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Gabriel Garcia Moreno, vencedor do liberalismo no Equador, 2

Por Pe. José Maria Iraburu

Tradução: Dr. Rafael Vitola Brodbeck

Fonte: Fundación Gratis Date

O Equador

Como já indicamos, a atitude antiliberal da Igreja, durante o século XIX, lhe trouxe em
todo o Ocidente, graves perseguições, que foram particularmente duras na América
Hispânica. Com efeito, os governos das novas nações perseguiram a Igreja com
freqüência, e ao princípio não somente por serem liberais, senão também porque os
Bispos em geral, e mesmo os Papas, haviam exortado a guardar fidelidade à Coroa
Espanhola (Pio VII: ?Etsi Longíssimo?, 1816; e Leão XII: ?Etsi iam Diu?, 1824).

Isso explica que desde 1824 até meados do século XIX, não se normalizaram as relações
entre os governos e o Vaticano. Entretanto, o ataque à Igreja não foi aberto nos
primeiros decênios. As primeiras Constituições da independência, todavia, consideravam
como única a religião católica, e seguiam deixando à Igreja a orientação educacional.
Porém a rosca da perseguição havia de ir apertando-se mais e mais nos decênios
seguintes... Evocaremos estes fatos em um caso concreto, o do Equador de meados do
século XIX.

Entre Colômbia e Peru, aparece ao mundo o Equador, um pequeno país grandioso em


suas alturas andinas, em seus vales férteis, em sua encantadora costa. Sua capital é
Quito, cidade sublime e majestosa, que se alarga entre dois cumes de quase 6.000
metros de altura. Fundada em 1534, sede episcopal desde 1543, foi constituída em 1564
cabeça da Real Audiência, que compreendia, no interior do Vice-Reinado do Peru, a
região do antigo reino quitenho dos incas. Antes dela, nascera São Miguel de Piura, a
primeira cidade hispânica da América do Sul, e em seguida, em 1535, Guayaquil, liberal
e aberta ao mundo em um porto sempre muito ativo.

Em Quito, o crioulo marquês de Selva Alegre dá, em 1809, o primeiro grito de


independência da América Espanhola, que é mais um protesto ao liberalismo espanhol,
pois os próprios rebeldes formaram com 3.000 homens um exército favorável a Fernando
VII. Em 1810 se cria uma Junta de Governo, e em 1811 o Congresso, por proposta do
Bispo José Cuaro y Caicedo, declara a independência, mas sem conseqüências reais. É
em 1822, depois da vitória do general Sucre nas encostas do Pichincha, que se produz a
verdadeira independência do Equador.

Incorporados nesse ano à Grande Colômbia, o Equador dela se separa em 1830, depois
de tê-lo feito a Venezuela em 1829. Então, em 1830, começa propriamente sua vida
nacional independente, sob a guia do general venezuelano Juan José Flores, que foi seu
primeiro presidente (1831-35 e 1839-43), e seu indiscutível fundador. Enérgico e quase
analfabeto, péssimo organizador, procura um poder forte, um sufrágio restrito, e uma
situação favorável para a Igreja. Com ele se alterna Vicente Rocafuerte, guayaquilenho
(1835-39), liberal convencido e europeizante. Também ele, como Portales e Rosas,
queria a ordem acima de tudo: “Não me intimida o título de tirano.” Em 1845 Flores é
desterrado, e o país, que já vinha mal governado, vai decaindo durante quinze anos até
o caos, primeiro pela mão de três civis, Roca (1845-49), Ascásubi (1849-50) e Noboa
(1850-51), e depois de dois militares, Urbina (1851-56) e Robles (1856-59).

“E nesses momentos, em que o Equador se encaminha por rumos anárquicos, surge


como sinal destacado uma figura política de magnitude excepcional. Ela sozinha se
destacará sobre todas as demais do Equador do século XIX. Gabriel García
Moreno.”(Belmonte. “Historia Contemporánea de Iberoamérica”, 180)

Faremos a crônica de sua figura com ajuda da biografia de A. Berthe e de Adro Xavier, e
seguindo também José Belmonte na obra citada.

Gabriel García Moreno (1821-1875)

Na cidade de Guayaquil, porteña e liberal, no ano de 1821, nasceu Gabriel García


Moreno, oitavo filho de uma família muito distinta, pois seu pai Gabriel García Gómez,
espanhol leonês, nascido perto de Ponferrada, foi procurador síndico de Guayaquil, e sua
mãe, Mercedes Moreno, era filha do governante perpétuo do conselho da cidade, irmã do
arcediago de Lima e do ouvidor de Guatemala, e tia do Cardeal Moreno, Primaz de
Toledo. Gabriel, em criança, dava mostras de um temperamento extremamente
debilitado e medroso. De tal modo lhe espantava qualquer coisa que não pode ser
enviado à escola, e foi sua mãe sua primeira mestra.

Gabriel, aos nove anos, justamente quando se produz a independência, torna-se órfão de
pai, e a família, que se havia destacado como monarquista, se vê na ruína. Um bom
frade mercedário, o Pe. Betancourt, que ajudava espiritualmente Dona Mercedes, tomou
conta de Gabriel, servindo-lhe de mestre durante vários anos, com grande proveito.
Gabriel, que falava às vezes em latim com seu mestre, mostrava uma memória
prodigiosa e uma grande facilidade para o estudo. Nesses anos mudou totalmente sua
forma de ser, fazendo-se uma personalidade forte e valente.

Aos quinze anos começa Gabriel seus estudos de Filosofia e Direito na Universidade de
Quito, fundada em 1586. Pode fazê-lo graças a duas irmãs do Pe. Betancourt, que ali
tinham casa e o alojaram. Foi ótimo estudante, e se manteve com bolsa durante todo o
curso. Aprendeu por sua conta francês, inglês e italiano. O ambiente cultural que o
rodeava era racionalista, volteriano e laicista, abertamente hostil à Igreja, e na vida
pública tudo era mentira e corrupção. Vendo assim a situação, não se limitou a lamentar-
se, senão que se decidiu a ser político católico.

Aos vinte e cinco anos obtém García Moreno o doutorado. E sua vida, sempre muito
ativa, se vai acelerando mais e mais. Explora cientificamente as crateras dos vulcões
Pinchincha e Sangay. Casa-se com Rosa Ascásubi. Como escritor combativo, lança
sucessivamente vários periódicos, El Zurriago primeiro, La Nación depois, e outro, El
Vengador, e mais outro, El Diablo. Pacifica em uma semana, como enviado do Presidente
Roca, uma sublevação sangrenta produzida em Guayaquil...

Mas tudo vai de mal a pior, e a nação vai caindo, entre conspirações e sobressaltos, em
um laicismo cada vais mais ignominioso. Passa García Moreno então por momentos de
desânimo, chegando a considerar a possibilidade de se dedicar, como seu próspero irmão
Pablo, ao comércio. Viaja à Europa, à Inglaterra e Alemanha, e na França se reafirma
definitivamente sua vocação política, estimulado pelo exemplo de seus amigos católicos
franceses. Reintegra-se em 1850 ao Equador, e consegue, com um golpe de mão pessoal
diante do Presidente Noboa, o regresso dos jesuítas, coisa que os maçons não podiam
tolerar. O general Urbina, quando sobe ao poder, os expulsa novamente, alegando que a
real cédula de Carlos III, espanhola, de 1767, estava vigente (!).

Exilado

García Moreno ataca duramente através do semanário La Nación a política de Urbina, e


este, em 1853, o desterra para a Colômbia. Dali foge, volta secretamente a Quito,
refugia-se mais tarde em um barco francês atracado ao porto de Guayaquil, é eleito
deputado, e é desterrado pela segunda vez, nesta ocasião para a costa peruana, a um
lugarejo afastado. Ali escreve um folheto em defesa própria, La verdad de mis
calumniadores e, como sempre que pode, se dedica ao estudo.

Em 1855 volta a Paris, pois necessita de livros e pessoas com as quais quer aperfeiçoar
seu pensamento, preparando-se para sua missão. Todos os temas lhe interessam:
matemática e ciências naturais, engenharia e filosofia, agricultura e história. “Estudo
dezesseis horas diárias” escreve a um amigo , “e se o dia tivesse quarenta e oito,
passaria quarenta com meus livros, sem a menor dificuldade.” Por aquele tempo,
estudou Balmes e Donoso Cortés, e leu três vezes a “História Universal da Igreja
Católica”, de Rohrbacher, editada recentemente em 29 volumes, entre 1842 e 1849, a
obra que mais o influenciou em sua formação doutrinal e espiritual.

Ainda que com este e outros estudos consolidasse mais e mais seu pensamento católico,
por aqueles anos, entretanto, havia abandonado as práticas religiosas: não se confessava
nem ia à Missa aos Domingos. Um dia, em uma discussão com um ateu, este lhe jogou
na cara sua incoerência, e Gabriel foi vencido pela graça de Deus. Confessou-se em
seguida e desde então participou da Eucaristia diariamente.

Prefeito, reitor e senador

Ao fim de 1856, uma anistia proclamada pelo general Robles, sucessor do general
Urbina, permite o regresso de Garcia Moreno, depois de três anos de desterro. Acolhido
triunfalmente em Quito, é eleito prefeito da cidade em 1857, e pouco depois reitor da
universidade, e senador pela oposição. A degradação da vida política, cultural e
econômica naqueles últimos anos de ditadura militar era completa.

Seriam necessárias muitas páginas (do que não dispomos) para descrever as lutas e
tramas, os nepotismos e traições, que na ocasião dominavam a vida pública, na qual a
arbitrariedade dos políticos e a violência dos soldados e policiais iam muito além do
tolerável. L.F. Borja afirma que 1859 foi “o ano da crise para o Equador, quando esteve
em perigo de desaparecer como nação independente, o ano da anarquia” (Belmonte.
Historia Conteporánea de Iberoamerica, II, 180)

Primeira presidência (1861-65)

Depois de vinte e cinco anos de governos liberais e despóticos, sectários e inúteis,


compôs-se em 1860, graças em boa parte a Garcia Moreno, uma nova Constituição, e foi
ele eleito por unanimidade para presidir o governo. Começa imediatamente uma obra
formidável, da qual escreve José Belmonte:

“Organiza-se agora a fazenda, o ensino e o exército; estabelece-se um Tribunal de


Contas; reduzem-se as taxas fiscais. Garcia Moreno usa de muito ardor para combater
com energia a especulação, o contrabando e a burocracia, assumindo igualmente as
obras de viabilidade do país. Simboliza o freio mais decidido contra o militarismo que
imperava. Seus passos giram em torno do estabelecimento de um regime civil,
encaminhando-se à instauração de um Estado católico.”

Seu primeiro governo pode chamar-se, na expressão de Crespo Toral, o período heróico
de Garcia Moreno. Foram aqueles anos, desde o governo provisório até 1865, de
verdadeira prova: o motim dos quartéis, as invasões a mão armada, o punhal aguçando-
se na sombra, duas guerras internacionais... Nesses anos lúgubres de furor, de
desespero, começaram em parte os gigantescos trabalhos da rede de estradas, as vastas
empresas de ensino, de beneficência, de saneamento moral da República, de cujo
território, dos claustros para fora, limpou-se toda imundícia que pudesse corromper o
ambiente e propagar pestilência ou contágio... Em anos tão difíceis, com rendas
adequadas somente para o sustento da vida, teve o erário a elasticidade que dá a
honradez.” (181)

Em 1862 estabeleceu-se a concordata equatoriana com a Santa Sé. Em 1863 celebrou-se


um Concílio Nacional, no qual se restaurou, entre coisas, a disciplina do clero. Chegaram
ao país não poucos religiosos estrangeiros. E pela primeira vez em muitos anos o
Equador, país com imensa maioria de católicos, pôde viver em uma atmosfera favorável
à Igreja e à vida cristã. Entretanto, a obstrução sistemática de liberais e radicais, e a
ambição hostil da Colômbia e do Peru, cujos maçons confraternizavam com Urbina,
pondo em perigo a própria integridade territorial do Equador, mantiveram a vida política
em uma tensão contínua e em perigo permanente.

Segunda presidência (1869-75)

Em 1868, Garcia Moreno, aos quarenta e sete anos, se casa em segundas núpcias com
Mariana de Alcázar, e prepara sua retirada da vida pública em uma fazenda afastada.
Seguem-no na presidência, sucessivamente, dois homens de sua confiança, Carrión e
Espinosa; porém estes políticos, sendo débeis, põem outra vez o país às bordas da
anarquia. Garcia Moreno, então, antecipando-se a Urbona, que se preparava para dar um
golpe de estado, convoca a Convenção de 1869, na qual se reforma a Constituição do
Estado. E de novo é constituído presidente.

Desta segunda presidência escreve Remigio Crespo Toral: “Nesses seis anos foi a paz, o
desenvolvimento estupendo da nação e o pico de seu progresso. Com menos de três
milhões de ingressos ao ano, realizou-se o prodígio de extensão, de influência, de
exaltação de nossa pobre República, ao ponto de incorporar-se ela na sociedade
internacional. Não houve necessidade de imposições, foram raros os castigos e a
mansidão ia formando a atmosfera” (Belmonye, 183).

Ao morrer Garcia Moreno, o primeiro ensino, comparado aos tempos de Urbina, se havia
multiplicado por quatro; a Universidade de Quito era uma das melhores da América;
iniciou-se o restabelecimento entre os índios dos povoados missioneiros, que haviam sido
admiráveis; o exército já não impunha sua prepotência quartelária, senão que havia sido
reorganizado ao serviço da nação; os funcionários, reduzidos de seu número abusivo,
cumpriam seu horário de trabalho; os livros de contabilidade da República, antes
praticamente inexistentes, estavam em dia, e se haviam eliminado quase por completo
as enormes dívidas contraídas nos decênios anteriores de corrupção políticos. Tudo isso,
obviamente, resultava para muitos intolerável, por ter sido realizado por um político que
se atrevia a aplicar em seu governo a doutrina católica.

Político católico

Garcia Moreno foi sempre um político absolutamente convencido da veracidade da


doutrina política e social da Igreja. No começo de sua Constituição de 1869,
dolorosamente aprovada em plebiscito popular, se dizia: “Em nome de Deus, uno e trino,
autor, conservador e legislador do Universo, a convenção nacional do Equador decreta a
seguinte Constituição...” Fiel à doutrina da Igreja, então presidida por Pio IX, estava
persuadido de que só se poderia edificar o bem comum temporal de uma nação cristã
respeitando em tudo as leis de Deus.

Por isso, quando em 1864 Pio IX publicou o Syllabus, e muitos, incluindo católicos,
atacavam o documento, ele dizia: “Não querem compreender que se o Syllabus
permanecer como letra morta, as sociedades acabam; e que se o Papa nos põe diante
dos olhos os verdadeiros princípios sociais, é porque o mundo tem necessidade deles
para não perecer”.

Garcia Moreno, ademais, era plenamente consciente da singularidade provocativa de sua


política. Em uma ocasião reconhecia que os maçons “por meio de seus governantes, são
mais ou menos donos de toda a América, a exceção de nossa pátria.” Mas essa mesma
consciência lhe confirmava a urgente necessidade de firmeza em sua política. Com efeito,
dizia-se a si mesmo: “este país é incontestavelmente o reino de Deus, lhe pertence como
propriedade, e não fez Ele outra coisa que confiá-lo à minha solicitude. Devo, pois, fazer
todos os esforços imagináveis para que Deus impere neste reino, para que minhas
ordens estejam subordinadas às suas, para que minhas leis façam respeitar a sua lei”.

E em sua mensagem ao Congresso, em 1873, com a valente franqueza que nele era
habitual, declarava: “Se temos a graça de ser católicos, o sejamos lógica e abertamente;
o sejamos em nossa vida privada e em nossa existência política. Arranquemos de nossos
códigos até o último rastro de hostilidade contra a Igreja, pois todavia algumas
disposições restam neles do antigo e opressor regalismo (supremacia do Estado sobre a
Igreja), cuja tolerância seria adiante uma vergonhosa contradição e uma miserável
incoerência.”

No referente, por exemplo, à educação, a Constituição equatoriana, que proibia a


maçonaria, ordenava que fosse uma educação católica, com indizível escândalo dos
liberais, radicais e maçons, que na maioria das nações americanas dominavam havia
anos a área política educativa. Porém Garcia Moreno argumentava: É antidemocrático
assegurar à população aquela educação que prefere a imensa maioria dos cidadãos? Por
que um povo cristão há de estar submetido durante gerações a uma educação
explicitamente anticristã? Por que aos filhos há de se lhes arrancar na escola a religião de
seus pais? É isso realmente exigido pela democracia?...

Garcia Moreno nesta questão, como em tantas outras, estava praticamente sozinho em
toda a América, pois uma falsa ortodoxia democrática impulsionava aos políticos cristãos
a remover a Igreja da educação, deixando esta em mãos da única alternativa forte,
organizada e com apoios exteriores: radicais e maçons. Estes, em muitos países,
entravam para formar parte de instáveis governos de coalizão, dizendo: “Vocês
controlem a economia, o exército, as relações com o exterior, e tudo o mais: nós nos
encarregaremos da educação”.

Garcia Moreno, como a maioria de seus compatriotas cristãos, foi formado na devoção ao
Coração de Jesus, e sendo já presidente, a Ele quis consagrar o Equador, a nação inteiro,
e para isso apresentou consulta ao terceiro Concílio, reunido na ocasião em Quito. Obtida
a licença eclesiástica, e com o voto majoritário do Congresso, se realizou em 1873, com
grande solenidade e fervor popular, a consagração do Equador ao Sagrado Coração de
Jesus. Foi a primeira nação do mundo que o fez, e em dez anos se levantou um grande
templo nacional votivo para memória do acontecimento. Pouco antes de sua morte,
Garcia Moreno vaticinou com acerto:

“Depois de minha morte, o Equador cairá de novo nas mãos da revolução; ela governará
despoticamente sob o nome enganoso do liberalismo; porém o Sagrado Coração de
Jesus, a quem consagrei minha pátria, o arrancará uma vez mais de suas garras, para
fazê-la livre e honrada, sob o amparo dos grandes princípios católicos”.

Homem católico

Gabriel Garcia Moreno pode ser um político verdadeiramente católico porque era um
homem católico em verdade. Trabalhava muitas horas cada dia, sujeitando sempre seu
horário a uma distribuição muito estrita, que incluía levantar-se às cinco horas da
manhã, ter Missa, meditação e exame (de consciência) entre as seis e as sete. Passava
as férias em um povoado do qual seu irmão era o pároco. Uma vez por ano, se podia,
fazia uma semana de exercícios espirituais. Não costumava dar banquetes (nem sequer
quando fora eleito presidente pela primeira vez; naquela ocasião entregou o dinheiro do
banquete a um hospital), e procurava o quanto possível evitar convites. Esses exageros
vinham aconselhados pelos escândalos precedentes, habituais na Presidência do governo.
Não sendo homem de fortuna pessoal, cedia parte de seu soldo oficial ao erário nacional,
e parte a obras de beneficência.

Guardava um aspecto humilde, e apesar do ímpeto de seu caráter, gastava uma imensa
paciência para, por exemplo, conseguir do Congresso a aprovação de bons pressupostos,
obras e leis. Era, como já foi visto, sumamente estudioso, e inclusive em seus tempos de
político recebia com freqüência da Europa obras sobre ciência, filosofia ou história e,
sobretudo da França, livros de pensamento católico. Também era dado à leitura de
temas bíblicos ou patrísticos, do Magistério ou de autores espirituais.

Em uma das últimas páginas da Imitação de Cristo, o livro de Kempis que levava sempre
consigo, anotou, por ocasião de uns exercícios espirituais, entre outras normas: “Oração
a cada manhã, e pedir particularmente a humildade. Nas dúvidas e tentações, pensar
como pensarei na hora da morte. Que pensarei sobre isto em minha agonia? Fazer atos
de humildade, como beijar o solo em segredo. Não falar de mim. Alegrar-me de quem
censurem meus atos e minha pessoa. Conter-me vendo a Deus e à Virgem, e fazer o
contrário do que me incline. Todas as manhãs, escrever o que devo fazer antes de
ocupar-me. Trabalho útil e perseverante, e distribuir o tempo. Observar
escrupulosamente as leis. Tudo ad majorem Dei gloriam exclusivamente. Exame (de
consciência) antes de comer e dormir. Confissão semanal ao menos.”

Garcia Moreno correspondeu-se por carta com o Papa Pio IX, que por esses anos sofria
como ele um duro ataque do laicismo militante. Em uma delas, Pio IX lhe dizia: “Sem
uma intervenção especial divina inteiramente especial, seria difícil compreender como em
tão curto tempo haveis restabelecido a paz, pago parte muito notável da dívida pública,
duplicado as rendas, suprimido impostos vexatórios, restaurado o ensino, aberto
caminhos e criado hospícios e hospitais.”

Juízos sobre sua personalidade política

As forças que abominam toda influência real do cristianismo na vida pública sempre
viram em Gabriel Garcia Moreno “o representante máximo do obscurantismo clerical”,
“um ditador sagüinário”, “um teocrata conduzido pelos jesuítas” etc. Isso é normal. Mas
também é normal que nós aqui demos a palavra a pessoas mais dignas de consideração:

José Luís Vasquez Dodero qualificar a Garcia Moreno de “férreo espírito, assentado em
uma surpreendente fisiologia... e não somente o primeiro e maior dos equatorianos,
senão um dos homens verdadeiramente extraordinários que foram produzidos pela
América... Poucas vezes houve um produto tão assombroso de energia física e energia
moral... A insólita personalidade de Garcia Moreno e o fervor com que foi assistido pelo
povo equatoriano tentariam-nos a aplicar-lhe o termo “carisma”, com o qual
designaríamos suas maravilhosas faculdades e a exaltação que os equatorianos delas
fizeram”.(Belmonte, 185)

O historiador Garcia Villoslada afirma que “a figura de Gabriel Garcia Moreno é no


aspecto político-religioso a mais alta, pura e heróica de toda a América, e nada perde em
comparação com as mais culminantes da Europa cristã em seus melhores tempos. Basta
ela somente, ainda que tenham faltada outras, para que a república do Equador mereça
um brilhante capítulo nos anais da Igreja.” (Adro Xavier, 388)
Os tolerantes não toleram

Em 1874 havia acordo entre as forças políticas para reeleger Garcia Moreno por um
terceiro período presidencial. Contudo, havia também um convencimento generalizado de
que seus inimigos não estavam dispostos a suportá-lo mais. Em 20 de julho lhe escrevia
seu sogro, Ignácio de Alcázar: “Se a seita radical triunfar, a religião será perseguida, as
obras públicas e vias de comunicação abandonadas e, sobretudo, a guerra civil será
interminável, devendo tudo isto e muito mais começar por assassinar-te... Não vejo
outro meio de salvar-te que sair do país.” Todos os seus amigos temiam o mesmo, e lhe
aconselhavam prudências e escoltas, sem que ele fizesse caso.

Produziu-se, finalmente, por maioria esmagadora, a terceira eleição de Garcia Moreno


para a Presidência. E liberais e maçons (sempre “tão atentos” à vontade do povo)
formaram em seguida um coro mundial de lamentações e protestos.

Uma vez mais a opinião unânime internacional, a mesma que considerava natural que os
católicos não pudessem ter voto na Grã-Bretanha, ou que achava necessária, de alguma
maneira, a interminável ditadura mexicana do porfiriato, tão favorável aos interesses
econômicos do capital nacional ou estrangeiro, dava sobre a eleição democrática do
católico Garcia Moreno sua “democrática” sentença: intolerável! A imprensa liberal da
Espanha, a Gazeta de Colônia ou a de Bruxelas, o secretariado da embaixada chilena em
Lima, o periódico Monde Maçonique, inumeráveis vozes aqui e lá, com uma coincidência
realmente impressionante, exigiam o fim do homem nefasto, absolutamente
incompatível, apesar das vezes em que foi reeleito, com as democráticas liberdades
modernas e a civilização ocidental.

Tempo antes, em 26 de outubro de 1873, a imprensa do Peru havia reproduzido da de


Guayaquil a crônica detalhada de seu assassinato em Quito: todos os dados eram falsos,
mas se tratava de criar um ambiente. Garcia Moreno, claro, era consciente da
conspiração, porém seguia negando-se a ter escolta e a tomar medidas maiores de
precaução: “Eu prefiro confiar minha guarda a Deus. O que diz o salmista: „Se Deus não
guarda a cidade, em vão guardam as sentinelas‟.”

Em 17 de julho de 1875 escreve Garcia Moreno sua última carta a Pio IX, comunicando-
lhe sua reeleição: “Agora que as lojas (maçônicas) dos países vizinhos, instigadas pelas
da Alemanha, vomitam contra mim toda espécie de injúrias atrozes e calúnias horríveis,
procurando sigilosamente os meios de assassinar-me, necessito mais do que nunca a
proteção divina para viver e morrer em defesa de nossa santa religião e desta pequena
república... Que destino para mim, Santíssimo Padre, a de ser aborrecido e caluniado por
causa de Nosso Divino Redentor, e que felicidade tão imensa para mim se vossa bênção
me alcançasse do céu o derramamento de meu sangue por Ele que, sendo Deus, quis
derramar o Seu por nós!” E em 4 de agosto escreve a seu amigo Juan Aguirre: “Vou ser
assassinado. Sou feliz de morrer pela santa Fé. Nos veremos no céu.”

Assassinato

Em 6 de agosto de 1875, como de costume, levantou-se às cinco da manhã, e foi à igreja


para a Missa das seis. Seus assassinos, um pequeno grupo inspirado pelos escritos
incendiários do liberal Juan Montalvo, o vigiavam; mas retardaram sua ação, pois sendo
primeira sexta-feira havia grande concurso de fiéis. Mais tarde, pela manhã, entra Garcia
Moreno um momento na Catedral para fazer uma visita ao Santíssimo Sacramento.
Avisam-no de que lhe reclamam fora.

Quando sai ao sol da praça, um tal Rayo lhe descarrega um golpe na cabeça, seguido de
outros, enquanto seus cúmplices disparam seus revólveres. Foram no total quatorze
punhaladas e seis balaços. Acodem alguns soldados ao tumulto, e um deles mata Rayo
com um tiro. Em seu bolso se acharam cheques (muito mais que “trinta moedas”)
contra o Banco do Peru, assinados por conhecidos maçons.

O corpo de Garcia Moreno é introduzido na Catedral, onde recebe, já agonizante, a Unção


sacramental. Ao morrer, levava consigo, manchado todo de sangue, uma relíquia da Cruz
de Cristo, o escapulário da Paixão e o do Sagrado Coração, e o santo Rosário pendurado
ao colo. Também se achou em seu bolso um livro muito usado, que levava sempre
consigo: “A Imitação de Cristo”.

Vigência posterior do liberalismo

Herdeiros da vontade secularizante dos liberais, e especialmente dos radicais, são os


comunistas e socialistas de todo o mundo. Extintos hoje os comunistas, ou em claro
declive, no amplíssimo campo do liberalismo, encontramos a máxima vontade
secularizadora nos partidos socialistas. O fracasso evidente das economias de matriz
socialista lhes têm levado a abjurar pouco a pouco os seus primeiros projetos
econômicos; porém de modo algum relaxaram sua vontade liberal radical de eliminar
(sem grandes discursos, mas com suma eficácia) todo vestígio de religião e moral cristã
na sociedade.

Ademais, depois de lutas muito duras na Europa e na América hispânica, no século XIX e
começos do XX, o liberalismo logrou impor-se nos âmbitos fundamentais da vida pública
do Ocidente, ao menos em suas formas moderadas. Tal é sua vigência na maioria dos
povos, que já mesmo o nome de liberalismo encontra-se como que desaparecido[i][i], eis
que se identifica no Ocidente com a própria condição de uma vida social moderna. Já
hoje todos são liberais, e os partidos que se chamam liberais existem sobretudo para
acentuar uma economia livre frente ao intervencionismo socialista.[ii][ii]

Pelo que a própria Igreja se refere, também o liberalismo marcou seu selo na fronte e na
mão, i.e., no pensamento e na conduta, de muitos cristãos (cf. Ap 13,16-17), sobretudo
nos setores intelectuais. Assim, em nosso século, de modo especialmente claro nos anos
sessenta e setenta, se alça amplamente com entusiasmo a convicção difusa de que a
Igreja, fundindo as exigências do Evangelho com mitos anticristãos, está chamada a
impulsionar decisivamente as causas que o mundo não consegue fazer triunfar. Assim, se
espera um triunfo formidável da Igreja no mundo, uma conciliação entre Evangelho e
secularidade desconhecida na história, com grandes vantagens para a Igreja e para o
mundo[iii][iii]...

Também por esses anos, o milenarismo pelagiano e secular do liberalismo, que conheceu
na história radicalizações comunistas, socialistas, nazistas e fascistas[iv][iv], vai assumir
no próprio campo cristão novas formas radicais, como a “teologia da libertação”. Os
máximos liberacionistas, assinalados com freqüência como filo-marxistas, rechaçam esta
acusação com mais empenho uma vez que o mito do marxismo tornou-se desvanecido.
De fato, seus mestres, em seminários e universidades, não foram normalmente
marxistas, senão católicos liberais[v][v].

Eles, os liberais, unindo a esta influência intelectual a formação de uma espiritualidade


voluntarista, pelagiana ou semipelagiana, não fizeram senão radicalizar as
conseqüências. Com marxismo ou sem ele, vinham a ser no fundo o mesmo: afetados de
um pedantismo indescritível, arremeteram contra a tradição doutrina católica e contra as
tradições cristãs populares, decididos a ser transformadores da Igreja e da sociedade. Ao
final tiveram que ser detidos, antes que causassem mais destruição.

Enfim, os tempos hoje mudam muito depressa. Atualmente desvanecem muitos dos
sonhos míticos suscitados pelo ópio do liberalismo, em qualquer de suas inúmeras
formas milenaristas. Já não é fácil crer em messianismos comunistas, socialistas ou
liberais, nem tampouco ninguém, à vista da realidade histórica, é tão ingênuo a ponto de
esperar da democracia liberal a salvação da humanidade. Que resta então do liberalismo
e de suas derivações? Que resta dele, concretamente em amplos setores cristãos?

Restam, entretanto, muitos planos confusos, que mesclam ideais evangélicos e mitos
anticristãos. Se luta, por exemplo, contra as conseqüências do pecado, porém não contra
o pecado mesmo, e desse esforço tão precário se espera, duvidosamente, a salvação,
algo de salvação. Ou se estima, outro exemplo, como evangélica uma democracia liberal
( a que está em uso modernamente) que nega a soberania de Deus sobre a sociedade, e
que não reconhece outra autoridade sobre a vida do povo que a vontade manipulada dos
homens.

Resta também do liberalismo uma tradição nefasta, uma desconfiança, uma aversão
inclusive, contra a tradição católica, contra seus pensamentos e caminhos próprios.

E, sobretudo, resta um silêncio generalizado sobre a absoluta necessidade da graça de


Cristo, o único que pode “tirar o pecado o mundo” (Jo 1,29). Resta, sim, uma grande
dificuldade para crer que “a salvação não está em nenhum outro, pois nenhum outro
nome (senão o de Jesus) nos foi dado debaixo do céu, entre os homens, pelo qual
possamos ser salvos.” (At 4,12)

[i][i] Nota do tradutor: como já analisado, o nome “liberalismo” hoje é usado apenas no
seu sentido econômico, ou como gênese do atual “neoliberalismo’, excluído todo aspecto
filosófico de sua doutrina.

[ii][ii] Nota do tradutor: já explicamos justamente isso, em notas acima; embora os


atuais liberais digam-se contrários ao socialismo, e os partidários deste ao liberalismo,
ambas as correntes bebem da mesma fonte filosófica de mutabilidade moral, relativismo
religioso, estrita separação entre Igreja e Estado, laicismo militante.

[iii][iii] Nota do tradutor: como vemos, o autor tece duras críticas ao progressismo
“católico” que tomou vulto na crise que se abateu sobre a Igreja depois do Concílio
Vaticano II (embora não por culpa deste, senão dos modernistas que distorceram o
sentido, reconhecemos, dúbio de alguns textos conciliares, isolando-os propositadamente
do contexto dos demais concílios e da própria Tradição da Igreja); à Igreja cabe
evangelizar o mundo, sacralizá-lo, e não compactuar com seus vícios, chamados pelo
autor de “mitos anticristãos”; o triunfo da Igreja que os progressistas esperam alcançar
por essa tática de “ser católico com os critérios mundanos” não se efetivará, a não ser
que a “igreja” da qual eles falam não seja a de Nosso Senhor Jesus Cristo, porém a
“Nova Igreja”, popular, teologicamente liberal, politicamente socialista, que esperam
fundar, e quem tem em Leonardo Boff, Frei Betto, OP, Dom Marcelo Barros, OSB, Padre
Libânio, SJ, Gustavo Gutierrez, e nos seguidores da falsa doutrina de Bulttmann e Loisy.

[iv][iv] Nota do tradutor: vemos agora como o liberalismo e o totalitarismo são duas
faces da mesma moeda, e que tanto os falsos democratas quanto comunistas e mesmo
nazistas encontram-se irmanados em sua perversa doutrina iluminista.

[v][v] Nota do tradutor: católico liberal é uma piada, e de muito mau gosto, uma vez que
catolicismo e liberalismo são doutrinas inconciliáveis, como vemos no Syllabus e no
Decreto Lamentabili Sine Exitu, da Sagrada Inquisição Romana, máxima retomada por
Sua Santidade, o Papa João Paulo II, na Encíclica Veritatis Splendor, e em vários
documentos da Santa Sé; infelizmente, esses “católicos liberais” tornaram-se professores
e mestres nos seminários e casas de formação eclesiásticas, contaminando
profundamente seus alunos, futuros padres, resultando no caos atual.

[Índice]

Para citar este artigo:

PE. JOSÉ MARIA IRABURU. Apostolado Veritatis Splendor: Gabriel Garcia Moreno,
vencedor do liberalismo no Equador, 2. Disponível em
http://www.veritatis.com.br/article/2228. Desde 27/10/2003.

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