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Anderson Geraldo Lopes Sampaio

A CAVALARIA MEDIEVAL: heróis ou vilões?

Orientadora:
Prof.ª Esp. Sisele Maria Caixeta

UNIPAM / Centro Universitário de Patos de Minas


FAFIPA / Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
Curso de História
Patos de Minas, Setembro de 2003
2

Anderson Geraldo Lopes Sampaio

A CAVALARIA MEDIEVAL: heróis ou vilões?

Monografia apresentada como


exigência parcial para obtenção do título
de Graduação em História, sob orientação
da Prof.ª Esp. Sisele Maria Caixeta.

UNIPAM / Centro Universitário de Patos de Minas


FAFIPA / Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
Curso de História
Patos de Minas, Setembro de 2003
3

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________
Prof.ª Esp. Sisele Maria Caixeta – Orientadora

________________________________________
Prof.ª Esp. Maria José Silva Levenhagen Ferreira

________________________________________
Prof. Esp. Marcos Antonio Caixeta Rassi
4

Aos meus pais Edison e Marlene,


por serem os melhores do mundo.
5

AGRADECIMENTOS

São muitos os que merecem agradecimentos por terem contribuído para a confecção
deste trabalho e também para a conclusão de minha graduação. Lamento por não me lembrar
de todos (e caso me lembrasse o espaço seria insuficiente), mas ao menos daqueles que
estiveram mais próximos.

Á minha orientadora Sisele Maria Caixeta, por concordar em me orientar nesse


trabalho, pela sua permanente boa vontade e também pelo seu sorriso que nunca se desfaz.
Ao corpo docente do Curso de História, por me mostrar que o ser humano é “muito
pior” do que eu acreditava que fosse.
Ao companheiro Daniel Vasconcellos Araújo, pelas parcerias em atividades
acadêmicas, “extra-acadêmicas”, e por juntos, embalados pelo mais sincero desejo de
mudança e nem sempre por boa cerveja, “apresentarmos soluções” para vários dos graves
problemas que assolam a humanidade.
Á galera do fundão, por fazerem das noites dos últimos quatro anos as mais animadas
de minha vida.
Á minha tia Marli e minha avó Altina, por acreditarem em mim e financiarem
inúmeras vezes xérox e coisas do gênero.
Á todos os meus colegas de sala.
Á todos os amigos e companheiros, muito obrigado!
6

“Non nobis Domine, non nobis, sed nomini tuo ad


Gloria. (Não por nós Senhor, não por nós, mas para
que teu nome tenha a glória)”*

*
Mensagem do estandarte templário durante as Cruzadas
7

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: .................................................................................................................... 09

CAPÍTULO I: DE HOMENS A CAVALO A CAVALEIROS ............................................ 12

CAPÍTULO II: BATALHAS, DONZELAS E MAZELAS


1. Treinamento e Investidura ................................................................................................. 20
2. As Ordens Militares ............................................................................................................ 23
3. As Justas .............................................................................................................................. 27
4. A Idéia e a Prática da Cavalaria .......................................................................................... 30

CAPÍTULO III: A DECADÊNCIA: ..................................................................................... 34

CONSIDERAÇÕES FINAIS: .............................................................................................. 37

BIBLIOGRAFIA: ................................................................................................................. 38
8

RESUMO

Este trabalho procura fazer uma reflexão sobre a Cavalaria Medieval anglo-francesa.
Trata de suas origens, principais características e o processo de sua decadência no final do
Feudalismo. Seu processo de gestação teve origens no Império Carolíngeo. Na fase de
expansão do Império Carolíngeo destacaram-se os aspectos que influenciaram positivamente
como a utilização do estribo, a criação de cavalos mais fortes e o processo de regionalização
da defesa. No campo simbólico foi de importância fundamental a cristianização da cavalaria
pela Igreja Católica, o imaginário medieval que era povoado pelo fantástico e pelo
maravilhoso e as novelas de cavalaria que contribuíram para que o imaginário da nobreza
fosse repleto de fantasias. Findado este processo de gestação tem-se a cavalaria de que este
trabalho busca analisar, uma instituição de enorme prestígio social e rigorosos preceitos
morais, praticamente um “oitavo sacramento”. Aspectos como a investidura, ato onde o
cavaleiro nascia novamente só que agora para uma vida virtuosa e cheia de deveres, as
principais ordens militares que existiram no feudalismo fruto das cruzadas e do ideal de
fraternidade da cavalaria, os torneios e principalmente a distância entre a idéia e a prática da
cavalaria são temas discutidos nesse trabalho, que finda fazendo apontamentos sobre as
principais causas da decadência da cavalaria bem como sua herança.
9

1 - INTRODUÇÃO

A Cavalaria Medieval: heróis ou vilões? Essa monografia visa fazer uma análise sobre
o comportamento do cavaleiro na Idade Média, tratando de aspectos que vão desde a
formação da cavalaria até a sua decadência.
Naturalmente que nada de tão novo e revolucionário será apresentado como conclusão
desse trabalho. Irá colaborar sem dúvida a nível de releitura sobre o tema. Os cursos de
História tem a maioria de suas pesquisas hoje voltadas mais para o local e para o regional,
mas a minha paixão pela a Idade Média e tudo aquilo que lhe diz respeito foi fundamental
para a escolha desse tema. Quando me pergunto sobre a função social do meu trabalho
encontro resposta na minha paixão pelo tema e na grande herança deixada por ele na
formação da sociedade ocidental.
O grupo de historiadores surgido na França na década de 1920 liderados por Bloch e
Febvre trouxeram novos horizontes para a escrita da História. Antes de tudo um movimento, a
Escola dos Annales abriu um leque significativo de novos objetos de pesquisa e metodologias
a serem empregadas nas pesquisas históricas. Grandes feitos políticos, militares e
diplomáticos, que até então eram os principais alvos da história que se fazia na França,
chamada de historicizante, passou a ser combatida por esse grupo de historiadores que se
preocupavam em resgatar a “história dos vencidos”, fazerem vir a tona as vozes de sujeitos
que até então haviam sido excluídos da escrita da história.
A interdisciplinaridade possibilitada pelos Annales entre a história e campos de
conhecimento como antropologia cultural, sociologia, psicologia, lingüística, e outros, foram
de enorme importância para analisar objetos de estudos que anteriormente não tinham vez.
Com a Nova História surgida a partir da década 60 (na verdade o termo Nova História já era
utilizado nos primórdios dos Annales, no sentido de fazer oposição ao tipo de história que se
fazia na França), a historiografia passou a trilhar os caminhos das “Mentalidades”, que por
ventura esses foram tão tortuosos e confusos que resultaram na desestruturação dessa corrente
historiográfica devido à sua confusão conceitual.
Com o surgimento das Mentalidades a historiografia francesa seguiu o seguinte rumo:
10

“Abriu-se, assim, o caminho para que a produção historiográfica francesa


fosse „do porão ao sótão‟, metáfora então usada para exprimir a mudança de
preocupações da base socioeconômica ou da vida material para os processos
mentais, a vida cotidiana e suas representações” 1

Temas como religiosidades, comportamentos, sexualidades e cotidiano, por exemplo,


vieram a serem pesquisados nessa vertente da Escola dos Annales. Na verdade, preocupações
com o mental, com os costumes e símbolos foram motivos de preocupação por Febvre e
Bloch no início dos Annales. Porém não foram os primeiros a se preocuparem com os
referidos estudos, como podemos citar Michelet, Lefebrve e um autor que foi fundamental
para que as discussões e apontamentos desse trabalho conseguissem serem elaborados,
principalmente aqueles que se referem ao imaginário e ao simbólico: o holandês Johan
Huizinga. O conceito chave que utilizei para desenvolver praticamente todo o trabalho lhe
pertence, o “ideal ou idéia da cavalaria”:

“Todo o seu sistema de idéias (da nobreza) se baseava na ficção de que a


cavalaria governava o mundo. Esta concepção tende mesmo a invadir o domínio
do transcendente. O feito de armas primordial de S. Miguel Arcanjo é glorificado
por Jean Molinet como „o maior feito da cavalaria e das proezas cavalheirescas
jamais realizadas‟. Foi do Arcanjo que „a cavalaria terrestre e as proezas
cavalheirescas‟ extraìram a sua origem, e por isso imitavam as hostes angélicas
em volta do trono de Deus. (...) Por um lado a figura de Alexandre tinha entrado
há muito na esfera da cavalaria, por outro admitia-se que a cavalaria tinha uma
origem romana. (...) Certas coincidências de terminologias contribuíram para
atribuir a origem da cavalaria à antiguidade romana. Como podia o povo saber
que a palavra miles dos autores romanos não significava um miles no sentido do
2
latim medieval (...).

A obra de Huizinga utilizada nessa monografia foi publicada pela primeira vez 1919, o
que pode provar que as já ditas preocupações com o mental, costumes e crenças já haviam
sido iniciadas inclusive em outros países da Europa. Na perspectiva das Mentalidades e
auxiliado pelo conceito da “idéia de cavalaria” esse trabalho pode ser melhor entendido.
A crença por parte da nobreza que a cavalaria era realmente algo fantástico e
sobrenatural se fez presente por todo o Feudalismo, e contradizia de forma gritante com sua
realidade. Alexandre o Grande, o Imperador Romano Rômulo, São Miguel Arcanjo dentre
outros, foram tidos como fundadores da cavalaria, prova de que as canções de gesta

1
VAINFAS, Ronaldo. História das Mentalidades e História Cultural. In: ______ CARDOSO, Ciro Flamarion,
VAINFAS, Ronaldo (orgs). Domínios da História: Ensaios de Teoria e Metodologia. 9ª ed.: Rio de Janeiro;
Campus, 1997. pg. 136.
2
HUIZINGA, Johan. O Declínio da Idade Média: um estudo das formas de vida, pensamento e arte em França
e nos Países Baixos nos séculos XIV e XV. s/ed: Rio de Janeiro; Ulisséia. Pp. 69 e 73.
11

alimentavam muito bem a fome fantasiosa de uma nobreza que acreditava que a cavalaria
governava o mundo.
Alguns filmes também foram analisados neste trabalho tendo como objetivo perceber
como ainda é muito freqüente que a versão oficial, literária e fantástica da cavalaria medieval
chegua até nós, dando uma idéia equivocada sobre a relação de classes no Feudalismo bem
como da verdadeira prática do cavaleiro na Idade Média.
12

2 - DE HOMENS A CAVALO A CAVALEIROS

Quando falamos de cavalaria medieval devemos entendê-la não apenas como um


bando de soldados que montam a cavalo, carregando lanças, escudos e protegidos por
armaduras, mas sim como guerreiros membros de uma instituição composta por valores e
regras morais, códigos de honra e postura ética específica. Nos exércitos gregos existiam
divisões de cavalaria, assim como nas legiões romanas. Os unos praticamente viviam sobre
seus cavalos, usando-os especialmente nas batalhas. Os próprios hicsos quando atacaram o
Egito dispunham também de cavalos, que usavam como montaria e para puxarem carros de
guerra. Enfim, o emprego de combatentes a cavalo em batalhas não foi uma idéia nem uma
exclusividade da Idade Média.
A cavalaria que nos propusemos a analisar foi fruto de circunstâncias tanto materiais
como simbólicas resultantes de um processo de gestação iniciado no Império Carolíngio, e no
século XII foi cristianizada pela Igreja Católica e mistificada pelo imaginário medieval,
ganhando um tom litúrgico, sagrado, se tornando uma condição privilegiada. Dessa maneira é
interessante analisarmos inicialmente sua gênese, para que possamos então compreender o
que significou a cavalaria na Idade Média, bem como sua relação com as demais instituições e
seu papel no presente período.
Pode-se afirmar que o embrião da cavalaria já se encontrava visível na expansão do
Império de Carlos Magno. Este completou a expansão iniciada pelos seus antecessores,
atingindo enormes proporções, e “com exceção da Irlanda, Inglaterra e pequena porção das
penínsulas Ibérica e Itálica, os limites do império coincidiam com os do orbe cristão
ocidental”.3 Numa expansão de proporções continentais, deslocar-se tornava cada vez mais
difícil, foi onde que o uso do cavalo passou a ser uma exigência, como observa Mello:

“As grandes distâncias a percorrer e as transformações nos hábitos militares


exigiam o uso cada vez mais intenso do cavalo, tanto como meio de locomoção
como arma de guerra, datando dessa época as „origens‟ da futura cavalaria
medieval. O cavalo, associado à melhoria na qualidade das armas, o emprego
crescente do ferro e do aço permitiam ao guerreiro um equipamento mais pesado,
pois não precisava transportá-lo a pé”. 4

3
MELLO, José Roberto. O Império de Carlos Magno. s/e: São Paulo; Ática, 1990. Pp. 32-33.
4
Idem, pg. 17.
13

Guerras não se fazem apenas com guerreiros e armas. Não podemos esquecer que
materiais de intendência, logística e engenharia também são usados em campanha. Dessa
forma, podemos entender quão grande e importante passa ser o uso do cavalo nesse período.
Além de seu uso em batalha e no transporte dos combatentes, os cavalos transportavam todo o
material de acampamento, de manutenção e de intendência (mantimentos e equipamentos, por
exemplo).
Bark também afirma a importância do cavalo em relação à evolução da cavalaria,
como podemos observar a seguir:

“(...) a criação de cavalos grandes e bastante fortes para transportar um


cavaleiro armado, alterou grandemente a relação entre o homem montado e o
homem a pé. A ascendência do cavaleiro introduzia a era da cavalaria e finalmente
o conceito ético da cavalaria. (...) seja ou não a importância do cavalo considerada
uma das causas diretas do feudalismo, não pode haver dúvida de que este e a
cavalaria cresceram juntos”.5

Outro fator de importância para a viabilização do combate a cavalo foi à utilização do


estribo. Foi o estribo que permitiu que o cavaleiro empunhasse uma lança com o braço direito,
a rédea e o escudo com o esquerdo, e mesmo assim conseguisse se equilibrar com o cavalo
em movimento. No filme “Gladiador”, estrelado por Russel Crowe no papel de General
Maximus, dirigido por Ridley Scott, existe uma cena em que Maximus cavalga no Coliseu já
utilizando um estribo. Fato um tanto estranho, tendo em vista que os relatos históricos sobre a
chegada do estribo no ocidente se deram entre os séculos VII e IX. Alguns autores afirmam
que foram através dos árabes que o estribo ingressou no ocidente, outros afirmam serem
através dos asiáticos (mongóis ou chineses), porém concordam todos em relação o período
que se deu esse processo. Bark faz a seguinte consideração:

“Lefebvre des Noëtes inclinava a acreditar que os árabes já tinham o estribo


quando invadiram a Espanha. Suas mais antigas representações latinas estão em
documentos espanhóis da primeira metade do século IX. Por outro lado, a mais
remota representação que se conhece do estribo no Ocidente que se conhece parece
ser a de um peão de xadrez pertencente a Carlos Magno, tradicionalmente
considerado como parte de um jogo oferecido ao rei franco por Harum al Rashid”. 6

Possivelmente já no século VIII o estribo já seria utilizado em algumas regiões da


Europa, como no sul da Península Ibérica, e por seguinte, alcançando os domínios francos.
Sem o estribo, jamais seria possível o cavaleiro manter o equilíbrio sobre o cavalo usando

5
BARK, Willian Carrol. Origens da Idade Média. 3ª edição: Rio de Janeiro; Zahar, 1974. Pg. 137.
14

equipamentos tão pesados. Além do escudo e da lança, a armadura exercia enorme peso sobre
o cavaleiro, pois apesar do avanço na forja do ferro e do aço propiciando um material mais
resistente (herança da cultura germânica), a armadura ainda era muito pesada.
O Império de Carlos Magno, como já foi dito, alcançou enormes proporções.
Automaticamente isso gerou enormes dificuldades administrativas, tendo em conta a
debilidade dos meios de comunicação assim como a das técnicas administrativas; esse
processo teve como resultado a descentralização administrativa do Império. Mello coloca que
“os historiadores não se entendem quanto ao número exato dos condados, mas eram
contados às centenas, dando estimativas mais otimistas cerca de seiscentos”.7
Concomitantemente a esse processo de descentralização administrativa, o Império Carolíngio
passava por dificuldades referentes à sua defesa. Vejamos o que diz Mello:

“Pondo em fuga populações, deixando um rastro de destruição, cidades em


ruínas, mosteiros abandonados, essas invasões, tanto nórdicas, como húngaras, ou
as incursões de pilhagens dos muçulmanos no sul, contribuíram para ressaltar os
particularismos, revelando a impotência da autoridade central em contê-las, e
justificando por conseguinte a concentração do poder nas mãos dos seus
representantes regionais e locais, os únicos capazes no momento de dar alguma
proteção às populações, recebendo-as em suas praças fortes e organizando
militarmente a defesa”8

Mello se refere às invasões nórdicas, húngaras e muçulmanas que aterrorizavam o


Europa entre os séculos VIII e IX. Essas incursões se davam em bandos pequenos que em
média tinham entre trinta e cinqüenta pessoas. Seus ataques eram rapidíssimos, saqueando
aldeias e vilarejos e até pequenas cidades dentro poucas horas. Como mobilizar um exército
em tão pouco tempo? Para que locais deslocar tropas para ficarem de prontidão? Diante de
tais dificuldades a regionalização da defesa passou a ser uma necessidade. E exatamente por
essa necessidade de defesa que aquele que sabia manusear a espada e a lança passou a assumir
um papel de destaque. Daí porque a cavalaria se restringia à nobreza, como nos mostra
Miceli:

“Nos já sabemos que naquela sociedade as guerras era a própria razão de


ser daqueles que lutavam pelo poder; por isto, a figura do guerreiro acabou
assumindo papel de enorme destaque, crescendo cada vez mais à medida que o
espetáculo se desenvolvia. A Ordem da Cavalaria surgiu como conseqüência da
formação de uma classe de guerreiros privilegiados, já a partir do século VII, e se

6
Idem, pg. 137.
7
MELLO, José Roberto. O Império de Carlos Magno. s/e: São Paulo; Ática, 1990. Pp. 38.
8
Idem, pp. 51-52.
15

manteve forte até que a arte da guerra se modificou no final da Idade Média, por
volta dos séculos XIV e XV”.9

Para se tornar cavaleiro era necessário anos de preparo e treinamento, como também
recursos para a aquisição do equipamento, que não era nada barato. Era também necessário
que não se estivesse preso ao trabalho, pois os trabalhos nos campos ocupavam quase todo o
tempo. Dessa maneira que a arte da guerra ficou limitada àqueles que dispunham de tempo e
recursos: os nobres. A regionalização da defesa veio favorecer a descentralização do poder,
acentuada principalmente após o esfacelamento do Império Franco, a partir da segunda
metade do século IX, como também a formação desses grupos de nobres guerreiros,
aproveitando de sua condição militar e econômica para assumir o papel da defesa, devido à
ausência do Estado. Isso acentuou o processo de servidão, onde os poucos trabalhadores que
ainda dispunham de liberdade trocavam seus serviços pela “proteção” de um senhor que tinha
condições para isso.
A evolução da cavalaria também se deu no plano simbólico. No imaginário da nobreza
a cavalaria tinha suas origem em Roma, na Grécia e até bíblica. Podemos entender essas
idéias como frutos de uma construção onde somaram influências da Igreja e da literatura
cortês, através de suas novelas fantásticas. Essa mentalidade foi consolidada no século XII
(considerado o século da cavalaria), porém seu processo de construção de iniciou um pouco
antes.
Com o esfacelamento do Império Romano do Ocidente, as instituições presentes nele
ruíram ao mesmo tempo. A ausência de um Estado com estruturas burocráticas eficientes foi
marcante na Idade Média, e a tentativa melhor sucedida (que foi o exemplo do Império
Franco) acabou por se desmanchar efetivamente após o Tratado de Verdum em 843, com a
divisão do Império Franco entre os filhos de Luís o Piedoso, Lotário, Carlos o Calvo e Luís o
Germânico, e estes terminam por acelerarem o processo de feudalização. Nesse contexto de
esfacelamento tanto territorial como institucional a Igreja Católica surge como uma instituição
realmente forte, que prega preceitos morais e religiosos. Além disso, somente a Igreja e seus
sacerdotes poderiam construir a ponte entre o temporal e o sagrado, entre a terra e o céu, entre
Deus e os homens, a unidade política foi substituída pela unidade religiosa. Observemos o que
diz Franco Junior:

“Portanto, os guias da comunidade cristã não eram apenas representantes


da própria comunidade, mas de Cristo. Daí vinha a imensa autoridade moral deles,

9
MICELI, Paulo. O Feudalismo. 3ª edição: São Paulo; Atual, 1988. Pp. 43-44.
16

reforçadas por normas diferenciadoras que iam se impondo aos poucos. (...) Em
uma só palavra, monopolizando a comunicação com Deus, o clero tornava-se
responsável por todos os homens. Sem ele não haveria salvação. Como terceiro
fator, não se pode esquecer o caráter universalista da Igreja Cristã, que fazia dela a
única herdeira possìvel do Império Romano”.10

Somado ao apoio e legitimidade recebidos pelos reis francos, esses fatores


possibilitaram à Igreja Católica o poder e a autoridade moral ainda mesmo na Alta Idade
Média, podendo ela assim legislar e determinar tanto no plano material como no plano
ideológico sobre as questões presentes durante a Idade Média, perdendo sua influência de
forma mais significativa penas no fim da época feudal, devido a fatores que analisaremos
posteriormente. Foi com essa autoridade moral que a Igreja veio a intervir na formação
simbólica da cavalaria, contribuindo para a “moral” cavalheiresca e seus códigos éticos, tanto
no sentido de preservar sua hegemonia como a ordem social vigente, já redigida por Santo
Agostinho, que pregava a divisão da sociedade entre os que lutam, os que rezam e os que
trabalham. Como descrito a seguir:

“Naqueles tempos, era hábito um camponês fazer benzer suas colheitas, seu
gado e até seu poço; o noivo fazia benzer o leito nupcial e os artesões suas
ferramentas. Como poderia o escapar de benzer suas armas? Havia casos em que o
próprio religioso entregava essas armas ao cavaleiro, após o que ele próprio
recebia sua bênção. Depois disso, o cavaleiro estava pronto para cumprir sua
missão. Deveria defender a Igreja, notadamente contra os pagãos, deveria proteger
pobres, órfãos e viúvas (...). Em combate, não deveria matar um indefeso; não
poderia participar de falsos julgamentos ou de traições”. 11

É claramente perceptível os ideais cristãos que passam a partir desse momento a


influenciar a composição moral da cavalaria e também sua educação, como também a
presença desses aspectos nas canções de gesta, só que de forma exagerada e maravilhosa,
sobrenatural. Existe uma convergência entre autores em relação à influência da Igreja na
formação da cavalaria, mesmo que descordem sobre o porquê dessa intervenção.
Concomitante à moral cristã, que impregnava o pensamento na Idade Média, o
sobrenatural, o transcendente e o maravilhoso também se faziam presente naquela sociedade.
Destacava-se a permanente luta entre o bem e o mal, Deus e o diabo, entre o céu e o inferno.
Formou-se no inconsciente do homem medieval um imaginário que brigava com a sua
realidade, uma realidade de trabalho, de orações ou de batalhas (as últimas duas nem tão
duras). No que tange a cavalaria, foi constituída uma idéia fantástica em sua relação, melhor,

10
FRANCO JUNIOR, Hilário. O Feudalismo: uma sociedade religiosa, guerreira e camponesa. 1ª edição: São
Paulo; Moderna, 1999. Pg. 18.
11
MICELI, Paulo. O Feudalismo. 3ª edição: São Paulo; Atual, 1988. Pg. 44.
17

sobre o ideal de cavaleiro, baseado no maravilhoso, onde os romances corteses


desempenharam um papel capital na construção desse ideal de cavalaria:

“Não foi por acaso que o maravilhoso desempenhou tão grande papel nos
romances corteses. O maravilhoso estava profundamente integrado na busca de
identidade, individual e coletiva, do cavaleiro idealizado. As provas do cavaleiro
passam por toda uma série de maravilhas – maravilhas que ajudam (como certos
objetos mágicos) ou maravilhas a combater (como os monstros); (...) a busca de
identidade, do cavaleiro no mundo cortês é, ela própria, uma maravilha”.12

Lutas contra monstros, gigantes, animais selvagens, a busca pelo santo graal dentre
outras, foram temáticas de novelas de cavalaria que circulavam entre as cortes e castelos,
inundando a concepção de cavalaria da nobreza de ideais fantásticos. A cavalaria andante
ganhou enorme destaque. O cavaleiro solitário que dormia ao relento, que se alimentava de
caça e de frutos silvestre, sempre enamorado de uma donzela que geralmente encontrava no
final de sua aventura, combatendo em prol da justiça, do bem e da cortesia. Esse é o perfil do
cavaleiro dos romances corteses. Figuras como Amadis de Gaula, Tristão, Rolando, Lancelot
e o rei Arthur eram os exemplos de cavaleiros idealizados. Esses romances perduraram por
toda a Idade Média, chegando ainda a serem escritos e publicados nos séculos XIV e XVII, no
mesmo formato dos escritos durante o período feudal. Cervantes quando escreve “Dom
Quixote”, faz uma crítica às novelas de cavalaria que ainda circulavam no Espanha no século
XVII. Ao construir uma personagem que com uma armadura quase de lata, montado em vez
de um corcel um rocim magricela, atacando moinhos de vento e rebanhos de ovelhas
imaginando serem gigantes e exércitos inimigos, sendo ludibriado a todo instante por pessoas
comuns, Cervantes busca ridicularizar esse ideal de cavalaria que permaneceu presente nos
romances corteses.
É interessante também observarmos como essa nobreza entendia as origens da
cavalaria. Buscava essas origens nos grandes feitos heróicos de grandes personagens
históricos, como Alexandre o Grande e mesmo no campo do sobrenatural, como nos feitos de
São Miguel Arcanjo, como nos mostra Huizinga:

“Todo o seu sistema de idéias (da nobreza) se baseava na ficção de que a


cavalaria governava o mundo. Esta concepção tende mesmo a invadir o domínio do
transcendente. O feito de armas primordial de S. Miguel Arcanjo é glorificado por
Jean Molinet como „o maior feito da cavalaria e das proezas cavalheirescas jamais
realizadas‟. Foi do Arcanjo que „a cavalaria terrestre e as proezas cavalheirescas‟
extraíram a sua origem, e por isso imitavam as hostes angélicas em volta do trono
de Deus. (...) Por um lado a figura de Alexandre tinha entrado há muito na esfera

12
LE GOFF, Jacques. O Imaginário Medieval. 2ª edição: Estampa, 1994. Pg. 48.
18

da cavalaria, por outro admitia-se que a cavalaria tinha uma origem romana. (...)
Certas coincidências de terminologias contribuíram para atribuir a origem da
cavalaria à antiguidade romana. Como podia o povo saber que a palavra miles dos
autores romanos não significava um miles no sentido do latim medieval (...).” 13

Somadas essas características como do termo miles citado por Huizinga, a influência
dos romances corteses, o imaginário medieval permeado pelo fantástico e pelo maravilhoso e
os ideais cristãos, podemos perceber perfeitamente como se cristalizou no imaginário da
nobreza esse ideal de cavalaria. Uma cavalaria responsável pela defesa da moral, dos
indefesos, pela segurança e a única capaz de guiar a todos pelos tortuosos caminhos da vida
são e salvos.
Sendo assim, pelo que foi discutido e citado, podemos compreender quão complexa
foi a evolução dessa cavalaria em termos tanto materiais como em termos ideológicos e
simbólicos. A cavalaria do século XII, com seus rituais e posturas morais complexas,
educação e privilégios foi resultado de um longo processo de gestação onde os referidos
aspectos foram sendo desenvolvidos e assimilados pela nobreza medieval, tanto pela
necessidade da guerra como também pela necessidade de uma memória enaltecedora, e não
como um fato isolado como coloca Lins:

“A origem da Cavalaria foi a solenidade de investidura militar ou entrega de


armas ao jovem guerreiro germânico, (...) apoiando-se numa passagem do De
Moribus Germanorum, onde Tácito compara essa cerimônia germânica à da toga
civil, que assinalava, como se sabe, entre os romanos, o ingresso na vida civil. (...)
Ao regulamentá-la, associando a idéia de obrigações morais à de deveres militares,
elevou a Igreja a Cavalaria a uma espécie de oitavo sacramento, não lhe sendo
fácil a tarefa de plasmar em cavaleiro cristão o rude homem feudal, verdadeiro pele
vermelha, a quem apenas faltavam as faces tatuadas e uma coroa de penas na
cabeça.” 14

Não é lícito falar em origem, mas sim em origens da cavalaria. Antes que se chegasse
a existir a cerimônia de Investidura propriamente dita, os elementos morais, estéticos e
materiais da cavalaria já estavam praticamente estabelecidos ao custo de um longo processo.
Certamente que a cultura germânica influenciou a cavalaria, principalmente no que diz
respeito à honra e ao espírito militarista, pois “a guerra era a razão de ser do germano”15;
assim como também influenciou toda as estruturas medievais, tendo em vista que a sociedade

13
HUIZINGA, Johan. O Declínio da Idade Média: um estudo das formas de vida, pensamento e arte em França
e nos Países Baixos nos séculos XIV e XV. s/ed: Rio de Janeiro; Ulisséia. Pp. 69 e 73.
14
LINS, Ivan. Idade Média, A Cavalaria e as Cruzadas. 4ª edição: Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 1970.
Pp. 94-95.
15
GUERRAS, Maria Sonsoles. Os Povos Bárbaros. s/ed.: São Paulo; Ática, 1987. Pp. 16-17.
19

medieval foi fruto da fusão entre a sociedades romana e germânica. Agora dizer que a origem
da cavalaria foi a investidura militar de um jovem guerreiro germânico é um equívoco.
Podemos então entender, diante das afirmações abaixo, porque o ingresso na cavalaria
era o mesmo que ascender a uma posição privilegiada. Podemos entender o que significava
fazer parte da cavalaria após o início de seu apogeu, quando tinha em torno de si uma aura
sobrenatural e sagrada. Do prestígio que dispunha um cavaleiro consagrado entre seus pares
(a nobreza em geral) e principalmente em relação aos que ocupavam uma posição inferior, os
servos. Dessa forma, podemos então nos capítulos a seguir discutir com segurança qual o
papel do cavaleiro na sociedade em que vivia, e se realmente atuava como o herói que
acreditava ser.
20

3 – BATALHAS, DONZELAS E MAZELAS

1 – Treinamento e Investidura

Ingressar na ordem da cavalaria era ascender a uma posição privilegiada. O fato de


pertencer à nobreza não garantia ingresso na cavalaria, ou seja, todo cavaleiro era nobre, mas
nem todo nobre era cavaleiro. O cavaleiro a que me refiro se trata daquele pertencente à
ordem da cavalaria, nela iniciado, não apenas a um guerreiro pertencente à nobreza que
combate a cavalo. Também podemos perceber tal fato se observarmos que o posto de
cavaleiro não era hereditário, ser filho de um cavaleiro não queria dizer que seu ingresso na
ordem da cavalaria estava garantido.
A arte das armas na Idade Média exigia um longo, duro e caro aprendizado. Como já
foi dito, só a nobreza exercia o militarismo, só ela exercia atividades militares porque estava
dispensada do trabalho. Naturalmente que um camponês que trabalhava todo o dia durante
toda a semana não teria tempo para aprender tal exercício e muito menos teria dinheiro para
custear gastos com armamentos.
Quando um jovem iria se dedicar ao serviço militar seu treinamento começava cedo.
Quando seria especificamente treinado para o ingresso na cavalaria, esse treinamento deveria
começar ainda mais cedo e certamente incorporava mais elementos do que se estivesse sendo
preparado apenas para o exercício das armas. Vejamos a seguir:

“O curso da educação constava de três perìodos. Aos sete anos, iniciava-se


o futuro cavaleiro como pajem num palácio ou castelo feudal. Ali aprendia cortesia
(educação cortesã), música, os jogos de salão e a língua francesa. A disciplina
cortesã reclamava um comportamento honorável. Os exercícios corporais eram a
corrida, o salto, o lançamento da lança, a esgrima, a falcoaria e outros similares.
Aos quatorze anos, terminava o jovem a educação cortesã: achava-se, então, apto
para carregar as armas e adquiria o título de escudeiro. Punha-se às ordens de um
cavaleiro, a quem acompanharia em sua vida heróica: na guerra, na caça, nos
torneios. Mas continuava a „aprender os rudimentos do amor e da religião‟. Os
„rudimentos do amor‟eram a amabilidade, a gentileza, as boas maneiras, a
conversação agradável e a habilidade para o baile e o ritmo. Nestes anos de
aprendizagem, também adquiria o suficiente conhecimento do mundo e dos homens,
e se iniciava nos assuntos da política e nos segredos da corte. Afinal, aos vinte e um
21

anos – e em ocasião oportuna – era armado cavaleiro e iniciado na Ordem da


Cavalaria(...)”.16

Evidentemente que tal treinamento poderia sofrer variações regionais, mas geralmente
seguia este roteiro. É sabido que a nobreza medieval, principalmente a da Alta Idade Média e
do princípio da Baixa Idade Média era uma nobreza totalmente ignorante, truculenta, que não
conhecia as letras e muito poucos aspectos de higiene e etiqueta. Podemos citar com exceção
algumas damas que por terem passado algum tempo em conventos e terem como preceptores
clérigos aprenderam a ler e a escrever, e pode se dizer que até aprenderam também alguns
aspectos de higiene. E exatamente nessas damas que as novelas de cavalaria exerciam maior
influência. Mas enfim, o homem nobre era literalmente um bruto analfabeto despojado de
qualquer comportamento que exigisse um mínimo de educação. Já o cavaleiro se diferenciava
em determinados aspectos dos demais nobres que o cercavam. Quando serviu como pajem, o
cavaleiro passou anos se dedicando ao aprendizado de determinadas disciplinas que o
diferenciariam dos demais nobres que o cercava. Enquanto esses nobres se preocupavam
apenas com caçadas, com a administração de suas terras e com os contratempos do exercício
de suas funções enquanto senhores feudais, o pajem aprendia música, língua, dança, enfim,
disciplinas que lapidavam, refinavam, incutiam maior sensibilidade ao seu comportamento.
Assim sua postura, claramente era diferente daqueles que não passavam por igual
treinamento, que não faziam parte de sua privilegiada condição. Evidentemente que não
podemos nos esquecer que era um homem de seu tempo, obviamente não fugia totalmente do
comportamento da época. Podemos perceber então que a diferença nobre-cavaleiro não se
dava apenas no campo militar, mas também nos demais aspectos da vida social da classe a
que pertencia.
Não obstante a tudo isso, o que realmente separava a nobreza da cavalaria,
principalmente no campo simbólico, era o ritual da investidura. Era a iniciação por que
passava o jovem escudeiro após ter cumprido as etapas anteriores, era o coroamento de seus
esforços e o passaporte para uma condição privilegiada no mundo do qual fazia parte. As
ordens militares como a dos Templários e dos Hospitalários que eram ramificações da própria
ordem da cavalaria, desenvolveram rituais de iniciação específicos, fora esses casos, a
cerimônia de iniciação ocorria praticamente da mesma forma. Vejamos como se caracterizava
uma cerimônia de investidura:

16
LARROYO, Francisco. História Geral da Pedagogia. 3ª edição: São Paulo; Mestre Jou, 1979. Pg. 306.
22

Do modo como o escudeiro deve receber a Cavalaria

1. Primeiramente, o escudeiro, antes de entrar na Ordem da Cavalaria, deve confessar-se das faltas que
cometeu com Deus. (...)
2. Para armar um cavaleiro convém destinar-se uma festa das que de preceito se celebram durante o ano.
(...)
3. Deve o escudeiro jejuar na vigília da festa. (...) E na noite antecedente ao dia em que há de ser armado,
deve ir à igreja velar, estar em oração e contemplação e ouvir as palavras de Deus e da Ordem da
Cavalaria. (...)
4. No dia da função, convém que se conte missa solene. (...)
.......................................................................................................................................................................
9. Quando o sacerdote tenha feito o que toca o seu ofício, convém então que o príncipe ou alto barão que
quer fazer cavaleiro o escudeiro que pede cavalaria tenha em si mesmo a virtude e ordem da Cavalaria
para com a graça de Deus poder dar virtude e Ordem da Cavalaria ao escudeiro que a quer receber. (...)
11. Deve o escudeiro ajoelhar-se ante o altar e levantar a Deus os seus olhos corporais e espirituais e as
suas mãos. E então o cavaleiro lhe cingirá a espada, no que significa a castidade e a justiça. Deve dar-lhe
um beijo em significação da caridade e dar-lhe uma bofetada para que se lembre do que promete, do
grande cargo a que se obriga e da grande honra que recebe pela Ordem da Cavalaria.
12. Depois de o cavaleiro espiritual e terrenal ter cumprido o seu ofício armando o novo cavaleiro, deve
este montar a cavalo e manifestar-se assim à gente, para que todos saibam que é cavaleiro e obrigado a
manter e defender a honra da Cavalaria. (...)
13. Naquele dia se deve fazer grande festim, com convites, torneios e as demais coisas correspondentes ao
festim da Cavalaria (...)17

Geralmente a investidura era realizada em eventos religiosos, justas e até antes de


batalhas, onde o escudeiro era armado em pleno campo momentos antes do início dos
combates. Podemos perceber nitidamente a influência da Igreja no ritual de investidura, na
sacralização do mesmo promovido por ela, onde astutamente submete o cavaleiro investido ao
serviço de Deus, a proteção da Igreja e da cristandade. A Igreja encontrara ocupação para os
bandidos da Europa sem emprego; mais ainda, começou a espalhar os ideais de sacrifício e de
altruísmo. Iniciara eficazmente a sua missão de converter os selvagens em perfeitos gentis-
homens, castos e piedosos, que se impunham por dever e sentiam alegria em andar pelo
mundo e reparar os males humanos, pelo menos em teoria.
O processo de formação e a sagração de um cavaleiro é sem dúvida uma das formas mais
claras de se perceber a fusão da sociedade germânica com a romana ocidental: elementos
germânicos como a honra, a coragem e o militarismo misturados à preocupação com a
estética, com a cortesia, com as artes e a política, tudo isso ligado por uma ética cristã,
católica, que contribuiu significativamente para dar a cavalaria o ar sagrado que a envolvia.
O ato da investidura era como se o cavaleiro estivesse nascendo novamente, porém
nascendo para uma vida de virtude, para uma vida cheia de deveres sociais e individuais
assumidos juntamente com os característicos votos da cavalaria: defender os indefesos, as
damas, seu senhor e a Igreja.

17
ESPINOSA, Fernanda. Antologia de textos históricos medievais. 3ª ed.: Lisboa, Sá da Costa Editora, 1981, pp.
177-178. Apud. MICELI, Paulo. O Feudalismo. 3ª edição: São Paulo; Atual, 1988. Pp. 43-44.
23

2 – As Ordens Militares

Lamentavelmente a bibliografia disponível para a confecção desse trabalho


monográfico trata de forma muito sucinta as ordens militares surgidas no Feudalismo. Na
internet existe um vasto material a respeito, porém, não tendo referências confiáveis serão
analisados com ressalva e de acordo com afirmações dos autores presentes na bibliografia do
trabalho. Veremos brevemente a história das três ordens militares de maior ressonância:
Cavaleiros Teutônicos, Hospitalários e finalmente os Templários, e em seguida as
analisaremos.
Os Cavaleiros Teutônicos foram um exército e ordem religiosa alemã baseada nos
Hospitalários e Templários. É a mais jovem das três ordens militares. Foi fundada em 1.190
como uma unidade de auxilio por comerciantes alemães preocupados com os compatriotas
sujeitos às doenças. Os membros do grupo estabeleceram-se entre os integrantes do exército
cristão acampado fora do Acre. Pouco depois foram-lhes concedidas terras para construir um
hospital. Os Teutônicos foram então surpreendidos com a instrução pelo Papa Inocêncio III
para se tornarem uma ordem militar. O braço militar era baseado no modelo dos Cavaleiros
Templários e o hospital nos Cavaleiros Hospitalários. A Ordem geralmente usava um hábito
branco com uma cruz preta. Cada um dos 12 capítulos da ordem havia um líder conhecido
como Komtur, significando o oficial de diligências. Quando um Grão Mestre morria todos os
Komturs reuniam-se para eleger 13 membros que em troca elegeriam um novo Grão Mestre.
Os outros oficiais do comando (Grosskomtur), eram: o Ordensmarshall, o Tressler (o
tesoureiro), o Spittler (Hospitalário) e o Trapier (chefe de quartel). A ordem nunca se
distinguiu na Terra Santa. Não lutou nenhuma batalha famosa, nem desfrutou inicialmente da
riqueza e apoio dada às outras ordens. É parcialmente por causa desta falta de apoio que
permaneceu um movimento puramente germânico, fato este que logo direcionou seus
interesses para a própria pátria. Em 1.216 a ordem perdeu a maioria de seus cavaleiros e seu
Grão Mestre em ação na defesa da Terra Santa. A Ordem ficou em Acre até a queda do reino
em finais no século XIII, quando os Teutônicos aumentaram gradativamente sua força nos
Bálcãs. Os Teutônicos não tinham misericórdia. Qualquer homem, mulher ou criança
conquistado tinha que se converter ou seriam executados.
Os Cavaleiros Hospitalários pertencem a uma ordem cuja poderosa documentação os
torna oficiais e legais até os dias de hoje. Seus tradicionais rivais foram os Cavaleiros
Templários. Sua estrutura básica é bastante parecida com a dos Templários, porém com um
24

maior enfoque em saúde e medicina. A Ordem de São João originou-se com um hospital
dedicado a São João em Jerusalém aproximadamente em 1.070, trinta anos antes da Primeira
Cruzada, por um grupo de comerciantes italianos que queriam cuidar dos peregrinos. Foi
constituída como uma ordem aproximadamente em 1.100, logo após a Primeira Cruzada,
quando assumiu seu primeiro Grão Mestre Principal. Os Hospitalários seguiram assim aos
Templários, mas com enfoque para o trabalho médico. Por volta de 1.126, porém,
aproximadamente oito anos depois dos Templários apareceram publicamente, os Cavaleiros
de São João tinham começado a assumir um caráter crescentemente militar que ficaria com o
tempo mais proeminente que o próprio serviço de hospital para o qual tinham sido instituídos.
Os Hospitalários junto com os Templários e Teutônicos tornaram-se o principal exército e
poder financeiro na Terra Santa. Este poder expandiu-se ao longo do Mediterrâneo. Como os
Templários eles ficaram imensamente ricos. A Ordem desenvolveu-se em um exército vasto,
organização eclesiástica e administrativa com centenas de cavaleiros, um exército parado;
numerosos serviços secundários, uma cadeia de fortalezas e propriedades enormes de terra
pelo mundo cristão.
Em 1118 a Ordem dos Cavaleiros Pobres de Cristo e do Templo de Salomão ou
Templários foi fundada por Hugo de Paynes, vassalo do conde da Champanha, tornando-se
uma das ordens monásticas de cavalaria. Seu objetivo declarado era proteger os peregrinos
cristãos que se dirigiam a Terra Santa. Acolhidos pelo rei cristão de Jerusalém Balduíno I,
acabaram por transformar-se numa força militar e econômica poderosa e independente,
contando com propriedades e bases militares não só na Palestina como em toda a Europa.
Durante quase dois séculos tiveram grande prestígio em todo o mundo cristão. Além de
escoltar o fluxo de peregrinos e lutar contra os muçulmanos na Palestina e na Península
Ibérica, também criaram na Europa o primeiro embrião de uma rede bancária. O peregrino
que receava ser assaltado durante a viagem podia depositar a quantia que quisesse junto a
qualquer posto dos Templários e sacá-la em qualquer outro posto quando lhe conviesse. O
sistema logo foi usado também por outros viajantes e mercadores proporcionando riquezas e
influência à ordem. No apogeu da ordem, existiam quase mil comunidades de templários na
Europa e no Oriente e cerca de sete mil membros professos, além de mais de 50 mil auxiliares
não-professos e dependentes. Cerca de 40% desse número eram combatentes e o restante
pessoal de apoio. Possuíam nove mil propriedades, sua própria frota de galeras que
transportava cavalos, cereais, armas, e pessoal militar. Na Terra Santa guarneciam 53 castelos
e torres de vigia. Depois que o prestígio dos Templários foi abalado pela derrota na Palestina
totalmente reconquistada pelos muçulmanos em 1291, o rei de França Filipe IV, o Belo, viu a
25

possibilidade de apoderar-se de suas riquezas para restaurar seu tesouro esgotado pela luta
contra os ingleses e contra senhores feudais rebeldes. Em 1305 fez eleger Papa, com o título
de Clemente V, seu protegido Beltrão de Got, e em 1309 para melhor controlá-lo, obrigou-o a
mudar a sede do papado de Roma para Avinhão, em território francês. Filipe e Clemente
instauraram contra os Templários um processo iníquo, acusando-os de traição, heresia e
sodomia, e mandaram prender Jacques de Molay, Grão-Mestre da ordem e todos os cavaleiros
que se encontravam em França. Em 1312 o Papa aboliu a ordem e em 1314 o grão-mestre e
seus principais seguidores foram queimados vivos. O motivo principal do processo era sem
dúvida o desejo de apoderar-se dos tesouros da ardem, mas a acusação de heresia não era
totalmente arbitrária.
Teutônicos, Hospitalários e Templários foram os que tiveram maior ressonância na
história das ordens militares. Obviamente não foram os únicos, existiram dezenas de ordens
espalhadas por toda a Europa criadas a partir do século XII. As histórias acima citadas são
resultados de pesquisas em vários sites na internet. Esses sites quando mencionam bibliografia
a fazem muito vagamente, não deixando claros os limites entre ficção e realidade. Existem
centenas de sites com praticamente o mesmo nome e com as mesmas versões praticamente.
Caso o leitor tenha intenção de pesquisar na Internet, basta entrar em sites de busca e digitar
“ordens de cavalaria”, que logo em seguida seus endereços aparecerão. Por isso não
entraremos em pormenores sobre datas de criação e detalhes dessas ordens militares, mas sim
no que diz respeito às suas práticas.
As ordens militares foram frutos de basicamente dois acontecimentos: As Cruzadas e a
utilização de princípios monásticos na escolha de seus votos e na confecção de suas
disciplinas. Após a primeira Cruzada as ordens de cavalaria começaram a constituírem-se,
sendo organizadas na própria Terra Santa e depois se espalhando pela Europa junto com os
cavaleiros que de lá retornavam. Elas foram formadas em torno de altos ideais morais e
heróicos, visando a exercício dos “deveres da cavalaria”. A idéia de irmandade e fraternidade
se encontrava mais presente quando se pertencia a uma ordem militar.
Os princípios monásticos eram muito presentes nas disciplinas dessas ordens de
cavalaria, inclusive porque não era pequena a quantidade de monges e clérigos que
integravam as fileiras das ordens. Podemos citar como exemplo a Ordem do Templo, cuja
regra foi elaborada por São Bernardo.

Inúmeros Bispos manejavam a lança e a espada melhor do que o báculo (...).


Nada mais comum, na Idade Média, do quer ver Bispos, ora metidos em pesada
armadura, de lança em riste, à frente de tropas guerreiras, ora revestidos de estola
26

a cantar o Evangelho nas igrejas. Contra este abuso, vituperava, em vão, São
Bernardo”.18

Não pode ser encarada com estranheza, apesar da dura oposição da Igreja, a
participação de seus membros em ordens militares, batalhas e até em torneiros; tendo em vista
que o clero era composto por membros da nobreza. O universo das batalhas não era estranho a
um bispo de origem nobre, mas em contrapartida a participação de membros de uma
instituição que pregava o amor a Deus e ao próximo em atividades militares é no mínimo
desconcertante.
Apensar dos elevados preceitos morais que norteavam as ordens militares não tardou
muito para que elas se desviassem de seu caminho tomando uma postura mais prática. Pouco
depois de fundadas passaram a se caracterizarem mais por atividades financeiras e políticas do
que pela prática cavalheiresca. Emprestavam dinheiro a juros (até então um “privilégio” dos
judeus) e abriram espécies casas bancárias, onde guardavam o dinheiro alheio em troca de
pequenas taxas, como nos mostra Huizinga:

“As primeiras grandes ordens, as do Templo, de S. João e dos Cavaleiros


Teutônicos, nascidas da mútua penetração das idéias monásticas e feudais, cedo
assumiram o caráter de instituições econômicas e políticas. O seu fim não era já em
primeiro lugar a prática da cavalaria; esse elemento, tanto como as suas
aspirações espirituais, tinha sido mais ou menos apagada pela sua importância
financeira e política. Foi nas ordens de origem mais recente que a primitiva
concepção de um clube, de um jogo, de uma federação aristocrática reapareceu” 19

Muitos autores se dirigem aos membros das ordens de cavalaria como monges-
guerreiros donos de casas bancárias. Diante do que foi citado, podemos deduzir que não era
pequeno o prestígio e a influência de quem pertencia as essas ordens. O fato de pertencer a
uma ordem de cavalaria significava além do dito prestígio, o estreitamento dos laços de
dependência pessoal que foram tão importantes na Idade Média, pois devido a ausência de um
Estado e instituições inerentes a ele que zelassem pela ordem social e mediação de conflitos
de várias naturezas, quem pertencesse a uma ordem militar sem dúvida teria muitas vantagens
numa sociedade onde os direitos estavam diretamente ligados à força e o poder.

18
LINS, Ivan. Idade Média, A Cavalaria e as Cruzadas. 4ª edição: Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 1970.
Pg. 198.
27

3 – As Justas

Os desportos nobres conhecidos como justas ou torneios eram muito freqüentes no


Feudalismo. Era um universo que só fazia sentido para aquela classe (nobreza), sendo
portanto, desprovido de qualquer significado para as outras. São inúmeras as divergências
sobre os torneios, se eram apenas encenações ou se realmente existia uma violência além dos
limites considerados seguros, se realmente corria-se risco de morte. O que se pode afirmar
com convicção é que o torneiro constituía um universo onde a nobreza podia colocar em
prática todas as fantasias que criava nas cortes e nas novelas de cavalaria, onde elementos
estéticos, o orgulho, a honra, o financeiro e até o sexual se misturavam e se tornavam reais.
Tudo isso funcionavam como estímulo nas competições, diferenciando assim de quaisquer
outros esportes.

“As lutas desportivas sempre e por toda a contiveram um elemento


dramático e um elemento erótico. Nos torneiros medievais estes dois elementos
eram de tal modo dominantes que seu caráter de competição, de força e de coragem
quase tinha sido obliterado em favor do seu conteúdo romântico. Com os seus
bizarros ornamentos e a pomposa representação, a sua poética ilusão e veemência
equivalia-se ao drama das épocas ulteriores. A vida das aristocracias quando são
ainda fortes, mesmo que de pouca utilidade, tende-se a tornar um jogo de salão. A
fim de esquecer a dolorosa imperfeição da realidade, os nobres dão voltas à
contínua ilusão de uma vida heróica e elevada. Põem a máscara de Lancelote e
Tristão”.20

Como acima nos mostra Huizinga, as justas eram uma forma da nobreza escapar da
realidade em que viviam, uma realidade longe de ser fantástica, para nesse espaço viverem a
ilusão da idéia de cavalaria citada no primeiro capítulo, uma cavalaria que governava o
mundo e que tinha como rotina pomposas batalhas, que tinham como prêmio a glória e o amor
das damas, as quais eram a principal inspiração e motivação de um honrado cavaleiro.
Naturalmente que os torneios não se limitavam somente a fantasias heróicas, tinham
também seu lado prático, tanto financeiro como social. Afinal, por que não unir o útil ao
agradável? Nos torneios geralmente circulavam grande quantidade de dinheiro, e não apenas
por parte de quem participava mais também por parte de quem assistia. Ora, apostas em jogos
não é uma exclusividade dos contemporâneos. Veja o que nos diz Le Goff:

19
HUIZINGA, Johan. O Declínio da Idade Média: um estudo das formas de vida, pensamento e arte em França
e nos Países Baixos nos séculos XIV e XV. s/ed: Rio de Janeiro; Ulisséia. Pg. 87-88.
28

“(...) O torneio transformava-se uma ocasião de enriquecimento e de


empobrecimento – de transferência de riquezas comparáveis ás que se observaram
no mundo de mercadores e das feiras. (...) Daí se seguia um tráfico de moeda
considerável – ou melhor, como o numerário era ainda raro, um complexo jogo de
empréstimos, de apostas, de contratos, de dìvidas e de promessas „como no fim das
feiras‟ (G. Duby).” 21

Ivan Lins ainda vai mais longe na sua opinião sobre a questão econômica das justas:

“O que mais espanta, todavia, é se especializarem muitos cavaleiros em


aprisionar, nos torneios, seus companheiros de armas, enriquecendo-se não só com
equipagens e cavalos deles, mas, ainda, com os imensos resgates que cobravam
para restituí-los à liberdade.”22

Era alta a quantidade de dinheiro e de valores que circulavam nos torneiros. As apostas
podiam ser de simples cavalos até feudos inteiros, o que sem dúvida também contribuía para
apimentar mais as disputas. Existia também uma série de normas que regulamentavam
questões que variavam das formas de pontuação e vitória até que fim se dava aos despojos das
batalhas, onde, por exemplo, o cavaleiro que era derrubado perdia seu cavalo. No entanto,
seria um pouco exagerada a colocação e Lins que se refere ao aprisionamento de cavaleiros
vencidos, sendo esta uma prática que se limitava às batalhas feudais. Como também podemos
considerar exagerada a seguinte afirmação:

“Eram verdadeiras batalhas e não, como vulgarmente se supõe, simples


divertimento em que os cavaleiros, para gáudio das damas, ostentassem agilidade e
elegância. Num torneio realizado em Nuis, perto de Colônia, houve. Em 1240, nada
menos que sessenta mortes, sendo a mulher feudal ainda muito rude de modo a
comprazer-se nessas verdadeiras carnificinas sistemáticas.” 23

Seria demasiadamente estranho que nos torneiros a violência chegasse a tais extremos,
levando em conta que isso configuraria exatamente uma prática contrária da proposta pelo
torneio, como colocado por Huizinga: a fuga da realidade. A vaidade, o exibicionismo e a
representação do ideal de cavalaria são claramente os objetivos buscados nos torneios, não o
cotidiano inexorável das batalhas. Não que deixasse de acontecer mortes nos torneios, sim
elas aconteciam, mas não na proporção sugerida pelo referido autor.
Não podemos esquecer de um aspecto fundamental para o cavaleiro: a sua dama. A
dama se faz presente na vida de um cavaleiro a partir de sua investidura, onde faz os votos de

20
Idem, pg. 82.
21
LE GOFF, Jacques. O Imaginário Medieval. 2ª edição: Estampa, 1994. Pg. 275-276.
22
LINS, Ivan. Idade Média, A Cavalaria e as Cruzadas. 4ª edição: Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 1970.
Pg. 200.
23
Idem, pg. 200.
29

defender as mulheres indefesas e as donzelas. Daí durante o resto de sua vida como cavaleiro
a figura feminina ocupará uma posição de destaque, servindo principalmente de inspiração.
Durante um torneio, em meio às quedas dos cavalos, as trocas de golpes e o quebrar de lanças,
elmos e escudos, as atenções também estão voltadas para as tribunas onde estão as damas
torcendo por seus heróis.

“(...) esses jovens procuravam também nos torneios os tratos com mulheres:
„os torneios transformaram-se em escolas de cortesania... todos sabiam que podiam
ganhar o amor das damas‟ (G. Duby). Para dizer a verdade, isto podia também –
mas em condições suspeitas aos olhos da Igreja – uma oportunidade de casar, uma
„feira de maridos‟, como já alguém disse”.24

Enfim, a dama encontrava no torneio o lugar que lhe cabia no universo cavalheiresco,
como nos romances, o lugar onde seu amor era objeto de disputa, onde era cobiçada, onde se
concretizavam as fantasias que criava ao ler as novelas de cavalaria. Novamente observando a
questão prática, um lugar onde poderia arrumar um marido, lembrando que na vida real o
casamento era o destino da mulher medieval, ou se preferisse (quando lhe era permitido
preferir), a vida religiosa.
Diante do discutido não é difícil de entender porque a resistência da Igreja Católica em
relação às justas. Elas eram um dos poucos espaços em que a Igreja se via sem condições de
exercer de forma efetiva seu domínio. Eram eventos em que a Igreja encontrava concorrência
com suas atividades financeiras, onde se praticava a usura, a libertinagem, a violência,
melhor:

“Compreende-se por que motivo a Igreja condenava tão severamente os


torneios, que a feriam nos seus interesses espirituais e materiais. Já em 1130 os
concílios de Reims e de Clemont, aos quais assistiu o papa Inocêncio VI,
condenaram „essas deploráveis reuniões, ou feiras‟ torneses. E, no entanto os
oratores não condenavam totalmente os bellatores mortos nos torneios. A Igreja
recusava-lhes – como lembra Jacques de Vitry – a sepultura cristã mas concedia-
lhes „a penitência e o viático‟”.25

Fica claro que as atividades tanto sociais e financeiras ocorridas nos torneiros
agrediam diretamente a Igreja, até porque era moralmente errado que uma instituição que
pregava o amor a Deus e ao próximo compactuasse com eventos onde a brutalidade estava
presente a todo o momento. Não obstante, a “ligeira hipocrisia” praticada pela Igreja não
passa despercebida, pois apesar de condenar e vituperar contra as justas, não tomava medidas

24
LE GOFF, Jacques. O Imaginário Medieval. 2ª edição: Estampa, 1994. Pg. 275-276.
25
Idem, pg. 276.
30

enérgicas para dissipá-las, porque sabia que a nobreza era a sua maior fonte de riquezas, e
também dependia dela para manter os servos no seu devido lugar.

4 – Da Idéia de Cavalaria a Pratica da Cavalaria

Devemos, portanto, após faz análises feitas sobre as Ordens Militares, a formação e
investidura da cavalaria, procurar entender como funcionava a cavalaria na prática, melhor,
como se comportava o cavaleiro no seu cotidiano, se existia mesmo coerência entre o
discurso, a idéia e a prática da cavalaria.
Vimos no subcapítulo anterior como a nobreza e automaticamente a cavalaria, criavam
seu próprio universo nos torneios. Era bem possível que tal ambiente também fosse recriado
nos bailes nas cortes, festas de investiduras e outros eventos do gênero. Como nos disse
anteriormente Huizinga, a idéia de uma vida gloriosa brigava permanentemente com a
realidade, uma realidade onde vitórias e glórias eram bem menos freqüentes do que no
“mundo mágico” das justas. Observemos a citação a seguir:

“Ali encontramos as misérias da vida militar, as suas privações e tédio, a


alegre capacidade de suportar as fadigas e a coragem no perigo. Um castelão
passa à sua guarnição; há apenas quinze cavalos, animais velhos e magros, a maior
parte deles desferrados. Ele pôs dois homens em cada cavalo, mas entre os homens
há também cegos de um olho e estropiados. Fazem uma surtida à lavanderia do
inimigo para se apossarem de material com que remendar roupas do capitão. Uma
vaca capturada foi cortesmente restituìda ao capitão inimigo, a seu pedido”. 26

O autor cita nesta passagem uma descrição de um cronista medieval sobre uma batalha
onde participava Joana D’arc, em 1465; onde apesar da cavalaria estar em pleno processo de
decadência não havia perdido o seu idealismo, ao contrário, a idéia de cavalaria se encontrava
ainda mais forte. Analisando esta passagem podemos nos perguntar: onde estão os corcéis, as
reluzentes armaduras, os elmos dourados, a pompa, as donzelas, enfim, todos os adereços e
equipamentos que adornavam e possibilitavam as gloriosas batalhas entre cavaleiros? Parece
que estamos falando de outras batalhas que não está envolvida a cavalaria medieval.
Esses tipos de relatos não chegam muito ao nosso conhecimento. Ao contrário, a visão
romântica da cavalaria, que através da literatura e do cinema é que tem ha décadas, melhor, ha

26
HUIZINGA, Johan. O Declínio da Idade Média: um estudo das formas de vida, pensamento e arte em França
e nos Países Baixos nos séculos XIV e XV. s/ed: Rio de Janeiro; Ulisséia. Pg. 79.
31

séculos vem permeando nosso imaginário. Quem nunca assistiu ao filme Lancelot – O
Primeiro Cavaleiro do diretor Jerry Zucker, produzido pela Columbia Tristar, onde temos o
charmoso Richard Gere como Lancelot e, como Rei Arthur, ninguém menos do que Sean
Connery. Em filmes como este o ideal da cavalaria está fielmente representado. O cavaleiro é
posto como um herói que defende os fracos e oprimidos, as donzelas em apuros, combate em
nome de Deus e da Igreja, e após vencer as duras batalhas contra infiéis, dragões e coisas do
gênero, retornam para seus castelos encantados, sendo ainda durante sua chegada esperado e
aplaudido por todos os camponeses que ficam sob sua proteção.
Em outra obra cinematográfica, Coração de Cavaleiro, da Columbia Pictures, do
diretor Brian Helgeland e tendo como ator principal Heath Ledger representando o papel de
Willian Thatcher, que era um filho de camponês, e que serviu de escudeiro a um cavaleiro que
morreu num torneio, e Willian finge ser o cavaleiro que havia morrido e vence o torneio.
Após uma série de aventuras, no final do filme, todos descobrem que ele não passava de um
camponês disfarçado, mas que devido suas habilidades nas justas e a sua honra, acaba sendo
aclamado e aceito como um nobre, como Sir Willian. Enfim, filmes como esses bem como
determinadas obras literárias que perpetuam a visão oficial da cavalaria, o lado fantástico,
contribuem para que essa imagem equivocada da cavalaria fique impregnada na mente das
pessoas, induzindo-as a conclusões equivocadas não só sobre o comportamento da cavalaria
mas sobre o Feudalismo.
Não só de guerras e torneios viviam os cavaleiros, afinal as guerras mais cedo ou mais
tarde tinham que terminar, e o mesmo de dava com os torneios. Doravante os cavaleiros
voltavam aos seus feudos, pois antes de tudo eram nobres e muitos deles possuidores de
terras. Assim, certamente estavam sujeitos às práticas comuns dos homens de seu tempo,
como as duras explorações sobre os camponeses que estavam sob seu domínio. Vamos
relembrar como era a situação dos servos no Feudalismo:

“Nos campos, os senhores feudais lutavam desesperadamente entre si para


manter-se no poder, apertando ainda mais os laços de poder sobre os camponeses.
Elevando tributos, apoderando-se de bens comunais, reduzindo as áreas de cultivo
e reclamando a posse exclusiva das florestas, rios e pastagens, os senhores
expulsavam violentamente os camponeses de suas terras, privando-lhes dos meios
com que poderiam sobreviver. Criava-se, assim, uma imensa massa de pobres e
famintos que perambulavam pelos caminhos na esperança de encontrar uma cidade
onde pudessem trabalhar, o que só às vezes acontecia. E mesmo quando isso era
possível as condições em que se realizava o trabalho nas cidades eram
extremamente desfavoráveis para os trabalhadores”.27

27
MICELI, Paulo. O Feudalismo. 3ª edição: São Paulo; Atual, 1988. Pg. 54.
32

Miceli nos relembra com clareza o tratamento que a nobreza dispensava à classe dos
laboratores, como eram duras as formas de exploração pelos servos sofridas, resultando disso
a miséria, fome, pestes e muitas vezes a morte. Inclusive foi o aumento excessivo de tais
explorações sobre os camponeses durante a Guerra dos Cem anos, que ocorreu entre França e
Inglaterra, que foram também responsáveis pela ruína do Feudalismo, porque foram umas das
principais causas das revoltas camponesas.
Podemos encarar talvez com naturalidade esse tipo de postura da nobreza em relação
ao campesinato, pois afinal eram práticas comuns na Idade Média; mas, porém, não podemos
ter o mesmo ponto de vista em relação a membros pertencentes à ordem da cavalaria e das
ordens militares. Ora, mas por quê? Porque existia um aspecto fundamental que tornava essas
práticas contraditórias: o universalismo cristão presente não só nos votos da cavalaria como
em toda a sociedade feudal. O discurso cristão estava presente em todas as ordens feudais.
Estava presente também nos votos da cavalaria, como observamos na cerimônia de
investidura. Analisemos a passagem a seguir:

“A ninguém fiqueis devendo coisa alguma, exceto que vos ameis uns aos
outros; pois, quem ama o seu próximo tem cumprido a lei. Pois o [código da
lei]:”Não deves cometer adultério, não deves assassinar, não deve furtar, não deves
cobiçar”, e qualquer outro mandamento que haja, está englobado nesta palavra, a
saber: “Tens de amar o teu próximo como a ti mesmo”. O amor não obra o mal
para com o próximo; portanto, o amor é o cumprimento da lei”. Rom 13:08-10.

Esse trecho da epístola de São Paulo aos romanos ilustra bem a situação. Esse tipo de
discurso, essas pregações, estavam presentes a todo instante no Feudalismo, em todos lugares
da Europa cristã. O discurso do amor a Deus e do amor ao próximo, essência do cristianismo,
eram divulgados todo o tempo em vilas, estradas, cidades, castelos e igrejas, por via de
monges, beatos, clérigos e até doidos varridos. Sendo assim, atos de crueldade contra um
cristão, sendo ele servo ou nobre, não poderiam ser julgadas de todo o normal em uma
sociedade onde o amor ao próximo era um dos principais fundamentos religiosos. Quando um
senhor feudal, membro da ordem da cavalaria ou não, mandava enforcar crianças por terem
abatido uma pequena lebre, isso não pode ser considerado como uma prática normal e
corriqueira, tendo em vista que no domingo anterior o mesmo senhor havia comungado e
reafirmado seus deveres como cristão.
As ordens militares não escapam a esse padrão, como nos mostra Lins:

“Outros autores reprocham a Saladino o haver feito executar em sua própria


presença, os templários aprisionados. Esquecem-se, porém, de que, afora exceções
33

raríssimas, eram os templários os maiores facínoras da época. Já ao serem criados,


São Bernardo, que lhes redigira a regra, se congratulava, como vimos, se serem, em
sua quase totalidade, „celerados, ìmpios, raptores e sacrìlegos‟, dos quais era uma
felicidade livrar-se da Europa. (...) Assim, ao executá-los, não fez Saladino se não
antecipar, de pouco mais de um século, o ruidoso extermínio, que, deles, fez o neto
de São Luiz, Felipe o Belo, confiscando-lhes os bens e queimando vivos, de uma só
feita, cinqüenta e quatro, em companhia do seu Grão-Mestre, Jacques de Molay, no
que foi aprovado pelo Papa Clemente V”.28

Até as ordens militares que tem em suas fileiras membros do clero e normas bem mais
rígidas, praticavam violências em seu cotidiano, e não apenas nas Cruzadas, mas também na
própria Europa contra outros cristãos. Se até autores com uma visão “entusiasmada” da
cavalaria como Lins faz tais afirmações, realmente o discurso e prática da cavalaria
encontravam entre si enorme distância.
A partir do que foi discutido podemos entender melhor a relação entre discurso e
prática da cavalaria, bem como a postura da mesma em relação aos seus iguais e aos
camponeses. Também nos fica claro como essa “idéia de cavalaria” chega até nós através do
cinema e da literatura, em alguns casos até por livros de história. A cavalaria pomposa,
brilhante, imbuída de toda a glória e status não passava de representação, de arranjos de salão,
encontrando no seu cotidiano as mesmas dificuldades e mazelas dos outros “reles mortais”.

28
LINS, Ivan. Idade Média, A Cavalaria e as Cruzadas. 4ª edição: Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 1970.
Pp. 283-284.
34

4 – A DECADÊNCIA

Assim como o Feudalismo sofreu um processo de desintegração, a cavalaria também


passou por semelhante situação. A crise militar foi concomitante às demais crises que se
deram no final do período feudal, como a política, a religiosa, a econômica, ideológica, etc.
Naturalmente que a velocidade e a forma dessa desestruturação se deram de maneiras
diferentes nas várias variações feudais e da cavalaria que existiam na Europa. Como esse
trabalho visa a análise apenas da cavalaria anglo-francesa, nos limitaremos apenas ao seu
caso.
A arte na guerra manteve-se praticamente a mesma desde o início da Idade Média até
o final do Feudalismo. Em termos bélicos houve uma discreta evolução apenas na tecnologia
defensiva, couraças mais resistentes, escudos mais rígidos, malhas de aço mais coesas. Que
merece maior relevância no sentido ofensivo foi o surgimento da besta, porém devido a sua
violência ao arremessar flechas foi proibida pela Igreja, sendo alegado por esta que a besta
“era uma arma indigna de cristãos”. Devemos também nos lembrar que os combates no
feudalismo não visavam a morte do combatente, mas sim seu aprisionamento, pois assim o
cavaleiro estaria provando seu valor e também exigiria um resgate pelo prisioneiro, já que o
contrato feudo-vassálico exigia que o vassalo pagasse o resgate de seu suserano em caso de
seqüestro.
No final do Feudalismo, tecnologias que há muito não vinham sendo utilizadas como
batalhões de arqueiros e a infantaria passaram a serem empregadas novamente. A Guerra dos
Cem Anos foi fundamental para o emprego dessas “novas estratégias”. Devido à proporção
dos combates e ao desgaste e baixas que neles ocorriam, começou-se a abrir precedentes para
o ingresso de não nobres nas tropas como também a contratação de mercenários para
comporem as fileiras das infantarias e das tropas de arqueiros.

“A grande mudança na arte da guerra viria apenas no século XIV, com o


surgimento das lutas nacionalistas e sociais que pretendiam destruir o inimigo e
não apenas aprisioná-lo, como acontecia nos combates feudais. O guerreiro não
era mais o aristocrata detentor de senhorios, e sim o mercenário contratado por
monarcas e cidades. Generalizou-se então o uso do arco inglês, que, nas mãos de
um homem bem treinado, tinha uma precisão muito grande e um alcance de até 400
metros. Várias vezes, na Guerra dos Cem Anos, os arqueiros ingleses mostraram
que a cavalaria feudal tinha se tornado uma arma obsoleta. Na batalha de Crécy,
35

em 1346, as violentas flechadas, atravessando armaduras, fizeram mais de 1.500


mortos na cavalaria francesa. Além disso, nessa nova forma de luta o corpo de
arqueiros era apoiado pela ação de uma infantaria disciplinada e armada com
longas lanças, capas de agüentar uma carga dd cavalaria e, depois de dispersá-la,
passar ao ataque e aniquilá-la. (...) O sucesso definitivo das forças nacionais,
plebéias e mercenárias veio em Azincourt, em 1415, quando os arqueiros ingleses
destroçaram 7 mil cavaleiros feudais franceses”29.

Sem dúvida a cavalaria não estava preparada para esses tipos de estratégias militares.
Mas, contudo, o golpe final foi dado logo em seguida:

“A inovação bélica que definitivamente tornou ultrapassada a cavalaria


pesada feudal foram as armas de fogo. Na Europa Ocidental, elas foram usadas
pelas primeira vez no cerco de uma fortaleza, em 1324, e em uma batalha campal,
em 1346. Aí, é verdade, pouco influíram no resultado da luta, no entanto elas foram
se aperfeiçoando até a artilharia ocupar papel central nos combates”. 30

Todos nós certamente já ouvimos o seguinte chavão: “depois que inventaram a


pólvora, não existe ninguém mais forte que ninguém!” De uma forma debochada, tal chavão
serve para fazer uma alusão ao que todos os autores consideram como o tiro de misericórdia
na cavalaria enquanto estratégia militar: o aperfeiçoamento das armas de fogo. O cavaleiro
que por anos a fio se dedicava a pesados treinamentos, servindo como pajem, depois como
escudeiro e em seguida sendo investido na cavalaria; que, no momento antecedente ao
combate era vestido e armado pelo seu escudeiro, montava em seu cavalo, se colocava frente
aos inimigos e, quando esporeava seu cavalo e rompia em dispara rumo às tropas inimigas
levava um tipo tiro de canhão e era despedaçado junto com vários de seus pares.
A nobreza e a cavalaria sofreram um baque muito grande com as novas tecnologias
militares que atentavam contra seu universo, porém essas não foram as únicas transformações
que contribuíram para o processo de decadência da cavalaria.

“Em Beaucaire e na Provença, os burgueses têm o costume de receber as


insígnias cavalheirescas de nobres e de barões e mesmo de arcebispos e bispos, sem
ouvirem a opiniões nem terem a concordância do príncipe, e sem serem punidos
desfrutam dos privilégios de cavaleiro”.31

A investidura de elementos não nobres na ordem da cavalaria contribuiu para que a


instituição perdesse ainda mais o respeito, seu sentido e principalmente seu status. O ingresso
na cavalaria era baseado em valores como a honra, a dignidade e a nobreza, que passaram a

29
FRANCO JUNIOR, Hilário. O Feudalismo: uma sociedade religiosa, guerreira e camponesa. 1ª ed.: São
Paulo; Moderna, 1999. pp. 67-68.
30
Idem. Pg. 67-68.
31
Idem. Pg. 69.
36

ser desconsiderados com esse tipo de prática. Enquanto um nobre demorava anos treinando e
se preparando para ingressar na cavalaria, um burguês endinheirado comparava um título e se
tornava nobre. Daí passou a se formar a que muitos chamam de nobreza togada, a qual era
vítima de um preconceito e de um desprezo voraz por parte nobreza de sangue.
Interessante que, enquanto mais se encontravam ameaçados os valores da cavalaria e
da nobreza, mais estas se agarravam em seus ideais e em suas práticas pomposas e
exuberantes:

“Se a cavalaria tinha de ceder à estratégia e à tática, nem por isso deixava
de conservar importância no aparato exterior da guerra. Um exército do século XV,
com a sua esplendida exibição de ricos ornamentos e pompa solene, oferecia ainda
o espetáculo de um torneio de glória e honra. A quantidade de bandeiras e pendões,
a variedade de brasões heráldicos, o som dos clarins, os pregões de guerra
ressoando durante o dia inteiro, tudo isso, com o próprio traje militar e as
cerimônias de armar cavaleiros antes da batalha, tendia a dar à guerra a aparência
de um desporto nobre”.32

A nobreza ainda se agarrava às suas práticas, ao seu universo e aos seus símbolos na
tentativa de preservar todas as suas tradições. Eram bastante comuns no processo de transição
do Feudalismo para a Idade Moderna, bem como ressurgiram com toda a força no
Renascimento, a prática dos duelos, como podemos citar, por exemplo, que “o próprio Carlos
V, em duas ocasiões – 1526 e 1536 –, propõe formalmente ao rei de França terminarem as
suas divergências num combate singular.”33
Gradativamente e em velocidades diferentes, de acordo com cada região, a cavalaria
medieval enquanto estratégia militar foi sendo substituída ou utilizada em conjunto com as
outras estratégias militares que surgiram. Agora, enquanto representação, permaneceu por
longos anos ainda como parte do universo nobre, assim como somou grande contribuiu para a
formação de sentimentos como o patriotismo, o sentimento de corpo e unidade, de desejo de
justiça, e claro, com o enaltecimento e valorização da figura feminina.

32
HUIZINGA, Johan. O Declínio da Idade Média: um estudo das formas de vida, pensamento e arte em França
e nos Países Baixos nos séculos XIV e XV. s/ed: Rio de Janeiro; Ulisséia. Pg. 104.
33
Idem. Pg. 101.
37

5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cavalaria Medieval: heróis ou vilões? Devemos entender o título deste trabalho como
uma provocação, como um meio de chamar a atenção de todos para debaterem a respeito
dessas temáticas que vem sendo cada vez menos priorizadas nas universidades.
Evidentemente que pesquisas e estudos sobre temas mais contemporâneos e próximos de
nossa realidade devem ter altíssima relevância, porém não quer dizer que devemos nos
esquecer, ou melhor, “sermos menos preocupados” com temáticas como esta presente neste
trabalho, porque, afinal, suas heranças influíram decisivamente na formação da sociedade
ocidental contemporânea, no que diz respeito a hábitos, comportamentos, práticas culturais e
religiosas, etc.
A Idade Média teve como principal característica a sua dualidade. As oscilações de
comportamento entre bem e mal, certo e errado, entre um extremo e o outro eram certamente
reflexo da luta astral entre Deus e o Diabo, entre o céu e o inferno e todo o seu respectivo
imaginário. Talvez nessa perspectiva seja compreensível que mesmo um sujeito tomado por
princípios nobres e boas intenções seja capaz de assassinar ou mutilar a mais ingênua criança
pelo simples fato de ela ter caçado uma pequena lebre em suas propriedades. Claro que não!
O universalismo cristão, as mensagens de amor ao próximo e amor a Deus eram bem claras e
impregnavam toda a fala da Igreja, seja no “perdão das confissões” ou no sermão dominical,
ou em qualquer evento em que o subsídio para a fala católica fosse o Novo Testamento ou
qualquer princípio do cristianismo. A negligência e em muitas vezes a participação da Igreja
Católica nesses gestos de violência contra seu “próprio rebanho” foi uma característica
marcante da prática cavalheiresca. Bem, heróis mesmo só nos filmes e novelas de cavalaria.
38

5 – BIBLIOGRAFIA

1. ALBA, José. Roma. 1ª ed.: São Paulo; Mestre Jou, 1964.

2. BARK, Willian Carrol. Origens da Idade Média. 3ª ed.: Rio de Janeiro; Zahar, 1974.

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7. HUIZINGA, Johan. O Declínio da Idade Média: um estudo das formas de vida,


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11. LE GOFF, Jacques. Para um Novo Conceito de Idade Média: Tempo, Trabalho e
Cultura no Ocidente. s/ed.: Lisboa; Estampa, 1993.
39

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CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo (orgs). Domínios da História:
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