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FORMAÇÃO DO TERCEIRO ESTADO

AS COMUNAS

COLETÂNEA DE TEXTOS
FRANÇOIS GUIZOT
AUGUSTIN THIERRY
PROSPER DE BARANTE
Editora da Universidade Estadual de Maringá

Reitor: Prof. Dr. Gilberto Cezar Pavanelli


Vice-Reitor: Prof. Dr. Angelo Priori
Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação: Profa Dra Alice Eiko Murakami
Diretor de Pesquisa e Pós-Graduação: Profa Dra Maria Helena Ambrosio Dias
Coordenador Editorial: Profa Dra Ruth Izumi Setoguti

CONSELHO EDITORIAL
Prof. Dr. Antonio Belincanta, Prof. Dr. Benedito Prado Dias Filho, Prof. Dr. Carlos Alberto Scapim,
Prof. Dr. Edson Carlos Romualdo, Prof. Dr. Eduardo Augusto Tomanik, Prof. Dr. Edvard Elias de Souza
Filho, Profa. Dra. Hilka Pelizza Vier Machado, Prof. Dr. José Carlos de Sousa, Prof. Dr. Luiz Antonio de
Souza, Prof. Dr. Lupércio Antonio Pereira, Prof. Dr. Neio Lucio Peres Gualda. Secretária: Maria José
de Melo Vandresen.
TEREZINHA OLIVEIRA
CLAUDINEI MAGNO MAGRE MENDES
(ORGANIZADORES)

FORMAÇÃO DO TERCEIRO ESTADO


AS COMUNAS

COLETÂNEA DE TEXTOS
FRANÇOIS GUIZOT
AUGUSTIN THIERRY
PROSPER DE BARANTE

Maringá
2005
Divisão de Editoração Marcos Kazuyoshi Sassaka
Marcos Cipriano da Silva
Paulo Bento da Silva
Cristina Akemi Kamikoga
Luciano Wilian da Silva
Solange Marly Oshima
Revisão de Língua Portuguesa Manoel Messias Alves da Silva
Capa – arte final Luciano Wilian da Silva
Marcos Kazuyoshi Sassaka
Projeto gráfico e Editoração Marcos Cipriano da Silva
Normalização Biblioteca Central - UEM
Fonte Goudy Old Style
Tiragem 500 exemplares

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Biblioteca Central – UEM, Maringá

F723 Formação do Terceiro Estado as comunas: coletânea de textos de François Guizot,


Augustin Thierry, Prosper de Barante / Terezinha Oliveira, Claudinei Magno Magre
Mendes (organizadores) -- Maringá : Eduem, 2005.
130p.

Livro indexado em Geodados. http://www.geodados.uem.br


ISBN 85-85545-98-4

1. Terceiro Estado – França – Idade Média. 2. Sociedade burguesa – Nascimento –


França – Idade Média. 3. Historiografia romântica francesa – Idade Média. 4. História e
educação. 5. Guizot, François – Historiador francês – Textos. 6. Thierry, Augustin –
Historiador francês – Textos. 7. Barante, Prosper de - Historiador francês – Textos.
I. Oliveira, Terezinha. II. Mendes, Claudinei Magno Magre. III. Título.

CDD 21. ed. 944.06


Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250

Copyright 2005 para os autores


Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer
processo mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a
autorização, por escrito, dos autores.
Todos os direitos reservados desta edição 2005 para Eduem.

Endereço para correspondência:


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Av. Colombo, 5790 - Campus Universitário, 87020-900 - Maringá-Paraná-Brasil
Fone: (0XX44) 3011-4103/3261-4394 Fax: (0XX44) 3261-4109
Site: http://www.eduem.uem.br - E-mail: eduem@uem.br
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................... 7

COLETÂNEA

FRANÇOIS GUIZOT ............................................................................ 27

AUGUSTIN THIERRY .......................................................................... 51

PROSPER DE BARANTE ...................................................................... 105

ANEXOS

ANEXO I
TEXTO FEIRA, DE TURGOT ................................................................... 109

ANEXO II
DOCUMENTOS ................................................................................... 117

ANEXO III
GLOSSÁRIO........................................................................................ 125

REFERÊNCIAS .................................................................................... 131


INTRODUÇÃO

O objetivo principal desta coletânea é dispor, a estudiosos e es-


tudantes de História, textos fundamentais acerca da formação do
Terceiro Estado escritos por importantes historiadores franceses da
primeira metade do século XIX, a saber, François Pierre Guillaume
Guizot (Nîmes, 1787–Calvados, 1874), Augustin Thierry (Blois,
1795–Paris, 1856) e Prosper Brugière, barão de Barante (Riom,
1782–Puy-de-Dôme, 1866). A escolha desses nomes deve-se ao fato
de serem autores que viveram em um dos momentos mais propícios
para o estudo da História. Thierry notou isso observando que a
experiência política, em uma época repleta de grandes acontecimen-
tos, permitia apreender a vida palpitando nos acontecimentos do
passado.
Com efeito, com a queda de Napoleão abre-se um período de
intensa luta política na qual alinham-se, em campos opostos, em
seus distintos matizes, os partidários do Antigo Regime e aqueles
vinculados à nova ordem social criada pela Revolução Francesa.
Dessa luta emerge um debate que, como não poderia deixar de ser,
possui como foco principal essa revolução. É em torno de sua inter-
pretação que os diversos agrupamentos políticos se expressam. A
História passa a estar, então, no centro do debate intelectual e
político. Ela se converte, assim, para todos os grupos políticos, em
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um campo de batalha, prolongando-se pelas décadas seguintes. Não


é casual, pois, que em 1872 Coulanges, avaliando a ciência histórica
da França nos últimos cinqüenta anos, tenha afirmado que a Histó-
ria se tornara “um tipo de guerra civil permanente” (COULANGES
apud CAIRE-JABINET, 2003, p. 90).
Guizot, Thierry e Barante encontram-se entre os principais auto-
res identificados com os ideais e valores da sociedade criada pela
Revolução. Para defendê-los, retomam o estudo da História, recuando
até a Idade Média para nela buscarem os elementos que expliquem e
legitimem a Revolução Francesa. Ao fazerem isso, valorizam-na,
encarando-a de uma perspectiva positiva, distinta da dos iluministas,
por exemplo, que a consideravam uma época de obscurantismo.
Estes autores consideram o regime feudal a forma pela qual os
homens reorganizaram suas vidas após um período de caos e
confusão, advindo da queda do Império Romano e do qual surgi-
ram as novas forças sociais que produziram as mudanças que
culminaram na Revolução Francesa. Dentre essas forças, a mais
importante é o Terceiro Estado, que tem na revolução comunal,
ou seja, na insurreição das comunas contra o poder feudal a sua
certidão de nascimento. Decorre daí o enorme interesse destes
autores por esse tema.
Assim, foi a luta política da primeira metade do século XIX que
proporcionou o surgimento de uma importante escola historiográfica.
Vejamos, pois, um pouco dessa época para compreendermos essa
corrente que fez da História uma vigorosa arma política.
Dentre os autores que melhor estudaram o período compre-
endido entre os anos de 1814 e 1830 na França, está Charles
Pouthas. Para este autor, o conflito que desde 1814 jogava os
partidários do Antigo Regime e os defensores da França revolu-
cionária uns contra os outros tinha adquirido, em 1820, uma
atualidade apaixonada. Naquela época, a sociedade dividia-se em
quatro grandes correntes políticas, cada uma apresentando uma
tese a respeito da História. Verifiquemos cada uma delas. Em
primeiro lugar, a tese da nobreza:

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Há, de início, a tese da nobreza do antigo regime, ávida para


reclamar, ainda que fosse contra a realeza, a posse do poder. O conde
de Boulainvilliers formulou-a em 1827, dividindo a nação em duas
raças; os agricultores gauleses, vencidos pela conquista germânica e
desprovidos de todos os direitos, poderes e honras; os nobres
descendentes dos Francos, vencedores e dominadores, mas em cujas
fileiras reinava a igualdade, armados de liberdades políticas, tendo o
direito de deliberar em assembléias nacionais, de votar as leis, com
uma organização social ao mesmo tempo liberal e aristocrática,
arruinada pouco a pouco pelo movimento de libertação dos servos e
pela usurpação progressiva dos cargos pelos lavradores [...].
Montlosier deu a esta tese, em 1814, um brilho novo; ele queria ver a
verdadeira nação francesa na nobreza.

Em seguida, a tese da monarquia:

O abade Dubos, filho da burguesia vinculada à almotaceria de Ile


de-France, ergueu, diante dela [da teoria de Boulainvilliers], a
teoria do poder monárquico, tomando o partido de negar que
existira uma conquista germânica e, por isso mesmo, a
preeminência de raça e de direitos derivada de uma vitória: ele
localizava a barbárie e as trevas da feudalidade nos séculos IX e X.
Ele via, ao contrário, sobreviver à queda do Império, a
administração e a ordem civil romanas e, na realeza francesa,
reconhecia o império com todos os seus direitos, transferido, por
delegação formal, dos imperadores aos reis francos.

Como terceira corrente, a tese revolucionária:

Os filósofos do século XVIII, em luta contra o poder real, não


podiam admitir uma história tão favorável ao absolutismo e
encarniçaram-se contra Dubos e contra a sobrevivência da civilização
romana; ao contrário, fizeram com que o abade de Mably tivesse um
grande sucesso. Este, admitindo de Boulainvilliers o que arruinava
Dubos e de Dubos o que demolia Boulainvilliers, ressuscitava as
antigas idéias da Franco-Gália de Hotman, que via na organização
primitiva da França um governo misto, ao mesmo tempo
monárquico, aristocrático e democrático, no qual um Carlos Magno
filósofo e amigo do povo introduzia o elemento representativo nos
Campos de Maio, primeiro órgão de soberania popular; [...]. Mably

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permanecia, ainda à época de Guizot, o profeta da escola filosófica e


liberal: os Ensaios sobre a história da França protegeram-se atrás da
autoridade de um grande nome.

Por fim, a escola dos que defendiam os direitos históricos do


indivíduo:

Enfim, os juristas tinham fundado, por seu turno, os direitos históricos


do indivíduo; Montesquieu, criticando, ao mesmo tempo, com alguma
complacência, Boulainvilliers, e Dubos, com veemência, deixava ao
indivíduo a faculdade de determinar sua situação jurídica e política pela
opção voluntária entre a lei romana e as leis francas.

Pouthas observa:

Desse modo, no grande debate que ainda prosseguia em 1820,


sob a aparência de uma discussão histórica, dissimulavam-se
alguns grandes sistemas políticos: poder monárquico, privilégios
aristocráticos, soberania popular, direitos do indivíduo. A origem
da nobreza, as condições e conseqüências do estabelecimento dos
Francos na Gália, a querela dos romanistas e dos germanistas, o
papel das assembléias nacionais germânicas e a organização da
feudalidade continuaram a ser, sob seu aspecto de questões
puramente eruditas, o campo onde pelejavam os partidos
políticos.

E Pouthas finaliza: “A história era um arsenal de argumentos


para a polêmica” (1923, p. 301-303).
Apesar deste autor ser importante para nos mostrar o estado em
que se encontrava a luta política na época da Restauração e, por
conseguinte, a própria ciência histórica, é preciso ressaltar que a sua
descrição peca por não destacar o grupo ao qual pertencia Guizot, os
doutrinários. Observemos mais de perto quem eram os doutrinários,
grupo político comandado por Royer-Collard, e a maneira como se
posicionaram diante da Revolução e, portanto, diante da História
enquanto conhecimento.
Ainda que Marx tenha concebido os doutrinários de uma pers-
pectiva crítica e sob certo aspecto negativa, não deixa de ser relevan-

10
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te considerarmos a sua opinião a respeito desse partido. Em passa-


gem de sua obra sobre o golpe de Luís Bonaparte, Marx assinala que
os doutrinários estavam entre os verdadeiros intérpretes da socieda-
de burguesa:

A sociedade burguesa, com seu sóbrio realismo, havia gerado seus


verdadeiros intérpretes e porta-vozes nos Says, Cousins, Royer-
Collards, Benjamin Constants e Guizots; seus verdadeiros chefes
militares sentavam-se atrás das mesas de trabalho (MARX; ENGELS,
1976, v. 3, p. 204).

Partido de centro, como Spuller define os doutrinários, estes


defendiam a aplicação das reformas contidas na Carta de 1814.
Para melhor compreendê-los, exporemos as idéias de seu chefe
Royer-Collard, cuja posição em relação à França era clara. Em
primeiro lugar, em hipótese alguma pretendia o retorno do
Antigo Regime, fosse este dissimulado ou declarado. A seu ver, a
Revolução Francesa tinha sido mais social do que política. Preo-
cupava-se, por isso, em instituir um sistema no qual a nova socie-
dade, criada pela Revolução, com seus direitos e interesses, pu-
desse conciliar-se com o que deveria ser mantido do Antigo
Regime, particularmente com a realeza. Em seu entender, essa
conciliação era uma garantia de paz e autoridade.
Essa transição entre o antigo mundo e o novo somente poderia
ocorrer no terreno das instituições políticas, de antemão perfeita-
mente determinadas e delimitadas. Essa era a substância do pensa-
mento político de Royer-Collard.
A conciliação, no entanto, era bastante delicada aos seus olhos.
Existia o temor de que, para se opor às tendências democráticas, a
França viesse a cair no extremo oposto. Receava que a nova socieda-
de criada pela Revolução, por temer novas perturbações, se concili-
asse com o que restara da antiga, particularmente com a monarquia
absolutista. Por isso, para o chefe dos doutrinários o governo da
Restauração não poderia permitir o restabelecimento do antigo
regime.

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É no interior desse esforço para dar estabilidade à sociedade


produzida pela Revolução que podemos entender o modo como os
autores aqui selecionados conceituavam a História. Aliás, digamos
de passagem que Guizot possuía muita clareza a respeito das grandes
questões de sua época e de que maneira o estudo da História pode-
ria resolvê-las. Teve, pois, o mérito de colocar a História em um
patamar superior, transformando-a em uma arma decisiva na luta
contra as forças sociais que ameaçavam a França.
É o próprio Guizot quem, em um dos prefácios da História da
Civilização na Europa, mostra-nos as condições políticas por ocasião
dos seus primeiros trabalhos históricos e o sentido que eles possuí-
am no interior desse quadro. De acordo com ele, nas primeiras
décadas do século XIX basicamente dois partidos radicais se enfren-
tavam, cada um pretendendo conduzir a França a uma determinada
direção. Um deles pretendia dar continuidade às transformações
iniciadas com a Revolução; o outro queria o retorno ao passado, ao
Antigo Regime.1
Ambos os partidos arriscavam a estabilidade da França. Com o
primeiro, corria-se o risco de levar as transformações a um ponto em
que qualquer forma de desenvolvimento social ficaria impossibilita-
da de se efetivar. Do ponto de vista de Guizot, cada grupo que não
concretizasse suas aspirações buscaria alcançar seus objetivos por
meio de uma radicalização política ainda maior. Viver-se-ia, então,
em uma eterna revolução, sem estabilidade nem segurança, enten-
dendo-se estas como exigências indispensáveis para os homens

1
Também no Prefácio da nona edição dos Essais sur l’histoire de France, de 1857,
Guizot refere-se às condições políticas vigentes no início da década de 20 e que
deram origem aos seus primeiros escritos históricos: “Quando, em 1823, publi-
quei esses Essais sur l’histoire de France, eu estudava e começava a escrever, ao
mesmo tempo, a Histoire de la Révolution d’Angleterre; e nos anos imediatamente
precedentes, de 1820 a 1822, associei-me, através de vários escritos, à luta políti-
ca travada, nessa época, entre os dois grandes partidos que representavam, um, a
antiga França, o outro, a nova França, como 1789 a fizera” (GUIZOT, 1857, p.
1- 2).

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I N T R O D U Ç Ã O

poderem retomar a produção e o comércio. Com o segundo, corria-


se o risco de, reconstituindo-se as classes e as instituições condena-
das pela História, comprometer o ulterior desenvolvimento da
França. O passado tornar-se-ia um peso morto que dificultaria a
caminhada dos franceses.
É diante dessa situação, extremamente delicada – por intermé-
dio da qual, paradoxalmente, tanto os partidários da Revolução
como os que a ela se opunham colocavam em risco não apenas as
conquistas alcançadas, mas a própria civilização – que as obras de
Guizot e, por conseguinte, sua posição política adquirem sentido.
Partidário das conquistas da Revolução, ele não se alinhava ao lado
dos que consideravam que a mesma deveria prolongar-se indefini-
damente. Contra estes, afirmou que se deveria pôr um fim à Revo-
lução. Entretanto, isso não o levou a se posicionar ao lado dos que
queriam destruir as conquistas revolucionárias, mas procurou garan-
ti-las, empenhando-se para que a sociedade produzida pela Revolu-
ção alcançasse estabilidade. Opôs-se, deste modo, tanto às preten-
sões dos que desejavam prosseguir com a Revolução como às
daqueles que almejavam um retorno, ao menos parcial, da antiga
sociedade.
Os autores que, como Guizot, defendiam a posição intermediá-
ria, possuem determinadas características que os distinguem dos
demais historiadores, principalmente dos que se identificavam com
o Antigo Regime.
Em primeiro lugar, os identificados com a Revolução mostra-
vam que a mesma era o resultado de um longo processo de trans-
formação que propiciava à burguesia a legitimidade do poder.
Vemos, assim, que explicar a Revolução como o coroamento de um
longo processo não constituía uma simples opção metodológica,
isenta de pressupostos e conseqüências. Significava, antes de tudo,
defender as conquistas revolucionárias, a nascente ordem social. De
um modo geral, Guizot, Thierry e Barante foram buscar no século
XII, naquilo que denominaram revolução comunal, na constituição
das cidades em comunas, o início do processo que culminou com a
vitória, primeiro, do Terceiro Estado, e, em seguida, da própria

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F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

burguesia. Não é casual, pois, que para Thierry a revolução comunal,


junto à formação da nação francesa, constituam o maior movimento
social que aconteceu desde o estabelecimento do Cristianismo até a
Revolução Francesa (THIERRY, 1842, p. 1).
No prefácio da obra Dix ans d’études historiques, escrito em 1834,
Thierry narra a origem de seus interesses por aquilo que denominou
revolução comunal. Pela importância do relato, torna-se relevante
transcrevermos toda a passagem:

Nessa mesma época [1827], comecei a me preocupar com outra


idéia histórica, cuja influência não foi menor nos meus trabalhos
posteriores, é a revolução comunal. Pela simples leitura dos
escritores modernos da história da França, pareceu-me que a
libertação (affranchissement) das comunas era uma outra coisa,
completamente distinta daquela que narravam; que foi uma
verdadeira revolução social, prelúdio de todas aquelas que elevaram
gradualmente a condição do Terceiro Estado, que era nela que se
encontrava o berço da nossa moderna liberdade, que também os
plebeus (roture), tanto quanto a nobreza da França, possuíam uma
história e ancestrais. Escrevi em 1817, em um artigo sobre a
correspondência de Benjamin Franklin: “Fala-se sempre para
imitarmos nossos antepassados; seguimos, então, esse conselho?
Nossos antepassados eram esses artesãos que fundaram as comunas,
que idearam a liberdade moderna. Nossos antepassados não
estavam distantes dos costumes atuais da América; eles tinham
simplicidade, bom senso, coragem civil. Deve-se a esses homens
enérgicos o fato de toda a Europa ter-se tornado livre, há seis
séculos; se o que desejavam não se concretizou, foi culpa da época e
não culpa deles: a barbárie era muito forte, por toda a parte tinha
raízes. No tempo em que a barbárie atribuía para si, com direito
exclusivo, a liberdade, a riqueza, a honra, poderia erguer facilmente
uma outra liberdade, outras riquezas, outra honra, fora do seu
domínio e contra ela? Um grito foi lançado pela civilização
impaciente com seus entraves e subitamente a Europa ficou
salpicada de nações novas, estranhas a tudo o que existia ao seu
redor, uma buscando a outra para se unirem. Mas elas não
puderam construir um caminho através dessas massas de homens
selvagens e guerreiros que as cercavam por todos os lados. Elas
permaneceram isoladas; elas pereceram. Todavia, se nossos

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I N T R O D U Ç Ã O

antepassados não tiveram sorte, a coragem e a virtude nunca lhes


faltaram [...] (CENSEUR EUROPÉEN, [19--], t. 4, p. 105).

Para colorir esse quadro da idade heróica das liberdades


comunais, minha imaginação aplicava às cidades da França o que
havia lido sobre as repúblicas italianas da Idade Média: parecia-me
que procurando bem na nossa história, examinando as crônicas e
os arquivos, encontraríamos alguma coisa análoga ao que os
historiadores do século XIII narravam sobre as comunas de Milão,
de Pisa ou de Florença. Assim surgiram minhas primeiras queixas
de que faltava à França uma história verdadeiramente, isto é,
completamente nacional e a primeira veleidade de me dedicar aos
estudos com a ajuda dos quais poderia encontrar alguns traços
perdidos desta história. Em 1818, escrevi o que se segue:
Quem de nós que não ouviu falar de uma classe de homens que,
nos tempos em que os bárbaros inundavam a Europa, conservava,
para a humanidade, as artes 2 e os costumes da indústria?
Ultrajados, despojados todos os dias, por seus vencedores e seus
senhores, eles subsistiam penosamente, dando aos seus trabalhos
apenas a consciência de fazer o bem, e de conservar a civilização
para seus filhos e para o mundo. Esses salvadores de nossas artes
eram os nossos antepassados: nós somos filhos desses servos,
desses tributários, desses burgueses, que conquistadores
atormentavam à vontade; nós lhes devemos tudo o que somos. A
seus nomes vinculam-se lembranças de virtude e de glória; mas
essas lembranças brilham pouco, porque a história que deveria
transmiti-las era assalariada dos inimigos dos nossos antepassados.
Nós não encontraríamos nela o devotamento frenético do
guerreiro selvagem que se imola por seu chefe e busca a morte
dando-a [aos inimigos], mas a paixão pela independência pessoal,
a coragem do homem civilizado que se defende e nunca ataca, a
perseverança no bem que triunfa sobre tudo. Eis nosso
patrimônio; eis o que nossos filhos deveriam ler sob nossa
orientação. Mas, escravos libertos de ontem, nossa memória
somente recordou, durante muito tempo, as famílias e as ações de

2
Artes, aqui, no sentido mais amplo e arcaico, ligado ao artesanato (Nota dos
tradutores).

15
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

nossos senhores; não faz trinta anos que nós descobrimos que
nossos antepassados eram a nação. Nós temos admirado tudo,
aprendido tudo, menos o que eles foram e o que fizeram. Nós
somos patriotas e deixamos no esquecimento aqueles que,
durante quatorze séculos, cultivaram o solo da pátria,
freqüentemente devastado por outras mãos: os gauleses eram
antes a França 3 (THIERRY, 1856, p. 3-5).

O processo de libertação das cidades francesas que se conver-


tiam em comunas constitui, de fato, uma imensa revolução,
percebida, inclusive, pelos contemporâneos. Com efeito, eles
comentaram esse acontecimento de maneira a mostrar a grande
modificação que se processava na sociedade. É verdade que
muitos consideraram esse processo de forma conservadora, con-
denando os novos tempos. Mas, ainda assim, ou talvez por isso
mesmo, captaram e souberam retratar essas transformações. Em
sua coletânea de textos e documentos da Idade Média, Calmette
cita um trecho da autobiografia do beneditino francês Guibert de
Nogent (1053-1124), De Vita sua, no qual esse religioso critica o
clero e os grandes por favorecerem, mediante pagamento, a
subtração do povo da servidão, por meio da constituição das
comunas:

O clero, com os arcediagos, e os grandes, despojados pelo povo do


direito de cobrar impostos, lhes dão, através de embaixadores, a
opção e a faculdade, mediante um preço proporcional, de fazer uma
comuna: comuna, nome novo, nome detestável, se é que isso existe,
pois todos os sujeitos ao imposto se libertam da servidão que eles
devem por costume aos seus senhores, pagando uma vez por ano; se
eles pecam contra o direito, eles se desoneram através de uma
penalidade legal; e as outras taxas devidas, que se costumam cobrar
dos servos, lhes são dispensadas (GUIBERT DE NOGENT apud
CALMETTE, 1953, p. 81).

3
Censeur Européen, t. 7, p. 250.

16
I N T R O D U Ç Ã O

A segunda característica dos autores que adotaram a posição in-


termediária entre o radicalismo revolucionário e a reação é explicar
o processo que originou a Revolução como marcado pela luta entre
o Terceiro Estado, de um lado, e a nobreza e o clero, de outro. A
luta de classes foi posta, assim, no centro da explicação. Com efeito,
foram esses historiadores que formularam a teoria, de maneira
explícita, de que a História tinha por fio condutor a luta de classes.
Aliás, Marx recomendou, certa vez, a leitura de autores como Guizot
e Thierry para se conhecer a história da luta de classes no passado.
Em famosa carta de 5 de março de 1852, dirigida a Weydemeyer,
Marx escreve que se deveria observar

aos senhores democratas em geral que eles fariam melhor se primeiro


se familiarizassem com a literatura burguesa antes de se permitir
ladrar contra aquilo que é seu oposto. Estes senhores deveriam
estudar, por exemplo, as obras de Thierry, Guizot, John Wade etc., e
4
adquirir algumas luzes sobre ‘a história das classes’ no passado.

4
Essa carta é por demais sugestiva. O trecho completo dela é o seguinte: “Enfim,
se eu fosse você, eu observaria aos senhores democratas em geral que eles fariam
melhor se primeiro se familiarizassem com a literatura burguesa antes de se
permitir ladrar contra aquilo que é seu oposto. Estes senhores deveriam estudar,
por exemplo, as obras de Thierry, Guizot, John Wade, etc., e adquirir algumas
luzes sobre a “história das classes” no passado. Eles deveriam se familiarizar com
os rudimentos da economia política, antes de pretender se entregar à crítica da
economia política. [...].
Agora, no que concerne a mim, não me cabe nem o mérito de ter desco-
berto a existência das classes na sociedade moderna, nem a luta que elas
nela travam. Historiadores burgueses expuseram bem antes de mim a evo-
lução histórica desta luta de classes e economistas burgueses tinham des-
crito a anatomia econômica delas. O que eu trouxe de novo, foi: primei-
ro, demonstrar que a existência das classes está ligada apenas às fases
históricas determinadas do desenvolvimento da produção; segundo, que a luta
de classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado; terceiro, que
esta ditadura não representa senão uma transição para a abolição de todas
as classes e para uma sociedade sem classes” (MARX; ENGELS, 1964, p.58-
59).

17
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

O autor de O Capital prossegue destacando que não cabia a ele


nem o mérito de ter descoberto a existência das classes na sociedade
moderna, nem a luta que elas nela se travava. Segundo ele, historia-
dores burgueses – referindo-se a Guizot e Thierry, entre outros – já
haviam exposto, antes dele, a evolução histórica por intermédio da
luta de classes (MARX; ENGELS, 1964, p. 58-59). Conforme Ro-
sanvallon (1985b, p. 35), Marx teria lido as histórias das civilizações
na Europa e na França de Guizot, entre os anos de 1843 e 1845.
Esta coletânea tem, inclusive, o propósito de disponibilizar aos
estudiosos da Historia textos de autores pouco conhecidos no Brasil.
Pesa sobre esses autores a agravante de serem historiadores burgue-
ses, identificados com o ideário liberal do século XIX. Guizot encon-
tra-se, além disso, em uma posição extremamente incômoda, visto
que ficou mais conhecido pelas duas referências feitas a ele por
Marx, ambas negativas. A primeira referência é o fato de ter sido o
ministro que assinou, em 1845, o decreto de expulsão de Marx da
França sob a alegação de este ser um revolucionário perigoso. A
segunda referência são as palavras iniciais com que Marx e Engels
iniciam o texto O Manifesto do Partido Comunista, sem dúvida alguma
uma das obras mais lida ao longo da história. No início do texto,
Marx e Engels (1976) criaram uma imagem que ficou consagrada, a
de um espectro que rondava a Europa, o comunismo, pondo em
polvorosa as chamadas classes dominantes. E prosseguem: “Todas as
potências da velha Europa unem-se numa Santa Aliança para conju-
rá-lo: o papa e o czar, Metternich e Guizot, os radicais da França e os
policiais da Alemanha” (1976, v. 3, p. 21). O nome de Guizot ficou,
dessa maneira, ligado para sempre ao que havia de mais reacionário
na Europa, perdendo-se de vista o grande historiador.
Como bem destaca Lefebvre, Guizot foi o maior de todos os his-
toriadores liberais da primeira metade do século XIX e é natural que
as luzes incidam sobre ele. Todavia, outros autores merecem ênfase,
pois se trata de uma geração repleta de talentos. Barante, por exem-
plo, teve uma intensa vida política que fez ressoar em seus escritos
históricos, políticos e de crítica literária. O grande momento de sua
vida política principiou ao ser nomeado par da França, em 1819. A

18
I N T R O D U Ç Ã O

partir desse momento adota, em um crescendo, uma conduta de


oposição ao governo da Restauração à medida que este caminhava
em direção aos ultras. Desde 1820 e até a Revolução de 1830, faz
parte da oposição liberal e dinástica na Câmara dos Pares. Durante a
década de 20, também participa da luta política por meio de diversas
brochuras, dentre as quais ressaltamos a obra histórica Des communes
et de l’Aristocratie (1821), da qual retiramos a passagem que compõe a
antologia.
Como destacamos acima, também Thierry participou ativa e
conscientemente das lutas políticas de seu tempo por intermédio da
História. Inicialmente ligado ao conde de Saint-Simon, de quem foi
secretário e se considerava aluno e filho adotivo, Thierry se desen-
tende com o mestre em 1817. Entra como colaborador do Courier
européen e, para combater as teorias dos nobres e mostrar a inutili-
dade de suas pretensões, estuda com bastante vigor a história da
França. Entre 1817 e 1820, publica uma série de artigos que, poste-
riormente, foram reunidos nos seus Dix ans d’études historiques. Entre
julho de 1820 e janeiro de 1821, publica, no Courier français, as
Lettres sur l’histoire de France, o que lhe a vale a demissão. A partir de
então, Thierry se consagra exclusivamente aos estudos históricos.
Além de outros trabalhos, publica, em 1825, a Conquête de
l’Angleterre par les Normands.
Além da época de Guizot, Thierry e Barante, a História teve um
outro grande momento no século XIX. Esse momento é representa-
do por Marx e Tocqueville, dois autores que souberam compreender
a História com profundidade. Não por acaso, ambos partiram das
formulações de Guizot.
Uma comparação entre a história da humanidade como apa-
rece no Manifesto do Partido Comunista e como ela surge nas
obras de Guizot mostra-nos que a estrutura da primeira obra
está claramente baseada nas obras deste último. Da mesma
forma que para Guizot, para Marx e Angels (1976) a burguesia
moderna é o produto de um longo desenvolvimento, de uma

19
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

série de revoluções no modo de produção e de troca. Dos servos


da Idade Média teriam nascido os burgueses 5 livres das primeiras
cidades. Dessa população municipal teriam se originado, por sua
vez, os primeiros elementos da burguesia (MARX; ENGELS,
1976, v. 3, p. 22).
Também uma análise da obra O antigo regime e a revolução, de
Tocqueville, mostra-nos a imensa dívida deste autor para com Gui-
zot, ainda que ele tenha citado o texto Grandeza e decadência dos
romanos, de Montesquieu, como sua grande inspiração e não a obra
de Guizot. Tocqueville foi um dos assistentes, verdade que de forma
irregular, devido a problemas de saúde, do curso de Guizot sobre a
história da civilização francesa ministrado desde finais de 1828 até
maio de 1830. Em carta a Beaumont, de 18 de março de 1829,
Tocqueville comenta uma das lições do curso que lhe pareceu
excelente (TOCQUEVILLE, 1967, v. 1, p. 76-77).
Tocqueville (1967) menciona Guizot uma segunda vez, em outra
carta dirigida a Beaumont, datada de 30 de agosto de 1829, quando
lhe faz um elogio ainda maior:

Fiz poucas coisas, intelectualmente falando, desde que nos


separamos. Entretanto, este ano [1829], entre outras coisas,
aprendemos a aproveitar os pequenos momentos e eu utilizei
utilmente esta ciência para ler, em primeiro lugar, a maior parte de
Guizot. É necessário que leiamos isso juntos este inverno, meu caro
amigo; é prodigioso como decomposição de idéias e propriedade das
palavras, prodigioso, certamente. Essa leitura me deu enormes clarões
sobre o século IV, que me eram totalmente desconhecido e que,
entretanto, possui todo o interesse que pode ter a desagregação de
toda a grande máquina romana (1967, p. 80-81).

André Jardin, biógrafo de Tocqueville, assinala a dívida deste


autor para com Guizot, afirmando ter sido este um mestre daquele.
Observa que, de tudo que o autor de A Democracia na América

5
Aqui burguês significa apenas o habitante do burgo e não uma classe social.

20
I N T R O D U Ç Ã O

aprendeu com Guizot (luta de classes, declínio da feudalidade,


julgamento das Luzes), o mais importante foi a história global da
civilização, isto é, uma visão de conjunto da história, como podemos
depreender das notas que tomara no referido curso (JARDIN, 1984,
p. 81).
Acreditamos, desse modo, que ao publicarmos textos de Gui-
zot, Thierry e Barante, tendo por tema a formação do Terceiro
Estado, possibilitamos aos estudiosos da História um material de
grande importância para o conhecimento da produção de um dos
momentos mais brilhantes da ciência da História. Esse valor ad-
quire uma dimensão ainda maior, verdadeiramente política, se
levarmos em conta que, nos dias que correm, o que caracteriza a
produção historiográfica é o esmigalhamento da História e a
afirmação da impossibilidade de conhecermos a história em sua
totalidade. Guizot, Thierry e Barante estão aí justamente para
provar o contrário.
Sobre a organização desta coletânea e a escolha dos textos, te-
mos uma última menção a fazer. Trata-se da inserção de um verbete
de Turgot publicado na Encyclopédie. Inserimos o texto deste autor,
pertencente à segunda metade do século XVIII, por considerarmos
seu verbete Feira um escrito valioso não apenas para o estudo das
origens do Terceiro Estado, mas também pela maneira como conce-
be a instituição Feira. Ele a considera de uma perspectiva histórica,
ou seja, concebe-a como uma instituição que nasceu para atender a
certas exigências postas aos homens pela história, mas que, devido às
transformações ocorridas na sociedade, para as quais ela própria
contribuiu, perde sua eficácia, tornando-se antes um estorvo do que
um benefício. Abre-se, por conseguinte, a época da sua crítica e
destruição. Por isso, estamos convencidos de que se trata de um
texto de grande relevância metodológica para os estudiosos da
História.
Finalmente, uma última palavra sobre a tradução. Traduzir
qualquer texto constitui um desafio imenso, principalmente
quando ele está prenhe de história que o povo da língua para a
qual foi vertido não vivenciou. Dessa maneira, faltam a esta

21
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

língua os termos e conceitos que expressam a história vivida.


Assim, nem sempre as palavras da língua portuguesa conseguem
captar todo o significado das da língua original ou, ainda, não
possuem idênticos significados. Basta pensarmos na palavra jurés,
que significa os membros de uma cidade que juraram defender-se
mutuamente, formando uma commune. Para nós, jurados, possui
outro significado e não poderia ser diferente. Afinal, além de as
communes serem um fenômeno medieval, época que nós, no
Brasil, não conhecemos, elas são, sob certos aspectos, uma carac-
terística da história francesa.
Para contornar tal dificuldade, valemo-nos de dois expedientes
que, se não resolvem o problema, ao menos o atenuam. Primeiro,
traduzimos os termos, mantendo, quando julgamos necessário, o
termo original entre colchetes, a fim de indicar que o utilizado em
língua portuguesa não é suficiente para abarcar todo o significado
original. Segundo, elaboramos um vocabulário histórico, anexado ao
final do livro, para ajudar o leitor na compreensão de alguns concei-
tos utilizados pelos autores traduzidos.

REFERÊNCIAS
CAIRE-JABINET, M.-P. Introdução à historiografia. Bauru, SP: Edusc, 2003.
CALMETTE, J. Textes et documents d’Histoire. Neuvième édition. Paris:
Presses Universitaires de France, 1953. v. 2. Moyen Âge.
GUIZOT, F. Essais sur l’histoire de France. Neuvième édition. Paris: Didier,
1857.
JARDIN, A. Alexis de Tocqueville: 1805-1859. Paris: Hachette, 1984.
MARX, K.; ENGELS, F. Correspondence Marx-Engels. Lettres sur “Le Capi-
tal”. Paris: Éditions Sociales, 1964.
________.Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega, 1976. 3 v.
POUTHAS, Charles H. Guizot pendant la Réstauration. Préparation de
l’homme d’État (1814-1830). Paris: Plon, 1923.

22
I N T R O D U Ç Ã O

RÉIZOV, B. L’Historiographie romantique française. 1815-1830. Moscou:


Editiones en Langues Etrangeres, 194?
ROSANVALLON, P. Le moment Guizot. Paris: Gallimard, 1985.
________. Présentation. In: GUIZOT, François. Histoire de la civilisation en
Europe. Paris: Hachette, 1985b.
SPULLER, E. Royer-Collard. Paris: Hachette, 1985.
THIERRY, A. Dix ans d’études historiques. Paris: Furne, 1856.
_______. Lettres sur l’histoire de France. Septiéme édition. Paris: Just Tessier,
1842.
TOCQUEVILLE, A. de. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1967. t. 8.
Correspondence d’Alexis de Tocqueville et de Gustave de Beaumont. 3 v.

23
Coletânea
FRANÇOIS GUIZOT
(1787-1874)

GUIZOT, François. Sétima lição. In:____. Histoire génerale


de la civilisation en Europe, depuis la chute de l'Empire Ro-
main jusqu'à la Révolution Française. Bruxelles: Langlet,
1838. 1

Objeto da lição. - Quadro comparativo da situação das comunas nos


séculos XII e XVIII. - Dupla questão. – 1a: Da libertação das comunas. -
Situação das cidades do século V ao X. - Sua decadência e seu renasci-

1
Esta obra é resultado de cursos ministrados por Guizot na Sorbone. Seu curso,
suspenso em 1822, por motivos políticos, foi retomado em abril de 1828, quando
Guizot expõe a História da civilização na Europa, uma longa introdução à sua Histó-
ria da civilização na França, que foi o tema do seu curso, entre dezembro de 1828 e
maio de 1830. O curso sobre a civilização na Europa foi publicado, pela primeira
vez, em forma de brochura, em 1828. Segundo Réizov, os cursos de Guizot eram
editados, em forma de pequenas brochuras, alguns dias após as lições terem sido
lidas. (RÉIZOV, [19--], p. 279-281) Ver também, JARDIN (1984, p. 81).
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

mento. - Insurreição comunal. - Cartas. - Efeitos sociais e morais da


libertação das comunas. – 2a: Do governo interior das comunas. - Assem-
bléia do povo. - Magistrados. - Alta e baixa burguesia. - Diversidade das
condições das comunas nos diversos países da Europa.

Senhores,
Acompanhamos, até o século XII, as histórias dos dois primeiros
grandes elementos da civilização moderna, o regime feudal e a Igreja.
É do terceiro destes elementos fundamentais, refiro-me às comunas,
que vamos nos ocupar hoje, igualmente até o século XII, restringin-
do-nos aos mesmos limites em que nos mantivemos nos outros dois.
A respeito das comunas encontramo-nos em uma situação dis-
tinta daquela em que estávamos diante da Igreja ou do regime
feudal. Do século V ao XII, o regime feudal e a Igreja, ainda que
tenham tomado mais tarde novos desenvolvimentos, mostram-se a
nós quase completos, em um estado definitivo; vimo-los nascer,
crescer, atingir a maturidade. Não ocorre o mesmo com as comunas.
É somente no fim da época que estamos tratando, nos séculos XI e
XII, que elas ocupam um lugar na história. Não que antes não
tivessem uma história que mereça ser estudada; não que não haja,
bem antes desta época, traços de sua existência; mas é somente no
século XI que elas aparecem claramente no grande palco do mundo
e como um elemento importante da civilização moderna. Deste
modo, no que diz respeito ao regime feudal e à Igreja, do século V
ao XII, vimos as conseqüências se desenvolverem, nascerem as
causas: todas as vezes que, pela indução, deduzimos dos princípios
determinados resultados, eles puderam ser comprovados pelo exame
dos próprios fatos. Para as comunas esta facilidade nos falta; assisti-
mos ao seu nascimento; hoje somente posso falar a vocês das causas,
das origens. Tudo o que disser sobre as conseqüências da existência
das comunas, sobre a sua influência no curso da civilização européia,
eu o direi de alguma maneira pela via da predição. Não poderia
invocar o testemunho de fatos contemporâneos e conhecidos.
Somente mais tarde, do século XII ao XV, é que veremos as comu-

28
C O L E T Â N E A - F R A N Ç O I S G U I Z O T

nas se desenvolverem, a instituição produzir seus frutos e a história


provar nossas afirmações. Insisto, Senhores, sobre essa diferença de
situação para eu mesmo lhes prevenir contra o que poderá haver de
incompleto e de prematuro no quadro que vou lhes oferecer.
Suponhamos, Senhores, que, em 1789, no momento em que
começava a terrível regeneração da França, um burguês do século
XII tivesse repentinamente aparecido em vosso meio; que tivessem
dado a ele para ler, pois é necessário que saiba ler, um desses panfle-
tos que tão poderosamente agitavam os espíritos, por exemplo, o de
Sieyès: Que é o Terceiro Estado? Os olhos dele detêm-se na frase que é
a essência do panfleto: “O Terceiro Estado é a nação francesa,
menos a nobreza e o clero”. Pergunto-lhes, Senhores, que impressão
produzirá esta frase no espírito desse homem? Acreditam que a
compreenderia? Não, não compreenderia estas palavras, a nação
francesa, pois elas não representariam para ele nenhum dos fatos que
lhe são conhecidos, nenhum dos fatos de seu tempo. E se compre-
endesse a frase, se nela visse claramente esta soberania atribuída ao
Terceiro Estado sobre a sociedade inteira, seguramente isto lhe
pareceria uma proposição quase louca e ímpia, de tal modo estaria
em contradição com o conjunto de suas idéias e de seus sentimen-
tos.
Agora, Senhores, peçam a este surpreso burguês para segui-
los. Conduzam-no a qualquer uma das comunas da França, à
Reims, à Beauvais, à Laon, à Noyon; uma surpresa muito distin-
ta se apoderaria dele: entra na cidade; não vê nem torres, nem
muralhas, nem milícia burguesa, nenhum meio de defesa; tudo
está aberto, tudo está entregue ao primeiro que chega, ao pri-
meiro ocupante. O burguês inquieta-se com a segurança desta
comuna, julga-a bem fraca, bem mal defendida. Penetra no seu
interior, indaga acerca do que ocorre, da maneira como é go-
vernada, da sorte dos seus habitantes. Respondem-lhe que fora
dos muros há um poder que lhes cobra impostos como bem lhe
agrada, sem o consentimento deles; que convoca a milícia deles
e a envia à guerra, também sem sua autorização. Falam-lhe dos

29
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

magistrados, do maire 2, dos almotacés, e ele ouve que não são os


burgueses que os nomeiam. É informado que os negócios da
comuna não se decidem na própria comuna; um representante
do rei, um intendente, é quem os administra e de longe. Mais
ainda, informam-lhe que os habitantes não têm nenhum direito
de se reunir, de deliberar em comum sobre o que lhes diz respeito,
que o sino da igreja não os chama de maneira nenhuma para a praça
pública. O burguês do século XII permanece confuso. Ainda agora
estava estupefato, espantado diante da grandeza, da importância que a
nação comunal, que o Terceiro Estado se atribuía; e eis que a encon-
tra, no seio de seus próprios lares, em um estado de servidão, de
fraqueza, de nulidade bem pior do que tudo o que conhecia de mais
lastimável. Ele passa de um espetáculo ao espetáculo contrário, da
visão de uma burguesia soberana à visão de uma burguesia impotente:
como quer que ele compreenda, que concilie, que seu espírito não
esteja transtornado?
Senhores, retornemos ao nosso giro pelo século XII, nós,
burgueses do XIX; assistiremos, em sentido contrário, a um duplo
espetáculo absolutamente semelhante. Todas as vezes que nos
voltamos para os negócios gerais, para o Estado, para o governo
do país, para o conjunto da sociedade, não encontramos de
nenhum modo burgueses, não ouvimos falar deles; eles não são
nada, não têm nenhuma importância; e não somente não têm no
Estado nenhuma importância como, se quiséssemos saber o que
eles próprios pensam, o que dizem, qual é, a seus olhos, a sua
situação nas suas relações com o governo da França em geral,
veremos que a linguagem deles é de uma timidez, de uma humil-
dade extraordinária. Seus antigos amos, os senhores, de quem se
emanciparam, os tratam, pelo menos em palavras, com uma
altivez que nos confunde; eles não se surpreendem com isso, não
se irritam de maneira alguma.

2
Presidente das câmaras municipais, exceto em Paris.

30
C O L E T Â N E A - F R A N Ç O I S G U I Z O T

Entremos na própria comuna, vejamos o que se passa nela; a


cena muda; estamos em uma espécie de praça forte defendida pelos
burgueses armados; estes burgueses estabelecem os impostos, elegem
seus magistrados, julgam, punem, reúnem-se para deliberar sobre
seus negócios; todos vêm a estas assembléias; fazem a guerra, por
conta própria, contra o senhor deles; têm uma milícia. Em uma
palavra, governam-se; são soberanos.
Ocorre o mesmo contraste que, na França do século XVIII, tan-
to tinha admirado o burguês do século XII; somente que os papéis
estão trocados. Aqui, a nação burguesa é tudo, a comuna, nada; lá, a
nação burguesa é nada, a comuna, tudo.
Certamente, Senhores, foi necessário que entre o século XII e o
XVIII tivessem se passado muitas coisas, muitos acontecimentos
extraordinários, que tivessem se realizado muitas revoluções para
provocar, na existência de uma classe social, uma transformação tão
imensa. Apesar desta transformação, ninguém duvida que o Tercei-
ro Estado de 1789 não fosse, politicamente falando, o descendente e
o herdeiro dos comuns do século XII. Esta nação francesa, tão altiva,
tão ambiciosa, que eleva tão alto suas pretensões, que proclama sua
soberania com tanto estrépito, que pretende não somente se regene-
rar, governar-se, mas governar e regenerar o mundo, descende
incontestavelmente destas comunas que se revoltaram no século XII,
humildemente, ainda que com muita coragem, com o único fim de
escapar, em algumas partes do território, da obscura tirania de
alguns senhores.
Com certeza, Senhores, não é nas condições das comunas do sé-
culo XII que encontraremos a explicação para semelhante metamor-
fose; ela se realiza, tem suas causas nos acontecimentos que se suce-
deram do século XII ao XVIII; é neste período que veremos as
comunas avançando. Entretanto, Senhores, a origem do Terceiro
Estado desempenhou um grande papel na história delas. Ainda que
não possamos neste momento conhecer todo o segredo do destino
delas, na origem das mesmas encontramos pelo menos o germe; o
que ele foi primeiramente nós reencontramos naquilo que ele se

31
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

tornou, muito mais mesmo do que fariam presumir as aparências.


Um quadro mesmo incompleto da situação das comunas no século
XII deixará vocês, acredito, convencidos.
Para conhecer bem esta situação é necessário considerar as co-
munas a partir de dois pontos de vista principais. Há nelas duas
grandes questões para resolver: a primeira, a da própria emancipação
das comunas, a questão de saber como a revolução se operou, por
que causas, que mudança trouxe para a situação dos burgueses, o
que provocou na sociedade em geral, no meio das outras classes, no
Estado. A segunda questão é relativa ao próprio governo das comu-
nas, à situação interior das cidades emancipadas, às relações dos
burgueses entre si, aos princípios, às formas, aos costumes que
dominavam nas cidades.
É destas duas fontes, de um lado da mudança provocada na si-
tuação social dos burgueses, e de outro do seu governo interior, da
sua situação comunal, que adveio toda a sua influência sobre a
civilização moderna. Não existe fato que esta influência produziu
que não deva ser relacionado a uma ou a outra destas duas causas.
Quando, então, tivermos compreendido bem a causa, quando
compreendermos a emancipação das comunas, de uma parte, e o
governo das comunas, de outra, estaremos de posse, por assim dizer,
das duas chaves da sua história.
Enfim, direi uma palavra acerca da diversidade da situação das
comunas na Europa. Os fatos que vou lhes expor não se aplicam
indiferentemente a todas as comunas do século XII, às comunas da
Itália, da Espanha, da Inglaterra, da França. Alguns convêm a todas;
mas as diferenças são grandes e importantes. Indicá-las-ei de passa-
gem; voltaremos a encontrá-las mais tarde no curso da civilização, e
as estudaremos então mais de perto.
Para explicar a emancipação das comunas é necessário recordar-se
qual era a situação das cidades do século V ao XI, desde a queda do
Império Romano até o momento em que a revolução comunal
começou. Aqui, repito, as diversidades são muito grandes; a situação
das cidades variou prodigiosamente nos diferentes países da Europa.

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C O L E T Â N E A - F R A N Ç O I S G U I Z O T

Entretanto, há fatos gerais que existem em quase todas as cidades e


eu procurarei me limitar a eles. Quando eu me afastar deles, o que
disser de mais particular se aplicará às comunas da França e, sobre-
tudo, às comunas do norte da França, acima do Reno e do Loire:
são elas que serão destacadas no quadro que tentarei traçar.
Após a queda do Império Romano, Senhores, do século V ao
X, a situação das cidades não era nem de servidão nem de liberda-
de. Corre-se com o emprego das palavras o mesmo risco de erro
que vos fazia notar outro dia nas pinturas dos homens e dos acon-
tecimentos. Quando uma sociedade permanece muito tempo e sua
língua também, as palavras tomam um sentido completo, determi-
nado, preciso, um sentido legal, oficial, de algum modo. O tempo
faz entrar no sentido de cada termo uma infinidade de idéias que
despertam desde que se o pronuncia e que, não trazendo todas a
mesma data, não se aplicam todas ao mesmo tempo. As palavras
servidão e liberdade, por exemplo, provocam hoje em nosso
espírito idéias infinitamente mais precisas, mais completas do que
os fatos correspondentes dos séculos VIII, IX e X. Se dissermos que
as cidades encontravam-se, no século VIII, em um estado de liber-
dade, estaremos dizendo algo excessivo; vinculamos hoje à palavra
liberdade um sentido que não representa de modo algum o que
ocorria no século VIII. Cairemos no mesmo erro se dissermos que
as cidades estavam na servidão, pois esta palavra implica em algu-
ma coisa inteiramente distinta do que os fatos municipais, então,
implicavam. Repito: as cidades não estavam, então, em um estado
nem de servidão, nem de liberdade; elas padeciam dos males
decorrentes da sua fraqueza; eram presas das violências e das
depredações contínuas dos fortes. Entretanto, apesar de tão gran-
des desordens, apesar do seu empobrecimento, do seu despovoa-
mento, as cidades tinham conservado e conservavam ainda uma
certa importância. Em geral, havia um clérigo, um bispo que
exercia um grande poder, que tinha influência sobre a população,
servia de ligação entre ela e os vencedores, mantendo, deste modo,
a cidade em uma espécie de independência e a protegia com o

33
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

escudo da religião. Restavam, além do mais, nas cidades, significa-


tivos resquícios das instituições romanas. Freqüentemente, depa-
ramo-nos, ainda nesta época - e os fatos que o atestam foram reco-
lhidos por Savigny, Hullmann, Lézardière etc. -, com a convocação
do senado, da cúria. Estes não eram, então, mais do que assem-
bléias públicas e magistraturas municipais. Os negócios de ordem
civil, os testamentos, as doações, uma infinidade de atos da vida
civil realizavam-se na cúria, por seus magistrados, como se isso se
passasse na municipalidade romana. O que ainda restavam da
atividade e da liberdade urbana foi desaparecendo, é verdade, cada
vez mais. A barbárie, a desordem e a desgraça sempre crescentes
aceleraram o despovoamento. O estabelecimento dos senhores nos
campos e a preponderância nascente da vida agrícola tornaram-se,
para as cidades, uma nova causa de decadência. Os próprios bis-
pos, quando entraram no quadro feudal, deram à sua existência
municipal menos importância. Enfim, quando a feudalidade
triunfou completamente, as cidades, sem cair na servidão dos
colonos, encontravam-se todas sob o guante de um senhor, encra-
vadas em algum feudo, e perderam ainda a este respeito alguma
coisa da independência que lhes restara, mesmo nos tempos mais
bárbaros, nos primeiros séculos da invasão. De maneira que, do
século V até o momento da organização completa da feudalidade, a
situação das cidades piorava cada vez mais.
No momento em que a feudalidade já estava bem estabelecida,
quando cada homem tomou seu lugar, fixando-se na terra, quando a
vida errante cessou, ao final de um certo tempo, as cidades recome-
çaram a adquirir alguma importância, desenvolvendo-se nelas,
novamente, alguma atividade. Como vocês sabem, dá-se com a
atividade humana algo semelhante ao que ocorre com a fecundidade
da terra: cessada a desordem, tudo volta a germinar e a florir. Basta
o menor clarão de ordem e paz e o homem retoma a esperança, e
com a esperança o trabalho. É isso que ocorreu nas cidades; desde
que o regime feudal se assentara um pouco, surgiram, entre os
possuidores de feudos, novas necessidades, um certo gosto pelo

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C O L E T Â N E A - F R A N Ç O I S G U I Z O T

progresso, pelo melhoramento. Para satisfazê-las, um pouco de


comércio e de indústria reapareceu nas cidades localizadas nos
domínios desses senhores; a riqueza, a população, nelas reaparecem.
Dentre as circunstâncias que contribuíram para isso, há uma, na
minha opinião, muito pouco notada, o direito de asilo das igrejas.
Antes que as comunas se constituíssem, antes que, por sua força,
suas muralhas, elas pudessem oferecer um asilo à população assolada
dos campos, quando somente havia segurança na igreja, isto bastava
para atrair para as cidades muitos infelizes, muitos fugitivos. Eles
vinham refugiar-se ou na própria igreja ou em torno dela; e não
eram somente homens da classe inferior, servos, colonos, que busca-
vam um pouco de segurança, mas, freqüentemente, homens consi-
deráveis, proscritos ricos. As crônicas da época estão cheias de tais
exemplos. Vêem-se homens, até então poderosos, que perseguidos
por um vizinho mais poderoso, ou pelo próprio rei, abandonavam
seus domínios, levando consigo tudo o que podiam levar, e se
encerravam em uma cidade, e colocavam-se sob a proteção de uma
igreja; eles tornavam-se burgueses. Os refugiados desta espécie não
estiveram alheios, creio, ao progresso das cidades; eles introduziram
nelas alguma riqueza e alguns elementos de uma população superior
à massa de seus habitantes. Quem não sabe que, quando um grupo
algo considerável se reúne em algum lugar, os homens afluem para
lá, seja porque eles encontram maior segurança, seja em decorrência
desta sociabilidade que não os abandona nunca?
Pelo concurso de todas estas causas, desde que o regime feudal
sofreu certa regularização, as cidades recuperaram alguma força.
Entretanto, a segurança não voltou a elas na mesma proporção. A
vida errante havia cessado, é verdade; mas a vida errante era, para os
vencedores, para os novos proprietários do solo, um grande meio de
satisfazer suas paixões. Quando tinham necessidade de pilhar,
faziam uma incursão, iam longe, procurar outra riqueza, outro
domínio. Quando cada um estava quase estabelecido, quando era
necessário renunciar à vagabundagem conquistadora, não cessaram
a avidez, as necessidades grosseiras e a violência dos desejos. O
domínio dos vencedores recaiu sobre as pessoas que estavam próxi-

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F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

mas, à mão, por assim dizer, dos poderosos do mundo, sobre as


cidades. Em lugar de ir pilhar ao longe, pilhava-se perto. As extor-
sões dos senhores sobre os burgueses redobraram a partir do século
X. Todas as vezes que o proprietário do domínio em que uma cidade
se encontrava encravada tinha algum acesso de avidez para satisfazer,
era sobre os burgueses que exercia sua violência. É sobretudo nesta
época que se manifestaram os lamentos da burguesia contra a falta
absoluta de segurança do comércio. Os mercadores, ao retornar de
viagem, não podiam voltar em paz para a sua cidade; as rotas, os
caminhos estavam sempre assediados pelo senhor e seus homens.
No momento em que a indústria recomeçava era precisamente
aquele em que mais faltava segurança. Nada irrita mais o homem do
que ser deste modo perturbado em seu trabalho e despojado dos
frutos que espera. Ofende-se e se aborrece muito mais com isto do
que quando padece uma existência de longa data imutável e monó-
tona, quando lhe roubam aquilo que não é o resultado de sua
própria atividade e que, portanto, não desperta nele todas as alegrias
da esperança. Há, no movimento progressivo que conduz um ho-
mem ou uma população para uma riqueza nova, um princípio de
resistência contra a iniqüidade e a violência muito mais enérgico do
que em qualquer outra situação.
Eis, então, Senhores, como estavam as cidades no curso do século
X; elas tinham mais força, mais importância, mais riquezas, mais
interesses para defender. Era-lhes ao mesmo tempo mais necessário
do que nunca defender essas coisas, pois estes interesses, esta força,
estas riquezas, tornaram-se um objeto de cobiça dos senhores. O
perigo e o mal cresciam ao mesmo tempo em que ofereciam os
meios para combatê-los. Além do mais, o regime feudal dava a todos
os envolvidos um permanente exemplo de resistência. De maneira
nenhuma permitia que se pensasse num governo organizado, impo-
nente, capaz de tudo regular, de tudo subjugar apenas com a sua
intervenção. Ao contrário, era o contínuo espetáculo da vontade
individual recusando submeter-se. Esta era a situação da maior parte
dos possuidores de feudos diante de seus suseranos, dos pequenos
senhores para com os grandes; de modo que, no momento em que

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C O L E T Â N E A - F R A N Ç O I S G U I Z O T

as cidades estavam oprimidas, atormentadas, no momento em que


tinham novos e maiores interesses para sustentar, ao mesmo tempo
tinham diante dos olhos uma lição contínua de insurreição. O
regime feudal prestou este serviço à humanidade ao mostrar, sem
cessar, aos homens, a vontade individual desenvolvendo-se com
toda a sua energia. A lição prosperou; apesar da sua fraqueza,
apesar da prodigiosa desigualdade de condição que havia entre
elas e seus senhores, as cidades insurgiram-se em todas as partes.
É difícil assinalar uma data precisa para o acontecimento. Diz-se
em geral que a libertação das comunas começou no século XI; mas
em todos os grandes acontecimentos, quantos esforços ignorados e
infelizes existiram anteriores àquele que alcançou êxito! Em todas as
coisas, para cumprir seus desígnios, a Providência prodigaliza a
coragem, as virtudes, os sacrifícios, o homem, enfim, e é somente
após um número desconhecido de trabalhos ignorados ou perdidos
aparentemente, depois que um grande número de nobres corações
sucumbe ao desânimo, convencidos de que a sua causa está perdida,
é somente então que a causa triunfa. Sem dúvida, aconteceu deste
modo com as comunas. Ninguém duvida que nos séculos VIII, IX e
X aconteceram muitas tentativas de resistência, de impulsos para a
libertação, que não somente não alcançaram êxito, mas cuja memó-
ria permaneceu sem glória como sem sucesso. Seguramente, entre-
tanto, estas tentativas influíram nos acontecimentos posteriores; elas
reanimaram, mantiveram o espírito de liberdade; prepararam a
grande insurreição do século XI.
Chamo de insurreição, Senhores, e o faço de propósito. A liber-
tação das comunas no século XI foi fruto de uma verdadeira insur-
reição, de uma verdadeira guerra, guerra declarada pela população
das cidades aos seus senhores. O primeiro fato que encontramos
sempre em tais histórias é o recrutamento dos burgueses que se
armaram de tudo aquilo que se encontrava à mão; a expulsão dos
representantes do senhor que vinham exercer alguma extorsão; uma
empresa contra o castelo; todas elas características de uma guerra. Se
a insurreição malogra, o que faz então o vencedor? Neste caso,

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F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

ordena a destruição das fortificações erguidas pelos burgueses, não


somente em torno de sua cidade, mas em torno de cada casa. Vê-se
que, no momento da confederação, após ter prometido agir em
comum, após ter jurado junto à comuna, o primeiro ato de cada
burguês foi se colocar em casa para ali resistir. Comunas cujo nome
é hoje inteiramente obscuro (por exemplo, a pequena comuna de
Vézelai, no Nivernais) sustentaram contra seu senhor uma luta
muito longa e enérgica. A vitória coube ao abade de Vézelai; imedia-
tamente ele ordenou expressamente a demolição das fortificações
das casas dos burgueses. Foram conservados os nomes de muitos
daqueles cujas casas fortificadas foram deste modo imediatamente
destruídas.
Entremos no interior dessas habitações de nossos antepassados;
estudemos o modo de construção e o gênero de vida que revelam;
tudo tem o caráter de guerra.
Eis qual era a construção de uma casa de burguês do século XII,
tanto quanto hoje podemos inteirar-nos disso: em geral, três andares,
uma só peça em cada andar; o térreo servia de sala onde a família fazia
suas refeições. O fato mais notável desta construção é que o primeiro
andar era muito elevado, como forma de segurança. Nesse andar
havia um cômodo no qual o burguês, o senhor da casa, vivia com sua
mulher. A casa era quase sempre flanqueada por uma torre em cada
ângulo, em geral quadrada, ainda um sintoma da guerra, um meio de
defesa. No segundo andar, um cômodo cujo uso era incerto, mas que
servia provavelmente para as crianças e o resto da família. Em cima,
freqüentemente, uma pequena plataforma, destinada evidentemente
para servir de observatório. Toda a construção da casa lembra a
guerra. É o caráter evidente, a verdadeira ilustração do movimento
que produziu a emancipação das comunas.
Quando uma guerra já dura um certo tempo, quaisquer que se-
jam as potências beligerantes, ela traz necessariamente a paz. Os
tratados de paz das comunas e de seus adversários foram as cartas.
As cartas comunais, Senhores, eram, essencialmente, tratados de paz
entre os burgueses e o seu senhor.

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C O L E T Â N E A - F R A N Ç O I S G U I Z O T

A insurreição foi geral. Quando digo geral isto não quer dizer
que houvesse um pacto, uma coalizão entre todos os burgueses de
um país; não houve nada disso. A situação das comunas era, por
toda parte, praticamente a mesma; encontravam-se quase todas
expostas ao mesmo perigo, atingidas pelo mesmo mal. Tendo adqui-
rido basicamente os mesmos meios de resistência e de defesa, elas
empregaram-nos praticamente na mesma época. Pode ser também
que o exemplo tivesse desempenhado neste caso algum papel, que o
sucesso de uma ou duas comunas tivesse sido contagioso. As cartas
parecem algumas vezes copiadas do mesmo modelo; a de Noyon, por
exemplo, serviu de modelo às de Beauvais, de Saint-Quentin etc.
Duvido, entretanto, que o exemplo tivesse funcionado tanto quanto
comumente se supõe. As comunicações eram difíceis, raras, os
boatos vagos e passageiros. Podemos, com razão, acreditar que a
insurreição foi antes o resultado de uma situação idêntica e de um
movimento espontâneo, geral. Quando digo geral quero dizer que
teve lugar em quase toda parte, pois este não foi de nenhum modo,
repito, um movimento unânime e concertado; tudo era particular,
local: cada comuna insurgia-se por sua conta contra seu senhor; tudo
se passava nas localidades.
As vicissitudes da luta foram grandes. Não só os seus resultados
se alternaram como, mesmo depois que a paz parecia já ter sido
acertada, mesmo depois que a carta já tinha sido jurada por uma e
outra parte, ela era violada e desrespeitada de todas as maneiras. Os
reis desempenharam um grande papel nas alternâncias desta luta.
Falarei disso com detalhes quando tratar da própria realeza. Ora a
influência da realeza no movimento de emancipação comunal é
excessivamente exaltada, ora é contestada, a meu ver, também de
forma exagerada. Limitar-me-ei hoje a afirmar que ela interveio
freqüentemente invocada ora pelas comunas, ora pelos senhores, e
que, muito freqüentemente, ela desempenhou papéis contrários;
que agiu ora segundo um princípio, ora segundo outro; que ela

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F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

alterou, sem cessar, intenções, desígnios, conduta; mas que, em


suma, agiu muito e com mais bons efeitos do que maus.
Apesar de todas estas vicissitudes, apesar da contínua violação
das cartas, no século XII, a emancipação das comunas foi consuma-
da. A Europa, e particularmente a França, que havia estado coberta
de insurreições durante um século, ficou coberta de cartas. Elas lhes
eram mais ou menos favoráveis. As comunas desfrutavam delas com
uma certa segurança, mas, enfim, desfrutavam. O fato prevalecia e o
direito era reconhecido.
Tentemos, agora, Senhores, conhecer os resultados imediatos
deste grande fato e que mudanças ele provocou na situação dos
burgueses no interior da sociedade.
Inicialmente, não mudou nada, no começo pelo menos, nas re-
lações dos burgueses com o governo geral do país, com o que cha-
mamos hoje o Estado. Eles não intervieram nele mais do que antes:
tudo permaneceu local, encerrado nos limites do feudo.
Uma circunstância, contudo, deve modificar esta afirmação: um
vínculo começou, então, a se estabelecer entre os burgueses e o rei.
Algumas vezes, os burgueses invocaram o apoio do rei contra seu
senhor ou a garantia do rei, quando a carta já estava prometida ou
jurada. Outras vezes, eram os senhores que invocavam a intermedia-
ção do rei entre eles e os burgueses. A pedido de uma ou de outra
das partes, por uma infinidade de causas diferentes, a realeza inter-
veio na querela, do que resultou uma relação freqüentemente estrei-
ta dos burgueses com o rei. Foi por meio desta relação que a burgue-
sia aproximou-se do centro do Estado, que começou a ter relações
com o governo geral.
Embora tudo permanecesse local, criava-se, entretanto, com a
emancipação, uma classe geral e nova. Nenhuma coalizão existira
entre os burgueses; não tinham, como classe, nenhuma existência
pública e comum. Mas o país estava coberto de homens comprometi-
dos com a mesma situação, tendo os mesmos interesses, os mesmos
costumes, entre os quais não podia deixar de nascer, pouco a pouco,
um certo vínculo, uma certa unidade que devia gerar a burguesia. A

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C O L E T Â N E A - F R A N Ç O I S G U I Z O T

formação de uma grande classe social, da burguesia, era o resultado


necessário da emancipação local dos burgueses.
Não se deve crer que esta classe fosse, então, aquilo que ela se
tornou depois. Não somente sua situação mudou muito como os
elementos que a compunham eram completamente outros. No
século XII, a burguesia se compunha apenas de mercadores, de
negociantes que faziam um pequeno comércio e de pequenos pro-
prietários, fossem de casas, ou de terras, que passaram a viver na
cidade. Três séculos depois, a burguesia compreenderia também os
advogados, os médicos, os letrados de todos os tipos, todos os magis-
trados locais. A burguesia formou-se sucessivamente e com elemen-
tos muito diversos. Na sua história não se tem levado em considera-
ção, em geral, nem a sucessão, nem a diversidade. Todas as vezes que
se falou de burguesia parece-se supô-la, em todas as épocas, compos-
ta pelos mesmos elementos. Suposição absurda. Talvez seja na
diversidade da sua composição nas diversas épocas da história que se
deva buscar o segredo do seu destino. Enquanto ela não contou nem
com magistrados nem com letrados, enquanto não foi aquilo no
qual ela se tornou no século XVI, não teve no Estado nem o mesmo
caráter, nem a mesma importância. É necessário acompanhar o
nascimento sucessivo no seu seio de novas profissões, de novas
situações morais, de um novo estado intelectual, para compreender as
vicissitudes de sua fortuna e de seu poder. No século XII, ela se
compunha, repito, somente de pequenos mercadores que se retira-
vam para as cidades após terem feito suas compras e suas vendas; e
de proprietários de casas e de pequenos domínios que nelas haviam
fixado sua residência. Eis a classe burguesa européia em seus primei-
ros elementos.
O terceiro grande resultado da emancipação das comunas
foi a luta de classes, luta que caracteriza o próprio fato e ocupa
a história moderna. A Europa moderna nasceu da luta das
diversas classes da sociedade. Em outros lugares, Senhores, e já
os alertei para este fato, esta luta conduziu a resultados bem
diferentes: na Ásia, por exemplo, uma classe triunfou comple-
tamente e o regime de castas sucedeu ao das classes, e a socieda-

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F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

de caiu na imobilidade. Nada semelhante, graças a Deus, acon-


teceu na Europa. Nenhuma das classes pôde vencer nem se
sujeitar às outras; a luta, ao invés de tornar-se um princípio de
imobilidade, foi a causa do progresso. As relações das diversas
classes entre si, a necessidade em que se encontravam de se
enfrentar e de ceder alternadamente; a diversidade de interes-
ses, de suas paixões, a necessidade de se vencer, sem poder
chegar até o fim, disto saiu talvez o mais enérgico, o mais fe-
cundo princípio de desenvolvimento da civilização européia. As
classes têm lutado constantemente; elas têm se detestado; uma
profunda diversidade de situações, de interesses e de costumes
produziu entre elas uma imensa hostilidade moral. E, apesar
disso, elas se aproximaram progressivamente, se assimilaram, se
combinaram. Cada país da Europa viu nascer e se desenvolver em
seu seio um certo espírito geral, uma certa comunidade de interes-
ses, de idéias, de sentimentos que venceu a diversidade e a guer-
ra. Na França, por exemplo, nos séculos XVII e XVIII, a separa-
ção social e moral das classes era ainda muito profunda.
Ninguém duvida, entretanto, que a fusão não tenha, desde então,
avançado muito; que não houvesse, desde então, uma verdadeira
nação francesa; que não era composta por tal classe exclusivamen-
te, mas que abarca todas e todas animadas por um certo sentimen-
to comum, uma existência social comum, fortemente marcadas,
enfim, pela nacionalidade.
Deste modo, no seio da diversidade, da inimizade, da guerra,
surgiu, na Europa moderna, a unidade nacional que se tornou, hoje
em dia, tão manifesta e que tende a se desenvolver, a aperfeiçoar-se
cada dia com um brilho ainda maior.
Estes são, Senhores, os grandes efeitos exteriores, aparentes, so-
ciais, da revolução que nos ocupa. Busquemos seus efeitos morais,
que mudanças se realizaram na alma dos próprios burgueses, em que
eles se transformaram e no que eles deveriam se transformar moral-
mente em sua nova situação.
Há um fato diante do qual é impossível não ficar impressionado
ao se estudar as relações da burguesia, não apenas no século XII,

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C O L E T Â N E A - F R A N Ç O I S G U I Z O T

mas também nos séculos posteriores, com o Estado, com a direção


do Estado, com os interesses gerais do país. Quero me referir à
prodigiosa timidez de espírito dos burgueses, de sua humildade, da
excessiva modéstia das suas pretensões quanto ao governo de seu
país, da facilidade com que se contentavam. Nada revela neles este
espírito verdadeiramente político que aspira influir, reformar,
governar; nada atesta a ousadia dos pensamentos, a grandeza da
ambição: dir-se-iam sábios e honestos libertos.
Existem, Senhores, apenas duas fontes das quais podem provir,
na esfera política, a grandeza da ambição e a firmeza do pensamento.
É necessário ter ou o sentimento de uma grande importância, de um
grande poder exercido sobre os destinos dos outros e em um vasto
horizonte, ou, então, é necessário trazer em si um sentimento enér-
gico de uma completa independência individual, a certeza de sua
própria liberdade, a consciência de um destino alheio a qualquer
outra vontade que a do próprio homem. A uma ou a outra destas
duas condições parecem estar vinculadas a ousadia do espírito, a
grandeza da ambição, a necessidade de agir em uma grande esfera e
de obter grandes resultados.
Os burgueses da Idade Média não se encontravam, é verdade,
em nenhuma destas duas condições. Vocês acabaram de ver que eles
eram importantes apenas para si mesmos; não exerciam, fora de sua
cidade e sobre o Estado em geral, nenhuma grande influência. Não
podiam ter nada além de um grande sentimento de independência
individual. Em vão tinham vencido, em vão tinham obtido uma
carta. O burguês de uma cidade, comparando-se ao pequeno senhor
que vivia perto dele, e que acabava de ser derrotado, nem por isso
sentia menos a sua extrema inferioridade. Não conhecia este orgu-
lhoso sentimento de independência que animava o proprietário do
feudo. Possuía sua parte de liberdade não dele apenas, mas de sua
associação com outros, socorro difícil e precário. Daí este caráter
reservado, a timidez de espírito, a modéstia temerosa, a humildade
na linguagem, mesmo em meio a uma conduta firme, tão profun-
damente impressa na vida não somente dos burgueses do século XII,
mas de seus mais longínquos descendentes. Eles não tinham, de

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F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

forma alguma, o gosto pelas grandes empresas; quando eram lança-


dos nelas, ficavam inquietos e embaraçados; a responsabilidade os
perturbava; sentiam-se fora de seu ambiente; e desejavam voltar para
ele. Do mesmo modo, no curso da história da Europa, da França
sobretudo, vê-se a burguesia estimada, considerada, tratada com
atenção, respeitada mesmo, mas raramente temida; raramente
produziu sobre seus adversários a impressão de uma grande e orgu-
lhosa força, de uma força verdadeiramente política. Não temos por
que nos surpreender com esta fraqueza da burguesia moderna; a
principal causa dela está na sua própria origem, nas circunstâncias
de sua emancipação que acabei de expor. A grandeza de ambição,
independentemente das condições sociais, a extensão e a firmeza
do pensamento político, a necessidade de intervir nos negócios do
país, a plena consciência, enfim, da grandeza do homem, enquanto
homem, e do poder que lhe pertence, se ele é capaz de exercê-lo,
são, Senhores, na Europa, sentimentos, disposições inteiramente
modernas, produtos da civilização moderna, fruto desta gloriosa e
poderosa generalidade que a caracteriza e que não poderia deixar
de assegurar ao público, no governo do país, uma influência, um
peso, que tem constantemente faltado e necessariamente tinha que
faltar aos burgueses, nossos antepassados.
Em troca, adquiriram e desenvolveram na luta pelos interesses
locais que tiveram que sustentar, neste estreito horizonte, um grau
de energia, de devotamento, de perseverança, de paciência que
nunca foi superado. A dificuldade da empresa era tal - eles tinham
que lutar contra tais perigos - que foi necessário desenvolver uma
coragem ímpar. Atualmente se tem uma falsa idéia da vida dos
burgueses dos séculos XII e XIII. Vocês leram em um romance de
Walter Scott, Quentin Duward, a descrição que ele faz do burgomes-
tre de Liège: faz dele um verdadeiro burguês de comédia, gordo, sem
energia, sem experiência, sem audácia, unicamente ocupado em
levar a vida comodamente. Os burgueses daquele tempo, Senhores,
portavam sempre a cota de malha sobre o peito, o pique à mão; sua
vida era quase tão agitada, tão guerreira, tão dura quanto a dos
senhores que combatiam. Nestes contínuos perigos, lutando contra

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C O L E T Â N E A - F R A N Ç O I S G U I Z O T

todas as dificuldades da vida prática, adquiriram este caráter viril,


esta energia obstinada que, em parte, perderam-se na mole atividade
dos tempos modernos.
Senhores, nenhuma destas conseqüências sociais ou morais da
emancipação das comunas tinha adquirido, no século XII, todo o
seu desenvolvimento; foi nos séculos seguintes que elas claramente
se revelaram, e que foi possível discerni-las. É certo, entretanto, que
o germe disto estava depositado na situação originária das comunas,
na maneira de sua emancipação e no lugar que os burgueses ocupa-
ram na sociedade. Estou, então, em condições de fazer pressentir
estas conseqüências a partir de agora. Penetremos agora no interior
da comuna do século XII; vejamos como era governada, que princí-
pios e que fatos eram dominantes nas relações dos burgueses entre
si.
Vocês se lembram, Senhores, que tratando do regime municipal
legado pelo Império Romano no mundo moderno tive a honra de
lhes dizer que o mundo romano tinha sido uma grande coalizão de
municipalidades, municipalidades outrora soberanas, como a pró-
pria Roma. Cada uma destas cidades teve, de início, a mesma exis-
tência que Roma; foi uma pequena república independente, fazendo
a paz, a guerra, governando-se segundo sua vontade. À medida que
elas se incorporaram ao mundo romano, os direitos que constituem
a soberania, o direito de paz e de guerra, o direito de legislação, o
direito de cobrar impostos etc., saíram de cada cidade e concentra-
ram-se em Roma. Restou somente uma municipalidade soberana,
Roma, reinando sobre um grande número de municipalidades que
tinham apenas uma existência civil. O regime municipal mudou de
caráter; e em lugar de ser um governo político, um regime de sobe-
rania, tornou-se um modo de administração. Esta é a grande revolu-
ção que se consumou sob o Império Romano. O regime municipal,
convertido em um modo de administração, foi reduzido ao governo
dos negócios locais, dos interesses civis da cidade. É nesta situação
que a queda do Império Romano deixou as cidades e suas institui-
ções. Em meio ao caos da barbárie, todas as idéias se baralharam,
assim como todos os fatos; todas as atribuições da soberania e da

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F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

administração se confundiram. Não se fez mais nenhuma dessas


distinções. Os negócios foram abandonados ao sabor da necessida-
de. Quando as cidades se insurgiram, para recuperar alguma segu-
rança, elas requereram a soberania. Isso não ocorreu, de modo
algum, para obedecer a uma teoria política, nem por um sentimento
de dignidade. Foi para obter meios para resistir aos senhores contra
os quais se insurgiram que se apropriaram do direito de recrutar
milícias, de cobrar impostos para fazer a guerra, de elas mesmas
nomearem seus chefes e seus magistrados, em uma palavra, de
governarem-se a si mesmas. O governo no interior das cidades era a
condição de defesa, o meio de segurança. A soberania tornou a
entrar, deste modo, no regime municipal do qual tinha saído pelas
conquistas de Roma. As comunas tornaram-se novamente sobera-
nas. Reside aí o caráter político de sua emancipação.
Isso não significa que esta soberania fosse completa. Permaneceu
sempre algum traço de uma soberania exterior; ora o senhor conser-
vou o direito de enviar um magistrado para a cidade, que escolhia
por assessores os magistrados municipais; ora ele tinha o direito de
receber certas rendas; em outras partes, um tributo lhe foi assegura-
do. Em outras ocasiões, a soberania exterior da comuna passou às
mãos do Rei.
As próprias comunas, por sua vez, tendo entrado nos quadros
da feudalidade, tiveram vassalos, tornaram-se suseranas e, por este
motivo, possuíram a parte da soberania que era inerente à suserania.
Fez-se uma confusão entre os direitos que elas possuíam por sua
posição feudal e aqueles que haviam conquistado por sua insurrei-
ção; e por ambas as razões a soberania lhes pertencia.
Tanto quanto se pode julgar por monumentos muito incomple-
tos, eis como se dava, pelo menos nos primeiros tempos, o governo
no interior de uma comuna. A totalidade dos habitantes formava a
assembléia da comuna; todo aquele que tinha jurado a comuna e
todo aquele que habitava no interior de seus muros eram obrigados
a prestar juramento, eram convocados ao som do sino para uma
assembléia geral. Nela se nomeavam os magistrados. O número e a
forma das magistraturas eram muito variáveis. Uma vez nomeados

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C O L E T Â N E A - F R A N Ç O I S G U I Z O T

os magistrados, a assembléia se dissolvia; e os magistrados governa-


vam quase sozinhos, bastante arbitrariamente, sem outra responsabi-
lidade do que as novas eleições, ou, então, os tumultos populares,
que eram a grande maneira de assumir a responsabilidade na época.
Vocês estão vendo que a organização interior das comunas redu-
zia-se a dois elementos muito simples, a assembléia geral dos habi-
tantes e um governo investido de um poder quase arbitrário, sob a
responsabilidade da insurreição, das sublevações. Era impossível,
sobretudo pelo estado dos costumes, estabelecer um governo regu-
lar, duradouro e que garantisse a ordem. A maior parte da popula-
ção das comunas encontrava-se em um tal grau de ignorância, de
brutalidade, de ferocidade que era muito difícil governar. Ao fim de
pouco tempo, houve, no interior da comuna, quase tão pouca
segurança quanto havia antes nas relações dos burgueses com o
senhor. Rapidamente formava-se nela uma burguesia superior.
Vocês compreenderão com facilidade as causas. O estado das idéias
e das relações sociais conduziu ao estabelecimento das profissões
industriais legalmente constituídas, as corporações. O regime de
privilégio introduziu-se no interior das comunas e, por conseguinte,
uma grande desigualdade. Logo houve, por toda parte, um certo
número de burgueses ricos e uma população operária mais ou
menos numerosa que, malgrado sua inferioridade, tinha grande
influência nos negócios da comuna. As comunas encontravam-se,
então, divididas em uma alta burguesia e uma população sujeita a
todos os erros, a todos os vícios de uma populaça. A burguesia
superior viu-se pressionada entre a prodigiosa dificuldade de gover-
nar esta população inferior e as tentativas contínuas do antigo
senhor da comuna que procurava retomar seu poder. Esta era a
situação, não apenas da França, mas da Europa, até o século XVI.
Esta talvez seja a causa principal que impediu as comunas de assu-
mir, em muitos dos países da Europa, especialmente na França, toda
a importância política que poderiam ter tido. Dois espíritos se
opunham permanentemente: na população inferior, um espírito
democrático cego, desenfreado e feroz; e, em conseqüência, na
população superior, um espírito de timidez, de transigência, uma

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F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

excessiva facilidade para conciliar, fosse com o rei, fosse com os


antigos senhores, a fim de estabelecer, no interior da comuna,
alguma ordem, alguma paz. Nem um nem outro destes espíritos foi
capaz de fazer as comunas ocuparem um grande lugar no Estado.
Estas conseqüências não tinham se manifestado inteiramente no
século XII. Entretanto, podia-se pressenti-las no próprio caráter da
insurreição, na maneira pela qual ela tinha se iniciado, nas condi-
ções dos diversos elementos da população comunal.
Estas são, Senhores, se não me engano, as principais características,
os resultados gerais da libertação das comunas e de seu governo interi-
or. Tive a honra de alertar-vos que esses fatos não foram tão uniformes,
tão universais quanto os expus. Há grandes diversidades na história das
comunas da Europa. Por exemplo, na Itália, no sul da França, o regime
municipal romano era dominante; a população não estava, muito longe
disso, tão dividida, tão desigual quanto no norte. Por isso a organização
comunal foi muito melhor, fosse por causa das tradições romanas, fosse
por causa do melhor estado da população. Ao norte, foi o regime feudal
que prevaleceu na existência comunal. Nesse lugar, tudo parecia subor-
dinado à luta contra os senhores. As comunas do sul mostravam-se
muito mais ocupadas com sua organização interior, com sua melhoria,
com seu progresso. Sente-se que elas se tornariam repúblicas indepen-
dentes. O destino das comunas do norte, na França, sobretudo, mani-
festou-se mais rude, mais incompleto, destinado a desenvolvimentos
inferiores. Percorrendo as comunas da Alemanha, da Espanha, da
Inglaterra, encontramos nelas muitas outras diferenças. Não poderia
entrar nestes detalhes; observaremos alguns à medida que avançarmos
na história da civilização. Em sua origem, Senhores, todas as coisas
estão como que confundidas em uma mesma fisionomia. É apenas com
o desenvolvimento sucessivo que a variedade se torna pronunciada.
Depois, começa um desenvolvimento novo que impele as sociedades
para esta unidade excelsa e livre, objetivo glorioso dos esforços e dos
desejos do gênero humano.

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C O L E T Â N E A - F R A N Ç O I S G U I Z O T

GUIZOT, François. Sobre as origens das corporações de ofício.


In: ____.Histoire de la civilisation en France, depuis de la chute
de l'Empire Romain. Paris: Librairie Académique Didier,
Émile Perrin, Libraire-Éditeur, 1884. v. 1. 3

Senhores,
Todos vocês sabem que, nos tempos da república e nos primei-
ros tempos do império, a indústria era uma atividade doméstica
exercida por escravos em proveito do seu senhor. Todo proprietário
de escravos fabricava em sua casa tudo aquilo que tinha necessidade;
ele possuía escravos que eram forjadores, serralheiros, marceneiro,
sapateiro, etc. E não somente os fazia trabalhar para si como vendia
os produtos de sua indústria aos homens livres, seus clientes ou
outros que não possuíam escravos.
Por uma dessas evoluções lentas e imperceptíveis que se encon-
tra concluída em uma dada época, mas que não se consegue acom-
panhar o curso e cuja origem nunca se consegue remontar ocorreu
que a indústria saiu da domesticidade e, em lugar de artesãos escra-
vos, formaram-se artesãos livres que trabalhavam não para um
mestre, mas para o público e em proveito próprio. Essa foi uma
imensa mudança na situação da sociedade, sobretudo para o seu
futuro. Quando e como se processou no seio do mundo romano eu

3
Esta obra é resultado de um curso ministrado por Guizot entre dezembro de
1828 e maio de 1830 e publicado, em forma de brochura, pela primeira vez, ao
longo do curso, nos anos de 1829 e 1830.

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F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

não sei e ninguém, creio, descobriu; mas, na época em que agora


estamos estudando, no começo do século V, esta passagem estava
feita: havia em todas as grandes cidades da Gália uma classe bastante
numerosa de artesãos livres. Desde então, eles estavam constituídos
em corporações, em corpos de ofícios, representados por alguns de
seus membros. A maior parte das corporações, cuja origem se cos-
tuma atribuir à Idade Média, remonta, sobretudo no sul da Gália e
na Itália, ao mundo romano. Desde o século V, percebem-se vestí-
gios seus, direta ou indiretamente, em todas as épocas. E elas forma-
vam, já naquela época, em todas as cidades, uma das principais e
mais importante parcela do povo.

50
AUGUSTIN THIERRY
(1795-1856)

THIERRY. Augustin. Carta XIII. Sobre a libertação das comunas.


In: ____. Lettres sur l’histoire de France. Septiéme édition. Paris:
Just Tessier, 1842. 1

Carta XIII
Sobre a libertação das comunas

Entre todas as palavras da linguagem política da Idade Média


que são conservadas até nós, a palavra comuna é, talvez, aquela
que perdeu mais completamente o seu significado. Reduzida a
exprimir uma simples circunscrição rural sob autoridades depen-
dentes, não produz sobre os espíritos nenhuma espécie de impressão

1
Parte das Cartas (dez, ao todo) foi publicada, pela primeira vez, separadamente,
no Courrier Français, nos últimos meses de 1820. Thierry publicou essas cartas
com outras quinze, em um único volume, em 1827.
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

e temos necessidade de nos esforçar para recolocar neste signo, de


qualquer modo desacreditado, as grandes idéias que ele trouxe à
memória durante vários séculos. Também a revolução que nossos
historiadores designam pelo nome de libertação [affranchissement]
das comunas absolutamente não adquire, em suas narrativas, seu
verdadeiro caráter. Os débeis escombros da antiga organização
municipal das cidades da França conservados até 1789 contribuí-
ram, não tenho dúvidas, para arrefecer a imaginação dos escritores
modernos, para enganá-los sobre o estado primitivo dessas cidades
e sobre a natureza da mudança social que ocorreu no século XII.
Não sei qual idéia de solicitude humilde por parte dos burgueses e
de mansuetude paternal por parte dos reis signatários das cartas
das comunas lança uma luz confusa sobre todos os acontecimentos
que precederam ou seguiram a assinatura dessas cartas. Ao invés de
narrar em detalhes esses acontecimentos, nossos historiadores
contentam-se em reproduzir alguns fragmentos de dissertações
inexatas. Fiando-se naquilo que o protocolo das cartas traz em
geral: concessi, “eu concedo”, eles atribuem à política dos reis os
resultados da insurreição popular e tratam como reforma adminis-
trativa um dos movimentos mais enérgicos do espírito democráti-
co. 2
Com efeito, antes de ter visto, como nós, o terrível despertar
desse antigo espírito, em um tempo de ordem e de obediência
revolucionária, poder-se-ia descrever com exatidão ou mesmo
simplesmente compreender a revolta, a associação jurada contra o
poder estabelecido, e todo esse grande trabalho de dissolução que
acompanha as mudanças políticas? Como não fazer emanar, no
passado e no presente, todos os privilégios municipais do capri-

2
A justiça ordena-me excetuar dessa censura, como a de muitas outras, a obra do
Sr. de Sismondi. Este autor penetrou, na minha opinião, nas verdadeiras vias da
história, mas, infelizmente, são as opiniões defendidas por Mézeray, Velly, An-
quetif e seus discípulos que prevalecem ainda no público e é a elas que eu me
refiro.

52
C O L E T Â N E A - A U G U S T I N T H I E R R Y

cho da autoridade central? Como se precaver da ilusão que pro-


duzem as próprias palavras aplicadas às coisas completamente
distintas daquelas que exprimiam anteriormente? Um historiador
do século XVII, pouco conhecido, é verdade, mas bastante inteli-
gente para a época, disse que tendo encontrado nos antigos
costumes [coutumes] essas palavras: “Se um senhor disser para seu
vassalo: Venha comigo, pois eu desejo guerrear contra o senhor
rei”, tal pensamento pareceu-lhe tão estranho que seus olhos não
ousavam crer nisso. 3 Em uma época mais próxima de nós, espíri-
tos distintos, além do mais por não estarem munidos contra esse
gênero de preconceito histórico, caem em graves equívocos. Posso
citar, como prova, uma pretensa carta de Felipe I aos habitantes
de Aigues-Mortes, inserida no quarto volume de Recueil des ordon-
nances des rois de France (Compilação de ordenanças dos reis da Fran-
ça), datada de 1079. Era 1279 e era preciso ter lido Felipe III.
Mas o editor, apesar do seu saber, estava preocupado com a idéia
de poder real tal como existia em seu tempo, isto é, exercido na
extensão atual da França. Este erro era muito grosseiro para não
ser logo ressaltado, pois a cidade de Aigues-Mortes, fundada por
São Luís, somente passa a existir a partir do ano de 1246. 4
O preconceito que dá lugar a semelhantes equívocos contribui,
mais do que qualquer outra coisa, para falsear, nas narrativas mo-
dernas, a história do estabelecimento das comunas. De início, a
idéia que esses escritos nos dão de uma comuna do século XII é
completamente inexata. De acordo com eles, nós nos representa-
mos, seja o regime abastardado que subsistia ainda antes da revolu-
ção, seja um governo local bem equilibrado, ao mesmo tempo livre e
dependente, como aquele que a Assembléia Constituinte projetou

3
Annales de l’eglise de Noyon, por Jacques Le Vasseur. (Paris, 1633).
4
Vejam o prefácio do sexto volume do Recueil des ordonnances des rois de France, p.
XXXVII e XXXVIII, e o desenho feito pelo editor Sr. Secousse, na página 44, do
quarto volume.

53
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

estabelecer. Representamos Luís VI, denominado o Gordo, em parte


por benevolência, em parte por interesse, concedendo o projeto de
libertar todas as cidades existentes desde o curso do Somme até o
Mediterrâneo e legando aos seus sucessores esta nobre tarefa de
prossegui-la. Luís, o Gordo, tornou-se, assim, em nossa opinião, o
promotor da emancipação comunal, o patrono das liberdades bur-
guesas, o regenerador do Terceiro Estado. Esses belos títulos lhe são
mesmo confirmados pelo preâmbulo da nossa carta constitucional.
Mas a autoridade desta carta, soberana em matéria política, é, de
fato, de nenhum valor como história. 5
Para apreciar corretamente a parcela que teve Luís, o Gordo,
no que se chama, com um nome muito modesto, de libertação
das comunas, é necessário, inicialmente, examinar em que limites
territoriais um rei da França, no começo do século XII, exercia o
poder legislativo. Livrando-se de toda ilusão e examinando os
fatos encontrar-se-á que o poder real regia, então, apenas uma
parte muito pequena da França atual. Ao norte do Somme,
entrava-se nas terras do duque de Flandre, cuja vassalagem era
puramente nominal; a Lorraine, uma parte da Borgonha, o
Franco-Condado e o Delfinado tinham o império da Alemanha
como suserano. A Provença, todo o Languedoc, a Guiana, o
Auvergne, o Limousin e o Poitou eram Estados livres, comanda-
dos por duques ou condes que somente reconheciam o suserano
formalmente e não mudavam isso à vontade. A Bretanha era
igualmente um Estado livre; a Normandia obedecia ao rei da
Inglaterra e, enfim, o Anjou, ainda que submetido feudalmente
ao rei da França, não dispensava, de nenhuma maneira, a sua

5
“Nós consideramos que, ainda que toda a autoridade residisse, na França, na
pessoa do rei, nossos predecessores não teriam absolutamente hesitado em mo-
dificar a prática, seguindo a diversidade do tempo; assim é que as comunas de-
veram sua libertação a Luís, o Gordo, a confirmação e a extensão de seus direi-
tos a São Luís e a Felipe, o Belo” (Preâmbulo da carta constitucional de 1814) –
Essa passagem foi escrita em 1827.

54
C O L E T Â N E A - A U G U S T I N T H I E R R Y

autoridade administrativa. Não havia, então, lugar para Luís VI


libertar por meio de ordenanças as cidades dessas diferentes
regiões; e os grandes objetivos que se lhe atribuíram apenas
poderiam realizar-se entre o Somme e o Loire. Ora, como fazer se
esse rei era o legislador das comunas que vemos se estabelecerem
em toda a extensão da Gália e, em maior número, nas províncias
independentes da coroa, por exemplo, naquelas do Sul? Mais
ainda, nessas últimas províncias o regime comunal, com todas as
suas características, revelou-se em uma época anterior à data das
sete ou oito cartas nas quais aparece o nome de Luís, o Gordo. É
verdade que ninguém se atreveu atribuir positivamente a esse rei
a fundação das comunas de Arles, de Marselha, de Nîmes, de
Toulouse, de Bordeaux, de Rouen, de Lille, de Cambrai etc.; mas
nossos escritores, agrupando todos os fatos em torno da pessoa
dos reis, negligenciaram a história dessas comunas na mesma
medida em que elas absolutamente não destacaram a coroa. Foi
somente quando uma conquista ou um tratado as agregou ao
reino da França e que uma carta, selada com o grande selo,
reconheceu, mas não criou suas franquias, que se considerou
oportuno fazer menção delas. Assim, as liberdades imemoriais
adquirem o aspecto de concessões recentes; toda comuna aparece
como pura emanação da vontade real, e Luís, o Gordo, como
primeiro em data a honrar a iniciativa. Disso vem que Beauvais e
Noyon passam por serem as mais antigas comunas da França:
afirmação verdadeira caso se restrinja o nome da França aos seus
limites do século XII e falsa caso se o aplique a todo o território
sobre o qual ela se estende nos dias de hoje.
Após ter circunscrito aos seus verdadeiros limites a influência
legislativa de Luís, o Gordo, é necessário examinar se, dentro
desses mesmos limites, esse rei foi, como se pretende, o fundador
das comunas e se pertence a ele a idéia desse gênero de institui-
ções. Esta opinião funda-se a priori no suposto interesse de Luís
VI em fazer do poder dos burgueses um contrapeso ao poder dos
nobres. Mas, relativamente ao interesse, a classe burguesa tinha

55
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

um interesse bem diferente acerca da instituição das cidades em


comunas. Dever-se-ia, então, segundo esta maneira de argumen-
tar, conceder-lhe a maior parte na criação dessa nova ordem de
coisas, que dava a cada cidade emancipada uma magistratura
eletiva, o direito de guerra e de paz, quase todos os direitos das
antigas repúblicas. 6 Mas não se trata de argumentação lógica e a
história está aí para atestar que, no grande movimento do qual
saíram as comunas ou as repúblicas da Idade Média, pensamento
e execução, tudo foi obra de mercadores e de artesãos que forma-
vam a população das cidades. Na maior parte das cartas das
comunas somente se pode atribuir aos reis o protocolo, a assina-
tura e o grande selo. Evidentemente, as disposições legislativas
são obra da própria comuna. Para se convencer disso, basta
examinar e comparar entre elas esses atos, os quais se julgam
muito mais sobre a fé dos outros.
Ainda que as comunas da Idade Média tivessem por princípio
a municipalidade dos últimos tempos do Império Romano, esta
última instituição era tanto dependente como a outra se mostra-
va, desde sua origem, livre e enérgica. O entusiasmo republicano
dos velhos tempos comunicava-se gradualmente e produzia revo-
luções por toda parte onde se encontrava uma população sufici-
entemente numerosa para ousar entrar em luta contra o poder
feudal. Os habitantes das cidades que esse movimento político
tinha conquistado reuniam-se na grande igreja ou na praça do
mercado. Lá eles prestavam, sobre as coisas sagradas, o juramento
de socorrerem uns aos outros, de absolutamente não permitir que
quem quer que fosse cometesse injustiça a um deles ou os tratasse
daquele momento em diante como servos. Era esse juramento, ou
esta conjuração [conjuration], como exprimiam os antigos docu-
mentos, que dava nascimento à comuna. Todos aqueles que
estavam ligados desta maneira tomavam para si mesmo de ora em

6
A palavra república é, algumas vezes, empregada pelos historiadores da Idade
Média para designar uma comuna.

56
C O L E T Â N E A - A U G U S T I N T H I E R R Y

diante o nome de communiers ou de jurados [jurés] e, para eles,


esses títulos novos compreendiam as idéias de dever, de fidelida-
de e de devotamento recíprocos, expressos, na Antigüidade, pela
palavra cidadão. 7
Para a garantia da sua associação os membros da comuna consti-
tuíram, de início de maneira tumultuada, e, em seguida, de uma
maneira regular, um governo eletivo que parecia, em alguns aspec-
tos, o antigo governo municipal dos romanos e, em outros, dele se
afastavam. Em lugar dos nomes cúria e decurião, caídos em desuso,
as comunas do sul adotaram o de cônsul, que lembrava ainda gran-
des idéias, e as comunas do norte os de jurado e de échevin, ainda
que esse último título, por causa da sua origem teutônica, estivesse,
para elas, maculado por uma recordação da servidão. 8
Encarregados da tarefa penosa de estar sem cessar à frente do
povo na luta que este travava contra seus antigos senhores, os novos
magistrados tinham a missão de reunir os burgueses ao som do sino
e de os conduzir, em armas, sob a bandeira da comuna. Nessa
passagem da antiga civilização degenerada para uma civilização nova
e original, os restos dos antigos monumentos do esplendor romano
serviram, algumas vezes, de materiais para a construção de muralhas
e de torres que deveriam garantir as cidades livres contra a hostili-
dade dos castelos. Podemos ver ainda nos muros de Arles um grande
número de pedras cobertas de esculturas provenientes da demolição
de um teatro magnífico, mas tornado inútil pela mudança de cos-
tumes e pela interrupção das lembranças.
No sul da Gália, as antigas cidades romanas subsistiram em
maior número e, por estarem mais distantes do foco das invasões e
da dominação germânicas, conservaram melhor sua população e

7
Statum est itaque e sub religione confirmatum quod unnusquisque jurato suo
fidem, vim, auxiliumque praebebit. (Chartes de commune, em Recueil des or-
donnonces des rois de France, passim)
8
Skepen, na língua dos francos, significa juiz. É a palavra latinizada nas capitulares
scabini, que foi mal traduzida de propósito pelo termo bárbaro scabin.

57
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

suas riquezas. As tentativas de libertação foram, se não mais enér-


gicas, ao menos completamente felizes. É somente nessa região que
as cidades libertadas atingiram a plenitude desta existência repu-
blicana que era, de alguma maneira, o ideal ao qual aspiravam
todas as comunas. No norte, a luta foi mais longa e o sucesso
menos decisivo. Uma circunstância desfavorável para as cidades
desta última região era a dupla dependência em que elas se encon-
travam: sob o poder dos seus senhores imediatos e sob a suserania
do rei da França ou do imperador da Alemanha. Em meio à luta
contra o primeiro desses poderes, o segundo intervinha para seu
proveito e, freqüentemente, reacendia o combate quando tudo
parecia decidido. Esse papel de intervenção era o único que os reis
da França tinham realmente desempenhado nos acontecimentos
que assinalaram o nascimento das primeiras comunas no seu
pequeno reino: e o que os determinava a declarar-se a favor ou
contra as cidades, é necessário que se diga, era o dinheiro que lhes
ofereciam uma ou outra das duas partes. 9 Neutros entre o senhor e
a comuna, o apoio deles era para quem mais desse, com a diferen-
ça que eles davam às vilas não mais do que garantias verbais ou
simples promessas de socorro, e que, quando eles estavam contra
elas, agiam efetivamente.
Poder-se-ia acreditar, de acordo com algumas palavras dos histori-
adores do século XII, que Luís VII, dito o Jovem, encarava a revolu-
ção comunal de um ponto de vista menos material. Ele procurou
estabelecer, em princípio, que toda cidade de comuna dependia da
coroa; mas, malgrado o interesse que se tinha deste modo criado
quando do estabelecimento de novas comunas, nos lugares que não
estavam sob seu domínio, a política, em relação aos burgueses
libertados pela insurreição, não foi sempre imparcial. Seja por razões
que não é mais possível apreciar, seja por escrúpulos religiosos, ele

9
Regius ... appetitus ad potiora promissa deflectitur ... omnia sacramenta sua sine ulla
honestatis respectione cassantur. (Guibert, de Novigent, de Vita sua, apud script. rer.
Gallic. et francic., t. 12, p. 252).

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C O L E T Â N E A - A U G U S T I N T H I E R R Y

anulou cartas que havia assinado e destruiu, pela força, comunas


que haviam comprado seu apoio. Quando a cólera, por estarem
privados de uma liberdade duramente adquirida, impelia os burgue-
ses a novas revoltas, este rei os castigava de uma maneira dura e
algumas vezes cruel. 10 Eis uma passagem a seu respeito e que, com-
pletamente fora de propósito, na minha opinião, algumas vezes se
citou como prova da iniciativa real na libertação das comunas:

Gui, conde de Auxerre (em 1167), quis, com o assentimento do


rei, instituir de novo uma comuna, mas o bispo se opôs
corajosamente ao seu projeto e decidiu ir queixar-se sobre isto
diante da corte do rei, não sem perigo e sem grandes despesas de
dinheiro. Ele quase se expôs à malquerença do muito piedoso rei
Luís, que o criticou por querer apoderar-se da cidade de Auxerre
para ele e para seus herdeiros, pois ele considerava que lhe
pertenciam todas as cidades onde havia comunas. Enfim, depois
que a causa foi longamente debatida, feito o exame das cartas e
privilégios da igreja de Auxerre, e o rei, assim como o pessoal da
sua corte, estando abrandados por meio de uma boa soma de
dinheiro, o bispo ganhou seu processo. Ele obteve uma ordenança
real, dizendo que, sem sua aprovação e sem sua permissão, não
seria de nenhuma maneira permitida ao conde, nem a quem quer
que fosse, estabelecer uma comuna na cidade. 11

Quanto a São Luís, que se costuma chamar o segundo pai das


comunas, tirando a carta de Aigues-Mortes, que de maneira alguma
é um ato de libertação, mas, propriamente falando, um ato de
fundação de uma nova cidade, suas ordenanças tenderam antes a
limitar do que a estender os privilégios municipais. As grandes
comunas traziam-lhe desconfiança; ele temia que elas interviessem
de uma maneira ativa na política do reino. Foi este o motivo da
proibição feita aos maires, échevins, jurados etc., de vir a Paris por
outros motivos que não seus negócios particulares e às cidades de

10
Vejam abaixo os detalhes relativos às comunas de Sens e Vezelay.
11
Hist. episcop., autissiodor., apud script. reg. Gallie. et francic., t. 12, p. 304.

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F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

dar algum presente que não fosse vinho em pote. 12 Sua conduta
como mediador nas querelas entre senhores e burgueses, ainda que
sempre moderada, prova, em geral, pouco respeito pelos direitos
da burguesia. 13
Se as intenções dos reis da França tivessem sido tão plena-
mente favoráveis ao estabelecimento de comunas, como se acredi-
ta, seria nas cidades da coroa que se as veria manifestarem-se de
maneira mais brilhante. Pois bem! Nenhuma dessas cidades, que
eram as mais florescentes do reino, obteve libertação tão comple-
ta como as cidades senhoriais, uma vez que todo projeto de
insurreição nelas era frustrado por um poder muito superior ao
dos maiores senhores. Paris nunca teve comuna, somente corpo-
rações de ofício e uma justiça burguesa sem atribuição política.
Orléans tentou, no reinado de Luís, o Jovem, erigir-se em comu-
na; mas uma execução militar e suplícios castigaram, dizem as
crônicas de Saint-Denis, a loucura desses bobocas que, por moti-
vo da comuna, mostravam vontade de se rebelar e de se insurgir
contra a coroa. 14
Recusando a nossos reis a iniciativa na revolução comunal, uma
justiça que se lhes deve prestar é confessar que eles, de maneira
alguma, destruíram as comunas nas cidades senhoriais que eles
anexaram aos poucos ao seu domínio, sobretudo antes do século
XIV. Eles perceberam que era mais difícil aniquilar uma liberdade
adquirida desde longa data do que sufocá-la em seu berço. O reco-
nhecimento do governo republicano das cidades do Languedoc nas
primeiras épocas que se seguiram à conquista desta região era indis-
pensável à manutenção desta conquista. Ocorreu o mesmo nas
grandes comunas da Normandia, do Anjou, da Bretanha, da Guiana
e da Provença. A razão de estado fez respeitar nelas privilégios que

12
Recueil des ordonnances des rois de France.
13
Vejam abaixo, carta XX, a história da comuna de Reims.
14
Chroniques de Saint-Denis; Recueil des Hist. de la France, t. 12, p. 196.

60
C O L E T Â N E A - A U G U S T I N T H I E R R Y

eram perigosos de se atacar violentamente, mas que foram minados


com o tempo e, por assim dizer, demolidos peça por peça. Quanto
às cidades francesas de segunda e terceira ordem, os reis mostraram-
se a seu respeito uma enorme liberalidade e, por um pouco de
dinheiro, eles lhes concediam o direito de comuna porque não
temiam que elas se prevalecessem disso para se tornarem indepen-
dentes. Então, como hoje, era pouco mais do que um direito de
liberdade nominal. Também os próprios reis concediam, de boa
vontade, às povoações insignificantes um título e instituições que
tinham obstinadamente recusado às maiores cidades.
Lorris, no Gâtinais, obteve franquias legais bem mais extensas
do que as que desfrutavam os burgueses de Orléans; mas, prova-
velmente esses últimos, numerosos e ricos, ultrapassavam em
muito, de fato, os limites dos seus direitos reconhecidos enquan-
to que os de Lorris, ainda que exercessem nominalmente a sobe-
rania municipal, permaneciam, por sua fraqueza, sob a depen-
dência de oficiais reais. Em uma palavra, a condição de comuna
em todo o seu desenvolvimento somente foi obtido pela força
explícita e obrigando o poder estabelecido a capitular. Mas quan-
do, em conseqüência da insurreição e dos tratados que legitima-
ram o movimento da burguesia por sua libertação, tornou-se o
impulso social e, para me servir de uma expressão completamente
moderna, uma das necessidades da época, os poderes de então
ofereceram auxílio com uma boa vontade manifesta todas as vezes
que entreviram nisso algum proveito material sem nenhum
perigo iminente. Disso advém a enorme quantidade de cartas
senhoriais e reais concedidas durante o século XIII. Houve oposi-
ção sistemática a esta revolução, prosseguida de maneira pacífica,
apenas por parte do alto clero, em toda parte onde essa corpora-
ção [corps] possuía a autoridade temporal e a senhorial feudal.
Também a história das comunas do norte da França apresenta o
quadro de uma guerra encarniçada entre burgueses e o clero.
Em geral, as comunas mais livres eram aquelas cuja fundação ti-
nha custado mais trabalho e sacrifícios e a liberdade foi pouca coisa
nos lugares onde era apenas uma dádiva gratuita concedida sem

61
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

esforços e conservada pacificamente. A condição política dessas


associações burguesas oferecia, desse modo, uma multidão de graus
e nuanças, desde a cidade republicana que, como Toulouse, tinha os
reis por aliados, mantinha um exército e exercia todos os direitos de
soberania, até a reunião de servos e de vagabundos aos quais os reis
e os senhores abriam asilo em suas terras. Esses asilos deram origem
a um grande número de cidades novas que, freqüentemente, povoa-
ram-se às custas dos senhores vizinhos cujos camponeses desertavam.
Um autor do século XII critica Luís VII por ter fundado várias
dessas novas cidades e de ter, desse modo, diminuído o patrimônio
de igrejas e de cavaleiros.15 O preboste de Villeneuve-le-Roi, próxima
de Sens, encontrava-se freqüentemente em querela a esse respeito
com as abadias da vizinhança. O governo das comunas dessa última
categoria estava sempre subordinado a um preboste do rei ou do
senhor e somente garantia aos habitantes o gozo de alguns direitos
civis. Mas não era o suficiente para obrigar os trabalhadores ambu-
lantes e os camponeses servos de corpo e de bens a fixarem o seu
domicílio nelas. A carta que concedia o direito de burguesia aos
novos domiciliados era redigida e selada pelo fundador quando a
existência da cidade era ainda apenas um projeto. Ele a fazia publi-
car à longa distância, para que fosse conhecida por todos aqueles
que desejassem se tornar burgueses e proprietários de terrenos
mediante um preço módico e uma talha razoável. Eis um exemplo
dessa espécie de cartas:

Eu, henri, conde de Troais, faço saber a todos os presentes e aos que
virão que estabeleci os costumes aqui abaixo anunciados para os
habitantes da minha cidade nova (perto de Pont-sur-Seine), entre os
aterros das pontes de Pugny: Todo homem domiciliando na dita

15
Quasdam... villas novas aedificavit, per que plures eclesias et milites, de propriis suis
hominibus ad eas confugientibus, exhacredasse non est dubium. (Fragm. Vitam Lu-
dovici VII summatim complectens, apud script. rer. gallic. et francic., t. 12, p.
286).

62
C O L E T Â N E A - A U G U S T I N T H I E R R Y

cidade pagará, cada ano, doze dinheiros e uma mina (mine) de aveia
pelo preço do seu domicílio; e, se quiser ter uma porção de terra ou
de pasto, ele dará por arpente quatro dinheiros de renda. As casas,
vinhas e pastos poderão ser vendidos ou alienados à vontade do
adquirente. Os homens residentes na dita cidade não irão nem ao
exército (ost), nem a nenhuma campanha de guerra (chevauchée), se eu
próprio não estiver no comando. 16 Quero conceder, além disso,
direito de ter seis échevins que administrarão os negócios comuns da
cidade, e assistirão meu preboste em seus tribunais. Eu determinei
que nenhum senhor, cavaleiro ou outro, poderia tirar fora da cidade
nenhum novo habitante, por qualquer razão que fosse, a não ser que
esse último fosse homem de sua corporação ou tivesse uma dívida
atrasada de talha para lhe pagar. Feito em Provins, o ano da
Encarnação 1175. 17

16
As palavras ost e chevauchée são sinônimas de exército e de campanha de guerra
(Nota dos tradutores).
17
Recueil des Ordonnances des rois de France, t. 6, p. 319 - 320.

63
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

THIERRY, Augustin. Carta XV. Sobre as comunas de Noyon,


de Beauvais e de Saint-Quentin. In: ____. Lettres sur l’histoire
de France. Septième édition. Paris: Just Terrier, 1842. 18

No ano de 1098, Baudri de Sarchainville, arcediago da igre-


ja catedral de Noyon, foi promovido, por meio da escolha do
clero dessa igreja, à dignidade episcopal. Era um homem de
caráter elevado, de espírito sábio e que procedia com reflexão.
Ele não compartilhava a aversão violenta que os membros da
sua ordem tinham em geral contra a instituição das comunas.
Ele via nesta instituição uma espécie de necessidade diante da
qual, por bem ou por mal, era preciso ceder cedo ou tarde, e
acreditava que era preferível render-se aos desejos dos cidadãos
do que verter o sangue para adiar, por alguns dias, uma revolu-
ção inevitável. Para a cidade de Noyon, a eleição de um bispo
dotado de semelhante senso e de tão nobre maneira de ver era o
acontecimento mais desejável; pois esta cidade encontrava-se,
então, no mesmo Estado que a de Cambrai antes da sua revolu-
ção. Os burgueses tinham querelas diárias com o clero da igreja
catedral: os registros capitulares continham uma multidão de
peças tendo por título: Da paz feita entre nós e os burgueses de
Noyon. Mas nenhuma reconciliação era durável, a trégua era
logo rompida, fosse pelo clero, fosse pelos cidadãos, que eram

18
Os textos que compõem essa obra foram publicados separadamente entre 1817
e 1827.

64
C O L E T Â N E A - A U G U S T I N T H I E R R Y

tanto mais inevitáveis quanto menos garantia tinham para sua


pessoa e para seus bens. O novo bispo achava que o estabeleci-
mento de uma comuna, jurada pelos dois partidos rivais, pode-
ria tornar-se entre eles uma espécie de pacto de aliança. Ele
começou a pôr em prática essa idéia generosa antes que a pala-
vra comuna tivesse servido a Noyon de grito de reunião para
uma insurreição popular.
Por sua própria conta, o bispo de Noyon convocou uma assem-
bléia de todos os habitantes da cidade, clérigos, cavaleiros, comerci-
antes e artesãos e apresentou-lhes uma carta que constituía o corpo
dos burgueses em associação perpétua, sob magistrados denomina-
dos jurados como os de Cambrai:

Aquele que, dizia a carta, quiser entrar nesta comuna não poderá ser
recebido como membro por um único indivíduo, mas na presença
dos jurados. A quantia de dinheiro que ele então der será empregada
para utilidade da cidade e não em proveito particular de quem quer
que seja.
Se a comuna for convocada em armas, todos aqueles que a terão
jurado deverão ir em sua defesa, e ninguém poderá ficar em sua casa,
a menos que esteja enfermo, doente ou de tal forma pobre que tenha
necessidade ele próprio de cuidar de sua mulher e de seus filhos
doentes.
Se alguém feriu ou matou qualquer um no território da comuna, os
19
jurados farão justiça.

Os demais artigos garantiam aos membros da comuna de


Noyon a completa propriedade de seus bens e o direito de
serem levados a julgamento apenas diante de seus magistrados
eleitos. O bispo jurou esta carta em primeiro lugar e os habitan-
tes de todos os estados prestaram, após ele, o mesmo juramento.

19
Esses três artigos foram extraídos de uma carta de Felipe Augusto que reproduz,
confirmando as leis ou como se dizia, então, os costumes (coutumes) da comuna
de Noyon. Vejam o tomo 11, do Recueil des ordonnances des rois de France, p. 224.

65
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

Em virtude de sua autoridade pontifical, ele pronunciou o


anátema e todas as maldições do Antigo e do Novo Testamento
contra aquele que, no futuro, ousasse dissolver a comuna ou
infringisse seus regulamentos. Além disso, para dar a esse novo
pacto uma garantia mais sólida, Baudri convidou o rei da Fran-
ça, Luís, o Gordo, para o confirmar, como então se falava, com
sua aprovação e com o grande selo da coroa. O rei aceitou a
petição do bispo e essa foi toda a participação que Luís, o Gor-
do, teve no estabelecimento da comuna de Noyon. Não se
conservou a carta real, mas resta um trecho que pode servir de
prova a essa narrativa.

Baudri, pela graça de Deus bispo de Noyon, a todos aqueles que


perseveram e avançam cada vez mais na fé:
Muito caros irmãos, aprendemos pelo exemplo e pelas palavras dos
santos Padres que todas as boas coisas devem ser confiadas à escrita,
de modo que elas não sejam em seguida esquecidas. Saibam, então,
todos os cristãos, do presente e do futuro, que fiz de Noyon uma
comuna, constituída pelo conselho e em uma assembléia de clérigos,
cavaleiros e burgueses; que a confirmei pelo juramento, pela
autoridade pontifical e pelo vínculo do anátema, e que obtive do
senhor rei Luís que ele outorgasse essa comuna e a confirmasse pelo
selo real. Que esse estabelecimento feito por mim, jurado por um
grande número de pessoas e outorgado pelo rei, como acaba de ser
dito, ninguém seja suficientemente ousado para o destruir ou alterá-
lo; dou disso a advertência da parte de Deus e de minha parte, e o
interdito em nome da autoridade pontifical. Que aquele que
transgredir ou violar a presente lei sofra a excomunhão; que aquele
que, ao contrário, a guardar fielmente permaneça para sempre com
aqueles que habitam a casa do Senhor. 20

Esta carta episcopal traz a data de 1108.


Alguns anos antes, os burgueses de Beauvais tinham se constitu-
ído em comuna espontaneamente ou, como se exprime um contem-

20
Annales de l’église de Noyon, t. 2, p. 805.

66
C O L E T Â N E A - A U G U S T I N T H I E R R Y

porâneo, em conseqüência de uma conjuração tumultua


da. 21 Eles constrangeram seu bispo a jurar que respeitaria a nova
constituição municipal; e, na mesma época, o conde de Vermandois,
para prevenir semelhantes perturbações outorgou uma carta de
comuna aos habitantes de Saint-Quentin.22 O clero da cidade jurou
observá-la sem prejuízo dos direitos de sua ordem e os cavaleiros sem
prejuízo da fé devida ao conde. Esse conde, que era um poderoso
senhor, suserano de diversas cidades, não julgou ser necessário,
como o bispo de Noyon, retificar sua carta pela autoridade real e a
comuna de Saint-Quentin estabeleceu-se sem que Luís, o Gordo,
interviesse de alguma maneira. Para compreender o efeito que a
existência dessas três comunas produziu sobre as cidades da Picardia
e de Ile-de-France em um espaço de menos de quarenta léguas basta
dar uma olhada em suas cartas, das quais apresentamos os principais
artigos:

Carta de Beauvais

Todos os homens domiciliados no recinto do muro da cidade e nos


arrabaldes (faubourgs) de algum senhor de que depende o solo onde
eles habitam jurarão à comuna. Em toda a extensão da cidade, cada
um prestará socorro aos demais lealmente e segundo o seu poder.
Serão eleitos treze pares pela comuna, entre os quais, segundo o voto
de outros pares e de todos os que juraram a comuna, um ou dois
serão considerados mais importantes [eleitos maires (majeurs)].

21
Turbulenta conjuratio factae communionis. (Epist. Ivonis carnotensis apud
script. rer. gallic. et francic.), t. 15, p. 105.
22
Esta concessão não tem data precisa, mas remonta autenticamente aos primeiros
anos do século XII. Ela foi bastante anterior à época de Raoul I, que se tornou
conde de Vermandois em 1117. Alguns historiadores a fixam no ano de 1102.
A carta comunal de Saint-Quentin traz em seu preâmbulo: Usus et consuetudi-
nes quas tempore Radulfi comitis et antecessorum suorum burgenses sancti
Quintini tenuevant (Vejam o Recueil des ordonnances des rois de France, t. 11, p.
270).

67
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

O maire e os pares jurarão não favorecer ninguém por causa da


amizade, nem de lesar alguém por causa da inimizade, e de dar a
toda coisa, de acordo com o seu poder, uma decisão justa. Todos
os demais jurarão obedecer e apoiar as decisões dos pares.
Aquele que cometer perversidade contra um homem que tenha
jurado esta comuna, o maire e os pares, se a queixa lhes for feita, farão
justiça no corpo e nos bens do culpado.
Se o culpado se refugiar em algum castelo fortificado, o maire e os
pares da comuna falarão sobre isso ao senhor do castelo ou àquele
que estiver em seu lugar; e se, na opinião deles, a satisfação foi feita
com o inimigo da comuna, isso será suficiente; mas se o senhor
recusar satisfação, eles próprios justiçarão nos bens do senhor e nos
seus homens.
Se algum mercador estrangeiro vier a Beauvais para o mercado, e se
alguém lhe fizer dano ou injúria nos limites do banlieue; se a queixa
for feita ao maire e aos pares, e se o mercador puder encontrar seu
malfeitor na cidade, os pares farão justiça, a menos que o mercador
seja um dos inimigos da comuna.
Nenhum homem da comuna deverá confiar ou emprestar seu
dinheiro aos inimigos da comuna enquanto ela estiver em guerra
contra eles, pois se ele o fizer, ele cometerá perjúrio; e se alguém for
reconhecido culpado de haver emprestado ou confiado o que quer
que seja, justiça lhe será feita, segundo o que o maire e os pares
decidirem.
Se ocorrer de a corporação dos burgueses marchar fora da cidade
contra os inimigos, ninguém falará com eles, se não for com licença
do maire e dos pares.
Se alguém da comuna confiou o seu dinheiro a alguém da cidade e que
aquele ao qual o dinheiro foi confiado refugiar-se em algum castelo
fortificado, o senhor do castelo, tendo recebido a queixa, ou devolverá o
dinheiro ou expulsará o devedor do seu castelo; se não fizer nem uma
nem outra coisa, a justiça será feita aos homens desse castelo.
Se alguém arrebatar o dinheiro de um homem da comuna e refugiar-
se em algum castelo fortificado, justiça lhe será feita, caso puder
encontrá-lo, ou nos homens e bens do senhor do castelo, a menos
que o dinheiro seja devolvido.
Se ocorrer que alguém da comuna tenha comprado algum
patrimônio herdado e o mantiver durante um ano e um dia, e se

68
C O L E T Â N E A - A U G U S T I N T H I E R R Y

alguém, em seguida, vier reclamar e solicitar o resgate, ele não será


atendido, e o comprador permanecerá em paz.
Por nenhum motivo, a presente carta será levada para fora da
cidade. 23

Carta de Saint-Quentin

Os homens desta comuna permanecerão inteiramente livres em sua


pessoa e em seus bens; nem nós, nem nenhum outro, poderá
reclamar deles o que quer que seja, se não for por meio do
julgamento dos échevins; nem nós, nem nenhum outro, reclamaremos
o direito de mão-morta sobre nenhum deles.
Quem quer que tenha entrado nessa comuna permanecerá salvo em
seu corpo, em seu dinheiro e em seus demais bens.
Se alguém ocupou, em paz, alguma tenure 24 durante um ano e um dia,
ele a conservará em paz, a menos que alguma reclamação seja feita
por qualquer um que estivesse fora da região ou sob tutela.
Se alguém cometeu um delito cuja queixa seja feita em presença do
maire e dos jurados, a casa do malfeitor será demolida, se ele tiver
uma, ou pagará para resgatar sua casa, segundo a decisão do maire e
dos jurados. O resgate de casas a demolir servirá para a reparação dos
muros e das fortificações da cidade. Se o malfeitor não tiver casa, será
banido da cidade ou pagará para a manutenção das fortificações.
O maire poderá intimar para comparecer perante a justiça
qualquer um que tiver cometido perversidade à comuna; e se ele
não atender à intimação, o maire poderá bani-lo; ele entrará
novamente na cidade somente com a permissão do maire e dos
jurados; se o malfeitor tiver uma casa na banlieue, o maire e as
pessoas da cidade poderão derrubá-la; e se ela for fortificada de
maneira a não poder ser derrubada por eles, nós lhes prestaremos
auxílio e assistência.

23
Esses artigos foram extraídos de uma carta de confirmação que, segundo o
costume, reproduz exatamente o teor da carta primitiva. Intervi na seqüência, a
fim de colocá-la em ordem (Nota do autor).
24
Vide Glossário.

69
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

Todo burguês poderá ser citado à justiça em qualquer lugar onde se


encontrar, seja no jardim, seja no quarto, seja em qualquer lugar, a
qualquer hora do dia; mas ele não poderá ser citado à noite.
Se alguém morrer tendo como posse alguma tenure, o maire e os
jurados deverão colocar imediatamente seus herdeiros de posse; em
seguida, se houver processo, a causa será debatida.
Se um estrangeiro vier para esta cidade a fim de entrar na comuna, seja de
que senhor for, tudo o que trouxer ficará salvo, e tudo o que tiver deixado
na terra do seu senhor pertencerá a seu senhor, exceto sua herança,
contanto que tenha disposto segundo o que deve ao seu senhor.
Se citarmos algum burguês da comuna, o processo concluirá pelo
julgamento dos almotacés dentro do recinto dos muros de Saint-Quentin.
Se um vassalo de um vassalo [vavasseur] ou um sargento de armas dever
alguma soma a um burguês, e se ele não quiser submeter-se ao
julgamento dos almotacés, o maire deverá mandá-lo ter, no prazo de
quinze dias, um senhor capaz de pagar a soma ao burguês que lhe é
devida; se, após esse prazo, não se apresentar, a justiça será feita pelos
almotacés.
Em toda a parte onde o maire e os jurados desejarem fortificar a
cidade, poderão fazê-lo em qualquer senhoria que seja.
Não poderemos refundir a moeda, nem fazê-la de novo, sem o
consentimento do maire e dos jurados.
Não poderemos colocar nem ban nem imposto pecuniário [assise]
sobre as propriedades dos burgueses.
Os homens da cidade poderão moer seu trigo e cozer seu pão onde
desejarem.
Se o maire, os jurados e a comuna tiverem necessidade de dinheiro
para os negócios da cidade e eles cobrarem um imposto, poderão
cobrá-lo sobre as propriedades e bens dos burgueses e sobre todas as
rendas e lucros que são feitos na cidade.
Concedemos tudo isto salvo nosso direito e nossa honra, salvo os
direitos da igreja de Saint-Quentin e das outras igrejas, salvo o direito
dos nossos homens livres, e também salvo as liberdades por nós
concedidas anteriormente à dita comuna. 25

25
Recueil des ordonnances des rois de France, t. 11, p. 270.

70
C O L E T Â N E A - A U G U S T I N T H I E R R Y

Pode-se ver pelo estilo das duas cartas que, no século XII, havia
alguma diferença entre uma comuna obtida pela força e uma comu-
na concedida. Na primeira, um certo acento de energia tem a apa-
rência da expressão franca dos desejos e das vontades populares. A
outra não tem absolutamente essa cor: sua redação é um pouco
contida, como o comportamento do poder em retirada, diante da
força das coisas. Todavia, as garantias concedidas pelo conde Raoul
aos burgueses de Saint-Quentin não eram sem importância. O
direito que a comuna possuía de derrubar os castelos dos senhores
que lhe fizessem alguma injustiça e a obrigação que o conde se
impunha de prestar auxílio aos burgueses para reduzir um inimigo
muito poderoso investiam a corporação da burguesia da porção mais
essencial dos privilégios de soberania. As cidades vizinhas, entre elas
a de Laon, a mais considerável, não tardaram, elas próprias, a desejar
um destino semelhante.
Colocados quase à igual distância de Saint-Quentin e de Noyon,
os burgueses de Laon não podiam deixar de volver os olhos para
essas duas cidades. Talvez a comuna de Beauvais lhes agradasse
menos do que as outras duas por causa da repugnância que experi-
mentavam as massas de se engajarem a sangue-frio em uma revolu-
ção violenta. Mas uma espécie de fatalidade os conduziu a outras
vias. Eles começaram por demandas de reformas, dirigidas com
calma, e acabaram com uma sublevação acompanhada do que as
guerras civis podem oferecer de mais atroz. O que há de notável na
comuna de Laon é ela reproduzir, de maneira mais exata, o tipo de
revoluções modernas. No momento em que a ação revolucionária
chegou ao último grau de violência, a reação aconteceu, seguida de
uma nova série de desordens e de excesso cometidos em sentido
oposto. Enfim, quando os partidos opostos estavam cansados de se
destruírem, veio o grande ato de pacificação, recebido com alegria
pelos dois lados, mas que, no fundo, era apenas uma trégua, porque
os interesses opostos mantinham-se e não podiam se conciliar.

71
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

THIERRY, Augustin. Sobre a libertação das comunas. 26 In:


____. Dix ans d’études historiques. Neuviéme édition, revue et
corrigée. Paris: Furne, 1856. 27

As comunas da Idade Média não são mais que um nome; mas


seu nome ressoa tão alto em nossa história que o problema desta
existência passada ainda é uma das mais graves controvérsias. De
onde vieram as comunas da França? Qual gênio, qual poder as
criou? A estas questões nós, historiadores, respondemos que,
como as primeiras cartas reais que trazem a concessão de comu-
nas são de Luís VI, dito o Gordo, foi Luís, o Gordo, quem as
fundou. Nem no Arquivo das Cartas [Trésor des Chartes] da Torre
do Louvre, nem no da Sainte-Chapelle, encontra-se, assegura-se,
ato de concessão de comuna anterior ao reinado de Luís VI, que
consentiu o estabelecimento de um regime municipal nas cidades
de Laon, d’Amiens, de Noyon e de Saint-Quentin. Esta circuns-
tância, com a qual concordo plenamente, não prova absoluta-
mente que antes do reinado de Luís VI alguma cidade da França
não tivesse desfrutado, e plenamente, de semelhante regime.

26
Courrier Français de 13 de outubro de 1820. Esse trecho é o primeiro esboço do
grande trabalho sobre a história das comunas, que forma a segunda metade de
minhas Cartas sobre a História da França.
27
Os textos que compõem essa obra foram publicados separadamente entre 1817
e 1827.

72
C O L E T Â N E A - A U G U S T I N T H I E R R Y

Anteriormente à data das quatro ou cinco cartas de Luís, o Gor-


do, as grandes cidades da Provence, do Languedoc e da Bourgogne
possuíam uma justiça para elas e magistrados de sua escolha: desde
tempos imemoriais, Narbonne, Reziers, Lyon, Marseille e Arles eram
cidades de comunas. Se então Luís, o Gordo, libertou, como se diz,
as cidades do norte da França e nelas fundou o governo municipal,
apenas imitou o que já existia no Sul; ele não foi criador, mas copis-
ta. Mais ainda, o mérito dessa imitação lhe pertence? É algo bastante
duvidoso. O próprio teor das cartas reais repele esta crença. As
cartas dizem: Eu concedi, concessi. Esta cláusula implica, parece-me,
na idéia de uma solicitação prévia. Ela permite ao menos duvidar se
o regime livre que devia fazer da cidade aquilo que então se deno-
minava uma comuna, se a imitação do governo das cidades meridi-
onais não foi um projeto concebido primeiramente pelos próprios
habitantes, depois submetido por eles à aprovação do poder do qual
temiam a oposição; se, em uma palavra, a comunidade dos cidadãos
não tomou a iniciativa e, por conseguinte, a maior parte no ato que
constituiu, de uma maneira fixa e permanente, sua existência inde-
pendente.
É uma coisa bem singular a obstinação dos historiadores em
nunca atribuir alguma espontaneidade, alguma concepção às massas
dos homens. Se todo um povo emigra e faz para si um novo domicí-
lio é, no dizer dos analistas e dos poetas, algum herói que, para
ilustrar o seu nome, ousou fundar um império; se novos costumes se
estabelecem, é algum legislador que os imagina e os impõe; se uma
cidade se organiza, é algum príncipe que lhe dá o ser: e sempre o
povo e os cidadãos são o material para o pensamento de um único
homem. Querem saber com exatidão quem criou uma instituição,
quem concebeu um empreendimento social? Procurem quais são os
que tiveram verdadeiramente necessidade deles. A esses deve perten-
cer o primeiro pensamento, a vontade de agir e pelo menos a maior
parte na execução: is fecit cui prodest, o axioma é admissível na histó-
ria como na justiça. Ora, a quem mais aproveitava, no século XII, o
sistema de independência municipal, de igualdade perante a lei, de

73
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

eleição de todas as autoridades locais, de fixação de todos os foros,


que faziam com que uma cidade se tornasse, segundo a linguagem
da época, uma comunidade ou uma comuna? 28 A quem, a não ser à
própria cidade? Era possível que um rei, por mais liberal que se o
suponha, tivesse mais interesse do que ela no estabelecimento de
instituições que deveriam subtraí-la, sob muitos aspectos, à ação do
poder real? A participação dos reis da França no grande movimento
social do qual nasceram as comunas deveria ser, e realmente foi,
apenas uma espécie de não-resistência, freqüentemente mais forçada
do que voluntária.
Nos velhos muros desmantelados das antigas cidades galo-
romanas encravadas na conquista dos Francos vivia uma população
que não pôde ser avassalada e partilhada com a terra, como a popu-
lação do campo. Os conquistadores a tinham gravado ao acaso com
impostos extraídos das listas da capitação real ou das novas listas
arbitrariamente redigidas. Ela tinha se conservado penosamente em
meio à violência e às exações dos bárbaros, sustentando-se através da
sua indústria, dos restos da indústria romana que ela exercia sem
concorrência, por causa da vida ociosa e orgulhosa dos vencedores.
O isolamento feudal tornou sua condição ainda mais dura e mais
cheia de perigos. Ela ficou exposta a todos os gêneros de pilhagem,
espoliada de mil maneiras e impelida, enfim, a pegar em armas para
sua conservação e sua defesa. Ela reparou as brechas que o tempo e a
incúria haviam feito em sua muralha. E, algumas vezes, para fortifi-
car o recinto, derrubou antigos monumentos semicaídos, um palá-
cio, um teatro, um arco do triunfo, vestígios da grandeza e da glória
do nome romano. Logo, as cidades que haviam tomado esta atitude
defensiva declararam-se livres, sob a salvaguarda dos arqueiros que
velavam em suas torres e das grades de ferro que se abaixavam diante
das suas portas. Exteriormente, eram fortalezas; interiormente,

28
Vejam a fórmula dos direitos de comuna: Scabinatus, collegium, majoratus, sigillum,
campana, berfredus e jurisdictio (Ducange, Gloss. ad Script. Med. Et infimoe lati-
nit. , sub his verbis.).

74
C O L E T Â N E A - A U G U S T I N T H I E R R Y

fraternidades; eram, como se dizia na linguagem da época, os lugares


de amizade, de independência e de paz. 29 A energia desses nomes
autênticos bastava para dar uma idéia de associação igual a todos,
consentida para todos e formando o estado político desses homens
da liberdade, desse modo separados do mundo da desigualdade e da
violência.
No fim do século XI, o sul da Gália já possuía um grande núme-
ro dessas cidades que reproduziam, até certo ponto, em seu governo
interior, as formas da antiga municipalidade romana: seu feliz
exemplo, vitorioso cada vez mais, espalhava um novo espírito no
norte do Loire e até as bordas do Somme e do Escaut. Associações
consagradas pelo juramento formavam-se nas cidades menos fortes e
menos ricas do país para as quais o nome França aplicava-se, então,
de uma maneira especial. Um movimento irresistível agitava sua
população semi-servil; camponeses fugidos da gleba engrossavam-na
e se conjuravam com os habitantes para a libertação da cidade que,
desde então, tomou o nome de comuna, sem esperar que uma carta
real ou senhorial lhes outorgasse este título. Confiantes na força que
lhes dava a união de todas as vontades para um mesmo fim, os
membros da nova comuna declararam aos senhores do lugar o ato
de sua liberdade futura. Os senhores resistiram; houve combate,
depois transação mútua. E foi assim que a maior parte das cartas foi
redigida; uma estipulação em dinheiro tornou-se a base do tratado
de paz e uma espécie de pagamento pela independência.
Se as cidades não estivessem em condições de oferecer a guerra
àqueles que não reconhecessem seus direitos de se organizarem
livremente, elas não teriam obtido, mesmo à custa de dinheiro, a
declaração e o reconhecimento desse direito. Nenhuma soma, uma
vez paga, nenhuma renda razoavelmente assentada poderia compensar
a talha alta e a baixa, os direitos de casamento, de falecimento, de
mão-morta, de justiça e todos os outros direitos que os senhores e os

29
Libertas, amicitia, pax. (Ver Ducange, Gloss. ad Script. med. Et infimae latinit., sub
his verbis.).

75
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

próprios reis perderam com a criação desses novos poderes políticos.


Se as cidades, no momento em que elas requereram o reconheci-
mento dos senhores e dos reis, não tivessem, de antemão, estabele-
cido as bases de sua constituição independente, nem os reis, nem os
senhores, teriam adquirido esta concepção para elas e tomado a
iniciativa de emancipação, mesmo com a intenção de vendê-la pelo
mais alto preço possível; não era, absolutamente, uma mercadoria
que tivesse proveito para debitar. Nunca foi, também, por parte dos
reis, uma boa armadilha para os grandes vassalos, libertar esponta-
neamente e erigir em comuna as cidades do domínio real. A menos
que se lhes queira dar a bizarra intenção de eles próprios se enfra-
quecerem para levar, através deste exemplo, os grandes vassalos a se
enfraquecerem. Reis e vassalos subscreveram, a contragosto, a revo-
lução que libertou as comunas. Apoderaram-se do dinheiro como se
fossem destroços de um naufrágio. Nisto não houve absolutamente
especulações; mais tarde, os reis da França realmente especularam,
mas foi com a destruição das comunas; todas elas pereceram, uma
após outra, com as ordenanças reais, entre os séculos XVI e XVII.
O estabelecimento das primeiras comunas no norte da França
foi, então, uma feliz conspiração. Era o nome que elas se davam. 30
Seus habitantes chamavam-se conjurados. 31 O gosto por essas associ-
ações políticas ganha as pequenas cidades e povoações, ganha mes-
mo a planície, a região de pura escravidão. E, algumas vezes, servos
fugitivos, após se ligarem um ao outro pelo juramento de viverem e
morrerem juntos, cavaram fossos profundos e construíram muralhas
de terra, atrás das quais dormiam em paz diante do inútil ruído do
furor de seus senhores. A liberdade deu-lhes a indústria; a indústria,
por sua vez, os tornou poderosos; e aqueles que os tinham execrado
logo procuraram estabelecer aliança com eles. Algumas vezes, um
grande senhor, abandonado pelos colonos do seu domínio, fechou
com fortes paliçadas determinada porção de terra deserta e inculta e

30
“Communio civium quae et conjuratio dicta” (Annal. Trev.).
31
Conjurati, jurati (Veja Ducange, Gloss. ad script. med. et infim. lat., sub his verbis).

76
C O L E T Â N E A - A U G U S T I N T H I E R R Y

proclamou ao largo que esse lugar seria, no futuro, um lugar de


franquia. Ele jurou, de antemão, liberdade de corpo e de proprieda-
de àquele que viesse habitar o recinto da sua nova cidade e redigiu,
como garantia desse juramento, uma carta anunciando os privilégios
da futura comunidade. Ele pedia, como pagamento da terra e do
domicílio, uma renda anual e serviços claramente definidos. Aqueles
a quem convinha o mercado dirigiram-se para este novo asilo e a
cidade cresceu paulatinamente sob a proteção do castelo.
Dessa maneira, algumas comunidades tiveram por fundador o
signatário da sua carta; mas foi em número pequeno; foram as
menos importantes e as que vieram por último. As mais antigas e
as mais consideráveis se estabeleceram espontaneamente, através
da insurreição contra o poder senhorial. Quando o rei interveio
nesta querela, a comuna já existia. Tratava-se apenas de interpor-se
entre ela e o senhor imediato para deter a guerra civil. Que se
examinem os fatos mais de perto, que se leiam, não os historiado-
res modernos, mas os documentos originais e se verá que esta obra
de simples mediação foi toda a participação de Luís, o Gordo, na
libertação das comunas.

77
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

THIERRY, Augustin. Introdução. In:____. Essai sur


l'histoire de la formation e des progrès du Tiers Etat.
Paris: Furne, 1853.

[...] Para que a natureza deste trabalho seja perfeitamente com-


preendida, necessito fixar no espírito do leitor o verdadeiro sentido
das palavras Terceiro Estado. A distância que separa o tempo pre-
sente do Antigo Regime e os preconceitos divulgados pelos sistemas
que tendem a dividir em classes mutuamente hostis a massa nacio-
nal, hoje una e homogênea, obscureceram, em muitas pessoas, a
noção histórica dessa que, outrora, constituía a terceira ordem nos
Estados gerais do reino. Inclina-se a pensar que essa terceira ordem
respondia, então, ao que se denomina, nos dias de hoje, burguesia;
que era uma classe superior entre aquelas que se encontravam fora
e, em distintos graus, abaixo da nobreza e do clero. Esta opinião,
que além de ser falsa tem a nocividade de colocar nas origens da
história um antagonismo nascido ontem e destrutivo de toda segu-
rança pública, estando em contradição com os antigos testemunhos,
com os atos autênticos da monarquia e com o espírito do grande
movimento de reforma de 1789. No século XVI, embaixadores
estrangeiros, descrevendo a constituição política da França, diziam:

Aquilo que se denomina os Estados do reino consiste em três ordens


de pessoas, que são o clero, em primeiro lugar; depois, a nobreza; em
seguida, todo o restante da população. O Terceiro Estado, que não

78
C O L E T Â N E A - A U G U S T I N T H I E R R Y

tem nome particular, pode ser chamado por meio de um nome geral
de Estado do povo. 32

O regulamento do rei Luís XVI para a convocação dos últimos


Estados gerais designava como tendo direito de participar das as-
sembléias eleitorais do Terceiro Estado “todos os habitantes das
aldeias, burgos e campo, nascidos francês ou naturalizados, com
idade de vinte e cinco anos, domiciliados e inscritos na lista das
imposições.” 33 Enfim, na mesma época, o autor de um célebre
panfleto, contando o número e sustentando a unidade da ordem
plebéia, lançava, como um grito da opinião quase universal, estas
três questões e estas três respostas: “Que é o Terceiro Estado? –
Tudo. Que tem sido ele até o presente na ordem política? – Nada.
Que pretende ele? – Ser alguma coisa.” 34
Assim, a ordem de pessoas que foi o instrumento da revolução
de 1789 e da qual tento traçar a história remontando às suas origens
não é outra a não ser a nação inteira, menos a nobreza e o clero.
Esta definição marca, ao mesmo tempo, a extensão e os estreitos
limites do meu assunto, indicando o que tinha que tratar e o que
tinha que omitir. A história do Terceiro Estado começa, pelas suas
indispensáveis preliminares, bem antes da época em que o nome
Terceiro Estado aparece na história do país. Seu ponto de partida é
a revolução produzida na Gália pela queda do regime romano e a
conquista germânica. É nela que, primeiramente, encontram-se os
ancestrais ou os representantes desta massa de homens de condições
e de profissões diversas que a linguagem geral dos tempos feudais

32
Relações dos embaixadores venezianos sobre os negócios da França, publicadas
pelo Sr. Tommaseo.
33
Regulamento do Rei para a convocação dos Estados gerais, datado de 24 de
janeiro de 1789. In: Histoire parlamentaire de la révolution française, pelo Sr.
Buchez, t. 1.
34
SIEYÈS, Qu’est-ce que le Tiers État?

79
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

batiza com um nome comum, a roture [a classe dos plebeus]. 35 Do


século VI ao XII, ela acompanha o destino destes homens, em
declínio em uma parte e progredindo em outra, sob as transforma-
ções gerais da sociedade; depois, encontra um campo mais largo, um
lugar que lhe é próprio, no grande período do renascimento das
municipalidades livres e da reconstituição do poder real. Em segui-
da, prossegue sua marcha, tornada simples e regular, através do
período da monarquia dos Estados e o da monarquia pura, até os
Estados gerais de 1789. Ela remata-se com a reunião das três ordens
em uma só e mesma assembléia, momento em que cessa o cisma que
separava do Terceiro Estado a maioria da nobreza e a minoria do
clero, quando o ilustre e infeliz Baily, presidindo esse primeiro
congresso da soberania nacional, pôde dizer: “A família está comple-
ta”, palavras tocantes que pareciam de bom augúrio para os nossos
destinos, mas que foram rapidamente desmentidas.
Este é o quadro que proponho preencher na composição desta
obra. Uma coisa me impressionou antes de tudo. Durante o espaço
de seis séculos, do XII ao XVIII, a história do Terceiro Estado e a da
realeza estão indissoluvelmente ligadas, de maneira que, aos olhos
daqueles que as apreciam bem, uma é, por assim dizer, o reverso da
outra. Da ascensão ao trono de Luís, o Gordo, à morte de Luís XIV,
cada época decisiva no progresso das diferentes classes dos plebeus
em liberdade, em bem-estar, em luzes, em importância social, cor-
responde, na série de reinados, ao nome de um grande rei ou de um
grande ministro. Somente o século XVIII fez exceção a esta lei de
nosso desenvolvimento nacional. Ele colocou a desconfiança e
preparou um divórcio funesto entre o Terceiro Estado e a realeza.
No momento em que um último progresso, garantia e coroamento
de todos os demais, deveria, através do estabelecimento de uma nova

35
Thierry define, em outra obra, a roture como a massa de homens de condições e
de profissões diversas. Segundo esse autor, era essa massa que a linguagem social
dos tempos feudais batizou com o nome de roture.

80
C O L E T Â N E A - A U G U S T I N T H I E R R Y

constituição, completar a liberdade civil e fundar a liberdade políti-


ca, o acordo necessário faltou para as condições de um regime ao
mesmo tempo livre e monárquico. A obra mal assentada dos consti-
tuintes de 1791 desmoronou quase imediatamente e a monarquia
foi destruída [...].

81
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

THIERRY, Augustin. Capítulo Primeiro. In: ____. Essai sur


l'histoire de la formation e des progrès du Tiers Etat. Genève:
Paris: Furne, 1853.

Sumário: Papel histórico do Terceiro Estado. - Origem da nossa


civilização moderna. - A sociedade galo-romana e a sociedade bárba-
ra. - As cidades e o campo; declínio de umas, progresso do outro. -
Redução da escravidão antiga à servidão da gleba. - Fim da distinção
das raças. Reação das classes urbanas contra o regime senhorial. -
Formas de municipalidade livre. - Nascimento da burguesia. - Influ-
ência das cidades sobre o campo.

Não há mais Terceiro Estado na França. O nome e o que a ele


corresponde desapareceram na transformação social de 1789. Mas
essa terceira das antigas ordens da nação, a última em data e a
menor em força, desempenhou um papel cuja grandeza, durante
muito tempo escondida aos olhares mais penetrantes, manifesta-se
plenamente nos dias de hoje. Sua história, que de agora em diante
pode e deve ser feita, é, no fundo, apenas a própria história do
desenvolvimento e do progresso da nossa sociedade civil, desde o
caos dos costumes, das leis e das condições que se seguiram à queda
do Império Romano até o regime de ordem, de unidade e de liber-
dade dos nossos dias. 36 Entre estes dois pontos extremos vê-se pro-

36
Não quero dizer que a sociedade civil, na França, não recebeu das duas outras
ordens nenhum elemento de progresso. Somente pretendo afirmar que a série

82
C O L E T Â N E A - A U G U S T I N T H I E R R Y

gredir, através dos séculos, a longa e laboriosa carreira pela qual as


classes inferiores e oprimidas da sociedade galo-romana, da socieda-
de galo-franca e da sociedade francesa da Idade Média elevaram-se de
grau em grau até a plenitude dos direitos civis e políticos. Imensa
evolução que fez desaparecer progressivamente do solo onde vive-
mos todas as desigualdades violentas ou ilegítimas, o senhor e o
escravo, o vencedor e o vencido, o senhor feudal e o servo, para
mostrar, enfim, em seu lugar, um mesmo povo, uma lei igual para
todos, uma nação livre e soberana.
Este é o grande espetáculo que a nossa história apresenta no
ponto em que a Providência a conduziu e nele se encontram para
nós, homens do século XIX, nobres temas para a reflexão e o estudo.
As causas e as fases diversas dessa maravilhosa transformação são, de
todos os problemas históricos, aqueles que mais nos tocam. Eles têm
sido, há vinte e cinco anos, o objeto de pesquisas consideráveis e é
para preparar sua solução que se destina a coleção que inicio 37, mas
cuja extensão exige uma seqüência de esforços muito longa para a
vida de um único homem. Sendo o primeiro dos que colocarão a
mão nesta obra, vi apenas uma parte dos inúmeros documentos que
tenho por tarefa reunir. Seria temerário, para mim, querer adivinhar
qual significado deve ter o seu conjunto aos olhos da ciência no
futuro e eu não o tentarei. Limitar-me-ei a apresentar alguns esboços
provisórios; assinalar, segundo meus próprios estudos e o estado da
ciência contemporânea, as mais distintas épocas e os pontos de vista

de seus progressos se assinala, antes de tudo, pelas mudanças sucessivas ocorri-


das na condição das diferentes classes de homens que, do século XIV a 1789,
possuíram, juntos, o nome coletivo de Terceiro Estado.
37
O Recueil des monuments inédits de l’histoire du tiers état [Compilação dos
documentos inéditos da história do Terceiro Estado] faz parte da Collection des
documents inédits sur l’Histoire de France [Coleção dos documentos inéditos
sobre a História da França], publicada sob os cuidados do Ministro da Instrução
Pública.

83
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

mais salientes do que um dia será a história completa da formação,


do progresso e do papel social do Terceiro Estado.
É da última forma dada às instituições civis e políticas do Im-
pério, da que teve Constantino por autor, que procede o que há de
romano em nossas idéias, em nossos costumes e em nossas práticas
legais. Nela estão as primeiras origens da nossa civilização moder-
na. Esta era de decadência e de ruína para a sociedade antiga foi o
berço da maior parte dos princípios ou dos elementos sociais que,
subsistindo durante a dominação dos conquistadores germânicos e
combinando-se com suas tradições e costumes nacionais, criaram a
sociedade da Idade Média, e, daí, transmitiram-se até nós. Nela se vê
a sanção cristã juntando-se à sanção legal para ambas darem uma
nova força à idéia do poder imperial, modelo da realeza dos tem-
pos posteriores 38; a escravidão atacada no seu princípio e minada
surdamente ou transformada pelo cristianismo; enfim, o regime
municipal, tão opressivo quanto havia se tornado, impregnou-se de
uma espécie de democracia pela eleição popular do Defensor e do
bispo. Quando o reino dos Bárbaros veio para a Gália e a ordem
política do império do Ocidente desmoronou-se, três coisas permane-
ceram em pé: as instituições cristãs, o direito romano, em condições
de uso, e a administração urbana. O cristianismo impôs-se aos
novos dominadores; o direito costumeiro manteve, entre os indí-
genas, os costumes e as práticas da vida civil e a municipalidade,
guardiã dessas práticas, envolveu-as, emprestando-lhes, como uma
garantia de permanência, a força da sua organização.
Após o fim das grandes lutas dos séculos IV e V, fossem entre
os conquistadores germânicos e as últimas forças do Império, ou

38
Segundo o direito romano, a soberania dos imperadores derivava do povo por
delegação perpétua; segundo o cristianismo, ela vinha de Deus. É este último
princípio que, desde o reinado de Constantino, fez prevalecer a hereditariedade
na sucessão imperial. Vejam a Memória [Mémoire] do meu irmão Amédée Thi-
erry sobre a Administration centrale dans l’empire romain [Administração cen-
tral no Império Romano], Revue de législation e de jurisprudence; setembro 1843.

84
C O L E T Â N E A - A U G U S T I N T H I E R R Y

entre os povos que tinham ocupado diferentes porções da Gália,


quando os Francos permaneceram os únicos senhores desse país,
duas raças de homens, duas sociedades que tinham em comum
somente a religião, apareceram violentamente reunidas, uma frente
à outra, em uma mesma agregação política. A sociedade galo-
romana apresenta, sob a mesma lei, condições muito diversas e
bastante desiguais; a sociedade bárbara compreende, com as classi-
ficações de ordens e de estados que lhe são próprias, leis e naciona-
lidades distintas. Encontram-se, na primeira, cidadãos completa-
mente livres, colonos ou cultivadores, vinculados aos domínios de
outrem, e escravos domésticos, privados de todos os direitos civis;
na segunda, o povo dos Francos está dividido em duas tribos,
tendo cada uma sua lei particular 39; outras leis, completamente
distintas, regem os Borguinhões, os Godos e outras populações
teutônicas, submetidas por bem ou por mal ao império franco e,
em todas, tanto quanto entre os Francos, havia ao menos três
condições sociais: dois graus de liberdade e a servidão. Entre essas
existências díspares, a lei criminal do povo dominante estabelecia,
pela tarifa das multas por crime ou delito contra pessoas, uma
espécie de hierarquia, ponto de partida do movimento de assimila-
ção e de transformação gradual que, após quatro séculos decorri-
dos do século V ao X, produziu a sociedade dos tempos feudais. A
primeira condição na ordem civil pertencia ao homem de origem
franca e ao Bárbaro, vivendo sob a lei dos Francos; a segunda
condição era do Bárbaro vivendo sob sua lei original; depois vinha
o indígena livre e o proprietário, o Romano proprietário, e, no
mesmo grau, o Lite ou colono germânico; depois o Romano tribu-
tário, isto é, o colono indígena; depois, por fim, o escravo sem
distinção de origem.
Essas classes diversas que separavam, de um lado, a distância das
condições, de outro, a diferença de leis, de costumes e de línguas,

39
A lei dos Francos sálios ou lei sálica e a lei dos Francos ripuários ou lei dos
ripuários.

85
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

estavam longe de se encontrarem igualmente repartidas entre as


cidades e o campo. Tudo o que havia de elevado, a qualquer título
que fosse, na população galo-romana, suas famílias nobres, ricas,
industriosas, habitava as cidades, rodeadas de escravos domésticos. E
entre os homens desta raça a morada ordinária no campo era apenas
para os colonos semi-servos e para os escravos agrícolas. Ao contrá-
rio, a classe superior dos homens da raça germânica estava fixada no
campo, onde cada família livre e proprietária vivia em seu domínio
do trabalho dos lites, que ela tinha levado para lá, ou dos antigos
colonos que dependiam dela. Nas cidades não havia Germanos,
apenas um pequeno número de oficiais reais e pessoas sem família e
sem patrimônio que, a despeito de seus hábitos originais, procura-
vam viver exercendo algum ofício.
A preeminência social da raça conquistadora vinculou-se aos lu-
gares que habitava e, como já se notou, passou das cidades ao cam-
po. 40 Inclusive, gradualmente, aquelas arrebataram deste a direção
da sua população que, para se elevar mais alto e misturar-se com os
conquistadores, imitava tanto quanto podia a maneira de viver
deles. Esta alta classe indígena, à exceção daqueles que nela exerciam
as funções eclesiásticas, perdeu-se de qualquer maneira para a civili-
zação. Ela inclinou-se cada vez mais para os costumes da barbárie,
para a ociosidade, para a turbulência, para o abuso da força, para a
aversão a toda regra e a todo freio. O progresso nas artes e na rique-
za não foi mais possível nas cidades da Gália; permaneceram apenas
escombros para recolher e conservar. O trabalho desta conservação,
penhor de uma sociedade futura, foi, nesta época, tarefa comum do
clero e das classes média e inferior da população urbana.
Enquanto a barbárie ocupava ou se apossava de todo o cume da
ordem social e nos níveis intermediários a vida civil interrompia ou
declinava gradualmente, no grau mais baixo, no da servidão pessoal,
um movimento de melhoria, iniciado antes da queda do Império,
continuou e acentuou-se cada vez mais. O dogma da fraternidade

40
Histoire de la civilisation en France, pelo Sr. Guizot.

86
C O L E T Â N E A - A U G U S T I N T H I E R R Y

diante de Deus e de uma mesma redenção para todos os homens,


pregado pela Igreja aos fiéis de todas as raças, comoveu os corações e
impressionou os espíritos em favor dos escravos e disso saíram as
libertações mais numerosas e uma conduta mais humana por parte
dos senhores, Gauleses ou Germanos de origem. Além disso, estes
últimos tinham trazido de seus países, onde a vida era rude e sem
luxo, hábitos favoráveis a uma escravidão mitigada. O bárbaro rico
era servido por pessoas livres: pelos filhos dos seus próximos, pelos
filhos dos que estavam sob sua proteção e pelos filhos dos seus
amigos. A inclinação dos seus costumes nacionais, contrária a dos
costumes romanos, levava-o a confinar a escravidão fora de sua casa
e a estabelecê-la, como lavrador ou como artesão, em uma porção de
terra à qual ficava preso e da qual seguia o destino na herança e na
venda.41 A imitação dos costumes germânicos pelos nobres galo-
romanos fez passar muitos escravos domésticos da cidade para o
campo e do serviço doméstico para o trabalho no campo. Assim
colocados, como expressam os atos dos séculos VIII e IX 42, sua
condição tornou-se análoga, se bem que sempre inferior, de um
lado, à do lite germânico, de outro, à do colono romano.
A escravidão doméstica fazia da pessoa uma coisa e uma coisa
mobiliária. O escravo preso a uma porção de terra entrava, a partir
de então, na categoria dos imóveis. Ao mesmo tempo em que esta
última classe, a dos servos propriamente dito, aumentava às custas
da primeira, as classes dos colonos e dos lites deveriam aumentar
simultaneamente, por todos os acasos de ruína e de má sorte que,

41
Vejam a Exposição [Rapport] do Sr. Michelet no concurso de História que tem
por tema esta questão: Causes qui ont amené l’abolition de l’esclavage [Causas
que conduziram à abolição da escravidão] (Mémoires de l’Académie des sciences
morales et politiques, t. 3, p. 655). Vejam, também, as Dissertações [Dissertations]
reunidas pelo Sr. Pardessus em sua Recueil des textes de la loi salique [Compila-
ção de textos da lei sálica], dissertações 4 e 7.
42
Vejam a nova edição do Glossário [Glossaire] de Du Cange, pelo Sr. Henschel,
t. 2, p. 214, na palavra Casati.

87
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

em uma época de perturbações contínuas, afetavam a condição dos


homens livres. Além do mais, essas duas classes de pessoas que
distinguiam não apenas diferenças legais, mas ainda as diversidades
de origem, tenderam a aproximar-se uma da outra e a confundir
gradualmente suas características essenciais. Com a aproximação
ocorrida nas altas regiões sociais entre os Gauleses e Germanos, esse
foi o primeiro passo para a fusão das raças, que deveria, após cinco
séculos, produzir uma nova nação.
No próprio coração da sociedade bárbara, o que tinha primiti-
vamente feito sua força e sua dignidade, a classe dos pequenos
proprietários, diminuiu e terminou por extinguir-se, caindo debaixo
da vassalagem ou em uma dependência menos nobre do que, mais
ou menos, possuía a servidão verdadeira. A partir de um movimen-
to oposto, os escravos, domiciliados em alguma porção do domínio
e tornados imóveis, elevaram-se, graças a esta imobilidade de posição
e de uma tolerância que o tempo tornou um direito para eles, até
uma condição muito próxima do estado de lite e do estado de
colono, convertidos, eles próprios, sob nomes distintos, em quase
idênticos. Nela se fez o encontro dos homens livres caídos na
servidão com os escravos elevados para uma espécie de semiliber-
dade. Formava-se, deste modo, em toda a extensão da Gália, uma
massa de agricultores e de artesãos rurais cujo destino foi cada vez
mais semelhante, sem nunca ter sido uniforme, e um novo traba-
lho de criação social fez-se no campo, enquanto que as cidades
ficavam estacionárias ou declinavam cada vez mais. Esta revolução
lenta e imperceptível prende-se, na sua marcha gradual, aos gran-
des arroteamentos do solo executados na imensa extensão de
florestas e de terras vagas que, pelo fisco imperial, tinham passado
para o domínio dos reis francos e das quais uma grande parte foi
concedida à Igreja por estes reis na forma de propriedade e como
benefício aos seus fiéis.
A Igreja teve a iniciativa nesta retomada do movimento de vida
e de progresso; depositária das mais nobres ruínas da antiga civiliza-
ção. Ela não desdenhou em absoluto recolher, com a ciência e as

88
C O L E T Â N E A - A U G U S T I N T H I E R R Y

artes do espírito, a tradição dos procedimentos mecânicos e agríco-


las. Uma abadia não era somente um lugar de prece e meditação, era
também um asilo aberto contra a invasão da barbárie em todas as
suas formas. Este refúgio de livros e saber abrigava oficinas de todo
gênero e suas dependências formavam o que nos nossos dias cha-
mamos uma fazenda modelo 43; nela havia exemplos de indústria e
de atividade para o lavrador, para o operário e para o proprietário.
Foi, segundo toda aparência, a escola na qual se instruíram os
conquistadores a quem o interesse bem compreendido fez, nos seus
domínios, grandes empreendimentos de cultura ou de colonização,
duas coisas em que a primeira implicava, então, na segunda.
Em cada território extenso cuja exploração prosperava, as ca-
banas dos homens de trabalho, lites, colonos ou escravos, agrupa-
das segundo a necessidade ou a conveniência, cresciam em núme-
ro, povoavam-se cada vez mais, chegava a formar um lugarejo.
Quando estes lugarejos estavam situados em uma posição favorá-
vel, perto de um curso d’água, em algum entroncamento de rotas,
eles continuaram a crescer e tornaram-se aldeias onde todos os
ofícios necessários à vida comum eram exercidos em uma mesma
dependência. Logo, a construção de uma igreja erigia a aldeia em
paróquia e, em conseqüência, a nova paróquia entrava na catego-
ria das circunscrições rurais. 44 Aqueles que a habitavam, servos
ou semi-servos vinculados ao mesmo domínio, viam-se ligados
uns aos outros pela vizinhança e pela comunidade de interesses.
Daí nasceram, debaixo da autoridade do intendente unida à do
padre, esboços completamente espontâneos de organização mu-

43
Vejam a Memória [Mémoire] do Sr. Mignet sobre esta questão: Comment
l’ancienne Germain est entrée dans la société civilisée de l’Europe occidentale
[Como a antiga Germania entrou na sociedade civilizada da Europa ocidental].
Mémoires de l’Académie des sciences morales et politiques, t. 3, p. 673.
44
Vejam as três dissertações do Sr. Conde de Beugnot sobre as municipalités
rurales en France [Municipalidades rurais na França]. Revue Française, agosto,
setembro e outubro de 1838.

89
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

nicipal, na qual a Igreja recebeu o depósito de atos que, segundo


o direito romano, inscreviam-se nos registros da cidade. É deste
modo que, fora dos municípios, das aldeias ou dos burgos, onde
subsistiam, cada vez mais degradados, os restos do antigo estado
social, elementos de renovação formavam-se para o futuro, pela
valorização de grandes espaços de terra inculta, pela multiplica-
ção de colônias de agricultores e de artesãos e pela redução pro-
gressiva da escravidão antiga à servidão da gleba.
Esta redução, já bastante avançada no século IX, completou-se
no curso do X. Desaparece, então, a última classe da sociedade galo-
franca, a dos homens possuídos a título de móveis, vendidos, troca-
dos, transportados de um lugar para outro como todas as coisas
móveis. O escravo pertencia antes à terra do que ao homem; seu
serviço arbitrário foi trocado por rendas e por trabalhos fixados; ele
teve uma residência fixa e, por conseqüência, um direito de usufruto
do solo do qual dependia. 45 Foi o primeiro traço pelo qual se mar-
cou, na ordem civil, o selo original do mundo moderno; a palavra
servo tomou, então, uma acepção definida. Tornou-se o nome
genérico de uma condição mista de servidão e de liberdade, na qual
se confundiram o estado do colono e o estado do lite, dois nomes
que, no século X, mostraram-se cada vez mais raros e desapareceram
totalmente. Nesse século, no qual se concluiu todo o trabalho social
de quatro séculos decorridos desde a conquista franca, viu-se termi-
nar, através de uma grande revolução, a luta intestina entre os
costumes romanos e os germânicos. Estes prevaleceram definitiva-
mente e da sua vitória saiu o regime feudal, isto é, uma nova forma
de Estado, uma nova constituição da propriedade e da família, o
desmembramento da soberania e da jurisdição, todos os poderes
públicos transformados em privilégios dominiais, a idéia de nobreza

45
Vejam a Memória [Mémoire] dos Srs. Wallon e Yanoski sobre as causas que
conduziram à abolição da escravidão, trabalho premiado em 1839 pela Acadé-
mie des sciences morales et politiques.

90
C O L E T Â N E A - A U G U S T I N T H I E R R Y

vinculada ao exercício das armas e a de ignobilidade à indústria e ao


trabalho.
Por uma singular coincidência, o estabelecimento completo des-
se regime corresponde à época em que findou na Gália franca a
distinção das raças na qual desapareceram, entre Bárbaros e Romanos,
entre dominadores e súditos, todas as conseqüências legais da diver-
sidade de origem. O direito cessou de ser pessoal e tornou-se local;
os códigos germânicos e o próprio código romano foram substituí-
dos pelos costumes. Era o território, não a descendência, que distin-
guia os habitantes do solo gaulês. Enfim, em lugar de nacionalidades
diversas encontrava-se apenas uma população mista à qual o histori-
ador pôde dar, a partir de então, o nome de Francesa. Esta nova
sociedade, filha da precedente, distinguia-se da anterior fortemente
pela sua fisionomia e pelos seus instintos. Sua característica foi a de
tender ao fracionamento indefinido, sob o aspecto político, e à
simplificação, sob o aspecto social. De um lado, os senhores, Estados
formados no seio do Estado, multiplicaram-se; de outro, houve o
esforço contínuo, e de alguma maneira sistemática, para reduzir todas
as condições a duas espécies de pessoas; a primeira, livre, ociosa,
completamente militar, tendo, nos seus feudos, grandes ou peque-
nos, o direito de comando, de administração e de justiça; a segunda,
votada à obediência e ao trabalho, submetida mais ou menos estrei-
tamente, exceção à escravidão, aos laços de sujeição privada. Se as
coisas humanas chegassem sempre ao fim que marca sua tendência
lógica, todo o resto de vida civil seria extinto pela invasão de um
regime que tinha por modelo a servidão dominial. Mas este regime,
nascido nos campos sob a influência dos costumes germânicos,
encontrou nas aldeias, onde a tradição dos costumes romanos se
mantinha obscuramente, uma repugnância invencível e uma força
que, mais tarde, ela própria reagindo, explodiu em revoluções.
A longa crise social que teve por último termo o advento da
feudalidade transformou, em todas as coisas da ordem civil e políti-
ca, o desfrute precário em uso permanente, o poder delegado em
privilégio pessoal, o direito transitório em direito hereditário. Ocor-

91
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

reu isso com as honras e com os ofícios, assim como com as posses
de todo gênero; e o que sucedeu com a tenure nobre ocorreu, ao
mesmo tempo, com a tenure servil. Segundo a observação recente e
bastante judiciosa de um hábil crítico dos antigos documentos da
nossa história, “o servo sustentava contra o seu senhor a luta susten-
tada pelo vassalo contra seu senhor e pelos senhores contra o rei”. 46
Por maior que fosse a diferença de condições e de forças, houve,
desses diversos lados, uma mesma experiência, seguida de sucessos
análogos.
No século VIII, os servos da gleba podiam ser distribuídos arbi-
trariamente no domínio, transferidos de uma parte da terra à outra,
reunidos em uma cabana ou separados um do outro, segundo a
conveniência do senhor, sem respeito aos laços de parentesco, se
houvesse entre eles. Dois séculos mais tarde, encontramos todos
instalados em famílias; sua cabana e a terra que a circunda tornaram-
se, para eles, uma herança. Esta herança, gravada de foros e serviços,
não podia ser legada nem vendida, e a família serva tinha, por lei,
que se ligar, através do casamento, apenas às famílias de mesma
condição vinculadas ao mesmo domínio. Os direitos de mão-morta e
de formariage permaneceram com o senhor como garantia contra o
direito de propriedade deixado ao servo. Por mais odiosos que estes
direitos nos pareçam, tiveram não apenas sua razão legal, mas ainda
sua utilidade para o futuro progresso. Foi sob seu império que o
isolamento da servidão cessou no campo, substituído pelo espírito
de família e de associação, e à sombra do solar senhorial formaram-
se tribos agrícolas destinadas a se tornarem a base de grandes comu-
nidades civis.

46
Sr. Guérard, Prolegômenos [Prolégomènes] do cartulário da abadia de Saint-
Père de Chartres. Collection des cartulaires de France [Coleção dos cartulários
da França], t. 1, p. XI. – Vejam o grande trabalho do mesmo autor sobre a con-
dição das pessoas e das terras, desde as invasões dos Bárbaros até a instituição
das comunas, obra colocada em primeiro lugar da edição do Polyptique
d’Irminon, abade de Saint-Germain-des-Prés.

92
C O L E T Â N E A - A U G U S T I N T H I E R R Y

Lendo com atenção as cartas e outros documentos históricos,


pode-se acompanhar, do início do século IX ao fim do X, os resulta-
dos sucessivos da prescrição do solo nas mãos daqueles que o culti-
vam. Vê-se nascer o direito do servo sobre sua porção de terra,
depois se estender e tornar-se mais fixo a cada nova geração. A essa
mudança que melhora gradualmente o estado dos agricultores e dos
artesãos rurais junta-se, no mesmo período, a aceleração do movi-
mento que, após três séculos, modificou a face do campo pela
formação de novas aldeias, pelo crescimento das antigas e pela
construção de igrejas paroquiais, centros de novas circunscrições, ao
mesmo tempo religiosas e políticas. Causas exteriores e puramente
fortuitas contribuíram para esse progresso; as devastações dos Nor-
mandos e o temor que inspiravam fizeram rodear de muralhas e de
defesas as partes habitadas dos grandes domínios; de um lado, elas
multiplicaram os castelos; de outro, aumentaram bastante o número
de burgos fortificados.
A população trabalhadora e dependente aglomerou-se nestes lo-
cais de proteção cujos habitantes passaram, então, da vida rural
propriamente dita ao começo mais ou menos grosseiro de vida
urbana. O regime puramente dominial alterou-se pela reunião de
certas coisas com caráter de instituições públicas. Na preocupação
com a ordem [police] e no julgamento dos delitos de pouca impor-
tância, os aldeões serviram de auxiliares e de assessores do intenden-
te, e este oficial, escolhido entre eles e da mesma condição que eles,
tornou-se uma espécie de magistrado municipal. Deste modo, do
direito de propriedade, junto com o espírito de associação, saíram
nessas nascentes pequenas sociedades os primeiros elementos de
existência civil. O instinto do bem-estar, que nunca descansa, logo
os levou mais adiante. Desde o começo do século XI, os habitantes
dos burgos e das povoações, os vilões, como então se dizia, não se
contentavam mais com a condição de proprietários não-livres,
aspiravam a uma outra coisa; uma necessidade nova, a de aliviar-se
das obrigações onerosas, de libertar a terra e com esta as pessoas,

93
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

abriu-se, assim, diante deles uma nova carreira de trabalho e de


lutas.
Entre as noções que nesta época formavam o que podemos
chamar o fundamento das idéias sociais havia, a respeito da liberda-
de nobre, inteiramente constituída de privilégio, derivada da con-
quista e dos costumes germânicos, a idéia de uma outra liberdade,
conforme o direito natural, acessível a todos, igual para todos, para a
qual se poderia, segundo sua origem, ter dado o nome de liberdade
romana. Se esse nome estava fora de uso 47, a própria coisa, isto é, o
estado civil das pessoas que habitavam as antigas cidades municipais,
ainda não desaparecera absolutamente. Por mais ameaçada que ela
estivesse pela pressão sempre crescente das instituições feudais
encontramo-la nessas cidades, mais ou menos intacta, e, com ela,
como sinal da sua persistência, o antigo título de cidadão. É delas
que vinha, para as cidades de fundação recente, o exemplo da co-
munidade urbana, com suas regras e práticas, e é para elas que se
dirigia, para encontrar encorajamentos e esperança, a ambição dos
homens que, egressos da servidão, viam-se chegados, depois de
esforços, na metade do caminho para a liberdade.
Quais eram, no século X, nas cidades galo-francas, o poder e o
caráter do regime municipal? A solução desse problema é um dos
fundamentos da nossa história, mas não podemos ainda fornecê-la
precisa e completamente. Um ponto encontra-se colocado fora de
dúvida: é que a população urbana unia à sua liberdade civil imemo-
rável uma administração interna que, desde os tempos romanos e
por diferentes causas, sofrera grandes mudanças. Essas mudanças,
muito diversas e, por assim dizer, caprichosas quanto à forma,
tinham, no fundo, produzido, em todo lugar, resultados análogos. O
regime hereditário e aristocrático da cúria fora, através de uma

47
No século X, empregava-se a palavra liberdade apenas na linguagem do direito
eclesiástico, na qual as palavras Libertas romana significavam a imunidade por
meio da qual uma abadia, com seus domínios, estava subtraída da jurisdição
ordinária, e dependia somente da Igreja de Roma.

94
C O L E T Â N E A - A U G U S T I N T H I E R R Y

seqüência de alterações progressivas, transformado em governo


eletivo e, em diferentes graus, popular. A jurisdição dos oficiais
municipais ultrapassava em muito seus antigos limites; tinha adqui-
rido consideráveis acréscimos em matéria civil e criminal. Entre o
colégio de magistrados e o corpo inteiro dos cidadãos não se via
mais, existindo por direito, uma corporação intermediária. Todos os
poderes administrativos procediam unicamente da delegação pública
e sua duração encontrava-se, em geral, reduzida ao prazo de um ano.
Enfim, em conseqüência da alta influência que desde a época roma-
na os dignitários da Igreja possuíam nos negócios internos das
cidades, o Defensor, magistrado supremo, tinha caído na dependên-
cia do bispo; tornara-se, em relação a ele, um subalterno, ou tinha
desaparecido diante dele; revolução realizada sem nenhuma pertur-
bação, unicamente pela popularidade do episcopado, e cuja inclina-
ção natural tendia a constituir, em detrimento da liberdade civil e
política, uma espécie de autocracia municipal. 48
Com a introdução gradativa de uma certa confusão nas idéias
acerca da fonte da autoridade e da jurisdição urbana, cessou-se de
ver claramente de quem emanavam, se eram do povo ou do bispo.
Uma luta surda começou desde então entre os dois princípios da
municipalidade livre e da preponderância episcopal; depois, a feuda-
lidade veio e trabalhou com toda a sua força em proveito deste
último princípio. Ela conferiu uma nova forma ao poder temporal
dos bispos; aplicou à patronagem cívica, degenerada em quase-
soberania, as instituições e todos os privilégios da senhoria domini-
al. O governo dos municípios, a despeito da sua origem, modelou-se
gradualmente no regime das cortes e dos castelos. Os cidadãos

48
A qualificação de senhor, Dominus, Domnus, foi dada aos bispos nas suas
cidades bem antes dos tempos feudais. Um ato passado em 804 diante da cúria
de Angers, apresenta como sinônimos os títulos de Defensor e de Vice-Domus;
lê-se de início: Adstante vir laudabile Wifredo defensore, vel cuncta curia...e no
final Signum Wifredo vice-domo. Veja Martène, Amplissima collectio, p. 58 -
59.

95
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

notáveis tornaram-se vassalos hereditários da igreja catedral e, a esse


título, oprimiam a municipalidade ou absorviam todos os seus
poderes. As corporações de artes e de ofícios, carregadas pelo abuso
de prestações e corvéias, caíram em uma dependência quase servil.
Assim, a condição feita aos homens de trabalho nos domínios dos
ricos e nos novos burgos, que uma concessão expressa não tinha
libertado, tendia, pelo próprio curso das coisas, a tornar-se universal,
a se impor aos habitantes, livres até então, das antigas cidades muni-
cipais.
Existiram cidades onde a senhoria do bispo estabeleceu-se
sem partilha e permaneceu dominante; houve aquelas nas quais
o poder feudal foi duplo e dividiu-se entre a força eclesiástica e
a do oficial real, conde ou visconde. Nas cidades que foram o
teatro mais ou menos agitado desta rivalidade, o bispo, sentindo
a necessidade de uma aliança política, afastou-se menos da
municipalidade livre ou inclinou-se em sua direção. Ele empres-
tou-lhe seu apoio contra as usurpações do poder laico; fez-se
conservador do princípio eletivo e esse concurso, se não deteve
a decadência municipal, tornou-se, mais tarde, um meio de
reação civil e de renovação constitucional. O século X e o se-
guinte marcam, para a população urbana, o último termo de
declínio e de opressão; ela era, se não a classe mais infeliz, ao
menos a que devia sofrer mais impacientemente o novo estado
social, pois nunca tinha sido escrava nem serva, possuía liber-
dades hereditárias e o orgulho que lhes davam as recordações. A
ruína dessas instituições, que em nenhuma parte foi completa,
não ocorreu absolutamente sem resistência; e quando examina-
mos minuciosamente em todos os aspectos os documentos da
nossa história encontramos neles, antes do século XII, o traço
de uma luta burguesa contra os poderes feudais. Foi durante
esta era de perturbações e de retorno a uma espécie de barbárie
que ocorreu a fusão, em uma mesma ordem e com um mesmo
espírito, da porção indígena com a porção germânica dos habi-
tantes das cidades gaulesas, e que se formou, entre eles, um

96
C O L E T Â N E A - A U G U S T I N T H I E R R Y

direito comum, costumes municipais, compostos de diferentes


graus, segundo zonas do território, de elementos de tradição
romana e de escombros dos antigos códigos bárbaros.
Esta crise no estado da sociedade urbana, que permanece vi-
va no mundo romano, não se limitou à Gália; ocorreu na Itália
com resultados bem melhores para as cidades deste país, maio-
res, mais ricas, mais próximas umas da outras. É nela que, na
última metade do século XI, graças às perturbações provocadas
pela disputa entre o sacerdócio e o império, explodiu o movi-
mento revolucionário que, gradualmente ou por reação, deu
origem, sob novas formas e com um novo grau de energia, ao
espírito de independência municipal. Sobre fundamentos mais
ou menos modificados de suas antigas instituições romanas, as
cidades da Toscana e da Lombardia construíram um modelo de
organização política no qual o maior desenvolvimento possível
da liberdade civil encontrou-se junto ao direito absoluto de
jurisdição, à potência militar, a todas as prerrogativas das se-
nhorias feudais. Elas criaram magistrados ao mesmo tempo
juizes, administradores e generais; tiveram assembléias urbanas
que decretavam a guerra e a paz, seus chefes eletivos assumiram
o nome de Cônsules. 49
O movimento que desabrochava e propagava essas constitu-
ições republicanas não tardou a penetrar na Gália, pelos Alpes e
pelo mar. Desde o começo do século XII, vê-se a nova forma de
governo municipal, o consulado, aparecer progressivamente nas
cidades que tinham maiores relações comerciais com as cidades
da Itália, ou mais afinidades com elas pelos costumes, pelo
estado material, por todas as condições da vida civil e política.
Das cidades principais onde ela se estabeleceu, fosse pelo em-
prego da força ou pelo bom acordo entre os cidadãos e o se-

49
Vejam as Considérations sur l’Histoire de France [Considerações sobre a
História da França], no início das Récits des temps mérovingiens [Narrativas dos
tempos merovíngeos]. Cap. 6.

97
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

nhor, a constituição consular estendeu-se sucessivamente às


cidades de menos importância. Esta espécie de propaganda
abarcou o terço sul da França atual, enquanto que, em uma
região distinta, no norte e no centro do país, o mesmo impulso
dos espíritos, as mesmas causas sociais produziram efeitos com-
pletamente diferentes.
Nos extremos do território, nos pontos onde a influência i-
taliana não podia atingir, um segundo tipo de constituição,
também novo, também enérgico, mas menos perfeito do que o
outro, a comuna jurada, nasceu espontaneamente pela aplicação
feita ao regime municipal de um gênero de associação cuja
prática derivava dos costumes germânicos. 50 Apropriada ao
estado social, ao grau de civilização e às tradições mistas das
cidades da Gália setentrional, esta forma de municipalidade
livre propagou-se do norte para o sul, ao mesmo tempo em que
a organização consular propagava-se do sul para o norte. Nos
dois lados, malgrado a diferença dos procedimentos e dos resul-
tados, o espírito foi o mesmo, espírito de ação, de devotamento
cívico e de inspiração criadora. As duas grandes formas de
constituição municipal, a comuna propriamente dita 51 e a cida-
de regida por cônsules, tiveram igualmente por princípio a
insurreição mais ou menos violenta, mais ou menos contida, e
por objetivo a igualdade de direitos e a reabilitação do trabalho.
Através de uma e de outra, a existência urbana foi não apenas
restaurada como renovada. As cidades adquiriram a garantia de
um duplo estado de liberdade; elas tornaram-se pessoas jurídicas

50
Vejam as Considérations sur l’Histoire de France, p. 164 e seguintes, 1852.
Cap. 6.
51
Esta palavra não tinha, absolutamente, na Idade Média, a generalidade de
sentido que lhe damos nos nossos dias; ela designava, de uma maneira especial,
a municipalidade constituída por associação e para segurança mútua sob a fé de
um juramento. Vejam as Considérations sur l’Histoire de France, p. 174 e se-
guintes. Cap. 6.

98
C O L E T Â N E A - A U G U S T I N T H I E R R Y

segundo o antigo direito civil e segundo o direito feudal; isto é,


não tiveram apenas a faculdade de gerir os interesses de vizi-
nhança [voisinage], a de possuir e de alienar, mas obtiveram de
direito, no interior das suas muralhas, a soberania que os se-
nhores exerciam em seus domínios.
De início, as duas correntes da revolução municipal que
caminhavam uma em direção à outra não se encontraram. Entre
elas houve uma zona intermediária na qual o abalo fez-se sentir
sem ir até a reforma completa, à renovação constitucional. Na
parte central da Gália, antigas municipalidades, cidades consi-
deráveis, libertaram-se do jugo senhorial por meio de esforços
sucessivos que lhes deram uma administração mais ou menos
livre, mais ou menos democrática, mas que nada tinham nem da
comuna jurada das cidades do norte, nem do consulado das
cidades do Sul. Algumas reproduziram, no número de seus
magistrados eleitos, combinações análogas às que tinham apre-
sentado o regime das cúrias galo-romanas; outras simulavam, na
sua constituição, de um modo uniforme, o governo de quatro
pessoas escolhidas, cada ano, pela totalidade dos cidadãos,
exercendo o poder administrativo e judiciário sozinhas ou com
a assistência de um certo número de notáveis. 52 Havia nelas
garantia de liberdade civil e de liberdade política; mas ainda que
essas cidades, menos audaciosas na inovação, tivessem conse-
guido desembaraçar-se de seus entraves, o princípio de eleição
popular e a independência municipal permaneceram nelas, em
muitos aspectos, fracos e indecisos; o vigor e o brilho foram,
para as constituições novas, para o regime consular e para a

52
Os dez notáveis [prud’hommes] de Orléans e de Chartres parecem uma reminis-
cência do papel que desempenhavam os dez primeiros senadores, Decemprimi,
Decaproti, na municipalidade romana. O governo de quatro notáveis, que foi o
de Bourges e de Tours, exerceu uma grande proteção em uma região de territó-
rio que ia do leste ao oeste na Touraine, no Berry, no Nivernais, na Bourgogne
e no Frenche-Comté.

99
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

comuna jurada, suprema expressão dos instintos liberais da


época.
Esta revolução completa, da qual escaparam as antigas cida-
des municipais, penetrou, em uma ou outra de suas duas for-
mas, em muitas cidades de fundação posterior aos tempos
romanos. Algumas vezes, quando a cidade se encontrava ao lado
de um grande burgo nascido sob seus muros, ocorreu que, neste
burgo e somente nele, estabeleceram-se ou o consulado, ou o
regime de associação jurada. 53 Então, como sempre, o espírito
de renovação somente soprou onde desejou. Sua marcha pare-
ceu regulada em certos pontos e, em outros, caprichosa; aqui,
ele encontrou facilidades inesperadas; lá, obstáculos inesperados
a detiveram. Os destinos foram diversos e o sucesso desigual na
grande luta dos burgueses contra os senhores; e não apenas a
soma das garantias arrancadas à força ou obtidas através de
acordo não foi absolutamente a mesma em todo lugar, mas até
nas mesmas formas políticas houve, para as cidades, diferentes
graus de liberdade e de independência. Pode-se dizer que a série
de revoluções municipais do século XII ofereceu alguma coisa
de análogo ao movimento que, em nossos dias, propagou, em
tantos países, o regime constitucional. 54 A imitação desempe-
nhou neles um papel considerável; a guerra e a paz, as ameaças e
as conciliações, o interesse e a generosidade tomaram parte no
acontecimento definitivo. Uns, ao primeiro impulso, chegaram
ao fim, outros, muito próximos de o atingirem, viram-se levados
para trás. Ocorreram grandes vitórias e grandes descontenta-
mentos e, freqüentemente, os mais nobres esforços, uma vonta-

53
Podemos citar, para o primeiro caso, Périgueux e o Puy-Saint-Front; para o
segundo, Tours e Châteauneuf.
54
Vejam as Lettres sur l’Histoire de France [Cartas sobre a História da França],
carta XIV.

100
C O L E T Â N E A - A U G U S T I N T H I E R R Y

de ardente e devotada desenvolveram-se sem nenhum fruto ou


com pouca coisa. 55
Acima da diversidade quase infinita das mudanças que o-
correram no século XII, no estado das cidades, grandes ou
pequenas, antigas ou recentes, paira um mesmo pensamento,
por assim dizer, o de devolver ao regime público da cidade tudo
o que tinha caído pelo abuso ou vivia, pelo costume, sob o
regime privado do domínio. Este pensamento fecundo não se
deixou deter nos limites de uma revolução municipal; nele
estava o germe de uma série de revoluções destinadas a destruir
completamente a sociedade feudal e a fazê-la desaparecer até
seus menores vestígios. Estamos aqui na origem do mundo
social dos tempos modernos; é nas cidades libertadas, ou antes,
regeneradas, que apareceram, mediante uma grande variedade
de forças, mais ou menos livres, mais ou menos perfeitas, as
primeiras manifestações do seu caráter. Nela se desenvolveram e
se conservaram isoladamente instituições que deveriam, um dia,
cessar de ser locais e entrar no direito político ou no direito
civil do país. Pelas cartas das comunas, pelas cartas de costumes
e pelos estatutos municipais a lei escrita retomou seu império.
Administração, cuja prática tinha-se perdido, renasceu nas
cidades, e suas experiências de todos os gêneros, que se repetem
cada dia em uma multidão de lugares distintos, servem de
exemplo e de lição ao Estado. A burguesia, nação nova cujos
costumes eram a igualdade civil e a independência no trabalho,
elevou-se entre a nobreza e a servidão e destruiu, para sempre, a
dualidade social dos primeiros tempos feudais. Seus instintos
inovadores, sua atividade, os capitais que acumulou, são uma
força que reagiu de mil maneiras contra a potência dos possui-
dores do solo e, como na origem de toda civilização, o movi-
mento recomeçou através da via urbana.

55
Vejam a Histoire de la commune de Vézelay, Lettres sur l’Histoire de France,
cartas XXII, XXIII e XXIV.

101
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

A ação das cidades sobre o campo constitui-se em um dos


grandes fatos sociais dos séculos XII e XIII. A liberdade munici-
pal, em todos os seus graus, procedeu umas das outras, seja pela
influência do exemplo e pelo contágio das idéias, seja pelo
efeito de um patronato político ou de uma agregação territorial.
Não apenas os burgos populosos aspiravam às franquias e aos
privilégios das cidades fechadas, mas, em alguns lugares do
norte, viu-se a nova constituição urbana, a comuna jurada,
juntar-se, mais ou menos, às simples aldeias ou às associações de
habitantes de várias aldeias. 56 Os princípios do direito natural
que, junto às lembranças da antiga liberdade civil, inspiraram
nas classes burguesas sua grande revolução, desceram às classes
agrícolas, e nelas redobraram, pelo tormento do espírito, as
opressões da servidão e a aversão à dependência dominial. Não
tendo, até então, outra perspectiva que a de serem aliviados dos
serviços mais onerosos, homem por homem, família por família,
os camponeses elevaram-se às idéias e às vontades de uma outra
ordem. Eles chegaram a exigir sua libertação por senhorias e por
territórios e a se congregarem para obtê-la. Esse grito de apelo
ao sentimento de igualdade original (nós somos homens como
eles), que fez-se ouvir nos lugarejos e retinir nos ouvidos dos
senhores, esclarecia-os, ameaçando-os. Traços de furor cego e de
tocante moderação assinalaram esta nova crise na condição do
povo dos campos; uma multidão de servos, desertando das suas
propriedades, entregavam-se, em bandos, à vida errante e aos
saques; outros, calmos e resolutos, negociavam sua liberdade,
oferecendo, em troca dela, relatam as cartas, o preço que se
queria dar. O temor das resistências perigosas, o espírito de
justiça e o interesse levaram os senhores da terra a transigir,
através de tratados com dinheiro, os seus direitos de todo o

56
Vejam as Cartas de Felipe Augusto, dadas sob as datas de 1184, 1185, 1186,
1196, 1205, 1216 e 1221. (Recueil des Ordonn. des rois de France, t. 11, p.
231, 237, 245, 277, 291, 308 e 315).

102
C O L E T Â N E A - A U G U S T I N T H I E R R Y

gênero e o seu poder imemorial. Mas essas concessões, por


maiores que fossem, não podiam produzir mudança completa
nem geral. Os obstáculos eram imensos, era todo o regime de
propriedade fundiária para destruir e para substituir. Não
houve, absolutamente, a esse respeito, revolução rápida e simpá-
tica como o que ocorrera com o renascimento das cidades
municipais; a obra foi longa, não se necessitou menos de seis
séculos para realizá-la.

103
PROSPER DE BARANTE
(1782-1866)

BARANTE, Prosper de. Prefácio. In:____. Des Communes et de


l’Aristocratie. Paris: Ladvocat, Libraire, 1829.

A principal finalidade das sociedades comunais francesas foi cri-


ar uma garantia que os soberanos não podiam conceder aos seus
súditos. Nossos reis, impotentes para defender as comunas contra a
tirania dos senhores, autorizaram as corporações de burgueses a
buscarem nelas próprias uma proteção contra a desordem e a opres-
são; outras vezes, os direitos das comunas foram reconhecidos como
existentes antes da reunião das províncias à França.
Conforme as idéias desses tempos, as verdadeiras comunas foram
constituídas em direitos políticos; pois, não bastava a uma cidade ter
seus costumes, sua justiça, a eleição de seus magistrados, a repartição
de suas taxas, para ser uma comuna: enquanto ela desfrutasse dessas
vantagens apenas sob a autoridade real ela vivia por graça e não por
direito. Ela deveria, além do mais, ser reconhecida e autorizada a se
formar em associação independente; deveria tomar lugar entre os
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

membros desta federação feudal, da qual o rei era o chefe; ela era,
por assim dizer, enfeudada nela mesma. Era necessário, então, não
ser menos do que soberana para ser livre.
Era, pois, nas instituições locais que os cidadãos iam procurar
todos os benefícios que, nas idéias atuais, consideram-se como o
dever, o objetivo especial do governo das nações. À medida que o
poder do monarca adquiriu uma força maior, sua intervenção direta
tornou-se mais eficaz para conceder a boa ordem aos povos. Ela
podia, cada vez melhor, defender as comunas contra os senhores.
Elas não tinham mais necessidade de recorrer às suas próprias
forças, como o primitivo título da sua instituição as autorizava. Por
outro lado, as cidades da França não tinham absolutamente partici-
pado deste grande movimento de comércio que enriquecera e
tornara poderosas as comunas de Flandres. Elas nunca adquiriram a
energia vigorosa das repúblicas italianas. Isoladas uma das outras,
pobres e fracas, não souberam, sobretudo nas províncias do norte,
constituir-se com solidez. Elas não eram temidas exteriormente; não
sabiam dar-se à boa ordem interiormente. De tal sorte que a autori-
dade real, após ter lutado durante os séculos XII e XIII contra os
senhores, começou, a partir do XIV, a se encontrar em conflito com
as comunas, este outro membro da hierarquia feudal. Elas pouco
fizeram para se defender e, em quase toda parte, a porção rica da
burguesia, os bons e sábios burgueses, foi levada a aceitar a proteção
da autoridade real, que a preservava das violências dos senhores e da
turbulência da populaça. Essas relações da Coroa com esta classe da
nação, que se poderia chamar a classe municipal, formaram o traço
característico da história da França. Nota-se aí uma espécie de confi-
ança que não se pode taxar de imprudência, pois era necessária; nem
de servilidade, pois com ela subsistiam sempre um livre julgamento e
uma linguagem franca. A verdade é que as liberdades comunais
desapareceram na França, tanto nas cidades como nas províncias.

106
Anexos
ANEXO I
TEXTO FEIRA, DE TURGOT

TURGOT, Anne-Robert Jacques. Feira. In:____. Écrits éco-


nomiques. Paris: Calmann-Levy, 1970. p. 63-69. 1

Feiras e mercados

A palavra feira, que vem de forum, lugar público, foi, em sua


origem, sinônimo de mercado e, sob certos aspectos, ainda o é. Uma
e outra significam uma afluência de mercadores e de compradores a
lugares e em tempos determinados. Mas a palavra feira parece dar
idéia de uma afluência mais numerosa, mais solene e, por conse-
guinte, mais rara. Essa diferença, que impressiona à primeira vista,
parece ser determinante no emprego dessas duas palavras. Ela pró-
pria, entretanto, provém de uma outra diferença mais oculta e, por

1
O artigo Feira é um verbete da Encyclopédie, escrito provavelmente em 1757.
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

assim dizer, mais radical entre essas duas coisas. Nós iremos desen-
volvê-la.
É evidente que os mercadores e os compradores não podem se
reunir, em certas épocas e em certos lugares, sem um atrativo, um
interesse que compense ou mesmo ultrapasse os gastos de viagem e
de transporte dos gêneros ou das mercadorias. Sem esse atrativo
cada um permaneceria em sua casa: em compensação, quanto
maior ele for, mais os gêneros suportarão longos transportes, mais
a afluência de mercadores e de compradores será numerosa e
solene, e mais o distrito, que é o centro dessa afluência, pode se
desenvolver. O curso natural do comércio basta para gerar essa
afluência e para aumentá-la até um certo ponto. A concorrência
dos vendedores limita o preço dos gêneros e o preço dos gêneros,
por sua vez, o número de vendedores. Com efeito, dado que todo
comércio tem que sustentar aquele que o empreende é indispensá-
vel que o número de vendas compense o mercador da modicidade
dos lucros que ele realiza sobre cada uma das vendas e que, por
conseguinte, o número de mercadores seja proporcional ao núme-
ro atual de consumidores, de modo que cada mercador correspon-
da a um certo número daqueles. Isso posto, suponhamos que o
preço de um gênero fosse tal que, a fim de manter o comércio,
fosse necessário vendê-lo para o consumo de trezentas famílias. É
evidente que três aldeias, em que cada uma delas não tivesse mais
do que cem famílias, só poderão manter um único mercador desse
gênero. Esse mercador provável se estabelecerá naquela das três
aldeias onde o maior número de compradores poderá se reunir
mais comodamente ou com menos despesas porque essa diminui-
ção de custos fará com que se prefira o mercador estabelecido
nessa aldeia àqueles que pretendessem se estabelecer em uma das
outras duas. Inúmeras espécies de gêneros estariam no mesmo caso
e os mercadores de cada um desses gêneros se reuniriam no mesmo
lugar exatamente pela diminuição dos custos e porque quem tem
necessidade de duas espécies de gêneros preferirá fazer apenas uma
viagem para obtê-las ao invés de duas: de fato, é como se ele pagas-

110
I - T E X T O F E I R A , D E T U R G O T

se mais barato por cada mercadoria. O local, tornado considerável


exatamente pela congregação de diferentes comerciantes, cresce
cada vez mais, porque todos os artesãos que o gênero de seu traba-
lho não retêm no campo e todos os homens a quem sua riqueza
permite serem ociosos 2, nele vão buscar as comodidades da vida. A
concorrência dos compradores atrai os mercadores na esperança de
vender; estabelecem-se vários para o mesmo gênero. A concorrên-
cia dos mercadores atrai os compradores na esperança do baixo
preço do gênero provocado pela concorrência que compense as
desvantagens da distância para os compradores distantes. Além do
mais, o costume e a força do hábito aliam-se à atração dos bons
preços. Deste modo, formam-se naturalmente diferentes centros de
comércio ou mercados, aos quais afluem cantões ou distritos mais
ou menos extensos, segundo a natureza dos gêneros, a facilidade
maior ou menor das comunicações e a maior ou menor população.
Essa é, de passagem, a primeira e a mais comum origem dos pe-
quenos burgos e das cidades.
A mesma razão de comodidade que determina a afluência dos
mercadores e dos compradores em certos locais determina também
que a afluência ocorra em certos dias, quando os gêneros estão tão
baratos que compensam longos transportes, e que o cantão não é
suficientemente povoado para proporcionar uma afluência numero-
sa e diária. Esses dias se fixam por uma espécie de convenção tácita e
a menor circunstância basta para isto. O número de dias de viagem
entre os pontos mais consideráveis dos arredores, combinado com
certas épocas que determinam a saída dos viajantes como, por
exemplo, a aproximação de certas festas, certas letras de câmbio
[échéances d’usage] usadas nos pagamentos, todas as espécies de
solenidades periódicas, enfim, tudo aquilo que aglutina, em certos
dias, um certo número de homens, torna-se o princípio de estabele-

2
Ocioso, nesse caso, não tem um sentido pejorativo ou crítico. Refere-se à classe
de homens que, por sua riqueza, não precisam desenvolver nenhuma atividade
para ganhar a vida.

111
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

cimento de um mercado nesses mesmos dias, já que os mercadores


têm sempre interesse em procurar os compradores e estes aqueles,
reciprocamente.
Mas basta apenas uma distância bastante medíocre para que esse
interesse e o baixo preço provocado pela concorrência sejam contra-
balançados pelos custos de viagem e de transporte dos gêneros. Não
é, portanto, ao curso natural de um comércio animado pela liberda-
de que devemos atribuir essas feiras brilhantes em que as produções
de parte da Europa se reúnem com grande custo e que parecem ser
o ponto de encontro das nações. O lucro capaz de compensar esses
custos exorbitantes não advém absolutamente da natureza das
coisas, mas resulta de privilégios e franquias concedidos ao comércio
em certos locais e em certas épocas, enquanto que, em outras partes,
é oprimido por taxas e direitos. Não é de surpreender que o estado
de opressão e de vexação habituais, sob o qual o comércio padece há
tanto tempo por toda a Europa, tenha determinado o intenso
deslocamento para os locais em que lhe ofereciam um pouco mais
de liberdade. Foi assim que os príncipes, concedendo isenções de
direitos, criaram tantas feiras nas diferentes partes da Europa e é
evidente que essas feiras serão tanto mais consideráveis quanto mais
o comércio nos tempos comuns estiver sobrecarregado de direitos.
Uma feira e um mercado são, então, uma e outro, um ponto de
afluência de mercadores e de compradores em locais e períodos
preestabelecidos; mas, para os mercados, é o interesse recíproco que
os reúne, e, para as feiras, é o desejo de desfrutar de certos privilé-
gios: do que segue que a afluência deve ser bem mais numerosa e
bem mais solene nas feiras. Ainda que o curso natural do comércio
baste para estabelecer os mercados ocorre, em conseqüência desse
princípio infeliz que, em quase todos os governos, durante tanto
tempo, infectou a administração do comércio, ou seja, a mania de
querer tudo conduzir, tudo regular e nunca perguntar aos homens
sobre seu próprio interesse; deu-se, repito, que, para estabelecer os

112
I - T E X T O F E I R A , D E T U R G O T

mercados, foi preciso fazer intervir a polícia. 3 Limitava-se o número


de mercados com o pretexto de impedir que eles se prejudicassem
uns aos outros; proibia-se a venda de certas mercadorias em qual-
quer outra parte a não ser em certos locais designados, fosse para a
comodidade dos comissários encarregados de receber as taxas com as
quais elas estavam gravadas, fosse porque se quis submetê-las às
formalidades de visita e de marca [marque], e que não era possível
estabelecer escritórios em toda a parte. É preciso aproveitar todas as
ocasiões para combater esse sistema fatal à indústria; isso se encon-
trará mais de uma vez na Encyclopédie. As feiras mais célebres são, na
França, as de Lyon, de Bordeaux, de Guibray, de Beaucaire etc.; na
Alemanha, as de Leipizig, de Francfort, etc. Meu objetivo não é
absolutamente fazer aqui uma enumeração, expor em detalhes os
privilégios concedidos por diferentes soberanos, seja às feiras em
geral, seja a tal ou qual feira em particular. Limitar-me-ei a algumas
reflexões contra a ilusão bastante comum, que leva algumas pessoas
a tomar a grandeza e a extensão do comércio de certas feiras como
uma prova da grandeza do comércio de um Estado.
Sem dúvida, uma feira pode enriquecer o local onde ela ocorre e
fazer a grandeza de uma cidade em particular e, enquanto toda a
Europa padecia com os múltiplos entraves do governo feudal, en-
quanto cada aldeia, por assim dizer, formava uma soberania indepen-
dente, enquanto os senhores, encerrados em seus castelos, viam no
comércio apenas uma ocasião para aumentar suas rendas, submeten-
do a contribuições e peagens exorbitantes a todos aqueles a quem a
necessidade obrigava a passar pelas suas terras; não é de surpreender
que aqueles que, primeiro, foram suficientemente esclarecidos para
perceberem que relaxando um pouco o rigor dos seus direitos seriam
mais do que compensados pelo aumento do comércio e do consumo;
estes logo viram seus locais de residência enriquecerem, crescerem e
embelezarem-se. Não resta dúvida de que, para se subtraírem dos

3
Polícia (sentido arcaico da palavra): intervenção do Estado.

113
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

impostos cobrados por seus vassalos, os reis e os imperadores aumen-


taram consideravelmente as mercadorias destinadas às feiras de certas
cidades, o que fez com que essas cidades se tornassem necessariamen-
te o centro de um grande comércio e assistissem ao aumento do seu
poder, juntamente com suas riquezas. Mas, desde que todos esses
poderes locais se reuniram para formar apenas um grande Estado, sob
um único príncipe, se a negligência, a força do hábito, a dificuldade
de reformar os abusos, mesmo quando se quer, e é difícil querê-lo,
obrigaram a manter os mesmos obstáculos, os mesmos direitos locais
e os mesmos privilégios que haviam sido estabelecidos quando cada
província e cada cidade obedeciam a diferentes soberanos, não é
estranho que esse efeito do acaso tivesse sido não somente louvado,
mas imitado como a obra de uma política sadia? Não é estranho que
com tão boas intenções e com o objetivo de tornar o comércio flores-
cente se tivessem, mesmo assim, instituído novas feiras, se tivessem
ainda aumentado os privilégios e as isenções de certas cidades, que se
tivessem mesmo impedido certos ramos do comércio de se estabelece-
rem em províncias pobres, temendo que elas prejudicassem outras
cidades enriquecidas há muito tempo por esses mesmos ramos do
comércio? Que diferença faz que seja Pedro ou Paulo, o Maine ou a
Bretanha, que fabriquem esta ou aquela mercadoria, se o Estado se
enriquece e os franceses sobrevivem? Que importa que tal ou qual
tecido seja vendido em Beaucaire ou onde ele é fabricado, se o operá-
rio recebe o preço de seu trabalho? Uma massa enorme de mercadori-
as reunidas em um local, à vista de todos, chamará a atenção dos
políticos superficiais. As águas reunidas artificialmente nas bacias e
canais distraem o viajante ao exibirem um luxo frívolo. Mas as águas
que as chuvas distribuem uniformemente na superfície dos campos,
que a declividade do terreno dirige e distribui em todos os valezinhos
para lá formar as fontes, levam, para toda parte, a riqueza e a fecundi-
dade. Que importa que se faça um grande comércio numa determi-
nada cidade e em um determinado momento se esse comércio mo-
mentâneo é grande somente pelas mesmas causas que oprimem o
comércio e que tendem a diminuí-lo em qualquer outra época e em

114
I - T E X T O F E I R A , D E T U R G O T

toda a extensão do país? “É necessário”, diz o magistrado cidadão a


quem nós devemos a tradução de Child e a quem a França deverá,
talvez um dia, a destruição dos obstáculos que se têm colocado ao
progresso do comércio desejando favorecê-lo,

é necessário jejuar o ano todo para comer regaladamente em certos


dias? Na Holanda não há absolutamente feiras; mas toda a extensão
do país e o ano todo não formam por assim dizer senão uma feira
perpétua, porque o comércio nela é sempre e por toda a parte
igualmente florescente.

É costume dizer-se que

o Estado não pode viver sem rendas; é indispensável, para prover as


suas necessidades, sobrecarregar as mercadorias com diferentes
impostos. Entretanto, não é menos necessário facilitar o escoamento
de nossas produções, sobretudo para o estrangeiro, o que não se
consegue fazer sem baixar o preço tanto quanto possível. Ora, pode-se
conciliar esses dois objetivos indicando os locais e épocas de franquia,
quando o baixo preço das mercadorias atrai o estrangeiro e provoca
um consumo extraordinário, enquanto que o consumo habitual e
necessário é suficiente para prover as rendas públicas. O próprio
desejo de aproveitar esses momentos de isenção provoca, nos
vendedores e compradores, um alvoroço que a solenidade dessas
grandes feiras faz aumentar ainda mais por uma espécie de sedução,
de que resulta um aumento na massa total do comércio.

Esses são os pretextos que se alegam para defender a utilidade das


grandes feiras. Mas não é difícil de se convencer que se pode, mediante
disposições gerais e favorecendo igualmente todos os membros do
Estado, conciliar com mais vantagem os dois objetivos que o governo
pode se propor. Com efeito, já que o príncipe consente em perder uma
parte de seus direitos e em sacrificá-los aos interesses do comércio, nada
impede que, tornando uniforme todos os direitos, ele diminua da
totalidade a mesma soma que ele consente em perder. O objetivo de
abolir os impostos na venda ao estrangeiro, mantendo-os apenas no
mercado interno, será bem mais fácil de lograr isentando de direitos

115
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

todas as mercadorias que saem; pois não se pode negar que nossas
feiras não suprem a uma grande parte do nosso consumo. Nesse caso, o
consumo extraordinário que se faz nas épocas de feiras diminuiria
muito; mas é evidente que a moderação dos direitos, em épocas nor-
mais, tornaria o consumo geral bem mais abundante; com a diferença
que, no caso do direito uniforme, mais moderado, o comércio ganha
tudo aquilo que o príncipe quer lhe sacrificar: enquanto que, no caso
do imposto geral mais alto, com isenções locais e momentâneas, o rei
pode sacrificar muito, e o comércio não ganhar quase nada, ou, o que é
a mesma coisa, os gêneros ou as mercadorias podem baixar de preço
muito menos que os direitos diminuem, e isso porque é necessário
subtrair, da vantagem que dá essa diminuição, os gastos do transporte
dos gêneros e das mercadorias ao local designado para a feira, a mudan-
ça de residência, os aluguéis dos locais de feira encarecidos ainda mais
pelo monopólio dos proprietários, enfim, o risco de não vender, num
espaço de tempo bastante curto, e de ter feito uma longa viagem sem
resultado: ora, é necessário sempre que a mercadoria pague todos esses
gastos e esses riscos. Não é, então, verdade que o sacrifício dos direitos
do príncipe seja tão útil ao comércio pelas isenções momentâneas e
locais quanto o seria por uma leve moderação na totalidade dos direi-
tos; como também não é verdade que o consumo extraordinário au-
mente tanto com a isenção particular quanto o consumo diário diminui
pela sobrecarga habitual. Acrescentemos que não há isenção particular
que não dê lugar a fraudes, a novas opressões, ao aumento do número
de fiscais e de inspetores para impedir essas mesmas fraudes, que não dê
lugar às multas para puni-las, além da perda de dinheiro e de homens
pelo Estado.
Concluímos que as grandes feiras nunca são tão úteis quanto é
nociva a opressão que elas supõem, e que, ao invés de constituírem a
prova do estado florescente do comércio, pelo contrário, elas somen-
te podem existir nos Estados nos quais o comércio é oprimido,
sobrecarregado de impostos e, por conseqüência, medíocre.

116
ANEXO II
DOCUMENTOS

DOCUMENTO 1 : Os privilégios comerciais das novas cidades

Concedemos e transmitimos certos privilégios pelos quais fica


patente, inter alia (entre outras coisas), que nunca, por qualquer
motivo ou ocasião que seja, fixaremos, manteremos, multaremos ou
imporemos, nem seremos causa ou toleraremos que sejam fixados,
mantidos, estabelecidos ou impostos na referida cidade de Abbeville,
ou nas demais cidades do Condado de Ponthieu, quaisquer imposi-
ções, ajudas ou outros subsídios de qualquer natureza, se não se
destinarem à renda das mencionadas cidades e a seu pedido [...]
razão pela qual nós, considerando o amor e a obediência sinceros a
nós devotados pelos ditos suplicantes, ordenamos que se permita a
todos os burgueses, habitantes da referida cidade, comerciar, vender,
comprar e transportar através das cidades, regiões e limites do
referido condado, sal e outras mercadorias de qualquer espécie, sem
coagi-los a pagar-nos, ou a nossos homens ou empregados, quaisquer
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

impostos de sal, reclamações, exigências, imposições ou subsídios


[...] (THIERRY apud ARRUDA, 1982, p. 401).

118
A N E X O II - D O C U M E N T O S

DOCUMENTO 2 : Regulamento de uma corporação de ofício

Em Paris, só pode ser ourives quem fizer o juramento e traba-


lhar segundo os usos e costumes dessa profissão:
• nenhum ourives pode trabalhar o ouro se não for com a melhor
técnica, e o produto deve exceder em qualidade a todos os ouros
trabalhados em outras terras;
• nenhum ourives pode cunhar moeda que não seja tão boa quan-
to a libra esterlina ou melhor;
• nenhum ourives pode ter mais que um aprendiz estrangeiro, que
deverá ser parente seu ou de sua mulher, próximo ou distante,
desde que isso lhe apraza;
• nenhum ourives pode ter aprendiz privado de menos de dez
anos. Só poderá ter aprendizes sob a condição de que ganhem
cem soldos ao ano, mais suas despesas de beber e comer;
• nenhum ourives pode trabalhar à noite se não for para o rei, a
rainha ou seus filhos e irmãos, e para o bispo de Paris;
• nenhum ourives deve pedágios e outros tributos;
• nenhum ourives pode abrir sua forja no dia do Apóstolo (festa
dos Santos Pedro e Paulo), salvo se for no Sábado ou se tratar de
oficina onde trabalhe um por vez, em rodízio, a qual poderá abrir
nestas festas e aos domingos.
Tudo o que ganha aquele que abriu a forja nesses dias é co-
locado na caixa da Companhia dos ourives, onde se colocam as
moedas para Deus e com o dinheiro dessa caixa dá-se a cada

119
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

ano, no dia de Páscoa, um jantar aos pobres do Hôtel-Dieu


de Paris.
Os ourives juraram ter e guardar bem e lealmente todas estas
instituições. (BOILEAU apud ARRUDA, 1980, p. 15).

120
A N E X O II - D O C U M E N T O S

DOCUMENTO 3: Cartas comunais

Carta de Saint-Omer (1127)

Todo direito de échevin e julgamento será executado contra todo


homem, compreendendo nisso eu mesmo. [...]. Eu libertei de toda
taxa de tonlieu e de épave, em Flandre, todos aqueles que fazem parte
da guilda e que residirem no recinto da cidade. [...] Todos aqueles
que habitam ou habitarão no interior dos muros estarão isentos do
chevage e dos direitos de avouerie. [...] Eu prescrevo que esta comuna
permaneça tal como a juraram, e que os burgueses tenham a melhor
justiça e o melhor direito que houver em Flandre [...] (FOSSIER,
1970, p. 18).

Carta de Rue (1210)

Eu, Guillaume, conde de Ponthieu e de Montreil, fazemos


saber que meu pai Jean vendeu, aos meus homens de Rue, por
646 libras, uma comuna [...] cujos limites de banlieue serão estes
(seguem os limites) [...] Nem eu, nem qualquer outro, poderá
construir fortaleza à exceção daquela que eu autorizei a comuna
construir. [...] Os juízes colocarão onde desejarem um mercado.
[...] Se eu os citar em justiça, eles somente comparecerão no
interior dos muros de sua cidade. [...] Eles poderão conduzir,
com toda segurança, as suas mercadorias até Rue. Eu concedi
aos jurados designar o maire do seu agrado. [...] Caso se eleve
algum desacordo entre eles e eu, ele será levado diante do maire

121
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

e dos jurados de Abbeville e resolvido por eles. [...] (FOSSIER,


1970, p. 218).

Carta de Fribourg (1120)


Eu, Conrad, criei um mercado em minhas próprias terras, em
Fribourg, e decidi a ele juntar uma comuna, formada por mercado-
res e pessoas vindas de todas as partes. [...] Eu prometo paz e segu-
rança de percurso a quem se dirigir ao meu mercado. Se um burguês
morrer, sua mulher herdará tudo aquilo que ele deixar; se ele não
deixar herdeiro, XXIV jurados guardarão a herança. [...] Eu abando-
no o tonlieu aos mercadores. [...] Se surgir uma disputa entre meus
burgueses, ela será julgada segundo o direito de Cologne (FOSSIER,
1970, p. 218-219).

Carta de Lippstadt (1200)

Eu, Bernard de Lippe, com o favor imperial decidi pela funda-


ção de uma cidade nova em meus próprios domínios. [...] Foi pres-
crito que toda efusão de sangue no interior da cidade feita sem o
recurso às armas, seria julgada pelos cônsules. [...] Se um burguês
matar outro burguês, ele será julgado o que for justo, mas sua casa e
seus bens permanecerão com seus herdeiros. [...] Se alguém residir
um ano e um dia na cidade, sem que ninguém faça objeção a isso,
ele poderá, em seguida, prevalecer-se do direito comum da cidade
(FOSSIER, 1970, p. 219).

122
A N E X O II - D O C U M E N T O S

DOCUMENTO 4: Foral

Foral de Lorris (1187)

Em nome da Santa e indivisível Trindade, Amém. Felipe, por graça


de Deus, rei de França [...] Sabendo todos os presentes e a vir que,
como os homens de Lorris haviam pedido costumes a nosso avô Luiz,
rei de França, e a nosso pai, rei Luiz, seu filho, e que eles haviam
obtido deles as cartas que continham esses costumes, aconteceu para
seu infortúnio que a cidade quase inteira e as cartas em que estavam
escritos os seus costumes foram consumidas pelo fogo, enquanto
estávamos pernoitando nesta cidade. Por isso, penalizados pelo seu
infortúnio, nós lhes concedemos, por liberdade real, os costumes dos
quais gozavam antigamente e os estabelecemos como se dados pela
primeira vez:
(1) Concedemos a qualquer um que tenha casa na paróquia de
Lorris pagar somente seis dinheiros por sua casa e por um lote
de terra, se possuir nesta paróquia; e se adquirir outro, será
cobrado no censo de sua casa.
(3) Ninguém irá ao oeste ou à cavalgada se não puder voltar para
casa, a seu desejo, no mesmo dia.
(15) Ninguém terá corvéia para nós a não ser uma vez por ano para
levar nosso vinho a Orleans.
(16) Ninguém será retido preso, se puder prestar caução para vir em
justiça.
(18) Quem tiver morado um ano e um dia na paróquia de Lorris sem
ser perseguido pelo clamor público, ou se não recusou
estabelecer em seu direito por nós ou por nosso preboste,
permanecerá doravante livre e em paz.

123
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

Para que isto esteja, de ora em diante, bem estabelecido e em tudo


indiscutível, ordenamos que seja confirmada pela presente carta,
selada de nossa autoridade e do monograma de nosso nome abaixo
inscrito. Feito publicamente em Bourges, no ano da Encarnação
1187, oitavo de nosso reinado, presentes em nosso palácio as pessoas
cujos nomes e signa são postos abaixo (apud CARVALHO, 1959, v.
2, t. 1, p. 313).

124
ANEXO III
GLOSSÁRIO

ALÓDIO (alleu), s. m., do fr. Alôd, propriedade plena. Era como se


denominava uma terra livre de qualquer obrigação ou foro (em
oposição a feudo).
BAN, s. m., do francique ban, lat. bannum, proclamação de uma
ordem. Atributo dos chefes francos, depois foi disseminado total ou
parcialmente nas mãos dos senhores castelãos (séculos X e XII).
BANLIEUE, s. f., do início do século XII. Designou-se, com este
termo, o território situado fora dos muros de uma cidade e sobre
o qual se estendia sua jurisdição (bannum). Em sua origem, era
geralmente de uma légua ou aproximadamente (leuca). Também
foi designada pelo termo de salvitas, porque ela participava das
franquias da cidade. Quando da formação das comunas, a
banlieue foi sempre uma dependência da comuna, os habitantes
pagavam os mesmos impostos e desfrutavam das mesmas franqui-
as que os burgueses do interior da cidade. Sua condição não era,
em geral, diferente da dos demais burgueses no que diz respeito
ao serviço militar. Em todo o caso, estavam submetidos à mesma
jurisdição.
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

CHEVAGE. s. m., do antigo francês chef, cabeça, em latim


capitatio. Trata-se de um imposto de caráter pessoal que era
cobrado sobre certos dependentes, em particular, sobre os
servos, que eram obrigados a apresentar, cada ano, alguns di-
nheiros com a cabeça curvada ou colocados sobre a cabeça para
o seu senhor.
CHEVAGE. [...] II. Antigo direito francês. Capitação paga pelos
servos ou homines de capite ao seu senhor; esse nome ou capage, que
se encontra também no mesmo sentido, veio de capitagium, cavagi-
um, que ainda empregam muitos numerosos atos no século XIII.
Ordinariamente, esta capitação era de 4 dinheiros ao ano; as
mulheres servas pagavam a metade. Às vezes, o chevage era pago
apenas por ocasião do casamento e da morte. O chevage, nessas
duas formas, era pago não apenas pelos servos, mas pelos homens
livres alforriados sob esta condição que lembrava sua antiga condi-
ção servil. Os estrangeiros e os bastardos foram inicialmente sujei-
tos à servidão, no regime feudal, ao menos nas terras de servidão, o
que explica que, em Vermandois e em Champagne, o chevage
designava mais particularmente um direito cobrado aos chefes de
famílias estrangeiros ou bastardos; esse direito, segundo o lugar e a
época, foi senhorial ou real. Em Champagne, eram chamados
chevagiers aqueles que pagavam o chevage. (La grande encyclopédie,
t.10, p. 1117)
COSTUMES. [coutumes], lat. med. consuetudines. Eram direitos
senhoriais que estavam vinculados ao ban ou ao domínio fundiário.
ÉCHEVIN. s. m. (do franco skapin, juiz, latim scabinus) A partir do
século XII, era representante dos burgueses, em cargo colegiado de
administração, enquanto membro do conselho de uma comuna ou
de uma cidade dotada de franquias.
ÉPAVE. (coisa perdida), do latim expavidus, assustado, por alusão
aos animais domésticos errantes, extraviados pelo susto, aos quais
o termo se aplicava exclusivamente na origem. Mais tarde, esta
expressão compreenderia todos os bens, móveis e imóveis, sem

126
A N E X O III - G L O S S Á R I O

dono conhecido. Hoje em dia, ela designa todo objeto móvel,


extraviado ou perdido, e cujo dono não se apresentou. Não se
deve, então, confundir os épaves com os res nullius, que nunca
pertenceram a ninguém, nem com os bens vacantes, cujos antigos
proprietários faleceram ou desapareceram. É igualmente oportuno
de os distinguir dos tesouros ou objetos escondidos e abandona-
dos, depois de um lapso de tempo tal que torne impossível encon-
trar os proprietários. Do fato de que a épave não cessou de perten-
cer a alguém, segue-se que ela não se torna, hic et nunc, a
propriedade do primeiro ocupante, e que seu dono conserva,
durante um certo tempo, ao menos, o direito de a reivindicar. A
eqüidade exige mesmo que este último esteja em condição de se
fazer conhecer e exercer seu direito. Isso ocorrerá, então, apenas
após uma certa divulgação, seguida de prazos variáveis segundo as
circunstâncias, e não sendo trazida nenhuma reclamação provada,
que deverá regular a questão da atribuição da propriedade ou da
partilha da épave. (La grande encyclopédie, t. 6, p. 17).
FORMARIAGE. s. m. (do lat. méd. foris maritagium, casamento fora)
O servo estava proibido de casar-se fora da senhoria ou com mulher
livre sem o consentimento do senhor. Para fazer isso, o servo tinha
que pagar o formariage ao senhor.
LITE. s. m. Na sociedade germânica primitiva, homem de uma
classe intermediária, entre a dos escravos e a dos homens livres, na
época bárbara. Diz-se, também, LÈTES ou LIDE.
Direito antigo. As leis sálica e ripuária mencionam homens semi-
livres que elas chamam lite ou lidi (lètes ou lides [ou lites]) que são
de origem germânica, se bem que todos os povos germânicos não
os tenham conhecido. Encontram-se somente entre os Sálicos, os
Ripuários, os Turíngios, os Chamaves, os Frisões e os Saxões. A
condição dos lites parece muito com a dos colonos romanos. O
casamento do lite é reconhecido pelo direito bárbaro. Ele pode
ter um patrimônio próprio e tem a capacidade jurídica. Em caso
de morte, seu wergeld (Vide abaixo) era superior ao do escravo. A
lei sálica o fixava em cem sous, isto é, a metade da de um ingê-

127
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

nuo. 1 O lite podia, porém, tornar-se um ingênuo através de uma


libertação per denarium ante regem. (Larousse, t. 4, I-M, p. 479).
MÃO-MORTA. Na sua condição intermediária entre escravidão e
liberdade, o servo medieval, além de suas obrigações essenciais, era
juridicamente incapaz de transmitir a sucessão de seus bens por
testamento, sendo na realidade seu herdeiro o seu senhor. Privado,
assim, do direito de testar, era tido como “pessoa de mão morta” e
os seus bens, para serem herdados pelos seus parentes, estavam
sujeitos a direitos de alienação, cobrados pelo senhor.
A partir do século XIII, atenua-se este costume, constituindo os
servos associações ou comunidades que neutralizavam a mão-morta,
pois o membro da comunidade falecido não tinha propriedade a
transmitir. De fato, a corporação sendo perene, não havia mudança
de mão, não havia “mão–morta”, nem direitos a pagar.
Era esta a condição de bens pertencentes a cidades, a mosteiros, a
abadias, a hospitais e igrejas. Eram bens de mão-morta. Cedo, porém,
os senhores, que se viam lesados, foram levados a pedir direitos de
mutação quando pessoas morais, isto é, associações, adquirissem
bens de mão-morta. O pagamento então feito era de um quinto ou
um sexto do valor e era denominado amortização. (CARVALHO, v.
2, t. 1, p. 100-1001)
MAIRE. s. m. (lat. maior, maior, primeiro). 1. Agente da admi-
nistração real ou senhorial que, em uma cidade, serve de auxili-
ar do prévôt; eventualmente representando uma comunidade
rural. 2. Magistrado local cuja função é administrar uma muni-
cipalidade.
MINE. s. f. (do lat. hemina). Era uma medida francesa de capacidade
de líquidos e de grãos, tendo o valor de meio setier, ou seja, segundo

1
Os ingênuos (ingenui) eram, por oposição aos libertos, aqueles que tinham
nascido livres e nunca deixaram de sê-lo.

128
A N E X O III - G L O S S Á R I O

a região, entre 32 e 48 litros. Sinônimo: émine. Alteração de émine,


lat. hemina.
PEAGEM (péage). s. m. (do lat. méd. pedagium, direito de colocar o
pé). Era o imposto que o senhor cobrava sobre as mercadorias em
certos pontos das rotas terrestres e fluviais, como pontes, passos etc.
para assegurar a manutenção e garantir a segurança dos viajantes.
PRÉVOT DE PARIS. s. m. Representante do rei na cidade de Paris,
sediado no Châtelet.
PRUD’HOMMES. s. m. (do latim prudentes, homines) Eram os probi
homines, ou seja, homens experientes, sábios, honestos.
SETIER. s. m. (fim do século XII, do lat. sextarius). Era uma medida
de capacidade de grãos (entre 150 e 300 litros, mais ou menos).
TENURE. s. f. (do latim tenementum) Unidade de exploração de
uma senhoria fora da reserva, possuída e explorada por um rendeiro
(tenancier), mediante rendas e serviços prestados ao senhor (proprie-
tário fundiário). Existe em várias formas jurídicas. Terra concedida a
um vassalo ou a um rendeiro dependente plebeu (tenancier rotturier) a
título de usufruto.
TONLIEU. s. m. (lat. teloneum, do greg. Teleniôn). Era uma taxa
sobre mercadorias que circulavam (sin. Péage) ou que chegavam ao
mercado. Também era o imposto pago pelo lugar ocupado nas feiras
e mercados pelos mercadores.
WERGELD. Com o objetivo de prevenir ou, ao menos, abreviar as
guerras privadas, esta lei [lei sálica, lei comum dos francos] estabele-
cia que, em caso de assassinato, o culpado pagaria aos herdeiros do
morto uma soma de dinheiro proporcional à sua condição. Pela vida
de um escravo doméstico, dava-se de quinze a trinta e cinco sous de
ouro; pela de um lite de origem bárbara ou de um tributário galo-
romano, quarenta e cinco sous; pela de um romano proprietário,
cem sous, e o dobro pela de um franco ou outro bárbaro qualquer
que vivesse sob a lei sálica. Em cada um desses graus, a multa tripli-

129
F O R M A Ç Ã O D O T E R C E I R O E S T A D O

caria se o homem assassinado fosse escravo ou servo da gleba, fosse


romano ou bárbaro de nascimento, estivesse na dependência imedi-
ata do rei como servidor, fosse como vassalo, fosse como funcionário
público. Dessa maneira, pela morte de um colono do fisco, pagar-se-
ia noventa sous de ouro; trezentos sous, pela de um romano admiti-
do à mesa do rei; e seiscentos, pela de um bárbaro que tivesse um
título de honra, ou simplesmente antrusti, isto é, fiel do rei. Essa
multa que, uma vez paga, deveria proteger o culpado das persegui-
ções posteriores e de todo o ato de vingança e chamava-se, em língua
germânica, wer-gheld, taxa de salvaguarda, e, em latim, compositio,
porque ela terminava com a guerra entre o agressor e o ofendido.
Não existia wer-gheld para o assassinato de pessoas reais, e, nessa
tarifa da vida humana, elas encontravam-se fora e acima de toda
estimação legal (TIERRY, 1883. 2 v, t. 2).

130
REFERÊNCIAS

ARRUDA, J. J. de A. História moderna e contemporânea. 12ª ed. São Paulo:


Ática, 1980.
CARVALHO, D. de. História geral. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de
Estudos Pedagógicos; Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais; MEC,
1959. v.2 Idade Média, t.1. p. 313.
FOSSIER, R. Histoire sociale de l’Occident Medieval. Paris: Armand Colin,
1970.
La Grande Encyclopédie inventaire raisonné des sciences, des lettres et des
arts. Paris: H. Lamirault, [19--], 31 v.
Larousse du XXe siècle en six volumes. Paul Augé. Paris: Librairie Larousse,
1931. t. 4, I-M.
TIERRY, A. Récits des temps mérovingiens. Paris: Garnier, 1883, 2 v.

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