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A c o n s tr u ç ã o d o

e u n a M o d e r n id a d e
Da Renascença
ao Século X IX

Pedro Luiz Ribeiro de Santi

O cHoíoi.
ÊtUfom
V Q ue características deste século são r e s u lt a d o s d e m udanças dc fut
ocorridas nos últim os cinqüenta anos? A sensação d c fcagm enlaçào do eu
v isã o q u e as p esso as tê m dc si m e sm as é r e s u l t a d o p a rtic u la r de su
personalidade ou é um padrão geral na sociedade c o n te m p o r â n e a ?
Diversas m udanças na culnira nos u ltim es 300 anos fizeram com qu
f o s s e altam ente desgastada nossa capacidade de o lh a p n o s O m om ento em q
vivepios c dc com preenderm os as ra í/e s de s u .l s crises no passado. O s teni|
•atu ais têm essa m istura de grande desenvolvim ento t e c n o ló g i c o e um a cnorm
carência de reflexão filosófica. Há problem a- e s tr ita m e n te atuais, m as as bus
' d a atualidade vêm de longe.
Pedro Luiz Ribeiro de Santi. neste A co n strução d o «e n a M otlernuU uk\
ífo rfie c e uma ferram enta para professores e a limos q u e pretendam tratar o tem p
I a tu a l com uma perspectiva histórica. C om olhos v o lt a d o s para os pm i-vdenttÀ
E d a Psicologia com o uma área cientifica, de Santi a c a b a p o r fazer um resum o d
h is tó ria do p e n s a m e n to filo s ó fic o n o s ú ltim o s 5 0 0 a n o s . A le itu ra d
| fundam entação para que alunos de Psicologia possam com preender o surgiment
S d e sua própria profissão, m as tam bém fornece m a te r ia l para q u e alunos
interessados de quaisquer outras áreas possam c o m p r e e n d e r as raízes da vi sã
d o fiomem de si m esm o no século XXI C om e x e m p lo s n a m úsica, nu literatura!
" i pintura e no com portam ento, de Santi narra a tra jetória da construção
ópria imagem do homem.

Asaocnçôo catarineose <te Ensino

■045518* 1501
Aoanrfii nSo Uft eo ní
Pedro Luis Ribeiro de Santi, plrsantifiruol.cojn.br
C Pedro Luís Ribeiro de Santi. 19%, 2000,2003,2001, 2005,2009.

Dados Im crnackinais de CulittoKttçiUi «U Publicação (61P)


(C âm ara Brasileira du Livro, SP. Brasil)

1 5 0 .1 de S a n t i , P e d ro L u ís R i b e i r c .
5235c A Construção do 'eu' r.a
Modernidade. Da Renascença ao
século XIX / Pedro Luis Ribeiro de
Kanti. -- Ribeirão Preto : Holos,
Editora. 1990. 134 p. : 11. ; 21

1 . 1 5 0 .1 . 2 . P s i c o l o g i a - T e o r i a .
I . T ítu lo .

ISBN 85 8 6 6 9 9 - C4-7 CDD


789566 699047

Primeira capa: Mtchcfongvlu. O despertar du escreve". Um Je quatro escravos


c.iculpidos /mr Lfichelan&do para o túmulo de Júlio ll A obro, inacabada, sugere
ifuc o acruvo procura libertar-se do pedra,
Uhíma capa: Ammboldo. “A primavera "

fTssOüU^AOCATARtNE^ .r 'Ta íNSwaJ


MUOTECACMIAU.
* S9-W»,! J<*
\ 08181 i J c.jQ f/aw -sç|
2009
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Pmail holo«@holoscdito*a.cünü)r
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‘Todos neste mundo dizem eu, eu, eu. Se você fi/cr alguma pergunta, você
obterá corno resposta, eu li/, cu vim, cu vt, eu expenenciei Quem é esse eu-1
Se você reconhecer o divino comum nos milhões de pessoas, entâo você
compreenderá o verckideiro cu <rm você Entào, isso trará transformação
social.” (Sathya Sai Babá)

4
Pedro I.uis Ribeiro de Satui

S U M Á R IO

P r e f á c io d e l.u ís C lá u d io F ig u e ir e d o 7
1. In tro d u ção 9
2. A P assa g em da Idade M édia ao R enascim ento 13
3 . 0 H um anism o no R en ascim en to 20
4 O Encontro com a M ultiplicidade 25
5 O s P ro ced im en to s d e C o n te n ção de Eu 36
6. A P o sição d e C ritica à A p arên cia 4 7
7. O D iscu rso do M éto d o 58
8. O Eu c o N à n -b u 68
9 O s M o ralistas do S écu lo X V II 76
1 0 .0 P ú b lico e o P rivado 83
11. T em pestade c ím peto: O R om antism o 91
12. A A u to -C ritica da R azão 99
1 3 .0 Positivism o 102
14. O s D iversos C am in h o s para a Psicologia 107
15. Figuras do R o m an tism o no sécu lo X IX 110
16. A lguns D esdobram entos que Levaram ã Psicologia 120
17. C o n su m aç ão da C rise da Subjetividade 124
1 8. C o n c lu s ã o 131

19. Bibliografia 132

5
A Construção do eu na Modernidade
Pedro Luis Ribeiro de Santi

P R E F Á C IO

conteúdos dc Teorias c Sistemas Psicológicos ou de


História da Psicologia, disciplinas que integram os Cursos de Psicologia
no Brasil, estão cada vez mais valorizados e vêm sofrendo nos últimos
tempos algum as transformações muito positivas.
H oje reco n h e ce-se q u e e sta s m a té ria s nào podem ser
consideradas com i secundárias e marginais, mas que ocupam lima
posição fundamental na formação do psicólogo, h preciso que o aluno
de Psicologia c futuro profissional saiba inserir-se e inserir suas
crenças c práticas em um contexto histórico e social muito complexo
e sem o qual nossas teorias, habilidades c técnicas nào poderiam ter
vindo a existir e a funcionar com alguma eficácia
Na m ed id a cm q u e as m a té ria s m e n c io n a d a s fo ra m
conquistando uma maior consideração, foram também mudando de
fisionom ia Não se trata m ais de apenas transm itir aos alunos
informações lacluais sobre autores e obras célebres da História da
Psicologia (o que é importante), nem de apenas rastrear a origem
das idems psicológicas nos campos da filosofia cd as cicncias naturais
(o que também c de interesse). Trata-se agora de con textual izar
histórica c sociologicamente o nascimento e o desenvolvimento tio
u n iv erso psi, de form a a to rn ar in te lig ív e is as p ro d u çõ es e
transformações teóricas e técnicas desse campo.
Assim sendo, as disciplina de Teorias e Sistemas, História da
Psicologia c. cm a guns casos, com o tia U Sr. Psicologia Geral, além
de colocarem os alunos em contato com as diversas escolas c
correntes da Psicologia contem porânea cm seus processos de
constituição e mudança, passaram a desempenhar a importantíssima
tarefa dc colocá-los cm contato com os complexos culturais de que
as Psicologias faz;m jxute.
Tal com o sào oferecidas na UNTP e na USP (enlre muitos
outros exem plos cue conheço, mas dc que não estou tão próximo).

7
A Construção do eu na Modernidade

estas disciplinas converteram-se em oportunidades indispensáveis de


aproximar o alunado do vastissimo eatnpode fenômenos culturais no
qual se formaram as subjetividndes modernas e contem porâneas.
Foi neste cam po c cm resposta às diversas demandas provenientes
destas subjetividades que as Psicologias foram sendo criadas e
desenvolvidas.
Quando se tenta, contudo, oferecer uma disciplina com este
alcance e esta ambição, depara-se com uma dificuldade operacional:
como organizar didaticamente uni material tào diverso quanto é, de
fato, necessário -textos de filosofia, textos dc religião, textos de
literatura (ficção e poesia), composições m usicais e reproduções de
obras dc ano-, de modo a oferecer aos alunos uma viagem rica,
interessante mas viável e relativaroentc segura pelos terrenos da
cultura ocidental moderna? O trabalho de Pedro Luiz Ribeiro de Santi
é um coadjuvante valiosissimo para o professor que enverede por
este caminho e sc coloque estas questões.
Aqui encontram-se exemplos bem escolhidos dos complexos
culturais que. do século XVI em diante, foram condicionando as
formas de viver c experimentar o mundo dos homens ocidentais.
Estes exemplos, hem ordenadas c bem interpretados nas suas linhas
mais decisivas mediante comentários breves nius elucidativos do
Autor, retratam os quadros sucessivos em que nos fomos tornando o
que hoje somos.
Trata-sc. portanto, de uma contribuição generosa para o ensino
da Psicologia e que, estou certo, terá uma boa acolhida pelos
professores c alunos que com ela tiverem contato.

ju lh o , 199#
I uís C láu d io Figueiredo
Livre Docente dc Psicologia Geral
Universidade de São Paulo

8
Pcdru Luis Ribeiro de Santi

1
IN T R O D U Ç Ã O
F1—/ste livro nasceu dc uma pesquisa iniciada et» agosto de
1995 que tinha a finalidade dc produzir material didático pani o curso
“ Teorias e Sistemas Psicológicos” , que ministro no primeiro ano do
curso de Psicologia desde 1992. lk>a parte deste canso c dedicado
ao estudo das condições que levaram ao surgimento da Psicologia,
no final do século XIX.
Desde então, tenho tentado ampl iar este trabalho, organizando
textos, com binando trechos dc obras dc comentadores c adicionando
novos textos originais dc cada época. Combinando a preocupação
com a abertura dc vias de comunicação com os alunos e uni interesse
pessoal, com freqüência uso outros recursos que não apenas textos
teóricos, com o literatura geral, filmes, referencias à ‘história dos
costum es' e, muito especial mente, a audição de música dc época.
P-ssa reunião entre uma Linguagem teórica c mais abstrata com outras
m ais im ediatas e prazerosas não apenas m ostrou-se produtivo,
atendendo um pouco uma das necessidades mais comuns do estudante
universitário de hoje. o aumento de sua cultura geral. Pia também
deixa evidente para o aluno a relação entre os problemas filosóficos
ilas várias épocas, que se refletem cm toda a expressão humana -
dos hábitos á arquitetura, da música à visão dc si mesmo
Tenho procurado digerir esta experiência dc mais dc quatro
anos através da produção dc um texto didático. Para isso, há que se
pagar o preço de uma simplificação inevitável, quando se compilam
fontes fragmentadas e, sobretudo, quando se tenta tom ar urr texto
sobre u historia do pensamento humano acessível á linguagem Je
alunos dc graduação.
A esperança maior deste In ro é a dc convidar, dc um lado.
os alunos dc Psicologia a p en sar nas relaçõ es dessa área de
pensamento com o restante do conhecimento c em suas condições
de su rg im en to . De o u tro , c o n v id a r o p ú b lic o le ito r geral u
A Construção do eu na Modernidade

compreender e refletir um pouco sobre a história dos problemas


filosóficos que resultaram no perfil do século XX. Nesse sentido, a
Psicologia é apenas uma faceta de um contexto mais geral com o
q u al todos têm c o n ta to A la s ta m o -n o s d e um a p o sição
“ substancialista”, que levasse a crer que o mundo psíquico seja uma
coisa d e m a e imutável, a qual a ciência fmalmente teria vindo
desvela*. Assim, colocamos no livro a questão da construção do muudo
psicológico, assim como a Psicologia como uma instância de produção
de conhecimento cientifico Ao menos, creio que este livro permite
introdu/ir os alunos â idéia de que a com preensão da questão
psicológica é muito anterior á sua formulação cm lima linguagem
científica. Ao público leigo geral, compreender que. antes oa visão
de si mesir.o que se tem hoje na cultura ocidental, já houve inúmeras
maneiras diferentes de ver a si mesm o e de compreender a posição
do homem no universo.

Desde que o homem pensa, ele pensa sobre si mesmo, sobre


o que é alma, desejo, liberdade, etc. Mas foi apenas no final do século
XIX q ie surgiram os projetos de se realizar uma ciência da mente,
iu>$ moldes que conhecemos hoje. Parti uir.a primeira aproximação
com o campo da Psicologia, é essencial que se procure pensar no
motivo pelo qua! nasceu a demanda por um profissional, dentro dos
moldes da ciência, para dar coma das crises de identidade ou do
controb dos comportamentos.
Como se sabe, a Psicologia é com posta de utna grande
quantidade de teorias diferentes, que mal conseguem se comunicar
entre si. Este estado não parece ser passageiro, mas próprio da
Psicologia e de outras ciências humanas. Ao compreendermos o
sentido do surgim ento da Psicologia, talvez tam bém possam os
entender o motivo dessa dispersão.
Essa história è imer.sa Ela rem onta à filosofia grega e
acompanha toda a reflexão filosófica posterior e, mai.s recentemente,
alcança as teorias psiquiátricas até o inicio de nosso século. Por isso,
tom am os algum as teses sobre o assunto para organizar nosso
percurso. Está longe de nossa pretensão realizarm os um a obra

10
Pedro Luis Ribeiro de Santi

to talizad o ra ou seq u er c c nos aproxim arm os d isso . T rata-se


simplesmente de perseguir um fio nesta rede. na esperança de que
ele convide os leitores ti explorar outras vias. Como será possível
perceber cada época tem um número de correntes de pensamento
paralelas e um número de formas dc expressão desses pontos de
vista. A seleção dos autores e temas obedeceu àorientação dc alguns
comentadores clássicos, dc um lado. e a motivos menos nobres, dc
outro, como o ponto de v ista do conhecimento prévio do autor. Muitas
discussões essenciais sào apenas mencionadas, com o a questão da
Modernidade, algumas passagens da própria história: muitas questões
paralelas às vezes sequer sào mencionadas. Peço desculpas ao leitor
mais bem informado e reafirmo o caráter meramente didático deste
projeto.
A tese hàsica que orienta este percurso é a de l.uis Cláudio
Figueiredo, cm "P sicologia. Uma introdução"* Fie propõe a idéia
de que houve duas pré-condições para o surgimento dc uin projeto
de Psicologia conto ciência. A primeira seria o surgimento de uma
noção clara de subjetividade privada (ou seja. u n a afirmação da idéia
de que as pessoas sào indivíduos livres e. enquanto tais, indivisíveis,
separados, independentes un3 dos outros c donos de seus destirtos
A segunda seria a de que essa concepção de sujeito teria entrado em
crise, gerando assim um sujeito cm crise de identidade c a procura
dc um profissional que lhe pudesse restituir a estabilidade. Ue
momento, essa tese poce parecer obscura. mas gradativamente ela
irá sendo explicitada.
Dc uma forma genérica, podemos dizer que a n o ç io dc
subjetividade privada data do inicio da Modernidade, ou se|u. do
Renascimento. Será justam ente na passagem da Idade Média para o
Renascimento que iniciaremos esse percurso. A afirmação do sujeito
chegará a seu ponto máximo no século XVII e, a partir de então,
iniciará uma longa crise até o tlnal do século XIX.
No final do século XIX. surgirão os m m eiros projetos de

O livro "Psicologia. Unia fnirodução. Figueiredo. L.C. 1991. EDUC, Sào


Paulo” :òi rccditudo como "Psicologia. Uma (nova) introdução. Figueiredo.
L.C & pedro. 1998, Sào Paulo. E D U C Apói a primeira versào publicada.
Figueiredo já desenvolveu teses mais complexas s*bre o lema, como em *1
invenção do Psicológuo

11
A Consuxiçào do eu na Modernidade

Psicologia, já com algumas características definitivas da diversickde


que marca esta ciência Wundt cria condições para a eriaçào de uma
Psicologia experimental, enquanto Freud cria a Psicanálise. A esta
lese, que mostra os modos de afirmação do eu ccsdc o século XVI,
acrescento um a observação minha; a de que, desde o inicio do
Renascimento, alguns autores já se dedicam a mostrar as fracucias
e insuficiências do eu Isto indicaria a possibilidade de que a
Modernidade incluísse proccd .mcntos de auto-crítica e dissolução do
eu, além dos clássicos procedimentos dc
auto-afirmação.
1'cct x) Lu is RIHelro de Surti

2
A PA SSAG EM
D A ID A D E M É D IA
A O R E N A S C IM E N T O

Nesta parle, m ua-se de es por que nossa


concepção aluai do que seja o "eu” não cm
posshei na Idade Média

Renascimento, como já é clássico dizer-se. nasce o


hum anism o m oderno. De acordo com a tese de l.uis C láudio
Figueiredo, seria neste período que passaria a se afirm ar uma
concepção de subjetividade privada -a í incluída a idéia de liberdade
do homem e de sua posição como centro do mundo Voltemos alguns
passos: o que significa dizer que a noção de ‘subjetividade pri\ ada‘
p assa a e x istir? P o r que tal c o n c e p ç ã o não se ria p o s sív e l
anteriormente, no mundo medieval?
Pode provocar alguma estranheza a idéia de que a noção de
privacidade não existisse em um num determinado momento. Nossa
intimidade, nossa existência enquanto sujeitos isolados -ou. até mais.
solitários—parece no-, clara, certa. " T e r u m tempo para si” , sem estar
trabalhando ou estudando (produzindo, dc urn modo geral), possui
um grande valor em nossas vidas’ . Certamente, essa é uma das

* A privacidade tomará diversos aspectos: em primeiro lugar temos nosso


pensamentos, que tmrilas vezes anotemos em segredo: se lemos uma casa
ou um quarto para nós, pode-se ouvir uma música, amimar gavetas, estar
com uma roupa confortável (muitas vezes velha c acabada, mas neste caso
nào há problema, pois não há ninguém olhando): se dividimos nosso quarto
com outras pessoas, sempre podemos tomar um longo banho, fazer a barba
ou as unhas, ou outras coisas mais

13
A Construção do eu na Modernidade

poucas coisas pckts quais lutamos hoje -ti preciso garantir nossa
privacidade, diante da aha exigência atual para que dediquemos toda
a nossa energia c tempo às atividades consideradas “úteis” . Há até
quem diga, e nào são poucos, que nosso excessivo individualismo è
um cos grandes problemas da convivência social atual. Dentre os
problemas que derivariam disso, poderíam os enumerar: a imposição
dos interesses pessoais sobre os coletivos, a insensibilidade ao que
nào nos di 2 respeito imedialamentc. a solidão, a falta dc um sentido
para a vida, o desrespeito generalizado às leis, o crescim ento com o
reação a tudo isso dc m ovim entos ideológicos ou religiosos
dogmáticos e violentos, caracterizados pela intolerância para com
aquilo que c diferente dc si ou do grupo, ctc.
Existem as nações, grupos religiosos, familiares, ctc, mas a
menor unidade seria a pessoa. O termo ‘indivíduo’ remete a isto,
somos o “átomo” indiviso do mundo humano. Este sentim ento de
individualidade se mostra, em outro exemplo caricato, quando estamos
prolundam ente infelizes e nos sentimos incompreendidos, passando
por uma dor que provavelmente ninguém jam ais passou antes. Se
um amigo a quem confidenciamos nossa dor diz nos c o m p r e e n d e r e
já ter passado pela mesma experiência, enchemo-nos de orgulho e
reagimos dizendo que clc nào entendeu nada, nosso sofrimento é
incomparavelmente maior que o dele!
Assim, quer pelos valores positivos, quer pelos negativos que
lhe atribuamos, parece-nos certo que o sujeito isolado c a unidade
básica dc valor e referência de tudo. A inda assim, sc derm os uma
olhada na história dos costumes ou da filosofia, veremos que rtcin
sempre foi assim. Esta afirm ação do “eu” parccc ter-se construído
gradativamcnte. através dc séculos’ . ü “eu” nem sempre foi soberano.
Sc nos dirigíssemos à filosofia da Grécia clássica (scculo V
A.Cd. certamente já encontraríamos algo que poderíamos cham ar
dc humanismo, com o uma valorização do ser humano já nào submetido
ao poder dos deuses (como na filosofia dc Sócrates ou no teatro de
E uripcdes), a criação do direito e da d em ocracia, etc. M as o

1É sempre bastante compl srado aftnnamuw que detenmnada idéia tenha surgido
pela primeira vez em tal momento ou em determinado autor Sempre achamos
alguém que jã afirmara tal idéia aníenonncntc. Este recuo parece ser infinito.
Assim, sempre trabalhamos com uma margem dc aproximação o, vale dizer, erro.

14
Pediu) Lu is Ribeiro ile Santi

humanismo, entendido com o a colocação do homem com o medida


dc todas as coisas e centro do mundo, parece ter tomado a forma
que tem lioje no Renascimento, surgindo dc dentro da Idade Media
A inda que não en trem o s cm d etalh e na d iscu ssão do
pensam ento m edieval ou grego, vale a pena destacarm os d g u n s
mom entos privilegiados na direção da tese que desenvolvemos. Fm
uma obra recer.te, cham ada A s Juntes do S elf, Charles Taylor realiza
uma análise profunda do nascim ento do sentimento característico da
Modernidade: o de que possuím os um a inlerioridade.
O ponto dc partida da análise dc Taylor c Platão. T nta-s
de mostrar como, para ele, a razão c a percepção de uma ordem
absoluta. Ser racional significa ver a ordem com o cia é. Não há
com o ser racional e estar enganado sobre a natureza ao mesmo
tempo. Podemos já reconhecer aqui o nível dc certeza pelo qual aspira
a M odernidade, representada sobretudo pela figura de Descartes.
No entanto, enquanto para Descartes a ordem está 'd en tro ' de nós,
para Platão ela resicc no absolutamente Bom.
H em S anto A g o stin h o que T aylor en co n tra a grande
passagem para a inferioridade Santo Agostinho c assustadoramente
moderno, considerando que viveu entre os scculos IV' e V dc aossa
era. Todo o seu pensamento seria permeado pelas noções dc Tnterno-
ex tem o ’: espirito/m atéria, alto/batxo, etem o/tcm poral. imutável/
m u ta n te , e tc. A qui a p a re c e um m o v im e n to in é d ito : com a
d e sv alo rizaçã o do corpo e de tudo o que é m undano, com a
correspondente valorização da alma com o algo interno, a basca por
Deus passa a ser feita dentro de nós. Deus não deve ser procurado
no que vemos, mas no próprio olhar. Lie sei ia a própria luz interior.
Santo Agostinho estaria, com isto, inaugurando uma experiência
radical:

"A reflexão radical traz paru o primeiro plano uma espécie tJe
presença para a pessoa, que c inseparável do fato de esta
pessoa scr o agente da experiência, algo cujo acesso ê, par
sua própria natureza, assimétrico: há uma diferença crucnl
entre a forma dc cu experimentar minha ;»li\ idade, pensamento
e sentimento, e a fumia pela qual você ou qualquer outro o
faz: É isso que rr.e toma um scr que pode lalur de si na primeira
pessoa”, (p. 174}

15
A Coustmção do eu na Modernidade

A experiência passa a ser altamente subjetivada e dependente


de nós. A tradição m oderna teria levado esia concepção ao extremo,
passando a rcfcrir-se a objetos internos c. ao mesm o tempo, a um
‘eu penso' totalm ente separado do ' externo’. M as isto já é adiantar
demais nossa discussão.
Em um a im agem que reconhecem os com o caricatural e
bastante insuficiente da concepção de mundo medieval no Ocidente
apenas com o pano dc fundo para introduzirm os as idéias do
R e n a sc im e n to -, p o d eríam o s d iz e r que ela se c a ra c te riz a por
considerar o m undo organizado cm tom o dc um centro. 1laverin uma
o rd e m a b s o lu ta , re p re s e n ta d a p o r D eus e S eu s le g ítim o s
representantes na terra; a Bíblia e a Igreja. C ada coisa existente
estaria relacionada necessariamente a esta ordem superior. Em última
instância, cada ser formaria parte de uma grande engrenagem que
seria a criação divina. Aí sc encontraria o sentido de tw lo \
A possibilidade da crença na liberdade humana é muito restnta.
já que tudo faz parte dc um plano maior, de um tixlo perfeito disposto
por Deus. A noção de justiça na Idade Média, por exemplo, c a da
colocação de cada ser no lugar que lhe é próprio. Tatnpoueo haveria
lugar para a privacidade. Ma m edida em que a onipresença e a
<misci èticia são atributos de Deus. nada poderia ser mantido em segredo
e nunca estudamos sozinhos: pecar cm pensamento já é pecar,

MUSICA - C unlu C rcgoríanu

A audição e com preensão do canto gregoriano presta-se de


forma exem plar a tentativa dc apresentar o espírito medieval. Ele c
um canto em uníssono, ou seja. trata-se dc um coral onde todos cantam
rigorosamente a mesm a coisa. Sua letra é, invariavelmente, um texto
sagrado e já conhecido pelos ouvintes: trata-se d a reafirmação do já

‘ Issc rcmctc á parábola segundo a çual um passante veria vários homens


erguendo uma parede; um deles de aparência destilada e outro está visivelmente
satisfeito. O passante pergunla a cada um o que está fazendo; o primeiro responde
“estou empilhando tijolos” t o segundo “estou construindo uma catedral” O
segundo sente-sc parle dc uma obra maiur. o sentido de sua ação transcende em
muito o imediato, está ligado a um lodo (o rtligúrc, de leligião -religar.l. O
primeiro está só, o sentido de sua ação es gota-se nela mesma.

IA
Pedro Luís Ribeiro de Santi

sabido e da apresentação dc um m undo sem novidades, A ssociando-


se ao caráter da letra, não lia propriam ente uma melodia, mas apenas
um a sinuosa linha melódica que nào se repete; nào há refrão ou
passagens bruscas, de fo n ra que o ouvinte não consegue "segurar-
se” em nada. Ele nào pode se locali/ar e nào deve "prestai a te n ç ã o ”
ou estar consciente do que ouve, mas se deixar levnr por este mar ou
rebanho. H oje, ouvim os o canto gregoriano de form a muito diferente
da que o caracteriza; nós o utilizam os para meditar, ou relaxar.
De forma geral, poderíamos dizer que, na música, a melodia
liga-se ao que há de mais espiritual -o sopro da voz, o sublim e, a uma
nota que se sustenta idêntica c linear. O ritmo, cm oposição, representa
mais proxim am ente o corpo e seus movimentos, ele cham a à dança,
ao que é mais instável. Na Grécia, a música era atribuída a Dioniso,
deus da embriaguez, do vinho, do teatro, etc. Ela conteria, assim , um
elemento diabólico, excitante. Ao ser assim ilada pela igreja, o que é
atribuído ao Papa Gregóric, no século VI D.C., a música é filtrada,
retirando-se dela ao máximo seus elem entos ritmicos; ela passa a se
restringir á pura em issão vocal, sem haver sequer instrumentos dc
acom panham ento 5 6.
Ainda no contexto m edieval, surge um outro iipo de música
que, dc outra forma, reafirma a certeza e a necessidade dc um centro
e de um a referência externa. Nela, a voz da melodia e acom panhada
por um a segunda, que sustenta uma mesma nota. chamada lbordão'
(segundo Aurélio, “um a nota grave, prolongada e constante” , mas
"tam bém um pau grosso qi.e serve com o arrimo, am paro”). Trata-se
propriam ente de m anter uma referência, um centro em tom o do qual
a melodia pode voltear sem juinais se p e r d e r J á se encontra nesse

5 A respeito desta teoria sobre a música, ver () som e o senado, de J.M.


Wisnick ( I 989). Ao longo des.e texto, sempre que fizer alguma referência à
música, procurarei indicar ao menos um exemplo em nota de rodapé, com o
tiiuki da peça e a fonte a que recorri. Como exemplos de Canto Gregoriano,
procure ouvir as faixas “Roraie coetí" e "Ave \f«rw ", do ‘Cantos do Pró­
prio do 'Gradual? Rom atum '", no Cf) “Corno Gregoriano. Cboralschola
Jes Wiener Hofburgkapelle, Plmnograru, 1984” .
6 Como exemplos, ouça a faria Natus est, extraído do CD "Nova Cantua.
Canções Latinas da Alia idade Média, Harmonia Mundi, 1990” e a faixa
Pwsque bete dana* n e>m\ extraído do CD "LoveS fludoru. Música do
Codex Montpdlier -Século XIII, Harmonia Mundi, 1994”

17
A Construção do cu na Modernidade

último tipo de música a raiz do cânone -música com duas ou mais


vozes na qual a mesma melodia é cantada de forma defasada entre
elas e repetida, de form a que sem pre se pode ouvir cada Frase
m usical- e da polifonia do Renascimento.

T F .X T O A N E X O - John ofS a llsb u ry (S écu lo X íl)

No texto que se segue ptxle-sc ver a rigidez de um mundo


concebido com o hierarquizado por unia ordem superior. Não cabe
ao homem questioná-la ou pretender escolher ou mudar o lugar que
lhe cabe.

O C O R P O S O C I A L (“ T h e Bodv S o d a l”)

"U ma comunidade, de acordo com Plutarco. é um certo corpo


dotado de vida pelo benefício do favor divino, que opera
impelido pela mais elevada eqüidade c que c regulado pelo
que pode ser chamado de poder moderador da razáu. Aqueles
que em nos estabelecem e implantam a prática da religião c
nos transmitem a devoção a Deus. preenchem o lugar dn
alma nu corpo da comunidade. E assim, aqueles que presidem
a prática da religião devem ser considerados e venerados
como a alma do corpo. Pois, quem duvida de que os ministros
da santidade de Deus sào Seus representantes? Além disso,
desde que a alma é como se fosse o príncipe do corpo e
legisla sobre todo o restante, etnAo aqueles aos quais nosso
autor chama os prefeitos da religião presidem 0 corpo inteiro...
O lugar da cabeça no corpo da comunidade é ocupado
peUi príncipe, que se submete apenas a !>eus e àqueles que
estilo a Seu serviço e O representam na torra, da mesma forma
que, no corpo humane, a cabeça c animada e governada pela
almu. O lugur do coração c preenchido pelo senado, do qual
procede o ir.ííio de boas c mas obras. Os deveres dc olhos,
ouvidos e língua sào cumpridos pelos juizes e governadores
das províncias. Oficiais e soldados correspondem ás mãos.
Aqueles que sempre servem ao príncipe sáo semelhantes aos
flancos. Oficiais financeiros e comerciantes podem ser
comparados com o estômago e os intestinos.. Os camponeses
correspondem aos pcs. que sempre semeiam a terra, e precisam
mais especificamente dos cuidados c das preocupações da

18
Pedro Luís Ribeiro de Sant:

cabeça, já que, enquanto caminham sobre u tc-ni trabalhando


com seus corpos, eles sc deparam fieqilenternaitc com pedras
de hcsilação e, por isto, mercccrr. mais ajudas proteção que
os demais com toda justiça, desde que são eles que erguem,
suster.tiun c movem adiante o peso de todo o corpo...
Entãc, c só então, a saúde da comunidade será sólida
c florescente quando os membros mais aliou protegem os
mais baixos, e os mais baixos respondem fiel e plenamente na
mesma medida ás justas demandas de seus superiores, de
modo que todos c cada um operassem como que membros
uns dos outros por u r a espécie de reciprocidade, c cada um
considerasse que seu próprio interesse era mais bem atendido
por aquilo que ele soubesse ser mais vantajoso para os
outros”.

O que pretendemos destacar deste texto é a concepção de


uma relação orgânica entre todos os seres, sua irterdependência.
Em tal universo, não faz sentido pensarmos que uma pessoa teria a
liberdade de optar pelos rumos de sua vida. O homem nâo seria,
assim, propriamente sujeito.

PINTURA - (iiotto

Questões para discussão


1. Qual c a diferença entre a raeditaçàu solitária dc um monge medieval e a
experiência de solidão dc um homem do scculo XX?
2. Procure identificar alguma forma atual dc entender o inundo que sena
impensável na Idade Média.
3. Hoje ainda existe a idéia de “corpo social"?

19
A Construção <lo cu na Modernidade

3
O H U M A N IS M O
N O R E N A S C IM E N T O

\'esta parte, introduzim os o tema da


valorização do homem como um todo e de
coda indivíduo, no Renascimento, &n função
da perda das referências sólidas medievais

I n ic ie m o s esta parte por unia definição de humanismo:

“O tetmo ‘humanismo’ ê derivado de humanitas, que no tempo


de Cícero (106 43 a.C.) designava a educação do homem
enquanto considerado em sua condição propriamente
humana, correspondendo á palavra grega fxiideia: a educação
por meio de disciplinas liberais, relativas a atividades
exclusivas do homem e que o distinguiam dos animais. (...)
As chamadas ‘humanidades1 - poética, retórica, história, ética
c política- possam, desse modo, a constituir, sob a inspiração
dos antigos, a base de uma educação destinada a preparar o
homem paro o exercício da liberdade." (...)
“Outro fundamento do humanismo renascentista foi a
convicção de que o inundo natural 6 o reino do homem. Esse
naturalismo conduziu, paraleliur.ente á afirmação tio valor
espiritual do homem e que o torna livre, á exaltação do valor
do corpo t dos seus prazeres."7

Fica ev idente, pela passagem acima, que houve uma mudança


na concepção do lugar do homem no mundo. Há agora uma grande
valorização do homem c, ao mesm o tempo, a idéia de que cie tem
que buscar uma formação, ele deve sc constituir enquanto humano.

7José Américo Pessãnha, "VkJa e obra” (p. vi). Em Erasmo de Rotterdan,


Coleção “Os Pensadores”, 1991,

20
Pedro Luís Rihciro de Sauti

Se o homem nào nasce com seu destino predestinado, ele se deve


formar, educar. Nasce a necessidade do “cuidado de si”.
É comum que tenhamos uma nuçào da passagem da Idade
Média para o Renascimento em termos de história: com a diminuição
do poder da igreja c advento da reforma, a crise do sistema feudal e
o nascimento das cidades e rotas de com ércio, a expansão marítima,
etc. Mas rararneiite consideram-se as m udanças dc m odo de vida
das pessoas implicadas nessas transformações politicas e econômicas.
HA toda um a linha de in v e stig açã o h istó rica, c u e se dedica
especiftcamente ao escudo da história dos costumes, da vida cotidiana
das pessoas e, o que nos interessa mais no momento, da idéia que
elas tiniram dc si mesmas.
Tudo leva a crer que a diminuição do poder da igreja c a abertura
operada sobre o mundo fechado dos feudos foi acompanhada por uma
crise da concepção fechada de mundo que vigorava. Se os honens
acreditavam ter um ponto de referência externo (um centro do muido)
sobre o qual podiam se apoiar, agora já não podiam cor.tar com essa
certeza. Numa nova caricatura, poderíamos dizer que, sob um poder
absoluto, não liá liberdade, o que é terrível, embora seja rclativairiente
fácil “compreender' o muncio, pois há referencias claras: o que c certo e
o que é errado está prc-definido, cabendo, no máximo, tomar um partido
ou outro. Já num mundo aberto, sem referências absolutas, surge a idéia
ce liberdade, mas ao mesmo tempo, a de solidão e responsabilidade. Se
o homem nào pode mais contar com uma resposta dada por uma
autoridade absoluta, ele deverá buscar ou construir suas próprias respostas,
liste ê um dos principais deméritos do humanismo.
Isso não quer dizer que o homem do Renascimento fosse
ateu, mas. de certa tómia. D eus parece ter se afastado para o céu.
deixando o mundo a cargo dos homens. Na Idade M édia, é truito
comum a representação plástica do mundo com o uma esfera cujo
centro é Deus, Cristo ou, o que é tnenos ortodoxo, a Virgem Maria;
já no Renascimento, há inúm eras representações do mundo nas quais
Deus paira sobre ele, que tem agora ao centro o próprio homem.
É também comum que no Renascimento comecem a surgir
as assinaturas dos artistas em suas obras de arte, o que quase não
existia no período anterior Quando pensamos nos pintores mais antigos
que conhecem os no ocidente moderno, vem-nos a mente Ciiotto, por

21
A CanstnçSo Jo cu na Mixianidade

exemplo, ainda que ele estivesse bciratulo o Renascimento, tendo


vivido entre os séculos X O c XIV'. Nào era o ser humano que criava,
cie era apenas um instrum ento d a criação divina: com o numa
representação do Papa G rtgório, na qual o Espírito Santo lhe sopra a
música que esul a escrever,
No contexto renascentista, nào há mais apenas uma certa
cena bíblica que importa, mas a m io do sujeito que deixa sua marca
na obra. Assim, surgem os nomes mais conhecidos do Renascimento,
com o Leonardo da Vinci ou M ichc.angelo, que, mais que artistas,
são gênios dc inúmeros talemos. Sào homens que se formam e que
deixam seu traço pessoal tia obra que criam. Sem sofrer restrições
por parte da igreja cm suas investigações sobre a anatomia humana
ou sobre os astros, o homem ahre-sc para um mundo novo -quer cm
suas viagens |>e!o mundo, quer pelo estudo da natureza.
Em anexo, trechos dc um livro de 14#6. bastante expressivo
como concepção do humanismo renascentista.

T E X T O A N EX O - Pico D elia M irando!a

D IS C U R S O S O B R E A D IG N ID A D E D O H O M E M

“Já o sumo pui. Deus arquiteto, linha construído, segundo


leis de arcana sabedoria, este lugar do mundo como nós o
vemos, augustissimo templo da divindade. Tinha embelezado
a zona supcr-cclcstc com inteligências, avivado os globos
êtéreos com alma? eternas, povoado com unia multidão dc
animais dc toda a espécie as partes vis e termenutres do mundo
inferior. Mas. consumada a obra. o Artífice desejava que
houvesse alguém capaz de compreender a razão de uma obra
lào grande, que amasse a beleza c admirasse a sua grandeza
Por isso. uma vez tudo realizado, como Moisés e Timcu
atestam, pensou por último em enaro homem. Dos arquétipos,
contudo, não ficara nenhum sobre o qual modelar a nova
criatura, nem dos tesouros Unha algum para oferecer cm
herança ao novo tiiho, nem dos lugares de todo o mundo
restara algum no qual se sentasse este contemplador do
universo. Tudo estava já ocupado, tudo tinha sido distribuído
nos sumos, nos médios t nos ínfimos graus. Mas não teria
sido digno da paterna potência não se superar, como sc fosse

22
Pedro Luis Ribeiro de Santi

inábil, na sua última obra. não era próprio da sua paciência


permanecer incerta numa obn necessária, por falta de decisão,
nem seria digno do seu bcrcfico amor que a quem estava
destinado a louvar nos outros a liberdade divina fosse
constrangido a lamcnta-lacm si mesmo.
bstabelecen, portanto, o óptimo Artífice que, àquele a
quem nada dc cspecificamerle próprio podia oferecer, fosse
comum tudo o que linha sido dado parcclarmente aos outros.
Assim, tomou o homem como obra dc natureza indefinida e,
colocando-o no meio do murdi. talou-lhc deste modo: ‘Ó Adão»
não te demos nem unt lugar determinado, nem um aspecto que
te seja preprio, nem tareia alguma especifica, a fim dc que
obtenhas e possuas aquele lu&ar, aquele aspecto, aquela tarefa
que tu seguramente desejares, tudo segundo o teu parecer e a
tua decisão A natureza bem definida dos Outros seres é
refreada por leis por nós prescritas. Tu, pelo contrário, não
será constrangido por nenhum? limitação, dcte-tninu-la-ás pata
ti, segundo o teu arbítrio, a tnço poder tc entreguei. Coloquei-
te no cer.tno do munco para qje daí possas olhar melhor tudo
que há no mundo. Não tc fizemos celeste nem terreno, nem
mortal ncir. in lorlal. a fim de que tu, árbitro e soberano artífice,
te plasmasses e <e informtsses. na forma que tivesses
seguramente escolhido. Poderás degenerar até aos sares que
são as bestas, poderá regenerar-te ate as realidades superiores
que são divinas, por decisão to teu ânimo’
"Quem não admirará este nossocamaleão?" (p. 51-53)
“Mas com que objectivo recordar tudo isto? Para
que compreendamos, a partir do momento em qnc nascemos,
nu condição de sermos o que quisermos, que o nosso dever
é pteocuparmo-nos sobretudo coir. isto: que não se diga de
nos que eslímdo em tal honra, não nos demos conta dc nos
termos tornado semelhantes ás bestas e aos estúpidos
j umentos de carga." (p. 55 f

*
A ssim , a fc cm D eus não loi abalada, m as agora ele c
cr.tendido com o um criador que paira por sobre sua obra. que passa
a ter vida própna. liberdade. L>eus está “antes" do mundo como criador

" Fm Pico delia MirandoJa, Discurso sobre a Ji^nuiode do hdntcm.


A Construção do eu na Modernidade

c "depois” d d c com o juiz, mas é visto como tendo criado o mundo e


o deixado funcionar por suas próprias lets. Daí surgirá a possibilidade
do conhecim ento das leis naturais; sc Deus interviesse a cada
momento com milagres, seria impossível o projeto de conhecimento
e previsão sobre os fenômenos naturais. Já a liberdade, dom maior
dada ao larmetn, fará com que ele tenha que passar a tentar descobrir
os caminhos do bem, definir o que c certo e errado. Este é o campo
da moral, que será muito estudado nos séculos seguintes.
A colocação do homem no ceniro do mundo nos traz ainda a
idéia dc que todas as coisas existem pam sua contemplação e uso
Tom j-se natural para o homem matai' animais ou devastar a natureza
na medida de seu interesse A relação do homem com relação ao
mundo se tom ará cada vez mais a de exclusão. O homem jutga-se
quase como Deus, relativamente acim a do mundo, e as coisas (c
mesmo o corpo humano) serão tomadas como objetos.
Figueiredo’ observa a peculiaridade dessa posição do homem
Tdc c o centro c é livre para tomar-sc o que quiser, mas ele não è
propriamente nada. Há uma negatividade no homem e é justamente
es.se vazio que ocupa o lugar do centro; o mundo já não é fechado, já
não há estabilidade possível, o homem deve contmuamcntc tomar-
sc, constituir-se, mover-se:

"Este imenso espaço de liberdade será lambem o


espaço das virtudes que consistem desde então no bom uso
desta liberdade, è ainda o espaço de urna aventura scir.
destino certo, sem arrimos nem garantias. É, finalmemc, o
espaço insólito da ignorância, da ilusão, do erro. da duvida e
da suspeita.” (p, 24)

QuMtks para discussão


I. Como foi possível conciliar a crença em um Deus onipotente c a crença na
liberdade do homem'1
2- Como u valorização do homem contribuiu para o aumento do conhecimento
sobre a natureza?
3. líntie o mundo medieval c o mundo renascentista, qual parece gerar mais
angústia no homem? Por quê?

Em A invenção do psicólogo.
Pedro Luis Ribeiro dc Santi

4
O ENCONTRO CO M
A M U L T I P L I C ID A D E

Trabalhamos, testa parte, o encontro com a


diversidade th. mundo. O confronto com a
diferença fe~ cont que o homem se perguntasse
sobre si.

D erivamos do lema anterior outro que o acom panha.


Ainda segundo Figueiredo, a multipLidcade c uma característica do
Renascimento. A abertura do mundo irouxe o conhecim ento de
civilizações novas, com seus costumes, I nguas, hábitos alimentares.
etc. Isto, é claro, acompanha os novos valores segundo os quais o
homem (cada um) deve buscar seu caminho. Citando novamente
Figueiredo:

“Há algo de maravilhoso e inquictante na intinirude cias


variações, O que se pode esperar íqj.tunainente dc um mundo
infinilamentc diverso e surpreendente? Tudo. A credulidade
c a liberdade dc imaginação do honrem renascentista não
devem serjulgadas a partir de modelo 'científico* dos séculos
posteriores; elas não sào índices de ingenuidade e ausência
de espirito crítico. São forma* mad iras e tolerantes de relação
com u diferença, as mais ajustadas a esse momento partic-ular
de abertura do mundo."'*® (p 34>

Introduzimos com isso. uma outra imagem significativa do

A invenção do psicólogo, Essa imagem e as que se seguem ganham urna de


suas melhores expressões na obra dc Rabclais. Gttrgántuu e Pantagruel (veja
adiante).

9
í.
A Construção cio eu na Modernidade

período, a feira de rua. Ainda que a feira já fosse uma instituição


medieval, agora seu conteúdo está revestido com a abertura da Europa
á diversidade cultural do mundo conhecido. Pode-se imaginar unia
feira renascentista com as novidades trazidas das mais diversas partes
do mundo recém-dcscobcrtas Aliir.er.tos básicos da cozinha, como
a batata, o tomate, o cacau; temperos variados; tecidos e tinturas;
pessoas e animais de diversas partes são trazidos á Europa no mesmo
espirito de exotismo, A própria idéia de comércio, como intercâmbio
de bens. circulação de mercadorias ou necessidade da criação de
valores de troca, expressa bem o movimento da época. A feira dc
rua contém um elemento de festa popular, desordem c gritaria diante
de uma profúsào de mercadorias, Difícil nisto - c isto é significativo
do período- devia ser a atribuição dc valor a cada coisa; quanto vale
um cocar indigena. que importância ele tinhu em seu contexto original?
Quanto vale uma pequena estátua que representa a divindade de
uma certa cultura? Corno crcr na fídcdigntdade do produto oferecido?
Dc modo idêntico, podemos imaginar o espanto do liomcm
ocidental ao deltoutar-se com as religiões e costumes distintos pelo
mundo. Duas atitudes básicas podem ter sido tomadas diante desse
conlmnto. Uma e mais convencional e reassegura as certezas sobre
si; consideraria a diferença «na erro. Se o outro pensa de forma
diferente da minha, ele está errado; cahe. por isso. catequizá-lo,
conduzi-lo á verdade. Caso ele se recuse, justifica-sc a utilização de
meios, digamos, mais convincentes, dado que se trata de seu próprio
bem. A chamada “conquista da América” mostrou muito bem como
se processa isso e quais são suas conseqüências, com um extem inio
nuissivo de culturas.
A outra atitude parece ser tnais auto-críiica e parece ter tido
um lugar considerável no Renascimento. Diante do confronto com a
verdade do outro, acaba-sc por se colocar cm questão a própria
verdade, nâo para substitui-la, mas para tomá la não mais como única,
mas com uma dentre as possíveis. Ou ambas a verdades são válidas,
ou ambas inválidas.
Ilá um brilhante estudo dc Todorov sobre este tema. em A
conquista da A m érica. Nele é analisada a questão do confronto
eom o outio através do que considera ter sido, mais do que o maior
genocídio já perpetrado, um acontecimento fundador da Modernidade.

26
1'edm I.uís R:hcm> de Sanli

A tese de Todorov é a de que tanto os espanhóis quanto os nativos


tinham ama absoluta incapacidade dc enirar em contato com o outro
enquanto tal. Cada um tomava o outro de modo auto-reíerente: alguns
astecas tomavam Corte? como o deus e im peradorQ uetzakoatl, cujo
retomo estava predito: os nativos de nações dominadas violentamente
pelos astecas viam tão somente a troca de um algoz mais violento
por um outro erroneamente tomado como itKtios violelo. Quanto aos
espanhóis, ou tomavam os nativos como objeto desumanizado, a scr
escravizado ou morto gratuita mente, ou pensavam ter encontrado na
América o paraíso terrestre, ou ainda insistiam -com o C olom bo- na
crença de que haviam de alcar.çado as Índias, denominando os nativos
de “indios". De toda a forma, os espanhóis realizaram a conquista,
subjugaram os nativos de muitas etnias (c aniquilaram completamente
outras >, que possuíam uma população quantitativamente muito super.oi
a de soldados espanhóis. Além disso, o imperador asteca Montezuma
cntrcgou-se aos espanhóis c parece ter entregue sua nação sem
resistência. Eis uma bela passagem na qual Todorov interpreta este
fato:

“O cncontm de Montezuma com Cortcz. dos índios com os


espanhóis, ê. unlcs de mais r.ada, um encontro humano; c
não há razão para surpresa se os especialistas da comunicação
humana levam a melhor Mas essa vitória, dc que somos todos
originários, europeus e americanos dá ao mesmo tempo urn
grande golpe em nossa capacidade dc nos sentirmos ern
harmonia com 0 mundo, de pertencer a uma ordem pré-
estabelecida; tem por efeito recalcar profundarneme ú
comunicação do homem com o mundo, produziT a ilusão de
que tuda comunicação é comunicação inter-humana; u silêncio
dos deuses pesa no campo dos europeus tar.to quarto no
dos indios Cunhando dc um lado, o europeu perdia de outro:
ímpondo-se em toda a Terra pelo que era sua superioridade,
arrasava cm si mesmo ,1 capacidade dc integração no mundo
Durante os séculos seguimos sonhará com o bom selvagem;
mas o selvagem já estava morto, ou assimilado, c o sonho
estava condenado á esterilidade. A vitòna já trazia em si 0
germe dc sua derrota, mas Corte/ não podia saber disso.” (p.
93-94)

27
A Construção do eu nu Modernidade*

A vitória dos espanhóis teria se dado por sua maior habi Iidade
cm entendei o modo de pensar do outro, tirando proveito disso. Todorov
insinua que este teria sido o mais importante fator da dornttwção do
europeu sobre o mundo: ele seria c a p a / de dissimular e mentir. Em
nossos term os, ele ê eapa 2 de criar um distanciam ento entre sua
ação e sua intenção, de acordo com seus interesses. Todorov chega
a com parar a caoaeicadc com unicativa dcC ortez com as prescrições
dc M aquiave! em O p rín c ip e , escrito na m esm a cpoca. N esta
habilidade com unicativa, neste auto-distanciam cnto e neste uso
puram ente funcional da linguagem, estarU fundada a M odernidade.
Temos, com o em relação a Rabclais. uma posiçào intermediária: o
europeu teria um a quase total incapacidade dc entrar em contato
com a alteridade, buscando dom inar e assimilar o outro; por outro
lado, ele parece ter sido m ais capaz que outros povos paia sair de
seu próprio ponto de vista e procurar compreender o do outro, ainda
que para domina-lo. Todorov também indica que os europeus cstariam
acostum ados a operar um descentramento, desde que seu centro
religioso, Jerusalém , era. dc fato, fora de seu continente.
N’a conclusão dc sua obra, Todorov apresenta-nos esta
formulação paradigmática sobre a questão do outro:

“Pois o outro deve ser descoberto. Coisa cicna de espanto,


já que o homem nunca está só, e niu seria o que é sem sua
dimensão social. E, no entanto, é assim: para a criança que
acaba dc nascer, seu mundo õ 0 mando, c o crescimento é
uma aprendizagem da exterioridade e da sociabilidade, pode-
se dizer, um pouco grosseiramente, que a vida humana está
contida entre dois extremos, aquele onde o eu invade o mundo
c aquele onde o mundo acaba absorvendo o eu, na forma dc
cadáver ou dc cinzas. F, corno a descoberta do Outro tem
vànrxs graus, desde o outro coino objeto, confundido com o
mundo que o cerca, até o outro comu sujeito, igual ao eu, mas
diferente dele, com infin itas nuançai intermediárias, podc-sc
muito bem passar a vida toda sem nunca chegar ã descoberta
plena do outro {supondo-se que ela possa ser plena). Cada
um de nós deve recomeçá-la. pur rua vez; as expencncias
anteriores não nos dispensam disso. Ma? podem ensinar quais
silo os eleitos do desconhecimento, (p. 243)

28
Pedro Luis Ribeiro de Saot i

Sc voltamos agora a imagem da têira e do comércio, verem os


que aqui impera o convívio com um a inédita diversidade de coisas.
Essa festa, no entanto, traz u problema», referido antes, de atribuição
dc um valor justo a cada coisa. A s coisas estão fora de seus contextos,
onde talvez possuíssem um valoi justo, m as nesse encontro fortuito
da leira já não se pode pensm ern seu valor original.
Ainda nesse sentido, pcnsc-sc na reação das pessoas diante
do relato dos viajantes sobre as coisas incríveis que viram. Um a vez
mais, a credulidade das pessoas seria ahaiada. Como distinguir relatos
confiáveis de outros mentirosos ou fantasiosos? A descrição de um
tamanduá parecerá tão absurda ou possível quanto a de um dragão
do mar; os relatos sobre cidades feitas de ouro (o Eldorado) tocarão
nas fantasias sobre o paraíso reencontrado nessas terras distantes e
selvagens (onde, em se plantando, tudo dá...).

P IN T U R A - Roseli e A rrim hoU lo

Reíértm o-nos, na parte anterior, a artistas com o da Vinci c


Michelartgelo. N esta, o pintor que nos ocorre é Bosch. Ele nasceu
em 1450, quase no mesmo ano que Leonardo da Vinci (1452), mas,
enquanto da Vinci parece estar em casa no Renascimento, fiosch
parece sofrer mais os efeitos da fragm entação. Seus biógrafos
inform am-nos que Boscli nasceu justam ente diante de um a feira,
mas ele não se sentia em casa. Parece que seu mundo de valores
era medieval c que, ao abrir suas janelas, lhe parecia estar assistindo
o apocalipse, o caos. Assim, curiosamente, ele acaba expressando
melhor que seus contem porâneos a fragmentação do século. Suas
pinturas mostram corpos dilacerados, em corr.binaçõcs alucinadas.
Com freqüência, ele c tom ado com o um pré-surrealista, m as ele
p ro v av elm en te acred itav a ser um h ip e r-re a lista , m ostrando a
degradação dos tempos, o fim do mundo da ordem.
H á outro pintor que trabalha a fragmentação, mas -talvez
por ter nascido já no século XVI, quase XO anos depois dc B o sch -
sem o m esm o tum ap ocalíptico. Ele c A rcim boldo, com suas
com posições dc retratos utilizando fragmentos de coisas. Sua série
mais conhecida é a das quatro estações, onde c o n str ó i expressões
humanas com binando elem entos típicos dc cada epoea. O efeito è

29
A Construção <io eu r.a Modernidade

grotesco, mas divertido e instigante e parecerá uma ilustração perfeita


para um tipo de música a que ro s referiremos na próxima parte,
chamado "Las Ensaiadas” .
Enfim, justamente da crise no final da Idade M edia, resulta
essa falta de critérios absolutos, que gera uma crescente insegurança,
Numa citação dc M ontaigne, um dos mais importantes pensadores
do século XVI. encontramos uma articulação do que temos dito:

"Em verdade o homem c de natureza muito pouco dclinicla,


estranhamente desigual e diverso. Dificilmente o julgaríamos
dc maneira decidida c uniforme” "

M Ú S IC A - A P O M F O N ÍA

A polifonia é um tipo dc música típica do Renascimento.


Assim com o o canto gregoriano expressava bem o espírito medieval,
a polifonia encarna seu tempo O termo significa "muitas vozes” e é
justam ente com o se n coro em unissono do gregoriano sc tivesse
estilhaçado; cada voz canta uma melodia diferente, por vezes também
uma letra diferente Podem scr quatro ou muitas mais vozes, gerando
um efeito ruidoso, quase já nào musical. No entanto, elas convivem.
A trav és do sécu lo X V I, vai a u m en tan d o a c a p a c id a d e dos
compositores de harmonizá-las.
Há um a peça de especial interesse dentro do que temos
trabalhado. Ela sc chama Voulez ouyr les cris de Paris? (“Querem
ouvir os gritos dc PansT’), deClément Janequin1-'. Nela, emee cantores
perguntam-nos. por um minuto, sc querem os ouvir os gritos de Paris,
S u as v o zes sã o um p o u co d e fa s a d a s e n tre si. m as tu d o c
compreensível. Após a introdução, há um breve silêncio e então
começamos a ouvir uma gritaria onomatopaica que se passa numa
feira, com vários vendedores chamando a atenção para o seu produto.
Eventual rr.cntc. as vozes unem-se por instantes cm tom o de um tema
para, cm seguida, se dispersarem de novo. Adiante, outro tema surge
e. novamente, desagrega-sc, como muna rapsódia. Tudo é muito

11 Ensaios, t , Cap. I. p. 14.


11 Voulez ou)r les cris de Paris? c La RatatUe, extraídas de “Les cris de
Paris, Harmonia Muoclí. 1982”.

30
Pedro Luis Ribeiro de Sunti

engraçado c carnavalesco (c inevitável pensarm os na situação da


gravação em um estúdio moderno, em que músicos educados na
rigidez dc conservatórios grasnem, gritem e. é claro, desafinem, com
a leitura rigorosa da partitura).
O centro da produção poli fônica 6 a Espanha que, por ter
sofrido a invasão m uçulmana, traz em sua cultura muitos elementos
assimilados. Há músicas de uma extrema melancolia, lamentando a
perda da felicidade e da ordem (idas viagens e guerras11.
Em anexo, está o começo de um dos livros ttiais dehochados
do sécu lo XVT. N e l e p o d e m o s reconhecer, d e s d e a referência
constante no Renascim ento ã cultura clássica grega, até o tom
irreverente r. visceral do mundo menos idealizado e n a is próximo da
experiência imediata dos pra/eres do corpo Trata s? de um mundo
de exageros, deboche e excessos, habitado por gigaites.

TEXTO ANEXO - François /tabelais

C A R G Â N T U A E PA N TA G R D EL

“AO LEITOR
Antes mesmo de In . leitor amigo.
Despojai-vos de ioda má vontade.
Não escandalizeis, peço, comigo:
Aqui não há nem mal nem falsidade.
Sc o mérito é pequeno, na verdade, outro intuito nau tive. no
entretanto,
A não ser rtr, e lazer nr portanto.
Mesmo das aflições que nos consomem
Muito mais vale o nsc do que o pranto
Ride, amigo, que rir c próprio do homem.” (p. 31).

•'PRÓUXJO DO AUTOR
Bchedorc» ilustrese preciosíssimos bexiguentos ípois
a Vos, não a outros se dedica o meu engenho]: Akébiades.
no diálogo dc Platão intitulado O Banqueit, louvando o seu

'* Ouça Rodrigo Martinez, Pues fíie/t, para éfia, Por las vrVm/í dc Sfadrid
6 Al aiva ivnid, extraidas de “£ / Concioaero de Paiaeio, dc grupo Herpérion
XX, AstréC'Audi vis. I991"

31
A Construção do cu 11a Modernidade

preceptor Sòcialcs (sem controvérsia, príncipe dos filósofos),


entre outras coisas disse scr clc semelhante aos "silcnos".
SUcrtos, para os antigos eram caixinhas, tais como as que
hoje vemos nas vendas dos boticários, tendo pintadas umas
figuras alegres e frívolas, como liarpius. sátiros, gansos
ajaezados, lebres chifrudas, paios com cangalhas, bodes
voadores, veados atrelados e outras figuras semelhantes,
nascidas da imaginação, próprias para provocar o riso como
fazia Sileno, mestre do excelente fiaeo. Dentro delas, porém,
guardavam-se drogas valiosas corno o bálsamo, a âmbar-
cinzento, 0 amorno, o almíscar, jóias c outras preciosidades.
Tal se dizia scr Sócrates, porque, queni o visse por fora. e
estimando apenas a aparência exterior, nâo lhe daria mini mo
valor tanto clc era feio de corpo c ridículo em sua aparência,
com nariz pontudo, olhos dc boi. cara de bobo, simples cm
seus modos, rústico em suas vestes, parvo de riquezas, infeliz
com as mulheres, inapto para todos os ofícios da república,
sempre rindo, sempre tomando seus tragos, por causa disso,
senipie brincalhão, sempre dissimulando o seu divino saber.
Quem abrisse aqucái caisj, porém, lá dentro encontraria um
bálsamo celeste e inaprcciãvel um emendimento mais que
humano, virtudes m aravilhosas, coragem tnvcncivci
sobriedode sem igual, contentamento certo, segurança
perfeita, incrível desprendimento com ivlncao n tudo que os
humanos tanto ptvzairt, ludo aquilo que tanto oobiçant c em
prol do quê correm, trabalham, navegara c batalham
Se não acreditais, por que não fareis o mesmo com
estas novas e divertidas crônicas':' Eis que. ditando-as, não
pensei senão em vós, que porventura hebeis como eu bebo.
forque, nu 001 oposição deste livro senhonl, não perdi, e jamais
ompníguéi um outro tempo, do que aquele que gasto para
tomar a minha refeição corporal, a saber, bebendo e comendo.
São estas as horas mais adequadas para escrever sobre essas
altas matérias e ciências profundas, como hem fez sabei'
Homem, paradigma dc todos os tilõlogos, c Ênto, pai dos
poetas Jatinos. assim como testemunha Horacio. embora um
grosseirão tenha dito que os seus “Odrcs"' cheiravam mais a
vinho do que a azeite.
Coisa idêntica disse um bulio dos meus livros; mas
merda para ele1 O odor de vinho. õ. como ê mais saboroso,
mais agradável, avais atraente que o do azeite1

32
Pixlro l ms Ribeiro de Sann

(jiatto, “A Cura de Lázaro " fc.


1305). Giotto introduz na pintura
uma expressividade e uma
dramaticidttde inexistente em
períotfax anterior cia pintura, mus
suo tem ática ainda era
centraitnenie religiosa.

Bosch, "O Juízo F inal” (c. 1500).


Cheias dejigurus irnagtnàrias e muitas
grotescos. f t u c t lança mão de uma
grande liberdade estética, com
dt-uorções fisicas, para representar os
distorções de caráter.

Da lin ci. "As Proporções da


Figura H um ana " O homem jtossn
gradativamente a ser a medida de
todas as coisas O cvrp/j humano
c valorizado e é apresentado em
proporções geométricas.

33
A Construção do eu na Modernidade

A rcim bofdo, "A


primavera ". O to­
do è formado por
um con/ttnio de
fragm entos evo­
cativas da estação.
A representação e
poiifõnica e pede
diversas perspec-
tivas de ívdin

Rvmhrandi, “A lição de anatomia do Dr. Tulp " (16321. O jogo do !u:


(daro/escum ) permite rim foco objetim sobre o objeto da pintura. Nuda
disperso a percepção. Assim como no pro/cto carlexiuna, temos a busca
por representações claras e distintas.

34
Pedro Luís Ribeiro de Sanü

l; sinto-me muito muis lisonjeado, quando se diz que


gasto mais vinho do que azeite, do que ficou Dcmóstenes
quando dele disseram que gustuvu mais azeite do que vinho.
Para mim, só me sinto honrado e jubiloso por ter fama de sei
um bom copo e um hom companheiro: graças a isso sou bem
recebido cm todos os bons grupos de pantagruclistas. (..)
li agora di verli-vos. meus queridos, e lede alegremciue.
para satisfação do corpo c beneficio dos rins. Mas escutai,
sem vergonhas e que n úlcera vos corroa: tratai de beber poí
mim, que eu começarei, sem mais demora ” fp. 33-361

Vemos, com Rabclais, a valorização do n so e de toda forma


de prazer corporal, em confronto com a tendência nascente (e que
dom inará o século X V II) dc só respeitar a seriedade, a contenção e
a mente. Talvez convenha lembrar exatamente neste momento, como
Umbcrto Eco deixa claro, no eixo de seu rom ance uO Nome da
Rosa”, o risco que a visão ortodoxa considerava liavcr no riso, também
no final da Baixa Idade Média. Na tentativa de conter o riso -o
prazer >observ amos o esforço em obter o aulo-controle. Ao mesmo
tempo, vemos a valorização renascentista da cultura greco-romana.

Q lIfS ttk s p a ra discussão


1 Qual c a importância da feira dc rua no universo do Renascimento?
2 Que tipo dc reação foi gerada pelo confronto com outras culturas?
3. Por que no Renascimento o homem perdeu suas certezas?
A Construção do «ru na Modernidade

5
O S P R O C E D IM E N T O S D E
C O N TEN Ç Ã O DO EU

Acompanhamos, nesta parte, algum as das


medulas tomadcs para o restabelecimento de
referencias ftarr a colocação do homem no
mundo. Elas estarão voltadas ao próprio eu.
na figura do auto-controie.
A
J T x . nova valorização do ser humano e a imposição de que
ele construa sua existência e descubra valores segundo os quais viver,
aliada a toda a dispersão c fragmentação do mundo, que apontamos
acim a, levarão a tentativa de criação de mecanismos para o dominio
c formação do eu. É na formação destes procedimentos - ‘modos
de se r"- que poderem os começar a reconhecer os rumos que levarão
à Psicologia, Citando uma vez mais Figueiredo:

“(...) t.k> importantes ou até mais importantes do que a abertura


de espaços de liberdade mdividua. com se vê acontecendo ao
longo do processo dc desintegração tios 'civilizações fecha­
das’, são as tentativas de circunscrever estes espaços. Assim
sendo, as experiências subjetivas nn sentido moderno do termo
e que vieram a se converter em objeto dc um saber c de uma
intervenção psicológicos devem a sua emergência tanto ás
vivências de diversidade e ruptura como às tentativas dc orde­
nação e costura, ou seja, a todas ai praticas reformistas que
bnphcavam urna subjetividade indivkualizada c uma tensão sus­
tentada entre áreas ou dimensões de ]herdade e áreas ou dimen­
sões dc submissão. (...)Como se vê, o ‘indivíduo', ao contrato
do que o termo sugere, nasce da dispersão c traz uma cisão
interior inscrita em sua natl)reza.'’l',

14 .4 invenção do psicológico, p, 59.

36
Pedro Luis Ribeiro de Santi

Im poc-se ao hom em , a partir ele agora, escolher o seu


caminho. Essa escolha implica cm uma construção da identidade, e
todos os exem plos mostram-nos com o isso exige um esforço brutal,
quase sobrehumano; o homem deve dom inar a dispersão que o mundo
6. () carnaval de Rabelais será contido, o corpo c suas funções serão
calados cm favor da coesão e da oídem do sujeito.
Durante a Idade Media, era relativamente difícil explicar
com o era possível ser responsabilizado por pecar: se a pessoa não
em livre e apenas cumpria os planos de Deus, com o responsabiliza-
la? No Renascimento, a questão pode ser equacionada de outra forma:
Deus fez o homem Itvre para que ele possa ser julgado; ele pode
e s c o lh e r um bom cam inho e ser recom pensado po: isso, m as pode
ser desviado dele por tentações e dispersões - e o mundo rcnascetui sta
as oferece em quan:idade e, então, ser responsabilizado e punido
por isso. A questão passa a ser; o que eu devo ser? Como devo me
f o m a r ? F.m term o s m ais p s i c o l ó g i c o s , co m o c o n stru ir um a
identidade?
Há vários exem plos de modos dc constituição de identidade
no Renascimento. Talvez o mais conhecido seja o de Dom Quixote
de La Mancha, personagem dc Cervantcs, que sc identifica com o
ideal do cavaleiro attdante medieval e procura afirmar-se. A evocação
deste exemplo já sugere que a afirmação de uma identidade coesa
pode assemelhar-se à alucinação, na medida cm que cia deve impor-
se sobre o inundo, ele próprio em frangaLhos.
Passemos agora a um exemplo concreto de procedim ento
vislumbrado no século XVI para a constituição dc uma identidade
coesa, que consiga nüo se deixai levar pela disnersào. O pensamento
religioso, adaptando-se aos tempos como sempre, pnxluzirá. sobretudo
através de Santo Inácio de Loyola. procedimentos para a afirmação
da identidade sobre a dispersão do sujeito. guiando-o de volta a Deus.
Santo Inácio converteu-se á religião já adulto. Ele havia sido
militar, c uma das características mais marcantes que impôs a seu
sistem a foi a disciplina. Tendo fundado a C om panhia de Jesus,
imprimiu um traço distintivo dos jesuitas até hoje, sua iniciativa prática
e pregação militante.
Santo Inácio parte do m undo renascentista, reconhecendo a
liberdade hm rana, mas constata a perdição do homem e buscará

37
A Construçilo do eu na Modernidade

mostrar-lhe o caminho do reencontro com a ordem . Seu procedimento,


propriam ente humanista, taz. escola até hoje: o homem é livre para
ser o que é e parece estar perdido; ele precisa e pode. portanto,
dirigir sua livre vontade ao cam inho correto para se encontrar. O que
ele precisa e de um manual dc instruções, uma tccniCH para dirigir
sua ação. Em O s E xercidos E spirituais, são propostos uma série
de procedim entos, com a duração de 28 dias. cujo cum primento
rigoroso deverá levar o praticante à iluminação. Uma vez mais. vale
a pena reproduzir alguns trechos da obra:

TEXTO ANEXO - S a n to Ig n á c io d e L o yo la

EX E R C ÍC IO S ESPIR ITU A IS

“ I* Anotação. Por esta expressão, Exercícios Espirituais,


enlendc-se qualquer modo dc cxainrnar a consciência, meditar,
contemplar, oraj vocal ou menialmcnte, c outras atividades
espirituais, dc que adiante falaremos. Porque; assim como
passear, caminhar c correr são exercícios corporais, também
sc chamam exercícios espirimais os diferentes modos de a
pessoa sc preparar c dispor paru tirar de si todas as afeições
desordenadas, e, lendo-as afastado, procurar e encontrar a
vontade de Deus. *ia disposição da sua vida para o bem da
mesma pessoa.” (p. 11-2).
”5* Anotação. Muito aproveita ao exercitatue entrar neies
com grande ânimo c liberalidade pum com seu Criador e
.Senhor, ofercccndo-dic todo o seu querer e liberdade, para
que sua divina majestade sc sirva de sua pessoa e dc tudo
quanto possui, conforme a sua santíssima Vontade." (p. 15).

“EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS PARA 0 HOMEM SE


VENCER A SI MESMO E ORDENAR A PRÓPRIA VIDA.
SEM SE DETERMINAR POR NENHUMA AFE1ÇÀO
DESORDENADA** (p. 27).

PRINCÍPIO E FUNDAMENTO
O homem é criado paia louvar, reverenciar e servir a
Deus Nosso Senhor, e assim salvar a sua alma. E as outras
coisas sobre a face d.t terra sào criadas para o homem, pura
que o ajudem » alcançar o fitn para que é criado. Donde sc

38
Pedro LuLs Ribeiro dc Saati

segue que hà dc usar delas tanto quanto o ajudem a atingir o


seu fim. c há de privar-se delas tanto quanto dele o afastem.
Pelo que é necessário tornar-nos indiferentes a respeito de
todas us coisas criadas cm tudo aquilo que depende da
escolha da nosso li\'re-arbítrio, e não lhe c proibido. IX* ta.
nume ira que, dc nossa parte, não queiramos mais saúde que
doença, riqueza que pobreza, honra que desonra, vida longa
que breve, e assim por diante cm tudo o mais, desejando e
escolhendo apenas o que mais nos conduz ao fnn para que
somos crindos." (p 28).

"REGRAS PARA SENTIR VERDADEIRAMLNTE


COMO SE DEVE NA IGREJA MILITANTE

I" regra. Renunciando a lodo juízo própno, devemos


estar dispostos c prontos a obedecer em tudo á verdadeira
esposa de Cristo Nosso Senhor, isto é, a santa Igreja
hierárquica, nossa màe.'’(p. 188)
"9' regra. Louvar tlnalmente todos os preceitos da
sarna Igreja, e estar disposto para procurar razões em sua
defesa, e nunca para os criticar,"
“ 13* regra Para em tudo acertar, devemos estar sempre
dispostos a ercr que o que nos parece braneo é negro, sc
assim o determina a Igreja hierárquica; persuadidos de que
entre Cristo Nosso Senhor - o esposo- e a Igreja -sua
Esposa não ha senào um mesmo Espírito, que nos governa
e dirige pura a salvação das nossas almas. Porque é pelo
mesir.o Espírito c mesmo Senhor, autor dos dez mandamentos,
que se dirige e governa a santa Igreja, nossa Mãe."
"15* regra. Habitualn-jcnte nào devemos falar muito dc
predestinação. Mas se cm alguma ocasião se falar disso, faça-
sc de maneira que os simples fiéis não caiam em algum erro.
Algumas vezes isso acontece, quando concluem: “Se já está
determinado que me vou condenar ou salvar, nào são as
m inhas ações hoas ou más que hão de mudar esta
determinação". E com este raciocínio tornam-se negligcnics
e descuidam as obras que conduzem á salvação ç ao proveito
espiritual das suas almas." (p. 192)
“ 17* regra. Igualtnentc não devemos tnsistir tanto nn
graça a ponto dc se produzir o veneno que nega a liberdade.
Pode-se com certeza falar da fc c da graça, mediante o auxilio

39
A Construção do eu na Modernidade

divino, para maior louvor de sua divina Majestade, mas não


de tal forma nem por tais modos, mormente cm nossos tempos
tão perigosos, que as obras c o livrc-arbitrio sejam
prejudicados ou mesmo negados." (p, 193).

Assim , u liberdade hum ana é reconhecida apenas para se


lhe atribuir a causa da perdição humana. Curiosam enie, a salvação
implica justam ente em abrir m ão de forma absoluta dessa liberdade,
transferindo-a á autoridade religiosa com Ioda a boa-vontade c
determinação. A submissão do sujeito deve ser absoluta, esse c o
preço a pagar pelo repouso numa certeza sem conflitos. Exigc-.se
disciplina, dedicação e, sobretudo, que se abra m ão da própria
experiência imediata em favor da palavra da Igreja. Se, ao fim dos
28 dias, a iluminação não chegou, isso nào se deve a uma falha do
método, mas certam cnte à pouca fé e à fraqueza da vontade do
ex crcitantc'5.
F. bastante visível o quanto parte daqui a inspiração de um
gênero literário de bastante sucesso no final do século XX, chamado
"Psicologia de auto-ajuda" A crença na liberdade humana absoluta,
que d i/ que podemos atingir quaisquer que sejam nossos objetivos,
envolve um forte sentimento dc culpa: se somos o que fazemos de
nós, esta infelicidade na qual nos encontramos foi produzida por nós,
nós a merecemos. A premissa do título dc urn livro como “Só é gordo
quem quer", poderia scr derivada em "só c pobre quem quer”, ou
"Só é brasileiro quem quer", etc. A única determinação reconhecida
para nosso scr é a própria vontade; todas as determinações históricas,
sociais, genéticas, etc, são simplesmente negadas.
A cada época, a falta de sentido dc nossa existência mostra-
se p reza fácil d a s “ a u to rid a d e s dc p la n tã o ” a n o s o fe re c e r
generosamente seu manual de como viver. Mais importante do que
esta produção, c a percepção de como a Modernidade parece implicar

Santo Inácio antecipa dc forma espantosa alguns dos mais importantes


pensadores do século XVII: Descartes e Hobbes. Mais perto dc nós. antecipa
também as Psicologias humanistas ou dc auto-ajuda c ainda alguns cultos
religiosos e procedimentos de Marketing.

40
Pedro Luis Ribeiro de Santi

neste sentim ento de v a /io e cria a dem anda por nos formarmos
continuamente

M Ú SICA - UMA PO L IFO N IA M AIS CO M PO RTA D A

Uma vez mais, a m úsica nos auxiliará na exemplificação de


um c o n c e ito . N o fin al do s é c u lo X V I, a p o lifo n ia p arece
gradativam ente tornar-se mais bem comportada. As vozes múltiplas
vão sendo harmonizadas e não sc tem mais a impressão de ru do:
elas sim plesm ente .sâo disciplinadas, dispostas de tal form a que
componham um todo equilibrado, listam os a um passo da “fuga”
(estilo próprio ao século XVIF). Mesmo as letras parecem mais
comportadas, evocando a contra-reforma. Não será possível retomar
ao universo do canto gregoriano, mas sera possível buscar orcem
dentro da diversidade, como vimos através de Santo Inácio.
F.is uma curiosa letra, composta por M ateo Flocha, HI Viejo,
num gênero que tem o evocativo nome dc Las Ensaiadas.

EL FU EG O 1® - U a (ca F lec h a , L I lle jo

Corrcd, corred. pecadores!


No os tardeis a traer luego
agua al fuego, agua ul fuego'
fuego, fuego. fuego!
Este fuego que se enciende
es d maldito peccado.
que al que no hulla ocupado
sicmpre para st Io prende.
Qualquier que de Dios pretende
salvacíon, procure luego
agua al fuego. agua al fuego

"E t fuego" e "Ia i \eg rin a ", extraídas dc "Las Ensaiadas, Sony M u ú c ,
1991”. Ambas são ainda polifonias, compostas dc vários fragmentos
temáticos c mesmo de vários idiomas, mas pode sc notar, cspecialmente na
segunda, o quanto as vozes ja estâo harmonizadas, submetidas a tina
composição rigorosa. Ouça também o inicio da "Missa Papae MarccUi". dc
Paleslnna, extraída dc "Baroque. Paiestrina e Moateverdi, EMT Classes,
1995”.

41
A Construção do eu na Modernidinle

Fucgo, fucgo, fucgo!


Venid presto, pcccadores,
a matar aqucstc fticgo;
I laced penitencia lucgo
de todos vuestros emires-
Rcclamen essas campanas
dentro cn vuestros coraçoncs.
Dandán, dandán. dandán...
Poné en Dios Ias aficiones,
todas las gentes humanas.
Dandán. dandán, dandán
Uamad essos aguadores,
luego, luego, sin lardar!
Y ayúdennos a rnatar este fucgo,
No os tardeis en tracr luego
dcnlro de vuestru conciencia
mil cargos de penitencia
de buen' agua.
y ansí matanõis Ia fragua
dc vuestros maios deseos,
y los cnemigos fcos huyrán.

A expressão ‘salada" ê especialmente própria para delinir a


polifonia, neste caso. Mesmo já sc tratando de urna música mais
co n tid a , não faltam m istu ras dc tem as m u sicais, id io m as -
aparentemente, trata-se de uma coleção de trechos dc canções unidos
ao gosto do compositor. Já mais ao final do século, encontramos uma
música p ro p ria m en te equilibrada e muito bonita, um dos melhores
frutos da religião, a música sacra.

Tomemos agora outro exem plo hem mais cruel c naturalista


de procedim ento dc afirm ação do sujeito; O P rín cip e, obra dc
Maquiavel do com eço do século XVI, Trata-se de uma sene de
prescrições sobre como bem governar. Em nosso contexto -isto
poderia sc tradu/ir assim: que tipo dc sujeito utri principc deve ser?
Como deverã ser seu “ euM?.
Seu princípio c o de que o mundo (figurado pela figura do
Pedro l.nis Ribeiro de Sarri

povo) é volúvel -voltando-se para aquilo que representar seu interesse


mais im ediato , sem memória, egoísta e, enfim , nau. A grande
preocupação de M aquiavel c a fragmentação da Itália e a sua invasão
por bárbaros. É necessária a im posição de um sujeito forte. O
governante não tem outra opção que sc afirmar à força, criar alianças
mais pelo temor do que pelo amor. como única forma tlc estabelecer
uma umdade a dispersão O valor primeiro de tudo será a obtenção e
manutenção do poder centralizado. Para tanto, não há que se ter
vergonha por fa/er qualquer coisa nc*ie sentido, mesmo m atar a
quem quer que represente uma ameaça ao poder. O principio ético c
o da afirmação do poder.
Maquiavel foi tomado como imoral e desumano <de seu nome
deriva o adjetivo 'm aquiavélico’, que atualm ente significa ardiloso,
maldoso). No entanto, se inserimos o discurso de Machiavcl nesse
contexto de crise da té em um poder transcendente e entendemos o
m a io da dissolução, talvez tome-se mais compreensível a radicalidade
e a urgência dc seus preceitos. Abaixo, seguem-sc trechos de O
p rín c ip e .

TEXTO ANEXO - M c o ló M a c h ia re ili

C) PR ÍN C IPE

é que os homens, com satisfação, mudam dc senhor


pensando melhorar c esta crença faz com que lancem mão dc
armas contra o senhor atual, no que se enganam porque, pela
própria experiência, percebem mais tarde ter piorado a
situação.” (p. 11)
"E quem conquista, querendo conserva-los (o poder
c o domimo] deve adotar duas medidas: a primeira, fazer com
que a linhagem do antigo príncipe seja extinta; a outra, aquela
de não alterar nem as suas leis nem os impostos: por tal forma,
dentio dc mui curto lapso de tempo, o território conquistado
passa a constituir um corpo todo com o principado antigo.”
(p. 13)
“E que, em verdade, não existe modo seguro para
conservar tais conquistas, senão a destruição. E quem se
tome senJior de uma cidade acostumada a viver livre e não a
destrua. es|>er e ser destruído por cia, porque a mesma sempre

43
A Construção do eu nu Modernidade

encontra, para apoio dc sua rebelião, o nome da liberdade c o


de suas antigas instituições, jamais esquecidas seja pelo
decurso do tempo, seja por bcneficios recebidos. Por quanto
se faça e proveja, se não se dissolvem ou desagregam os
habitantes, eles nào esquecem aquele nome nem aquelas
instituições, e logo, a cada incidente, a eles recorrem como
fez Pisa cem anos apôs estar submetida aos florentmos" (p,
30).
“Deve, pois, um príncipe não ter outro objetivo nem
outro pensamento, nem tomar qualquer outra coisa por fazer
scnào a guerra e a sua organização e disciplina, pois que c
essa a única arte que compete a quem comanda. E c ela dc
tanta virtude, que nào só mantém aqueles que nasceram
principes, como também muitas vezes faz os homens de
condição privada subirem àquele posto: ao contrário, vé-se
que, quando os principes pensam mais nas delicadezas do
que nas armas, perdem o seu Estado,” (p. 85)
“Resta ver agora quais devam ser os modos e o
proceder dc um príncipe para com as súditos c os amigos c,
porque sei que muitos já escreveram a respeito, duvido não
ser considerado presunçoso escrevendo ainda sobre o mesmo
assunto, máxime quando irei disputar essa matéria à
orientação já por outros dada aos principes. Mas, sendo minlta
intenção escrever algo de útil para quem por tal se interesse,
pareceu-me mais conveniente ir em busca da verdade extraída
dos fatos c nào à imaginação dos mesmos, pois muitos
conceberam repúblicas e principados jamais vistos ou
conhecidos como tendo rcalmente existido Em verdade, há
tanta diferença de como se vive e como se deveria viver, que
aquele que abandone o que faz por aquilo que sc deveria
fazer aprendera antes o caminho de sua ruma do que o dc sua
preservação, eis que um homem que queira em todas as suas
palavras fazer profissão de bondade, penler-sc-á em meio a
tantos que não são bons. Donde è neeessáno, a um príncipe
que queira se manler. aprender a poder nào scr bom e usar ou
nào da bondade, segundo a necessidade ” (p. 89-90)
“Um príncipe não deve, pois, temer a má íama dc cruel,
desde que por ela mantenha seus súditos unidos c leais
(P- 95)
“Nasce dai uma questão: se é melhor scr amado que
temido ou o contrario. A resposta é de que seria necessário

44
Pedro Luis Ribeiru de Santi

ver uma coisa c ou Ira, mas, como é difícil reuni-las. em tendo


que faltar uma das duas é muito mais segure ser temido do
que amado. Isso porque dos liomens pode-se dizer,
gcralmcntc, que sào ingratos, volúveis, simuladores, temenfes
do perigo, ambiciosos de ganho; e, enquanto lhes fizeres
bem, são todos teus. ofcrcccm-tc o próprio sarguc, os bens,
a vida. os filhos, desde que, como se disse acima,a necessidade
esteja longe de ti: quando esta se avizinha, porem, revoltam-
se. E o príncipe que confiou intciramcntc cm suas palavras,
encontrando-sc destituído de outros meios do defesa, está
perdido: as amizades que se adquirem por dinheiro, e não
pela grandeza e nobreza de alma, sào compradas mas com
elas não sc pode contar e, no momento oportuno: nào se
toma possível utilizá-las. E os homens têm menos escrúpulo
em ofender a alguém que sc faça amar do que aquem sc faça
temer, posto que a amizade é mantida por um vinculo de
obrigação que, por serem os homens maus. é quebrado em
cada oportunidade que a eles convenha; mas o temor c mantido
pelo receio de castigo que jamais sc abandona." (p. 96)
“Náo se deve, pois, deixar passar esta ocasião, a fim
dc que a Itália conheça depois de tanto tempo, um seu
redentor. Nem posso exprim ir com que amor ele teria recebido
em todas aquelas províncias que tem sofrido por essas
invasões estrangeiras, com que sede dc vingança, com que
obstinada fé. com que piedade, com que lágrima?, (^uais portas
se lhe fechariam? Quais povos lhe negariam obediência? Qual
inveja se lhe oporia? Qual italiano lhe negaria c seu favor? A
todos repugna este bárbaro domínio. Tome, portanto, a vossa
ilustre casa esta incumbência com aquele ânimo e com aquela
esperança com que sc abraçam as causas justas (p. 146)

Sem dúvida, por mais que possa parecer esranho. há uma


serie de pontos em comum entre este procedimento t o prescrito por
Santo Inácio. Ainda que um afirme o valor do humano e o outro o
retom o a Deus, ambos crêem na necessidade tia afirmação do sujeito
através de procedimentos radicais e estreitos. Mas com Maquiavel,
estamos diante de um mundo sem ideal, no qual a imposição do sujeito
sc faz necessária por uma concepção naturalista e egoísta do homem:

45
A Construção do eu na Modernidade

não há apenas o elogio do homem como no Renascimento. É disso


que trataremos na próxima parle.
A crescento ainda uma diferença essencial entre os dois:
Santo Inácio pensa que seu procedimento è acessível a todos, enquanto
que Maquiavel, ao menos nessa obra, refere-se a afirm ação de um
único sujeito, em detrimento dos demais. Ele trata da constituição do
Estado, com o Hobbes, no século seguinte, a quem antecipa.

Questões para discussão


1. C o m o se rela cio n a a cren ça iu i liberdade d o h o m em e a te n ta tiv a d e subm cté-
lo a uma ortletn disciplinar rígida no século XVI?
2. Quais são as semelhanças entre Santo Inácio dc Loyola c Maquiavel?
3. Quais podenam ser as relações entre os ‘Exercícios Espirituais’ e as Htuais
terapias tlc autu-ajuda?

46
Pedru Luis Ri beiro de Santi

6
A P O S IÇ Ã O D E
C R Í T I C A À A P A R Ê N C IA
Nesta parle, procuram os m ostrar guc ci
tendência à glorificação do eu não é absoluta.
Alguns pensadores já começam a denunciar
como ilusórias suas pretensões cade ver
m aiores. A M odernidade contém uxnto
procedim entos para a construção ao eu
i/uuntn pam a sua desconstrução.

1A Ik in d a no sé c u lo
, X VI q u e p o ssu i um a r í q i c / a
aparentem ente infinita-, podem os identificar ainda outra poitura
quanto ao valor do ser humano. Há uma série de autoresque criticam
a pretensão do homem etn ser tão iileal e que apontam, co m o já o
fizera M aquiavel, para urna eventual m aldade c vaidade humanas.
Esta posição possui relações com plexas com o humanismo. Fm um
certo sentido, afirma-o, em outro, arrasa-o.
A prim eira vista, pode parecer que esta vertente estaria
excluída da Modernidade, mas veremos que esta última pteeisa de
tais procedimentos. Ao menos alguns pesquisadores, com o Harold
Bloom, reconhecem justam ente em alguns destes autores -sobretudo
Shaltespeure os fundamentos mais expressivos da Modernidade.
Dentre os lemas que tem os trabalhado, podemos retomar
dois. Em primeiro lugar, o que acabamos dc tratar acima, a formação
do “eu” . Montaigne, a quem já citamos acima, diante da instabilidade
c insegurança dc tudo, acaba por fazer renascei um ou tro dos
movimentos do pensamento grego: o ceticismo. Não podendo confiar
ou acreditar em nada. M ontaigne sc retira da vida social, isola-se e
passa a escrever durante anos, c até o fim de sua vida, sua famosa
obra E nsaios. Não se trata apenas de um livro, inas da própria
form ação do su jeito M ontaigne. F.lc d escreve a si e ás suas

47
A Construção do eu na Modernidade

experiências, copia e cita textos dc seus autores favoritos e afirma


que escreveu o livro apenas para si c para os anugos. A escrita será
um momento de interiorizaç&o, dc digestão de experiências.
O ceticism o toma ao menos dois aspectos no período. Um
d elesé chamado dc ‘'fideism o”. Ele implica em numa critica ao valor
crescente atribuído ao homem, mostrando sua insignificância; mas
esta diminuição do homem teria o sentido dc fazê-lo voltar novamente
a Deus. Assim, de um lado. o homem é insignificante diante de Deus
e, de outro, segundo alguns dos fidetstas, a razão humana é interior á
fc. Mas lambem, há propriamente um ceticismo que não se contenta
em mudar o centro de lugar (do Homem de volta para Deus) -
qualquer possibilidade dc crença em alguma referência absoluta
parecerá insustentável. Embora Monl.ugne se declare católico, sua
obra leva-nos a crer que ele se filia ao segundo grupo. O eu não é
para ele uma referência a priori, com o o será para Descartes, mas
sim algo inconstante c sempre inacabado. Ele se forma continuamente
num processo reflexivo.
Trata-se da introspecçào, daquela conversa proveitosa
c o n s ig o mesmo, que Ftloom reconhece oomo o cânone ocidental (aquilo
que caracterizaria a Modernidade ocidental), É com o se. a partir de
então, Montatgne já não fizesse mais parte do mundo; ele se torna -
ou pensa com o se fosse um ponto de vista alheio, do qual é possível
realizar a critica do mundo, nele nüo se incluindo propriamente. Lm
um certo sentido, este é um dos pontos mais altos de autonomia a
que poderia aspirar o "cu“ p. M onlaigne vive a diversidade e busca
afirmar-se enquanto ser particulur, como se p<xlc ver na citação abaixo;

“Não cometo ewe erro tão comutn dc julgar os> outros por
mim. Acredito de bom grado que o que está nas outros possa
divergir essencial mente daqui Io que esta cm mim. Não obrigo
ninguém a agir como ajo c concebo mil c uma maneiras

17 Talvez alguém sc lembre neste ponto dos alquimistas medievais, que


igualmente i solavam-sc do mundo e voltavam-sc para si. Embora possamos
hoje pensar que o processo dc mutação c purificação alquimica signifique
um processo de nueriorização do alquimista -desde que lemos .d obra c»i
nrgru dc Yourcenar-, eles própnos não o tomavam assim. A alquimia não
era metáfora ou símbolo, m » coisa em si. Seria, portanto, um anacronismo
compará-la com um procedimento de auto-analise ou cunstmçâo de si.

48
Pedro Luis Ribeiro dc Santi

diferentes de viver; e, conlrunamcntc ao que o:orre em geral,


espantam-me bem menos as diferenças entre nós do que as
semelhanças. Nào imponho a outrem nem mci modo dc vida
nem meus princípios, encaro-o tal qual c, sem estabelecer
comparações. (...) pela imaginação ponho-me muito bem cm
sua pele c os estimo c honro tanto mais quanto divergem dc
mim. Aspiro particularmcntc a que julguem tarda qual como é.
sem estabelecer paralelos com modelos tirados do comum.
Mrnha fraqueza nào altera absolutamente o apreço cm que
deva ter quem possui força e vigor. "Há pessoas que só
aconselhariam aquilo que imaginam poder imitar". Embora me
arraste ao nivel do solo, nào deixo dc pcrcchcr nas nuvens,
por mais alto que se elevem, certas almas que se distinguem
pelo heroísmo. Já é muito para mim ter o julgamento justo,
ainda que não o acompanhem minhas ações, e manter ao
menos assim incorruptível essa qualidade Já < muito ter boa
vontade, mesmo quando as pernas fraquejam

Desse ponto, teria surgido propriamente c que chamamos


hoje dc m undo interno ou privacidade; o universo de nossos
pensamentos, fantasias, projetos, “cncanaçõcs* c auto-tormentos.
O segundo ponto que retom am os é aquele de que no
Renascimento há um elogio ao ser humano. Neste segundo aspecto,
estamos agora longe do humanismo; elogíam -sc outras coisas. Esta
vertente critica a qual Montaigne pcrtcncc, quase sempre é marcada
por procedimentos que nos sâo muito caros, o que faz com que a
leitura de alguns deles nos pareça altamente atud. As obras são
m arcadas quase sem pre pela m elancolia e pelo hum or iróm co,
altamente crítico.
Um dos mais deliciosos textos do período c O elogio da
loucura , dc Erasmo de Rotterdam. Nele, o autor, que é ligado à
Igreja, u n h a a iniençuo dc fazer um ap elo por refo rm as na
burocratizaçào e hipocrisia da Igreja. Mas o que ele utinge c muito
mais. O texto acaba por arrasar qualquer idealismo sobre a bondade
humana c seu amor pelos demais. Se nào conhecêssemos o autor,
nós o imaginaríamos com o o prim eiro ateu confesso. Em anexo,
trechos de Erasmo.

'»Ensaios, 1. Cap XXXVII. p. 115.

49
A Construção dó eu na Modernidade

TEX TO ANEXO - E ra sm o d e R o lterd a m

E L O G IO DA LOUCURA

“Embora os homens costumem ferir a minha reputação e eu


saiba muito bem quanto o meu nome soa mal aos ouvidos
dos mais tolos, orgulho-me de dizer que esta Loucura, sim,
esta Loucura que estais vendo é a única capaz dc alegrar os
deuses c os mortais. A prova incontestável do que afirmo
está em que não sei que súbita e desusada alegria brilhou no
rosto de todos ao aparecer cu diante deste numerosíssimo
auditório." {p. 7).
“Pois bem, quem desejaria sacrificar-se ao laço
matrimonial, se antes, como costumam fazer em geral os
filósofos, refletisse bem nos incômodos que acompanham
essa condição? Qual c a mulher que se submeteria ao dever
conjugal, se todas conhecessem ou tivessem cm mente as
perigosas dores do parto c as penas da educação? Sc,
portanto, deveis a vida ao matrimônio e o matrimônio à
Irreflexão , que C uma das minhas sequazes, avaliai quanto
me deveis. Alem disso, uma mulher que já passou uma vez
pelos espinhos do insolúvel laço. c que anseia por tornar a
passar por eles, não o fará, talvez cm virtude da assistência
da ninfa Esquecimento, minha cara companheira?" (p. 16).
“Coragem, vamos! Dissimular, enganar, fingir, fechar
os olhos aos defeitos dos amigos, ao ponto de apreciar e
admirar grandes v íc io s como grandes virtudes, não será,
acaso, avizinhar-se da loucura? Beijar, num transporte, uma
verruga da amiga, ou sentir com prazer o fedor do seu nariz, e
pretender um pai que o filho zarolha tenha dois olhos de
Vènus, não será isso unia verdadeira loucura? Bradem, pois.
quanto quiserem, ser uma grande loucura, c acrescentarei
que essa loucura é a única que cria e conserva a amizade.” (p.
29).
“O que dissemos da amizade também pensamos c cora
inais razão dizemos do matrimônio. Trata-se (como deveis
estar fartos dc saber) de um laço que só pode ser dissolvido
pela morte. Deuses eternos! Quantos divórcios não sc
verificariam, ou coisas ainda piores do que O divórcio, sc a
união do homem com a mulher não se apoiasse, nío fosse
alimentada pela adulação. pelas carícias, pela complacência.

50
Pedro l.uis Ribeiro de Santi

pela volúpia, pela simulação, cm suma, por todas as minhas


sequazes e auxiliares? Ah! como seriam poucos os
matrimônios, sc o noivo pnideniementc investigasse a vida e
os segredos dc sua futura «ira-metade, que ihc parece o retraio
da discrição, da pudicicia e da simplicidade! Ainda menos
numerosos seriam os matrimônios duráveis, a; os maridos,
por interesse, por complacência ou por burrice, não
ignorassem a vida secreta dc suas esposas. Cos:uma-se achar
isso uma loucura, e com razão; mas é justamente essa loucura
que toma o esposo qnendo da mulher, e a mulher, do esposo,
mantendo a paz domestica c a unidade da família. Comeia-se
um marido'' Toda a gente n e o chama de como, enquanto o
bom homem, todo atencioso, fica a consolar a cara metade, e
enxugar com seus temos beijos as lágrimas tingdas da mulher
adúltera. Pois não é melhor ser enganado dessa forma do que
rocr-sc dc bílis, fazer barulho, pôr tudo de pernas para o ar,
ficar furioso, abandonando-sc a um ciúme funesto e inútil?
Afinal de contas, nenhuma sociedade, nenhuma união grata
e durável poderia existir na vida, sem a minha intervenção: o
povo não suportaria por muito tempo o piíncipc, nem o patrão
o servo, nem a patroa a criada, nem o professo* o aluno, nem
0 amigo o amigo, nem o marido a mulher, nem o hospedeiro o
hóspede, nem o senhorio o inquilino, etc., se não se
enganassem reciprocamente, nào se adulassem, nao fossem
prudcntcmcntc cúmplices, temperando tudo com um grikvinho
dc loucura.“ (p. 30-31).
"Quando se reflete atcntamcnle sob re o gênero
humano, e quando sc observam como de ema alta torre
(jusUmientc a maneira pela quul Júpilcr costuma proceder,
segundo dizem os poetas) todas as calamidades a que eslà
sujeita a vida dos mortais, nào sc pode deixar de ficar
vivamente comovido. Santo Deus! Que c, afinal, a vida
humana? Como é miserável, como ê sórdido o nascimento!
Como é penosa a educação! A quantos males, está exposta a
mtancia! Como sua a juventude! Como é grave a velhice!
Como è dura a necessidade da morte! Percorram os, ainda
uma vez, esse deplorável caminho. Que horrivel c variada
multiplicidade dc males! Quantos desastres, quantos
incômodos se encontram na vida! Enfim não há prazer que
nào tenha o amaigor dc muito fel, Quem poderia descrever a
infinita serie dc inales que o homem causa ao homem, como

51
A Construção do cu na Modernidade

etfjutn a pobrez*. a p r is ã o , a inlãniu, u Jcsotiiit, ys (ormcntOS,


a inveja, as traições, as injúrias, osconflitos, as fraudes, cte ?
Eu não saberia dizer-vos que delito teria o homem cometido
para merecer tão grande quantidade de males, nem que deus
furioso o teria constrangido a tiaster cm tão horrível vale de
misérias.” |p 47 j.
“Às vezes, c urti louco :jue sc ri de outro louco,
divertindo-se ambos mutuamente. Também não é rano ver-se
um mais louco rir-se muito de outro menos do que ele. Mas na
minha opinião o homem é (ante mais feliz quanto mais
numerosas são as suas modalidades de loucura, contanto
que não saia da espécie que no» c peculiar e que c tão
espalhada que cu não saberia diicr sc haverá, cm todo o
gênero humano, um indivíduo que seja sempre sábio c não
tenha também a sua modalidade. Sc alguém, ao ver uma
abóbora, a tomasse por uma mulher, dir-se-ia ser o pobrezinho
um louco. A razão disso è que semelhante perturbação raras
vezes costuma aparecer entre nós Mas quando um marido
imbecil adora a mulher, julgando-a mais fiel do que Pcnélope,
mesmo que cia lhe faça crescer na cabeça um bosque de
chifres, e intimamente se felicita, bendizendo enormcmentc o
seu destino c dando graças a Deus por o ter unido u
semelhante Luerécia - ninguém acàa que sc trate dc loucura,
porque isso, hoje cm dia, c a coisa mais natural deste mundo. “
(p. 63).

A tra v é s do h u m o r, E ra s m o o p era um a im p la c á v e l
desconstrução de todo um sistema de valores tomados com o óbvios.
Trata-sc do dcsvclam ento e desnaturnli/ação de costum es tom ados
como naturais. Este tipo tlc discurso produz uma espécie de ruido de
fundo constante á tentativa de afirm ação dc qualquer idéia dc verdade.
Já que falamos de Erasmo, além Je O elogio da Loucura -
uma das obras mais atroadoras dc valores edesveladora de hipocrisias
sociais c que garante ao autor um lugar de destaque na vertente
critica-, é oportuno dizer que ele também pertence a outra tradição
literária: a dos autores de manuais de boas maneiras. Estes m anuais
dizem respeito jus lam ente â questão do :ontrole do corpo. Em O
processo civiliza d o r , de Elias, c na H istória da vida privada, dc

52
Pedro Luis Ribeiro de Santi

Aries & Uuby, encontram os analises de A civtltd a d e p u e ril c de


outras obras dc Erasmo que, a um só tempo, nos mostram com o o
co rp o p assa a ser p ro g re ssiv a m e n te alv o dc au to -c o n tro le e
observação, e revelam o quanto este processo foi longe e nos
compreende. É impossível nào rirmos diante das recomendações sobre
com o lidar com nossa glutonicc c eventual necessidade dc arrotar,
urinar ou soltar gazes (em casos urgentes, estes últimos devem ser
encobertos com uma tosse boa dica,.,). Estamos de volta ao grotesco
e nos parece inimaginável hoje que os próprios termos sejam incluídos
num manual. Já no século XVIII, estas expressões desapareceram.
N osso riso á leitura destes velhos manuais nos mostram o quanto o
princípio que os rege ioi eficaz c age cm nós; as normas que nos
in d ic a m q u e as fu n ç õ e s c o rp o ra is d e v e m se r o c u lta s são
absolutamente automatizadas e, por que nào dizer, inconscientes.
Creio que será interessante agora evocar com o Elias trabalha
o conceito de 'civilização*. A civilização expressa-se em uni conjunto
extenso dc formas dc expressão com as quais o homem ocidental se
identifica: a tecnologia, a religião, as condutas c punições no caso dc
desvios, os modos de viver cm conjunto, etc. Ela representaria tudo
aquilo que a nossa sociedade considera ter de superior às demais
culturas, O processo civilizador se tena dado, com o já indicam os nas
partes anteriores, às custas de um rigoroso sistema dc controle social
que inibe a expressão das funções corporais e dc grande parte dos
impulsos. Trata-se da modelagem dc determ inados m odos dc ser
transmitidos sobretudo pelos pais. Entre os séculos XVI e XVII, se
teria processado intensamente a produção de códigos de inserção
social e seu não cum prim ento sem pre seria acom panhado pelas
acusações de “ doença” , “crim e" ou alguma forma dc desagrado que
leva à exclusão do convívio.
Elias observ a que, na medida em que a expressão dos desejos
e emoções intensas cm geral vai sendo constrangida, os olhos passam
a adquirir um papel essencial com o forma dc contato. Vale a pena
inserir aqui uma passagem rclativamcntc longa:

"ReconhecidariictUc, essas emoções de fato tem, em forma


“refinada” , racionalizada, seu lugar legitimo c prccisamcntc
definido na vida cotidiana da sociedade civilizada. E isto c
. . muito característico do tipo de transformação através do qual

53
A Construi;ào do eu na Modernidade

sc civilizam as emoções. Paiu dar um exemplo, u beligerância


e a agressão encontram expressão socialmenle permitida aos
jogos esportivos. E elas se manifestam especialinente em
participar como "espectador" (como por exemplo, em lutas de
boxe), na identificação imaginána com um pequeno número
de com batentes, a quem uma liberdade m oderada e
prccisamcntc regulamentada é concedida paru liberação
dessas emoções. E este viver de emoções assistindo ou mesmo
apenas escutando (como, por exemplo, a um comentário no
rádio) c um aspecto particularmcntc característico da
sociedade civilizada. Esse aspecto determina em parte a
maneira como sc escrevem livras c peças dc teatro e influencia
dccisivamente o papel do cinema em nosso mundo. Essa
transformação do que, inicialmcntc, sc exprimia cm uma
manifestação ativa c freqüentemente agressiva, no prazer
passivo c mais controlado de assistir (isto é. cm mero prazer
do olho), já c iniciada na educação e nas regras de
condicionamento dos jovens. (...)
F. altamente característico do homem civilizado que
seja proibido por autocontrole soeialmcntc incukado de,
espontaneamente, tocar naquilo que deseja, ama. ou odeia.
Toda a modelação dc seus gestos -pouco importando como
o padrão possa diferir entir as nações ocidentais no tocante
a d etalh es- c decisivam ente influenciada por essa
n ece ssid a d e.(p . 200)

Desde o Renascimento, afirm ou-se a auto-percepçào de um


*eu' individual fechado, separado c cm oposição a um ‘m undo
ex tern o ’, ai com preendidos os objetos e as outras pessoas. A
observação de Filias sobre a im posição de um contato indireto,
intermediado pelo olhar, com os objetos com a proibição do toque,
parece bastante expressivo diante da presença intensa da televisão,
do computador e dos experimentos em realidade virtual.
No limite do scculo XVI ao XVII, exatamente cm IMM), surge
uma das o b ras m ais im portantes ja m a is escritas, H a m let , de
Shakespcarc. Ainda que boa parte dos elementos da obia já esteja
insinuada no texto de Erasmo c M aquiavcl, çertamente vale a pena
apresentar trechos também dessa obra. que sintetiza e encerra este

10 Flias, cm O pm eesso civilizador.

54
PedroLuis Ribeiro de Santi

período, lançando-nos já no século XVII.

TEXTO ANEXO - Hlllitim Shakespeare

H A M l.E T

“HAMLET Ser ou não ser eis a questão. Será mais nobre


sofrer na alma pedradas c flechadas do deslino fero/ ou pegar
em armas contra o mar de angústias. E, cornbaicnòo-o, dar-
lhe fim? Morrer; dormir. Só isso. E com o sono -dizem
extinguir dores do coração e as mil mazelas naturais a que a
cíirnc 6 sujeita; eis uma consumação ardentemente desejável
Morrer -dormir-, dormir! Talvez sonhar. Ai está o obstáculo!
Os sonhos que hâo dc vir no sono da morte quando tivermos
escapado ao tumulto vital nos obrigam a hesitar: c é essí
reflexão que da á desventura uma v ida táo longa Pois querii
suportaria o açoite c os insultos do mundo. A afronta do
opressor, o desdém do orgulhoso. As pontadas do amer
humilhado, as delongas da lei, A prepotência do mando, e 0
achincalhe que o mérito paciente recebe dos inúteis podenda
ele próprio, encontrar seu repouso eonr um simples punhal*
Quem agüentaria fardos, gemendo e suando numa vida servil,
Sedào porque o terror de alguma coisa após a morte o paii
nào descoberto, dc cujos confins jamais voltou nenhurn
viajante- nos confunde a vontade, nos faz preferir c suportar
os males que já tem os, a fugirm os pura outros qu;
desconhecemos? E assim a reflexão faz todos nós covardes,
E assim o matiz natural da decisão se transforma no doentij
pálido do pensamento. E empreitadas dc vigor e coragem,
refletidas demais, saem dc seu caminho perdem o nome de
ação (.. H p . 88-89).

No trecho acima, vemos llam let monologar. São muilos e


extensos seus monólogos que expressam uma característica essencial
tia Modernidade: a interioridade. A reflexão, o desdobramento sobre
si, cria a possibilidade de um diálogo construtivo, mas Shakcspeare já
expressa pela voz de seu herói o quanto este mergulho para dentro
sc dá às custas da ação. A consciência de si traz ao homem a
consciência de sua vaidade c um distanciam ento melancólico da
experiência imediata.

55
A Construção do cu na Modernidade

No trecho abaixo, podemos ver este liomern interiorizado


rccusando-se a ser tomado como um objeto de manipulação. Quase
podemos pensar em uma critica ao que virá a ser o projeto cientifico.

L'í Hamlet insiste paia que (iuildenstem toque uma flauta; este
recusa-sc, afirmando nâo dominar a técnica do instrumento)
HAMLET Pois veja só que coisa mais insignificante você
me considera! Lm mim você quer tocar; pretende conhecer
dentais os meus registros; pensa poder dedilhar o coração do
meu mistério Se acha capar dc me fazer soar, da nota mais
baixa ao topo da escala. Há muita música, uma voz excelente,
neste pequeno instrumento, e você é incapaz dc fazê-lo falar,
Pelo sangue dc Cristo!, acha que cu sou mais fácil dc tocar do
que uma flauta? Pode me chamar do instrumento que quiser -
pude mc dedilhar quanto quiser, que não vai me arrancar o
menor som.., (p. 111)”,
‘'HAMLET - Esse crânio já teve língua um dia, e podia cantar.
E o crápula o atira ai pelo chão, como se tosse a queixada de
Caim. o que cometeu o primeiro assassinato. Pode ser a cachola
dc um politiqueiro, isso que esse cretino chula agora; ou ate o
crânio de alguém que acreditou ser mais que Deus (...) Pode
scr. F. agora sua dona é Madame Verme; desqueixado e com o
quengo martelado pela pá de um coveiro. Uma bela revolução,
se tivéssemos capacidade dc entende-la. A educação desses
Ossos terá cuslado tão pouco que só sirvam agora para jogar a
bocha? Os meus doem, só de pensar nisso. (...)”
"-Mais um! Talvez o crânio dc um advogado! Onde
foram parar seus sofismas, suas cav ilações, seus mandatos e
chicanas? Por que permite agora que um patife estúpido lhe
arrebente a caveira com assa pá imunda e não o denuncia por
lesões corporais? Hum! No seu tempo, esse sujeito talvez
tenha sido um grande comprador de terras, com suas escrituras,
fianças, termos, hipotecas, retomadas dc posse. Será isso a
retomada final dc nossas posses? O teimo dc nossos termos,
será termos a caveira nesses termos? Os liadores continuarão
avalizando só com a garanlui desse par dc identificações? As
escrituras dc suas Icrras dificilmente caberiam nessa cova; o
herdeiro delas náo mereceria um pouco mais?" (p. 168-169).
"HAMLET -Deixa eu ver. (pega o crânio) Olá. pobre Yonclt!
Lu o conheci, Horacio. Lm rapaz de infinita graça, dc espantosa
fantasia, Mil vezes me carregou nas costas; e agora, me causa

56
Pedro Luis Ribeiro de San»

horror só de lembrar! mc revoltas o estômago' daqui pendiam


os lábios que eu beijei não sei quantas veze». Yorick, onde
andam agora as tuas píudus? Tuas cantigas? Teus lampejos
de alegria que faziam a mesa explodir etn gargalhadas? Nem
uma gracinha mais, zombando da tua própria dentadura ? Que
falta de éspinto! Olha, vai até o quarto da minha Dama c diz a
ela que, mesmo que se pinte com dois dedos de espessura,
este é o resultado final; vc se ela ri disso! (...)' <p 172-173).
"HAMLET Dá-me teu perdão, senhor. Eu te ntendi Mas mc
perdoarás, como um cavalheiro os presentes sabem, e tu mesmo
deves ter ouvido, que fui atacado por cruel uisãnia. O que eu
fiz, que tenha agredido tua natureza, teu temperamento, Jtonra
ou consciência-proclamo aqui que é loucura. ?oi llamlct que
ofendeu Lacrtcs? Hamlet. punais: Sc Hamlet fui posto tora de
si, e com Hamlet tora de si ofendeu a I oertes, não e Hamlet
quem ofende, c Hamlet o nega. Quem ofende, então? Sua
loucura, E se è assim, Hamlet está rui parte ofendida. A loucura
também é sua immiga. Senhor, diante desta audiência, que minha
negativa de qualquer má intenção tire do seu generosíssimo
espirito a idéia de que atirei minha flecha sobre a cisa c feri meu
irmão.” fp. 1X8).

Com Hamlet, temos a denúncia melancólica -cm um misto


de lucidez c loucura das ilusórias pretensões do eu,que se acostuma
a esquecer de sua dim cnsào mortal. Hamlet coloca-se numa posição
alheia ao coletivo, ao que se espera de um príncipe. Ele se recusa a
ocupar o papel que lhe c reservado, prefere ser autor de si mesmo.
Temos aqui ao mesmo tempo critica c construção do homem da
Modernidade.

Q uestões p a ra discussão
1. Quais são as relações entre a origem da valorização do indivíduo c o
ceticismo?
2. Quais foram as principais criticas dirigidas ao "eu” já r.o século XVI?
3. Quats sàn as relações entre a civilização e o auto-controle?

57
A Construção do eu na Modernidade

7
O D IS C U R S O D O
M ÉTODO

Acompanharemos, nesta parti.', através do


exemplo mm!ciar de Descartes, como o eu
chega a seu ponto de máxima afirmação no
século XVII, Ao eu será atribuída uma posição
transcendente ao mundo material: com Isto.
nascerá o p ro jeto da produção de um
conhecimento objetivo, neutro, independente
da subjetividade, u ciência.

titulo desta parte refere-se a uma das obras mais


importantes da história da filosofia, escrita por Descartes, no século
XVII. Hla será nossa principal referência aqui.
F.m mais uma das caricaturas que temos feito nesse percurso,
poderíamos dizer que o s é c u lo X V II tentou organizar racíonalmente
a desordem do século anterior. Boa parle dos filósofos mais conhecidos
liojc são daquele século c. embora seus sistemas sejam profundamente
diferentes, há algumas características próprias do século. Quase que
invariavelm ente, suas obras procuram criar um m étodo para a
compreensão do mundo eiti sua totalidade. Para isso. o inundo será
dividido, analisado, hierarqui/ado metodicamente. É comum que o
primeiro capítulo de uma dessas obras trate daquilo que o autor pensa
ser a coisa mais importante do mundo (a causa de todas as demais
coisas): em geral, este lugar é ocupado por Deus. O segundo capitulo
trataria da segunda coisa mais importante do mundo: a alma, por
exemplo, t assim por diante, até que todos os seres do inundo tivessem
ganho seu lugar.
Trata-se daquele mesm o esforço que já apontam os, etn
capítulos anteriores, pata controlar a desordem. Dada a insegurança

58
Pedro Luis Ribeiro de Santi

do ceticism o, é necessário encontrar algum pon.o de referência


confiável sobre o qual edificar a existência. A razão humana buscará
cnconLrar a ordem das coisas para dominá-las c, sobretudo, dominar
a si mesma. O discurso do m étodo, aliás, foi o primeiro livro de
iilosofia a ser escrito nào em latim, mas na língua francesa do autor,
o que mostra que a racionalidade estava no caminho dc se tom ar
m ais difundida e integrada à vida comum.
Assim conto Santo Inácio, Descartes acredita que o cam inho
para a verdade é acessível a qualquer um. desde que todos são livres
para dirigir sua vontade ao caminho correto. A diferença é que, cm
Santo Inácio, a verdade é Deus e o caminho è a meditação, enquanto
que D escartes opera um d eslo cam en to c refere-se à verdade
enquanto tal e o cam inho encontra-se no correto uso das leis
matemáticas e geométricas.
Descartes é reconhecido com o o filósofo mais expressivo
d esse m ovim ento c um dos fundadores da M udernidade: seu
pensamento associa-se à origem do Iluminismo e, posteriormente, da
ciência. Por outro lado. não faltam aqueles que o tomam com o o
criador dc um racionalismo exagerado, distante da experiência. Hlc
seria o m aior representante, juntamente com EJlatão. da filosofia da
representação, que exclui o corpo e seus impulsos, pretendendo que
o mundo seja totalmcnte racionalizável, submetido a séries de causa
e efeito. Tentemos, como já fizemos com Maquiavd, c o m p r e e n d ê -lo
cm seu contexto.
Descartes nasceu em 1596, mergulhado aa efervescência
que já descrevemos. Com dez anos, ingressou cm um colégio de
jesuítas, ou seja, sob a orientação do pensamento ce Santo Inácio.
Quando Icmos O D iscurso do M étodo, publicado em 1637,
encontramos exatamente o depoimento de algucrr que passou boa
parte da vida em busca de uma referência confiável c não a encontrou:
cada fí lòsofo diria uma coisa, sem nunca entrar em acordo com outros;
cada livro informava difcreniem ente; cada cultura tinha suas leis
p róprias e algo que fosse co n sid erad o certo aqui poderia ser
considerado errado muna cidade vizinha Enfim, p.-ra onde quer que
olhasse, tudo o que via era desordem e dúvida. É uma percepção dc
mundo que em nada difere du de Montaigne, por exemplo.
A solução encontrada por Descartes foi iniciar um processo

59
A Construção da eu na Modernidade

de dúvida metódica, ou seja, ele se propôs a refletir sobre cada coisa


que há no mundo, procurando sabei sc cia llte poderia fornecer uma
verdade segura. O método será o mais semelhante possivcl com o
da m atem ática c da geom etria. U m a vez firm ado um ponto de
referência, tudo mais deverá vir por dedução.
A busca é por idcias claras c distintas. Para nào correr riscos
e ajudar a distinguir com clareza idéias que fossem totalm cntc
verdadeiras, d e tomou o seguinte principio: àquilo que fosse falso,
ele consideraria falso; àquilo que fosse incerto, seria tom ado
igualmente como falso. Apenas algo realmente seguro poderia passar
por seu crivo.
Penso que podemos associar este procedimento com duas
características da pintura barroca do século XVII: a busca dc rcali/ar
retratos altamente realistas e detalhados, e a técnica do claro/escuro.
Nas pinturas há uma alta definirão de luz. sobre seu objeto tema.
enquanto o fundo. cm geral, c escuro. Quase nào se pode duvidar de
nada, nào há meios tons Vejam-se, sobretudo, as obras de Caravaggio
ou Vermeer. em todos eles. há a representação fotográfica do tema;
sobre ele, recai um foco bem definido de luz, enquanto que o fundo é
indefinido c deixado na escuridão.
No procedimento de Descartes, uma u uma, as coisas iam
se mostrando enganadoras FIc procedeu seu exame de dentro para
fora e, assim, em primeiro lugar, percebeu que as opiniões das pessoas
comuns e de "especialistas” eram duvidosas; depois percebeu a
variabilidade das leis e regras morais. Já uão podendo contar com
certezas extemas. passa a interrogar a si mesmo (reencontra-se aqui
o movimento que identificamos na passagem da Idade Média ao
Renascimento). Em primeiro lugar, averiguou sc seus órgàos do sentido
lhe proporcionavam informações seguras, c chegou à conclusão de
que não. Interrogou, então, seus sentimentos c viu que o que cies lhe
transmitiam não era nada objetivo. E cntüo se perguntou sc a sua
sensação de ter ccrtc/a sobre algo garantia a verdade correspondente
e, ainda uma vez, concluiu que não. Este m ovim ento de recuo
metódico, em que parece que Descartes vai ficando cada vez mais
acuado, aparentemente chegaria ao ceticismo absoluto dc Montaigne.
Mas então Descartes dá seu "pulo do gato".
Depois dc duvidar de todas as coisas. Descartes diz que,

60
Podro Luis Ribeiro de Santi

realmentc. tudo u que tom ou como objeto de seu pensamento cra


incerto, mas que algo lhe parecia indubitável: enquanto duvidava,
seguramente existia ao menos a atividade de duvidar e se havia
esta ação, ela deveria ter um sujeitn , uin "cu pensante". Fsta é a
conclusão de Descartes: diante dc toda a dúvida do mundo, o único
pomo dc segurança e referência que temos é o de um “cu", não
enquanto corpo, pois sua existência também foi colocada em dúvida,
mas utn eu puramente pensante, uma alma racional cape/ de produzir
representações corretas do mundo. Dai a famosa fraje V e pense,
d o n e je s u b " (eu penso, logo existo).
Teriamos, com isso, o ponto máximo do humanismo enquanto
valor do homem nu mundo c sua posição enquanto centro. O homem já
cra reconhecido como centro do m undo ; agora, ele mesmo tem um
centro, sua razão, sua aufoconsciênda. A partir do “cu". Descartes
deduzirá a existência do corpo c dos demais ”cus“. Mas, em primeiro
lugar, deduzirá a própria existência dc Deus. Deus e deduzido como uma
causa necessária para a existência do homem, mas, se sua existência
tem que ser deduzida do cu, qual dos dois será mais importante?
Assim, sc de inicio os caminhos de Descartes edu Montaignc
sc assemelham, eles acabam dc formas radicalmentc distintas: em
Montaignc temos a incerteza sem fim c a necessidade de construir
co ntinuam ente um eu; em Descartes, a dúvida é superada pela
suposição da existência prévia de um eu absoluto, um sujeito que
subjaz (a origem dos termos é a mesma) a tudo.
Retomemos a referencia que fizemos a Santo Agostinho no
primeiro capitulo. Dentre os diversos pontos de contato entre ele e
Descartes, vale dizer que ele também teria antecipado Je certa forma
o debate de Descartes contra os céticos e mesm o a solução dada
por este último, em uma formulação que Taylor denomina ‘proto-
cogito’, Agostinho sente que precisa defender-se dos céticos, pois
as crenças cristãs seriam arrasadas se eles conseguissem provar
que de fato não sabem os nada. Daí surge a argum entação que
costumamos atribuir como originária dc Descartes e ponto chave de
sua argumentação etn favor do cogito: mesmo o cético não pode
duvidar dc sua própria existência, caso contrário não seria possível
sequer que ele se enganasse. O ponto máximo da dúvida metódica
(a chamada dúvida hiperbólica) cartesiana consistia justam enle na

61
A Construção do cu na Mudcmidadc

hipótese de um Deus enganador que pudesse insuflar falsidade em


nossas representações, Sto Agostinho parece antever este ponto limite
da dúvida e fornecer a mesm a resposta que D escartes: tom ar a
certeza cia primeira pessoa como fundamento indubitável contru os
céticos. O conhecedor e o conhecido são idcnticos. trata-se da
evidência da auto-presença
A semelhança com as M editações m etafísicas de Descartes
vão alem: a afirmação daquela verdade inquestionável ainda nào
garante a verdade das coisas e dc Deus. A garantia para estas
verdades 6 dada pela concepção dc que. sendo imperfeitos, devemos
ter sido originados de um ser perfeito, em muito superior a nós. O
mergulho que o homem dá dentro de si o eleva a uma verdade acima
dele. A conclusão dc Taylor è a de que no universo agostiniano. a
seguinte equação deve ser feita: “D eus = a verdade existe".
É justam ente neste último ponto que se pode com eçar a
diferenciar Descartes de Agostinho, já que. até agora, podíamos incluir
o prim eiro quase que lotalm cnte na tradição do segundo. Em
Descartes, a fonte da moral vale dizer, a verdade é detinitivamente
interna. Descartes tambem deduz. Deus, como Agostinho, de nossa
imperfeição, mas Deus jã não é o fim do caminho, para onde tudo
tende, mas ele serta um passo em meu caminho, uma garantia para
as idéias evidentes que tenho cm mim. É no eu que tudo se encerra.
I>esde Descartes, só será considerado verdadeiro aquilo que
passar pelo crivo (observação ou experimentação) da razão humana
O lugat da verdade c o e u e nào mais textos ou representantes do
sagrado. A Modernidade se ergue diante da descrença progressiva
da possibilidade dc acesso imediato a qualquer transcendência.

TEX TO ANEXO - R e n é D esca rtes

O DISCURSO DO M ÉTODO

"O bom senso c a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada


quíd pensa estar tão bem prov ido dele que mesmo os que sáo
mais difíceis dc contentar em qualquer outra coisa não
costumam desejar tc-lo mais do que o tem. E não é verossímil
que todos se enganem a tal respeito, mas isso antes testemunha
que o poder de bem julgar c distinguir o verdadeiro do falso.

62
Pedro I.uis Ribeiro de Santi

que é propc«mente o que se denomina o bom senso ou u razão,


C natural mente igual cm todos os homens, c, destarte, que u
diversidade de nossas opiniões não provém do fato de serem
uns mais racionais do que outros, mas somente dí conduzirmos
□ ossos pensamentos por vias diversas e nào considerarmos
as mesmas coisas. Pois nào é suficiente ter o espirito bom. o
principal è aplicá-lo bem. As maiores almas sâo capazes dos
maiores vícios, tanto quanto das maiores virtudes, c os que só
andam muito Icnramcntc podem avançar muito mais, se
seguirem sempre o caminho reto, do que aqueles que correm c
dele se distanciam.” (p_29)
”E bom saber algo dos costumes de diversos povos, a
fun de que julguemos os nossos mais sàmenie enào pensemos
que tudo quanto é contra os nossos modos é ridiculo e
contrário à razão, como soem proceder os que nada viram.
Mas quando empregamos demasiado tempo cm viajar,
aeabíimo-nos tomados estrangeiros em nossa tmra; c quando
somos demasiados curiosos das coisas que se praticavam
nos séculos passados, ficamos ordinariamente muito
ignorantes das que se praticam no presente.” (p. 31)
‘"Comprazia-me sobretudo com as ma emáticas. por
causa da certeza e da evidência de suas razões; mas nào
notava aindu seu verdadeiro emprego c, pensando que
serviam apenas is artes mecânicas, espantava-mc dc que,
sendo seus fundamentos tào firmes e tão solidos, não se
tivesse edificado sobre cies nada dc mais elevado. (...)"
”I)a Filosofia nada direi, senão que, vendo que foi
cultivada pelos mais exoelsoB espíritos, que viveram desde
muitos séculos c que, no entanto, nela não sc encontra aindu
uma só coisa sobre a qual não se dispute e. por conseguinte
que não seja duvidosa, eu nào alimentava qualcuer presunção
dc acertar melhor do que os outros; e que, considerando
quantas opiniões diversas, sustentadas por homens doutos,
pode haver sobre uma c mesma matéria, sem que jamais possa
existir mais dc uma que seja verdadeira, rcpulava quase como
falso tudo quanto era somente verossímil" (p. 32)
“F certo que. enquanto mc limitava a considerar os
costumes dos outros homens, pouco encontrava que mc
satisfizesse, pois advertia neles quase tanta divcisidade como a
que notara anteriormentó entre as opiniões dos filéNofos De
modo que o maior proveito que dai tirei foi cpuc. vendo unta

63
A Construção do cu na Modernidade

porção de coisas que. embora nos pareçam muito extravagantes


c ndiculas. não deixam de ser frequentemente acolhidas e
aprovadas por outros grandes povos, aprendi a nào crcr
demasiado ftnncmcntc em nada do que mc fora ilKulcado só
pelo exemplo c pelo costume; e assim, pouco a pouco, livre-i-nie
de muitos erros que podem ofuscar a nossa hiz natural c nos
tomar tnenos capazes de ouvir a razão. Mas. depois que
empreguei alguns anos cm estudar assim no livru do mundo e
em procurar adquirir alguma experiência, tomei um dia a resolução
dc estudar tambérn a mim próprio e de empregar todas as forças
de meu espirito na escolha dos caminhos que devia seguir. O
que mc deu muito mais resultado, parece-me, do que se jamais
tivesse mc afastado dc meu pais e de meus livros." (p. 33)
“Achava-mc, então, na Alemanha, para onde fora
atraído pela ocorrência das guerras, que ainda não findaram,
e, quando retomava da coroação do imperador para o exército,
o inicio do inverno deteve-me num quartel, onde, nào
encontrando nenhuma ífcqucntação que me distraísse, c nào
tendo, alem disso, por felicidade, quaisquer soliciludes ou
paixões que me peiturbassem, permanecia o dia inteiro fechado
sozinho num quarto bem aquecido onde dispunha dc todo o
vagar para mc entreter com os meus pensamentos. Entre eles.
um dos primcims fra que me lembrei de considerar que, amiúde.
nào há tanta perfeição nas obras compostas dc várias peças
e feitas pela mão dc diversos mestres, como naquelas cm que
um só trabalhou.*' (p. 34)
“O primeiro [principio] era o de jamais acolher nlguma
coisa como verdadeira que cu não conhecesse evidcnlcmcntc
como tal; isto é, de eviiar cuidadosamente a precipitação c a
prevenção, c de nada incluir em meus ju íz o s que nào sc
apresentasse tão clara e tão disliiitanientc a meu espirito que
eu nào tivesse nenhuma ocasião de pô-lo cm duvida." (p. 37)
“E enfim , como r.ão basta, antes de com eçar a
reconstruir a casa onde sc mora, dcrruhà-la, ou provcr-sc de
m ateriais e arquitetos, ou adestrar-se a si mesmo na
arquitetura, nem além disso, ter traçado cuidudosíunente o
seu projeto; mas cumpre cambem ter-se provido de outra
qualquer onde â gente possa alojar-se comodamente durante
o tempo cm que nela se trabalha: assim, a fim de não
permanecer irresoluto em minhas ações, enquanto a razão me
obrigasse a sc-lo, cm meus juízos, c dc não deixar de viver

64
Pedro I uis Ribeiro de Santi

desde entào o mais fclurmcntc possivel, formei para mim


mesmo uma moral provisóna. que consistiu apenas em três
ou quatro máximas que eu quero vos participa' ”
"A primeira era obedecer às leis e aos costumes de
meu país, retendo contcntemente a religião en que Deus me
concedeu a graça de ser instruído desde a intãncia, e
govemando-me, ern tudo o mais, segundo as opiniões mais
moderadas c eis mais distanciadas do excesso, que fossem
frequentemente acolhidas cm prática pelos mais sensatos
daqueles com os quais teria de viver."
L<F, entre várias opiniões igualmenlc aceites, escolhia
apenas as mais moderadas: tanto porque sâo símpro as mais
cômodas para a prática e veróssi mil mente as melhores, pois
todo excesso costuma ser mau. como também a fim de me
desviar menos do verdadeiro caminho, caso eu falhasse, do
que, tendo escolhido um dos extremos, fosse o outro o que
deveria ter seguido. F., particularmcntc, colocava entre os
excessos ludas as promessas pelas quais se cerceia cm algo
a própria liberdade.'’ tp. 42)
‘TMào sei se devo falar-vos das primeiras meditações
que ai realizei; pois são tão metafísicas e tão pouco comuns
que não serão, talvez, do gosto de lodo rnundo, E, todavia, a
fim de que se possa julgar se os fundamentos que escolhi são
bastante firmes, vejo-me, de alguma forma, compelido a falar-
vos delas. De há muito observara que, quanto aos costumes, é
necessário às vezes seguir opiniões, que sabemos serem muito
incertas, tal como se fossem indubitáveis, como ji foi dilo ucima;
mus. por desejar cntào ocupar-mc somente com u pesquisa dil
verdade, pensei que era necessário agir exataraente ao contrário,
e rejeitar como ahsolutamcntc falso tudo aquilo cm que pudesse
imaginar a menor dúvida, a fim de ver se, após isso, nào restaria
algo em meu crcditu, que fosse íriteininiente iodtbitáveL Assim,
porque o s nossos sentidos nus enganam às VCÍCS, quis supor
que mio havia coisa alguma que fosse tal como eles nos fazem
imaginar. E, porque liá homens que se equivocam ao raciocinar,
mesmo no lucante ás mais simples matérias de Geometria, c
cometem ai paralogismos, rejeitei como falsas, julgando que
estavam sujeitas a falhar como qualquer outra Iodas as razões
que eu tomara até então por demonstrações. E enfim,
considerando que todos os mesmos pensamentos que temos
quando despertos nus podem também ocorrer quando

65
A Construção do cu na Modernidade

dormimos, sem que haja nenhum, nesse caso. que seja


verdadeiro, resolvi fazer de conta que todas as coisas que até
então haviam entrado no nteu espirito não eram mais
verdadeiras que as ilusões de meus sonhos. Mas, logo cm
seguida, adverti que, enquanto eu queria assim pensar que
ludo era foJso, cumpria necessariamente que eu. que pensava,
fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: eu peruo,
togo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais
extravagantes suposições dos céticos nau seriam capazes de a
alwlar. julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o
primeiro pnncipio da Filosofia que procurava.” (p. 46 )
% ..) compreendi por af que (cu) ern uma substância
cuja essência ou natureza consisle apenas no pensar c que,
para ser, não necessita de nenhum lugar, nem depende de
qualquer coisa matcnal. De sorte que esse cu, isto é, a alma,
pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo c,
mesmo, que é mais tãcil de conhecei do que ele e, ainda que
este nada fosse, cia não deixaria de ser tudo o que é.“ (p. 47)

A evidência do eu com o única referência estável dará origem


a todo o projeto científico. O homem passa a ter segurança quanto à
sua possibilidade de alcançar um conhecimento objetivo do mundo.
A verdade já não será procurada nas escrituras sagradas ou em
iluminações místicas. So poderá ser considerado verdadeiro algo que
tenha passado pelo crivo da observação e racionalidade humanas.

M Ú S IC A - B a c h : o b a rro c o e a f u g a

C om o passar do tempo, a música vai-se tomando mais complexa


c. por isso. faremos apenas referências brev es ao estilo. No século XVII,
surge a música barroca, ultamentc intelectualizada e estilizada. Nela, a
tendência à construção de composições mais equilihradas afirma-se. A
m ú sica sacra c a ópera, reoém-criada, serão suas maiores expressões.
M as som os obrigados, neste caso. a scr m enos fiéis á
cronologia. A m úsica que parece m elhor se relacio n ar com o
movimento que descrevemos em Descartes c a dc utn compositor
nascido já em 1685 e que criou propriamente no século XVIII: Joliann

66
Pedro l.uis Ribeiro de Santi

Sebastian Bach. Sem duvida um dos maiores com positores que já


existiu. Bach possui uma espantosa quantidade e qualidade de uhras,
em vários estilos, Dc certa form a, assim com o D escartes, ele
representa o início da M odernidade, por ter sistematizado os ons
musicais, tais com o os conhecem os e usamos hoje,
Dentro da riqueza de sua música, destaca-sc a produção de
fugas. A s fugas são um estilo no qual as vozes são rígida c
matcmatKumenie dispostas, hm geral, há uma primeira linha melódica,
chamada ponto, a qual se segue uma segunda voz cm contraponto,
ou seja, em imitação cm outro instrumento ou escala ou m verida,
mas sempre em uma relação direta dc equivalência com a primeira.
É comum que, no inicio da obra, seja apresentado um tema fechido;
a partir dai. o restante da composição realizará um desenvolvimento
lógico das possibilidades do tema. Nào aparecera nenhum tema que
não estivesse com ido enquanto possibilidade no início. Ao final, è
rcapresentado o teina. Trabalha-se com tcnsào e distensão dc forma
totalm ente controlada c o ouvinte jam ais será abandonado sem
referências; o eentio sempre reaparece'' .
Bach ainda possui outro interesse, pata nossas finalidades.
Elcécom pletam cntc diferente do m ito romântico que temos do arista,
não possuindo nada dc atormentado ou louco t l e era um humera a da
musica, um funcionário da Igreja sem afetações o que não o impediu
de criar uma obra grandiosa, plena da retórica protestante. Sc não sc
acredita cm Deus ouvindo Bach. nào .se acreditará de outra maneira11.

Questões para discussão


1. Como Descartes escapa ao ceticismo?
2. Quais são us relações entre o “cu“, tal como definida por Descartei, e o
corpo?
3. Quais são as relações entre o método cartesiano c o de Santo luácio de
Loyola?

J1 Procure ouvir dois exemplos importantes de Barroco. Um é o trecho iricíal


de "Vespro delia Beata Vergine”ée Monteverdi, extraída do CD "Banque.
Palvsfrtna e Mantewrdi, EMI Classics, 1995” . Mas ouça também o ‘'Prelúdio
e fuga em dó-menor”, extraídas do CD "Ocravo bem Tempvmdo f l i w l).
J.S. Bach, ECM. 1988 .”
21 Um bom exemplo c a “Inttvxiuçào” da Paixão Segundo São Mateus.
‘LMalhüus -Passion, Deutsche Cirammophon, 1973”

67
A Construção do eu na Modernidade

8
O EU E O N Ã O EU

A afirmação do eu dá-se á < eus Ias de uma


som bra p ro je ta d a S u rg e um a zona de
exclusão represem cível pela loucura ou pela
ntimreza animal do homem.

c
V ^ /u iiiü forma de destacar a importância que passa a ter a
afirmação do eu como único ponto dc referência para a existência humana
desde o scculo XVII. vale a pena fazermos uma breve referência á
loucura. A referência chave nesse tema é a obr.» fundamentai dc Michel
Foucault, dos anos 60 de nosso século: A historia da loucura.
De forma muito simplificada, poderíamos dizer que foi apenas
no século XVII que surgiu nossa forma atual de relação com a loucura,
num certo sentido, a loucura surgiu nesse século. Isso não quer di/cr
que, antes disso, não houvessem pessoas que alucinavam ou que fossem
descontroladamente violentas, etc. A questão c que antes do século XV11
ou em culturas nào ocidentais, a forma dc sc compreender o que se
passava com essas pessoas era diferente. Não havia o metlo que temos
hoje do louco, a idéia de que isso fosse uma doença e, sobretudo, nuo
existia a idéia dc que ele devesse scrafastado do convívio social e isolado
num hospício, fim determinadas culturas, o louco pode ter sido tomado
como um visionário: como aquele que transcende a experiência imediata,
entra em contato com outra dimensão da verdade que, ao regressar, a
comunica aos demais. Ele pode ainda ter sido tomado como um possesso
pelo demônio ou simplesmente como um bobo. ü pnncipul c observar que.
até o scculo X VJI. a peida ila ra/ão por um homem não produzia o efeito
de medo que passou então a gerar Por que surgiu o medo da loucura?
A idéia fKirece scr a seguinte: no inundo medieval, a garantia
sobre a ordem do mundo c lodus as suas certezas era dada por algo
externo ao próprio homem, ou seja, por Deus. Se um homem perdia
a razão, via coisas que ninguém mais via ou pensava o que ninguém

68
Pedro Luís Ribeiro de Santi

mais pensava; isso era um problem a dele que não afetiva aos demais.
Ele deveria estar tomado pelo demônio. As pessoas podiam até ter
medo de serem tomadas também, mas a loucura não am eaçava a
crença em Deus e. assim, as verdades aceitas. Depois do processo
que descrevemos, desde o fim da Idade Media c sobretudo depois dc
D escartes, a situação m udou totalm ente. D esde cntào, a única
garantia c ponto de referência do homem é a sua crença cm um “eu
pensante” objetivo c consciente. A partir desse momento, qualquer
coisa que pudesse pôr em questão a lucidez e a estabilidade do cu,
se ria to m ad a co m o alla m c n lc a m e a ç a d o ra . A gora é to d a a
estabilidade do mundo que está em jogo na identidade do eu. È preciso
criar mecanismos para afirmá-lo e defendê-lo.
O afastamento do louco do convívio social perece servir mais
aos outros do que a cie. No scculo XVII, nào liá qualquer perspectiva
de tratamento, trata-se simplesmente de um isolamento por medo do
contágio. Foucault mostra-nos que os primeiros hospícios foram os
antigos lep rosários remanescentes da Idade Média, o que acaba sendo
altamente expressivo da associação feita com aquele mal tcrrivcl e
contagioso. O louco será tratado como um animal, como alguém que
perdeu a alma. pois esta identifica-se com o eu e s u j racionalidade.
Nào se pode pensar em um eti louco; sc há loucura, o eu submergiu.
I embremo-nos do último trecho de H am let no texto anexo, em que
ele antecipa esta noção: se ele fez algo estando louco, c o próprio eu
que foi ofendido c nào pode ser responsabilizado. Descnha-sc
novamente aquela referência á pintura barroca com o estilo do claro
escuro: não há ta /ão relativa, ou sc c sâo c dono dc seu eu, ou se é
louco e alienado absolutamente, Rolo lugar de cxcluiSo que assume,
não há música que represente a loucura no século XVII. Com o já
dissemos, ela c dominada pela racionalidade matemática.
Concluindo, o nascimento de nossa representação moderna
da loucura c contemporâneo c correlato ao momento de maior afirmação
do eu, enquanto sujeito consciente c livre para conhecer a verdade.

TEXTO ANEXO - Thomas Hobbes

Outra referência essencial sobre o que habita o espaço


excluído ao eu é a obra do filósofo inglês Thoma» H obbes. Num

69
A Construção do cu na Modernidade

certo sentido, ele tem um projeto sem elhante ao de Descartes:


cm su a o b ra m a is im p o rta n te , L e v ia th a n (1 6 5 1 ), te n to u
sistem atizar idéias a respeito da natureza humana c do Estado.
A ssim , com o Descartes, ele acredita que o hom em deve seguir o
cam inho da racionalidade. O eu social justam ente im põe-se sobre
a natureza hum ana, que deve ser dom inada totalm ente. M as o
que caracteriza e diferencia H obbes de seus contem porâneos é a
visão “ n atu ra lista” c assu stad o ra que ele nos dá da natureza
hum ana. A seguir, apresento algum as das principais idéias dc
H obbes, re fe rin d o -m e a o u tro dc seus liv ro s, ch am ad o D o
cidadão ("D e eive"):

"(...} Pois todo homem é desejoso do que é bom para ele, c


ioge do que é mau. mas, acima de tudo, do maior entre os
males naturais, que é a morte c isso ele faz por um certo impulso
da natureza, com lauta certeza como uma pedia cai." (p. ] 0)

Hobbes traça, ao longo de Do cidadão, um perfil do que


seria o homem tora da sociedade, em um virtual estado de natureza.
Em um estado de natureza, ou seja, na ausência dc um poder
constituído ou de compromissos entre os homens que determinassem
o que pertence a quem. todo homem teria o direito de fazer e ter ludo
o que quisesse, pois a natureza “deu a cada um o direito a tudo” . E o
que o homem naturalmcntc buscaria? Como vimos na citação acima,
o homem procura o que é bom para ele, evitando o que é mau.
A idéia chave aqui é a da busca de um bem para si. O que está
cm jogo é o seguinte: desde sempre, sc disse que o homem busca o bati
ou a felicidade, não há nenhuma novidade nisso. A questão c que, como
temos visto, a idéia dc uma referencia externa que servia conto padrão
e definição do bem está desaparecendo. A busca do bem já não toma a
forma dc busca de um bem comum. Sem essa referencia externa e com
a progressiva importância atnbuida ao eu, a busca agora é a do bem
para si. Em I lobbcs, o homem é visto corno um ser egoísta, movido pela
busca do prazer c pela fuga dos perigos dc morte. Isto frequentemente
0 levará a ser violento c a entrar em guerra, iinpondo-se sobre os dentais
1 lobbcs c ainda mais especifico na seguinte passagem:

% .,) Assim cheguei u duas máximas da natureza humana -

70
Pedro Luis Ribeiro dc Santi

uma que provem de sua parte concupiscentc. que deseja


apropnar-se do uso daquelas coisas nos quais tod>s os outros
têm comum interesse -outra, procedendo da parte racional,
que ensina todo homem a fugir de uma dissolução antinatural,
como sendo este o maior dano que possa ocorrer à natureza.”
(P-6)

Alguns homens se contentariam cm um apenas o que lhes


fosse necessário, permitindo aos outros o mesmo. Outros, porém,
movidos pela vangloria, procurariam sobrepor-se aos demais, surgindo
assim inevitavelmente o conflito e a vontade de ferir. O homem teria
uma eterna inclinação pura ampliar seu p o d er no primeiro homem,
esta inclinação serviria á sua auto-defesa, à qual tem todo o direito;
no segundo, ela serviria à sua vangloria.
Hobbes conclui que, desse estado de coisas, resultaria uma
eterna guerra de todos contra todos Ncuhum homem poderia se
sentir seguro em poder manter seu bem maior: stui vida. Há, assim,
um paradoxo fundam ental entre as duas máxim as da natureza
humana; sobreviver e o desejo de apropriar-sc de tudo por vanglória.
Referi-mc acima ao estado de natureza como “virtual", pois
Hobbes nào se refere e. aparentemente, nào pensa que um tal estado
tenha existido ou possa existir, trata-se de uma natureza vislumbrada
a partir de seus contemporâneos. Lentos cm Do cididão uma série
de referências ao homem vulgar que é imprudente, procura sempre
tirar proveito dos outros, admira sistemas filosóficos apenas pelo pru/er
que extrai de suas rctoriquices, ele. Enfim, Hobbes convida-nos (dc
fato. convida-nos: há um apelo feito ao leitor) a encarar dc frente os
m otivos que levam os hom ens ao convívio social. A prim eira
conclusão fundamental é que a sociabilidade nào faz parte da natureza
humana:

“Pois aqueles que perserutarent com maior precisão as causas


pelas quais os homens se reúnem c se deleitam uns nu
companhia dos outros facilmente hão de notar que isto nào
acontece porque naturalmcntc não poderia soreder dc outro
modo, mas por acidente Isto porque, se um homem devesse
amar outro por natureza -isto è, enquanto homem-, não
poderíamos encontrar razão para que todo homem não ame
igualmeiUe todo homem, por ser tão homem q uinto qualquer

71
A Construção do cu na Modernidade

outro, ou para que freqüente mais aqueles cuja companhia


lhe confere honra e proveito.” (p. 3)

F:m seguida, investigando com grande ironia o que os homens


fazem quando se reúnem, Hobbes nos apresenta quais acredita serem
os fundamentos desta união:

"Assim esclarece a experiência a todos aqueles que tenham


considerado com alguma precisão maior que a usual os
negócios humanos, que toda reunião, por mais livre que seja,
deriva quer da miséria reciproca, quer da vã gloria, de modo
que as partes reunidas se empenham cm conseguir algum
beneficio, ou aquele mesmo eudokimein que alguns estimam
e honram junto àqueles com quem conviveram ” (p. 5)

L, mais adiante:

"{...) Devemos portanto concluir que a origem de todas as


grandes e duradouras sociedades não provêm da boa vontade
reciproca que os homens tivessem uns para com os outros,
mas do medo reciproco que uns tinham dos outros, (p. 6i

A ntes dc prosseguirm os nu exposição dc com o Hobbes


entende a construção da sociedade, gostaria de acrescentar algo ainda
sobre a natureza do homem. N o Capitulo 5 dc Do cidadão. Hobbes
discute os m otivos pelos quais o s governos de certos anim ais,
considerados políticos por A ristóteles, são bem fundados numa
concórdia ausente no governo hum ano. As co n clu sõ es são as
seguintes: nos homens, hú disputa por honra c precedência, vale dizer
vangloria, gerando ódio c inveja: nos animais, o bem-comum não se
diferencia do particular, enquanto no homem alguma pruem incncia é
condição para seu gozo; o uso da razão leva alguns homens a querer
inovar, trazendo a discórdia; os homens possuem a arte da palavra,
condição para os movimentos da mente, que, contudo, pode levar os
hom ensã guerra cm seus maus usos, os animais não sabem distinguir
dano ou injúria, não censurando assim aos seus semelhantes; e. por
Um, o poeto entre os homens não c natural com o entre os animais.
Esla análise de Hobbes é surpreendente, pois não só nos leva ã
conclusão dc que o Iximem distingue-se fundamentahnente dos demais
fVdro Luis> Ribeiro de Santi

animais políticos, não tendo contato com as leis naturais como aquelas,
com o sugere que aquilo que caracteriza a natureza humana -sua
razão, sua fala c sua ânsia por glóna- é justam ente o que o totna
inapto para a vida social. U m a paz. d u rad o u ra só p o d eria ser
conquistada por um esforço metódico da reta razão vencendo as
paixões- para apreender as leis nanirais e a constituição de um poder
centralizado c coercitivo que subjugasse as inclinações individuais,
com o verem os a seguir.
Retornando à linha que desenvolvíamos, o estado de natureza
acarreta a g u erra de to d o s co n tra to d o s, pondo em perige a
sobrevivência. Hobbes conclui então que é racional - e é, por isse, a
primeira lei fundamental da natureza: procurarm os a paz. se ela :or
possível. Caso contrário, devem os nos preparar para a guerra.
A lei seguinte é clara: é preciso que os homens renunciem
ou transfiram seu direito a todas as coisas para que se possa chegar
à paz. M esmo que não haja um Estado constituído, é possíve a
realização de acordos entre indivíduos. Transferir significa decla-ar
a outro que não se vai mais resistir a ele naquilo de que se trate. Aqui
surge a idéia, essencial cm I lobbcs. de contrato:

“O ato de dois. ou mais, que mutuamente se iransferem direitos


chama-se contrato." (Cap. 2, p 1)

Um contrato nestes moldes pode estabelecer a paz en.re


algumas pessoas, mas ccrtamcntc é insuficiente para a garantia de
uma paz generalizada. Para tanto, será necessária a constituição de
um estado civil. F. importante dizer também que esta transferencia e
contrato tem um lim ite; todo hom em preserva o d ireito à sua
sobrevivência e proteção de seu corpo. F„sta idéia é essencial, pois
deixa claro que não se trata de pensar que o homem pode deixar de
ser egoísta, mas de reafirmar que. se ele cede seu direito a tudo, isso
se deve à sua preocupação, ainda egoista. em sobreviver. Se ocorrer
qualquer ameaça neste sentido ele terá o direito (ou a obrigação?) de
quebrar o contrato, retom ando ao estado de guerra.
Airula sobre o contrato. Hobbes diz;

"(...) Mas em primeiro lugar, é evidente que o consentimento de


dois ou três não pode cornar suficiente uma tal segurança, porque

73
A Construção do eu na Modernidade

bastará somar do outro lado um único ou alguns poucos, para se


alcançar uma garantia indubitável de vitória, o que animara o
inimigo a nos atacar. Por isso é necessário, a fim de que se possa
obter a segurança almejada, que o número daqueles que
cooperam cm assistcnc ia mútua seja lào grande que o acréscimo
de uns poucos do lado do inimigo não venha a constituir tópico
suficiente para assegurar-lhe a vitória." (Cap. 5. p. 2)

Assim, para que haja a instituição do Estado. é necessário que


uma significativa maioria ou mesmo que todos os homens transfiram
seu direito natural a tudo a um soberano ou a uma assembléia, a quem
caberá a função de juiz e legislador, de definir o que é bom c o que é
mau e o qt»e cabe a cada homem. Notc-se que este soberano está dc
certa forma excluído do contrato social, pois ele não abre mão de nada
e, a rigor, como já tinha direito a tutlo, também não ganha nada. Aqueles
que realizaram a transferência, por sua vc/, submetem-se igual e
irrestritamenlc a este podei centralizado. Ao comentar a extensão do
poder do soberano, I lobbes nos assinala:

"H muito evidente, por tudo que já dissemos, que em toda cidade
perfeita (isto é naquela em que nenlium cidadão tem o direito de
utilizar suas faculdades, a seu artwtriu, paru sua próçria conservação
ou seja, onde esti aholido o direito au glàdio privado) reside um
poder supremo em alguém. o maicr que os homens tenham direito
,1confenr tão grande que nenhum mortal pode ter sobre si mesmo
um maior. E-Steè o que chamamos dc absoluto, o maior que homens
poisam transferir a um homem, (Cap. 6, p, 10)

Com a instituição deste poder, todas as inclinações individu


ais estão canalizadas e direcionadas. Numa definição de lei, que
Hobbes dá cm Leviathau, podemos compreender a idéia que ele faz
da função do Estado:

"Pois o uso das leis (que não sàu senão regras autorizadas), não
é atar a pessoas de Iodas as açòes voluntárias; mas dirigi-las c
mantê-las cm tal movimento, em que elas não se machuquem por
seus próprios desejos impetuosos ou indiscrições, assim como
bulizas são colocadas não para deter os viajantes, mas para mantê-
los em seu caminho." (leviathan, p. 388)

74
Pedro Luis. Ribeiro de Santi

Numa sintcsc: o homem, para Hobbes, é um surde certa forma


desoonectado com as leis naturais, aquilo que mais o caracteriza. Sua
razão, fala e desejo dc poder é o que mais o afasta desia natureza, cm
especial quando há um mau uso, um excesso no excrcicio destas
faculdades, Este excesso c expresso dc forma privilegiada pela busca
da vangloria, sempre definida com o um abuso, como um excesso
referente à busca de glória. Trala-sc dc uma falta dc medida na busca
dc algo a principio legitimo, um prazer supérfluo e nocivo. Este ser,
assim, clarameme inapto para o convívio social (pois viveria cm eterno
estado rle guerra), é compelido, acima de tudo pelo medo de ser morto
a umr-sc a outros homens. Para isto. abre nrâo de suas aspirações de
sobrcpor-sc aos demais com a condição dc que estes feçam o mesmo,
submelendo-se a um poder central que regulara suas açòes. Em um
Estado assim constituído, não há lugar para vontades (no sentido cm
que Hobbes usa o termo, quase sinônimo dc ações) particulares. O
Estado contem as vontades como as margens de um rio contém suas
águas, evitando que elas se dispersem.
O eu scra, assim, o dique construído para conter a natureza
humana, que busca a afirmação dc algo que escapa ao próprio eu:
uma busca de prazer sem fim, Assim, embora Hobbes tenha pontos
cm comum com Descartes, sobretudo a crença na possibilidade dc
um autodominio com pleto pela razão, seu principio éjustam ente não
desprezar a animalidade do liumein.-3

Q u e s tõ e s p u r a d is c u s s ã o
!. Lm que sentido Foucault diz que a loucura foi criada no século XVII?
2. Qual é a função do medo no inferesse do homem cm viverem comunidade,
segundo Hobbes?
3, Com qual forma de governo o Estado, tal como 1lobbcs j define, mais se
parece: a democracia, o socialismo ou uma ditadura? Pur quê?

73 Essa ‘animalidade’ foi representada niusicalmentc Procure ouvir


“/wermórfe pour l.e tnaruiçe forcè "\ dc Charpentier, extraída tfc “Gntods
ComposUeurx fiartxfue*. Charpentier. Harmonia Mundi. France”. Desta-
quc-sc. sobretudo, o humor, a dissonância e distorção i|ue antecede a imita­
ção dos animais. Nem tudo no século XVII à ordem: algo lembra ainda a
polifonia e a fragmentação da experiência.

75
A Construção do eu na Modernidade

9
O S M O R A L IS T A S D O
S É C U L O X V II
A valorização do eu livre e indeterm inado
impõe a tarefa de sua form ação. Sua educação
im plicará no a p re n d iza d o e adap ta çã o a
d e te r m in a d a s n o rm a s d e c o n d u ta . O
com portam ento humano passa a ser alvo de
uma observarão rigorosa.

termo ‘moralista’ tem um sentido próprio em nosso


contexto, Na medula cm que a referência inoral gradativamente vai
deixando dc scr a Igreja e a própria concepção dc auto-controlc
tefere-se cada vez menos a Deus, c na própria sociedade que sc
produzirão normas e mecanismos dc vigia sobre seu cumprimento.
Os moralistas são. neste contexto, pessoas dedicadas à observação
do comportamento humano e. no que diz respeito ao controle do
comportamento, que mantém alguma relação com os procedimentos
de controle a que nos referimos através dc Santo Inácio e aos manuais
de boas maneiras nascidos no século XVI. Talvez os moralistas sejam
os prim eiros a m erecerem o titulo de “p sicó lo g o s", não pelo
procedim ento científico, mas pela observação acurada sobre os
costumes e motivos humanos .
Trata-se, também, de uma série dc autores que procuraram
codificar as regras dc conduta do scr humano. O term o ainda sc
aplica a autores que denunciam as hipocrisias c farsas na ação de
muitos homens. Dois desses moralistas, para tomarmos dois caminhos
de certa forma opostos, são La Fontaine (aquele das fábulas) e La
Kochefoucauld.
La Fontaine tem uma obra conhccidissima com o fabulista
mas, erroneam ente, hoje sua obra é associada cxclusivam cnte á
literatura infantil. É certo que ele pretendia atingir adultos também.

76
Pedro Luis Ribeiro de Santi

com o seu humor eventual c a referencia a determinadas figuras


sociais o atestam. Suas fábulas costum am conter uma ‘moral da
história*, de co n teú d o ed ifican te. Ele p ro cu ra m o strar com o
com portam entos considerados bons m oralm ente {hoje diríam os,
politicam ente corretos) são recompensados, enquanto que os maus
sào punidos. Há, assim , por trás de sua obra uma determ inada
concepção de certo e errado que ele procura impor. É nesse sentido
de formação moral que ele passou a ser lido para crianças.
A utilização freqüente de animais como personagens serve
para disfarçar um pouco a crítica a determinados gmpos ou pessoas
que, por vezes, expõe ao ridículo. F.in algumas passagens, temos a
unpressào de que ele estaria, de fato. atacando as inslituiçõcs c a
natureza humana, mas no conjunto, parece que o qae ele realmente
pretendia era uma reforma ou formação moral do eu, no sentido que
temos trabalhado. Tomemos algumas fábulas.

TEX TO ANEXO - Im F o n ta in e

OS ANIMAIS ENFERM OS !>A PESTE - (Fábulas)

“Um mal que semeia o terror, um mal que o céu, em seu furor,
inventou para punir os pecados du terra: a Peste (o nome dota
eu quase não dizia), capa/ de recobrir o Aquaontc num dia,
aos animais declarou guerra Os que não pereceram, perderam
vigor, vivendo em mórbido langor. Nem mesmo de buscar o
seu próprio sustento sentiam o menor alento. Raposas c lobos,
parados, não se animavam a caçar. Onde os pombos
enamorados'7Foram amar noutro lugar Devido á melancólica
situação, tomou a palavra o leão:
'Nossos pecados, nossos vícios, sào responsáveis
por tudo isto Para aplacar u cólera dos céus, insisto que
serão necessários alguns sacrifícios, ou pelo menos um: que
morra o mais culpado, pois a história nos tem mostrado que
assim deve ser feito. Nada de indulgência: examinemos a
consciência. Eu. por exemplo, mc acuso de ser mesquinho:
devorei muito carne it inlio que nunca me fc* ofensa. Antes
fosse isso só... Já provei o sabor do pastor! Sou pecador, eu
sei, mas isto não dispensa cada qual de acusar-se, a fim de
sabermos quem tem a menor culpa, para desta sorte saber

77
A Construção do cu ria Modernidade

quem merece u morte ’


'Bondoso rei, não sacrificaremos' disse a raposa-
‘alguém tio nobre e tão gentil! Devorar um carneiro, animal
imbecil, será pceado? Ó não! Antes, presente régio, um
verdadeiro privilégio, Quanto ao pastor, fizestes hem, pois
para nós. os animais, tais indivíduos são mui prejudiciais.
Agistes, pois. como convém' Aplausos coroaram o sábio
discurso. Vieram em seguida um urso. um tigre e outras
terríveis feras assassinas: porem, seus crimes e chacinas, suas
açòes infames, seus atos malvados, não eram lidos nem como
veniais pecados...
Por fim, chegou a vez do burro, que falou:
‘Passando um dia junto ao prado de um mosteiro, o
demônio a fome mc aumentou. Senti-me dev eras tentado. E
como resistir, naquela circunstânc ia'? Quando vi, cu já h a v ia
dado uma bocada...’
‘Oh, que pecado1\ grita a assembléia indignada Um
lobo falastrão recrimina a arrogância, a estupidez daquele
maldito animal, um sarnento, de quem provinha todo o mal.
•Seu pecadilho fot julgado imperdoável. Comer erva sagrada!
Crime abominável! Que morra esse ser detestável! O veredicto
foi de uccitaçSo geral.
Segundo o teu estado, rico ou miserável, branco ou
preto, scras perante o tribunal.” (Vol, 2. p. 23-26)

A GARÇA (Fábulas)

"Embora jà fosse hora dc pensar no almoço, a garça mal voltava


seu longo pescoço, para o rio, ao longo do qual, com suas
longas pernas e seu longo bico. passeava, displicente. O
pesqueiro era rico: carpas e lúcios. Afinal, por que não lhe
importavam tào linos petiscos? É que d a. planejando opiparo
jantar, esperava a fome aumentar.
Vendo que não haviam riscos, os peixes seentrctinham
cm mil brincadeiras., até que se cansaram, desaparecendo
A fome. então, veio correndo. Onde as carpas c os
lúcios? E as percas ligeiras? Nenhum peixe que v í lhe serve
dc manjar: este não tem bom paladar, aquele é por demais
pequeno; c a carne deste aqui? verdadeiro veneno! "Fosse
cu ave qualquer, não haveria mui em comer esses peixes dc
gosto trivial. Acontece que sou uma garça-rcal c. portanto.

78
Pedro Luis Ribeiro de Sanu

exigente, altiva e reltnada.” Muito tempo ficou a esperar, c ao


final, constatando a ausência total de peixes bons ou maus,
acabou obrigada, na falta dc algo especial, a procurar urn
caracol...
Quem »c acomoda bem. acha um lugar ao sol, c quem
almeja além. pt>dc tudo perder. Se o melhor não se pode ter. o
jeito é contcntar-se com o menos ruim. Não c só para as garça*
a lição que iestes. mas se aplica igualmentc aos humanos.’
(\fel.2,p. 32-33)

*
L bastante visivel o Uxn de crítica irônica presente nas fabtlas,
mas La Fontainc ó cuidadoso, nào denuncia frontalm ente ninguém.
Essa c uma de suas diferenças com La R ochefoucauld, a quem
possamos a nos referir, que leva sua critica ao ponto crucial.
Sua forma de expressão foi a "máxima’, um texto pequeno,
cm geral de um único parágrafo que funciona com o um provérbio.
La Rochefoucauld escreve centenas delas, mas suas idéias acabam
todas retornando ao mesmo tempo: o principal m otor d a vida humana
e sua vaidade, ou seja o am or a seu próprio eu. E le sc encontra
naquela mesma linha dc Erasm o e Shakespcarc, com o alguérr que
denuncia com hum or irônico o quanto o cu c pretensioso c iludido
sobre si. C onsta, inclusive, que seu principal liv ro , M ã x in ,a s c
re fle x õ e s d iv e r s a s , cra utna das leituras favoritas d c N ict/schc, o
que o alinha em uma serie de autores não hum anistas de m uito peso.
Vale a pena divcrtim io-nos um pouco (tium certo ser tido,
rin d o de n ó s m e sm o s) com a d e n ú n c ia a r r a s a d o r a de La
Rochefoucauld.

TEX TO ANEXO - La R o c h t fo u c a u íd

SELEÇÃ O DE MÁXIMAS E REFLEX Õ ES

"Nossas virtudes são, o mais frequentemente, apenas vícios


disfarçados.
3 Por mais descobertas que sc façam no parido amor-própr o,
restam ainda terras desconhecidas.
S As puixòes são os únicos oradores que persuadem sempre.
Elas são conto unia arte da natureza cujas angras são infalíveis;

79
A Couslrução do eu na Modernidade

c o homem mais simples que tem paixão persuade melhor que


o mais eloqüente que não a tem.
10 Todos nós tenros força suficiente pat a suportar os males
do outro.
31 Se nós nào tivéssemos faltas, nào teríamos tanto prazer em
observá-las nos outros.
35 O orgulho c igual em todos os homens, há apenas
diferenças quanto aos meios e á maneira dc exprcssá-lo.
42 Nós náo temos força suficiente para seguir toda a nossa
razão.
43 O homem crê frequentemente se conduzir embora seja
conduzido; e enquanto que por seu espirito ele tende a um
fim, seu coração o entranha insensivelmente a um outro.
49 Nào se é nunca tão feliz, nem tão infeliz quanto se imagina.
72 Se o amor é julgado pela maior parte de seus efeitos, d e se
purcce mais com o ódio dn que com a amizade.
110 Nào se dá nada tão liberalmcnte quanto seus conselhos
133 As únicas boas cópias são aquelas que nos fazem ver o
ridículo dos maus originais.
135 Algumas vezes se é tão diferente dc si-mcsmo quanto
dos outros
194 As faltas da alma são como as fendas do corpo: por mais
cuidado que se tome cm curá-las, a cicatriz aparece sempre, e
elas estão sempre em pengo de reabr ir.
195 C) que nos impede freqüentemente de nos abandonarmos
a um só vício, é que temos muitos deles.
200 A virtude não iria tão longe se a vaidade nào a
acompanhasse.
207 A loucura nos segue por todo o tempo da vida. Sc alguém
parece sábio, é apenas porque suas loucuras são
proporcionais á sua idade e à sua fortuna.
218 A hipocrisia c uma homenagem que o vicio rende à virtude.
228 O orgulho não quer dever, e o amor-próprio náo quer
pagar.
230 Nada é tão contagioso quanto o exemplo, c nós não
fazemos nunca grandes bens nem grandes males que não
produzam semelhantes Nós imitamos as boas ações por
emulação, c as más pela mahgn idade dc nossa natureza que a
vergonha retinha prisioneira, c que o exemplo põe em
liberdade.
237 Ninguém merece ser louvado pela bondade se nào tiver
Pedro Luis Ribeiro de Santi

força para ser mau: ioda outra bondade e apciuu umii preguiça
ou impotência da vontade.
308 A moderação foi tomada unia virtude para limitara ambição
dos grandes homens, c para consolar as pessoas mediocres
de sua pouca fortuna c de seu pouco mérito.
3 11 Se hii homens cujo ndiculo jamais apareceu, é porque não
se procurou hem.
361O ciúme nasce sempre com o amor. mas ncr* sempre morre
com ele.
.368 A maior parte das mulheres honestas $5o tesouros
escondidos, que estão cm segurança apenas porque não são
procuradas.
377 A maior falta dc penetração não é não chígar até o fim,
mas ultrapassá-lo.
389 O que toma a vaidade dos outros insuportável, é que ela
fere a nossa.
457 Nós ganharíamos mais em nos deixar ver tais como somos,
que em tentar parecer o que não somos.
458 Nossos inimigos se aproximam mais dc verdade, nos
julgamentos que fazem dc nós, do que nós mesmos.
459 Há vários remédios que curam o amor, nws nenhum é
infalível.
496 As discussões não durariam tanto se o erro estivesse de
um lado só.
[Máximas suprimidas depois da primeira cdM,ào|
Algumas vezes é agradável a um marido ter uma mulher
ciumenta: ele ouve sempre falar do que mais ama.
18 Na adversidade de nossos melhores amigot. encontramos
sempre alguma coisa que nào nos desagrada
47 A confiança que se tem em si faz nascer a naior parte da
que se tem nos outros.
60 Quando não sc encontra seu repouso em si-mesmo, é inútil
procurá-lo em outro lugar.

A idéia é basicamente a mesma. O reconhecimento de que


o amor-próprio seria o principal motor de nossa ação. Neste sentido,
o eu não seria neutro, com o pretende D escartes, mas sem pre
interessado e desejanle. Tal concepção coloca cm cheque o projeto
cientifico. Adiante veremos que a crítica dc I -a Rochelbucault também

81
A Construção do cu na Modernidade

teve ura prosseguimento nos séculos seguintes.


Em conclusão, penso que podemos considerar o século XVII
como o primeiro c aquele em que mais é apresentado como tema a
afirmação e eonstrução do eu, quer para levá-lo a seu ponto mais
alto, quer para denunciar esse novo soberano. Nos séculos seguintes,
o eu tomará aspectos mais refinados e complexos e. gradaiivamente,
sua soberania será posta cm cheque.

Qurvtõcs para discussão


1. Quais seriam as condições que tulvc/ tenham facilitado o surgimento no
século XVII dc filósofos que se tornaram conhecidos corno
•‘moralistas”?
2. Como o discurso crítico pòe em risco o projeto de Descartes?
3. Porquê as 'Máximas' dc La Rochcfoucauld nos fa^em rir?

82
Pedro Luis Ribeiro de Santi

10
O P Ú B L IC O E
O P R IV A D O

O eu, entendfdo como totalidade, passa a ser


visto comi> uma exterioriàade. O que fora
excluído, emerge como mundo intimo.

AJ L v partir du disposição do ”cuMcom o centro do mundo


no século XVII, com frcqiicncia considerado como o século da
inauguração da Modernidade, derivaram-se diversos cam inhos da
form ação de nossa experiência atual. Acom panhar todos estes
caminhos ao longo dos séculos seguintes c quase impossível, de forma
que só poderemos apontar algumas das tendências que conduziram
i\ Psicologia. Quase qualquer opção por autores parecerá incompleta
e mesm o arbitrária, seguindo as preferências pessoais do autor.
Procuremos dc todo o modo desenvolver alguns destes fios.
Talvez seja prudente partirm os dc um dos tem as m ais
clássioos na história do século XVIII; o da relação entre a.s esferas
pública e privada. C om o vimos nos capítulos anter ores, no século
XVII. o eu passou a scr tomado com o centro do mundo: a própria
essência do homem foi identificada á sua racionalidace c consciência.
O eu pòde acreditar-sc com o sendo a totalidade da experiência
humana; tudo que não se identificasse a ele serie tom ado como
loucura. Não era admissível a referencia a algo que habitasse um
espaço fora do eu. assim como na pintura barroca a figura impunha-
se na técnica do “claro/escuro", restando um vazio representativo no
fundo.
No scculo XVIH. as mais diversas fontes nos sugerem que
este espaço excluído ao eu passou a scr gradativam m te iluminado.
O eu deixará de ser tomado como totalidade e, cada vez mais, tomará
o aspecto de uma apresentação social, uma auto-imazem cultivada e

83
A Construção do eu na Modernidade

civilizada que encobre, no entanto, algo mais que babita c constitui as


pessoas e que elas procuram m anter cm segredo.
Este será o espaço da privacidade, que só foi tom ado possível
desde que a crença cm um Deus onipresente c onisciente deixou de
dominar o experiência do homem ocidental. A privacidade abarcará
todo um universo de desejos e pensamentos anti-sociais, que devem
ser ocultos pela etiqueta e pelas boas maneiras.
A M odernidade assiste a uma dessacrali/ação do mundo e á
im posição dc valores cada vez m ais pragmáticos e fundados no
homem. Hobbes já abrira este espaço para a privacidade no século
antenor. ao afirm ar que o que interessa ao Estado é m anter o controle
sobre as ações dos homens: seu pensamento pode permanecer em
total liberdade.
Dai derivam várias imagens caricaturais sobre o este século.
Ao mesmo tempo em que cie é considerado o século das luzes, com
os desdobramentos do racionalismo cartesiano, ele é também o século
do a rtifício . Por ex em p lo , as ro u p as da co rte são altam en te
rebuscadas, cheias de adereços c armações, de forma que dificilmente
pode-sc saber com o seria o aspecto real do corpo que o veste.
Floresce também no período cada vez mais a etiqueta e a multiplicação
das regras dc conduta que, cm geral, servem para que se estabeleça
uma hierarquia e uma precedência entre as pessoas.
Na H istória da vida p riv a d a (Vol. 3), há um série dc
exem plos hilariantes de como. cm todos os níveis sociais passa-sc a
distinguir estas esferas e o preço que sc paga pelo dc&respcito a esta
delimitação. Conta-se, por exemplo, sobre a asouade, uma espécie
dc festa popular de execração pública destinada u punição daqueles
que deixam vazar sua privacidade: um certo hom em que estava
bebendo com am igos c repreendido em público e levado paia casa
aos tapas por sua mulher; no dia seguinte, cie é retirado de casa á
força, é montado num asno com vários enfeites degradantes e desfila
pela cidade com o alvo da humilhação da comunidade -se ele tivesse
se limitado a apanhar da mulher na privacidade de seu lar. não haveria
problem a... F. preciso saber m anter cm segredo determ in ad o s
prazeres.
O romance As ligações Perigosas, de Chaudcrlos de L ad o s
(que ganhou uma versão cinematográfica brilhante cm 1987), talvez

84
Pedro lu is Ribeiro de Santi

represente ao m áxim o o d istan ciam en to entre, de um lado, a


construção c a manutenção de uma imagem social e. de outro, o
universo perverso oculto sob as máscaras. Seu formato é o de urra
troca de cartas, o que é um artificio com um na época assim com o o
do d ián o intim o-, dando ao leitor a im pressão pra/erosa de estar
invadindo um território privado e, assim, proibido. O autor afirm a que
as cartas publicadas são verídicas e que sua publicação destina-se a
uma “ finalidade didática": mostrar com o acabam as pessoas más.
Tudo isso soa com o um disfarce do autor para amenizar a ironia com
que descreve os jogos de poder e vaidade únicos valores presentes
na corte.

T E X T O A N EX O - D<motien-AIphon se-F rançois Sa d e

A referencia a este romance nos leva a evocar outro autor


do século. Donatien-A1phonse-François Sade. cuja obra revela o fim
da p o ssib ilid ad e de b u scar um a fundam entação para a m oral
apoiando-se na fé ou na crença cm um Deus transcendente. Com
isto, desmascaram-se também alguns aspectos da natureza humana.
Detenhamo-nos por algum tempo em uma observação sobre
o pensamento de Sade.

"De sua sexualidade ele fc/ uma ética, esta ética ele manifestou
cm uma obra literária; c por este movimento refletido de sua
vida adulta que Sade conquistou sua verdadeira
originalidade"2*

O século XVlll c conhecido com o o século das luxes, o século


em que a razão, livre de qualquer cocrção mora! ou religiosa, estendeu-
se so b re todo e q u a lq u e r o b je to , in c lu siv e sobre si m estna,
interrogando-se sobre seus limites enquanto pertencente, com o outro
fenômeno qualquer, ã grande referencia do scculo: a natureza. Neste
quadro, Sade aparece como um homem do seu tempo - a não ser que
se considere que ele tenha levado os princípios iluministas a um al
ponto, ter “esticado a corda” em tal medida em seus questionamentos
à m oral, que ele tenha rom pido com este quadro de referências

23Simonc de Bcauvoir, p. 15

85
A Construção do eu na Modernidade

prqjeiamlo-.sc nos séculos seguintes como um pensador ainda original.


De inicio, é importante esclarecer que esta análise da obra
dc Sadc é extrumumente limitada, c que tomaremos apenas duas dc
suas obras: La phitosophie dons le boudnir (A filosofia na alcova)
e Les iafortunes de la vertu (O s infortúnios da virtude).
La philosophie dans le boudoir é uma obra pedagógica
Trata-se de educar uma jovem, certam ente bem dotada e disposta, a
percorrer os m elhores cam inhos para a obtenção dc prazer. Nas
primeiras lições, os instrutores deparam-se com uma certa resistência
da aluna que antepõe sua educação anterior, os princípios morais que
lhe foram transmitidos por seus pais (note-se que o pai de Eugéníe,
nossa heroina, concordou com sua reeducação, num bom exemplo
da hipocrisia que Sadc sempre denuncia). Cada principio moral
apresentado por Eugénie é imediatamente desmontado por Dolmanoé,
seu principal mestre. Assim, no decorrer do texto, as idéias de que
assassinato, incesto, estupro, assalto ou qualquer forma de satisfação
sexual devam ser evitados em nom e da m oral acabam por se
desmanchar diante de uma argumentação implacável que caminha
sempre no mesmo sentido. Em um ecrto ponto dc sua doutrinação.
Eugénie pergunta se, então, não haveria diferença entre o bem e o
mal. A resposta de Dolmancc c definitiva:

“'Ah, não duvide disso, Eugénie, estas palavras dc vicio e


virtude nos dão apenas idéias puramente locais. Não há
nenhuma ação, por niais singular que vocé possa supô-la.
que seja verdadciramente criminosa, nenhuma que sc possa
realmentè chamar virtuosa. Tudo está em razão dc nossos
costumes e do clima que habitamos, o que é crímc aqui
frequentemente é virtude a umas cem léguas de distância, e
as virtudes de um outro hemisfério poderiam bem ser crimes
para nós." (p. 79)

Assim, para Sadc, todo princípio moral universal é um a


quimera. Não existe um juiz transcendente que sustcnic uma conduta
necessária. Se a virtude se apoia na religião, ela não se apoia em
nada, desde que Sade sustenta que Deus não existe. A única instância
a que sc pode apelar c a natureza, à qual o homem pertence, como
qualquer outro animal, e a quem mesmo u morte não importa, pois

86
Pedro Luis Ribeiro de Santi

esta não passa de uma transm utação que não cessa de se operar.
A felicidade já não pode ser buscada em uma referência
externa, mas nos “caprichos da imaginação", contra os quais nenhum
lim ite possui legitim idade para im por-sc. Em conclusão á >ua
argumentação, Dolmancc diz:

“Fôda. Eugénic, Fòda pois, meu caro anjo, teu corpo pertence
só a você; não ninguém akm de você do mundo que tenha o
direito de gozar tklc c o lazer gozar como bem tc pareça." (p. 84)

Antes de abordarmos com um pouco mais de calma a questão


da imaginação, gostaríamos de levantar uma questão que poc em
dúvida a interpretação que demos á abordagem da moral por Si.dc.
Concom itantem cnle a esta crítica de Sadc a qualquer moral, surge
um “elogio ao crim e", com o no seguinle trecho;

“Esses princípios c seus gostos são levados por mim alc c


fanalismo, e o fanatismo c a obra das perseguições dc meus
tiranos (. ..) O crime é a alma da lubricidude. Que seria um goze
que não fosse acompanhado pelo crime9 Não é a idéia dc
objeto da libertinagem que nos move, é a idéia do maP.M

É um tanto desconcertante nos depararmos com a idéia de


crime depois dc o próprio Sade ter demonstrado a ausência de critérios
para pensarmos cm vício ou virtude. Haveria, ao contrário do que
viemos desenvolvendo ate aqui, no “ Fazer o mal” um preceito m irai
de SadcV Não parece ser possível, neste momento, responder dc
modo mais definitivo, mas gostaríamos dc apontar duas linhas dc
idéias que poderiam nos conduzir a uma solução para esta quesão:

1. A prim eira possibilidade eslá na própria citação acim r: na


idéia de que o fanatismo de Sade seria fruto da perseguição de seus
tiranos, poderíamos pensar que o elogio ao crim e se inscreve nào
como princípio moral transcendente, m as com o resistência a uma
determinada configuração social:

MCarta de Sade a sua esposa, citada por Simone dc Bcauvoir, p. 40.

87
A. Construção do eu na Modernidade

“Em uma sociedade criminosa, « preciso ser criminoso.’1(p, 58)

2. Uma outra possibilidade lesa à idéia dc que para Sade


toda a sexualidade seria, em si. crime, desvio, ou, com o diz Simone
de Beauvoir:

“Sade è o único a descobrir a sexualidade conto egoísmo,


tirania, crueldade; cm um instinto natural, ele apreende o
convite ao crime." (p. 101)

Apenas para concluir este ponto, gostaríamos de lembrar


que cm “ie v inforturtes de la vertu ", Sophic (Justinc), ao ouvir os
conselhos dc La D ubois -o u tra de suas ‘m e stras’- p ara que
abandonasse sua virtude inflexível, argumenta que isto não poderia
ser cobrado dela na medida em que esta é sua natureza. La Dubois
não consegue cootra-argumentar...
Retomando ã linha que seguíamos, gostaríamos de nos voltar
agora para ã questão da imaginação e da fantasia cm Sade. Cremos
poder dizer qnc Sade acredita que o homem só pode scr feliz seguindo
sua imaginação e que cie realiza uma separação clara entre fantasia
(que tomaremos com o sinônimo de imaginação) e o objeto em que
ela se realiza. Num dado momento, ao discutir o amor, Dolmancé
rverimina-o COtno uma prisão e afirma que tiào há amor que resista a
uma boa reflexão. Além disso, insiste cm que o objeto dc am or pode
ser substituído indefinidamente, por vezes com vantagem, mostrando
assim um certo desprezo por este. Já a fantasia ocupa um lugar
privilegiado na obtenção de prazer. Por exemplo, quando Madame
de Saint-Ange relata a forma de prazer que mais agradava a seu
idoso m arido. Eugénie cspanta-sc, qualificando-a de “ fantasia
extraordinária", ao que fXMmancc responde:

“Nenhuma pode scr qualidade assim, minha cara. todas estãu


na natureza; cia se satisfez criando formas, diferenciando seus
gostos. Conto suas figuras, e nós não devemos mais nos
espantar da diversidade que ela colocou em nossos afetos
(...) A imaginaçãoé o aguiIhào dos prazeres; naqueles destas
espécies, cia regula tudo, ela c o que move tudo; ora, não c
através dela que se goza?” (p. 101)

88
Pedro 1 üis Riticiro de Santi

fi tia fantasia que a particularidade de» apetites se apresenta,


ela é a "natureza" de cada um. E a fantasia tornada ato que produz o
gozo. Depois deste quadro dcsilusor pintado por Sade. poderíamos pensar
que ele pregasse uma res olução nos costumes, já que não liaveria mais
qualquer fundamento legítimo para a moral. Mas não é isto que acontece.
Sade diz que, se saíssemos por ai mostrando nossos desejos pelo inundo,
seriamos presos ou mortos, o que seria estúpido. Ele prega então uma
hipocrisia social: quando em público, devemos jogar o jogo social, pigar
impostos, cum prir com nossas obrigações civis c mantermos um
comportamento adequado a nossa cultura, porem, quando retirados à
vida pnvada, não haveria qualquer motivo para que abríssemos mão de
qualquer um de nossos desejos. A alcova 6 o lugar preservado para o
crime. O pensamento de Sade é amoral por desqualificar toda tentativa
de fundamentar um critério absoluto dc moral, depois dele, a moral passou
a ser fundamentada etn valores propriamente ligados á convivência
humana.
Luís Roberto Mon/ani, a partir de seu interesse pela obra de
Sade -autor que certamente laz parte da vertente critica busca retirar o
estigma de aberração que pesa sobre sua obra e considera-a como a
expressão máxima de outra corrente da ModemKkufe. que nuoa carteaana.
Segundo Mon/ani. "o homem da Modcnikladc c dominado por seu desejo"
O homem sempre buscou o bem para si: na Idade Média, o bem era
identificado com i» ideais religiosos. únicos para todos Com a perda destes
valores (a que já nos referimos várias vezes no decorrer deste trabalho) a
busca do bem perde seu objeto absoluto e passa a scr a procura de um
bem fxiro si e ela toma a forma de busca pelo prazer.
Esta seria uma outra via para entender o nascimento do
individualismo e da valorização absoluta do ’c u ‘. Mas, além disso,
por esta via afirm a-se a presença de lima constante inquietude no
homem, que o impele a buscar satisfação nos objetos mais variados
indefinidameiitc, Starobinski toma este movimento de busca pelo
prazer como uma celebração da liberdade humana (no século XVIII).
M on/ani. no entanto, recorrendo de Hobbes a Sade, mostra-nos que
o homem não é dono deste desejo, sendo pelo contrário atravessado
por peste. Daria-se; então, na Modernidade, o cm hitc entre estas
ordens de dissolução e as constantes tentativas de apropriação pelo
‘eu’, que mais desejaria não desejar.

89
A Construção do eu na Modernidade

M Ú SIC A - M ozart

Penso que esta exposição entre mundo público e mundo privado


pude scr ilustrada pela obra dc Mozart. Como sc sabe, sua obra é
extremamente ampla e variada, sobretudo se considerarmos que ele
morreu com pouco mais do que 30 anos. Sua biografia |á é marcada
desde a infância pelo caráter artificioso; desde os cinco anos de idade,
componha e sc apresentava por toda a Europa como um prodígio,
cap a/ de tocar mesmo de olhos vendados.
Mozart trabalhou para a corte e devia fazer uma música que
a agradasse. Boa parte de sua obra é com posta de peças leves,
gostosas, relaiivamcnte fáceis de serem memorizadas e reproduzidas
A té hoje, ele é um rios músicos clássicos com ternas mais conhecidos.
Esta música deve ser acessível tto gosto do leigo (dizem que a música
de Mozart pode desfrutada cm diversos níveis de profundidade, do
leigo ao especializado). Cito, com o exemplo, talvez a peça mais
conhecida de todo o repertório clássico , a P equena seren a ta
norurna, cujo tema inicial, oscilando entre a tônica e a dominante,
produz um impacto imediato, sendo sempre utilizada em concertos
de divulgação para um público não especializado.3*
Por outro lado (e Mozart tem vários), sua obra possui também
momentos de inspiração profunda e densa, quase romântica. Estas peças
já exigem uma concentração maior do público c não se prestam tão bem
a concertos cm parques. Nelas, transpira a vida mais intima de Mozart.3*’

Questões para discussão


1 Qual é o papel da distinção entre mundo» público c privado na formação
da subjetividade moderna?
2 Sade c imoral (vai contra a moral dominante ►uu amoral (não possui nenhum
critério moral)'*
3 A partir dc Sade, que idéia pode scr feita sobre a natureza humana?

35Ouça 0 Primeiro Movimento da “Pequena serenata noturna", no CD "Eme


kieine Nachlmusik, Deutsche Grammophon, 1983"
* Como exemplo, pode-se ouvir a eenada ceia com o fantasma do Comendador,
na ópera "Don Ciiôvanni" (no CD "Don Giovami* Ücrlincr Ptiilamvoniken.
DeuLschc Grantmopiion, 1986"). Nessa cena, temos três cantores cm uma ária
cheia de drarnaUcidade, onde Doti Qiovami cnthmta o comendador que o
assassinara no início da ópera, tendo vindo para lcvá-lo para o inferno.

90
Pedro I.uis Ribeiro dc Sanli

11
TEM PESTADE E
ÍM P E T O :
O R O M A N T IS M O
O iluminismo, que reconhecia nu razao a
essência do homem c na m'-tura sua maior
realização. recebe a critica tio romantismo; a
essência humana seria sua natureza
puiuonal. surgindo a ânsia pelo retorno ao

A,
mundo natural

-potitamos, no inicio da parte anterior, fo r que meios o


século XVIII passou a iluminar o espaço excluído ao cu. Ao longo do
século, surgiram tendências de pensamento que chegaram mesm o a
inverter a relação de importância existente, privilegiando justumente
o que estava excluido.
Uma das imagens mais recorrentes desse século foi a de
que o real c encoberto por um véu. Impòe-se a necessidade de
desvclá-lo ou revelá-lo. O eu passa cada vez mais a ser tomado
com o uma máscara que encobre a verdade. A vida social urbana c
civ ilizad a- será acusada de afastar o homem de sua verdadeira
natureza. Este último termo, aliás, é essencial na compreensão do
Romantismo: ele representa utna espécie de saudosismo de um estado
natural perdido pelo homem, que seria preciso reencontrar.
A natureza u que se refere, é preciso dizer, e altam ente
idealizada. Q uando vemos pinturas clássicas do período, sempre
podemos contemplar uma natureza amena e aeolhcéora: os passeios
pelo campo parecem se passar sempre num clim a ideal, ensolarado
c sem insetos. A referência óbvia, ainda que implícita, c a d a natureza
entendida com o o jardim do Éden.
Neste sentido, o Romantismo nasce como um movimento dc
critica à Modernidade, ou ao menos como uma critica ao I luminismo.

91
A Construção do eu na Modernidade

com seu exacerbado racionalismo. Recusando o princípio cariesiano


segundo o qual o homem sc caractcn /a oomo um ser pensante, o
romantismo fez ressaltar que a essência humana está em sua natureza
passional. F.sse movimento, que estende do final do século XVIII a
meados do XIX, apresentará uma idéia de natureza já não tio amistosa:
da literatura de Goelhc à pintura dc Iiuner. podemos assistir a uma
natureza violenta, que ultrapassa em muito a potência da vontade
consciente. O eu é invadido por aquilo que procurava excluir.
A separação entre as esferas pública e privada levava à
concepção dc que aquilo que m ostramos socialmcnte é o que tentos
dc “bom”, do ponto dc vista do convívio social, enquanto que o privado
envolvia a idéia do que era cxcluido à expressão pública, algo
potência Intente anti-social. O universo “criminoso" dc Sadc não deixa
dúvidas a este respeito. M as há uma contrapartida; não é difícil
perceber que, neste mesmo sentido, aquilo que mostramos sociaünente
possa ser considerado “falso", por oposição àquilo que escondemos
e que representaria nossa verdadeira natureza. O que é excluído do
eu pode afigurar-sc como o mais legítimo e puro em nós.
O Romantismo acabará por realizar dc fato um a forte crítica
á racionalidade, sem escapar ao campo da Modernidade, no entanto.
A figura de um eu profundo, interior, puro, aquém da corrupção da
influência do meio: a crença ainda em unia individualidade absoluta,
irredutível a qualquer explicação e controle, acaba por se mostrar
um modo a mais dc afirm ar um sujeito com o fundamento.
O titulo deste Capitulo c uma referência a um movimento
cultural c artístico do final do século X VIII, do qual Goethc fez parte,
o Siurm und D rang ("tem pestade e impeto"). Quando pensamos
b oje em ro m an tism o , em geral vem -n o s à m ente im agens dc
delicailcza e suavidade amorosa; o título do movimento alerta-nos
que o romantismo” está muito longe disso.
Para p a ssarm o s um a id é ia dc com o se ap re se n to u o
romantismo, faremos uma longa referência a uma das prim eiras
novelas de Goetlte, Her/her.

7 O romantismo tem as mais diversas fomtas, sendo, na realidade, um titulo


que se refere a expressões ha>tiuitc distintas. Certamente, ao kmgo do século
XIX. um de seus formatos seiá este delicado, de seu sentido mais usual.

92
Pedro Luis Ribeiro de Santí

TEX TO ANEXO - Johunn W olfgang Goethe

Johann Wbligang Ooethe nasceu em 1749 c morreu cni 1K32.


F.lc c considerado o m aior escritor da língua alemã c sua obra é
muito extensa, sendo dividida em vários períodos. Werther pertence
às suas obras de juventude foi escrito em 1774—c possui um forte
com ponente autobiográfico. Seu formato também c o de troca de
cartas. Em alguns trechos, trata-se de um diário intimo, causando no
leitor, uma srez mais, a impressão de cumplicidade. Através cesse
texto, poderemos ter contato com a sensibilidade romântica c perceber
com o m uito do que nós pensamos hoje sobre a relação amorosa tetn
conto modelo o romantismo.
A situação inicial c a de um jovem culto da cidade que se cansa
dc sua vida urbana c busca refúgio na natureza. Já se trata de uma
disposição romântica. Ele se refugia na fazenda de um amigo, que o
recebe de bom grado. Ao longo dc toda a história c k sc correspwidc
com um amigo da cidade. Wilhclm. ao qual confidencia suas idéias.

W ERTHER

•Maio. 22
A vida bumanu não passa de um sonho. Mais dc uma pessea
já pensou isso. Pois essa impressão também acompanha-mc
por toda parte. Quando vejo os estreitos limites onde sc achaii
encerradas as faculdades ativas c investigadoras do homem,
e como todo o nosso labor visa apenas a satisfazer d o s s ís
necessidades, as quais, por sua vez, não têm outro objetivo
senão prolongar nossa mesquinha existência; quando verifico
que o nosso espírito só pode encontrar tranqüilidade quanto
a certos pontos nossas pesquisas, por meio de uma rcsignaçàs
povoada de sonhos, como um presidiário que adornasse de
figuras niulticolondos c luminosas perspectivas as parede da
sua célula... tudo isso, Wilhclm, faz-mc emudecer Concentro-
me e encontro um mundo em num mesmo! Mas, também ai.é
um mundo de pressentimentos e desejos obscuros e nào de
itnagens nítidas e forças. Tudo flutua vagamente nos met s
sentidos, e assím. somndo e sonhando, prossigo na minha
viagem através do mundo.'" ip. 19)

Poderíamos nos lembrar, aqui, de 1lamlct, com seu desencanto


A Construção do eu tu Modernidade

com relação ao mundo c o desenvolvimento de um sentido profundo


dc interioridade. Este elemento alinha o romantismo com o critica ao
humanismo e sua crença no valor c na liberdade do homem.
Pouco tempo depois, Wcrlher escreve, comovido:

“J u n h o , 16
A razão por que eu não lhe tenho escrito? E é você que mo
pergunta, você que se incluí entre os sábios? Pode bem
adivinhar que sou feliz, c mesmo... Em duas palavras, conheci
alguém que tocou o meu coração. Eu... cu não sei o que diga. ,
É um anjo! . . . Bolas! Já sei que todos dizem isso da sua
amada, não é verdade? Entretanto, c-me impossível dizer a
você o quanto cia é perfeita; nem por que c tão perfeita. Só
isto basta: d a tomou conta de lodo o meu ser. (...)
T udo quanto acabo de dizer não passa de pobres abstrações
que não dfio a menor ideia da sua individualidade ’ tp. 26-27)

Quando seu amigo propôs a visita a uma fazenda vizinha, já


havia avisado a Wcrthcr que ele não se devia apaixonar, pois a moça
já era noiva, o que então lhe deixara indiferente.
Como já seria dc sc esperar, a impossibilidade impõe uma
predisposição a uma atração irresistível:

"Achei original tudo quanto ela disse, vendo cm cada palavra


novos encantos, novos raios de inteligência iluminar sua
fisionomia, que transbordava de contentamento à medida que
cia sc sentia compreendida por mim.’- (p 30)

Tendo a oportunidade dc dirigir-sc a ela em uma dança de


salão, ele procura conferir a situação do noivado, t i a responde com
clareza estai noiva de um rapaz cham ado Alberto. Embora ele jã
tivesse sido avisado sobre isto, acaba por cnrolar-se nos passos da
dança momentaneamente, recuperando então o controle.
A partir daqui, grndativam cnte W erther vai perdendo o
controle sobre si. A principio, procura m anter-se próximo a Carlota.
mesmo sabendo que seu sentimento não é correspondido. Ela. por
sua vez, parece gostar de ter um rapaz tão interessante - e que,
sobretudo, jamais sc tom a inconveniente- a lhe fa/cr com panhia
durante as ausências do noivo.

94
Pediu l.ui> Ribeiro de Santi

Com o cm de se esperar, ele com eça a alim entar fantasias


de reciprocidade c nos dá uma verdadeira aula sobre a idealização
do objeto amoroso e sobre a construção do eu:

“Nilo, eu nuo me engano! L i nos seus olhos nega* um verdadeiro


interesse por mim c pela minha sorte. Sim, eu sinto que meu
coração pode crçr que ela... Ousarei, poderei pronunciar estas
palavras que resumem o paraiso?... Eu sinto que ela me ama!
Ela meara»! F quanto eu me valonzo a meus próprios olhos, quan­
to... eu pusso dizer isco a você, que saberá comprcaidcr-mc. .quanto
eu me adoro a inim mesmo, depois que ela me ama! (...) E, no
entanto, quando ela, com tanto calor e afeto, fala do seu noivo..,c
como se eu fosse um homem despojado de todas as honranas
e dignidades, e ao qual arrebatassem a prupna espada, (...)
Ela me c sagrada. Todo desejo emudece em sua
presença. Não sei o que sinto quando estou junto dela; c
como se toda a minha alma estivesse subvertida.” (p. 48-9)

Numa conversa com A Iberto, que ele reconhece ser um rapa/


razoável, apresenta utn verdadeiro manifesto romântico:

” Oh! essa gente razoável! -exclamei eu. sorrmdo. - Paixão I


Embriaguez! Loucura! F. vocês se conservam tào calmos, tãc
indiferentes, vocês, os homens da morai! Esminram o bêbado;
repelem o louco, cheios de asco; c passam adiante, como c
sacrificudor. agradecendo a Deus, como o fariseu, por nãc
haver feito vocês iguais a um desses desgraçados!.,. Tenho
me embriagado mais de uma vez, as minhas paixões foçarair
sempre pela loucura, c disso não me arrependo, porque se'
assim cheguei a compreender, cm uma certa medida, a razão
por que, em todos os tempos, sempre foram tratados como
cbnos c como loucos os homens extraordinários que realizarani
grandes coisas, as coisas que pareciam impossíveis... Mas,
ainda nu vida ordinária, nada mais intolerável do que a todo
momento ouvir gritar, sempre que um homem pratica uma açào
intrépida: nobre e imprevista: "Esse homem está bêbado! E
um louco! One vergonha, ó todos vocês que vivem em jejum'
Que vergonha, ó homens sensatos!” (p. 59)

Mcrgulliado em sua paixão, Wcrther percebe a fragilidade do eu:

95
A Construção do eu nu Modernidade

"Que é o homem, esse semi deus tão louvado? Não lhe faltam
as forças precisamente quando !hc sào mais necessárias?
Quando d e toma alento na alegria, ou se abisma na dor, não
sc imubiliza em ura ou em outro sentido e retoma a banal e fna
consciência de si mesmo, no momento exato cm que aspira a
pcrdcr-se na plenitude do infinito?” (p. 119)

Sc, inicialmentc, Werther se sentia feliz pelo simples fato de


sentir sua paixão, na medida em que o tempo passa e este sentimento
não encontra expressão, ele passa quase que a intoxicá-lo e nasce um
s e n tim e n to p ro g re ssiv o de am arg u ra. A gora W erth er so fre
iniensamente c procura fugir deste sofrimento distanciando-se dc
Carlota. Como era previsível, ele não agüenta a distância por muito
tempo, mas quando volta, clcjá perdeu a possibilidade de se controlar
e passa a dar alguns vexames públicos na presença dc Carlota, chorando
ou levantando c partindo bruscamente de algum encontro social.
Km um último encontro crucial com ela. ao declarar-lhe pela
primeira vez ciaram ente seu amor, ouve a seguinte “interpretação” -
bastante aguda, por sinal que lhe deixa absolutamcnte ofendido:

“-Apenas um momento de sangue-frio, Werther! Você não


sente que é tudo por sua culpa, que você se perde
voluntariamente? Por que hei de ser eu, Werther, eu. que
pertenço a outro, precisamenfe eu? Temo, temo muitíssimo
que seja apenas u impossibilidade dc mc possuir que faça
você desejar-me com tanto ardor!” (p. 136)

A partir deste momento, ambos concordam cm que não mais


se devem ver. Werther, percebendo que nào possui mais controle
sobre si. decide tom ar a última atitude que ainda parece ter sob
controle: suicidar-se. Klc planeja incluir Carlota no suicídio, solicitando
as pistolas dc caça de sua família c, afinal, dc fato sc suicida. Algumas
cartas são deixadas para amigos e. è claro, para Carlota:

MF. a última vez! É a última vez que uhro os olhos. Ai dc miin,


eles nào verão mais o sol. que sc cscomle aguça nas nuvens
de um céu sombrio... Tomai luto, ó natureza, porque o vosso
filho, 0 vosso amigo, o vosso amante aproxima-sc do fim Ó
Carlota. só às rmpcc.ssóes confusas dc um sonho è comparáveL.

96
Pedro Luis Ribeiro dc Santi

talvez, o sentimento que sc experimenta ao dizer. "Lis a minha


derradeira manhã!” A derradeira! Carlota, esta palavra
derradeira, náo a entendo. Não estou aqui em todo o meu
vigor? E amanhã, vcr-mc-ào estendido sobre a terra. Morrer!
Que é isto? Veja, c como sc sonhássemos quando falamos da
morte, Vi momer muita gente, mas a humanidade c tão limitada
que se mostra incapaz de conceber o começo c o fim da sua
existência. Neste momento, ainda me pertenço! Pertcnço-lhc,
também, 6 ntinha bem amuda. E, bastará um
instante separados, perdidos um para o outro,, para sempre,
talvez . . , Não, Carlota. não!.. Corno poderei ser aniquilado?
Como poderá vocc scr aniquilada? (... )
Não estou sonhando, não estou delirando. Ao
aproximar-me do túmulo, meus olhos vêem niais claro. Nos
subsistiremos! Nós nos tomaremos a ver! Verei sua mãe; sim,
eu verei, eu a encontrarei, abrirei nveu coração diante dela! Sua
mãe! Aquela dc quem você é a perfeita imagem,” (p. 152-4)

A ssim , após a d isso lu ç ã o do eu, surge a fan ta sia Je


dcspcrsonali/ação em um reencontro místico em um plano superior
e mais puro. Trata-se de um reencontro com a origem, figurada na
referência á mãe de Carlota.

O honrem romântico crê-se único, suas experiências mais


profundas parecem-lhe incomunicáveis e radicalm ente individuais.
Desta concepção dc experiência huniana. nasce a idéia de ‘gênio’,
entendido com o um su jeito esp ecial m ente dotado dc algum a
característica; esta não pode scr aprendida ou transm itida, n as
pcrtcncc à essência mesm a deste mdividuo. Trata-sc de um dom, um
presente (cm inglês, o termo gr/?, traduz os dois sentidos). Fslc homem
não tem opção a não scr viver para a realização de seu destino.
Talvez possamos exem plificar a idéia de gênio recorrendo a
um dos prim eiros músicos românticos; Beethoven.

MLISIC A - B eethoven

A música c a biografia dc Beethoven trazem -nos fo re s


A Construção do cu na Modernidade

elementos românticos Consta que foi ele que criou o mito do maestro
atormentado, autoritário e totalinentc mergulhado na música diante
da orquestra. Ainda cm Mozart, as luzes do teatro permaneciam
acesas d u ra n te a ex e c u ç ã o da m ú sica c m esm o alg u m as
manifestações mais ruidosas da audiência eram admissíveis. A partir
de Bccihovcn, as lu/cs são apagadas e exige-sc o mais absoluto
silêncio.
O fato de que Beethovcn, um dos maiores compositores
existentes, tenha perdido gradaiivamente sua audição cl»ega a uma
tragtcidade patética. Esta tragicidade c acentuada pelo fato dc que
ele tetiha continuado a com por c de forma ainda mais intensa. Sua
música parece expressar dc forma direta o tormento ou entusiasmo
cm que sc encontrava no m om ento da com posição. As peças
frequentemente mudam bruscamenie de andamento, revezando temas
perturbados com melodias suaves. A sensibilidade romântica, com
sua nostalgia por um universo perdido, produz com Beethoven peças
dc uma profunda melancolia*.
Beethovcn nào sc revelou um gênio desde cedo. Foi apenas
quando já adulto, no início do século XIX, que sua obra floresceu,
Mas, uma vez revelado seu talento, a realização de sua obra passou
a ser o centro de sua existência. Sua correspondência no fim da vida
o revela triste c desencantado; a idéia de suicídio lhe ocorre, mas c
afastada com a justificativa de que ele linha urna obra a realizar. O
sofrimento do eu é menos importante do que a realização desse dom
maior que sc lhe perpassa.

Q uestõ es p a r a d iscuW iu
1. Qual é a critica do Romantismo ao lluminismo?
2. Qual é a diferença entre a definição dc Romatismo do limdn século XV1I1
c a forma como o definimos hoje, no sentido comum?
3. Como a noçào de "gemo" contribuiu pnra n desenvolvimento do
individualismo?

31 Como na faixa Abertura Corioiaito, da Sinfonia n 8 ("‘Simphonie No. 8,


Rcrliner Philamionien, Deutsche Graiurnophon, 1086"), Ouca também o
Adagio. da Sonata ao Luar(iLIíorowitz Perfonn.s Beethoven, Sony Clássico,
1974)l

98
Pedro Luis Ribeiro de Santi

12
A A U T O -C R Í r iC A
DA R A ZÃ O

No interior do próprio ituminismo, svrge um


movimento de auto-crítica ás pvssíbitidades.
da razão alcançar o conhecimento pleno.

^ ^ ) u a n d o dizemos que. no scculo XVIII, se inicia um


processo de crisc da noção de subjetividade afirmada até o scculo
anterior, não nos referimos apenas a ataques externos ou ã valorização
daquilo que escapa ao cu. No interior da própria racionalidade
ilurninista, a razão será tomada como objeto de investigação c suas
pretensócs quanto ã possibilidade de alcançar a verdade plena será
posta em cheque.
Descartes havia debruçado sua razão sobre os objetos do
inundo e tinha chegado á conclusão de que todos eram incertos
restando como único pomo fixo c absoluto o próprio eu, enquanto ser
pensante Com Immanucl Kant, uni dos autores mais da história da
filosofia, o próprio pensam ento será tornado com o objeto de
investigação. Neste movimento reflexivo (a razão pensa sobre si
própria), trata-se de investigar as possibilidades, os limites da razão,
impostos por sua piópria constituição.
Sua principal obra a este respeito c a Crítica Ja razão pura,
a qual faremos apenas uma referência extremamente simplificada.
Kant chega à conclusão dc que o pctisar c organizado por categorias,
estruturas que organizam tudo o que nos chega do inundo. Por
exemplo, a categoria da relação '‘causa e efeito” , leva o pensamento
a crer que. quando um evento segue-se a outro, o primeiro é causa
do segundo, mesmo que eles se jam independentes.
Neste sentido, todo o nosso conhecimento sobre o mundo
seria condicionado e “formatado” por nossas estruturas cognitivas.

99
A Construção do eu na Modernidade

Assim, chega-se à conclusão dc que nunca temos acesso a coisas


etn si, mas apenas à fenômenos Ou seja, ao mundo tal como somos
cupa7cs dc apreendê-lo, como se dá pura nás. Kant nào duvida da
existência das coLsas cm si exteriores ao homem, mas o eu pensante
jam ais poderia ter acesso a elas.
Isto nào significa que a razão é inútil ou que devesse deixar
de procurar compreender o mundo, Ela deve aprender a manter-sc
e m seus limites, dentro dos quais poderá produzir um conhecimento
confiável. A razão d e v e abster-se de questões transcendentais, que
ultrapassam em muito seu alcance, tais como a existência de Deus,
da alm a ou da liberdade. Sobre tais assuntos, podem os discutir
interminável mente acumulando razões a favor e contra cada uma
sem nunca chegarmos a uma conclusão.
Sua área de açào deverá manter-se no limite dos fenômenos,
àquilo de que temos uma apreensão direta. Sua tarefa já será mais
humilde, ao invés ilc chegar à verdade absoluta, ela deve procurar
produzir hipóteses, modelos teóricos através dos quais seja possível
o r g a n iz a r e d ar sentido aos fenôm enos. Toda teoria, assim , é
necessariamente uma criação humana provisória, que a qualquer
momento pode ser superada por outra que a abarque e dê conta dc
um maior número de fenômenos; este movimento é infinito. Não a
qualquer perspectiva de que se chegue a uma teoria que coincida
com o mundo,
O pensamento de Kant, na seqüência das idéias dc Descartes,
será uma «las principais influencias no modo dc sc produzir ciência
no scculo XIX. Vejamos como um autor do século XX, Cassircr,
descreve o procedimento da razão no século XV1I1:

"Fie consiste em partir dc fatos solidamente estabelecidos pela


observação, mas não basta que os falos estejam ‘ao lado’ uns
dos outros, é preciso que eles se encaixem uns ‘nos' outros, que
u simples convivência sc revele, bem considerada, como
dependência, que da forma de agregado se passe á forma de
sistema. Esta forma sistemática nlo pode evidentemente ser
imposta o exterior aos fatos; é preciso que d a sobressaia. Os
‘princípios* que nós precisamos procurar cm toda parte, e sem os
quais nenhum domínio dc um conhecimento seguro é possível,
não são tais ou tais ponto de partida escolhidos arbitra»iamente

100
Pedro Luís Ribeiro dc Santi

pelo pensamento e aplicados a força à experiência coiureta para


modelar1’.”

Ainda segundo Cassirer. o trabalho do pensamento deve seguir


do particular para o universal, supondo-se que o primeiro esta já
submetido a um principio universal. Os principios a que >e chega não
possuem, no entanto, o caráter de absolutos. Eles sào relativos, ou
melhor, prov isórios, e apontam para um limite circunstancial da ra7 ào,
que p<xlerào scr abandonados e ultrapassados. Eles sào de fato
“ p rin cíp io s” para n o v o s avanços da ra /ã o em seu p ro g resso
incessante.
O cu enoontra-sc aqui com uma visão posúiva dc suas
possibilidades, m asjá não onipotente.

Om-sliW* paru discussão


!. Quais são os limites que Kant vê no projeto dc eomecimento de
Descartes?
2. O que significa o trabalho de produzir teorias no pensamento dc Kant?
3. Segundo Kant, c possivd obtermos um conhecimento objet.vo do mundo?

Cassirer. p. 62. EMc tipo de colocação c freqüentemente encontrado em


Frcud. por exemplo.

101
A Construção do eu tw Modernidade

13
O P O S IT IV IS M O

jVü inicio do século XIX, nasce o modelo


cientifico para o produção de conhecimento
com bases seguras.
A
■í. a . parlir da critica de Kant, se irá desenhar no século
XIX um modelo para a produção de conhecim ento a um só tempo
racional e empírico. O senso comum ainda hoje o toma como sinônimo
de verdade: a ciência nos moldes positivistas. D izer que algo c
cientifico significa dizer q ie ê reconhecido pelas autoridades no
assunto com o certo e indubitávcl. N ào se trata de opinião ou crença,
m as de algo provado.
O que hoje chamamos com freqüência de ciência teve seu
modelo formulado por Auguste Comte. Jilósofo francês. Assim como
Kant. Comte acredita na possibilidade de a razão conhecer o m undo
c, com o ele, pensa que isto será possivcl desde que o hom em se
mantenha dentro do uni verso dos objetos tais com o lhe são acessíveis.
C om te nào fala em term os de fenôm enos, mas de algo semelhante,
os objetos positivas. Por positivo, devem os entender aqueles que sc
apresentam diretam ente aos nossos órgãos do sentido.
Quando Comte denomina seu pensamento com o nome de
positivism o, ele q uer com isto enfatizar seu caráter de concreto,
verdadeiro ou útil, por oposição às abstrações metafísicas da tradição
filosófica. Com o positivismo, afirm a-se a concepção de que cada
c iê n c ia d ev e in ic ia lm e n ie d e fin ir seu o b je to , q u e d e v e scr
necessariam ente positivo, localizado no tempo e espaço, observável,
em última instância. Uma vez definido o objeto, toda cicncia tem os
m esm os métodos: a observação c a experim entação. Inspirado pela
tradição humanista de que os coisas do mundo deveriam scr pensadas
cm te rm o s de su a u tilid ad e p ara o h o m em , a ssim com pelo
distanciam ento entre o sujeilo do conhecim ento e o objeto, prescrito
Hcdxú Luis Ribeiro de Santi

por Descartes, a ciência positivista visa sem pre a previsão e o controle


sobre seu objeto. A ciência deve gerar tecnologia.
É curioso observar que. segundo este m oudo, sena intpossi vel
a realização de uma Psicologia científica, na medida em que a m ente
não sc apresenta conto um objeto positivo. A alternativa, e m esm o
isto pode ser questionado, seria a própria experiência da m ente para
cada pessoa Comte descartava a Psicologia c concebia como projetos
viáveis a sociologia c a fisiologia. Sem dúvida, muitos dos problemas
da Psicologia, sobretudo em sua origem , vinculam-se justam ente a
esta questão da im possibilidade de apreendei a mente. Com te soa
profético neste aspecto. D iversas linhas da P sicologia tentarão
arduam ente satisfazer aos critérios positivistas, enquanto outras
decididam ente nào poderão fazê-lo. Sobre crias últimas, sem pre
recairá a crítica dc serem pouco cientificas c a isto sc seguirá a
tentativa dc desautorizá-las.
Paru Com te. a possibilidade dc o homem fazer cicncia no
século XIX deve-se á sua evolução. Ele vê na listória das tentativas
do hom em de com preender o mundo um desenvolvimento que teria
atingido seu ponto culm inante com a ciên cia N os prim órdios da
civilização, o homem teria tentado com preendera natureza recorrendo
á mitologia, à religião. Fenômenos naturais tinhím sua causa atribuída
a seres c intenções sobrenaturais. Este sena um m odo de pensam ento
m ágico e infantil. Com o passar do tempo, o homem teria passado a
entender o m undo de lôrm a filosófica ou metafísica, procurando
identificar essências transcendentais para explicir o mundo. Um passo
já teria sido dado com relação à religião, uma vez que estas essências
possuíam um a racionalidade c nào se recorria m ais á idéia de
intcncionulidade, ma* ainda se m antinha n explicação de algo natural
por algo invisível.
Finalm ente, o hom em teria podido passar a com preender
fenôm enos naturais, buscando sua causa tão som ente na própria
natureza e em suas leis. Esta seria a função da ciência: procurar
conhecer as leis que regem a natureza, inclusive o homem.
A frase e stam p ad a na ban d eira b -asilcira - “ O rd em e
progresso"- é de inspiração direta do positiv smo. Ele teve grande
inlluência nos fundadores dc nossa república. Comte crê que liá ordem
na natureza e. em bora nào possamos ter uir conhecim ento direto

103
A Construção do eu na Modernidade

dela, podemos inferi-la através dos fenômenos.


Estas idéias dc Com te podem sct confrontadas, com interesse
ao nosso tema. com a posição de Nictzsche que é radicalmentc oposta.
Para este último, o nascimento da racionalidade, que toma o lugar do
mito -m ovim ento simbolizado por Sócrates-, teria sido um momento
ilc grande perda e afastamento da verdade. Voltaremos a tratar do
pensamento de Nictzsche adiante.
Tomemos algumas passagens expressivas de Comte:

TEX TO ANEXO - A ugusU f C o m te

C IR S O l)E FILO SO FIA POSITIVA

"II - Para cxpliear convenicatcmeiite a verdadeira natureza e


o caráter próprio da filosofia positiva, ê indispensável ter, de
inicio, uma visào geral sobre a marcha progressiva do espirito
humano, considerado em seu conjunto, pois uma concepção
qualquer só pode ser bem conhecida por sua história.
No estado teológico, o espírito humano, dirigindo
csscncialmente suas investigações para a natureza intima dos
seres, as causas primeiras e finais de todos os efeitos que o
tocam, cm uma palavra, para os conhecimentos absolutos,
apresenta os fenômenos como produzidos pela ação direta e
continua dc agentes sobrenaturais mais ou menos numerosos,
cuja intervenção arbitrária explica todas as anomalias
aparentes do universo.
No universo metafísico, que no fundo nada mais é do
que simples modificação geral do primeiro, os agentes
sobrenaturais são substituídos por forças abstratas,
verdadeiras entidades (abstrações personificadas) inerentes
aos diversos seres do mundo, c concebidas como capazes de
engendrar pot elas próprias todos os fenômenos observados,
cuja explicação consiste, então, em dctcmiinar. para cada um.
ntidade correspondente.
Enfim, no estado positivo, o espirito humano,
icccndo a impossibilidade de obter noções absolutas,
renuncia a procurar a origem e o destino do universo, a
conhecer as causas intimas dos fenômenos, para preocupar-
se unicamente em descobrir graças ao uso bem combinado
do raciocínio c da observação, suas leis efetivas, a saber,

104
Pedro l.uís Riheiaide Santi

suas relações invariáveis de sucessão e de similitudc. A


explicação dos fatos, reduzida entào a seus termos reais
resume-se de agora cm diante na ligação estabelecida entre
os diversos fenômenos particulares c alguns fatos gerais
cujo número o progresso da ciência tende cada vez mais í
diminuir.
Vemos, pelo que precede, que o caráter fundamenta
da filosofia positiva é tomar todos os fenômenos comr
sujeitos a leis naturais invariáveis, cuja descoberta precisa c
cuja redução ao menor número possível constituem o objetive
de todos os nossos esforços, considerando com r
absolutamente inacessível e vazia de sentido para nós s
investigação das chamadas camas, sejam primeiras, sejanr
finais, Ê inútil insistir muito sobre um principio, hoje tãc
familiar a todos aqueles que fizeram um estudo um poucc
aprofundado das ciências de observação. Cada um sabe que.
em nossas explicações positivas, ate mesmo as mais perfeitas,
não temos de modo algum a pretensão dc expor as camas
geradoras dos fenômenos, posto que nada mais faríamos entàc
além de recuar a dificuldades. Pretendemos somente analisar
com exatidão as circunstâncias dc sua produção c vinculá-
las umas ãs outras, mediante relações normais dc sucessão e
dc similitude.
Seria fácil multiplicar exemplos, inúmeros durante o
andamento deste curso, porquanto este c o espintn que agora
dinge exclusivamente as grandes combinações intelectuais.
Para citar apenas neste momento um único dentre os trabalhos
contemporâneos, escolherei a bela scríc dc pesquisas do Sr.
Fouiier sobre a teoria do calor. Ofcrcce-nos a verificação muito
sensível das observações gerais precedentes. Neste trabalho,
cujo caráter filosófico é tào eminentemente positivo, as leis
mais importantes e precisas dos fenômenos termológicos
cncontram-se desvendadas, sem que o autor tenha inquirido
uma única vez sobre a natureza intima do calor, sem que tenha
mencionado, a nào ser para indicar sua vacuidadc, a tão
agitada controvérsia entre os partidários da matéria calôrica e
aqueles que fazem consistir o calor cm vibrações dum éter
universal. No entanto, trata-sc nessa obra das mais altas
questões, muitas das quais nunca nem mesmo tinham sido
colocadas, prova capaz dc que o espirito humano, sem se
lançar em problemas inaleançávcis, c restringindo-se a

105
A Construção do cu nu Modernidade

investigações de ordem inteinunente positiva, pode encontrar


aí alimento inesgotável para sua atividade mais profunda.”

M ÚSICA - Puf>anini e Liszt

Com relação ã música, penso que seja possível di7er que “o


positivismo nuo dá samba” . Não tenho nenhuma referência de um
estilo, autor ou peça musical que possa expressá-lo. A presença do
positivism o nesta área refere-se à tccnica; quer de produção de
instrumentos, quer da execução das peças. O século XIX guarda o
registro de fantásticos virtuoses cm seus instrumentos como L is/t
ou Paganini, mas que musical mente eram românticos. Na virada para
o século XX, nascerá uma música propriam ente experimental: o
dodccafonismo. Seu fundador, Arnold Shòinbcrg, eru um austríaco
co n tem p o rân eo de um m o v im en to forte na c id ad e cham ado
“nco positivismo”

Questões para discussão


1, Que condições deve cumprir um forma de produção dc conhecimento
para que seja considerada cientifica pelo positivismo?
2. Por quê. segundo Comte. seria impossível rcali/ar uma psicologia
cientifica?
J . Como compreender a frase da hnndci ra bfasi Icira "Ordem c Progresso” -
do ponto de vista positivista?

106
Pedro Lubí Ribeiro de Sano

O S D IV E R S O S
C A M IN H O S
P A R A A P S IC O L O G IA

Nesta parte, c apresentado um conjunto de


referencias ij ue serviriam como instrumentos
para a compreensão Jn multiplicidade de
sistemas da Psicologia.

c „
V _'o rn o já dissemos, desde a colocação cio cu no centro
do mundo por Ik-scartcs, diversos cam inhos Se desenvolveram na
h is tó ria do p e n sa m e n to c d o s c o s tu m e s ; estes c a m in h o s
frequentemente cruzam-se. misturam-se c voltam a distanciar-se.
A partir dos pomos dc vista principais que apresentamos nas
partes anteriores sohre a questão da subjetividade, poderíamos derivar
alguns modos de scr do cu;
Da questão dos costum es, perderíamos derivar um eu
m oral , atento ao auto-controle cm função dc exigênc as sociais. Por
este viés, a noção do eu é dada pelo reconhecimento externo, ele
busca auto-ulirmar-se e, para tal, investe na aparência c obediência
a regras dc conduta pregadas por aqueles que toma co n o autoridades,
moldando-sc aos ideais que tem cm tomo de si; um cu social, digamos.
Este eu ê um grande consum idor dc mexia, de livros de auto-ajuda c
de biografias de personagens públicos dc sucesso (cum o perdào da
ironia). Ele busca sempre algo ou alguém (um horóscopo ou uma
tipologia psicológica) que lhe diga quem ele ê. Aqui o cu c tomado
com o objeto, cie deve sujeitar-se a padròes.
-Tendo sua expressão máxima no romantismo, veríamos o
eu interiorizado , que representaria cm grande medica a questão do
individualismo e da profundidade. Ele realizaria uma certa ruptura
A Construção do cu na Modernidade

com os valores externos e um movimento de reflexão , no sentido da


construção de si. Ele partiria de um desencanto com as aparências e
descobriria (ou criaria?) níveis de profundidade no homem. () eu
ro m â n tic o c o rre s p o n d e ao s e n tim e n to d c p o s su irm o s algo
absolu lamente único que, por mais que se tente, não sc deixa conhecer
ou controlar lotalmentc.
-Finalm ente, do Iluminismo, ainda que critico, derivaríamos
o eu epistêmico. Trata-se do sujeito do conhecimento; o cientista,
enquanto sujeito dessubjeti vado, ou seja, capaz de despir-se dc todos
os seus desejos e particularidades e scrobjetivo cm suas observaçòcs
e experimentos com os fenômenos naturais. Ele acredita poder sei
neutro, não interferir naquilo sobre que se debruça O òesengajam ento
do eu, característico da Modernidade, a que se refere Charles Taylor
evidenciasse aqui com mais clareza
Do eu cpistêmico, resultaria um modo dc scr absolutamente
presente para nós: trata-se do "vestir a cam isa da em presa”, que
costumamos remeter á cópia do modelo dc produção oriental dos
chamados “tigres asiáticos”, mas que retoma de forma atualizada a
experiência medieval: a de que cada um possui o seu lugar dentro de
uma ordem m aior c não há lugar para a determinação individual.
E ste 'e u ' se anula enquanto determ inante de sua ação. FIc se
identifica com a instituição a que está ligado e “já não tem nem fim-
dc-semana” ; sua vida é absorvida e qualquer recusa a uma solicitação
é teimada com o traição. Sc a religião, a família, e as organizações
políticas representam ainda instituições que se alimentam e exercem
p ara este m odo d c ser, não há d ú v id a de q u e, do in ic io da
industrialização no século passado à produção em escala atual, o
trabalho tem exigido um tipo de engajamento semelhante. Fstc tipo
refere-se ainda ao movimento cartesrano de tomar o próprio ‘eu'
com o sujeito capaz de tom ar a natureza com o objeto de conhecimento
c uso: e aqui surge o desdobram ento, o próprio eu acaba por se
tomar objeto de urna técnica. Nisto, evidcncia-sc uma semelhança
com o cu moral.
R etom em os p o r um m om ento u tese de Luís C láudio
F ig u eired o q u e te m o s com o re fe rê n c ia . Fm A in v e n ç ã o d o
psicológico, o autor propòc um triângulo cujos vértices seriam
formados pelo Romantismo, o Liberalismo, c a Disciplina (regime

108
Pedro Luís Ribeiro de Santi

disciplinar), em um a concepção muito próxima à exposta aqui. Penso


que a definição de três modos de colocação do eu que fizemos acin a
pode ser sobreposto ao triângulo da figura adiante.
Na tese de Figueiredo, os diversos projetos de Psicologia
poderiam scr com preendidos com o herdeiros dessas três tendências
básicas que. aliás, quase sempre apresentam elementos de mais de
uma delas com binados. Podcriam os “ perguntar” a cada linha da
Psicologia com o ela se posicionaria neste triângulo, se em algum
vértice ou lado. Isso forneceria uma perspectiva dc compreensão
sobre sua origem e algumas das diferenças mais ou menos radicais
entre elas.
Não sc trata aqui de criar uma “tipologia", o que mu to
agradaria ao eu moral em nós. Dificilmente, insistimos, podc-sc achar
um “tipo puro" de qualquer tuna destas tendências, mas procuremos
acompanhar algumas possibilidades de desdobramento e presença
simultânea de algumas das tendências deste esquema ao longo do
século XIX. Nesse século, a critica ao hum anism o chegará a seu
ponto culminante, uo mesmo tempo em que a idéia dc individualidade
se aprofunda Deste duplo movim ento surgirá a demanda por um
profissional da “crise de identidade".

R D

109
A Construção do cu na Modernidade

15
F IG U R A S D O
R O M A N T IS M O
N O S É C U L O X IX

O romantismo atoume diversas uspet ias, todos


parecendo criticar os projetos do
Modernidade -como n própria ciência e
remeter a algo maior e anterior ao eu.

cV - ^ o m o j á m encionam os, o rom antism o refere-sc a


m anifestações bastante diversas. No século XIX. ele assum irá
aspectos diferentes. Muitos deles são anti-humanistas, no sentido
em que o eu aparece reduzido diante dc um elemento maior, como a
paixão, uma causa, uma nação. etc. Por outro lado. o romantismo é
essencial no d esen v o lv im en to do sentido de iitterioridadc e
profundidade da alma humana, constituindo se em uma das bases do
que p o d eríam o s ch am ar de in d iv id u alism o . V ejam os alg u n s
desenvolvimentos da questão do anti humanismo
A concepção de paixão, nascida no romantismo já do século
X V III, to m a rá um a fo rm a filo s ó fic a c la ssieu com A rlhut
Schopcnliíiuer. Fm sua obra mais conhecida. Q m um io como vontade
e representação, ele nos apresenta a idéia de que o m undo é
constituído por estes dois elementos vontade e representação. A
primeira seria uma essência universal, uma energia que subjaz a tudo:
a segunda e assimilável à "idéia" em Plutuo. Cada coisa existente c.
em última instância, uma manifestação da vontade, inclusive o homem.
A vontade seria a coisa em si, que Kant postulara como inacessível.
Aqui se introduz o elemento anti-humanista. O homem, que
acreditava ser a obra prima da criação, centro do universo e dono de
uma vontade consciente, Iív t c para se tornar o que bem quisesse, vê-

110
Pedro Luis Ribeiro de Santi

Fragonard. ' Os acasirs felizes


da b a la n ço ' A natureza
idealizada é m ixitada. O ocw
no balanço liio lia m e leve -
ama cena que traz, por iráX
um pajent i/iutsc ocvllo leva
a uma indiscrição.' o
Mifwiniho cjiw voa c deixa w r
n i/ue a dana tentava J
i'.\eonder

Goya. "O sono da nr.dn produz


m o n s tr o s f 1797/I79S). Para
além da dimensão e alcance do
“e u ", Goya m ostra-nos u
em ergência de unia dim ensão
escura e profunda do homem

111
A Construção do cu nu Modernidade

urna tem pestade de


n e v e H o turbilhão da
imagem une desenha um
roda moinho, ifslumbra -
se um barco à ntercc das
forças da natureza tão
superiores às do Humeni

Redon, “Orfeu ", Redon


mostra a i xtfoeça de Orfeu
(e. 1903) -despedaçado
/telas bacantes- levada
p elo flu xo de um rio.
Estamos distantes de Da
Vinci: aqui, o Homem dis
solve-se e também não se
vislumbra outra referên­
cia para pôr em seu lugar.
Pedro Lu is Ribeiro dc Sanli

sc diante de uni dcspojtunento total de sua importância: ele não seria


mais do que um invólucro que porta a vontade e que pode ser, sem
maiores problem as, substituído. lista essência do mundo escapa
totalnieiite á sua percepção consciente. Teríamos apenas acesso aos
fenômenos que a expressam A existência liumana ganha o aspecto
de relativa gratuidade, o que leva Schopcnhauer a ser considerado
um pensador pessimista.
Tomemos alguns treclios dc sua obra.

TEXTO ANF.XO -\rlh u r S c h o p e n h a u e r

O MUNDO C O M O VONTADE E REPRESENTAÇÃO

VIDA F, M ORTE

“Espero que os tivs j>i inteiros livros hajam feito co npreender


que o mundo como representação é o espelho da vontade, no
qual a vontade se reconhece a si mesma com um» clareza e
uma precisão que vão gradualmente crescendo: no homem
esta consciência atinge u perfeição, mas a essênciadu homem
não encontra a sua expressão com pleta, salvo na
concaicnação das ações que ele pratica c é a razão que torna
o indivíduo capaz de abranger de relance e irabstrato a
unidade consciente ila soa conduta.
A vontade, considerada puramente em si mesma, c
inconsciente; ê uma simples lendêneúi cega e inesistivcl. a
qual encontramos tanto na natureza do reino inorgânico e do
vegetal e nas suas leis, como também na parte vcgctaliva du
nossa vida: mas pelo acréscimo do mundo da represcnlnçào
que sc desenvolveu pelo seu uso. elu adquire a consciência
do seu querer e do objeto do seu querer; reconhece que aquilo
que quer não e outra coisa senão o mundo c a \ ida como são:
dizemos, por isso. que o mundo \isi\el e a sua inagem ou a
sua objetividade, e como o que a vontade quer é sempre a
vida, pois que a vida pura a representação é u manifestação
da vontade, resulta que é indiferente e constitui puro
plcunasmo se, em vez de dizer simplesmente “» vontade",
dissermos "a vontade de viver".
Sendo a vontade a coisa cm si. a substância, a essência
do mundo; c a vida, o mundo >isivel o fenômeno, mio sendo

13
A Construção do cu na Modernidade

mais que o espelho da vontade, segue-se daí que a vida


acompanhará a vontade com a mesma inseparabilidadc com
que a sombra acompanha o corpo: onde houver vontade,
haverá também vida, mundo. A vida está, portanto,
assegurada ao quercr-viver, e por quanto isto subsista cm
nós, nio devemos preocupai-nos pela nossa existência nem
mesmo diante da morte. Rem vemos o indivíduo nascer c
morrer, mas o indivíduo é apenas um fenômeno; nào existe
senào pelo conhecimento submetido ao principio de razão,
que é o princípio de individlMÇâo; nesta ordem de idéias,
ccrtamentc o indiv iduo recebe a vida como um dom; oriundo
do nada e despojado do seu dom pela morte, ao nada retoma
Vias para quem. como nós, contempla a vida do ponto de
vista filosófico, isto é, das Idéias, nem a vontade ou a coisa
em si de todos os fenôm enos, nem o sujeito dos
conhecimentos, espectador dos fenômenos, são de qualquer
forma tocados pelo nascimento uu pela morte. Nascer e morrer
são coisas que pertencem ao fenômeno da vontade, c
aparecem nas criaturas individuais, m anifestando
fugitivamente, e no tempo, aquilo que em si não conhece
tempo c deve exatamente manifestar-se sob esta forma com o
fim de poder objetivar a sua verdadeira natureza. (...)
(...) mas a vontade de viver dc que o indivíduo não
constitui por assim di/er. mais que um exemplar ou uma parcela
singular de manifestação, nào é perturbada com a morte do
ser individual, tanto quanto nào o c o conjunto da natureza.
Pois que não c pelo indivíduo, mas unicamente pela espécie
que a natureza se interessa e é dela unicamente que estuda
seriamente a conservação, circundando-a dc grande luxo de
preocupações e por meio da supcr-abundância ilimitada dos
germes e do poder imenso do instinto de reprodução. (...) A
natureza está sempre pronta a abandonar o indivíduo que
nào somente está exposto a perecer dc mil modos e pelas
causas mais insignificantes, como também c, desde o
principio, destinado a uma perda certa, para a qual c
arremessado por ela mesma, apenas haja satisfeito a missão
que tem de conservar a espécie. Com isto a natureza exprime
ingenuamente esta grande verdade, que sào as Idéias e nào
os indivíduos que tém uma verdadeira realidade, isto é, sào a
objetividade perfeita da vontade.1" (p 30-4)

114
Pedro L u l s Ribeiro de S a n t i

PINTURA - T u rn er e F ried rich

Vale a pena fazermos também unia rápida referência á pintura


romântica tio século XIX. Nela. manifesta-se também esta colocação
cm perspectivada importância do homem, Um dos principais pintores
românticos é o inglês Turner, cuja obra representa freqüentemente a
grandiosidade das forças da natureza diante da impotência humana.
Um de seus temas mais comuns é o de tempestades, sobretudo no
mar. O lhando a pintura de longe, parece que nada está sendo
representado c qoc estamos diante de um borrão azul, marrom ou
cinza. Ao nos aproximarmos, no entanto, passamos a distinguir uma
tem pestade no m ar com sua agitação e neblina. Na tempestade,
podemos por vezes divisar um barco, totalmente à mercê das forças
que o dominam. Não é preciso fantasiar muito para estabelecermos
uma relação entre esta representação e a da fragilidade da r»zão
humana diante da fúria da natureza.
No pintor alem ão Friedrich, podem os identificar outro tipo
de imagem interessante. Fm sua pintura, em geral, temos também
paisagens, rnas estas são tranqüilas. O que cham a a atenção é ifie a
presença está sempre deslocada do centro da pintura. A visão perde-
se na im ensidão da paisagem e o homem agora c que ocupa ama
posição marginal, quase que dc fundo.
Alguns outros aspeetos significativos do romantismo poiem
ser acompanhados por seus músicos.

MÚSICA - H a g n sr e C h o p in

Da música romântica do inicio do século XIX, gostaria de


destacar duas linhas dc expressão. De um lado, persistem os elementos
do am or romântico c, de outro, surge a expressão do nacionalismo.
Sabem os que a prim eira metade do século foi marcada pela luta de
diversas nações por sua unificação ou independência
Com Ricltard Wagner, podemos acom panhar como a música
pôde ser utilizada com o forma de ação política, Em sua busca de
mobilizar o povo alemão, ele não lançou mão do discurso polílic.» ou
filosófico, mas sim da m úsica ou, para ser m ais preciso, de um
espetáculo denominado por ele mesmo com o uma ‘obra de arte total’:
a ópera. Nela, unem-se recursos literários, musicais, d ram á tio s e
A Construção do eu na Modernidade

mitológicos para produzir um efeito de envolvimento e sedução por


todos os sentidos pela mensagem veiculada. As óperas de Wagner
recorrem quase senipre a temas mitológicos germânicos» buscando
no fundo da alma dc cada homem o apelo do originário.
Sua m úsica rem ete-nos á p intura rom ântica. Tem os a
impressão de estarmos diante de algo informe, envolvente, com poucas
figuras melódicas definidas onde nos possamos ancorar. Não é uma
música a ser compreendida ou captada por nossa atenção, mas ela
pretende justamente distraí-la e pegar-nos desprevenidos. Quando
ouvim os, por exem plo, a abertura da ópera Tristãu e /so ld a 30,
podemos ter a impressão, inicialmcntc. dc que não há melodia e que
o volume é baixo demais; pouco depois, vemo-nos envolvidos em
uma intensidade sonora que nos arrasta irresistivelmente. A letra da
ária chamada "M orte dc Isolda" sintetiza a experiência de Goctlie e
Schopenhauer

M orte rie Isnldn - K ichard IYagncr

"Como c doce c delicado o seu sorriso, como abre os olhos


gentis -vêem, amigos? Não vêem? Como ele brilha, sempre
mais luminoso, como se ergue alto, cercado de estrelas ? Não
veem? Como o seu coração orgulhosamctile se expande e.
pleno e sublime, lhe pulsa no peito? Como dos seus lábios,
em um encanto suave, um doce alento escapo delicadamente
-Amigos! Olhem! Não sentem, não vêem? Seiei a única a
escutar esta melodia, que maravilhosa e suave, suspirante de
alegria, inteiramente reveladora, doce e conciliadora dele se
escapa c cm mim penetra, cheia dc Ímpeto, ecoando sublime
ao meu redor? Ressoando niais claras, para envolver-me Unia,
são talvez as ondas de brisas suaves? Talvez as nuvens de
encantadoras rragràneias? Como se enfunam e fremem ao
meu redor, deverei respirar, deverei escutar? Deverei saboivar,
afogar-me contente? h,vaiar docemente nesta fragrãneia? Na
vaga ondejante, na rima sonora, no cosmo inflante da
respiração universal - mergulhar, submergir- privada dos
sentidos -volúpia suprema!”

41 Ouça. por exemplo, “Polonaise o heróica" ou “Noturno em mi-bemoT.

116
Pedro Luís Ribeiro dc San ti

Outro com positor a expressar o nacionalism o e o am or e s


sua música foi o poloncs Chopin, com suas polonaises c noturnos.
Nele, encontramos ainda o paradigma do romantismo com o delicadeza,
por sua própna fragilidade pessoal '1.

Com o última referência ao romantismo, gostaria dc citar u n


de seus desenvolvim entos, que terá repercussões mais imediatas e
próximas á Psicologia o da idéia de niveis dc profundidade da a ln a
humana. Com Edgar Alan Poe. autor am ericano nascido cm 1910. o
gênio mcrgullia na alucinação e, de lá, trás a fonte de sua inspiração.
Com o c quase tipico do artista m m ántico, ele morre antes das
quarenta atros. Todo o século XIX foi fortem ente marcado pelo co rto
de lerrnr e pela invasão do lado escuro da alma humana -co m o em
Dr. Jeckill c Mr. 1lide. Frankcnstein ou Drácula, por exemplo. Uma
famosa frase do pintor G oyadefine isto m uito liem: “O so n o da razão
produz monstros". Poe, no entanto, parece Ler sido um dos primeiros
e mais influentes. Tomemos trechos dc seu poem a mais conhecido:
O corro.

TEX TO ANEXO - E d g a r A la n P oe

O CORVO

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento c tnste.


Vagos, curiosos tomos dc cicncias ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som dc alguém que batia levemente a meus umbrais.
“Uma visita” cu me disse, "está batendo a meus umbrais
É só isro, c nada mais”.
Ah, que bem disso me lembro! hra no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como cu queria a madrugada, todu a noite aos livros dada,
Para esquecer l cm vftol) a amada, hoje entie hostes celestiais-
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais.

* Ouça, de Richard Wagner, "Tannhaitser -Siegfried tciyl! -Trlstan und


Isolde OcutsclK'Grammophon. 1988."

117
A Construção do eu na Modernidade

Mas sem nome aqui jamais! (...)


E, mais forte nuir. instante, já nem tardo ou hesitante,
'‘Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto tne desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tao leve mente batendo, batendo por meus umbrais;
Que mal ouvi... “E abri largos, franqueando-os, meus umbrais,
Noite, imite e nada mais.
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando.
Dúbio c tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio dc ais-
Eu o disse, o nome dela, c o « o disse os meus ais.
Isto só e nada mais. (...)
Abri enlao a vidraça, c cis que. com muita negaça.
Entrou grave c nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não panou nem um momento
Mas com ar sereno e lento pousou sobre os rncus umbrais.
Num alvo busto de Atcna que há por sobre meus umbrais.
Foi, pousou, c nada mais
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro dc seus ares rituais.
“Tens o aspecto tosquiado", disse eu. “mas de nobre e
ousado,
O velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.”
Disse o corvo, “Nunca mais1’.
Pasmei dc ouvir este rato pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve scr concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais.
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais.
Com o nome “Nunca mais”. (...)
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na tumba alma cravava os olhos falais,
Isto c mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais.
Naquele veludo onde entre as sombras desiguais.
Reclinar-se-á nunca mais! (...)
■Profeta*’, disse cu, “profeta -ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo.
Pedro Luís Ribeiro de Santi

esta casa dc ânsia e medo, dtze a esta alma a quem atrais


Sc há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais'”
Disse o corvo. "Nunca mais". (...)
"Que esse grito nos aparte ave ou diabo”, cu disse. “Parte!
Toma á noite e á tempestade! Toma ás trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha volidào me reste! Tira-tc de meus umbrais
Tira o vulto de meu peito c a sombra de meus umbrais!”
Disse o corvo, “Nunca mais".
F. o corvo, na noite ínimdu, está ainda, está ainda
No alvo busto dc Atena que há sobre os meus umbrais.
Seu olhar lem a medonha dor dc um demônio que sonha.
E a luz lança-lhe a trisionha sombra no chão maise mais:
L a minh\ilma dessa sombra que no chão há mau e mais.
Libertai-se-á... nunca mais!
[Tradução de Fernando Pessoa]

O poema de Poc é marcado por uma profunda melancolia.


A perda parece remeter a um tempo mítico de plenitude perdida. O
corvo c a presença persistente da lembrança que paraasa e assusta.
Ele talvez seja a voz da consciência que martiriza, que lembra e
afirma a perda, mas não deixa a lembrança ir embora

Questões para discussão


1. Em que sentido Schopenhauer c anti-humanista?
2. Relacione a pintura de Turner e a música dc Wagner.
2. Como os contos de icrror do século XIX podem ser relacionados com o
nascimento da Psicologia?
A Construção do eu na Modernidade

16
ALGUNS
DESDO BR AM EN TO S
QUE LEVARAM À
P S IC O L O G IA

\e.ua parte, apresentaram (dguttuts idéias que


levaram mais dlretam ente à Psicologia,
leremos como, na maior parte das casas, há
uma camhimiçdo das referências românticas,
disciplinarex e liberais

P
X odem os idcnttltcar, desde o século X V III, alguns
movimentos da história da medicina que contêm elementos românticos
que desembocarão na Psicologia profunda. L importante dizer qoc o
interesse destes movimentos c curar e lançar a luz da razão sobre a
doença, assim, eles não podem ser considerados exclusivam ente
tributários do romantismo, mas também do movimento cientifico.
Anton M esmer talvez seja o pai desta tendência, que se irá
desenvolver durante o século XIX com a investigação sobre a hipnose
e a ocorrência (espantosam ente freqüente) de casos dc dupla ou
múltipla personalidade
O nome dc M esmer tornou-se conhecido em meados do
século XVII1. ao participar de um processo para julgítr se um exorcista
chamado Gassner seria urn charlatão. Mesmer atesta a boa vontade
e os efeitos curativos de Gassner, mas explica que seus sucessos
nào se deviam a forças sobrenaturais, mas ao uso inconsciente de
uin magnetismo animal, que circularia do exorcista ao exorcizado.
Sua tese de conclusão do curso dc medicina havia sido sobre
a influência dos astros sobre nós. Não se trataria de uma influência
Pedro Luis Ribeiro de Santi

mística, mas ele magnetismo. Fm sua prática, ele observara que a


aproximação de irnâs sobre órgãos doentes produzia uma melhora
no quadro. G radativam ente, percebe que a sim ples presença do
médico já prudu/ia tal efeito, mesmo sem imu. A partir de então,
passou a postular que todo coTpo possuía tal energia e que a doença
deveria ser uma perturbação ou rebaixamento dela. Assim, a cura
deveria consistir na transmissão de energia saudável do médico ao
paciente. Isto devia ser feito através de manipulações ou do contato
intermediado por objetos “bons condutores" de energia.
A inspiração de M esmer é iluminista; ele cré tratar de algo
com o a eletricidade, mas sua prática acaba por descambar para um
aspecto de espetáculo. Kle cria tudo um clim a em torno de seus
atendim entos, solicitando que seus vários paciente» “nervosos"
esperassem longamcntc por ele muna sala de espera. Como era de
se esperar, depois de algum tempo um deles tinha um ataque: era isto
que d e esperava. Ele levava este paciente a uma sala fechada e
escu ra, com uni fundo m usical e n v o lv en te, c m anipulava-o,
conduzindo-o a urna crise. O paciente melhorava depo s da descarga
c certamente saía com a impressão de ter assistido a um milagie ou
a uma mágica. Tornou-se célebre também o recurso cuc criou para
atender um maior número de pacientes quando a demanda cresceu
demais cm Paris: ele mandou construir uma tina (haquet). cm tom o
da qual dispunha até 130 pacientes, que seguravam uma haste de
metal cuja outra ponta estava mergulhada nela. Então aproximava-
se e mergulhava suas mâus na água. contando que a energia seria
conduzida até todos.
Compreensivelmcnte, passou-sc a consulerá-lo um charlatão
e ele acabou sofrendo um processo semelhante àquele através do
qual tom ara-se conhecido, rendo sido desacreditado, retirou-se para
uma cidade pequena e aderiu a uma prática médica comum até tnoner.
Um de seus seguidores, Puiseguir, desenvolveu seu mctotki até ã
hipmise.
Destu sín te se en tre ro m an tism o c c iê n c a. n ascerá o
espiritismo, que parte da observação de fenômenos paranormais,
com o a telccinese {a capacidade de m over objetos á distância),
recorrendo a explicações místicas. Sabemos também que, já no fim
do século, este movimento desembocará cm Charcot, u n dos mestres

121
A Construção do eu na Modernidade

de Freud. que utilizará a hipnose para manipular sintomas histéricos

Podemos ainda indicar, no caminho em direção á Psicologia,


uma corrente que pode ser identificada como uina articulação entre
o liberalismo e a disciplina -n a linguagem que propusemos, entre o
eu epistcmico c o eu moral Recorrendo uma vez mais á História tia
vida priva d a , podem os observar que, no final do século XIX, a
medicina ocupa o lugar da religião com o referência moral. A ciência
vai-se p restara justificar os tnais primários preconceitos morais.
Como já havíamos visto, desde o século XVIII, não é mais
possivcl fundamentar a tnoral na fé. Desde lá. a moral passou a
buscar fundamento tu» simples convívio entre os homens, como é
p o ssiv cl co n sta ta r na C ritica da ra zã o p r á tic a , dc K ant, na
tleclaração universal dos direitos do homem e, enfim, na difusão tia
dem ocracia ao longo do século XIX. Mas a busca de um fundamento
para os critérios morais encontra um apoio supostamente seguro no
estudo da biologia, derivando dai uma concepção de natureza humana.
Em term os simples, a proibição ilc determinado ato, com a
justificativa de que ele sena um pecado, parece não surtir mais efeitos
gerais e eficientes. Ao invés d i s s o , se tal ato for considerado
prejudicial a saúde pela ciência, provavelmente irá sc generalizar a
idéia de que tal ato é errado O que está cm jo g o aqui é este
deslocamento aparentemente válido entre o saudável e o bom, contra
o não saudável e o mau.
Se esta idéia parece óbvia, hasta conferirmos a que ela serviu
para pefcebemuw o nível de manipulação ideológica a que se pode
chegar com cia. Tomemos como exemplo a questão da sexualidade.
Curiosamcnic. as prescrições médicas a esse respeito no século XIX
coincidem totalmente com as da Igreja. Assim, sobre a identificação
inquestionável sobre □ função biológica dos órgãos genitais, afirma-
sc uma idéia de normalidade e anormalidade. A vida sexual serve à
reprodução c qualquer uso dela em ou tio sentido deve ser tomado
como uma dcgcncraçào (elimologicamente, "um desvio com relação
á o rig em ), uma perversão (um desvio com relação ao bom caminho).
Todas as denominações que possuímos hoje neste campo datam desta

P2
Pedro Luis Ribeiro de Santi

época c trazem sua marca: heterossexualidade, homossexualidade,


sadismo, masoquismo, etc. Surge, assim, toda u n a sombra moral
sobre a definição sexual de cada pessoa; que estabelece o m edo dc
ser errado e anti-natural, c, portanto, excluído socialmente.
Os ramos desse ponto de vista ainda estào muito presentes.
Em 1981, ein um congresso médico sobre a sexualidtdc. foi colocado
a um palcsirantc a questão do sentido do prazer tu relação sexual.
Depois de alguns momentos, em um silencio embaraçoso, ele arriscou
a seguinte hipótese; é que o ato sexual seria uma ccisa tão nojenta c
aversiva. que o prazer serviria como unia espécie de compensação.,.
Um episódio clássico, neste sentido, é relatado com detalhes
em História da vida privada : as prescrições contra a masturbação.
A masturbação seria considerada, no limite, uma perversão; e a este
mal uso da sexualidade, são atribuídos pelos mcdicosos mais diversos
malefícios: a degeneraçào mental c moral, a impotência, o vicio. Com
base neste d iag n ó stico cien tífico , co n ta-se de pais /c io s o s e
desesperados por seus filhos recorrerem a métodos drásticos, como
o uso de lençóis semelhantes a camisas de força, cautcrizações da
glande *ki do clitòris e, no limite, a cxtirpaçSo destes órgãos tentadores.

Q u tstô csp an i discussão


1. Em que sentido Mesmcr c cientista?
2. Como a Medicina, no século XIX, passa a ocupar 0 Imrurdu Igreja como
referência moral?
j . A Medicina continua ocupando esse lugar hoje? Justifique.

123
A Construção do cu na Mi>demidude

17
CO N SUM A Ç ÃO DA
C R IS E
D A S U B J E T IV ID A D E

Em conclusão, será exposto aquele que parece


ser o ponto mais alto da crise dos valores
humanistas e de toda a Modernidade, o
pensamento de Sietzsche,

P
JL ara concluirmos o percurso deste livro, retom am os a
idéia inicial: para a constituição da Psicologia, no final do século XIX,
foi necessária a constituição e a crise da noção de subjetividade.
Esta noção de subjetividade está estreitam ente relacionada à história
do humanismo modem o, que acreditou que o homem cra o centro do
universo e livre para determinar seu destino. Acompanhamos alguns
dos movim entas de consumação destas duas condiçòes,
No século XIX, o humanismo foi atacado por diversas frentes.
Apenas para citar algum as, com as quais nào trabalhamos, podemos
m encionar Karl Marx e Charles D anvin Marx nega a liberdade
humana com a concepção de que o homem é determinado por leis
econôm icas que desconhece. Darwin nega a central idade do homem
no mundo, inserindo-o em uma série natural da cadeia evolutiva
Talvez o ponto culm inante ila destituição d o cu do lugar a
que havia sido elevado no século XVII tenhu-sc dado através de
N iel/sche. filósofo n a sc id o em ! H44. Em sua obra encontramos talvez
um dos discursos m ais corrosivos sobre qualquer certeza que se
pretenda Ter sobre si. K o alvo-chavc dc Nietzsche c precisamente o
eu. Se o cu cra tomado com o a base sobre u qual todo o conhecimento
do mundo podia ser atingido, atacá-lo significa demolir todo o edifício

124
Pedro Luís Ribeiro de Santi

da M odernidade, Estariamos diante de uma incerteza scm clhaile


àquela dc M ontaignct no século X V I.
Desde Nietzsche, parece ter-se difundido cada vez mais a
idéia de que o ‘e u ‘ não c uma substância, mas um órgão responsável
p o r n o ssa a d a p ta ç ã o ao inundo. Ele não p o ssu iria q ualquer
transcendência e teria uma certa tendência a superestim ar seu valor
e independência. F.m Para além do bem e do mal, N içt/schc apoita
para o equívoco dc D escartes que, baseado cm um preconceito
gramatical, derivou a existência dc um sujeito paia toda a ação. Nus
M editações filosóficas. Descartes rcali/ou seu conhecido “pulo do
gato" para escapar do ceticism o. Seu procedim ento consistia na
dúvida sistem ática á procura de alguma verdade indubilável; ao
perceber que. sobre todo c qualquer ob|eto sobre o qual voltava seu
pensam ento, pairava alguma som bra de dúvida, voltou-sc pare o
próprio proced intento e constatou que nào podia haver dúvida quanto
à existência da própria ação dc duvidar. O pulo do gato consistiria na
conclusão derivada da gramática de que para toila ação deve h a 'c r
um sujeito. A partir desta exigência, estaria fundada a constatação
da existência de uma primeira certeza: a certeza du existência dc um
'e u ', ao m e n o s enquanto scr pensante. N iet/sclic afirm a que cila
conclusão não c dc forma algum a necessária. Para ele, a ação é
tudo Seria necessário resgatar este caráter constitutivo do "Eu penso,
logo existo", negando sua pretensa evidência.
Restituir o ‘eu ’ ao lugar de pronome significa tomar o ‘eu’
em relação ao *tu\ ao ‘nós’, etc, Tnita-sc dc revelar que o ‘.si-mesrro’
c um dado reflexivo, advindo da relação com um ‘nào-eu’, um ouro.
Esta recolocação do ‘cu* parece estar i n s e r i d a em uma descrença
quase que generalizada no projeto da M odernidade.
Em A g e n e a lo g ia da m o ra l . e n co n tram o s alguns <lns
aspectos mais característicos do seu pensamento de Nietzsche. A
própria concepção de genealogia jã nos esclarece muito sobre Mia
perspectiva: ela recusa a transcendência a qualquer objeto c busca
inseri-lo em seu contexto dc constituição. A ssim , a moral -que
pretende definir valores dc bent e mal absolutos- c desautorizada c
questionada quanto à sua origem. A moralidade m oderna teria siJo
forjada por homens fracos, que leriam criado a associação “ fraqueza,
submissão - bondade" Diante de sua impossibilidade dc se afirmarem

125
A Construção do eu na Modernidade

no mundo, eles buscaram transform ar sua mediocridade em mérito.


A moral procura criar um homem estável, confiável, capaz dc fazer
promessas, impondo um cstancamcnio tu> lluxo das forças.
Estes seriam homens do ressentimento, im oxicadoscom seus
própnos impulsos que nào podem expressar. Neste sentido, mesmo a
inteligência c a interioridade seriam apenas sinais de fraqueza:

"I odos os instintos que não sc descarregam para fora valtiur,i-


se [mm dentro -isto é o que chamo dc interiorização do
homem, É assim que no homem cresce o que depois se
denomina sua ‘aJma\ (p. 90)"”

A ssim , nasce a má*con.scicncia, que inibe a ação e se


desdobra etn mais má-consciência. Somos, por isto, “homens ck>
desconhecimento”, por nào nos term os nunca procurado e por nos
alienarm os em uma estabilidade felsilicadora.
Em Para além do bem c do m al , N iet/sche prossegue com
a exposição de nossa hipocrisia e o hábito de mentir, que nos
caracterizam como artistas. Mas. além disso, a critica à moral c tio
‘eu ' mais aparente c aprofundada através da crítica à concepção de
um ‘eu ’ transcendente (como já desenvolvemos nas partes anteriores)
e. afinal, com a critica ã coisa cm si. N iet/sche de.scrê de toda c
qualquer existência cm si e toda a experiência humana é colocada
em tennos tlc interpretação dentro dc uma tlada perspectiva. Nào
resta nada sólido. A isto a tradição filosófica denom ina dc niilismo.
Segundo Hcidegger. filósofo alemão do século XX. o termo
niilismo remete ctimologicamente ao "nada” : em termos filosóficos,
remeteria à descrença definitiva cm qualquer scr supra-scnsívcl, “tudo
seria nada” . Enquanto o pensamento metafísico liga-sc à crença de
que há um determinado alvo a scr atingido pela existência, o niilismo
depara-se com que nào há tal alvo.
Nictzsche refere-se frequentemente ao termo niilismo, muitas
vezes rcfcrindo-sc a um certo pessimismo e uma atitude negativa perante
avida como em Schopenhauer. Mas o niilismo dc Scbopetihaucr ainda
c fraco; sua negatividade mostra que seus valores ainda estão ligados
ao universo perdido Nictzsche propóe, em contraparlida. um niilismo

n Nictzsche, etn Genealogia do Morai.

126
Pedro Luis Ribeiro de Santi

radical, no qual a revelação da ausência de sentido último das coisas


levasse a um lançar-se â vida. Citemos Hcidcggcr:

“Nietzsche serve-se do termo ■mílismo’ para designar o


movimento histórico cujo remo c k foi o primeiro a reconhecer,
pelos séculos precedentes, próprio a determinar os séculos
posteriores c cuja interpretação ele definiu brevemente par
estas palavras: ‘Deus está morto’. O que quer dizer o D c js
enstão’ perdeu seu poder sobre o ente c sobre a destinaçio
do homem. O ‘Deus cristão’ é designação própria para
designar o 'supra-sensível' cm geral c suas diferentes
interpretações, os ‘ideais’ e as ‘normas’, os ‘princípios’ c is
‘regras’, as ‘finalidades’ c os 'valores', erigidos sob o ente
paru dar á totalidade do ente um fim, uma ordem e como se <iz
simplesmente -para lhe ‘dar um sentido’", (p, 32)1J

Segundo Tíctdcgger. ainda que Nictzschc leve a Modernidade


uos estertores, ele ainda sc encaixaria nela c seria sua expressão
limite. A vontade de potência, vazia de conteúdo ou valor moral,
seria a última form a da procura por algo que subjaz á a ç á a Ao
considerar que n ‘verdade’ seria aquilo que fosse tomado pelo sujeito
enquanto tal, Nietzsche estranhamento estaria alcançando o último
degrau em uma série iniciada por Protágoras - “O homem c a medida
de todas as coisas”- , passando por Descartes - o homem enqianto
“sujeito” da objetividade.
Teríamos, no entanto, com Nietzsche, um retorno ao corpo.
C ito ! Ieideggerr

“Para Descartes, o homem é sujeito no sentido da ego-idate


(éjço-iré) representatriz. Para Nictzschc, o homem é sujeito no
sentido dos impulsos c dos afetos dados, enquanto que
“último tacuuiv", ou seja, para dizc-lo brcveiucntc, do corpo.
É nesta regressão ao corpo enquanto linha de eondutu
metafísica que sc realiza toda interpretação do mundo ” M

w Hcidcggcr, "O niilismo europeu", cm Nietzsche, Volume 2".


M Embora estejamos fazendo uso da interpretação heideggcnam do
pensamento de Nietzsche, vale dizer que os estudiosos mais recentes de
sua obra não concordam com a identificação de Heidegger com o
“acabamento da meta tísica” .

127
A Construção do cu tu Modernidade

Neste sentido» segundo Heideggcr, a critica aos valores c à


c o sm o lo g ia de N ic tz sc h e m a n te ria m -n o v in c u la d o a in d a á
Modernidade.
Eis com o Nictzsche expressa a radicalidade de sua critica:

“A falsidade de um juízo não chega a constituir, para nós,


uma objeção contra ele; c talvez nesse ponto que a nossa
nova linguagem soa mais estranha. Á questão c cm que medi­
da ele promove ou conserva a vida, conserva nu ale mesmo
cultiva a espécie; c a nossa inclinação básica c afirmar que os
juízos mais falsos (entre os quais os j uízos sintéticos a príori)
nos são os mais indispensáveis, que. setn permitir a vigência
das ficções lógicas, sem medir a realidade com o mundo pura-
mente inventado do absoluto, do igual a si mesmo, o homem
não poderia v iver -que renunciar aos juízos falsos eqüivale a
renunciar ã vida, negar a vida. Reconhecer a inverdade como
condição de vida: isto significa, sem dúvida, enfrentar de
maneira perigosa os habituais sentimentos de valor; e uma
filosofia que se atreve a fazê-lo coloca-se, apenas por isso,
além do bem e do mal. (p. ] 1-12)"”

Viveríamos, assim em um registro de ficções necessárias, e


a ética da existência se deslocaria da busca pela verdade para a do
bem viver c conviver. Talvez aqui estejamos tocando uma experiên­
cia não moderna
Para voltarm os à nossa discussão original, tom em os um
trecho dc uma obra de Nietzschc onde se explicita o despojam ento
das pretensões do cu.

T E X T O ANEXO - F ricdnch H llhelm Nietzuche

SOBRE VERDADE E MENTIRA NO SEN IID O LXTRA-MORAL

“Em algum remoto nticãu do universo cintilante que


se derrama cm um sem-número de sisicinas solares, havia
urna vez um astro, cm que animais inteligentes inventaram o
conhecimento. Foi o minuto mais soberbo c mais mentiroso

Jí Pura além da ÍHrm e do mal,

128
Pedro Luis Ribeiro de Santi

da “história univ ersal’'; mas também foi somente um minuto.


Passados poucos lôlegos da natureza, congelou-se o astro e
os animais inteligentes tiveram de morrer. Assim poderia
alguém inventar uma fábula c nem pur isso tena ilustrado
suficientemente quão lamentável, quào fantasmagórico e
iúgaz. quáo sem finalidade e gratuito fica o intelecto humano
dentro da natureza. I louve eternidades, cm que não eslava;
quando de novo cie tiver passado, nada terá acontecido. Pois
não há para aquele intelecto nenhuma missão mais vasta que
conduzisse alem da vida humana. Ao contrário, ele e humano,
c somente seu possuidor c genitor o toma tão pateticamente
como se os gonzos do mundo girassem nele. Mas se
pudéssemos entender-nos com a mosca, perceberíamos então
que também cia bóia no ar com esse pálhos e sente em si o
centro voante deste mundo Não há nada làn dcspre/ivel c
mesquinho na natureza que, com um pequeno sopro daquela
força do conhecimento, não transbordasse logo como um
odre; e corno todo transportador de carga quer ter seu
admirador, mesmo o mais orgulhoso dos homens, o filósofo,
pensa ver por todos os lados os olhos do universo
tclescopicamentc em mira sobre seu agir c pensar.
É notável que o intelecto seja capaz disso,
justameute ele.que foi concedido apenas como nvcio auxiliai
aos mais infelizes, delicados e perecíveis dos seres, para firmá-
los um minuto na existência (...)” t p. 3 1)*

M ÚSICA Hizft f S u iii‘

Km uma última referência à música, gostaria de destacar


dois caminhos, tom ados na segunda metade do século XIX.
De um lado, parece que, a partir dc Wagner, houve uma
espécie de esgotam ento das possibilidades do universo mutical
desenhado por liach. O esquem a das tonalidades e compassos parecia
não term ais desenvolvimentos possiveis. L'm dos caminhos tomados
pela música desde então foi a tentativa de beber em fontes populares,
ou nacionais. Neste sentido, vale a pena mencionar a sensualidade

'**Ouça "L ‘a mourest uh oiseau rebeiié”, da ópera “Gi/rnem, de

129
A Construção do cu na Modernidade

espanhola na ópera Carm em , do francês Bizet” . Aliás, diga-se de


p a s s a g e m , n e ssa ó p e ra e s tá p re s e n te uin d o s e le m e n to s
paradigmáticos da constituição da Psicanálise: a histeria.
De o u tro lado, no final do sé c u lo surge u m a m ú sica
extremam ente m elancólica e dissonante, já quase atonal. que sugere
o quão quebrado e sem referências encontrava-sc o eu. Citam os
aqui, com o exem plo, F.rik Satie. Parte de sua obra tem um tom
hum orístico m arcado, com m úsicas para bordéis c experim entos
“riem ificos” , com a série chamada “em briões dissecados” , De oura
parte, ele possui peças de uma m elancolia profunda, m as sem a
tragicidadc romântica, trata-sc dc um sentimento dc desengate17.

Q u estõ es p a r a d iscu ssão


1. Por quê identificam os em Nietzscbe o ponto máximo da crise do
“eu” ?
2. Qual é o significado de niilismo?
3. Qual é a função do “eu” para Nietzsche?

” Um exemplo seria a “GymnopeJie n' J, de Satie” ,


Pedru Lu b Ribeiro de Sanb

C O N C LU SÃ O

TA raçam os, em linhas gerais, alguns _m odos de se pensar o


sujeito que foram condições para o surgimento da Psicologia, Como
dissemos rui introdução, não nes o c u p a m o s dc uma história das praticas
médicas ou terapias prévias a ela. N osso interesse foi o de ressaltar
a im plicação da Psicologia nr. M odernidade ocidental A Psicologia
Ocidental tem com o fundamento a su b je tiv id a d e .
As Psicologias procuraram responder de diversas form as às
dem andas surgidas da erise da subjetividade m oderna Realmente,
nào é ã toa que suas linhas principais tenham tido inicio no fim do
século XIX. Em alguns casos,as teorias alinham -se a uma ou algumas
destas tendências, quer para afirmar a subjetividade, em alguma dc
suas acepções, quer para, de fato, pò-la cm questão.
Ao lerm os algum a teoria psicológica poderíam os ter em
mente, como um instrumento dc reflexão, algumas perguntas relativas
à posição dessa teoria no contexto histórico. Qual a concepção dc
hom em ou m ente c envolvida cm dada teoria? Ela acredita na
liberdade? O eu c o objeto privilegiado de estudo? Ela se pretende
cientifica nos lerm os positivistas? Qual é sua perspectiva ética? A
resposta a este tipo de pergunta pode-nos ajudar a nos situarm os
diante deste campo inevitavelmente Làu disperso, com o o da Psicologia.
Alétn disso, poderem os passar a ver que uma determ inada teoria
pode ter nascido depois dc outras e se apresentar com o “ última
palavra”, “ novo paradigm a” ctc., c ainda assim ser tributária de
concepções nem tão novas, ou ser altamente com prom etidas com
crenças que talvez ate mesmo desconheça.

J31
A Consiruçàu do eu na Modernidade

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