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A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

RUSIMÁRIO BERNARDES

A GESTÃO DO LIXO

Orientadora:
Profª Esp. Sisele Maria Caixeta

UNIPAM – CENTRO UNIVERSITÁRIO DE PATOS DE MINAS


FAFIPA – FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS
CURSO DE HISTÓRIA
PATOS DE MINAS, NOVEMBRO DE 2003
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A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

RUSIMÁRIO BERNARDES

A GESTÃO DO LIXO

Monografia apresentada como exigência parcial para


obtenção do título de Graduação em História, sob
orientação da Profª Esp. Sisele Maria Caixeta.

UNIPAM – CENTRO UNIVERSITÁRIO DE PATOS DE MINAS


FAFIPA – FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS
CURSO DE HISTÓRIA
PATOS DE MINAS, NOVEMBRO DE 2003
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A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

BANCA EXAMINADORA

Profª Esp. Sisele Maria Caixeta - Orientadora

Profª xxxxx

Profª Esp. Maria José Silva Levenhagen Ferreira


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A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

À minha mãe, Maria


Que fez de sua vida, Vitória
E por amor aos filhos de novo tudo, Faria
E pelo amor de sua vida Ercídio, Bernardes.
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A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

AGRADECIMENTOS

Obrigado Senhor por tudo que nos Destes. Agradeço a Deus por tudo. Pela
natureza que é bela e viva, pelos pássaros, pelos animais, pelo vento, pela água, pela terra em
que pisamos, pelos amigos que cativamos, pela família, pela humanidade, pelo presente da
vida, pela capacidade de amar, de perdoar, de entender e tolerar. Agradeço a Deus por tudo.
Por meu pai que foi pro céu quando eu era ainda menino, carrego doces lembranças que
minha mãe ajudou a guardar. Por minha mãe que é guerreira, guardiã, professora, educadora,
exemplo, pai, e, acima de tudo, amiga. Por meu irmão que sempre foi forte, decidido, e que
por isso, me transmitiu preciosos ensinamentos. Por meus professores e professoras que nesta
vida me ensinaram mais que as disciplinas, me ensinaram a ser quem sou, me ensinaram a
enxergar o mundo, a perceber a vida. Por meu primo Paulo César que me ensinou a respirar
pelo nariz. Pela Maria, mãe do Saulo, que me tirou os dentes de leite. Por nosso cachorrinho
de infância, Jerry, que viveu conosco por mais de vinte anos. Por meu amigo Paulo Caixeta
que me despertou o gosto pela leitura e pela musica. Por meus memoráveis amigos de
infância, Tininho e Sérgio, pelas brigas intermináveis por quem havia ganhado realmente o
jogo de gude (tudiretis, tudifrenti, tudivindas,...). Por minha turma de escola, que grandes
amigos fiz e onde aprendi a ser tolerante diante da grande diversidade de pensamentos. Por
meu amigo Evando que me ensinou a ser tolerante. Por meus tios e tias que sempre me
cuidaram com carinho. Por meu avô Manoel, que sempre me dizia: “Quem te viu, quem te
vê”, “Fica véi sem vergonha”, que também foi para o céu e nos deixou muitas saudades. Por
minha tia Aida que me ensinou que para ser feliz basta querer, e que a vida é sempre uma
festa. Por meu tio Ivan, que esteve presente em importantes momentos de minha vida, foi
exemplo, foi amigo. Por meu padrinho Urbano que me ensinou que depois dos dezessete anos,
a vida passa mais rápida. Por meu tio Aristeu, puro carinho e dedicação, que me ensinou que
simplicidade é tudo na vida, também foi pro céu e deixou saudades. Por meu primo Marcos
que me ensinou a ser um pouco mais engraçado. Pela minha sogra, Maria de Lourdes, pelo
carinho sempre e pela grande idéia de ter a Ivanilda. Pela minha esposa cujo apelido é Santa,
pois, para suportar minha constante inquietação, não podia ser diferente. Pelos milagres de
minha vida, presentes de Deus, eu agradeço, meus filhos queridos, Rúsber e Thainá. Pelo
trabalho que me ensinou o quanto pode ser produtivo, o ócio. Pelo caminho a pé até minha
escola primária, que tinha no meio uma igreja e que me lembrava de agradecer, a todo dia,
pela graça recebida. Ainda me lembro... Obrigado Senhor por tudo que nos Destes. Amém.
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A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

“A satisfação está no esforço feito para


alcançar o objetivo, e não em tê-lo alcançado”.

Mahatma Gandhi
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A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

SUMÁRIO

1 HORIZONTES TEÓRICOS ...................................................................................................................... 11

2 A HISTÓRIA E O MEIO AMBIENTE ..................................................................................................... 18

3 A NATUREZA MITIFICADA ................................................................................................................... 21

4 SOCIEDADE DE CONSUMO ................................................................................................................... 25

5 O DESPERDÍCIO ....................................................................................................................................... 30

6 A GERAÇÃO DOS RESÍDUOS ................................................................................................................ 33

7 AS CONSEQUÊNCIAS .............................................................................................................................. 37

8 SUSTENTABILIDADE .............................................................................................................................. 41

9 GESTÃO DO LIXO EM PATOS DE MINAS .......................................................................................... 44

10 NA ENCRUZILHADA DA SOBREVIVÊNCIA .................................................................................. 49


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A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

RESUMO

Onde guardaremos o nosso lixo, cada dia mais volumoso e necessitando de mais e
mais espaço para seu depósito? Necessitaremos construir, cada vez mais, grandes depósitos de
lixo? A conquista da lua não nos servirá de nada além de um futuro depósito para os nossos
resíduos? Questões como essas levaram a realização deste trabalho que busca, antes de mais
nada, perceber por que mudamos e o que nos motiva a agredir tão brutalmente o meio em que
vivemos.
Nas relações de consumo e produção, que hoje são os grandes vilões à natureza e
a sobrevivência dos homens neste planeta, podem estar as respostas para as ações que irão
reverter o quadro de crise ambiental instalado no planeta Terra.
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A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

1 INTRODUÇÃO

Toda atividade humana é passível de geração de resíduos. Isto sempre foi uma
prática nas relações entre o homem e a natureza desde o princípio dos tempos, tanto pela
necessidade de alimentação quanto pela de moradia. Esta geração de resíduos faz parte do
ciclo natural de transformação da natureza, os resíduos são gerados – tanto pelo homem
quanto pela própria natureza – e são decompostos por uma cadeia de microrganismos que
devolvem estes resíduos para o solo em forma de fertilizante. Esta relação de equilíbrio entre
a geração de resíduos e sua absorção pelo meio ambiente foi sendo quebrada pelo homem, na
medida de seu próprio desenvolvimento.
A partir, principalmente da revolução industrial e da eclosão do capitalismo, os
meios de produção e consumo se transformaram de tal forma que os indivíduos produzem
hoje, uma quantidade tão grande de resíduos que a natureza não é capaz de absorver na
velocidade de sua geração. Esta dificuldade de absorção não está somente no fato do aumento
da quantidade de resíduos, mas também pela complexidade de materiais descartados que
exigem muito mais tempo na decomposição do que os resíduos do passado.
Mesmo com o grande desenvolvimento da humanidade nas diversas áreas do
conhecimento, o homem mostra-se cada vez menos capaz de perceber a agressão que está
realizando a cada dia ao meio em que vive e do qual é totalmente dependente. Esta cegueira
deve estar pautada em algo maior e ou articulado para não ser percebido. Esta violência sem
precedentes para com a natureza, banalizada pela prática rotineira dos indivíduos, não faz
parte da cultura deixada pelos povos indígenas que dependiam da natureza e a ela guardavam
para o seu presente e para o futuro dos seus. Quais transformações foram necessárias para
chegarmos ao estágio que nos encontramos hoje, de profunda agressão voluntária ao meio
ambiente? Que mecanismos colaboraram para aprofundar nossa cegueira diante da destruição
que estamos, todos, realizando neste planeta? Quais as saídas para estancar, eliminar e ou
reduzir os impactos ao meio ambiente provocados pela ação do homem?
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A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

Esta monografia visa buscar, nos relacionamentos entre o homem e a natureza, as


respostas às origens e transformações pelas quais passaram o meio ambiente sob a tutela da
humanidade. O que, de fato, o homem faz para agravar a situação de equilíbrio do
ecossistema e de que forma isso se constrói.
Uma monografia, na área de História, que propõe-se a viabilizar reflexões acerca
do lixo produzido na sociedade capitalista, impõe um diálogo interdisciplinar, já por
definição. Assim, analisando vários trabalhos de sociólogos, ambientalistas, historiadores,
entre outros, foi possível chegar aos alicerces que permeiam as inter-relações entre o homem e
a natureza, trazendo para discussão, as implicações da ação humana no meio em que vive.
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A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

2 HORIZONTES TEÓRICOS

“Todo mundo sabe que esta se tornou quase uma obrigação de „scholarship‟,
já que a academia gosta muito de citações, quantas vezes ociosas e até
mesmo ridículas”.1

Desde Heródoto2 de Halicarnassos, até nossos dias, os diferentes modos de escrita


da história, vem sendo discutidos e colocados em discussão, frente às inúmeras possibilidades
de análises. As abordagens históricas se apresentam, filhas de seu tempo e de suas
necessidades, como formas de inquietação diante da possibilidade de inovar nos campos do
conhecimento histórico, interpretando, reinterpretando e, muitas vezes, enxergando situações
antes despercebidas. Conhecer a humanidade e o conjunto de suas conquistas, suas derrotas e
aprendizados, a coerência e a incoerência dos fatos, sua consistência, sua ideologia, são
matizes de uma ciência que se confunde entre a construção e a des-construção de suas
próprias edificações. História, Ciência do Homem, não o esqueçamos nunca3, nos lembra
Lucien Febvre em 1941. Segundo Febvre, a História é a “Ciência da mudança perpétua das
sociedades humanas, do seu perpétuo e necessário reajustamento a condições novas de
existência material, política, moral, religiosa, intelectual”. A evolução da ciência histórica é o
próprio retrato desta conspiração entre o saber em construção e o método vigente. Os
diferentes discursos e métodos históricos abordados até então pela historiografia, passando

1
MILTON Santos no prefácio de seu livro Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência
universal, justificando a ausência de citações neste seu trabalho ele complementa: “Mas a originalidade é a
interpretação ou a ênfase própria, a forma individual de combinar o que existe e o que é vislumbrado: a própria
definição do que constitui uma idéia”.
2
HERÓDOTO. (484 – 425 a C.) Geógrafo e historiador grego nascido em Halicarnassos (hoje Bodrum), cidade
turca da Anatólia, Ásia Menor, considerado por alguns historiadores como o primeiro geógrafo verdadeiro.
Escreveu Histórias, livro dividido em nove volumes, abrangendo dois séculos que precederam as guerras greco-
pérsicas e relatando os principais episódios do conflito. Contribuiu, assim, para o conhecimento de uma das
mais importantes civilizações de todos os tempos, a grega clássica e, por isso, é chamado de o pai da história,
denominação dada por Cícero.
3
FEBVRE, Lucien. Viver a História. In: Combates pela História. Editorial Presença, Lisboa, 1985. p. 39
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A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

pelos cronistas, eruditos, positivistas, Annales, Nova História, estruturalistas, configuram o


processo de desenvolvimento do saber histórico e das possibilidades, até então estabelecidas,
de interpretação das ações humanas.
Os historiadores se vêem em um constante embate metodológico quando o
assunto é a escrita da história. As normas e pressupostos acadêmicos, antes de dirigirem com
clareza os caminhos do historiador, podem, comumente, se tornar empecilhos à liberdade de
interpretação do objeto analisado. Essa obstrução no processo de análise, não se faz
propriamente em função de alguma falha nos mecanismos e métodos de análise histórica,
mas, sobretudo na obsessão que impera na academia em normatizar para garantir o padrão.
Ora, como bem disse Febvre, a história está em constante mudança e, independente da
importância dos padrões de análise, a liberdade em se enxergar o objeto de estudo é
fundamental para a construção e a reconstrução de novas possibilidades, novos caminhos. O
estar preso a pressupostos, nem sempre é garantia de um trabalho efetivo na compreensão da
história, pelo contrário, pode se tornar um incessante retorno ao que já foi discutido e
analisado, tornando uma sistemática de reprodução dos conhecimentos já visitados. Sem
dúvida alguma, a normatização e os padrões têm os seus espaços no desenho inicial de
qualquer condução de análise história, porém não deve se tornar um impedimento a
transitabilidade pelos caminhos ainda desconhecidos de nossa história. A justificativa por se
seguir estas normas, acaba sempre por esbarrar no reconhecimento do trabalho pela academia
e pelos seus pares. Ao que parece, o conjunto dos historiadores e do legado das conquistas na
análise histórica, aqui representado pela academia, mantém-se conservador na compreensão
do novo. Talvez, devido ao fato da história como ciência ter sido bastante questionada, a
academia tenha se armado defensivamente de uma série de pressupostos para garantir e
legitimar a sua existência. Sobremaneira, entende-se essa prática defensiva num cenário hostil
e de afirmação da história como ciência, porém torna-se inadmissível imaginar, hoje, a
manutenção desta prática que acaba por distanciar os historiadores do melhor de seu ofício:
ousar. Esta característica recebe destaque no trabalho de Yara Khoury, Maria do Rosário
Peixoto e Maria do Pilar Vieira, quando trata do material de pesquisa do historiador:

“Trabalhar com um conjunto tão diversificado de registros, sendo um campo ainda


pouco explorado, tem levado o historiador a abrir a própria trilha. Isto exige, além da
ousadia, de um certo espírito de pioneirismo e de uma disposição de „quebrar a
cara‟, uma reavaliação da prática da interdisciplinaridade. Esta não é pensada agora
em termos de utilização, pelo historiador, dos conhecimentos, conceitos e técnicas
elaboradas por outras disciplinas, mas significa a construção do objeto pelo
historiador a partir da problematização e de seus conhecimentos e das possíveis
contribuições de outras disciplinas. O diálogo estabelecido pelo historiador com as
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A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

evidências é mediado pelas reflexões feitas por outras disciplinas. É desse diálogo
que surgem os conceitos que o historiador vai elaborar”.4 (sic)

No desenvolvimento da história como ciência, sem dúvida alguma, houveram


grandes avanços e suas diversas etapas foram substancialmente necessárias para a formação
do conjunto que temos hoje como ciência da história. Apesar de todo o aprendizado, de todas
as inovações no campo do conhecimento histórico, a historia como ciência se vê refém de seu
próprio desenvolvimento enquanto esquece, negligencia e abandona o que há de melhor nas
escolas históricas dadas como superadas e ultrapassadas. Aparentemente até se observa entre
vários historiadores o gosto pela descoberta de que determinada linha metodológica não
consiga responder ou dar conta de determinada análise histórica – como se houvesse um
entendimento total, uma história total, um discurso do método histórico que fosse capaz de
dar conta de todos os questionamentos, em todos os tempos.
Esta visão se configura na prática ocidental de distinção entre o „bem‟ e o „mal‟,
de rejeição a possibilidade de existência dos dois binômios em um só, de se inter-
relacionarem. Nesta batalha insana, vários historiadores perdem a grande oportunidade de
retirar o melhor de cada escola histórica, de cada método, dos diferentes modos de escrita da
história. Aqui se observa um grande preconceito que limita e acaba por cercear o
desenvolvimento da própria ciência histórica. Fadados a não utilizar métodos ditos como
ultrapassados na historiografia, os historiadores de nosso tempo se vêem presos ao discurso
acadêmico e a todas as metodologias reconhecidas como aceitáveis, desprezando, como
exemplo, as práticas dos cronistas medievais, dos eruditos e dos positivistas. São vários os
exemplos de grandes sucessos e avanços no discurso histórico, desenvolvidos por não-
historiadores, intelectuais que não se formaram em história. Há também aqueles historiadores
que conseguiram se libertar das garras da obstinação acadêmica e desenvolveram obras de
sucesso, ignoradas em seu tempo, muito pela pressão da academia, porém resgatadas hoje e
reconhecidas como de grande inovação histórica.
Alguns exemplos importantes como o do advogado Sérgio Buarque de Holanda
com Raízes do Brasil de 1936, o também advogado Caio Prado Jr. com A formação do Brasil
contemporâneo de 1945, o jurista e sociólogo Raymundo Faoro com Os Donos do Poder –
Formação do patronato político brasileiro e Gilberto Freyre com Casa-grande & senzala de
1933, que, em seu tempo, foram capazes de ir além dos contornos oferecidos pela prática
acadêmica e pela linha intelectual da época, encontraram caminhos reveladores no

4
KHOURY, Yara Maria Aun; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha; VIEIRA, Maria do Pilar de Araújo. O
documento – atos e testemunhos da história. In:________. A pesquisa em História. 4°ed. São Paulo: Ática, 1998.
16
A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

entendimento do seu objeto de estudo. O sociólogo Gilberto Freyre em “1933, após exaustivas
pesquisas em arquivos nacionais e estrangeiros, publica Casa-Grande & Senzala, livro que
revoluciona os estudos sociais no Brasil, tanto pela novidade dos conceitos e métodos
utilizados quanto pela qualidade literária”.5 O ineditismo de sua obra torna Freyre malvisto
quando da publicação de Casa-grande & senzala. A relevância de seu trabalho e o
rompimento com o convencionalismo de seu tempo podem ser notados nas palavras de
Roberto Ventura:
“Freyre inovou em objeto, método e estilo. Em vez de seguir a ordenação
cronológica das histórias tradicionais, ou de adotar os períodos delimitados pelos
feitos do Estado ou da igreja, investigou a família patriarcal, gerada à sombra do
latifúndio e da escravidão. Usou fontes pouco convencionais, como os arquivos e as
cartas de família, os inventários e os testamentos, os livros de assento e as atas das
câmaras, os livros de ordens régias e as visitações do Santo ofício, teses médicas,
relatórios oficiais e estatutos de colégios, coleções de jornais, almanaques e revistas,
diários e livros de viagem, que reuniu com enorme voracidade documental. [...]
Freyre abordou a intimidade familiar e o cotidiano doméstico nos tempos coloniais,
destacando o papel da mulher, da criança e do escravo, „novos objetos‟da história,
com um foco semelhante ao que seria adotado pela escola dos Annales na França.
Escreveu uma história íntima da vida doméstica da família patriarcal brasileira, em
que resgata o cotidiano miúdo, como a arquitetura das casas, as tradições culinárias,
as práticas sexuais, os jogos infantis, as roupas e vestimentas”.6

Não que a fuga de alguns procedimentos acadêmicos e de algumas linhas


metodológicas da história sejam a garantia de sucesso na escrita da história, mas que há a
necessidade de se abrir os horizontes, enxergar a ciência histórica com os olhos da
multidiciplinaridade, das diversas possibilidades do desenvolvimento histórico, da alegria de
se fazer história. Já como disse o norte-americano Carl Sagan, “é importante que a ciência
avance em muitos campos ao mesmo tempo porque ela, como a natureza, é um todo.
Dividimos o estudo em disciplinas por conveniência, mas o entendimento do universo
pressupõe avanços em todas as direções do conhecimento humano”.7
Seria um despropósito mitificar a história como ciência una, capaz da dar conta de
todas as explicações possíveis para o conjunto das experiências e ações humanas. A história
faz parte de um todo, e sozinha é apenas um fragmento desse todo, isolada, se torna parte
menor de um conjunto. Cumprindo verdadeiramente seu papel, a história necessita, segundo
Febvre, tomar “uma consciência clara dos laços que, quer ela o saiba ou não, quer ela o queira
ou não, ligam a história às disciplinas que a rodeiam. E de que o seu destino nunca se

cap. 2. p.25-26.
5
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. 46°ed. Rio de Janeiro: Record, 2002. p.533
6
VENTURA, Roberto. Casa-Grande & Senzala: Ensaio ou Autobiografia? Biblioteca Virtual de Tropicologia.
Conferências. Disponível em : http://www.tropicologia.org.br/conferencia/2001casa_grande.html. Acesso em: 01
ago. 2003.
7
O narcisismo da ciência. Veja, São Paulo, v.1821, n.26, p.96-97, set. 2003. Edição Especial.
17
A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

separa”.8 E, diante dos alunos da École Normale Supérieure, no princípio do ano letivo de
1941, Febvre complementa:
“... para fazer história, virem resolutamente as costas ao passado e antes de mais
vivam. Envolvam-se na vida. Na vida intelectual, sem dúvida, em toda a sua
variedade. Historiadores, sejam geógrafos. Sejam também juristas e sociólogos, e
psicólogos: não fechem os olhos ao grande movimento que, à vossa frente,
transforma, a uma velocidade vertiginosa, as ciências do universo físico. Mas vivam,
também, uma vida prática. Não se contentem com presenciar da costa,
preguiçosamente, o que se passa no mar em fúria. (...) É tudo? Não. Não é mesmo
nada, se vocês continuarem a separar a ação do pensamento, a vida do historiador da
vida do homem. Entre a ação e o pensamento, não há separação. Não há barreira. É
preciso que a história deixe de vos aparecer como uma necrópole adormecida, onde
só passam sombras despojadas de substância. É preciso que, no velho palácio
silencioso onde ela dorme, vocês penetrem, animados da luta, todos cobertos da
poeira do combate, do sangue coagulado do monstro vencido – e que, abrindo as
janelas de par em par, avivando as luzes e restabelecendo o barulho, despertem com
a vossa própria vida, com a vossa vida quente e jovem, a vida gelada da Princesa
adormecida...”9

A História é construída no dia-a-dia, nas ações mínimas, nas relações entre os


indivíduos e o seu meio, nas transformações ocorridas, nas rupturas, nas permanências. Não
existiria a história dos homens sem a presença dos homens e, antes disso, da natureza.

8
Ibidem citação 2, p.34
9
Ibidem citação 2, p.40
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A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

3 A HISTÓRIA E O MEIO AMBIENTE

“Decerto, é correta a afirmação de que a história da humanidade está calcada


na história da moldagem da natureza pelo homem”. 10

Toda a história dos homens foi construída sobre a estrutura da natureza, a


domesticação dos animais, das plantas, o domínio sobre o vento, sobre a água, a invenção da
máquina, as construções humanas e as relações de poder sobre as posses naturais. As relações
entre os homens foram secundárias ao se comparar as relações dos homens com o meio
ambiente, estando, o meio ambiente, sempre presente na construção e desenvolvimento
humano.
Desde a busca por alimentos, a caça, a coleta, até a transformação do meio
buscando proteção e melhor acomodação, a construção das casas, dos vilarejos, das cidades, a
humanidade vem se inter-relacionando de modo intrínseco com a natureza, de tal maneira que
a história dos homens é a própria história das relações entre os homens e seu meio ambiente.
Verifiquemos o nosso mundo atual, o nosso desenvolvimento, o ambiente que nos cerca, o
que seria possível sem a presença da natureza e as relações que mantemos com ela? O que
seria da informática, da eletrônica, da tecnologia, sem as contribuições fundamentais da
natureza?
As descobertas do homem e o seu constante desenvolvimento estão diretamente
relacionados com o profundo conhecimento da natureza. A partir de nossa observação do
meio em que vivemos é que aprendemos as lições básicas de nossa própria sobrevivência e, a
partir delas, o caminho para o nosso desenvolvimento. Tudo a nossa volta é natureza, ou pelo
menos, o que sobrou dela. Todos os objetos que nos cercam tem o sangue da natureza, mesmo
aqueles produtos sintéticos (espelhos, cópias) são construções diretas ou indiretas da natureza.

10
AMIN, Samir. Imperialismo e Desenvolvimento desigual. Tradução de Eneida Araújo. São Paulo: Vértice,
Editora Revista dos Tribunais, 1987. p. 137
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A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

Observando o nosso corpo, o que não é natureza? Se somos o que comemos, quem somos nós
senão natureza pura.
É inútil querer desvincular o homem da natureza e de seu meio. Da mesma forma,
é nadar contra a maré, entender o meio ambiente como algo à parte, um bem da humanidade.
O meio ambiente é o homem e tudo o mais que o cerca. Jacques Vernier expõe muito bem a
relação entre os seres vivos em seu livro O Meio Ambiente. Expondo sobre o respeito à vida,
Vernier diz que, muito mais que considerações éticas ou religiosas, nossa relação com o meio
é uma questão de sobrevivência.

“O mundo vivo é uma incrível „cadeia de vidas‟, da qual não se destrói um elo
impunemente. Os animais necessitam das plantas, que são as únicas a converter a
energia solar em alimento. As plantas precisam dos animais para transportar seu
pólen e fecundá-las. Os animais só sobrevivem se suas presas sobreviverem. A
interdependência dos seres vivos é uma maravilha frágil. Acaba-se de descobrir que
uma árvore da ilha Maurícia (a „madeira de ferro‟) não se reproduzia mais ali há 300
anos. É porque as sementes dessa árvore outrora precisavam, para germinar, ser
comidas pelos famosos „dodos‟ e sofrer, no decorrer de seu trânsito intestinal, o
ataque de seus sucos gástricos. Sem dodos, não há mais madeira de ferro.”11

A história dos homens é também a história da natureza e a História como ciência,


não pode se abster de rever suas ligações, suas inter-relações, seus caminhos ocultos, suas
composições. Possíveis questionamentos quanto ao estudo do meio ambiente através dos
olhos do historiador, estão muito mais ligadas a prisões conceituais e metodológicas de cunho
ortodoxo do que, realmente, a uma possível falta de relacionamento entre a história e o meio
ambiente. John Lewis Gaddis em seu livro Paisagens da História: como os historiadores
mapeiam o passado, traz no capítulo Caos e Complexidade, a discussão frente aos caminhos
da história como ciência, os questionamentos, a sua relação com outras ciências e a busca de
um entendimento dos historiadores de seu papel e seus limites. Gaddis ressalta que “os
historiadores estão bem posicionados para servir como ponte entre as ciências naturais e as
ciências sociais. Mas primeiro é preciso reconhecer a posição estratégica que ocupamos na
Grande Cadeia Interdisciplinar da Existência”.12 Gaddis, citando Willian H. McNeill, diz que
poucos historiadores perceberam que:
“nossa profissão parece estar prestes a se tornar verdadeiramente imperial –
compartilhando perplexidades e limitações com todos os outros campos do
conhecimento, mesmo com os matemáticos mais resolutos e bem-sucedidos. Como
até certo ponto os historiadores focam a atenção para o comportamento humano – e
os historiados ecológicos estão estendendo seu domínio além dessa fronteira –
podemos evocar com todo o mérito o pleito de discursar sobre as dimensões mais

11
VERNIER, Jacques. O meio ambiente. Tradução Marina Appenzeller. 5ª ed. Campinas, São Paulo: Papirus,
1994. p.98
12
GADDIS, John Lewis. Paisagens da história: como os historiadores mapeiam o passado. Tradução de Marisa
Rocha Motta. Rio de Janeiro: Campus, 2003. p. 107
20
A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

sutis e complexas do universo conhecido e desconhecido” (McNeill, apud GADDIS,


2003, p. 107).

Em seu livro “O mito moderno da natureza intocada”, Antônio Carlos Diegues


ressalta a importância de haver, no Brasil, “a necessidade de se começar a fazer a história
sistemática das idéias que regeram e regem as relações entre a(s) sociedade(s) e a natureza”. 13
Diegues situa a história ecológica ou ambiental, como campo disciplinar, nos anos 70 nos
Estados Unidos com os trabalhos de Richard White e R. Nash. Na França, Diegues lembra os
trabalhos da década de 1930 com Lucien Febvre e Marc Bloch, publicados na revista Annales,
também, posteriormente, F. Braudel com seu trabalho sobre o Mediterrâneo e no Brasil,
destaca os trabalhos de Caio Prado sobre a relação entre os ciclos econômicos, sobretudo os
de monocultura de exportação e a devastação das florestas; como também a análise de Sérgio
Buarque de Holanda sobre a relação entre a busca do paraíso terreno e a admiração pela
natureza exuberante existente no Brasil na época da descoberta. Manoel Correia de Andrade,
na revista da USP, cita Gilberto Freyre nas décadas de 1930 e 1940, quando produziu livros
que tentavam explicar a formação da sociedade patriarcal portuguesa, enfatizando a
participação de pessoas de cor nessa formação e equacionando a importância dos problemas
ecológicos. Andrade destaca os trabalhos de Freyre sobre os impactos ecológicos na
substituição dos engenhos pelas usinas de açúcar e álcool:
“... com a implantação de grandes destilarias de álcool, substituindo as primitivas
destilações de aguardente, a usina passava a despejar nos rios e riachos resíduos, o
vinhoto, apodrecendo suas águas e provocando a morte dos peixes, além do mau
odor que se sente por vários quilômetros. Além disso, o desenvolvimento do
transporte ferroviário e o crescimento do número de padarias nas vilas e cidades
iriam provocar ou intensificar o desmatamento que era também intensificado pela
necessidade de expansão das áreas cultivadas com cana-de-açúcar”. 14

Aos historiadores cabem um importante papel que é, também, resgatar as origens


de nossa cultura natural, nossas relações com o meio em que vivemos, as origens de nossos
pré-conceitos e de nossas resistências em visualizar a natureza como algo passível de perda.
Cabe, também, aos historiadores, desmistificar o meio ambiente como sendo algo distante do
nosso dia-a-dia, entender os porquês da construção de áreas ambientais como oásis da vida
natural e perceber os mecanismos ideológicos que norteiam as relações entre o homem e a
natureza: compreender o ecossistema.

13
DIEGUES, Antônio Carlos Santana. O mito moderno da natureza intocada. 4°ed. São Paulo: Annablume:
HUCITEC: Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas e Áreas Úmidas Brasileiras, USP, 2002.
p.115
14
ANDRADE, Manuel Correia de. Gilberto Freyre e o impacto dos anos 30. Revista USP, São Paulo, n° 38
jun/jul/ago, 1998. p.44
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A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

4 A NATUREZA MITIFICADA

“Ao falarmos em mito, nós o tomamos não apenas no sentido etimológico de


narração pública de feitos lendários da comunidade (isto é, no sentido grego da
palavra mythos), mas também no sentido antropológico, no qual essa narrativa é a
solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram
caminhos para serem resolvidos no nível da realidade.
Se também dizemos mito fundador é porque, à maneira de toda fundatio, esse mito
impõe um vínculo interno com o passado como origem, isto é, com um passado que
não cessa nunca, que se conserva perenemente presente e, por isso mesmo, não
permite o trabalho da diferença temporal e da compreensão do presente enquanto tal.
Nesse sentido, falamos em mito também na acepção psicanalítica, ou seja, como
impulso à repetição de algo imaginário, que cria um bloqueio à percepção da
realidade e impede lidar com ela”.15

Utilizando a compreensão de mito fundador de Marilena Chauí, podemos decorrer


sobre a situação em que se encontram as relações entre o homem e a natureza. Desde a
descoberta oficial do Brasil pelos portugueses, já se constrói a idéia de paraíso perdido no
imaginário europeu. A descrição feita pelo escrivão, relativo às novas terras, deixa claro a
descoberta de um mundo perdido: “As águas são muitas, infinitas. Em tal maneira é graciosa
que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem! Contudo, o
melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente”.16 Esta idéia de
distanciamento entre a natureza e os povos civilizados, permanece muito arraigada até os
nossos dias, tornando-se a base de construção do mito em torno das relações entre homem e
natureza.
A natureza é vista como algo distante, longínquo, um local afastado das cidades
onde habitam enormes árvores e animais de toda espécie, onde as águas são límpidas e não há
poluição, onde os que ali porventura vivam são passíveis de pena. Esta idéia de natureza está
sempre associada aos cuidados do Estado para a manutenção deste espaço natural. O Estado é
visto como único mantenedor destas reservas, criando leis de proteção, guardando seu

15
CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. 1° ed. São Paulo: Editora Fundação Perseu
Abramo, 2000. p.9
16
UNIVERSIDADE, de São Paulo. Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro. A Carta, de Pero Vaz de
Caminha. Disponível em: http://www.bibvirt.futuro.usp.br/index.html?principal.html&2 . Acesso em: 19 set.
2000.
22
A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

território através de constante vigilância, sendo o guardião. Esta construção imaginária está a
serviço de algo maior e despreocupado com o consumo dos recursos naturais, com o
esgotamento da vida, com a sistemática destruição do planeta. Samir Amin, em seu trabalho
Imperialismo e Desenvolvimento Desigual, nos apresenta as origens dessa construção
ideológica:
“Pensemos nos protestos contra o urbanismo inumano e a invasão do automóvel, a
poluição industrial, etc. De início, se poderia supor que se tratava de problemas
específicos dos países industrializados avançados, que não podiam em absoluto
interessar aos povos do Terceiro Mundo.
No entanto, mais tarde viríamos descobrir que os motivos originários desses males
sociais derivam suas raízes dos mecanismos essenciais do funcionamento do sistema
econômico e social capitalista”.17

O mito de acepção psicanalítica mencionado por Chauí, está na construção de que


a natureza é algo confinado ao além mar das cidades, as relações do homem com o seu meio
ficam livres de qualquer julgamento, culpa e ou ressentimento – características contrárias ao
desenvolvimento e ao progressivo uso de todos os recursos disponíveis no meio urbano. O
bloqueio à percepção da realidade se materializa neste mito, impedindo os indivíduos de
determinar a relevância de cada ato na transformação da natureza. Assim como o cupinzeiro
constrói sua morada, os pássaros moldam seus ninhos, os roedores perfuram seus túneis, os
homens edificam suas moradias e transformam a sua realidade. Tudo isso é natureza, toda
essa relação entre animais e o meio ambiente é natureza, cada ação do indivíduo é uma ação
de efeito direto nos mecanismos naturais que regem as relações neste planeta. A conseqüência
direta do mito na vida dos indivíduos é a cegueira diante os impactos de suas ações no
23
A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

universo das ações da humanidade, e de seus impactos negativos à perpetuação da espécie na


Terra. Que impactos diretos ao ecossistema podem gerar práticas rotineiras como lavar o
coador de café, escovar os dentes com a torneira aberta, utilizar a mangueira de água para
varrer a calçada, deixar que os resíduos de comida caminhem para o esgoto, misturar todo tipo
de lixo em uma única embalagem para coleta, depositar lixo em terrenos baldios, utilizar
produtos nocivos ao meio ambiente? Inúmeras outras práticas, dos habitantes das cidades,
podem ser relacionadas com impactos diretos no meio ambiente.
As cidades não são agregados alheios à natureza e seus habitantes, livres para
quaisquer tipos de práticas, sobre a alegação de que não comprometeriam as áreas naturais
sob a redoma do Estado. As cidades são natureza. Assim como um formigueiro na floresta é
natureza, as cidades são formigueiros humanos. As cidades e seus habitantes estão plantados
na natureza, recebem a sua energia, respiram o seu ar, alimentam-se dos seus frutos, geram
resíduos que poluem, quebram ciclos de recuperação, devastam, extinguem espécies.
Samir levanta uma questão fundamental nas relações entre os homens e a natureza
neste planeta, a questão do compartilhamento, da coexistência.
“De início, pois, achava-se que os „problemas ambientais‟ eram específicos das
sociedades industriais desenvolvidas. Mas não o são. Por que? Simplesmente porque
o nosso mundo é um só, quer dizer, as mesmas leis fundamentais operam no centro e
na periferia do sistema, nos países desenvolvidos e nos subdesenvolvidos, ou
melhor, o que se chama de Terceiro Mundo e o que se poderia chamar de „primeiro
mundo‟ representam o avesso e o direito, porque o subdesenvolvimento e o
desenvolvimento constituem as duas faces de uma mesma moeda”.18

As intervenções do homem no meio ambiente serão não somente observadas e


sentidas por ele, mas também, por todos os demais. O planeta compreende um todo de ações e
reações, um conjunto de inter-relações dependentes onde cada ação, em particular, repercute
em reações por todo o globo, com intensidades, tempos e impactos diferentes, porém nada
fica impune.
Samir Amin destaca também o desperdício como fator preponderante ao
desequilíbrio do ecossistema:
O desperdício dos „recursos naturais e humanos‟ é, como tudo mais, desigualmente
repartido entre as diversas regiões do mundo. Certas zonas do nosso planeta dão
lugar a um superdesperdício para proveito de outras. Assim é que o centro se
beneficia desse desperdício organizado em escala planetária. Aí está um elemento
muito importante na crescente desigualdade de riqueza entre os países desenvolvidos
e aqueles que se tornaram, durante o processo histórico de integração no sistema
mundial, subdesenvolvidos.19

17
Ibidem nota 09. p. 133
18
Ibidem nota 15. p. 133
19
Idem nota 15. p. 133
24
A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

As zonas de desperdício citadas por Amin, entre os países desenvolvidos e aqueles


subdesenvolvidos, podem ser também observadas dentro dos países, pobres ou ricos, nos
estados, nos municípios. As zonas centrais dessas localidades tendem a desenvolver uma
relação de desperdício inúmeras vezes maior do que das zonas periféricas e acabam por
mostrar um desequilíbrio maior: a desigualdade social.
As relações entre o homem, a natureza e a realidade que os cerca estão
consolidadas numa base de consumo extremo e sem limites, num discurso que beneficia este
consumo, privilegiando uns poucos em detrimento da destruição gradativa da natureza e,
conseqüentemente de nossa vida neste planeta. Esta construção ideológica de um consumo
descabido provoca, entre outras questões, a miopia aos problemas ambientais, o
distanciamento, a construção da idéia de uma natureza que é imensa e nunca se esgota, de
águas que são infindas e sempre existirão, sempre se renovarão. Entre os constantes alarmes
da natureza com o esgotamento das fontes de água potável, a lenta transformação climática, o
acúmulo excessivo de lixo e a poluição desenfreada, os homens se vêm a volta com a proposta
de produtos novos, com novas embalagens, prometendo uma vida melhor, um máximo de
prazer por um mínimo de esforço. Esta luta diária travada entre a natureza e o consumismo
capitalista, expõe a fragilidade de entendimento dos homens diante da realidade que os cerca,
das transformações que ocorrem ao seu redor, de suas práticas de consumo e de geração de
resíduos e, principalmente da destinação destes resíduos.
Manter a natureza em uma redoma segura, sitiada em parques ecológicos, restrita
a alguns nichos específicos, trás a calma e a paz necessária ao consumo do dia-a-dia, é o ópio
moderno de negação de responsabilidade para com o planeta, para com os próximos e com as
próximas gerações. Sendo assim, o mito de uma natureza onipotente, torna-se uma solução
imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos, nesta teia
ideológica de interesses, para serem resolvidos no nível da realidade.
25
A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

5 SOCIEDADE DE CONSUMO

“Eles não lavram nem criam. Nem há aqui boi ou vaca, cabra, ovelha ou
galinha, ou qualquer outro animal que esteja acostumado ao viver do homem.
E não comem senão deste inhame, de que aqui há muito, e dessas sementes e
frutos que a terra e as árvores de si deitam. E com isto andam tais e tão rijos e
tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes
comemos”.20

A sábia descrição de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal, D. Manuel, por


ocasião do „achamento‟ do Brasil, acabou por passar despercebida diante dos olhos
gananciosos, provindos das possibilidades de enriquecimento dadas pelas navegações no
recente nascimento do capitalismo mundial. A incapacidade de perceber a realidade, no caso
de 1500, de que os nativos eram capazes de viverem felizes e saudáveis com o que a natureza
os fornecia, está muito mais ligada a idéia de progresso do que a própria cegueira no
entendimento da realidade. Os olhares portugueses estavam direcionados não às novidades
culturais do novo território, às possibilidades de integração com os nativos, mas nas vias de
fato de uma exploração lucrativa, que enriqueceria a corte portuguesa a qualquer custo. Esta
lógica já era percebida por Frei Vicente:

“por mais arraigados (os colonizadores) que na terra estejam, e por mais ricos que
sejam, tudo pretendem levar para Portugal e isto não tem só os que de lá vieram,
mas ainda os que cá nasceram, que uns e outros usam a terra não como senhores,
mas como usufrutuários, só para a desfrutarem e a deixarem destruída.” 21

A distinção entre as práticas dos nativos e os interesses dos novos colonizadores


está diretamente relacionada ao caminho que tomaram as formas de relações sociais de ambos
os povos, de seus objetivos de produção de bens materiais. Diegues enfatiza esta relação,

20
Ibidem nota 15.
21
DIEGUES, op. cit., p.116
26
A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

exemplificando as atitudes dos nativos da floresta amazônica em relação aos colonos vindos
do sul:
“Enquanto a floresta tropical amazônica representa para as tribos indígenas o seu
hábitat conhecido e acolhedor, morada dos antepassados, para o colono vindo do sul
da Brasil, ela representa um obstáculo a ser vencido para se implantar a agricultura e
a pecuária moderna, fonte potencial de lucro. Na realidade, eles participam de
sistemas econômicos diferentes e cada um desses sistemas determina um modo
específico de exploração dos recursos naturais e do uso do trabalho humano, assim
como o „bom‟ e o „mau uso‟ dos recursos naturais, segundo uma racionalidade
intencional específica”.22

O processo de desenvolvimento capitalista condiciona os indivíduos a uma busca


desenfreada pela sua própria justificativa social. Incorporando os artigos de consumo como
bens de características „mágicas‟, que pelo simples fato de possuí-lo faz o indivíduo se sentir
especial, os seres humanos são lançados a um consumismo descabido e de conseqüências
danosas ao seu meio ambiente.
A sociedade capitalista produz tamanha quantidade de dejetos que o ecossistema
não consegue absorvê-lo tanto por sua complexidade como pela sua infinidade de formas e
compostos – orgânicos, inorgânicos, metálicos, plásticos, vidros, mistos prensados, etc.
Washington Novaes, avaliando relatório do WWF e do Programa das Nações Unidas para o
Meio Ambiente (Pnuma), ressalta que:

“[...] o uso atual de recursos naturais no mundo já excede em 42,5% a capacidade de


renovação da biosfera, considerados os consumos de alimentos, de materiais e de
energia. Isso com a atual distribuição mais do que injusta, já que menos de 20% da
população mundial, que vive nos países industrializados, responde por mais de 80%
do consumo total. Enquanto isso, alguns países mais pobres parecem estar sendo
varridos do mapa da História.
Se cada ser humano consumir recursos naturais e emitir dióxido de carbono nos
níveis dos cidadãos norte-americanos, alemães ou franceses, dia o relatório WWF-
Pnuma, seriam necessários pelo menos mais dois planetas com recursos equivalentes
aos do nosso”.23

A fascinação pelo consumo que embriaga o imaginário popular, desenvolve nos


indivíduos reações de todos os tipos, desde a acreditar que o tipo de consumo é que define
quem realmente somos ou de que maneira somos enxergados pelos demais, até a atribuir ao
consumo voraz por novos produtos e objetos inovadores, um status de dependência hormonal,
ligada intimamente ao bem estar e à sobrevivência. Neste sentido, Carlos C. Penna destaca a
evolução das sociedades de consumo:

22
Ibidem nota 12. p.66
23
NOVAES, Washington. A década do impasse: da Rio-92 à Rio+10. São Paulo: Estação Liberdade: Instituto
Socioambiental, 2002. p.327
27
A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

“Com técnicas cada vez mais sofisticadas e dispondo de instrumentos cada vez mais
poderosos, o ser humano começou a atingir, há um ou dois séculos, níveis
inimagináveis de conforto material (e de busca de prazer). Com o acelerado processo
de industrialização e de aumento da produção, a partir do final da Segunda Guerra
Mundial, desenvolveu-se – principalmente entre os povos mais ricos – o que se
poderia denominar ideologia do conforto.”24

Penna ressalta a voracidade com que as pessoas compram mercadorias,


relacionando a massificação do consumo à propaganda em escala crescente e a cultura do
shopping center.
“A profunda necessidade humana de valorizar-se e ser respeitado pelos seus
semelhantes manifesta-se, de forma crescente, através do consumo. A simples
compra de bens seria uma prova de auto-estima e um meio de aceitação social. Esse
aspecto psicossocial promove, em um círculo vicioso, uma competição publicitária
cada vez mais acirrada, que estimula as pessoas a comprarem sempre mais. Como
alguém já observou, comentando sobre a cultura do consumo, as pessoas gastam um
dinheiro que não possuem, para comprar coisas de que não necessitam, para
impressionar pessoas que não conhecem”. 25

A escalada de consumo propiciada pelo avanço da produção e da ideologia


capitalista se verifica também nas relações de desejo, na construção da riqueza que age
vilmente sem obedecer a nenhum padrão – tanto mais rico e de posse de mais bens, mais rico
é o desejo de superarem os seus pares, quanto melhores os resultados de seus negócios, mais
se busca de melhoria, visando sempre o lucro e o enriquecimento, numa busca obsessiva e
doentia. As relações se alteram e o tempo social se divide em tempo de trabalho e tempo de
não-trabalho, sendo que o segundo vive em função do primeiro. Na sociedade de consumo, o
trabalho acaba por tornar-se o sustentáculo dessa obstinação pela aquisição de bens e sua
ostentação. Não importando as conseqüências dessa entrega e de sua natural servidão ao
sistema capitalista, os indivíduos marcham alienados ao encontro das mercadorias, estas,
verdadeiros deuses de seu tempo, dos quais invocam o luxo, o sucesso, a realização e o desejo
contínuo de ter sempre mais. Milton Santos em seu livro Por uma outra globalização,
enfatiza que, “consumismo e competitividade levam ao emagrecimento moral e intelectual da
pessoa, à redução da personalidade e da visão de mundo, convidando, também, a esquecer a
oposição fundamental entre a figura do consumidor e a figura do cidadão”.(SANTOS,
2002:49)
Os métodos empregados pela propaganda são categoricamente enfatizados por
Penna, onde ele diz que:

24
PENNA, Carlos Gabaglia. O estado do planeta – Sociedade de consumo e degradação ambiental. Rio de
Janeiro: Record, 1999. p.28
25
Ibidem nota 23. p. 52
28
A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

“Os métodos quase hipnóticos freqüentemente utilizados pela propaganda causam ao


pensamento crítico e à independência emocional. São métodos de lavagem cerebral,
que usam métodos subliminares e artifícios, como a repetição constante de um
anúncio ou o desvio do pensamento racional através do apelo ao desejo sexual. O
bombardeio com métodos puramente sugestivos é alienante, quando não
imbecilizante. Esse assalto à razão e ao senso de realidade por parte da publicidade
persegue o indivíduo onde ele estiver e a qualquer hora do dia ou da noite”. 26

Um importante exemplo de difusão de ideologia e de impregnação de consumo


são as revistas masculinas e femininas. Alicerçadas no desejo de seus leitores, as editoras não
vendem revistas, mas esperanças e ilusões a seus leitores. Um exemplo claro é a construção
feita pela revista masculina Playboy, a cada página vencida uma sensação de poder toma
conta do mais despretensioso leitor, através de propagandas chamativas evocando a virilidade
e a jovialidade masculina. É difícil não se envolver, afinal, há sempre uma silenciosamente e
linda mulher a nos espreitar com seu olhar submisso e entregue de corpo e alma.
A sensação de poder ultrapassa o entendimento e entram em erupção os
hormônios efervescentes do inocente leitor. É puro êxtase. Não há como se livrar da
possibilidade de passar de um simples e pacato morador de bairro de subúrbio a um playboy
cativante e charmoso. Estão ali todas as dicas para se ter sucesso, o glamour está em suas
próprias mãos – literalmente.
Nos anúncios de perfumes há que se perceber um imperativo maior e sublimar que
passa por despercebido aos olhos entusiasmados dos leitores, ávidos por glória e prazer: Use-
me ou seja um fracassado. As paisagens são as mais diversas possíveis, desde desertos hostis
e semi-áridos a extensas florestas tropicais exaltando sempre a característica desbravadora
deste guerreiro vencedor. “Em poucas linhas, um homem” anúncio da Natura veiculado na
revista Playboy de agosto de 1996 retrata bem o que apresentamos anteriormente. Com a foto
de um vencedor, decidido, olhar fixo e certeiro, de formas esculturais e sabedor de sua
potencialidade. São vários os exemplos, desde desodorantes, calçados, roupas e bebidas, tudo
apresentado de forma a exaltar o homem bem sucedido que usufrui desses totens de poder.
Estar na moda é ser um homem playboy, perfumado, habilidoso com as mulheres, acolhedor,
sensível à inferioridade feminina, elegante, com seu terno gabardine Príncipe de Gales e
gravata de seda Hugo Boss, usando um sapato de couro Samello.
A explosão do consumo se materializa na busca incansável pela substituição de
sentimentos, sensações e emoções perdidas na construção desse novo modo de existência.
Alheio a tudo e a todos, este indivíduo, obstinado na busca da realização pela aquisição de tais
mercadorias, movimenta um mercado cada vez mais crescente. O seu distanciamento dessa

26
Ibidem nota 23. p.55
29
A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

realidade por via do desemprego, de baixos salários, o criva de frustrações e de infelicidade,


obrigando-o a maximizar seus esforços para a manutenção de sua própria identidade – já
totalmente determinada pelo consumo.

Explosão do Consumo
1970 1990
N° de automóveis 250 milhões 580 milhões
Barris/ano de petróleo 17 bilhões 24 bilhões
Pés cúbicos de gás natural 31 trilhões 70 trilhões
Residências com aparelhos de TV 244 milhões 658 milhões
Tráfego Aéreo Comercial (passageiros) 74 milhões 280 milhões
Fonte: O estado do planeta. Carlos C. Penna (1999. p.29-31)

A obsessão pelo consumo e a insistente miragem que reflete a busca incansável


pela riqueza, acaba por destruir as relações entre os indivíduos, alterando suas vidas, seus
comportamentos, seus valores. Cada vez mais vão se perdendo as características de vida em
comum, na comunidade. O isolamento em função da dedicação a obtenção dos recursos para
aquisição de riqueza se manifesta na vizinhança cada vez mais desconhecida, nos encontros
sociais por vezes menores e menos felizes, na substituição das conversas familiares pelos
momentos à frente da televisão. A felicidade, por vezes, não se encontra e ou se materializa na
aquisição de mercadorias, o que força insanamente a busca por novas mercadorias a fim se
suprir as deficiências afetivas da anterior. Os relacionamentos se tornam permeados por dar e
receber mercadorias, quando o próprio sentimento não é substituído pela realização
temporária de afeto, na troca pela troca – o que se vê na pornografia quando transforma o
orgasmo em mercadoria.
Inegavelmente, as inovações e o desenvolvimento tecnológico trouxeram, aos
indivíduos, uma vida de maior conforto. As formas de mudanças, porém, são questionáveis.
Quantos estão diante dessas possibilidades, quantos se privilegiam dos avanços tecnológicos,
dos avanços na medicina, da agricultura, das ciências no seu todo? Onde habita a igualdade ou
pode habitar a felicidade, numa coexistência entre o consumo excessivo de populações
centrais e total falta de recursos básicos em populações periféricas? De forma geral, grande
parte da população foi tocada pelo dedo da modernidade, da evolução, mas a que preço? Ao
passo de grandes avanços e de inestimável desenvolvimento, como podem ainda, milhões de
seres humanos passarem fome e se entregarem ao martírio da subnutrição?
30
A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

6 O DESPERDÍCIO

“A renovação das coisas não é somente, nem principalmente, fruto da


aceleração do progresso real das forças produtivas; ela é também e sobretudo
necessária ao sistema de extração de mais-valia, por conseguinte, no
verdadeiro sentido do termo, de desperdício. Este desperdício afeta
profundamente a relação do homem com a coisa; esta, como ele mesmo,
torna-se unidimensional: a dimensão do uso imediato. Ao mesmo tempo, o
homem, que não teme a natureza, não acredita mais na eternidade”.27

Não somente os homens sofreram drásticas alterações e mudanças no decorrer da


caminhada consumista, as mercadorias de que fazem uso deixaram seu caráter de
permanência, de solidez. Os bens hoje produzidos trazem consigo a fragilidade de sua
construção. Cada objeto possui o seu tempo, a sua duração, e mesmo que extrapole o previsto,
é logo descartado ao preço de sua destituição de modernidade. O „novo‟ acaba por delimitar a
substituição do „velho‟, do ultrapassado. Este mecanismo, na mesma medida em que provoca
o consumo e acelera a economia, funde as bases do desperdício, da geração de resíduos, do
sucateamento dos recursos.

27
SAMIR, Amin. p.80
31
A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

Bem antes da compreensão da situação em que se encontra a exploração dos


recursos naturais, o consumo e sua conseqüente geração de resíduos, transformam o meio
ambiente, imprimindo uma nova configuração ao processo de deposição das sobras humanas.
Materiais trabalhados, prensados, moldados de diferentes elementos que os tornam
impermeáveis não somente ao poder de reconstrução dos solos, mas ao próprio tempo.
Eletrodomésticos e eletroeletrônicos de toda espécie são despejados em sucatas cada vez mais
impregnadas de materiais sem utilização, defasados pela velocidade da tecnologia e pela
insensatez da substituição ao novo, ao moderno.
A produção e consumo de bens não duráveis tornou-se a grande coqueluche da
modernidade, acarretando ao meio ambiente a sua maior agressão. As fantásticas embalagens
„pat‟ que revolucionaram a indústria e ampliaram as possibilidades de comércio de produtos
de praticamente todas as áreas e produção, também são as principais vilãs para o ecossistema.
As embalagens estão presentes em todos os lares, comércios, indústrias, hospitais, escolas e o
mais agravante, estão presente em rios, lagos, fontes, matas, nascentes, obstruindo dutos,
bloqueando riachos, engarrafando a vida.
De igual agressão, são também os materiais descartáveis como copos plásticos –
logo após o seu uso, o único destino é o lixo. Uma enormidade de itens com um tempo de
vida muitas vezes inferior ao tempo de sua produção, observados desde o momento da
captação da matéria básica, passando pelo transporte, transformação, embalagem, transporte
novamente e venda. Latas de conservas, canetas esferográficas, talheres e pratos de plástico, e
uma infinidade de outros materiais possuem um tempo de vida instantâneo, de enorme
aceitação pela sua praticidade e que acolhe muito bem a pressa usual dos indivíduos que não
32
A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

têm tempo para praticamente nada a não ser para a sua própria preocupação de estar sem
tempo.
33
A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

7 A GERAÇÃO DOS RESÍDUOS

“Vi ontem um bicho


Na imundice do pátio
Catando comida entre os detritos

Quando achava alguma coisa,


Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,


Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem”.28

Antes de entrarmos no tema da geração de resíduos, devemos retomar a


experiência dos verdadeiros filhos dessas terras, assim como na época do descobrimento do
Brasil pelos portugueses, que aqui chegaram e encontraram uma extensa população de nativos
que viviam e sobreviviam do que a natureza lhes oferecia. Nas palavras de Pero Vaz, “andam
tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes
comemos”.29 Washington Novais destaca as características dos povos indígenas do Alto
Xingu na atualidade, que nos faz refletir sobre os caminhos que hoje tomamos:

“[...]recentemente não tinham, segundo estudo da Escola Paulista de Medicina,


problemas cardiovasculares (hipertensão, infarto, derrame), porque não tem nenhum
dos fatores de risco (não fumam, não bebem, não têm vida sedentária, não
consomem gorduras animais, não tem diabetes, stress nem herança genética
comprometida). Povos que trabalham apenas o necessário, divertem-se muito,
cantam e dançam, são auto-suficientes em termos econômicos, conhecem sua
biodiversidade e a utilizam com competência.
Mas os povos do Alto Xingu não constroem aldeias à margem da água porque
sabem que poderão sofrer com inundações. Não devastam a base de recursos
naturais, até mudam as aldeias de lugar para permitir-lhe descanso e recuperação –
quando vêem que isso é necessário. Não promovem aglomerações populacionais –
têm poucos filhos por casal e dividem o contingente humano em mais de uma aldeia,

28
BANDEIRA, Manuel. O bicho. Disponível em: http://www.casadobruxo.com.br/poesia/m/bicho.htm . Acesso
em: 23 out 2002.
29
Ibidem nota 15.
34
A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

a partir de certos limites. Praticamente não geram lixo (só degradável), nem o
amontoam, nem o transformam em problema”. 30

Naturalmente, todos os resíduos da ação humana deveriam ser destinados


conscientemente a fim de causar o mínimo de impacto possível ao meio ambiente e serem
utilizados de forma a reintegrar a cadeia de recuperação promovida pela própria natureza. Os
resíduos orgânicos seriam transformados em substrato para adubação e os compostos
plásticos, metálicos e papéis seriam reciclados. O que vemos, na prática, está muito distante
disso. O que nos impede de agir naturalmente? O que nos distancia tanto da natureza e nos
transforma, de tal forma, em agressores do meio em que vivemos?
Tão nocivo ao ser humano, o lixo é tratado com tamanha displicência que seu
acondicionamento é desordenado e efetuado sem nenhum critério na maioria das cidades. A
sobrevivência da espécie urbana está fadada ao trato do seu habitat e o homem muito se
envaidece com as questões ilusórias do capitalismo dilacerante e selvagem, se colocando
unicamente nas mãos do tempo.

Comprometendo as futuras gerações, o lixo desempenha um papel fundamental


nas transformações do meio ambiente e na sua degradação. Como no caso das bactérias que
atacam um alimento, digerindo-o e eliminando suas excreções até que seu ambiente esteja tão
impróprio que fada o seu gerador à letargia, a sociedade capitalista corre o mesmo risco
enquanto poluidora de seu meio ambiente com dejetos de toda espécie, disseminando os
poluentes no ar, nas águas, e agredindo a terra com materiais não degradáveis. No mínimo

30
Ibidem nota 22. p.180
35
A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

este meio é gerador de pragas que infestam as cidades provocando doenças, gerando despesas
ao município e ao homem, este pagando caro pela sua própria displicência.
Segundo Novaes, cada morador das áreas urbanas no Brasil está produzindo em
média 1 quilo de resíduos domiciliares por dia, aos quais devem ser acrescidos os resíduos
industriais (quatro vezes mais que estes, no Estado de São Paulo, por exemplo), os entulhos,
os chamados resíduos especiais (embalagens de agrotóxicos, pneus, produtos tecnológicos),
os resíduos de estabelecimentos de saúde e os efluentes rurais. Somente a coleta de lixo
domiciliar e comercial custa hoje no País mais de 3 milhões por dia (ao preço médio de R$30
por tonelada recolhida).31

Além do alto custo de recolhimento desses resíduos, outro grave problema é a


destinação dada a eles:
“Embora as estatísticas sejam precárias, afirma-se que só 11% dos resíduos
domiciliares e comerciais vão para aterros adequados, assim como uns 10% dos
resíduos industriais; 28% dos municípios brasileiros, diz o Cempre, nem sequer tem
coleta e, em 65% deles, é irregular. E se se lembrar que mais de 50% dos municípios
brasileiros não têm arrecadação própria, vivem de repasses federais e estaduais
(portanto, não recebem taxa de lixo embutida no IPTU), entende-se por que mais de
50% do lixo urbano vai para lixões”. 32

31
Ibidem nota 22. p.171
32
Ibidem nota 22. p.172
36
A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

Os lixões, hoje espalhados pelos municípios brasileiros, representam uma mina de


recursos desperdiçados, um aglomerado de resíduos humanos depositados inadequadamente
na natureza, gerando a degradação dos solos, a contaminação dos mananciais e lençóis
subterrâneos, a poluição do ar e a disseminação crescente de doenças como a malária, a febre
amarela e a leishmaniose. A plástica poética de Manuel Bandeira em seu poema „O bicho‟,
nos deixa diante de outra grave realidade dos lixões, a figura do trabalhador do lixo, excluídos
do sistema econômico, da produção e do consumo, eles trabalham pela sobrevivência em
condições desumanas, expostos diariamente aos riscos e perigos destes resíduos.
37
A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

8 AS CONSEQUÊNCIAS PARA O ECOSSISTEMA

“A globalização mata a noção de solidariedade, devolve o homem à condição


primitiva do cada um por si e, como se voltássemos a ser animais da selva,
reduz as noções de moralidade pública e particular a um quase nada”. 33

O grande deslocamento das populações da zona rural para as cidades a procura de


melhores condições de vida, deslocados principalmente por sérias falhas na política
governamental para o setor agrícola, e o constante crescimento das cidades, provocam uma
onda de acontecimentos de profunda agressão ao meio ambiente. Desafortunados pela
desigualdade social e a má distribuição de renda, milhares de desempregados se espalham nas
grandes cidades, excluídos das fontes de produção e renda, são forçados a buscar formas
alternativas de sobrevivência. Amontoam-se em vilas e favelas por não terem onde morar,
construindo suas casas em encostas, desmatando e retirando a cobertura vegetal que transfere
estabilidade para aquelas áreas de declive, tornam transformam estas áreas em locais
instáveis, que com a invasão das casas sem nenhuma estrutura, acabam por impermeabilizar o
terreno e formar vias, entre as residências, de escoamento que acabam por acelerar os
processos de erosão, principalmente nos períodos de intensas chuvas. As conseqüências são
inúmeras, desde desmoronamentos, mortes de vidas humanas, até a destruição da camada
superficial dos acostamentos, formação de crateras e o arraste do solo para os rios e cursos
d‟água.

33
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 9°ed. Rio de
Janeiro: Record, 2002. p.65
38
A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

Este acúmulo de pessoas nas cidades acaba por precipitar o desequilíbrio entre a
destruição dos recursos naturais e seu próprio restabelecimento. Estes aglomerados de seres
humanos, consumidores em potencial, despejam nas águas e no solo, uma enormidade de
resíduos poluentes de difícil absorção pela natureza, causando a morte e contaminação dos
peixes, poluição das águas, desalojamento de animais e pássaros, desequilíbrio ecológico e a
conseqüente proliferação de pragas.
O aumento do consumo humano dos recursos naturais provoca e desencadeia uma
série de fenômenos na natureza, transformando o ambiente e trazendo a tona sérias questões
ambientais de impacto direto aos seres humanos. Esta aceleração no consumo e o grave
problema do desperdício, aliados a má utilização dos recursos naturais, geram uma busca por
produção de alimentos que, de forma competitiva e agressiva, não reconhecem o trato dos
39
A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

recursos naturais, causando a degradação dos mesmos. O uso intensivo da agricultura


empobrece o solo e provoca uma perda dos índices de nitrogênio, fosfato e potássio, levando a
um gasto adicional insuportável na reposição da fertilidade. A irrigação compromete o lençol
freático, favorece a salinização, mina o equilíbrio dos rios, lagos e comprometem a sua
biodiversidade. Constantes aberturas de novas áreas para plantio, levando até à invasão de
matas ciliares, agravam o quadro e acentuam o assoreamento de rios. O uso abusivo de
fertilizantes provoca uma elevação anormal nas concentrações desses produtos nos cursos de
água, a crescente acidificação dos solos e a contaminação de aqüíferos e reservas de água.
Com a perda do equilíbrio ecológico, os agricultores passam a utilizar cada vez mais
agrotóxico que, em princípio poluem os solos e águas, contribuindo para o agravamento de
problemas de saúde dos indivíduos.

Um de nossos maiores bens, efervescência da vida, também é um de nossos


maiores alvos de contaminação. As águas são constantemente agredidas pelos despejos de
esgotos domiciliares, industriais e rurais. Nas cidades esta agressão às águas pode ser
percebida facilmente pela simples observação dos cursos d‟água. Resíduos de toda natureza
são despejados sem nenhum critério nos cursos de água, pneus, plásticos, vasilhames, restos
de animais, entulhos, restos e resíduos industriais. O que antes era um curso d‟água, oriundo
de vida e fértil em biodiversidade, se transforma em uma grande canalização de esgoto a céu
aberto, estéril e proliferador de pragas e doenças. Além de reduzir a oxigenação das águas e
provocar a morte de várias vidas que ali se desenvolvem, os resíduos despejados nos cursos
d‟água impõe um custo cada vez mais alto no tratamento da água para consumo humano.
40
A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

Com uma frota cada vez maior de veículos, tratores, locomotivas, indústrias a
todo vapor na produção dos bens de consumo, o despejo de gás carbônico (CO2) no ar chega a
limites perigosos, comprometendo a qualidade do ar e desencadeando uma série de doenças
além de favorecer a formação do efeito estufa. A utilização de produtos químicos de forma
desregrada e que compromete o ecossistema, também se mostra como um fator de risco a ser
considerado, principalmente na destruição da camada de ozônio da estratosfera.

“O buraco na camada de ozônio da Antártida atingiu este ano uma área três vezes
maior que a superfície dos Estados Unidos; nos últimos 20 anos, a temperatura
média no Alasca, na Sibéria e em partes do Canadá aumentou 4 graus centígrados; a
camada de gelo no Ártico esteve, nos últimos meses, 40% menos espessa que em
outros anos; a área ocupada pelo gelo polar foi 6% menor; e pela primeira vez um
navio chegou à latitude 90°N, onde se abriu um canal de 1,5 Km de largura;
relatório preliminar do painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, formado
pro cientistas de quase 200 países, reitera não haver mais dúvida de que as ações
humanas são responsáveis pela maior parte do aumento da temperatura da Terra
observado neste século e principalmente nas últimas décadas; a prosseguir o ritmo
de emissão de poluentes na atmosfera, esse aumento poderá chegar no próximo
século a até 6 graus centígrados, com conseqüências inimagináveis para o planeta e
seus habitantes”.34

34
Ibidem nota 22. p.328
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A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

A vida nas cidades amplia o consumo de produtos industrializados, proliferando o


circuito de consumo e produção de mercadorias. A relação de consumo e desperdício gera
uma grande quantidade de detritos nas cidades que não encontram locais para sua deposição.
A concentração destes detritos é cada dia maior e sua diversidade impede que a natureza
absorva-os dando continuidade ao ciclo da vida. Os entulhos, restos de construções, lixos
domiciliares, hospitalares e os restos industriais, se concentram nos lixões e nos diversos
pontos das cidades, onde vão sendo despejados sem nenhum critério nos rios, lagos,
encostamentos de estradas e vias. O desenvolvimento de pragas nestes setores é inevitável.
Outro fator importante é a concentração dos excluídos do sistema econômico que, encontram
no ato de revirar o lixo, o seu sustento.
Uma prática que compromete a saúde dos indivíduos e que é freqüentemente
utilizada nas cidades é a queima do lixo. Um dos graves problemas da queima de lixo, prática
comum também nos lixões, é a poluição do ar com fumaça e substâncias nocivas ao ser
humano. A aspiração freqüente deste ar poluído causa diversos males à saúde, como
bronquite, asma, e outros problemas respiratórios, os principais atingidos são crianças e
idosos.
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A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

9 SUSTENTABILIDADE

Com o crescimento da consciência global a respeito dos problemas ambientais


causados pela ação do homem, a Organização das Nações Unidas – ONU, realizou o primeiro
grande encontro mundial sobre temas ecológicos. A Conferência das Nações Unidas sobre o
Meio Ambiente, realizada em Estocolmo (Suécia) no ano de 1972, trouxe o princípio de que
os recursos naturais deviam ser preservados em benefício das gerações presentes e futuras a
partir de cuidados especiais por parte da humanidade. Nesta conferência, também foi criado o
Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma).
A idéia de um desenvolvimento que satisfaça as nossas necessidades e não
comprometa as gerações futuras, o „desenvolvimento sustentável‟, foi lançada em 1987 pelo
relatório Nosso Futuro Comum – também conhecido como Relatório Brundtland.
A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento,
realizada em 1992 no Rio de Janeiro, também conhecida como Cúpula da Terra ou Rio 92,
lançou cinco documentos importantes para a construção do desenvolvimento sustentável:
Convenção sobre Biodiversidade, Convenção sobre Mudanças Climáticas, Agenda 21,
Princípios para Administração Sustentável das Florestas e a Declaração do Rio de Janeiro
Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.
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A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

Em 2002 foi realizado em Joanesburgo, África do Sul, a Cúpula Mundial sobre


Desenvolvimento Sustentável. Conhecida no Brasil como Rio+10, este encontro reuniu
representantes de mais de 190 países para avaliar os resultados das ações propostas na cúpula
de 1992 e para determinar novas ações na área ambiental. A Cúpula de Joanesburgo acabou
por decepcionar os ambientalistas do mundo inteiro por se transformar em uma conferência
onde se foi dado maior crédito nas diretrizes de mercado para solucionar os problemas
ambientais do que na adoção de planos de ação com prazos e metas claros pelos governos.
Com o fracasso da conferência de Joanesburgo, fica mais claro a necessidade de
se tomar ações locais para o desenvolvimento sustentável, uma vez que a falta de
compromisso dos países hegemônicos agravará ainda mais a crise ambiental global. Faz-se
necessário a busca de alternativas para um novo modelo de desenvolvimento que privilegie a
sustentabilidade, reduza as diferenças sociais e promova a integração de ações que valorizem
as relações com o meio ambiente. Cada município deve buscar o desenvolvimento de políticas
públicas voltadas para a ação integrada da sociedade na construção de uma nova estratégia de
valorização do patrimônio natural.
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A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

10 GESTÃO DO LIXO EM PATOS DE MINAS

Patos de Minas, cidade do Alto Paranaíba, integra o conjunto dos municípios


brasileiros que se abstém de criar políticas próprias de consumo e produção, adotando a
prática desenvolvida em todo o país de um desenvolvimento precedido pelo econômico e em
função dele. Nestes casos, a natureza tende a ficar relegada a seu papel de ícone de um
passado que já existiu, mas que cedeu lugar ao desenvolvimento trazido pelo progresso. As
alterações e progressos no campo das relações entre o homem e a natureza se desenvolvem de
forma lenta e caminham de acordo com os avanços das metrópoles, chegando com a
morosidade interiorana de quem não avança sozinho, aguardando, sempre, as novidades das
capitais.

Municípios Limítrofes de Patos de Minas 1

O município de Patos de Minas segue a lógica capitalista de consumo e produção,


basicamente tendo sua economia movimentada pelo comércio varejista e pelo
desenvolvimento de grandes produtores rurais. Em função mesmo de seu desenvolvimento
agrícola, com a vinda de produtores do sul do país, nascem e prosperam grandes agressões à
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A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

natureza, com a utilização em massa de pesticidas, agrotóxicos, fertilizantes e técnicas de


preparo e manejo do solo que comprometem a duração e recomposição dos mesmos. Cada vez
mais são necessários a utilização de mais fertilizantes e mais profundo se tornam os tratos
culturais em função da periódica perda da terra produtiva por erosões e arrastes para o sistema
pluvial. A agressividade agrícola se materializa sob o pretexto do desenvolvimento e do
progresso, alijando-se da dívida com os recursos naturais sob a tutela do município e a
conivência apática de sua população.

Afluente do Rio Paranaíba assoreado 1


Os rios Paranaíba e Grande, unindo-se nas divisas dos estados do Mato Grosso,
Minas Gerais e São Paulo, formam o rio Paraná, que possui o maior potencial hidrelétrico
instalado do país. Chegando a Patos de Minas após percorrer apenas quatro municípios desde
a sua nascente, o rio Paranaíba vai sofrendo insistentes agressões, independente de sua
importância para a região e para o país. Seus afluentes no município vão se tornando a cada
dia, mais poluídos, mas desgastados, mais descaracterizados. Observa-se a descaracterização
quase que completa das matas ciliares, mesmo nos domínios da cidade, onde supostamente a
fiscalização pode ser mais direta e menos morosa. Mesmo na área central do município, pode-
se facilmente verificar o descaso com o meio ambiente e a profunda indiferença com a
sobrevivência do rio. Áreas corrompidas pela erosão, muitas vezes motivadas pela
intervenção humana sem os cuidados necessários para a manutenção de encostas e pela
ausência de observação primeira dos impactos ambientais, levam ao assoreamento do rio e de
seus afluentes. Práticas adotadas pelo município, onde as correções de estradas são efetuadas
utilizando-se de tratores com lâminas que cortam o solo, alinhando e espalhando-o sobre as
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A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

margens, mesmo quando estas se localizam próximas a cursos d‟água, reduzindo o seu leito e
provocando o seu assoreamento.

Afluente do Rio Paranaíba assoreado 2 Lixo à margem do rio Paranaíba 1

Lixo a margem de afluente do Paranaíba 1

Com uma população próxima a 150 mil pessoas, o município gera o lixo
suficiente para transformar as características do meio ambiente, contaminando rios, resquícios
de matas, bosques, e sendo foco de pragas e doenças. Com um depósito a céu aberto para o
descarte do lixo, situado a 2,5 Km da cidade de Patos de Minas, o município entra para a
estatística nacional dos municípios sem nenhum tipo de tratamento dos seus resíduos sólidos,
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A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

fato que se estende ao tratamento do esgoto que é todo despejado no rio Paranaíba ou nos seus
afluentes.
A cidade se caracteriza por duas realidades distintas e contraditórias, a entrada
principal, situada no entroncamento que leva a Belo Horizonte, capital do estado, e à
Uberlândia no Triangulo Mineiro e a antiga entrada pela „ponte do arco‟. A primeira se
caracteriza por jardins largos e bem cuidados, a avenida com nome de presidente progresso,
Juscelino Kubitscheck, se apresenta em três pistas numa visível ostentação de poder e de
utilização dos recursos naturais, a segunda impressiona também, porém pelo descaso.
Conhecida como via de acesso ao lixão municipal, a avenida Joaquim Fubá, saída do bairro
Nossa Senhora Aparecida, é o retrato do descaso do município para com o meio ambiente. O
lixo e entulhos gerados pela construção civil, pela limpeza dos quintais e provindos de
diversas outras atividades, são descartados nas margens da estrada por carroceiros e pessoas
que o atiram de camionetes. São materiais de toda espécie, restos de couro, plásticos, animais
mortos, restos de construção, móveis inutilizados, que são espalhados pela margem da estrada
e unidos aos resíduos que caiam provindos do transporte do lixo urbano feito por caminhões
abertos, até o ano de 2002 quando a frota foi substituída.

Lixo em curso d'água bairro Cidade Nova 1


Uma cidade pequena onde não é incorreta a máxima que todos se conhecem,
prevalece a lógica da exclusão social observada por todo o país. Várias pessoas, excluídas dos
meios de produção, arriscam-se no trabalho no lixão, retirando dos restos de uma cidade
inteira o seu sustento e sua dignidade como seres humanos. Expostos a todos os tipos de
riscos, estes homens bichos de que o poeta fala, buscam o seu próprio sustento e de suas
famílias nos restos de uma cidade que não os acolhe. Marginalizados pela brutal diferença
social e pela ausência de direitos efetivos, esses homens se entregam ao presente, esperando
um futuro melhor, onde o luxo é ter um trabalho assalariado e comida quente na mesa.
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A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

Água poluída, lagoa bairro Cidade Nova 1

Lixo depositado à margem da estrada 1

Lixo lançado em terreno baldio 1


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A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

11 NA ENCRUZILHADA DA SOBREVIVÊNCIA

Grandes conquistas foram obtidas pela humanidade quando da união entre os


indivíduos para a busca de objetivos em comum. O envolvimento da sociedade e a busca por
mudanças, obriga a um rompimento da rede que sustenta a construção ideológica imposta a
grande parte dos indivíduos que determina seus hábitos, costumes, modo de vida e agir. É um
início de quebra da servidão voluntária que cega os olhos e os demais sentidos, transformando
os homens em seres de trabalho e consumo, um objeto de manobra. A idéia de dependência a
um super-herói, político, governante, instituição, que tudo resolve e estabelece, está
intimamente arraigada no subconsciente dos indivíduos, impedindo-os de tomarem a
responsabilidade para si mesmos e construírem juntos uma realidade diferente. A expectativa
por uma decisão maior, que tudo resolva, encontra sentido no não reconhecimento do poder
de mudanças de um grupo unido pelo mesmo objetivo.
A sensação de impotência e de dependência às instituições é fortificada pelo medo
inconsciente de se libertar desta rede de relações, que é imposta pelo sistema capitalista, e de
ser excluído, tornando-se um renegado e anti-social. Este medo, erroneamente atribuído à
passividade do povo, conduz a um processo de entrega, de relaxamento, que acaba por
beneficiar àqueles que tiram proveito desta abnegação de direito.
As bases para superação desta teia que envolve e asfixia os indivíduos,
mergulhando-os num mundo de insensibilidade e entrega aos mecanismos econômicos acima
de qualquer coisa, estão na educação. Os profissionais da área, dispõe das ferramentas para
desencadear o processo de desalienação das pessoas, transpondo a passividade à atividade,
através do desenvolvimento do senso crítico, da capacidade de entendimento dos fatos e do
reconhecimento dos diversos interesses inerentes a ele. Apesar de filhos do mesmo processo
de perpetuação da realidade vigente, os profissionais da educação estão mais próximos da
liberdade necessária à construção de uma consciência transformadora.
A apatia que se percebe nas relações entre o homem e a natureza precisa ser
quebrada em nome da sobrevivência das presentes e futuras gerações. Esta encruzilhada em
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A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

que se encontra a humanidade onde, escolher entre o caminho da sustentabilidade ou à entrega


total ao poder econômico a qualquer preço, irá definir o bem-estar dos indivíduos nos
próximos séculos, e não serão os Estados e as instituições que irão alterar os atuais padrões de
consumo e produção. A prova desse desinteresse pelos governantes mostra-se nos resultados
das convenções e conferências como a de Joanesburgo em 2002, onde muito se discutiu e
nada de concreto foi alcançado na mudança de rota necessária ao restabelecimento do
equilíbrio entre as ações dos homens e o poder de regeneração da natureza.
É preciso despertar nos indivíduos a importância de suas ações diárias na
manutenção do equilíbrio na natureza. Cada ato, cada atitude, é fundamental na transformação
da realidade que se mostra perversa e impiedosa no trato com a natureza. O simples ato de
descartar o pó de café pelo ralo da pia, efetuado diariamente e multiplicado por todas as
residências e todos os recintos onde esta prática é corriqueira, já nos permite imaginar o
volume de dejetos gerados e despejados nos mananciais de água todos os dias. Somado a esta
prática simples e efetuada displicentemente por milhões de pessoas, mostram-se inúmeras
outras práticas individuais que, somadas ao universo de indivíduos, agridem e poluem os
recursos naturais.
Não são projetos apressados, de resposta rápida a eventuais descontentamentos de
organizações e da sociedade, que irão transformar a conduta das pessoas e as dotarem de
senso crítico e de atitude pró-ativa. Atitudes demagógicas, de cunho político, com a criação de
órgãos e mecanismos que visam melhorar os relacionamentos entre o homem e seu meio,
porém que não evoluem, não caminham para nenhum lugar, prestando apenas de fachada a
angariação de recursos federais para utilização em outros setores diversos que não aos
previamente concebidos, se amontoam nos municípios gerando expectativas e frustrando
àqueles que vêm a natureza agonizando.
Um novo processo de desenvolvimento se faz necessário, onde as relações entre o
homem e a natureza sejam privilegiadas, onde os interesses econômicos estejam subordinados
aos interesses sociais e o desenvolvimento se faça num ambiente de respeito aos indivíduos e
a vida neste planeta. Não há como imaginar este novo processo sem a interferência dos
profissionais da educação, desenvolvendo os indivíduos e os dotando da capacidade e da
habilidade necessária para enxergar o mundo como ele se apresenta e de transformá-lo. A
união da escola, da comunidade, dos sindicatos de classe, das associações de bairros, das
organizações não governamentais, são fundamentais para a construção de uma antiga idéia de
comunhão de interesses em prol de todos que acabou por perecer no emaranhado e instigante
jogo capitalista.
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A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

As ações são muitas, infinitas, como as águas do Brasil de Caminha. Para se ter
uma idéia da urgência na mudança de comportamento dos indivíduos, hoje, coniventes com a
poluição das águas, as iniciativas para reversão deste quadro são praticamente insignificantes
e ao invés de tomarmos medidas para controle, eliminação e ou minimização dos efeitos
poluentes dessas águas, entramos num debate, cada vez mais freqüente, sobre a
disponibilidade dos aqüíferos subterrâneos e de como utilizá-los. Se ações concretas não
forem tomadas, serão os próximos a sofrerem da displicência e da indiferença da sociedade.
Tomados pela sedução da tv, presos em suas próprias casas, reféns de um inimigo invisível,
fascinados pela magia de consumo de novos produtos e pela energia de vida que eles
prometem, os indivíduos fecham os olhos à necessidade de mudança.
“A exaustão é evidente. Os limites também. Será necessário construir novos
formatos. Enfrentar o paradoxo: quanto mais a crise gera a tentação de um comando
centralizado e forte, „salvador‟, mais a realidade insiste em provar que qualquer
concentração gera problemas, não resolve.
Será preciso desconcentrar tudo – a política, a economia, a população, os lugares e
modos de viver. Criar canais de participação, caminhos para que cada pessoa se sinta
responsável pelos problemas que gera (lixo, esgoto, poluição do ar e da água) e pelas
questões coletivas. Colocar os princípios ambientais adequados no início de todos os
processos, não no final. Prevenir, não tentar – sem êxito – remediar”.35
Cruzar os braços e chorar pelo leite derramado, pelas esperanças perdidas, não
colaborarão para uma nova tomada de rumo. Ações são necessárias, rápidas, consistentes, sem
o auxílio de nenhum super-herói. A escola e a sociedade organizada necessitam acender a
chama, dar a partida, apoiar, incentivar na busca de soluções. Enquanto nas salas de aula são
construídos conhecimentos sobre coleta seletiva e destinação do lixo, os resíduos da própria
escola são acondicionados e tem destinação diferente a pregada pelos professores. Nos
barzinhos da escola são vendidos produtos que não levam em consideração a degradação
ambiental que provocam. Campanhas dispersas de coleta seletiva de lixo, de conscientização
ecológica não podem dar lugar a ações coerentes e diárias. É preciso dar o exemplo,
estabelecer seqüência, interferir, participar.
A redução na geração de resíduos deve ser provocada na escola.

35
Ibidem nota 22. p.190
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A gestão do lixo: da ação individual à realização coletiva

LISTA DE IMAGENS

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