradições familiares e do patrimô-
nio. — A Revolução decapitou a família real, dizimou as famílias aris-
tocráticas e colocou as famílias burguesas e proletárias na impossibili-
dade de se elevarem de uma maneira contínua. — Extratos de livros
de razão .................................................................................................. 53
CAPÍTULO VIII
FAMÍLIAS-TRONCOS
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CAPÍTULO IX
FAMÍLIAS TRADICIONAIS
CAPÍTULO X
AUTORIDADE DO PAI — SANTIDADE DA MÃE
CULTO DOS ANTEPASSADOS
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CAPÍTULO XI
RECONSTITUIÇÃO DO CORPO SOCIAL
CAPÍTULO XII
A FRANÇA. SUAS ORIGENS E SUA MISSÃO.
EPÍLOGO
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