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Os erros ditos modernistas

Caderno de Estudo
Bernard Gaudeau

Estudo da infalibilidade
do
Decreto Lamentabili sane exitu e da Encíclica Pascendi dominici gregis.
OS ERROS DITOS
MODERNISTAS
Bernard Gaudeau
Tradução: Robson Carvalho
GRUPO DE ESTUDOS

SÃO PIO X
Ribeirão Preto - SP

Colaboração:

Missa Gregoriana
http://www.missagregoriana.com.br
OS ERROS DITOS MODERNISTAS

SUMÁRIO
ABERTURA DO AUTOR .................................................................................................................4
LIÇÃO I .............................................................................................................................................6
Origens do Decreto e da Encíclica ................................................................. 6
I - Origem do Modernismo ............................................................................... 6
II - Autoridade Dogmática do Decreto e da Encíclica para os
católicos – seu alcance sob o olhar da filosofia e da ciência ...... 12
AUTORIDADE DOUTRINAL DO DECRETO “LAMENTABILI SANE” .......... 13
AUTORIDADE DOUTRINAL DA ENCÍCLICA “PASCENDI” .......................... 14
Valor Científico do Decreto e da Encíclica ......................................... 19
III – Explicação da palavra Modernismo .................................................. 26
GRUPO DE ESTUDOS SÃO PIO X – RIBEIRÃO PRETO - 2012

ABERTURA DO AUTOR

Senhores,

Vossa afluência neste recinto prova a qual ponto o sujeito escolhido para nossas lições
de apologética responde às vossas preocupações. Quando apareceram, em 3 de julho de
1907, o decreto do Santo Ofício Lamentabili sane exitu e, em 8 de setembro seguinte, a
Encíclica Pascendi dominici gregis, aqueles dentre vós que, no último ano, já seguiam as
lições que eu tive a honra de apresentar aqui puderam testemunhar que elas estavam de
acordo com estes atos doutrinais.
Procurando aplainar uma “teoria científica da fé católica em face das doenças atuais da
razão e da fé”, definimos, precisamente, essas doenças e o conjunto dos sintomas
inquietantes que as constituem: eis aí justamente o que a Santa Sé denuncia e condena
sob o nome de Modernismo. Não preciso, portanto, hoje, nem me desculpar nem me
explicar abordando diante de vós esse assunto, pois tais princípios foram postos em
nossas lições do último ano, e só precisaremos tirar daí as conclusões das
particularidades, comentando as palavras soberanas da Igreja.
Ousaria acrescentar que se alguns dentre vós podem ascender mais alto ainda em suas
lembranças, e ali encontrar o traço de um ensino bem mais antigo, poderão constatar que
os erros atuais cuja condenação, ou mesmo, a exposição surpreenderam um grande
número de espíritos desatentos, eram observados e assinalados há muito tempo, ao
menos por alguns de nós.
Certamente todos os católicos dignos desse nome já estão inclinados com igual
docilidade diante das decisões doutrinais da Igreja. Contudo, há espíritos que esta
palavra de verdade afastará inicialmente do caminho e desorientará um pouco, pois ela
deverá endireitá-los. Ao contrário, não é proibido a um pensador católico de provar um
humilde e profundo sentimento de reconhecimento para com Deus, de consolação e de
segurança intelectual, constatando que o raio de luz, que vem do alto, apenas esclarece
os precipícios e os atoleiros que ele tinha sempre abalizado, iluminando sempre mais,
diante dele, o caminho que ele percorrera se sujando, e nele conduzindo outros; e
confirmar, com uma autoridade mais que humana, o que se pode chamar a ideia mestra
de um ensinamento já difuso.
O assunto que abordamos é necessário ao conhecimento de todos: ele é necessário para
os padres, pois eles devem ensinar a verdade doutrinal sem confusões e sem
comprometimentos; é necessário para os leigos, pois o papel dos leigos não consiste
unicamente em se envolver em um silêncio obediente das decisões que eles não
deveriam nem compreender e nem discutir: o leigo não é de modo algum feito para tal
papel indigno de um espírito que pensa, o leigo católico é feito para uma fé inteligente e
racional, e, por conseqüência, não basta uma adesão pela qual ele se curvaria somente
exteriormente. Para realmente aderir ao ensino da Igreja é preciso conhecê-lo e, em um
sentido verdadeiro, compreendê-lo.
O assunto é difícil: se os senhores percorreram as proposições contidas no decreto e,
sobretudo, na encíclica, puderam constatar que a inteligência completa desses
documentos demanda uma preparação muito especial, e que a definição, a proeminência
da doutrina contida nos documentos que vamos estudar é necessária para todos.
É precisamente esta definição que eu gostaria, com a ajuda de Deus, de realizar
convosco; eu ambicionaria que, após terem assistido as lições que este ano vão compor
nosso ensinamento, podereis verdadeiramente dar-vos conta de que possuiríeis a luz
católica sobre a questão do “modernismo”.
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As proposições censuradas pelo decreto Lamentabili se agrupam, sem que seja


necessária alguma intervenção, sob diversas peças doutrinais logicamente posicionadas:
o Magistério da Igreja e a liberdade da crítica, a Sagrada Escritura, os Evangelhos, a
Revelação e o Dogma, a Fé e a Ciência, a Cristologia, os Sacramentos, a Evolução na
Igreja. A estas é preciso atrelar, segundo a Encíclica, os erros na ordem pública e social
(separação da Igreja e do Estado) e esta dupla forma, aparentemente positiva, da filosofia
modernista: o princípio do método de imanência e o simbolismo.
O resumo filosófico dos erros condenados é, segundo os dois documentos, o relativismo
agnóstico saído principalmente de Kant; - e seu resumo visível e tangível, na história
religiosa contemporânea, é o neo-protestantismo, caracterizado, a este ponto de vista,
pela última proposição do Decreto.
Enfim, conviria estudar o remédio proposto pela Igreja para curar o mal que ela denuncia:
e esse remédio (a despeito de todas as mentiras, de todas as calúnias cínicas ou
pérfidas), não é a ignorância, não é a fé cega, é, ao contrário, o indispensável acordo, no
terreno filosófico, da Razão e da Fé: esse remédio é a ciência, em conjunto, tradicional e
progressiva.
Os elementos desta primeira lição se distribuem em três partes.
Em primeiro lugar, exporemos a origem dos dois documentos que vamos estudar, e, para
empregar um termo vulgar nos métodos atuais, trataremos de “situar” esses dois
documentos.
Em segundo lugar, procuraremos qual é a autoridade doutrinal desses dois documentos
para os católicos, e estudaremos seu valor sob o olhar da filosofia e da ciência.
Enfim, terminaremos pela explicação da palavra “modernismo”, pois ela esconde um
equivoco que é urgente dissipar.

Bernard Gaudeau

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LIÇÃO I
Origens do Decreto e da Encíclica
I - Origem do Modernismo

A origem imediata destes documentos é conhecida, e não precisarei insistir sobre elas
longamente. Há duas décadas, principalmente depois do começo do século XX, o alerta
era dado ao pensamento católico sobre doutrinas e métodos exegéticos, teológicos,
filosóficos, históricos, cujo conjunto constituía um movimento evidente e que não se podia
negligenciar. Os nomes que, no meio deste movimento de ideias, apareceram como os
mais marcantes, foram assinalados por condenações, e são os únicos que eu recordarei.
Censuras, sejam episcopais, sejam romanas, atingiram sucessivamente: no domínio da
exegese, várias obras do padre Loisy, do padre Houtin, do barão Von Hügel; na filosofia,
Dogma e crítica de Edouard Le Roy; sobre o terreno da apologética, vários estudos do
padre Laberthonnière; em matéria de reforma religiosa e social, o Santo, de Fogazzaro, e
várias publicações de Romolo Murri na Itália, enfim, na Inglaterra, os escritos de passo
místico, mas tocando, de fato, a exegese, a filosofia e a teologia, do antigo jesuíta Tyrrel.
Se nos mantivéssemos neste ponto, não teríamos uma gênese completa do modernismo:
contudo, já podemos constatar certas características que são comuns a todos esses
escritos.
A mais importante destas características é, se não me engano, uma tendência à
separação absoluta, no homem e no mundo, do elemento laico e do elemento religioso.
No homem, separação absoluta, com uma parede hermética entre os dois, da razão
filosófica e cientifica com a fé, não somente com a fé sobrenatural católica, não somente
com a fé religiosa em Deus, mas com este elemento de fé que está necessariamente
incluso em todos os nossos conhecimentos e que lhes são a base; no homem, ainda,
separação total da ciência e da consciência, do domínio científico e do domínio moral. Por
seguinte, separação total do cidadão e do crente. Segue-se, ainda, e por uma conclusão
inevitável, separação da Igreja e do Estado.
Esse caráter de separatismo entre o elemento laico e o elemento religioso é realmente o
dado essencial do modernismo, e aquele que explica todo o resto.
É preciso acrescentar aí um caráter de evolucionismo bem acentuado, mas de um
evolucionismo sem pontos fixos e sem limites, e não de um evolucionismo moderado tal
qual poderíamos constatar na própria Igreja.
Acrescentamos aí, enfim, uma necessidade, um desejo de reformas completas e radicais
no seio da Igreja católica, mas reformas que devem, nos dizem, se operar pelo interior, ou
seja, pela levedura, pelo fermento da doutrina nova, e pela ação vital e social dos homens
que a representam. Esses aqui, com efeito, ainda que condenados e reprovados pela
Igreja, estão distantes de querer se separar dela. Eles não possuem outro pensamento,
outra vontade, senão de permanecer em seu seio, apesar de tudo, e, por necessidade,
apesar dela.
Essas características, tendo sido indicadas, levam-nos a retroceder bem mais acima e
bem além para encontrarmos a gênese completa do modernismo.
A primeira causa profunda destes erros é a evolução fatal da negação anti-católica depois
da Reforma.

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A própria palavra “modernismo”, a algumas críticas que se possa prestar, é própria, ao


sentido em que ela nos remonta, para encontrarmos a origem ao que se conveio chamar,
em história, o começo dos tempos “modernos”, que devemos aludir à Renascença e ao
Protestantismo.
Repete-se freqüentemente – e, certamente, de modo algum errado – que a Reforma
inaugurou na Europa a teoria do livre exame, da revolta da razão contra a fé. Parece-me,
no entanto, que para ir mais adiante, seria preciso constatar que a ideia filosófica da
Reforma é menos uma vingança da razão que se revolta contra a fé do que um
desfalecimento místico da razão que se abandona em si mesma.
Há no espírito do protestantismo muito mais de misticismo que de racionalismo
verdadeiro; em outros termos, bem antes uma abdicação da razão que uma reivindicação
positiva de seus direitos.
Ireis me entender.
A religião católica se compõe essencialmente, quanto a seu objeto, desses três termos:
Deus, Jesus Cristo, a Igreja. Esses três termos estão ligados, para o católico, de tal modo
que eles estão contidos um no outro: o cristão só encontra Deus em Jesus Cristo; o
católico só encontra Jesus Cristo na Igreja. Bem mais, esses três termos, na realidade,
são apenas um, em sentido que seu conjunto constitui o “fato divino” inteiro, tal como ele
se manifestou no mundo e na história; o fato divino tal como ele é, não somente na
consciência subjetiva do católico, mas na realidade objetiva das coisas.
Assim, mesmo se eu não existisse, seria verdade que Deus existe, que Jesus Cristo é
Deus, que a Igreja é divina.
Se assim é, se “isso é verdade” (e o católico sabe que isso é verdade), segue-se que o
verdadeiro poder da razão, seu valor real, consiste em poder discernir, constatar,
reconhecer o “fato divino” ali onde ele se encontra em cada um dos três termos que o
constituem. Recusar reconhecer o fato divino em um destes três termos não é, então, da
parte da razão humana, uma afirmação de força e de seus direitos, é uma abdicação de
seu poder.
Ora, o ato da Reforma foi precisamente de se recusar a reconhecer na Igreja visível, o
fato divino. Recusar ver na Igreja o fato divino era, da parte da razão protestante, entrar
no caminho das abdicações que deveriam levá-la mais além do que se pensava. Ela
queria, ela esperava continuar a reconhecer o fato divino na Bíblia, em Jesus Cristo,
sobretudo no próprio Deus, revelado pelo espetáculo do mundo e da consciência do
homem. Vã esperança! O “fato divino” não se deixa cindir. Recusar, depois de tê-lo visto,
reconhecê-lo em um destes termos é, da parte da razão, pecar contra a luz; é se
condenar a não mais poder reconhecê-lo nos outros.
Eis porque a segunda etapa da negação anti-católica foi o filosofismo. A razão se
recusava a reconhecer o fato divino não somente na Igreja, mas na Bíblia e em Jesus
Cristo, e tentava exilar do pensamento humano e do mundo, não ainda o nome e a ideia
de Deus, mas, o sobrenatural cristão.
Ora, suprimir o sobrenatural é mutilar a própria ideia de Deus, pois é recusar ao Ser
infinito a faculdade de promulgar e de impor ao homem uma religião positiva e revelada.
Assim, a etapa do deísmo filosófico não se prolongou. A implacável lógica da negação
terminou no terceiro estágio, aquele do ateísmo, do qual Renan nos deu a fórmula
elegante e bem conhecida: “Deus, Providência, Imortalidade, tanto de boas palavras
antigas, um pouco pesadas, talvez, que a filosofia interpretará em um sentido mais
purificado.”

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A razão se recusava a reconhecer o “fato divino” não somente na Igreja, não somente no
Cristo, mas no próprio Autor e o Exemplar soberano das coisas, cuja existência e
grandeza são, contudo, reveladas a todo homem plenamente possuidor de seu
pensamento e de sua consciência, quando ele conhece e se atreve a pedir tal segredo.
Contudo, esta marcha sacrílega não poderia ser o último alquebramento, a última
abdicação da razão. O pensamento humano, tentando se libertar de Deus, o qual ele traz,
em si mesmo, no estado de germe, a constatação e a segurança - deste Deus que lhe é
mais íntimo e mais presente que o próprio fenômeno do eu pensante1 -, o pensamento
humano, por esse esforço vão, só conseguiu se esvaziar de todo seu conteúdo real e a
naufragar-se no suicídio do idealismo e do ceticismo kantiano.
Tal é, portanto, a última palavra da negação anti-católica, o termo das abdicações e dos
esmorecimentos da razão. É a dissociação incurável da ideia e da realidade, o que eu
ousaria chamar “luxação” kantiana da inteligência. O “fato divino”, ignorado pela razão,
recebeu sua desafronta; ele se retirou dela, mas carregando consigo o melhor dela
mesma, e só lhe deixando uma sombra vã de raciocínio incapaz de estabelecer nem
certeza, nem moral, nem ciência digna desse nome, e de criar outra coisa senão a dúvida,
o sofrimento e a anarquia do espírito.
Ora, esta filosofia é a única que, há 50 anos, é ensinada no nosso meio oficialmente. Ela
penetrou de tal modo as inteligências, ela as impregnou tanto de sua influência
dissolvente que, em 1891, no início de suas conferências em Notre Dame, Dom d’Hulst
denunciava o criticismo de Kant como “a doença constitucional das inteligências
contemporâneas2; e, em uma visão quase profética, esse espírito luminoso apreciava
dizer a seus familiares: “avançado 20 anos, a grande querela filosófica será, como na
Idade Média, a querela dos universais.”
Nada mais verdadeiro, e Dom d’Hulst ressuscitava aí outra profecia que se atribui ao
próprio Kant.
Uma revista alemã consagrada exclusivamente aos estudos kantianos, os Kantstudien,
recorda que em 1797 Kant dizia a um amigo: “Vim, eu e meus escritos, cem anos
demasiado cedo; em apenas um século me relerão, me compreenderão e me
aprovarão3.”
Esse vaticinium kantianum se realizou, coisa estranha, na data fixada. Mas porque e em
qual condição? Porque o kantismo estabeleceu um século para encetar seriamente e para
penetrar a mentalidade latina4, e, sobretudo, a mentalidade francesa.
Enquanto que os subtítulos obscurecidos do kantismo se manifestaram na mente saxã,
eles, sem dúvida, produziram suas conseqüências inevitáveis de destruição, de ceticismo,
de anarquia intelectual; contudo, graças ao “dualismo” do temperamento de nossos
vizinhos, tudo permaneceria no domínio da pura teoria ou nos círculos dos iniciados.
Mas, uma vez atingida pelo contágio, a mente francesa deveria emprestar à difusão do
erro suas duas potentes e terríveis qualidades: a lógica e o espírito do proselitismo5. Uma

1
A imanência, assim compreendida, é perfeitamente ortodoxa, mas não é o mesmo da imanência dos modernistas. É o
que faz remarcar Pio X: “Sunt qui (immanentiam) in eo collocant, quod Deus agens intime adsit in homine, magis quam
ipse sibi homo, quod plane, si recte intelligitur, reprehensionem non habet” (Enc. Pascendi).
2
Os fundamentos da moralidade, p.57. “A marca da crítica kantiana permanece profunda e indestrutível sobre o espírito
de nosso tempo... quem quer que seja sensualista, positivista, evolucionista, inimigo jurado desta metafísica que foi a
paixão de Kant, será kantiano pela aceitação do preconceito que coloca em princípio a relatividade de todo
conhecimento.”
3
Kantstudien, III, 168.
4
A aproximação política da Itália ou da Alemanha pela tríplice Aliança, e o engajamento germânico que se seguiu do
outro lado dos Alpes, contribuíram para esta invasão.
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vez invadida por uma ideia, a inteligência francesa a impele às suas extremas
conseqüências práticas e se faz dela sua apóstola.
E é por isso que, somente cem anos após o vaticinium kantianum, o “modernismo” veio à
luz.
Ademais, penetrando o espírito latino, o kantismo atingia com o mesmo golpe o espírito
católico, e eis aí a verdadeira novidade do modernismo.
Até aqui, o protestante do século XVI, o libertino do século XVII, o voltairiano do século
XVIII, o renaniano do século XIX, o livre pensador de todas as nuances tinha, ao menos, a
lógica e o pudor de reconhecer a incompatibilidade absoluta de suas doutrinas com o
catolicismo. O modernista, com a pretensão de introduzir essas negações, por vezes, no
próprio centro do pensamento católico, instala aí a “dissociação” kantiana, o
desdobramento (mortal para um como para o outro) do pensador e do crente.
É, portanto, evidente que a alma do modernismo é o kantismo. E procurando explicar-lhes
como acabo de determinar esta primeira causa dos erros atuais, apenas comentei a
palavra pela qual Pio X, seis meses antes da encíclica Pascendi, definindo o
“modernismo, encontro de todas as heresias”, nos dizia, em 9 de maio de 1905: “O
kantismo é a heresia moderna. Il kantismo è l’éresia moderna.”
A segunda causa profunda da eclosão dos erros modernistas foi o desenvolvimento
precário da filosofia e da ciência católicas.
É necessário dizer-lhes que, diante este desenvolvimento fatal e destrutivo da negação
anti-católica, da filosofia a-religiosa; diante, por outro lado, dos progressos maravilhosos
da ciência na ordem física e na ordem histórica; em face destas duas tendências, em si,
excelentes e necessárias, que dominaram e possuíram todo o século XIX - eu quero dizer
a tendência positiva, que é a necessidade e o culto do fato, e a tendência crítica, que é a
necessidade e o culto de uma verificação científica de nossos conhecimentos -, a filosofia
e a ciência católicas se desenvolveram insuficientemente.
Inicialmente, diante das negações, tais como existiam na primeira metade do século XIX,
a filosofia e a ciência católicas se contentaram, por vezes, com anátemas à razão e à
ciência; repetiu-se em demasia a palavra de Pascal: “Cale-se, razão impotente; humilhe-
se, razão imbecil!”
Até as vésperas do Concílio Vaticano I, a apologética, um pouco extraviada pelo
tradicionalismo teológico, não tinha bem compreendido que o verdadeiro perigo para a fé
não é a razão, mas a abdicação da razão; que o puro racionalismo é infinitamente menos
perigoso (pois que menos sutil) que o fideísmo, e o exagero da tendência pelo qual se
combateu o racionalismo nos lançou no baixio do fideísmo kantiano.
Além do mais, em face desses progressos admiráveis das ciências físicas e naturais,
progressos na alvorada dos quais ainda estamos, pois parece que a cada dia se revelam
para nós horizontes novos cuja escuta nos desconcerta;. Em face dos progressos não
menos admiráveis das ciências históricas em todos seus ramos, a filosofia e a ciência
católicas se contentaram por demais com uma atitude expectante; elas se encerraram por
muito tempo em respostas exatas quanto ao plano, mas pouco adaptadas ao estado de
espírito dos adversários e formuladas em uma linguagem que estes não entendem mais;
no lugar de se apossar do que havia de legítimo nas tendências positiva e crítica, elas
viram exclusivamente nessas duas tendências excessos a combater; elas deixaram, por
conseguinte, a tendência positiva se desviar rumo ao positivismo, ou seja, rumo à

5
Ver Fouillée, Psychologie du peuple français, sobretudo o livro III.
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negação e ao desprezo de todo fato imaterial, e a tendência critica tornar-se o criticismo,


ou seja, o erro kantiano incurável.
Disso, resultou que o positivismo e o criticismo se uniram para investir contra a filosofia e
a ciência católicas, as quais não estavam em condições de lhes opor qualquer resistência,
pois elas estavam somente, muito insuficientemente, em contato, de um lado, com o
pensamento moderno, e do outro, com a alma da verdadeira e larga tradição escolástica.
De ambos os lados, por múltiplas razões que seriam muito extensas para se deduzir aqui,
o golpe fora muito profundo e durável. Por essas mesmas razões, e por outras sobre as
quais teremos a ocasião de retornar, os ensaios da renascença escolástica, tentados há
trinta anos, foram insuficientes e ainda não findaram, no conjunto, a este resultado: uma
ação real de contato entre o pensamento católico e o pensamento moderno.
Pois qualquer ensaio de síntese nesta ordem supõe, com outras condições, um trabalho
imenso. Nada que, para se dar conta do que é verdadeiramente a tradição escolástica, e
eu falo aqui somente do ponto de vista da filosofia, poderia ser integrado, e de uma
maneira profunda e científica, em várias centenas de in-fólios6.
E um trabalho maior ainda é necessário para que se ouse afirmar que possuímos um
conhecimento aprofundando da filosofia moderna. Ora, a filosofia é somente a base e o
prelúdio das ciências teológicas. Desde então, raramente, infinitamente raro, devem ser e
tem sido, há mais de um século, os mestres do jovem clero capazes de suspeitar,
precisamos admitir, do que deveria ser esta síntese.
A terceira causa profunda do desenvolvimento dos erros modernistas foi, na França, a
horrível pressão exercida, depois de 1880, em direção ao kantismo, do laicismo, do
ateísmo doutrinal em todas as regiões do poder.
Deus me permite, seguramente, dizer e pensar positivamente, tanto do ponto de vista da
ortodoxia quanto do ponto de vista da ciência, sobre o que chamaríamos, antes de 1870,
a filosofia oficial! No entanto, afinal, é preciso constatar que, se nas altas esferas
acadêmicas, Renan era incensado e estimado, em contrapartida, não somente o ensino
primário e o ensino secundário de um modo absoluto, mas todo o ensino superior das
Faculdades, salvo ínfimas exceções, respeitava soberanamente a religião e ensinava
positivamente os princípios da ordem natural, aqueles que foram a base de nossa própria
fé.
Esquece-se, na medida em que esta época se distancia de nós, que em 1881,
defendendo no Senado a teoria da escola neutra, que não deveria ser a escola “sem
Deus”, Jules Ferry pôde invocar os princípios e as tradições da Universidade de França, e
se indignar, quando ousavam mesmo supor possível, em um futuro remoto, o advento de
um regime sob o qual toda a Universidade não continuaria fielmente ligada ao ensino dos
princípios tradicionais que são, dizia ele, a base da “moral de nossos pais”, ou seja, em
suma, os dogmas do espiritualismo monoteísta, fundamento racional da fé católica.
Avaliamos suficientemente o abismo que nos separa desta data, no entanto, tornada tão
próxima?
Este abismo foi cruzado, no ponto de vista doutrinal e filosófico, pelo kantismo oficial, sob
todas suas formas e todos os graus de ensino público.
A “dissociação” kantiana, o ceticismo kantiano é, salvo poucas exceções, a única filosofia
ensinada há quarenta anos em todas as escolas e colégios do Estado, em todas as
escolas normais, em todas as Universidades oficiais, em todas as Academias, e, hoje, até
nas escolas primarias.

6
Diz-se de um livro ou de um formato em que cada folha de impressão é apenas dobrada em duas.
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O kantismo é o “schibboleth” (n.d.t.: teste) sem o qual não se obtém o diploma. É no


impasse do relativismo que deverão se envolver, queira ou não queira, os espíritos mais
particulares e potentes dos mestres, tais como os Fouillée, os Boutroux, os Bergson, cujo
valor merecia mais.
O kantismo é a filosofia da laicização.
Também encontraremos assinalados pelo estigma kantiano, não somente os teóricos do
livre pensamento abertamente ateístas, tais como Gabriel Séaille e Jean Jaurès, não
somente os pontífices do protestantismo liberal e do laicismo, tais como Ferdinand
Buisson e Auguste Sabatier, mas todos os livres pensadores verdadeiramente modernos
e verdadeiramente lógicos, tal como Marcel Hébert, padre católico tornado, unicamente
em virtude da evolução inexorável de seu kantismo, professor de livre pensamento da
Universidade nova de Bruxelas. Exemplo brilhante da gênese do “modernismo”, ou seja,
da penetração até nas almas católicas e sacerdotais, sob o ímpeto da filosofia laica, do
veneno dissolvente do kantismo.
A quarta causa profunda da difusão dos erros modernistas é o caráter especialíssimo,
muito sutil e mesmo, de certa forma, generoso desses grandes erros.
Seu caráter especialíssimo: visto que seu fundamento essencialmente é a separação total
da razão com a fé, da ciência com a consciência. Ora, o que há de mais fácil, mais
cômodo, aparentemente, mais tentador que esta separação? Eu faço de mim duas partes:
eu coloco de um lado o sábio, o pensador, o filósofo, o historiador com a liberdade de
crítica absoluta, a independência mais completa do pensamento, a supressão total de
toda autoridade, mesmo de uma autoridade intrínseca que seja aquela de uma razão
afirmando princípios definitivos. Eu instalo esta parte de mim (em meu edifício espiritual e
interior) no rés do chão. De outro lado, eu coloco o crente, o ser religioso, o conjunto de
sentimentos que me levam a Deus, e os atos que dele desprendem: e esta outra parte de
mim, eu instalo em um santuário bem fechado, no primeiro andar. E, entre essas duas
moradas, “eu suprimo toda escada de comunicação7”.
O que de mais especial, mais tentador? Não é a liberação total do crente e do sábio? Não
é o ideal sonhado?
Quanto ao caráter extremamente perspicaz desses erros, sabeis quais formas múltiplas
eles revestem; eis aí realmente a hidra com cem cabeças que não cessam de renascer,
cuja sutileza, a profundeza, acrescentamos, a obscuridade, são um atrativo para os
espíritos curiosos e aventureiros; o esoterismo onde se encerra essas doutrinas é, como
todo esoterismo, um encanto pessoal e uma sedução.
Enfim, e, sobretudo, as características de novidade e de liberdade que revestem essas
ideias devem necessariamente cativar os jovens inteligentes e os jovens corações. Eis o
movimento rumo ao futuro, a evolução e o progresso sem limites e sem correntes, eis o
repúdio de um passado necessariamente velho, gasto, tornado inútil, e tudo o que é
proposto sob esses traços, à juventude, a atrai de forma invencível.
A evolução fatal da negação anti-católica pelos esmorecimentos progressivos da razão; a
evolução insuficiente da ciência e da filosofia católicas; o ímpeto violento, na França, de
todas as forças sociais rumo ao laicismo; enfim, o caráter arguto e especial desses erros:
essas causas nos parecem suficientes para explicar a gênese do modernismo e para
“situar” os dois documentos que devemos esclarecer.

7
Quais prejuízos deveriam fazer em um grande número de jovens almas, a tentação introduzida por esta celebre palavra
atribuída a um filosofo kantista que pouco escreveu, muito ensinou e influiu, M. Lachelier!
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II - Autoridade Dogmática do Decreto e da


Encíclica para os católicos – seu alcance sob o
olhar da filosofia e da ciência

Resta-nos ver agora qual é a autoridade, qual é o valor destes dois documentos: sua
autoridade doutrinal para os católicos, e seu valor sob o olhar da filosofia e da ciência.
Não se trata aqui das disposições disciplinares contidas nestes dois documentos: cada
um sabe que a autoridade disciplinar só tem por objeto os atos exteriores que ela ordena
ou que ela proíbe. Assim, o decreto Lamentabili sane exitu conduz, em virtude da
proscrição e da reprovação dos erros que ele aponta, à proibição de ensiná-los e de
professá-los exteriormente, e a Encíclica Pascendi, após a exposição e a condenação
doutrinal dos erros dos modernistas, contém uma série de disposições gravíssimas e
muito práticas que fazem ressurgir o admirável espírito positivo do papa Pio X, e que tem
por finalidade impedir a propagação dos erros modernistas.
A esta autoridade disciplinar da Igreja deve responder puramente e simplesmente, da
parte dos católicos, o cumprimento dos atos que a disciplina reclama e a omissão
daqueles que ela proíbe. Mas buscaremos qual é, nesses documentos, a autoridade
doutrinal, ou seja, a autoridade de ensino eclesiástico que, em virtude de seu valor e de
seu poder próprios, se dirige à inteligência e, em certos casos, à fé. Há nesses dois
documentos um ensino de tal natureza que o católico deva a ele responder por um
assentimento interior e intelectual, e este assentimento é aquele da fé?
Importa bem estabelecer a posição da questão. Na economia cristã da salvação, o
assentimento interior da fé sobrenatural a uma verdade só pode ser dada e só pode ser
exigida em virtude deste fato, que esta verdade esteja contida no depósito da Revelação
católica. Ora, dois tipos de verdades ali estão contidos: umas, imediatamente, são os
mistérios sobrenaturais cristãos propriamente ditos; - outras, mediatamente, são verdades
de essência natural (ou seja, racionais ou históricas), mas ligadas, na ordem da realidade
ontológica e na ordem lógica do conhecimento, com os mistérios sobrenaturais cristãos.
É à Igreja que Deus confiou o depósito da Revelação, com o direito e o dever de
conservá-lo, de defendê-lo e de fazê-lo conhecido. Ela o faz por seu ensino ou magistério,
que Deus revestiu, a este efeito, do carisma (ou graça) da infalibilidade.
Uma verdade é dita de fé católica definida, quando ela está contida no depósito da
Revelação e quando a Igreja declarou explicitamente e formalmente o fato desta
extensão.
Quando uma verdade está contida, imediatamente ou mediatamente, no depósito da
revelação, mas que a Igreja não declarou explicitamente o fato desta extensão, esta
verdade é, em si mesma, de fé, ou unida ou ligada à fé.
Recusar, com conhecimento de causa, aderir interiormente a uma verdade de fé católica
definida, é ser herege.
Recusar, com conhecimento de causa, aderir interiormente a uma verdade que se sabe
com certeza pertencer imediatamente ou mediatamente ao depósito da Revelação, ainda
que a Igreja não tenha formalmente declarado esta pertença, é pecar contra a fé.
Uma das formas mais freqüentes que reveste o ensino autêntico da Igreja é a
condenação ou a proscrição dos erros contrários à fé.
Todo mundo sabe que os documentos emanados do magistério eclesiástico não estão
todos, nem em todas suas partes, revestidos do caráter de infalibilidade doutrinal. Um
12
GRUPO DE ESTUDOS SÃO PIO X – RIBEIRÃO PRETO - 2012

documento pode encerrar um ensino infalível quanto a fé, seja porque ele contém o
chamado de uma verdade já outrora infalivelmente ensinado ou mesmo solenemente
promulgado, seja porque, a um título realmente novo e de uma maneira infalível, esse
documento, pela primeira vez, promulga esta verdade ou condena o erro que lhe é
contrária.
Para saber se um documento contém um ensino infalível é preciso, então, examinar
sucessivamente seu conteúdo e sua forma, pois é em virtude de um ou de outro que um
ensino infalível pode ali se achar.
O apontamento desses princípios elementares em teologia se fez necessário para
terraplenar o terreno e precisar a questão que abordaremos.

AUTORIDADE DOUTRINAL DO DECRETO “LAMENTABILI SANE”

Ninguém jamais aspirou que as sentenças doutrinais do Santo Ofício, tão graves quanto
elas possam ser, e tão temerárias quanto sejam, mesmo do ponto de vista puramente
científico, sejam, por elas mesmas, infalíveis.
Elas só poderiam se tornar infalíveis em virtude de um ato pessoal do Soberano Pontífice,
que as adotaria e as transformaria com sinais não equívocos de sua vontade, em uma
definição ex cathedra.
Ora, eis os termos que indicam a parte particular posta pelo Soberano Pontífice no
decreto Lamentabili.
Inicialmente, a iniciativa vem dele:
“Afim de que erros parecidos (diz o decreto em seu início), que todos os dias se vão
difundindo entre os fiéis, criem raízes em seus corações e corrompam a sinceridade de
sua fé, aprouve a nosso Santíssimo Padre por divina providência, Papa Pio X que, por
ofício desta Sagrada Inquisição Romana e Universal.”
E eis a cláusula que finda o Decreto:
“E na quinta-feira imediata, dia 4 do mesmo mês e ano, tendo-se feito de tudo isto
minuciosa relação a nosso Ssmo. Padre o Papa Pio X, Sua Santidade aprovou e confirmou
o Decreto dos Eminentíssimos Padres e mandou que todas e cada uma das proposições
acima referidas fossem tidas por todos como condenadas e proscritas.”
Essas fórmulas constituem o que se chama, em direito, a confirmação simples, ou
aprovação de forma comum ou ordinária, in forma communi, o que ocorre quando o
superior, confirmando o ato do inferior, deixa este ato puramente e simplesmente no
estado em que ele se encontrava, sem transformá-lo pela comunicação de sua autoridade
pessoal.
De outro modo ocorre quando o Papa confirma um Decreto do Santo Ofício por uma
aprovação de forma especial, in forma specifica. É, então, uma verdadeira adoção: o ato
torna-se papal, e o papa é juridicamente responsável por ele. Certas fórmulas como: “Nós
decidimos na plenitude de nossa autoridade apostólica... etc.” podem servir para discernir
uma aprovação in forma specifica.
Ora, é preciso assinalar que mesmo nesse último caso, um decreto do Santo Ofício assim
transformado em ato papal não seria sempre, necessariamente, pelo próprio fato, uma

13
GRUPO DE ESTUDOS SÃO PIO X – RIBEIRÃO PRETO - 2012

definição ex cathedra8. Seria necessário para isso que o Santo Padre, conforme as
condições enumeradas na célebre fórmula do Concílio do Vaticano I, em sua qualidade de
Pastor e de Doutor Supremo, manifestasse sua intenção de obrigar a Igreja universal, e
de trazer um julgamento absoluto e definitivo sobre uma doutrina concernente a fé e aos
costumes. Teremos que retornar a todo instante sobre a análise dessas condições.
Concluímos que não poderíamos, em qualquer grau, encontrar no Decreto Lamentabili,
em virtude de sua forma, ratione formae, um ensino infalível9. Mas, se examinarmos seu
conteúdo ratione materiae, tem-se exatamente o contrário.
Peguemos, quase que por acaso, algumas das proposições condenadas:
4. O magistério da Igreja não pode determinar o sentido genuíno das Sagradas Escrituras,
nem mesmo por meio de definições dogmáticas.
10. Demasiada simplicidade ou ignorância revelam os que creem que Deus é
verdadeiramente o autor das Sagradas Escrituras.
29. Pode conceder-se que Cristo, tal como história o representa, é muito inferior ao Cristo,
objeto da fé.
41. Os sacramentos tem por fim único despertar na mente do homem a ideia da presença
sempre benéfica do Criador.
58. A verdade não é mais imutável que o homem, pois que evolui com ele, nele e por ele.
Cada uma dessas proposições é, ou uma heresia formal, ou a negação evidente de
verdades que estão na base da fé. E um exame atento das 65 proposições nos
mostrariam que se dá o mesmo em quase todas.
Portanto, o decreto Lamentabili contém um ensino infalível, pois ele contém o chamado
de verdades já outrora infalivelmente ensinadas e promulgadas.
Mas qual é a autoridade particular que lhe resta exclusivamente em virtude de sua forma
própria? É isso que iremos examinar quando buscarmos qual gênero de assentimento
pode exigir do católico um ensino emanado da Igreja, mas não infalível?

AUTORIDADE DOUTRINAL DA ENCÍCLICA “PASCENDI”

Contaram-me que em um lugar da França, que não nomearei, diante uma importante
reunião de jovens na qual se tinha a missão de ensinar, um padre, no momento da
aparição da Encíclica, teria amparado essa linguagem: “Senhores, há duas categorias de
Encíclicas: umas que são infalíveis e as outras que não o são. Aquela que acaba de
aparecer é do número destas últimas: não temos, portanto, que nos preocupar.”
Assim como foi dito, é muito provável que a anedota seja fabulosa; mas há um ponto que
é mais verdadeiro que essa história, e eu tenho, infelizmente, encontrado freqüentemente
um estado de espírito próximo daquele que revela esse trato.
Assim, vemos de uma só vez, segundo os princípios que acabamos de recordar, a qual
ponto a questão, deste modo formulada, é mal colocada e mais mal ainda resolvida. Eu
resumo brevemente as razões disso.

8
Lucien Choupin, Valor das decisões doutrinais e disciplinares da Santa Sé, p. 51. Toda aprovação in forma specifica
constitui uma definição ex cathedra? Paris, Beauchesne, 1907.
9
Pode-se ver no Croix de 19 e 24 de julho e no le Figaro de 19, 20 e 22 de julho de 1907, uma polêmica na qual eu
demonstrei contra o Sr. de Narfon, o caráter do ensino positivo e direto, embora não infalível ratione formae do Decreto
Lamentabili.
14
GRUPO DE ESTUDOS SÃO PIO X – RIBEIRÃO PRETO - 2012

Primeiramente, nenhum julgamento da Igreja, seja ele infalível e editado na forma mais
solene, cunha e nem faz a verdade da proposição definida; ele a declara, a manifesta, a
promulga, torna a profissão obrigatória: contudo, independentemente do fato da definição,
a realidade objetiva das coisas é imutável e intangível. É a ilusão kantiana que faz, sem
cessar, cintilar em nosso espírito, como um reflexo, esta fórmula enganosa: verdade antes
da condenação infalível, erro, depois.
Em segundo lugar, a definição infalível não introduz na Igreja a crença à verdade definida.
Esta crença (por exemplo, a da Imaculada Conceição, antes de 1854) existia na Igreja: a
definição só constatou e tornou essa crença a profissão obrigatória para todos. O decreto
Lamentabili recorda oportunamente que a Revelação foi encerrada com os apóstolos.
Em terceiro lugar, fora desses casos, raramente, em julgamentos solenes, o magistério
ordinário e universal da Igreja, o que se pode chamar, a consciência dogmática difusa da
Igreja10, coloca e ensina infalivelmente um grande número de verdades que jamais foram
solenemente promulgadas, e que não se pode negar nem colocar em dúvida sem perder
a fé11.
Enfim, como eu o chamaria a todo instante, um católico não pode, sem perder a
integridade de sua fé, colocar interiormente em dúvida as verdades mediatamente
contidas no depósito da Revelação, ou seja, realmente e logicamente conexas com as
verdades reveladas.
Por todas essas razões, vê-se quanto seria impensável, da parte de um católico, esta
palavra: “Eis um documento cuja forma não acusa uma definição ex cathedra; portanto,
eu não tenho que tê-lo em conta para regular minha crença.”
Pode-se fazer muito bem, com efeito, que tal documento, em razão de seu conteúdo,
encerre um ensino infalível pela associação autêntica de verdades já ensinadas
infalivelmente em outros documentos ou mesmo solenemente promulgadas.
E tal é, certamente, o caso da Encíclica Pascendi; os erros modernistas que ela formula e
condena são, ou heresias formais, ou a evidente negação de verdades ligadas ou que
sustentam a fé.
É precisamente o que me proponho a mostrar para cada um dos pontos que abordaremos
nessas lições. Disso, podemos colocar:
A Encíclica Pascendi, que contém certamente, em virtude de seu conteúdo, ratione
formae, um ensino infalível pelo chamado autêntico de verdades já outrora infalivelmente
ensinadas ou mesmo solenemente promulgadas, pode conter um ensino infalível em
virtude de sua forma própria, e por ela mesma?
Eis a questão que nos resta examinar.
O Concílio do Vaticano I descreveu em uma fórmula célebre, que é, por si, uma definição
de fé, o que é um ensino pontifical ex cathedra, ou seja, saído, não da pessoa privada do
Pontífice, mas da cadeira de Pedro, sobre a qual está edificada a Igreja e à qual está
prometida a assistência divina que a preserva de todo erro.
“Ensinamos e definimos que é um dogma divinamente revelado que o Pontífice romano,
quando fala ex cathedra, ou seja, quando, no desempenho do ministério de pastor e doutor
de todos os cristãos, define com sua suprema autoridade apostólica alguma doutrina
referente à fé e à moral para toda a Igreja, em virtude da assistência divina prometida a ele
na pessoa de São Pedro, goza daquela infalibilidade com a qual Cristo quis munir a sua

10
Concílio Vaticano I, Constituição Dei Filius, c. III.
11
Ver o excelente opúsculo do padre Vacant, o Magistério ordinário da Igreja e seus organismos. Paris, Delhomme,
1887.
15
GRUPO DE ESTUDOS SÃO PIO X – RIBEIRÃO PRETO - 2012

Igreja quando define alguma doutrina sobre a fé e a moral; e que, portanto, tais
declarações do Romano Pontífice são por si mesmas, e não apenas em virtude do
consenso da Igreja, irreformáveis12.”
Se analisarmos as condições requeridas aqui pelo Concílio do Vaticano I para que o Papa
seja considerado falando ex cathedra, encontraremos quatro delas: 1º do lado do
Pontífice, é preciso que ele fale como Doutor e Pastor universal, e em virtude de sua
autoridade suprema; 2º do lado do objeto, é preciso que esse seja uma doutrina
concernente à fé ou aos costumes, ou seja, uma verdade contida, diretamente ou
indiretamente, na esfera do magistério13 infalível da Igreja; - 3º do lado do sujeito ao qual
se dirige o ensino, é preciso que o Papa manifeste suficientemente sua intenção de
obrigar a Igreja universal; - 4º enfim, sob o ponto de vista da forma, é preciso que o Papa
defina, definit, ou seja, que ele carregue uma sentença definitiva.
Essa última palavra, definit, poderia se prestar ao equivoco se a interpretassem em
sentido que o Papa só falaria ex cathedra e só exerceria sua infalibilidade se ele a
concentrasse, aqui, por assim dizer, em uma frase distinta ou fórmula que seria como o
enunciado oficial de um dogma promulgado pela primeira vez.
Dois exemplos recentes na história do dogma poderiam ilustrar, sob este ponto de vista,
se os tomarmos como o tipo único de um ensino ex cathedra: queremos falar da definição
da Imaculada Conceição, na bula Ineffabilis (8 de dezembro de 1854), e da definição da
infalibilidade do Pontífice Romano, pelo Concílio Vaticano I, o qual acabamos de recordar
precisamente o texto.
A palavra definit, na enumeração feita pelo concílio das condições de uma definição ex
cathedra, tem, portanto, um único sentido: aquele de um julgamento doutrinal definitivo,
pelo qual o Papa manifesta a intenção de cortar toda controversa sobre o ponto em
questão.
Os próprios atos do Concílio do Vaticano I explicam essa palavra, nesse sentido: “A
palavra definit significa, diz Dom Gasser, bispo de Brixen, em sua relação ao Concílio
sobre esse capítulo, que o Papa profere uma sentença direta e definitiva ao sujeito de
uma doutrina concernente à fé ou os costumes14.”
Pela mais forte razão, não é necessário, para que uma doutrina seja infalivelmente
ensinada pelo Papa, que a doutrina contrária seja condenada com o aparato solene do
anátema.
Esse ponto está igualmente fora de toda controversa. É preciso e basta que as condições
enunciadas mais acima sejam verificadas, mas o Papa não está obrigado a nenhuma
forma particular.
“Se o Papa qualifica de herética a doutrina contrária, ou, se ele fulmina o anátema contra
aqueles que a professariam em seguida, é certamente um sinal não equívoco de sua
intenção, de sua vontade de definir; mas evidentemente essa (o anátema) não é a única
marca; e mesmo se poderia dizê-lo, sem grave erro, necessária15.”
Vê-se, portanto, com qual verdade teológica Loisy escreveu, em seu recente e triste
volume:

12
Concílio Vaticano I, sess. IV, c. 4.
13
Pequeno léxico – Magistério (palavra latina: magisterium), autoridade doutrinal, poder de ensinar; e como se trata
aqui de um ensino sobrenatural, poder de impor seu ensino ao pensamento dos fiéis.
14
“Vox definit significat quod Papa suam sententiam circa doctrinam quae et de rebus fidei vel morum, directo et
terminative proferat.” Collectio Lacensis, tom. VII. p. 474.
15
L. Choupin. Valor das decisões doutrinais e disciplinares da Santa Sé, Paris, 1907, p. 6, 7.
16
GRUPO DE ESTUDOS SÃO PIO X – RIBEIRÃO PRETO - 2012

“Muitos dirão também que a Encíclica não é um ato ex cathedra e não reuni as condições
requeridas para a infalibilidade. Isso é perfeitamente verdade. A Encíclica não contém nem
definição expressa da verdade, nem anátema solene contra o erro16.”
E, além do mais:
“Mesmo que Pio X não tenha agido na plenitude de sua autoridade doutrinal, e que,
simplesmente apresentando o modernismo como a síntese de todas as heresias, ele não
os deixou resumidos em fórmulas tocadas de anátema; mesmo que a Encíclica, no fundo,
se mantenha em generalidades, e que ela não possa traçar rigorosamente a fronteira que
separa as opiniões antigas e seguras, das opiniões modernistas e perigosas, mesmo que
essa seja, em suma, um ato disciplinar, que outro Pontífice poderia ab-rogar em suas
disposições mais características...17”
Não há quase uma única dessas asserções que não seja, do ponto de vista crítico e
científico (pois Loisy tem a pretensão de praticar aqui a crítica teológica, e de atribuir aos
documentos o valor que a teologia católica lhes assina), não há quase, digo, uma única
dessas asserções que não seja, precisamente, o falso rastro da verdade.
De resto, Loisy presta a se contradizer e de sublinhar, pelos reconhecimentos mais
significativos, sua apostasia definitiva. Ele acrescenta, com efeito, imediatamente após o
que se acaba de ler:
“Não é necessário esquecer que Pio X só extraiu conclusões que se deduzem logicamente
do ensino oficial da Igreja, e que se seus princípios são verdadeiros, aqueles que os
admitem não tem mesmo que criticar a oportunidade do ato pontifical; pois o modernismo,
aquele que existe realmente... o modernismo, digo, questiona esses princípios, a saber: a
ideia mitológica da revelação exterior, o valor absoluto do dogma tradicional, e a
autoridade absoluta da Igreja; de modo que a Encíclica de Pio X estava condenada pelas
circunstâncias, e que Leão XIII não a teria feito sensivelmente diferente, ao menos pelo
essencial e na parte teórica18.”
E ainda:
“A Encíclica Pascendi dominici gregis, não impondo à fé católica nenhuma proposição
nova, é somente a expressão total, fatalmente lógica do ensino recebido na Igreja desde o
fim do século XIII, e a recusa total da filosofia e da crítica modernas... É a própria noção da
infalibilidade eclesiástica, é, no fundo, toda a teologia católica em seus princípios
fundamentais, é a filosofia geral da religião, as fontes e as leis do conhecimento religioso
que estão em causa19.”
Em tempo! Sabe-se agora ao que se ater, e a quem se questionar. Mas se é assim, se é
tudo isso que está em causa, como podeis dizer que a Encíclica é somente um ato
disciplinar e que outro Papa poderia ab-rogá-la?
Na realidade, a Encíclica Pascendi, como demonstramos, e como as confissões de Loisy
provam, ao seu modo, faz corpo, por seu ensino, com os artigos fundamentais da doutrina
católica: sua própria estrutura é constituída pelo chamado autêntico de verdades, sejam já
solenemente definidas, sejam infalivelmente ensinadas na Igreja. A este título, ela contém
um ensino infalível.
Mas há mais? A condenação dos erros modernistas, tal como despontam da Encíclica
inteira, e notavelmente tal como é formulada no resumo que termina a exposição das
doutrinas e que precede a procura das causas do mal, esta condenação reúne as

16
Simples reflexões sobre o Decreto do Santo Ofício “Lamentabili” e sobre a Encíclica “Pascendi”, p. 22.
17
Idib., p. 274.
18
Ibid., p. 275.
19
Ibid., p. 24.
17
GRUPO DE ESTUDOS SÃO PIO X – RIBEIRÃO PRETO - 2012

condições requeridas pelo Concílio do Vaticano I para um ato do supremo magistério


pontifical?
Seu objeto é somente uma doutrina relativa à fé ou os costumes. São pontos essenciais
do dogma e as próprias bases da fé: doctrinam de fide vel moribus.
O Soberano Pontífice se dirige evidentemente à Igreja universal pela intermediação de
todo Episcopado, ao qual é dirigida sua carta, e ele manifesta, e disso não há dúvida, a
vontade de obrigar gravemente toda a Igreja: a severa disposição disciplinar que termina
a Encíclica e que indica os remédios ao mal é uma prova disso, entre outras: doctrinam
ab universa Ecclesia tenendam.
O Papa fala em sua qualidade de Pastor e de Doutor universal, e usa de sua suprema
autoridade apostólica: omnium Christianorum Pastoris et Doctoris munere fungens pro
suprema sua apostolica auctoritate? O que mais para afirmá-lo? É por muito evidente que
ele não fala aqui como Doutor privado.
Enfim, há aqui uma definição, definit? No sentido lógico de uma fórmula nova, cercada do
aparato solene de uma promulgação de dogma, evidentemente, não. Mas no sentido real,
aquele de todos os teólogos, de um julgamento definitivo, de uma sentença sem o
chamado que coloca fim às controversas e que condena os erros descritos na Encíclica e
as define “a síntese de todas as heresias, omnium haereseon collectum”, parece
permitido de afirmá-lo.
Poder-se-ia objetar que é difícil encontrar na Encíclica Pascendi a parte dispositiva ou
definitória que ordinariamente, em uma constituição dogmática, pode-se distinguir da
parte histórica ou narrativa. Esta aqui, dizem os teólogos, não é revestida por ela mesma
do carisma20 de infalibilidade. A parte dispositiva exclusiva, que promulga a sentença, se
impõe à fé21. Onde está, na Encíclica Pascendi, a promulgação da sentença do
julgamento doutrinal?
Hesitar-se-ia ver esta promulgação nesta frase da Encíclica: “Agora, de uma só vista de
olhos atentamos para todo o sistema, a ninguém causará pasmo ouvir-Nos defini-lo,
afirmando ser ele a síntese de todas as heresias”. Esta afirmação, portanto, bem nítida e
emanando do magistério supremo do Doutor universal, parece desprovida das fórmulas
da autoridade que costumam acompanhar uma sentença doutrinal? Contudo, vimos que
nenhuma dessas fórmulas são, por elas mesmas, necessárias.
Em todo caso, as considerações que precedem bastarão, cremos, para concluirmos que a
Encíclica Pascendi contém uma condenação infalível dos erros modernistas, e que esta
condenação se aplica a cada uma das proposições ou doutrinas reprovadas, segundo o
contido delas22.
Esta visão é singularmente confirmada pelo Motu próprio de 18 de novembro de 1907. Ato
de revanche suprema pelo qual Pio X recorda, declara e decreta que “se alguém, o que
Deus não permita, chegar a tanta audácia, que defendesse qualquer das preposições,
opiniões ou doutrinas reprovadas em um ou outro dos documentos mencionados (o
decreto e a Encíclica), fica, por isso, ferido pela censura decretada pelo capítulo

20
Pequeno léxico. Carisma é uma palavra grega que quer dizer graça ou privilégio.
21
L. Choupin. Valor das decisões doutrinais, p. 11.
22
O rev. P Billot é da opinião que em certos documentos pontificais que não contém uma definição propriamente dita,
no sentido da fórmula vaticana, ou seja, a promulgação de uma sentença doutrinal nova e formal, - mas que são
destinadas a instruir os fiéis do ensino da Igreja – o Soberano Pontífice pode ensinar infalivelmente, sem que haja,
propriamente falando, a locutio ex cathedra visada pelo cano do Vaticano. É, nos parece, em termos diferentes, a
distinção que estabelecemos ao dizer que um documento pontifical pode encerrar um ensino infalível, seja em razão de
seu conteúdo, seja em razão de sua forma. (Billot, De Ecclesia, p. 656, 656).
18
GRUPO DE ESTUDOS SÃO PIO X – RIBEIRÃO PRETO - 2012

Docentes, da Constituição Apostolicae Sedis, que é a primeira das excomunhões latae


sententiae reservadas ao Pontífice Romano23.”
E esta terrível sentença não prejudica as outras penas e censuras em que, diz o
Soberano Pontífice, incorreriam aquelas que, entre as proposições ou doutrinas
condenadas pelos dois documentos, teriam a desgraça de sustentar ou de defender
heresias formais: o que, acrescenta o Papa, se reconheceria facilmente no caso presente.
Esta última observação prova que não é errado, para descobrirmos se a Encíclica
Pascendi contém ou não um ensino infalível, se fazer dela um exame sucessivo de seu
conteúdo e sua forma.
Há, portanto, na Encíclica, uma condenação infalível e um chamado autêntico de
definições infalíveis.

Valor Científico do Decreto e da Encíclica

A esta questão: A Encíclica Pascendi leva um ensino infalível? Acreditamos poder


responder: Em virtude de seu conteúdo, sim, certamente, pois os erros que ela condena
estão, sejam heresias formais e declaradas, sejam erros contrários à fé, já infalivelmente
reprovados, uns por definições solenes, outros por ensino corrente e ordinário da Igreja.
Em virtude de sua forma, sim, ainda, pensamos, pois a condenação dos erros assinalados
na Encíclica parecem reunir todas as condições de um julgamento doutrinal definitivo
emanado do magistério supremo do Soberano Pontífice.
E resumimos assim nossas conclusões: A Encíclica Pascendi contém uma condenação
infalível e um chamado autêntico de definições infalíveis.
Acrescentamos, sobre esse assunto, uma última palavra: empregamos, por vezes, para
nos moldar na língua corrente, as expressões: documento infalível, encíclica infalível,
ainda que essas expressões sejam impróprias, e na realidade incorretas, tanto do ponto
de vista da língua como da doutrina. A infalibilidade é um atributo que só pode se ligar a
uma pessoa viva ou a um ensino vivo. Quando a pessoa infalível (o Papa, por exemplo)
formula seu ensino em uma proposição, esta proposição é verdadeira e a contradição
desta proposição é falsa, mas só há infalibilidade, propriamente falando, no Cristo
eternamente vivo que fala, então, pela boca de Pedro, vivo em seu sucessor. A tal ponto
que a fórmula dogmática na qual se encontra assim depositada uma parcela do tesouro
da verdade revelada permanece sempre submissa, por sua legitima interpretação e o
desenvolvimento doutrinal da verdade que ela contém, ao ensino vivo, único realmente
infalível, da Igreja.
Devemos agora procurar qual é, não mais somente para os católicos, e sob o ponto de
vista da fé, mas para todos os espíritos que pensam, e ao olhar da simples filosofia e da
ciência, o valor dos dois documentos que condenam o modernismo.
Recordar-vos-eis a combinação de protestos “laicos” que se elevou, em julho de 1907,
quando apareceu o Decreto Lamentabili, que chamaram, erroneamente, o Syllabus24 de
Pio X.
Não falo dos acanhados, voluntariamente divertidos, jornais como o La Lanterne, o
L’Aurore ou o L’Humanité. No La Laterne, Maurice Allard, falando do papa, declarava:
23
Este pena atinge aqueles que ensinam ou que defendem, publicamente ou em particular, as proposições condenadas
pela Sé Apostólica sob pena de excomunhão latae sententiae (ou seja, cercada pelo próprio fato da falta).
24
Pequeno léxico. Syllabus: palavra latina que vem do grego e que significa catálogo ou .
19
GRUPO DE ESTUDOS SÃO PIO X – RIBEIRÃO PRETO - 2012

“Ele acaba de publicar um Syllabus no qual ele condena um monte de coisas, o qual eu
mesmo não quis tomar conhecimento25.”
É, no entanto, verdade que esta palavra, escrita por um legislador, responde ao estado de
espírito da quase unanimidade dos eleitores franceses e da maioria de seus eleitos...
Sobre outro matiz, e com seu luxo habitual de metáforas, infladas e vazias como as de
sempre, Jaurè se perguntava:
“Que farão os padres, muito numerosos, cujo Papa acaba de condenar solenemente as
doutrinas e as tendências? Teoricamente, eles podem esperar, silenciosos e imóveis, que
a nuvem negra do anátema seja dissipada... Mas no frugal jazigo onde jamais penetrará o
ar exterior, a lâmpada mais viva se apagará. Pela proibição das associações de culto
laicas e largamente recrutadas26, ele decididamente separa a Igreja da democracia. Por
seu Syllabus, ele a isola da ciência. Eis o espírito cristão morto em um túmulo.”
E ele conclui pelo enunciado desse problema, digno certamente de uma meditação
profunda:
“Que se tornará um movimento de ideias que não pode mais se produzir27?”
O L’Aurore queria, ele também, ensinar à seus leitores o que é um Syllabus. E ele
resumia o Syllabus de Pio IX em termos familiares a Homais: “O mais completo e mais
violento dos requisitórios contra todas as conquistas do progresso humano. Um único
poder, o poder romano28.”
Esse procedimento recorda aquele que emprega, quando ele quer fazer papel de
historiador, um acadêmico que ousa agora abordar a história de Joana d’Arc. Anatole
Thibaut29, diz Anatole France, se permitiu reproduzir, com aspas, que a 23ª proposição do
Syllabus de Pio IX traz que “os Papas podem, hoje como outrora, depor os reis ao seu
agrado e doarem, a quem lhes apetece, as nações e os reinos30.”
Ora, eis a 23ª proposição do Syllabus: “Os Pontífices Romanos e os Concílios
ecumênicos ultrapassaram os limites do seu poder, usurparam os direitos dos Príncipes, e
erraram, mesmo nas definições de fé e de moral31.”
Bem entendido, não se trata de um erro de numeração da indicação da proposição, e o
texto dado por Anatole Thibaut não pode ser encontrado em nenhum lugar. Em verdade,
não realizamos uma tarefa de asseio público ao denunciarmos um escritor bem
desdenhoso de sua honra e capaz de mentir com um impudor semelhante?
Contudo, não é somente entre os inimigos declarados da Igreja que o decreto Lamentabili
foi acolhido pelas manifestações, naturais depois de tudo, de ignorância, de ódio e de má
fé. Os tímidos, os liberais, os conselheiros prudentes da Igreja, aqueles que receiam,
acima de tudo, por ela, toda afirmação pouco nítida de seu dogma e de seus direitos,
reeditaram sob formas variadas os refrões de medo e de queixas conhecidos. Tal como o
redator de um jornal parisiense que me escrevera em 10 de novembro de 1906.

25
La Lanterne, 23 de julho de 1907.
26
Recrutadas, sem dúvida, na Bolsa do Trabalho (N.d.t.: Escritório de colocações projetado pelo economista liberal
belga Gustave de Molinari. Na maioria das grandes cidades francesas, reunia os diferentes sindicados dos empregados,
onde os mesmos realizavam reuniões, serviços de assistência, programas culturas e etc..). Este seria o ideal de Jaurès,
uma espécie de CEBs em estágio embrionário, mas com um viés ateísta.
27
L’Humanité, 23 de julho de 1907.
28
L’Aurore, 22 de julho de 1907.
29
N.d.t.: Anatole France é um pseudônimo de Jacques Anatole Thibaut. Aqui ele ironiza seu próprio erro.
30
Anatole France, a Igreja e a República, Paris, Pelletan, 1907, p. 15.
31
“Romani Pontifices et Concilia oecumenica a limitibus suae potestatis recesserunt, jura principum usurparunt atque
etiam in rebus fidei et morum definiendis errarunt.”
20
GRUPO DE ESTUDOS SÃO PIO X – RIBEIRÃO PRETO - 2012

“Querei-vos agradar-me ao dizer o que sabeis desse Syllabus que Roma mantém
suspenso sobre nossas cabeças por meses? É um jogo singularmente perigoso que a
Igreja joga, fazendo guerra à liberdade, quando sua própria liberdade está ameaçada...”
Permito-me citar essas linhas, pois elas são reveladoras de um estado de espírito.
Conhecemos essa melodia da velha guitarra liberal, e dela ouvimos, mais de uma vez,
todas as notas.
Pois bem, sim! A Igreja faz a guerra, por suas definições doutrinais, à liberdade do erro, à
liberdade do mal, à liberdade de povoar e de matar as almas, à liberdade maldita e mortal
que os homens infelizes e as nações decadentes tem de se suicidar intelectualmente e
moralmente.
O Le Temps lastimava hipocritamente Pio X: “É o ódio de toda novidade, é o espírito
reacionário mais estreito que dirige o governo da Igreja32.”
Outros enunciavam doutrinariamente esta estupidez:
“A conseqüência prática do ato de Pio X é a paragem imediata dos estudos bíblicos, onde
o jovem clero estudioso se lançou com ardor: toda ciência sendo como que apenas medida
em toesas33, esta medida não serve para nada diante a afirmação do Papa34.”
Entre os próprios católicos desconcertados e hesitantes, alguns reclamam em favor da
Igreja as circunstâncias atenuantes. Padres acreditam dever explicar que o Papa, em sua
sabedoria, tinha simplesmente “autorizado a Congregação romana a declarar
insustentável certo número de proposições muito temerárias”; - que “se, rigorosamente, o
Evangelho, para quem quer tergiversar, não é decisivo no que concerne a divindade de
Jesus, é incontestável que ele contém todos os primeiros elementos deste conceito
solidamente apresentados;” – em poucas palavras, que o Syllabus de Pio X “restringe,
mais do que pensamos, o futuro, e isso é prudência, como sempre35.”
Eram quase as palavras de Loisy, em sua carta ao Times:
“Jamais considerei o futuro com mais confiança que nesse tempo onde se diria que a
Igreja a qual eu pertenço condena a obra de toda minha vida. Talvez ela não a condene
tanto quanto aparenta. Por pouco, eu ousaria dizer que ela não condena tanto quanto
crê36.”
Pelo contrário, o decreto Lamentabili foi acolhido por todos os verdadeiros católicos e pela
unanimidade do episcopado com uma submissão respeitosa, dizemos mais, com uma
alegria profunda. Era o primeiro ato eficaz de reação necessária contra o erro; era, logo, o
fim do equívoco que pesava tão intensamente sobre tantas consciências perturbadas.
Outro ato mais intenso e mais grave iria se produzir: a Encíclica Pascendi dominici gregis
seria publicada em 8 de setembro de 1907.
O alcance deste ato pontifical é realmente considerável, que o tempo não somente não o
diminui, mas parece aumentá-lo a cada dia e manifestá-lo sempre mais. E não temo em
afirmar que, em vinte ou cinqüenta anos, esta importância aparecerá mais evidente aos
olhos das gerações futuras.
Quando a ciência filosófica, a verdadeira, livre do kantismo, tiver abonado a
demonstração racional da existência de um Deus criador, a fé tradicional e nova,
magnífica e sutil que convêm ao pensamento moderno, e tiver posto esta demonstração

32
Le Temps, 28 de julho de 1907.
33
Antiga unidade de medida de comprimento na França. Equivalia a seis pés. Foi abandonada pelos revolucionários.
34
Le Journal, 19 de julho de 1907.
35
Joseph Bermain, a Justiça social, 17 de agosto de 1907.
36
Carta à Bailey Saunders, publicada no Le Temps e no Le Matin, em 30 de abril de 1904.
21
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em seu verdadeiro lugar, ou seja, na base de tudo, a ciência saudará Pio X o vendo como
o iniciador, o benfeitor intelectual cujo gesto terá sido o ponto de partida de uma das
maiores, mais gloriosas etapas dos progressos espirituais da humanidade.
No momento presente, nos debatemos em meio às trevas acumuladas pelo kantismo,
mas a aurora aparecerá.
Os erros desmascarados ainda tentam transformar o sentido e o valor científico da
Encíclica, e, no entanto, desde o primeiro instante, a impressão produzida foi justa e
definitiva37.
Um testemunho dos mais significativos e dos menos suspeitos do valor filosófico e
cientifico da Encíclica nos é dado por George Fonsegrive na carta que ele escreveu no
Temps, em 28 de setembro:
“Todo mundo observou – e o Le Temps foi um dos primeiros – quanto o estilo e o tom da
encíclica contra os modernistas diferem do estilo e do tom ordinários dos documentos
pontificais. Não são mais as graves, periódicas e majestosas ordens de frases onde os
pensamentos se movem em espaços, como os visitantes na sonora nave de São Pedro;
são pequenas frases seriadas e curtas, caminhando com a presteza de soldados que vão
ao assalto. Sente-se que uma alma guerreira anima essas páginas tão completas, uma
alma de conquistador, uma alma de líder, uma alma de mestre.”
E a composição tem, entre todos os conhecedores, excitado igual admiração. Tornar a
juntar as ideias espalhadas através de um grande número de escritos, a maior parte
obscuros, alguns muito sutis e muito difíceis, procurar e descobrir as ligações secretas
que, freqüentemente, sem o conhecimento dos próprios autores, atrelam uns aos outras
todas essas ideias, constituir uma teoria que organiza em um todo coerente as ideias
filosóficas de Le Roy, as visões históricas e exegéticas de Loisy ou do barão de Hügel, os
conceitos religiosos do padre Tyrrel ou de Fogazzaro, as construções apologéticas do
padre Laberthonnière, as aspirações sociais do padre Murri, - só nomeio os autores que
as decisões do Index já tinham designado – é uma obra prima intelectual que supõe,
naquele que a concebeu e conduziu, tanto força de espírito quanto de penetração e
engenhosidade.
Vários homens ali contribuíram, mas um filósofo teólogo pôde sozinho construir esta
síntese sutil e poderosa que o papa fez sua...
Pode acontecer que um historiador da filosofia puramente objetiva e crítica não possa
encontrar esse conjunto de teorias que a encíclica designa sob o nome de “modernismo”,
e onde ela vê “a síntese de todas as heresias”, nem na carta de Tyrrell, nem nos Ensaios
de filosofia religiosa de Laberthonnière, nem no Dogma e crítica de Le Roy, ou mesmo no
Il Santo de Fogazzaro; contudo, o “modernismo” não é um fantasma, e a encíclica, ao lhe
dar os contornos precisos que permitem reconhecê-lo, não o criou. E os autores visados
se encontram nela, mais ou menos involuntariamente.

37
Permita-me citar aqui uma dupla lembrança pessoal. Pouco após a aparição da Encíclica, e à alguns instantes de
intervalo, encontrei dois leigos eminentes, e que foram, um e outro, levados, por caminhos diversos, à verdade católica.
Um, François Coppée, já atingido pela longa e dolorosa doença que não lhe permitida ainda de retomar sua atividade,
me diz com sua humildade encantadora de poeta: “Acabo de ler a Encíclica. Confesso que não entendi tudo, mas eu
vejo claramente, eu tenho a evidência que o Papa está na verdade. E ele está na verdade, pois é um simples... Ele vai à
verdade retamente, com seu bom senso...” – Era, ao contrário, a mais sábia complicação da psicologia moderna que
representava meu outro interlocutor, Paul Bourget: “Que felicidade, me dizia ele, temos um Papa científico! Como ele
toma corpo a corpo o pensamento moderno naquilo que ele tem de mais sutil e de mais central: A falsa idéia da
evolução! E como tudo é penetrante e definitivo na análise que ele faz disso!” – A reunião desses dois julgamentos não
dariam a verdadeira fórmula? Pio X é o espírito direito, a alma simples da qual falava Coppée e o vingador do bom
senso da humanidade: mas ele vinga o simples bom senso contra os sofismas da filosofia mais sutil, a mais complicada
e a mais tenebrosa que jamais existiu, e ele o faz vitoriosamente, com as armas e a linguagem desta própria filosofia.
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Ora, se um historiador da filosofia não saberia encontrar em nenhum lugar o modernismo,


um historiador das ideias38 não teria dificuldade em descobri-lo...
Que os filósofos não protestem: esta composição, que não foi criada em parte alguma,
existia latente em todas as almas seduzidas, mais ou menos consciente em todas as
inteligências sedutoras. O papa não a criou, ele a colocou em evidência e provou que ela
corresponde a uma realidade, que ela reuni, reata, com efeito, de modo lógico e claro, as
diversas posições adotadas pelos autores, tanto em dogmática quanto em exegese, em
história ou em apologética, e que ela explica, ao mesmo tempo, a correspondência e a
diversidade de todas as atitudes.
Um dos líderes do modernismo, Tyrrell, reconhecia, de sua parte, que a exposição do
modernismo, tal como ela é feita pela Encíclica, é fiel a tal ponto, que ele a declarou
encantadora:
“A descrição do modernismo que nos apresentam é tão sedutora para todo espírito
cultivado, e as teses que lhe opõem são tão repulsivas, que a Encíclica é uma leitura
perigosa para os filhos do século39.”
O que é notável, novo, declara também Aulard, é que a Encíclica expõe o modernismo
não sob a forma de caricatura, mas com um tipo de objetividade, e em quase todo seu
charme. Vê-se aí, em sua amplitude e seu consentimento, as ideias daqueles que querem
adaptar o catolicismo ao estado atual dos espíritos40.
Em seu paupérrimo volume: Simples reflexões sobre o Decreto “Lamentabili” e a Encíclica
“Pascendi”, Loisy tenta relutantemente contestar o que afirmaram seus confrades
modernistas, dizendo que “as imputações mais graves” contidas na Encíclica “estão
somente meio ou não totalmente fundamentadas41”,
Na verdade, o que Loisy não pode perdoar na Encíclica, é o fato de tê-lo desmascarado.
Após as primeiras condenações que o atingiram, ele deu, aos infelizes que ele extraviou,
essa palavra de ordem: “Católicos somos, católicos permanecemos; críticos somos,
críticos permanecemos42.”
Na realidade, ele era neo-protestante e não católico, criticista e não crítico. Mas o
equívoco e a insinceridade doutrinal de sua situação lhe compunham toda sua
originalidade e valor. Aos próprios olhos dos descrentes, todo o interesse polêmico ou
estético de sua atitude consistia na disputa que ele mantinha equilibrada sobre a fronteira
da Igreja; expulso, ele não é mais, para os sectários ou os diletantes que o aplaudiam, do
que um aliado inábil, um malfazejo bufão que perdeu a corda bamba e que paramos de
olhar.
Ele não pode mais nem extraviar os católicos pouco avisados, ou os seminaristas
aventurosos, nem servir os adversários da Igreja, nem interessar os indiferentes pela
singularidade de seu caso; ele é somente, aos olhos de todos, o que ele era, em

38
Sempre tive a ingenuidade de acreditar que a história da filosofia era a história das ideias filosóficas. Parece que não.
39
Times; 30 de setembro de 1907.
40
Progresso de Saone-et-Loire, 26 de setembro de 1907.
41
Simples reflexões, p. 243. Nesta redação definitiva de minhas lições, invocarei de bom grado, para completar, seja a
exposição das doutrinas modernistas, seja sua refutação, esse comentário do decreto e da Encíclica, interessante e
decisivo, por sua impotência e pela evidência de seus sofismas, no qual Loisy tenta inutilmente rasgar o conjunto da
Encíclica. É a serpente e o limo. Contudo, se surpreende e se entristece ao ver um órgão frequentemente estimável
como o Journal de Débats, obstinado no falso aguilhão que desde o início o enganou nesta questão do modernismo,
ousar falar, contra toda verdade cientifica e literária, das “fáceis e terríveis vantagens” que Loisy tomaria em seu factum
“contra os teólogos de S. Santidade”. Em 1804, Dom Dupanloup notava na tradução que o Journal de Débats dava do
Syllabus de Pio IX, até 70 contra sensos. É uma tradição na qual o Journal de Débats parece ter felizmente renunciado e
da qual ele faria bem em deixar definitivamente o monopólio a seu confrade Le Temps.
42
Carta de Loisy, 8 de janeiro de 1904, citada em Houtin, A questão bíblica no século XX, p. 195.
23
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realidade, sob a etiqueta mentirosa de católico e de crítico: um protestante muito banal.


Não há no mundo um herético como tal: ele é somente uma mentira. A situação é nítida, e
tudo que sobra, além do mais, à Loisy, é a simpatia, agora confessa, de Salomon
Reinach43 e a publicidade do Matin.
Não realçamos, a meu conhecimento, este traço de impudor e impiedade: Salomon
Reinach, acobertando os excomungados, ousa usurpar a divina palavra do Evangelho e
lhes dizer: “Nolite timere, pusillus grex; não trabalhastes em vão44.” Essa blasfêmia
repulsiva e a pesada ironia desta proteção são mais do que um gesto de raça, e
procedem dos servos de Caifás humilhando Jesus. Um judeu, e um judeu portador de tal
nome, se fazendo o Cristo da pequena igreja modernista, se movendo para procurar à
seus apóstolos alguns denários oficiais, e substituindo, para Loisy, o Cristo de seu
batismo e de seu sacerdócio... Nolite timere, pusillus grex. Que castigo!
E quanto ao Matin... finalmente! Nas colunas do mais desqualificado de todos os jornais,
por uma entrevista ilustrada, ele é representado como um professor melindrado e
barbudo, usando um boné grego, uma jaqueta e sapatos, e que dá de comer às
galinhas... Ser apresentado sob esta fisionomia primaria e amargurada, à admiração dos
leitores do Matin, que são, como sabemos, inumeráveis: stultorum infinitus est
numerus...45
Seria cruel continuar. A verdade de que eles se servem tem essas conseqüências.
Mas não é preciso deixar de repetir, eis aí o resultado lógico, inevitável, da doutrina
modernista. Ela já desaba no esquecimento das velhas coisas, pois ela não é a ciência.
À ciência moderna, ao pensamento moderno, naquilo que eles tem de vital e de imortal, é
Pio X quem se coloca como defensor e o advogado.
O Papa entrou no coração do pensamento moderno, ele o tomou corpo a corpo, e, ouso
assim falar, espírito à espírito, ele o olhou na face, ele distinguiu realmente sua substância
íntima, o que constatamos a todo instante como sendo a alma do próprio modernismo, e
ele disse a este pensamento orgulhoso de si mesmo: Sim, os progressos na ordem
material e social são maravilhosos e imensos, mas, na ordem intelectual, a ideia
fundamental da filosofia moderna, da pretendida ciência moderna, esta ideia fundamental
é falsa; ela é falsa não somente sob o ponto de vista da fé, mas sob o ponto de vista da
razão e da própria ciência; é anti-racional, anti-científica, incapaz de estabelecer uma
dissociação entre os dados essenciais do bom senso do gênero humano que constata e
reconhece o absoluto nos fatos, e o que chamais de razão filosófica. Não é permitido, não
é possível criar esse divórcio no homem, e esse divórcio traz logicamente todas as
destruições e todas as ruínas.
Eis o que o Papa fez, eis porque esta palavra excitou por toda parte uma emoção
profunda. Temos um Papa que não olha de longe o pensamento moderno, mas que o
toma onde ele se encontra, que o compreende tal como ele é; e não é por ódio, por
desprezo por ele, mas, ao contrário, por piedade por ele, para salvá-lo, para elevá-lo, para
fazê-lo avançar, progredir, que ele lhe indica, nesse movimento rumo ao ideal, os atoleiros
e os impasses.
O que fez o Papa não foi, como se tem dito erroneamente, querer encerrar os padres em
uma filosofia de outrora, de cercá-los, rompendo todas as relações diplomáticas entre a

43
Ver a Revue archéologique, dezembro de 1907, p. 437. Salomon Reinach, dizem, interveio para tentar atribuir a
Loisy, pela Academia das Inscrições e Belas Letras, um prêmio de 20 mil francos.
44
Ibid.
45
Le Matin, 13 e 24 de fevereiro de 1908.
24
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Igreja e o século46, entre o pensamento eclesiástico e o pensamento exterior; isso é falso.


O que o Papa fez foi mostrar aos católicos, que precisamente estavam tentados em se
encerrar no impasse kantista, que havia aí um impasse; dali, lhes é dito, não saireis, não
avançareis; e como o Papa quer avançar, como ele quer que a verdade e o pensamento
humano avancem, progridam, se elevem cada vez mais rumo ao ideal, o Papa indica
onde está o impasse pelo qual não se pode avançar. Eis o que o Papa fez.
O Papa, portanto, não proibiu aos sacerdotes de pensar na maneira moderna, ele não
lhes proibiu de se ocupar do que se pensa e do que se diz entorno deles; ao contrário, o
Papa quer que os padres o conheçam, e o conheçam cada vez mais; ele quer o contato
intimo e profundo do pensamento eclesiástico com o pensamento moderno. O Papa quer,
o Papa sabe, o Papa diz que não há duas filosofias e duas ciências. Nada é mais falso,
nada é mais funesto que esta concepção dualista. Não há uma filosófica realmente
católica e uma filosofia realmente não católica: há uma filosofia verdadeira completa. Não
há um pensamento realmente católico e um pensamento realmente não católico: há uma
verdade única que é a mesma em toda parte e para todos. Tudo o que é verdadeiro, é
nosso: eis a divisa que devemos adotar. Mas isso não quer dizer, notemos, que fora de
nosso meio não há verdade, alguma semelhança de verdade. Há, fora de nosso meio,
quem busca a verdade com a dor intensa de não possuí-la, com um desejo apaixonante
de atingi-la e de fazê-la progredir: estes estão conosco sem o saber, e tudo o que é
verdadeiro em todas as ordens, na filosofia, na ciência, faz corpo com a verdade integral,
que temos, nós, a consciência de possuir pela fé, mas da qual perseguimos, sem cessar,
a mais perfeita possessão racional. No lugar de nos fecharmos em uma torre, fora da qual
não poderíamos sair, nem mesmo olhar, no interior da qual não poderiam vir aqueles que
não pensam como nós, é preciso demolir essas muralhas, ir àqueles que não sabem, não
veem o que sabemos, o que vemos, e mostrar-lhes tudo isso, mas cientificamente,
modernamente, com seus métodos
Não cremos que o Papa impeça de agir assim; ao contrário, quando ele pede que os
estudos dos padres estejam assentados sobre uma filosofia escolástica séria e profunda,
ele se presta a afastar tudo o que, nesta filosofia, está prescrito, tudo o que não existe
mais; ele só toma da filosofia escolástica, a alma imortal, e a alma imortal da filosofia
escolástica, eia aqui, apesar de tudo, e o que ela tenha, é também a alma do são
pensamento moderno, pois é a alma do próprio pensamento humano; é um realismo
ontológico moderado, ou seja, uma afirmação sincera de que há um absoluto constatável,
de que as coisas existem, de que o nada não é a mesma coisa que alguma coisa, é esta
persuasão profunda da qual o homem não pode se desfazer, de que há uma
continuidade, um ponto de homogeneidade, conhecível e assinalável entre os dados
indestrutíveis do bom senso humano e a razão filosófica.
A grande desgraça, a doença, a morte do pensamento moderno, é de não querer
reconhecer o contato entre os dados essenciais do bom senso, que admite o absoluto dos
fatos, e a razão filosófica que faz a ciência. Eis o que o Papa pede, eis aí o caráter
essencial da filosofia escolástica47, e aqueles que possuem verdadeiramente a tradição
completa, - são raros – são, na realidade, os mais moderados e os mais abertos dos
pensadores.

46
“O gesto que acaba de fazer Pio X é a ruptura das relações diplomáticas entre a Igreja e o século... O mundo
intelectual não católico permanecerá impermeável ao pensamento católico e haverá certa reciprocidade...” Fonsegrive,
carta ao Temps, 28 de setembro de 1907.
47
Ver no Les Elùdes de 5 de fevereiro de 1908: Escolásticos e modernistas, por L. Roure.
25
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III – Explicação da palavra Modernismo

Resta-me dizer uma palavra do equivoco contido no próprio termo “modernismo”.


A palavra “modernismo” não se encontra no dicionário da Academia, mas existe no de
Littré, que a define desta maneira bastante vaga: “Modernista, aquele que estima os
tempos modernos acima da antiguidade.”
Coisa curiosa, o primeiro emprego que encontramos desse termo parece ser em Jean-
Jacques Rousseau, que se serviu dele, coisa mais curiosa ainda, para designar os ateus
evolucionistas de seu tempo (já!) e refutar suas objeções contra a existência de Deus.
Seu correspondente tinha-lhe “apontado que o mundo estava casualmente arranjado
como a República romana.”
“Vós, modernista, responde Rousseau, mostrais-me uma molécula orgânica; eu tomo meu
microscópio, e vejo um dragão grande como a metade de meu quarto: espero ver moldar-
se e enrolarem-se dragões semelhantes até que eu veja resultar do todo um ser não
somente organizado, mas inteligente, ou seja, não agregativo e que seja rigorosamente
um... Mostrai-me claramente e sensivelmente a geração puramente material do primeiro
ser inteligente: isso é tudo que lhe peço”.
Encontramos de tudo em Jean-Jacques, mais freqüentemente o sofisma, às vezes, a
verdade revestida de uma bela linguagem e, por vezes, mesmo o bom senso. É
necessário citar toda uma página desta mesma carta, desta mesma refutação do
modernismo e do modernismo mais atual. Que os senhores se aprazem, lendo as
passagens que sublinhei, em notar que essas linhas foram escritas em 1769, o ano em
que, segundo os historiadores da filosofia, “Emmanuel Kant chegava ao método original
que caracteriza seu criticismo48.”
Como não somos todo inteligência, não saberíamos filosofar de forma tão desinteressada
que nossa vontade não influencie um pouco sobre nossas opiniões; pode-se
freqüentemente julgar as secretas inclinações de um homem por seus sentimentos
puramente especulativos; e, isso posto, penso que seria possível que aquele que não quis
crer fosse punido por não ter crido. Contudo, eu creio que Deus revelou-se suficientemente
aos homens, tanto por suas obras como em seus corações; e se há aqueles que não o
conhecem, é, creio, porque eles não o querem conhecer, ou porque eles não tem
necessidade de conhecê-lo.
Neste último caso temos o homem selvagem e sem cultura, que ainda não fez nenhum uso
de sua razão... Este homem não conhece Deus, mas não o ofende. No outro caso, ao
contrário, é o filósofo que, pela força de querer exalar sua inteligência, de refinar, de
subtilizar sobre o que se tem pensado até de si, sacode, enfim, todos os axiomas da razão
simples e primitiva, e por querer saber sempre mais e melhor que os outros, acaba por não
saber nada em absoluto. O homem, ao mesmo tempo, racional e modesto, cujo
entendimento exercitado, contudo, limitado, sente seus limites e aí se concentra, encontra
nesses limites a noção de sua alma e a do autor de seu ser, sem poder passar adiante
para tornar essas noções claras e contemplar, o mais próximo, uma e outra, como se ele
mesmo fosse um espírito puro. Então, imbuído de respeito, ele se detém e não toca no
véu, contente de saber que o Ser imenso está sob ele. Eis justamente até onde a filosofia é
útil à prática: o resto é tão somente uma especulação ociosa pela qual o homem não foi
feito, da qual o raciocinador moderado se abstém, e na qual o homem vulgar de modo
algum participa. Este homem não é nem um bruto nem um pródigo, é o homem
propriamente dito, meio termo entre os dois extremos, e que compõe dezenove vigésimos

48
P. Janet e G. Séailles, História da Filosofia, 6º ed., p. 1051.
26
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do gênero humano. Cabe a esta classe numerosa cantar o salmo Coeli enarrant, e é ela,
com efeito, que o canta. Todos os povos da terra conhecem e adoram Deus, e embora
cada um O vista a seu modo, sob todas essas vestes diversas, encontramos, no entanto,
sempre Deus. O pequeno número de homens de elite, com as mais altas pretensões de
doutrina e cujo talento não se limita ao senso comum, querem algo mais transcendente;
não é isso que censuro neles, mas que partam daí para se colocar no lugar do gênero
humano e dizer que Deus esconde-se dos homens porque esse pequeno número não o vê
mais; é nisso que penso que estão errados. Pode acontecer, concordo, que a torrente da
moda e o jogo de intriga ampliem a seita filosófica e persuadam por um instante a multidão
de que não crê mais em Deus; mas esta moda passageira não pode durar; e, como quer
que se o conceba, com o tempo será preciso um Deus para os homens. Enfim, ainda que,
forçando a natureza das coisas, a evidência da divindade aumentasse para nós, não
duvido que no novo Liceu não se aumentaria na mesma proporção a sutileza para negá-la.
A razão toma com o tempo o molde que o coração lhe dá, e quando se quer pensar em
tudo diferentemente do povo, chega-se, cedo ou tarde, a esse resultado49.
Esta última frase poderia ser inscrita como epígrafe principal das ininteligíveis
elucubrações dos adeptos da “filosofia nova”.
Rousseau somente acrescenta, erroneamente: “tudo isso, Senhor, parece-vos pouco
filosófico, e a mim também”. É, ao contrário, da excelente, da melhor filosofia. E se
Rousseau jamais tivesse feito de outra, ele não seria nem tão pouco estimado pelas
pessoas honestas, nem tão bem estimado pelos demais.
Desculpem-me este parêntese aberto a propósito da palavra “modernistas”, criada,
parece-me, por Rousseau. Vê-se que ele não criou apenas a palavra, mas, por
antecipação, refutou os princípios da doutrina. Voltemos à palavra em si.
O que importa constatar, de início, é que a Encíclica só vincula uma importância
extremamente secundária a esse nome de “modernistas”, e, mesmo sobre esse ponto, a
tradução francesa ultrapassa o sentido original; ela diz, com efeito:
E como uma tática dos modernistas (assim os chamamos comumente e com muita razão).
Ora, o texto latino traz:
Quia vero modernistarum (sic enim jure in vulgus audiunt).
A tradução exata seria:
É assim que os chamamos comumente e não sem razão.
“Não sem razão” não é exatamente a mesma coisa que “com muita razão”.
Em segundo lugar, a palavra modernismo nos vem da Itália; e Loisy comete um erro
histórico ao pretender que essa palavra foi “encontrada pelos adversários ortodoxos
daqueles se a aplicam.” Há alguns anos, Romolo Murri e seus discípulos a atribuíram
como um título de glória, e do outro lado dos Alpes, adversários e partidários da doutrina
nova a aceitaram e a empregaram sem distinção e sem contexto.
Nos Studi religiosi (maio-junho 1905), o professor Bonaiuti, diretor da Rivista storico-critica
de Roma, definia e saudava o “modernismo” como “um renascimento idealístico50
49
J.J. Rousseau, Correspondência. Ao Senhor de Bourgoin, em 15 de janeiro de 1769.
50
Pequeno léxico. Idealismo, idealístico, neo-idealismo – A palavra idealismo é um ninho para equívocos. Ele pode ter,
inicialmente, dois sentidos muito diferentes dependendo de que a palavra derive: da palavra idéia ou da palavra ideal.
Esta ultima etimologia é a verdadeira. O idealismo é, portanto, a filosofia do ideal. Mas como a palavra ideal é, por seu
lado, susceptível de interpretações inumeráveis, novas precisões são necessárias. 1º Se se faz do ideal a negação e a
exclusão do real, se se entende por ideal o que não é e não pode ser real, o idealismo será a filosofia daqueles que
negam a realidade das coisas, ou tudo, no mesmo sentido, aquilo que não reconhece, à razão, o poder de constatar
cientificamente e de afirmar a realidade das coisas. O kantismo, que precisamente não reconhece, à razão, esse poder é,
portanto, um idealismo. É por isso que Bonaiuti está precisamente definindo o modernismo um neo-idealismo, pois o
27
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completo, sintoma e causa de uma vasta revolução das consciências. Esse neo-idealismo
não é, à verdade, um puro e simples retorno à metafísica, ainda dolente sob os golpes
sem piedade do pensamento kantiano; mas é um vago e tímido repudio do positivismo
presunçoso, com orientação rumo aos novos horizontes do agnosticismo intelectual e do
dogmatismo moral.”
As citações dos “modernistas” italianos acumuladas na obra de A. Cavallanti, intitulada
Modernismo e modernisti51, e publicada em 1906, são a prova evidente de que o Papa
não fez outra coisa, em sua Encíclica, do que tomar a palavra como um fato, como uma
denominação existente, já passada na linguagem corrente, e sem a ela ligar outra
significação que aquela que lhe atribuem de um comum acordo seus partidários e
adversários.
Na França, onde a palavra era bem mais conhecida e menos usada, ele surpreendeu a
opinião pública, e os modernistas tentaram abusar do equívoco que ela contém. Com esta
nuance de desprezo irônico, que é o vinco habitual de seu estilo (como parece, no dizer
do Matin, de seu sorriso voltariano), Loisy escreve: “Pio X o declara (o nome de
modernismo) bem apropriado, mas sem dizer os motivos desse julgamento52.”
“Agora, escreve ele em sua conclusão, as posições estão tomadas: a Igreja romana, se
apoiando sobre a idéia da revelação absoluta, que autoriza divinamente sua constituição,
sua crença e suas práticas, recusa toda concessão ao espírito moderno, à ciência
moderna e à sociedade moderna, que não podem reconhecer nem o caráter absoluto
desta revelação, nem o absolutismo da infalibilidade e da autoridade eclesiásticas...53
A Igreja só poderia uma coisa: se envolver, tanto quanto o clero, nas ideias e na ciência
modernas. É o que ela fará, se ainda o puder.54
Não sei se nunca a Igreja transigirá com o espírito e a civilização modernas. Penso que ela
não triunfará, contudo, eles poderiam triunfar sobre ela...55
O Papa contribuiu por fazer, na França, a separação da Igreja e do Estado. Ele proclama,
com sua própria autoridade, a separação da Igreja e da ciência moderna56.
Pio X, enumerando as causas no “modernismo”, negligenciou aí uma que é a única
verdadeira. Os “modernistas” são tais... pois eles são modernos, pois eles são de seu
tempo pela formação e a cultura do espírito, pelo método de trabalho intelectual e pelos
conhecimentos... Homens de seu tempo e engajados no movimento do pensamento
contemporâneo, eles não podem ser homens de outrora, lutando desesperadamente para
que o passado permaneça o presente e seja ainda o futuro57.”

modernismo é justamente um neo-kantismo – 2º Mas se se entende por ideal uma perfeição soberana, que se conceberia
como realizada em um ser existente, que é Deus, então, o idealismo é a filosofia daqueles que crêem em Deus. É assim
que no pensamento de muitos, a palavra idealismo é oposta, embora errada, ao materialismo ateu. – 3º Enfim, pode-se
ainda chamar idealismo o sistema daqueles que olham o mundo como tendo, por uma evolução sem limites, rumo a um
ideal que jamais será realizado. É nesse sentido que Eugène Fournière intitulou o idealismo social, o quadro
apocalíptico que ele traça da humanidade do futuro, tal como a evolução social nos prepara.
51
Brescia, tip. Luzzago, 1906, I vol. In 8º, 432 p. Cavallant definiu assim o modernismo, e não sem justeza: “O
modernismo, contrário do verdadeiro e legitimo conceito de modernidade, é o estado mórbido e funesto de um bom
número de consciências católicas, a maior parte juvenil, que afirmam e professam aspirações, opiniões, tendências,
ideias multiformes, os quais conspiram para dar novas bases e uma nova veste à sociedade, à política, à filosofia, à
teologia, à Igreja, ao cristianismo.
52
Loisy, Simples reflexões, p. 14.
53
Ibid. p. 276.
54
Ibid. p. 273.
55
Ibid. p. 196.
56
Ibid. p. 266.
57
Ibid. p. 257.
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Este refrão importuno em honra da ciência e das ideias modernas, essa última estrofe
digna de Homais, basta amplamente para justificar, se fosse necessário, o emprego
teológico da palavra “modernismo” e para defini-lo como o “abuso do moderno”.
O modernismo é, no verdadeiro e legitimo amor do “moderno”, o que é o liberalismo no
culto sincero da liberdade, o que é o criticismo na verdadeira crítica, o que é o positivismo
em respeito e em valor do fato positivo, real, visível.
O liberalismo é o excesso e a corrupção da liberdade; o criticismo é o abuso e a
destruição da crítica; o positivismo, enquanto sistema exclusivo, termina logicamente em
desnaturar, em desconhecer e mesmo a suprimir o fato real, positivo e visível, sob o
pretexto de valorizá-lo.
Por quê?
Porque cada um desses sistemas transforma em fim e em princípio o que é somente um
meio; cada um desses sistemas toma seu objeto particular por único princípio e por lei
definitiva e absoluta; cada um desses sistemas peca pela exclusão de todo o resto, cada
um desses sistemas não coloca acima de seu objeto particular, nenhuma regra, nenhuma
lei superior de vida e, por seguinte, todos esses sistemas desconhecem, desnaturam e
pervertem a realidade das coisas.
Assim, não há nada melhor que o respeito e o amor da liberdade, quer dizer, a liberdade
dos outros como a nossa. Mas o liberalismo é o mais inepto e o mais pernicioso dos
sistemas, pois o liberalismo faz da liberdade o fim e o fim último, enquanto que ela é
somente um meio; ele coloca como lei suprema uma liberdade na qual não preside
nenhuma regra, nenhum limite, não reconhece e não ousa atribuir nenhum princípio fixo e
eterno superior à liberdade, e que deve reprimir seu exercício. Por seguinte, os liberais,
seja em teoria, seja na prática (o que é o caso dos católicos liberais) suprimem todo
princípio absoluto e toda base fixa na sociedade, na lei, na filosofia, no próprio
pensamento, e terminam fatalmente no reino da anarquia, ou seja, na destruição desta
liberdade que eles pretendiam constituir e salvaguardar.
É por isso que os liberais são e serão sempre, em filosofia e em teologia, como em
política, os enganados e as vítimas dos revolucionários e dos violentos que eles imaginam
conquistar e governar por suas eternas e progressivas concessões.
Da mesma forma, é legítimo, é excelente e necessário amar o “moderno”, de ser de seu
tempo, “pela formação e a cultura do espírito, pelo método de trabalho intelectual58 e
pelos conhecimentos59.”
Nada no mundo, e mesmo se o mundo vivesse ainda milhões de séculos, jamais será tão
“moderno” quanto a Igreja. O “vinho novo” do Evangelho, o qual ela é sobre a terra a fonte
viva, pois ela o tira do próprio coração de Jesus para distribuí-lo aos homens, não secará
e nunca envelhecerá. É a aparição da Igreja que faz o corte entre o “antigo” e o “moderno”
na história.
Mas o “modernismo” faz para o “moderno”, o que o liberalismo faz para a liberdade. Ele
erige o “moderno” em princípio absoluto, exclusivo, superior a tudo; tudo o que é moderno
é bom, nada do que não é exclusivamente moderno é aceitável; o moderno, ou seja, o
momento atual torna-se a regra suprema na qual tudo deve se dobrar e se adaptar, ao
custo do desprezo de todo princípio superior, anterior, eterno, que se imporia ao

58
Provado, todavia, que este “método” não seja um método radicalmente falso e viciado em seu princípio, como é o
criticismo de Kant e de Loisy. O leitor tem, nesta palavra “método moderno de trabalho intelectual” um exemplo dos
inumeráveis equívocos do qual é feito o estilo fugaz de Loisy. É preciso lê-lo com um par de sisais, a fim de cortar em
dois cada uma dessas palavras.
59
Loisy, Simples reflexões, p. 258.
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pensamento, à consciência do homem como da sociedade, no mundo e na vida, e que


dominaria e regularia o presente, como dominou o passado e governará o futuro.
A Igreja respeita, ama e salva no “moderno” o que deve viver, ou seja, o laço misterioso
pelo qual o “moderno”, sendo verdadeiramente novo, se liga ao passado para continuá-lo
e preparar o futuro. É o próprio fundamento da “tradição”.
O modernismo substitui a tradição, respeitosa de um passado digno de perdurar, pela
evolução sem pontos fixos e sem limites, uma evolução contraditória, impossível, e que se
destrói por si mesma, pois ela não é dominada nem regida por nenhum princípio absoluto,
superior à duração, atribuível e constatável pela razão humana.
O que a Igreja reprova no modernismo é, portanto, uma filosofia falsa e destrutiva, o
sistema de uma evolução sem pontos fixos e sem limites determinados pela razão; o
sistema de um relativismo que não admite nenhum princípio absoluto cientificamente
constatável pela razão; o sistema de um criticismo que recusa afirmar que a razão
humana toma um contato real e científico constatável com uma verdade distinta dela
mesma, existindo independentemente dela, superior a ela, e que a domina.
Essa falsa filosofia encerra o homem no elemento perecível e infecundo do “moderno”,
em um individualismo que é um impasse sem horizonte e sem esperança.
Para dizer a verdade, de “moderno” há somente cada instante indivisível e inacessível da
duração, esse fluxo imponderável, impossível de fixar, do tempo que escapa. Ora, esse
nunc fluens, este minuto que só vale pela centelha de vida que o passado lhe transmite, e
pelo futuro, do qual ela está obrigada, esse nunc fluens que não é alguma coisa senão o
princípio de continuidade que o ultrapassa e o domina, a falsa filosofia moderna não pode
ultrapassá-lo nem dominá-lo, na falta desse princípio absoluto.
Da mesma forma, para ser livre é preciso possuir um princípio absoluto que domine e reja
a liberdade, assim também, para ser verdadeiramente “moderno” é preciso possuir um
princípio absoluto que reja e ultrapasse o moderno. Esse princípio, só a filosofia da Igreja,
que é, ao mesmo tempo, a filosofia do senso comum da humanidade, o reconhece, o
respeita e o proclama: e, precisamente, a filosofia modernista, a filosofia criticista e
kantista o ignora e o renega.
Na falta de um princípio absoluto, e para que ela faça do moderno a regra de tudo, ela só
vê e só coloca no “moderno” o golpe com o passado, ela só vê e só coloca aí um germe
de negação e de morte. Pode-se dizer sem paradoxo que somente é realmente moderno,
quem, no “moderno”, merece durar e ser imortal; e é justamente o que o “modernismo”
ignora no “moderno”.
A prova de que o “modernismo” faz do moderno a regra absoluta e definitiva de tudo, e
não reconhece nenhum princípio superior que o domina, eu a encontro nesta definição
que pode parecer, em uma primeira abordagem, inofensiva, e que Loisy dá do
modernismo.
“Os pretendidos modernistas são, portanto, não um grupo homogêneo e ligado, como se
poderia crer ao se reportar à Encíclica pontifical, mas um número muito determinado de
pessoas cujo traço comum é o desejo de adaptar a religião católica às necessidades
intelectuais, morais, sociais do tempo presente60.”
Isso lhe parece natural. Não é, e mesmo, perfeitamente legítimo e louvável esse desejo
de adaptar a religião católica às necessitas do tempo presente?

60
Loisy, Simples reflexões, p.13.
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É, por demais, necessário que os “teólogos de Sua Santidade” tenham um espírito


delimitado e reacionário para enfadarem esses pobres modernistas, e desconhecerem
suas excelentes intenções!
Olhemos de perto esta inocente definição: “adaptar a religião católica às necessidades do
tempo presente.”
Se a religião católica é verdadeira, ou seja, se ela tem realmente um Deus infinito, criador
e fim último de todo homem, se Jesus Cristo é realmente Deus, se a Igreja é realmente
divina, se a crença em todos seus dogmas e a observação de todos seus preceitos
morais são, a quem os conhece, de uma obrigação rigorosa para a salvação, em uma
palavra, se a religião católica é verdadeira, desses dois termos: a religião católica e o
homem do tempo presente, qual deve se adaptar e se dobrar ao outro, a religião ao
homem ou o homem à religião?
Colocar a questão é resolvê-la.
Pois não se trata de uma adaptação superficial de alguns elementos puramente exteriores
e acessórios da religião, da transformação de tal ou tal forma do apostolado em um dado
país, ou de alguns acomodamentos disciplinares às necessidades passageiras – trata-se
bem mais da adaptação e da transformação dos elementos fundamentais e essenciais da
religião. Loisy se certifica de nos dizê-lo claramente.
“É a própria noção de infalibilidade eclesiástica, é, no fundo, toda a teologia católica em
seus princípios fundamentais, é a filosofia geral da religião, as fontes e as leis do
conhecimento religioso, que estão em causa61.”
Eis, segundo Loisy, “o princípio fundamental do modernismo”:
“A possibilidade, a necessidade, a legitimidade de uma evolução no modo de entender os
dogmas eclesiásticos, aí compreendidos: o da infalibilidade e da autoridade pontifical, tanto
quanto nas condições de exercício dessa autoridade...
O modernismo questiona esses princípios, a saber, a idéia mitológica da revelação
exterior, o valor absoluto do dogma tradicional e a autoridade absoluta da Igreja.
A evolução da filosofia moderna tende cada vez mais à idéia do Deus imanente, que não
tem necessidade de intermediário para agir no mundo e no homem...62”
Logo, querer “adaptar a religião católica às necessidades do tempo presente” é
puramente e simplesmente negar e suprimir tudo o que a religião católica ensina sobre a
Igreja, sobre Jesus Cristo e sobre Deus; é derrubar os dois termos da religião, Deus e o
homem, e no lugar de obrigar o homem a se adaptar a Deus, crendo no que Ele disse,
pois isso é verdade, e fazendo o que Ele manda, pois isso é o bem - é querer que Deus
se transforme ao agrado do homem, é fazer da própria idéia de Deus o resultado
inconstante de uma evolução puramente física cujo homem é o princípio, o centro e o
autor.
Esse panteísmo ateu, que é o abatimento fatal do criticísmo kantiano, é a verdadeira
definição do modernismo.
Graças a Deus, uma vez mais é a Igreja que abre ao homem dos novos tempos a estrada
do progresso. O kantismo está fora de moda e desqualificado: os jovens não trilharão
mais esse caminho. Uma vez mais, o “vinho novo” do Evangelho agitou os odres velhos
do erro que pretendiam contê-lo. A Encíclica Pascendi ainda tem apenas seis meses, e o
“modernismo” já está relegado ao museu das antiguidades inúteis e insinceras, como
certa tiara familiar a Salomon Reinach, amigo e protetor de Loisy.

61
Simples reflexões, p. 24.
62
Idib.
31

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