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Leão Magno: um papa entre Ocidente e Oriente

1. Introdução

Caminhando resolutamente naquela tarde de agosto de 452, o bispo de Roma sabia que, daquele
encontro, da escolha de suas palavras e da decisão tomada ali, dependeriam a vida de boa parte dos
cidadãos romanos. Átila, o rei dos Hunos, o Flagelo de Deus, aquele de quem se dizia que o capim não
mais crescia depois de sua passagem, estava decidido a continuar sua campanha até chegar à Cidade
Eterna. Aquiléia, a 4ª. cidade da Itália e a 9ª. do Império fora arrasada ao solo. Verona, Brescia,
Bérgamo, Milão, centros importantes do Império tinham experimentado a fúria das hordas guiadas pelo
chefe bárbaro. Para Átila, no entanto, bem como para outros inimigos do império, entrar em Roma era
o que importava. Mais do que uma meta, era um símbolo. Significava a consagração final, a vitória
sobre o mais poderoso sistema político e militar que até então existira. Bem o sabia o bárbaro Alarico,
que em 410 havia inaugurado a série de saques que a capital do Império iria sofrer ao longo de sua
milenar história. Leão sabia que Átila não iria desistir facilmente.

2. Entre vitalidade e crise

O fato acima narrado é um dos episódios mais conhecidos na vida de Leão, cognominado
Magno, bispo de Roma. No século V o império estava à beira do colapso. A administração centralizada
em Constantinopla, no Oriente, levara a um progressivo enfraquecimento da autoridade imperial no
Ocidente. As invasões bárbaras se sucediam, ocupando importantes partes do território, apertando o
cerco contra a Cidade Eterna. A Roma pagã dava lugar à Roma cristã. Este longo período de crise iria
ter seu ápice na queda do Império romano (476). Os mais pobres, que não tinham para onde fugir, eram
os que mais sofriam. A fome e a miséria estavam na ordem do dia. Por outro lado, as disputas políticas
e a luta pelo poder ajudavam a aumentar a instabilidade e a insegurança. Tudo isso fez com que o bispo
de Roma, ao longo da história, fosse obrigado a se ocupar também de questões civis e políticas 1. Leão,
tal como os demais papas deste período, teve que conciliar o cargo de chefe espiritual da Igreja com o
de protetor do povo romano, profundamente comprometido no campo político, doutrinal e disciplinar.

No campo estritamente eclesiástico, apesar das sérias ameaças políticas, a Igreja ainda respira
os últimos alentos de um período de fecunda vitalidade. Leão é contemporâneo do grande Agostinho
(354-430), de Jerônimo (347-419/20), de Patrício, o Apóstolo dos Irlandeses (386-493) 2. Essa
vitalidade, que se mostra através de uma fecunda reflexão teológica, também se faz presente no pulular
de correntes heterodoxas (heresias), que vão surgindo, buscando dar respostas às questões relacionadas
à salvação, aos vários aspectos envolvendo a pessoa de Jesus, como a relação entre sua humanidade e
divindade. Grandes teólogos e bispos se esforçam por encontrar solução para estas controvérsias,
originando, não poucas vezes, discórdias, disputas e divisões entre as sedes episcopais. A comunhão
entre as Igrejas é colocada em risco, e aos poucos vai aumentando a distância entre Oriente e Ocidente.
Esta situação vai exigir de Leão uma intensa atividade diplomática, buscando conciliar os ânimos,
esforçando-se por preservar a unidade da Igreja, ao mesmo tempo em que contribui de modo
determinante para o esclarecimento destas controvérsias. Leão vai ser testemunha de dois dos mais
importantes concílios ecumênicos da história da Igreja, Éfeso (431) e Calcedônia (451).
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Já publicamos nesta revista um artigo sobre Gregório Magno, em duas partes, onde deixamos bem evidenciado o papel dos
bispos de Roma no campo político, civil e social. A atividade exercida por Leão Magno em relação ao Estado Romano será
acentuada com o advento de Gregório Magno. Cfr. Revista Grande Sinal: 1ª. Parte: COSTA, Sandro R., Gregório Magno:
Testemunha e protagonista de uma nova sociedade. Grande Sinal, Petrópolis, v.61, fas. 3, p. 293-302, Mai./Jun. 2007; 2ª.
Parte: Gregório Magno, liturgia e missão, v.61, fas. 4, p. 419-428, Jul./Ago 2007.
2
O período imediatamente anterior a Leão Magno é conhecido na Patrística como Era de Ouro dos Padres da Igreja.

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3. Bispo de Roma

Leão Magno é um dos Padres da Igreja dos quais foram conservados a maior parte dos escritos.
Todo esse material nos fornece preciosas informações sobre a história da Igreja, sobre a teologia, a
liturgia a espiritualidade. Permite-nos também ter acesso ao pensamento teológico de Leão, sua
solicitude de pastor, a preocupação no combate aos abusos e heresias. Tais escritos, porém, relatam
muito pouco sobre sua vida pessoal, especialmente para os anos anteriores à sua eleição. As poucas
informações que temos nos dizem que ele nasceu na Toscana, região próxima a Roma, em data
desconhecida. O estilo de seus escritos nos permitem supor que fosse educado não apenas nas
disciplinas eclesiásticas, mas também nas letras clássicas. Temos informações de que no ano de 431 ele
era membro do clero de Roma, como diácono ou arquidiácono. Seja qual for a função, o fato é que
Leão ocupava um lugar de destaque naquela Igreja, pois em 440, antes de sua eleição à Sé de Pedro, o
encontramos na Gália (França), numa missão a pedido de Gala Placídia, mãe do imperador
Valentiniano III, para arbitrar uma questão entre os generais Ézio e Albino. Durante essa missão, morto
o papa Sixto III, Leão foi escolhido unanimemente para dirigir a Igreja de Roma.

O novo bispo foi consagrado no dia 29 de setembro de 440, inaugurando um longo e frutuoso
pontificado de 21 anos. As disputas teológicas exigiram dele intervenções decisivas e seguras, o que
contribuiu para destacar a autoridade e a consciência do primado da Sé de Roma sobre as demais
Igrejas. Leão morreu no ano de 461, em data incerta, mas a tradição, aliada a alguns testemunhos
contemporâneos fixou a data em 10 de novembro 3. Papa Bento XIV, em 1754, lhe outorgou o título de
“Doutor da Igreja”. Junto com Gregório, Leão é o único papa que tem o epíteto de “Magno” (Grande),
que lhe foi atribuído posteriormente.

3.1 Um Pastor que prega

Leão foi um grande pregador4. As homilias e sermões, pronunciadas nos tempos fortes da
Igreja, como natal, epifania, quaresma, Páscoa, Pentecostes, etc., no ordinário exercício pastoral,
testemunham seu esforço em manter a pureza e a integridade da fé. Além destas, temos as cartas, que
tratam de assuntos práticos, incentivando o respeito às normas litúrgicas, dando orientações aos bispos
ou administrando conflitos. A disciplina eclesiástica ocupa um bom espaço, bem como as preocupações
morais, que aparecem frequentemente em seus escritos. Mas as questões teológicas mais elaboradas e
profundas também são objeto das preleções de Leão. O combate à heresia de Nestório e de Eutiques
fizeram dele o grande defensor da encarnação de Jesus. Em seus sermões, especialmente no tempo de
natal, ele sublinha a importância da encarnação para a redenção. Às angústias de seu tempo, Leão
responde com uma visão otimista diante da humanidade assumida pelo Verbo.

Obviamente o estilo dos sermões e homilias difere do estilo das cartas. Estas são refletidas,
pensadas, estilisticamente elaboradas. Já as homilias e sermões têm um estilo mais prático, pastoral,
adaptado ao auditório. Várias homilias foram com certeza copiadas por taquígrafos ou estenógrafos,
que escreviam conforme o pastor ia pregando ao povo. Seu discurso, mais do que agradar aos ouvidos,
tem a finalidade de instruir, de revelar e defender as verdades da fé.5

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Alguns testemunhos colocavam a data da morte de Leão no dia 11 de abril. O Liber Pontificalis, no entanto, afirma que o
papa Hilário, sucessor de Leão, assumiu no dia 19 de novembro de 461, após uma vacância de 07 dias, o que coloca a morte
de Leão entre 10 e 11 de novembro. No Ocidente sua memória é celebrada dia 10 de novembro, e no Oriente dia 18 de
fevereiro.
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Leão Magno é o primeiro papa de quem foram conservadas, além das cartas, também os sermões.
5
Temos 173 cartas na coleção leonina, sendo 143 de seu próprio punho, e 30 endereçadas a Leão. Os assuntos tratados são
os mais diversos: contra os erros do pelagianismo; contra os maniqueus; exortação aos bispos, sobre os abusos dos

2
3.2 O Bispo de Roma e os demais bispos da Igreja

Uma das características do pontificado de Leão é a consciência que ele tem do papel do bispo
de Roma. Os textos mais importantes que explicitam claramente esta consciência são os cinco sermões
pronunciados nas datas comemorativas de sua elevação ao pontificado, além de dois outros,
pronunciados na solenidade dos apóstolos Pedro e Paulo. Para ele o bispo de Roma é sucessor de
Pedro. Cristo, bispo eterno, concedeu a Pedro seu poder episcopal. É Pedro que preside a Sé de Roma,
e age nos seus sucessores. O cargo é ocupado como um dever e um serviço à Igreja. O mérito maior de
Leão está na concepção que ele tem da unidade e da disciplina da Igreja Universal, e da consciência do
papel do bispo de Roma nesta unidade. 6 Leão não apenas teoriza sobre a autoridade do bispo de Roma,
mas a coloca em prática. Durante seu pontificado, por causa da situação de insegurança generalizada
que se criou, acentua-se o costume de recorrer ao bispo de Roma como autoridade capaz de dirimir
questões das Igrejas, como da Gália, África, Espanha, e até do Oriente, onde até então nenhum bispo de
Roma havia feito uma intervenção com tal autoridade disciplinar e doutrinal7.

4. A luta contra as heresias

Leão ocupou-se de todas as heresias que grassavam em Roma no seu tempo. O maniqueísmo,
particularmente, foi alvo de suas atenções, pelo perigo que representava para os cristãos. Heresia
antiga, que resistia a desaparecer, após a fuga de vários maniqueus da África, expulsos pela invasão
vandálica, o maniqueísmo retomava força em Roma. Com a ajuda do imperador, exortando os bispos a
estarem atentos, e através de seus sermões e cartas, Leão conseguiu diminuir sua influência. As
doutrinas de Prisciliano, herético espanhol, também foram alvo do combate de Leão. O bispo agiu com
rigor também na luta contra o Pelagianismo, especialmente em relação aos sacerdotes afeitos a essa
heresia. Os pelagianos que quisessem ser readmitidos à Igreja deveriam subscrever uma retratação. O
bispo pelagiano Juliano de Eclano foi impedido por Leão de retomar sua sede. No entanto, os desvios
doutrinais que exigiram um empenho particular de Leão foram o nestorianismo e o monofisismo.

4.1 Combate ao Monofisismo

Ainda antes de ser eleito para a Sé de Pedro, Leão Magno se ocupou com os desvios doutrinais
relacionados à pessoa de Jesus, sobre a unicidade ou duplicidade das naturezas humana e divina.
Algumas teses deram origem a acesas discussões, colocando em sério risco a ortodoxia. Uma destas
teses era defendida pelo bispo de Constantinopla, Nestório, que tinha idéias extremistas sobre a
presbíteros; temas pastorais, jurídicos ou litúrgicos; sobre a ordenação de bispos, presbíteros e diáconos; sobre a heresia de
Eutiques; sobre a data da Páscoa, etc. A coleção conhecida como Sacramentarium Leonianum (também chamado de
Veronense, por achar-se em Verona) foi durante muito tempo atribuída a Leão. Hoje sabe-se que trata-se na verdade de uma
compilação de um colecionador do século VI e VII, que reuniu formulários de orações em uso na Igreja de Roma nos
séculos V e VI.
6
Na verdade não se pode afirmar que ele seja o “primeiro papa”, como afirmam alguns estudiosos. Pode-se, isso sim,
afirmar que ele foi “plenamente papa”, pois seu pontificado, de um certo modo, foi um protótipo daquilo que seria o ideal
de um pontificado romano. Seu modelo vai ser seguido e copiado pelos pontífices seus sucessores. Leão coloca as bases
para o papado medieval, que vai atingir seu ápice no pontificado de Gregório VII (1073-1084). Diz-se ainda de Leão que ele
é o “verdadeiro fundador do papado medieval em toda sua magnificência de concepção...”. Dictionnaire de Theologie
Catholique, Tomo IX, col. 229. A propósito, o papa Bento XVI, no dia 05 de março de 2008, afirmava sobre Leão Magno:
“...ele foi verdadeiramente um dos maiores Pontífices que honraram a Sede Romana, contribuindo muitíssimo para
fortalecer a sua autoridade e prestígio”. Alocução pronunciada na Audiência Geral, na Aula Paulo VI, quarta-feira, 05 de
março de 2008. Cfr. L’Osservatore Romano, edição semanal em português, no. 10 (1994), 08 de março de 2008, p. 16 (132).
7
Para Leão, não é a ação de Pedro em Roma, nem a presença de sua tumba na Cidade Eterna que tornam o bispo da cidade
sucessor do Apóstolo, mas é a sucessão em si mesma, juridicamente entendida, que faz do bispo de Roma representante de
Pedro.

3
cristologia, afirmando, por exemplo, que Maria não poderia ser chamada Mãe de Deus (Theotókos),
mas somente Mãe do Homem (Antropotókos) ou Mãe de Cristo (Cristotókos). Tal afirmação, além de
não ser aceita pelos teólogos ortodoxos, chocou a sensibilidade dos fiéis na sua devoção a Maria. Em
430, diante dos desvios de Nestório, o diácono Leão, a pedido do papa Sixto III, dirige-se a Agostinho
de Hipona, já velho e alquebrado, para que escreva uma obra para confutar os erros de Nestório.
Agostinho não pôde fazê-lo, pois, além da idade, sua cidade estava sob assédio dos vândalos. Leão se
dirige então ao monge João Cassiano, que escreve a obra “De Incarnatione”. A questão nestoriana
acabou exigindo a convocação do Concílio de Éfeso (431), no qual foram condenadas como heréticas
as teses de Nestório, e reafirmada a fé de Nicéia (325). Foi afirmado que Jesus tem duas naturezas
perfeitas, a divina e a humana, unidas numa única Pessoa divina. Maria é verdadeiramente Mãe de
Deus (Theotókos), pois não se podem separar em Jesus o divino e o humano.

4.1.1 O “Latrocínio de Éfeso”

O Concílio de Éfeso, como acenamos, foi convocado quando Leão ainda era diácono. A
condenação das teses de Nestório, porém, não colocou um ponto final na questão. A formulação final
de Éfeso deixava margem a interpretações ambíguas, que foram logo assumidas pelos extremistas.
Nesta nova formulação, era reconhecida em Jesus apenas a natureza divina, deixando na sombra a
natureza humana, condição para a salvação. O principal defensor desta corrente, que se chamou
Monofisismo (“uma só natureza”, ou “fisis”) era o abade Eutiques 8. Suas teses foram logo consideradas
heterodoxas, por isso Eutiques foi denunciado por Flaviano, bispo de Constantinopla, e por Eusébio,
bispo de Dorileu. Como conseqüência, foi deposto de seu cargo de abade. Eutiques, porém, não
sossegou, e conseguiu apoio das autoridades imperiais, até convocar um novo concílio ecumênico.

Contra todas as expectativas, e sob protesto de Leão Magno e do bispo Flaviano, foi convocado
um segundo concílio para a cidade de Éfeso, no ano 449. A intenção era clara: reabilitar Eutiques e
depor Flaviano, seu principal opositor, da sede de Constantinopla. Leão, resignado, mandou três
legados, com cartas às autoridades, sendo a mais importante delas ao bispo Flaviano, a Epístola 28, ou
Epístola Dogmática a Flaviano, onde expunha a posição do bispo de Roma sobre as duas naturezas no
Verbo. Esta carta deveria ser lida no concílio. O desenrolar-se do concílio, no entanto, foi um desastre.
Manipulado por Eutiques e seus asseclas, usando de violência física, os opositores foram silenciados e,
os que outrora haviam sido acusados de heresia, foram reabilitados. No fim, Flaviano e Eusébio de
Dorileu foram depostos e mandados ao exílio. Os legados papais tiveram que fugir de Constantinopla
para não serem mortos9. Flaviano morreu pouco depois, em conseqüência dos ferimentos. O
monofisismo havia vencido. Quando Leão Magno soube do ocorrido, disse que o que acontecera não
fora um concílio, mas um “latrocínio”, o “latrocínio de Éfeso”. Este conciliábulo, de triste lembrança,
não consta no rol dos concílios ecumênicos.

4.1.2 O Concílio de Calcedônia: Pedro falou pela boca de Leão

Após estes tristes fatos, Leão iniciou uma célere troca de correspondência com as autoridades
eclesiásticas e imperiais, para resolver o impasse que se criara. Foram mandadas cartas a Teodósio II,

8
O erro de Nestório consistia em defender um Cristo “duplicado”, quase como se fossem duas pessoas, homem perfeito
sim, mas com uma natureza divina absorvida pela natureza humana. Eutiques defendia o oposto: em Cristo subsiste uma
única natureza, a divina, porque a humana foi absorvida pela divindade. Toda a dificuldade estava no modo de conceber
duas naturezas, a humana e a divina, na única Pessoa do Verbo Encarnado. O problema se acentuava pela diversidade no
uso e compreensão dos termos, como natureza, pessoa, hipóstasis, entre os bispos do Oriente e do Ocidente (grego e latim).
9
Eutiques, em todos estes eventos eclesiais, contava com o apoio das autoridades estatais, o que explica o seu sucesso em
iniciativas tão polêmicas e contrárias à ortodoxia.

4
imperador, a Pulquéria, sua irmã, a Atanásio, bispo de Tessalônica, e até a Flaviano, de quem Leão
ignorava a morte. A todos Leão exortava a manterem-se fiéis aos cânones de Nicéia, e de não se
afastarem dos ensinamentos dos Santos Padres. Leão pedia a realização de um concílio ecumênico no
Ocidente, para reparar a infâmia que tinha sido o “latrocínio de Éfeso”. Após longas discussões e
acordos, e após a morte do imperador Teodósio, substituído por Pulquéria, foi convocado o concílio
para a cidade de Calcedônia, no Oriente, no ano de 451.

A solene reunião foi aberta a 08 de outubro, com a presença de mais de 500 bispos, e encerrou-
se no dia 31 do mesmo mês. No decurso das discussões sobressaiu logo em importância e interesse a
Carta de Leão a Flaviano, que não pôde ser lida no “latrocínio de Éfeso”. Apresentada pelos três
legados de Leão e discutida pelos bispos, tornou-se a base e síntese da fórmula cristológica de
Calcedônia: a afirmação, na única pessoa de cristo, das duas naturezas, a humana e a divina, completas
e distintas, sem confusão e sem alteração. A heresia de Eutiques era assim combatida e refutada solene
e definitivamente, como Éfeso havia feito com a heresia de Nestório. O texto de Leão sintetizava o que
de melhor havia na reflexão cristológica naquele momento. “Pedro falou pela boca de Leão”, é a solene
afirmação dos padres conciliares, que resume a importância do papel desempenhado pelo escrito de
Leão no concílio. Entre outros assuntos debatidos, o mais polêmico foi o Cânon 28, que declarava que
Constantinopla ocupava o 2º. lugar depois de Roma. Ora, tal afirmação, aprovada no concílio, ia contra
o costume e a tradição, que desde as origens da igreja considerava os patriarcados de Alexandria e
Antioquia, respectivamente, os mais importantes, após a sede de Roma. Papa Leão se recusou a aprovar
esta decisão, e fez mais: instituiu uma delegação permanente em Constantinopla, colocada sob a
autoridade do bispo Juliano de Cos. Era, de um certo modo, a criação da primeira nunciatura romana.

Depois de Calcedônia os partidários de Eutiques continuaram causando tumultos,


principalmente em Alexandria. Deposição de bispos, violências e até assassinatos são prova das
paixões envolvendo a disputa sobre a natureza humana e divina de Jesus. Também nesta polêmica Leão
desempenhou um papel fundamental, através de uma intensa troca de correspondência com as
autoridades, eclesiásticas ou imperiais, para defender firmemente as decisões tomadas pelos bispos em
Calcedônia, e para estabelecer a paz. Várias destas cartas chegaram até nós, e constituem fonte
importante para conhecer, não só o pensamento e a importante contribuição de Leão, mas o processo de
desenvolvimento e esclarecimento de argumentos tão polêmicos. Em 453 ele envia uma carta aos
monges da Palestina, conclamando-os à obediência e à disciplina. Trata-se de uma carta dogmática,
onde, expondo aos monges as doutrinas de Nestório e Eutiques, o bispo apresenta uma verdadeira
síntese teológica. Em dezembro de 457 e março de 458, Leão escreve ao homônimo imperador Leão
III, em Constantinopla, alertando-o de que as decisões tomadas em Calcedônia não podem
absolutamente ser colocadas em questão ou discutidas novamente, ao mesmo tempo em que pede que
medidas severas sejam tomadas contra os hereges de algumas Igrejas do Oriente.

5. Vicissitudes políticas: Leão e a defesa de Roma

Leão viveu numa época extremamente conturbada politicamente. O imperador Teodósio II,
vivendo em Constantinopla, elevou ao trono seu sobrinho Valentiniano, de apenas 5 anos, e lhe confiou
o comando do Ocidente, com sede em Ravena. Na verdade quem reinava era a mãe do imperador, Gala
Placídia. Desde 429 os vândalos, guiados por Genserico, dominavam o norte da África. Em 430
assediaram Hipona, cidade de Santo Agostinho, que morreu alguns dias antes da invasão. As notícias
eram pavorosas: pilhagens, incêndios, tortura, morte. Genserico, após dominar o norte da África,
dirigiu-se para a Itália, estabelecendo-se na Sicília. Dali, pairava como uma constante ameaça, pronta a
golpear Roma a qualquer momento. No norte os vários povos bárbaros também avançavam, dominando
cada vez mais extensas regiões, outrora pertencentes ao império.
5
Além dos homens de Genserico, o grande perigo que aterrorizava os romanos, em 452, eram as
hordas bárbaras de Átila. O rei dos hunos, depois de invadir a Gália, dirigiu-se para o sul, onde destruiu
Aquiléia e outras cidades importantes. Os romanos sabiam que a Cidade Eterna era a meta. O que
fazer? Militarmente o imperador sabia que não teria nenhuma chance. A solução foi mandar uma
embaixada, para negociar com Átila. Foram enviados o prefeito da cidade de Roma, um cônsul e o
bispo Leão. Os historiadores são concordes em afirmar que Leão era o chefe desta missão diplomática.
Após um encontro com Átila em Mântua, este decidiu abandonar a Itália. O que aconteceu? O fato deu
origem a inúmeras suposições e lendas10. Na verdade o mais verossímil é que os embaixadores tenham
oferecido a Átila uma grande soma em dinheiro, para não invadir e saquear a cidade. Negociações à
parte, o fato é que o episódio serviu para aumentar o prestígio do bispo de Roma. Tal prestígio, no
entanto não foi suficiente para impedir o saque da mesma cidade três anos mais tarde, em 455, pelos
temidos vândalos de Genserico. O máximo que Leão conseguiu foi que algumas Igrejas mais
importantes, como São Pedro, São Paulo e o Latrão, fossem poupadas, e que se evitassem ao máximo
as torturas e assassinatos de inocentes. Por quatorze dias estes saquearam a cidade, queimando e
destruindo tudo. Quando deixaram Roma, levaram milhares de escravos, incluindo o botim mais
precioso, a imperatriz Eudóxia e suas filhas, Eudósia e Placídia11.

6. Conclusão: a herança de Leão

O epíteto “Magno”, concedido a Leão pela posteridade, dá uma idéia da importância da atuação
deste personagem para a história do papado. Diante do pulular das heresias, Leão soube defender,
esclarecer e impor a doutrina ortodoxa com segurança e clareza. Fez isso apelando não só ao princípio
da autoridade, mas através da convocação de sínodos, de uma rica e intensa troca de correspondência,
através do exercício da reflexão e da razão. O papel do bispo de Roma, sucessor de Pedro, com
autoridade não apenas sobre os fiéis, mas também sobre os outros bispos, encontra em Leão sua forma
mais perfeita. Com Leão, pela primeira vez num concílio ecumênico, o pensamento ocidental se impõe
de modo solene e autorizado. Diante do progressivo desmoronar-se do mundo antigo, que iria dar lugar
a uma nova civilização, culminando com a separação entre o Ocidente e o Oriente, Leão põe as bases
do papado sobre a figura de Pedro. Agindo com autoridade, mas também com competência e caridade,
Leão reforça os laços que unem as Igrejas à Sé de Roma. No momento em que o império agoniza,
quando sua sede definitivamente se transfere para o Oriente, quando os bárbaros finalmente atingirão
seu objetivo, colocando sobre o trono dos césares o primeiro imperador de origem bárbara (476), Leão
contribui para afirmar e fortalecer a única autoridade que permanecerá firme no Ocidente nos próximos
séculos: a autoridade do bispo de Roma.

Sugestão de leitura:

1. DROBNER, H. R., Manual de Patrologia, Vozes, Petrópolis 2003, pp. 450-478.

10
As lendas começaram a surgir logo após o episódio, e reforçavam o protagonismo do bispo de Roma. Numa delas Átila
teria visto, ao lado de Leão, um velho empunhando uma espada, aconselhando o chefe bárbaro a obedecer ao bispo. A
figura, conclui-se, era Pedro. O pintor Rafael traduziu esta lenda numa famosa pintura, que se encontra no Vaticano, mas
fez uma releitura e alguns acréscimos: ao lado de Leão estão Pedro e Paulo, brandindo ameaçadoramente a espada,
enquanto Átila foge aterrorizado.
11
Eudóxia e Placídia vão voltar a Constantinopla em 462, após serem libertadas, mediante pagamento de resgate. Eudócia,
filha mais velha de Eudóxia, acabou casando-se com o filho de Genserico, Hulnerico, e continuou vivendo na África. Tais
alianças de sangue, entre as antigas e as novas estirpes, são sinais de que um novo mundo está surgindo.

6
2. SPANNEUT, M., Os padres da Igreja. Vol. II: séculos IV-VIII, Loyola, SP 2002, pp. 253-
282.
3. BOGAZ, ANTÔNIO S., COUTO, MÁRCIO A., HANSEN, JOÃO H., Patrística, caminhos da
tradição cristã, PAULUS, SP 2008, pp. 177-180; 198-199.
4. ALTANER, B., STUIBER, A., Patrologia, Paulinas, SP 1972, pp. 357-361.

Frei Sandro Roberto da Costa, ofm


Professor de História da Igreja e de Patrística
Instituto Teológico Franciscano
Petrópolis – RJ

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