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ALBERTO LUIZ HANEMANN BASTOS

PROCESSOS ESTRUTURAIS
EM MATÉRIA
PREVIDENCIÁRIA
POR UMA RELEITURA DAS INTERAÇÕES TRAVADAS
ENTRE O JUDICIÁRIO E O INSTITUTO
NACIONAL DO SEGURO SOCIAL

Londrina/PR
2023
Dados Internacionais de Catalogação na
Publicação (CIP)

Bastos, Alberto Luiz Hanemann.


Processos estruturais em matéria
previdenciária: por uma releitura das
interações travadas entre o Judiciário e
o Instituto Nacional do Seguro Social.
/ Alberto Luiz Hanemann Bastos –
Londrina, PR: Thoth, 2023. (Coleção
Litigância Estratégica e Complexa,
Organizadores da coleção: Sérgio Cruz
Arenhart, Marco Félix Jobim, Gustavo
© Direitos de Publicação Editora Thoth Osna).
Londrina/PR. 351 p.
www.editorathoth.com.br Bibliografias: 323 - 351
contato@editorathoth.com.br ISBN 978-65-5959-624-9

1. Ação Civil Pública. 2. Administração


previdenciária. 3. Instituto Nacional do
Seguro Social. I. Título.
Diagramação e Capa: Editora Thoth CDD 341.6
Revisão: O autor
Editor chefe: Bruno Fuga
Índices para catálogo sistemático
1. Direito Previdenciário: 341.6

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sem autorização. A violação dos Direitos Autorais é
crime estabelecido na Lei n. 9.610/98.
Todos os direitos desta edição são reservados
pela Editora Thoth. A Editora Thoth não se
responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta obra por
seus autores.
SOBRE O AUTOR

ALBERTO LUIZ HANEMANN BASTOS


Mestre em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal
do Paraná – UFPR. Professor de Direito Previdenciário e de Direito
Administrativo no Centro Universitário Santa Cruz de Curitiba –
UniSantaCruz. Advogado. Endereço eletrônico (e-mail): alberto.
bastos.1997@gmail.com
ORGANIZADORES DA COLEÇÃO

SÉRGIO CRUZ ARENHART


Mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná, Pós-
doutor em Direito pela Università degli Studi di Firenze. Professor dos cursos
de Graduação e Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do
Paraná. Professor Visitante da Universidade de Zagreb/Croácia. Ex-juiz
Federal. Procurador Regional da República. Entre outras obras, escreveu A
tutela coletiva de interesses individuais, Comentários ao Código de Processo
Civil, Curso de Processo Civil, Código de Processo Civil Comentado, Prova
e convicção e Curso de Processo Civil Coletivo, todos pela editora RT.
Vencedor do Prêmio Jabuti no ano de 2017, com a obra Comentários ao
Código de Processo Civil.

MARCO FÉLIX JOBIM


Advogado. Especialista, Mestre, Doutor e Pós-Doutor em Direito.
Professor da Escola de Direito da PUCRS, na graduação e pós-graduação
lato e stricto sensu (mestrado e doutorado). Coordenador da Especialização
em Processo Civil da PUCRS. E-mail de contato: marco.jobim@pucrs.br.

GUSTAVO OSNA
Professor dos Programas de Graduação em Direito da Universidade
Federal do Paraná (UFPR) e de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito
da Universidade Católica de Brasília. Doutor em Direito das Relações
Sociais pela UFPR. Mestre em Direito das Relações Sociais e Bacharel em
Direito pela UFPR. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual.
Advogado. gustavo@mosadvocacia.com.br.
APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO

Ao longo das últimas décadas, os diferentes movimentos vivenciados


em sociedade têm exigido ressignificações da jurisdição e do processo. De
forma reiterada, surgem dilemas providos de complexidade crescente a
serem acertados no palco jurisdicional. Do mesmo modo, essa dilatação
funcional impõe releituras ligadas aos mecanismos processuais e à atividade
processual – procurando zelar pela sua legitimidade.
O cenário é desafiador, e anuncia uma conclusão irrefutável:
o estudioso do processo comprometido com o aprimoramento da
temática deve estar atento ao papel por ela ocupada no contexto social e
comunitário; deve buscar uma contínua harmonização entre as funções e os
objetivos da disciplina, de modo rente às suas necessidades concretas; deve,
enfim, zelar pela construção de um pensamento harmônico às exigências
contemporâneas.
A Coleção Litigância Estratégica e Complexa, aqui apresentada,
procura exatamente conferir voz e repercussão a estudos imbuídos desses
propósitos. Por meio dela, pretende-se oferecer à comunidade acadêmica
e aos profissionais do Direito análises atuais ligadas a temas como os
processos estruturais, a efetivação de decisões coletivas e a consolidação de
direitos fundamentais por meio da jurisdição.
Afinal, como compatibilizar os institutos essenciais do processo com
os novos desafios impostos à sua atuação? De que maneira permitir que suas
ferramentas ortodoxas se adequem a litígios multipolares ou a circunstâncias
que exigem uma atuação prospectiva? Como zelar, nessa espécie de seara,
por aspectos como a representação de interesses e o contraditório?
Tendo em vista a pertinência e a urgência de tais indagações, é motivo
de nosso absoluto orgulho, com o apoio vigorante da Editora Thoth,
apresentar ao leitor obras de sofisticada qualidade que procuram oferecer
resposta a essa espécie de dilema. É esse o propósito elementar da Coleção
Litigância Estratégica e Complexa. Deseja-se a todos uma boa leitura, com
o constante convite para a reflexão e para o diálogo.
SÉRGIO CRUZ ARENHART
MARCO FÉLIX JOBIM
GUSTAVO OSNA
APRESENTAÇÃO

Não há estudioso do processo civil brasileiro que, nos últimos anos,


não tenha percebido a efervescência da temática dos processos estruturais.
Entre as causas desse fenômeno, acreditamos que ao menos uma merece
particular menção: o fato de nossa realidade, verdadeiramente, ser marcada
por problemas estruturais que até então não encontravam resposta processual
idônea. Diante disso, celebra-se um casamento perfeito. Essa nova forma de
ver a atividade jurisdicional pode servir como o remédio ideal para doenças
que, anteriormente, mantinham-se judicialmente intocadas.
É no contexto dessa orquestra bem afinada, que vê no processo civil
um instrumento transformador e que se ocupa de compreender detidamente
o processo estrutural (sem se limitar a discursos simplistas ou superficiais),
que se insere (em posição de destaque) o livro que aqui se apresenta ao
público. Seja pelo seu criterioso trabalho de investigação, seja pela proposta
trazida a uma área até então pouco explorada, a pesquisa de Alberto Luiz
Hanemann Bastos merece ser lida, relida e debatida. Sua contribuição para
nosso espaço acadêmico é, sem dúvidas, essencial.
Essa constatação, longe de ser isolada, ressoou de forma uníssona
na banca de arguição de sua dissertação de mestrado, defendida no âmbito
do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do
Paraná. Naquela oportunidade, em uma feliz coincidência, estiveram ao meu
lado na condição de avaliadores externos os demais coordenadores da atual
Coleção – Prof. Dr. Sérgio Cruz Arenhart e Prof. Dr. Marco Félix Jobim. De
maneira unânime, conferimos à pesquisa a mais alta avaliação disponível na
instituição. Esse resultado foi consequência direta da excelência do estudo,
tanto em seu aprofundamento quanto em sua proposta.
A obra aqui apresentada representa versão comercial do mencionado
trabalho acadêmico, realizado sob a virtuosa orientação do Prof. Dr. Marco
Aurélio Serau Jr.. Nela, o leitor irá encontrar uma rica e profunda análise
a respeito do processo estrutural, em seus diferentes níveis. Do mesmo
modo, irá se deparar com uma arrojada defesa de sua utilização no sistema
previdenciário brasileiro – viabilizando uma recomposição de seu estado de
desconformidade.
A importância da temática salta aos olhos. Na verdade, não é exagero
afirmar que o atual descompasso entre a atividade de nossa autarquia
previdenciária e os parâmetros que seriam toleráveis é um fato notório;
é um sentimento coletivo, vivenciado e experienciado no cotidiano da
sociedade brasileira.
O problema é ainda agravado na medida em que, sabidamente, as
externalidades decorrentes desse cenário prejudicam em maior dimensão
a parcela mais vulnerável da nossa comunidade; aqueles que, conforme
célebre definição de Robert Cover (rememorada por Alberto ao longo
da obra, assim como em sua banca de defesa), são os eternos derrotados na
arena política. Se as filas e os descumprimentos de prazo geram um prejuízo
coletivo, será neles que o efeito dessa dor será mais forte; se as análises em
massa e as amarras indevidas da burocracia são perniciosas, será para eles
que esse ambiente eliminará qualquer projeto de felicidade ou de vida digna.
De que maneira, porém, o processo estrutural pode contribuir para
virar esse jogo? Que espécie de elemento deveria ser investigado para
justificar essa forma renovada de atividade processual? Que características
essenciais deveriam marcar esse diálogo?
Sinto-me seguro em dizer que, ao tomar para si esse objeto de
investigação, o autor não deixa pontas soltas. De um lado, exibe rigor
acadêmico digno de nota. De outro, procura perseguir, por meio da teoria,
também respostas práticas – buscando um entrelaçamento que parece ser
cada vez mais urgente e necessário.
Enfim, concluindo essa breve apresentação, considero oportuno
fazer um alerta positivo ao leitor: a presente obra não é, apenas, mais um
trabalho dedicado ao processo estrutural. É uma pesquisa de excelência,
que merece especial atenção.

GUSTAVO OSNA
PREFÁCIO

Já realizei a elaboração de inúmeros prefácios e apresentações de


obras jurídicas. Apesar de tratar todos com o mesmo carinho e respeito,
este prefácio possui sabor especial, por vários motivos.
Em primeiro lugar porque o livro em tela, “Processos estruturais em
matéria previdenciária: por uma releitura das interações travadas entre o
Judiciário e o Instituto Nacional do Seguro Social”, é derivado da primeira
dissertação de mestrado que orientei no âmbito do programa de pós
graduação strictu sensu da UFPR – Universidade Federal do Paraná.
Em segundo lugar, ressalto que a razão desta felicidade não é
somente fruto da altíssima qualidade que caracteriza o PPGD/UFPR, mas
sobretudo em virtude de minha profunda admiração e amizade para com o
autor deste livro.
O Dr. Alberto Bastos foi um de meus estudantes mais brilhantes
na graduação da UFPR, no já distante ano de 2018, e dessa notável
competência acadêmica, retratada em sala de aula e trabalho de iniciação
científica, naturalmente passei a formular convites para escrevermos em
coautoria inúmeros artigos jurídicos e capítulos de livros.
Ao lado disso, registro que foi se consolidando também uma fraterna
amizade, cujas conversas não se limitam ao Direito Previdenciário, mas
também passeio pelo rock e pela cultura nerd. Não raro, no meio das longas
conversas de orientação para elaboração da dissertação, transitávamos entre
o detalhamento do processo estrutural e o envio de links para escutar as
novas músicas do Iron Maiden.
É bem verdade que este não é o primeiro livro de Alberto, que já
publicou antes “Técnicas de sujeição, valoração crítica e superação da prova
pericial no Processo Judicial Previdenciário”, fruto de seu TCC – Trabalho
de Conclusão de Curso na UFPR, que tive a honra de apresentar e foi
uma das obras inaugurais da Editora IEPREV. Mas é claro que há uma
aura especial na publicação deste livro, que consubstancia sua dissertação
de Mestrado.
Este estudo sobre Processo Estrutural e Previdência Social foi
defendido com brilhantismo por Alberto perante banca de arguição
composta pelos Professores Sergio Cruz Arenhart, Marco Félix Jobim e
Gustavo Osna, ou seja, nada menos que os maiores autores do tema no
país.
O estudo é pioneiro dentro de um tema pioneiro: no Processo
Civil brasileiro vêm surgindo os primeiros estudos acadêmicos a respeito
do processo estrutural, perspectiva inovadora que corresponde à ideia de
adequação de estruturas processuais clássicas, adaptadas para a solução de conflitos que
não se limitam à disputa de interesses entre Caio e Tício, mas que perpassam pela
alteração na condução das políticas públicas nacionais e a transformação da correspondente
estrutura administrativa.
Os conflitos previdenciários, tal como desenvolvi em meu Doutorado
(Resolução do Conflito Previdenciário e direitos fundamentais, LTr, 2015),
possuem a característica natural da multiplicidade, isto é, são conflitos
que não são tão somente individuais, mas estruturalmente coletivos,
afetando toda a sociedade e permeando discussões sobre toda a estrutura
administrativa da Seguridade Social e as correlatas políticas públicas.
Nesse sentido a grande importância deste ensaio pioneiro e
aprofundado realizado pelo Professor Alberto. A sociedade brasileira
não tolera mais que os conflitos previdenciários sejam tratados quase que
exclusivamente pela via judicial ou administrativa atomizada, sendo de todo
interessante a adoção de medidas estruturais para solução dessas demandas,
geralmente de grande complexidade.
A título de exemplo, e ficando em apenas algumas situações recentes:
a) a polêmica em torno do descumprimento, por parte do INSS, do conteúdo
do julgamento do Tema 1.102 da repercussão geral – revisão da vida toda –
sob alegação de ausência de estrutura funcional e de sistemas informatizados
competentes para tanto; b) a edição da Medida Provisória 1.181/2023,
que retomou a política de pagamento de bônus para os peritos médicos e
servidores do INSS, com o intuito de que seja eliminada a fila de processos
administrativos esperando análise no âmbito da autarquia previdenciária,
muitos dos quais objeto de mandado de segurança impetrado por conta
do excesso de prazo desrespeitado pelo INSS (omissão administrativa
inconstitucional).
O tema é riquíssimo e vasto, sendo que considero que este livro de
Alberto é pioneiro, inovador, e possui o mérito de inaugurar novo campo
de pesquisa dentro do Processo Judicial Previdenciário.
Por fim, não é dispensável informar ao leitor que esta obra não
espelha apenas a pesquisa acadêmica de Alberto Bastos, mas também sua
experiência profissional, inicialmente como estagiário da Justiça Federal
no Paraná e posteriormente na advocacia previdenciária - primeiro em
renomado escritório curitibano e posteriormente se aventurando em banca
própria.
Como se vê, há elementos de sobra para justificar a recomendação da
leitura deste belíssimo livro.

São Paulo/Curitiba, inverno de 2023.

MARCO AURÉLIO SERAU JUNIOR


Professor da UFPR – Universidade Federal do Paraná, nas áreas de
Direito do Trabalho e Direito Previdenciário, na graduação e pós-
graduação. Doutor e Mestre em Direitos Humanos (USP). Diretor
Científico do IEPREV – Instituto de Estudos Previdenciários. Advogado
e Consultor. Autor e coordenador de diversas obras jurídicas.
SUMÁRIO

SOBRE O AUTOR .......................................................................................................7


ORGANIZADORES DA COLEÇÃO .....................................................................9
APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO.......................................................................11
APRESENTAÇÃO .....................................................................................................13
PREFÁCIO...................................................................................................................15

INTRODUÇÃO ..........................................................................................................23

PARTE 1
TEORIA DOS PROCESSOS ESTRUTURAIS

CAPÍTULO 1
DA RESOLUÇÃO DE INCIDENTES À MOBILIZAÇÃO DE
ESTRUTURAS: UM BREVE PANORAMA CONCEITUAL DOS
PROCESSOS ESTRUTURAIS.................................................................................37
1.1 Díades do ofício jurisdicional: Resolução de disputas e promoção de valores
públicos, microjustiça e macrojustiça, as árvores e a floresta................................37
1.2 Onde nascem os litígios estruturais?...................................................................51
1.3 Mapeando o conceito: as diferentes visões da doutrina brasileira sobre o
processo estrutural .......................................................................................................64
1.4 Processo estrutural e consequencialismo: como enfrentar contingências
concretas sem abrir mão da tutela de direitos fundamentais? ...............................72
1.5 Uma breve, porém necessária, análise das objeções aos processos
estruturais......................................................................................................................82

CAPÍTULO 2
COMO SE FAZ UM PROCESSO ESTRUTURAL? AS ADEQUAÇÕES
PROCEDIMENTAIS NECESSÁRIAS PARA QUE O JUDICIÁRIO POSSA
INTERVIR EM PROBLEMAS MACROSCÓPICOS E POLICÊNTRICOS 99
2.1 A escolha do remédio processual: qual das trilhas leva à reforma estrutural?..100
2.2 Reflexões em torno da legitimidade processual: entre o direito à participação
direta e a garantia da representatividade adequada .............................................. 107
2.3 Apresentação da demanda estrutural: a atenuação do princípio da demanda e
da regra da congruência ........................................................................................... 116
2.4 Saneamento e organização do processo estrutural: as modulações necessárias
para que se garanta a correção de vícios formais e o adequado planejamento das
futuras etapas do litígio ................................................................................................ 121
2.5 A prova no âmbito dos litígios estruturais: como comprovar a existência de um
estado de coisas, de uma condição social ou de um padrão de conduta contrário ao
direito? ............................................................................................................................ 129
2.6 Sentenças estruturantes, provimentos em cascata, decisões de caráter prospectivo
e condicional .................................................................................................................. 136
2.7 Implementação e fiscalização da reforma estrutural: como assegurar que os
efeitos da decisão judicial se espraiem para além do papel? ................................... 148
2.8 Conclusões preliminares e o porvir do presente estudo .................................. 162

PARTE II
PROCESSOS ESTRUTURAIS EM MATÉRIA PREVIDENCIÁRIA

CAPÍTULO 3
ADENTRANDO NA “SALA DE MÁQUINAS” DA ADMINISTRAÇÃO
PREVIDENCIÁRIA: AS FALHAS ESTRUTURAIS DO INSTITUTO
NACIONAL DO SEGURO SOCIAL E AS RESPOSTAS TRADICIONAIS
OFERECIDAS PELA JURISPRUDÊNCIA .......................................................... 167
3.1 Uma radiografia do instituto nacional do seguro social ................................... 167
3.1.1 Traçando o perfil do paciente examinado: afinal, o que é o instituto nacional
do seguro social? ........................................................................................................... 168
3.1.2 A avaliação dos sintomas: a atuação do Instituto Nacional do Seguro Social à
luz dos indicadores de detecção de litígios estruturais ............................................ 175
3.1.3 A execução do exame radiográfico: identificando as falhas estruturais no
funcionamento do Instituto Nacional do Seguro Social ......................................... 184
3.1.4 Diagnósticos colhidos a partir da radiografia teórica do Instituto Nacional do
Seguro Social .................................................................................................................. 208
3.2 As respostas tradicionais oferecidas pelas cortes para lidar com as falhas
estruturais do INSS: remédio ou placebo? ................................................................ 209
3.2.1 A primeira resposta: a opção pela inércia ........................................................ 210
3.2.2 A segunda resposta: a incessante aposta nas tutelas individuais .................. 216
3.2.3 A terceira resposta: promulgação de decisões estruturantes sem a instituição
de mecanismos voltados à fiscalização da implementação da ordem judicial.......229
3.3 Diant e da encruzilhada: para onde estamos indo e para onde
queremos ir?....................................................................................................................234

CAPÍTULO 4
A APLICAÇÃO DA TÉCNICA DO PROCESSO ESTRUTURAL AO
INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL: UM PONTO DE
PARTIDA PARA A ADEQUAÇÃO DOS ARRANJOS OPERACIONAIS DA
ADMINISTRAÇÃO PREVIDENCIÁRIA ............................................................ 237
4.1 Considerações preliminares sobre a aplicação das medidas estruturantes na
esfera previdenciária: por uma delimitação do conceito de processo estrutural
previdenciário ............................................................................................................ 239
4.2 A “dupla função” dos processos estruturais no quadro da previdência
social.............................................................................................................................253
4.2.1 A primeira função dos processos estruturais previdenciários: legitimar o
princípio da máxima efetividade do acesso à proteção social ............................ 254
4.2.2 A segunda função dos processos estruturais previdenciários: implementar
as reformas necessárias para assegurar a efetividade dos serviços ofertados pela
administração previdenciária ................................................................................... 262
4.2.3 Sintetizando a “dupla função” dos processos estruturais previdenciários..267
4.3 Da teoria à práxis: tracejando as balizas de aplicação dos processos estruturais
previdenciários ........................................................................................................... 268
4.3.1 Primeira etapa: atividade postulatória e peculiaridades envolvendo a
reivindicação da reforma estrutural do INSS pela via judicial ........................... 269
4.3.2 Segunda etapa: saneamento do processo estrutural previdenciário e
comprovação das falhas estruturais do INSS ....................................................... 286
4.3.3 Terceira etapa: decisão estruturante e implementação de reformas no INSS
pela via judicial........................................................................................................... 293

CONCLUSÃO .......................................................................................................... 311


REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 323
INTRODUÇÃO

Em uma de suas instigantes analogias, Max Weber comparou as


funções exercidas pelas instituições burocráticas com o funcionamento de
uma máquina. Tal como um aparelho mecânico, elas seriam constituídas por
um conjunto de peças e engrenagens que visam a executar tarefas de modo
eficiente. Para o sociólogo, “precisão, rapidez, univocidade, conhecimento
da documentação, continuidade, discrição, uniformidade, subordinação
rigorosa, diminuição de atritos e custos materiais”1 são os atributos que
caracterizam as atividades dos órgãos burocráticos modernos.2
A alegoria weberiana carrega relevante potencial didático, na medida
em que é capaz de facilitar a compreensão das complexidades que envolvem
o funcionamento do Estado e das instituições públicas. A exemplificação
revela-se útil para demonstrar de que forma os problemas vislumbrados
na operação de uma máquina se assemelham àqueles vislumbrados em
entidades estatais.
Imagine-se que uma determinada empresa se propõe a lançar um
novo modelo de automóvel, cuja montagem é inteiramente realizada por
braços mecânicos automatizados. Algumas semanas após o lançamento
do novo modelo, a empresa recebe uma imensidão de reclamações
de clientes, os quais relataram falhas no sistema de freios do veículo. A
companhia interrompe imediatamente a produção dos automotores e os
seus funcionários dão início à investigação das possíveis causas do defeito
narrado pelos usuários. Durante a inspeção, constata-se que as falhas nos
freios do novo modelo de automóvel decorrem de irregularidades presentes
na máquina responsável pela montagem do produto. O braço mecânico que
realiza o encaixe dos pedais de frenagem é antigo e as suas engrenagens

1. WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução:


Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999, v. 2,
p. 212.
2. A propósito, Max Weber realizou uma profunda análise histórica do desenvolvimento das
características que culminaram nos modelos de Estados burocráticos vislumbrados nos idos
dos séculos XVIII e XIX. Para maiores informações, ver: WEBER, Max. Ensaios de sociologia.
Tradução: Waltensir Dutra. 5. ed. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora, 1982,
p. 229-282.
PROCESSOS ESTRUTURAIS EM MATÉRIA PREVIDENCIÁRIA

não são capazes de fixar as peças com a precisão necessária para garantir o
funcionamento adequado do veículo.
Ao receber o relatório técnico com a descrição das irregularidades
identificadas no braço mecânico, o diretor da empresa emana a seguinte
ordem: “contratem dois novos funcionários e lhes atribua a incumbência
de, após o término de cada montagem realizada pela máquina, desmontar a
estrutura interna do veículo e corrigir manualmente os defeitos dos freios”.
Diante de tais circunstâncias, os subordinados do diretor certamente
indagariam: “não seria mais fácil substituir o braço mecânico antigo por
um novo, ao invés de proceder à contratação de dois novos funcionários?”.
Embora a decisão do diretor seja criticável sob diversos ângulos,
a perplexidade dos funcionários decorre da subversão dos protocolos
usualmente empregados para a resolução de problemas em linhas de
montagem. A solução proposta pelo diretor remedia as consequências do
problema diagnosticado, mas mantém incólume a falha que lhe deu causa. Ao
invés de substituir o braço mecânico com defeito e garantir o funcionamento
regular de todos os veículos produzidos no futuro, preferiu-se corrigir
isoladamente os produtos da falha da máquina.
O exemplo aqui trazido pode ser compreendido como uma
representação lúdica da postura adotada pelo Judiciário para lidar com as
intercorrências da litigância previdenciária.
É consabido que a jurisdição serve como instância de revisão dos atos
administrativos exarados pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
Todos os segurados cujos pedidos de aposentadoria, pensão ou auxílio são
indeferidos pelo INSS detêm o direito de exortar o Judiciário a revisar
as decisões administrativas exaradas pela autarquia. Uma vez provocado
pelo segurado, compete ao Judiciário anular as decisões administrativas que
contrariem a lei ou, alternativamente, ratificar as decisões administrativas
que sejam congruentes com as diretrizes do ordenamento jurídico.3
A rigor, essa estrutura é desenhada para que a jurisdição exerça
um papel secundário no manejo dos direitos da Seguridade Social. O
gerenciamento das concessões de benefícios previdenciários competiria
primariamente ao INSS, ao passo que o Judiciário atuaria somente nas
situações excepcionais em que a autarquia praticasse alguma conduta contrária
à lei ou à Constituição.4 No entanto, os influxos da litigância previdenciária
3. TRICHES, Alexandre Schumacher. Direito processual administrativo previdenciário. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2014, p. 37-40.
4. “Certamente, o Poder Judiciário, por conta de suas características institucionais e por conta
do lugar que ocupa na distribuição de funções dentro do Estado, não está apto a ser o
principal protagonista no momento de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e
culturais, tarefa que corresponde primariamente aos poderes políticos” (ABRAMOVICH,
Victor; COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibles. 2. ed. Madrid: Editorial
24
• COLEÇÃO LITIGÂNCIA ESTRATÉGICA E COMPLEXA ALBERTO LUIZ
HANEMANN BASTOS

desencadearam uma gradativa subversão dessa estrutura: ao invés de atuar


em situações excepcionais, a jurisdição tem sido constantemente exortada a
corrigir decisões administrativas proferidas pelo INSS.
Nos idos de 2012, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
diagnosticou que o INSS se tratava do litigante mais demandado perante
a Justiça Federal, figurando como parte em cerca de 34% (trinta e quatro
por cento) dos processos que tramitavam em primeiro grau de jurisdição
e em aproximadamente 79% (setenta e nove por cento) dos processos
protocolados nos Juizados Especiais Federais.5 Por meio de relatório
divulgado no ano de 2020, o CNJ indicou que, em termos numéricos, havia
“7,8 milhões de processos de direito previdenciário (não acidentária), em
um universo total de 78,8 milhões de processos em tramitação, ou seja, o
correspondente a 10% de todos os casos pendentes na justiça”.6 E, em
ulterior levantamento de 2022, constatou-se que a autarquia continua
sendo a entidade que mais acumula ações perante o Judiciário brasileiro,
envolvendo-se mais de 9% (nove por cento) do total de litígios em trânsito
naquele ano.7
Parcela significativa desses processos judiciais refletem reivindicações
legítimas de indivíduos cujos benefícios foram indevidamente denegados
pelo INSS. Estima-se que, em média, metade das demandas previdenciárias
movidas pelos cidadãos são julgadas procedentes em primeiro grau de
jurisdição, sendo que, em alguns tipos de benefícios, a taxa de deferimento
judicial atinge patamares superiores a 70% (setenta por cento).8 Os dados
são sintomáticos, pois, se as Cortes sentem-se constantemente obrigadas
a corrigir decisões administrativas, a autarquia não está desempenhando
satisfatoriamente a sua incumbência de gerenciar o (in)deferimento de
benefícios previdenciários.
Trotta, 2004, p. 118, tradução livre). No Direito brasileiro, também é conhecida a ideia de que
o Judiciário somente está autorizado a intervir em políticas públicas quando diagnosticadas
falhas comissivas ou omissivas por parte das instâncias ligadas aos Poderes Executivo e
Legislativo. A título ilustrativo, confira-se: GRINOVER, Ada Pellegrini. Controle de políticas
públicas pelo poder judiciário. Revista do Curso de Direito da Faculdade de Humanidades e Direito,
v. 7, n. 7, p. 9-37, 2010, p. 14-17.
5. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. 100 maiores litigantes 2011. Brasília: CNJ, 2011, p.
12. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2011/02/100_maiores_
litigantes.pdf. Acesso em: 02 set. 2022.
6. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Competência delegada: uma comparação entre a justiça
estadual e a justiça federal nas ações judiciais de direito previdenciário. Brasília: CNJ, 2020,
p. 17. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/08/relatorio-
competencia-delegada04022020.pdf. Acesso em: 02 set. 2022.
7. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Grandes litigantes. Brasília: CNJ, 2022. Disponível em:
https://grandes-litigantes.stg.cloud.cnj.jus.br/. Acesso em 22 dez. 2022.
8. Tal índice foi extraído de: BRASIL. Tribunal de Contas da União. Grandes números da
judicialização de benefícios do INSS. Brasília: TCU, 2017, p. 24-25. Disponível em: https://clip.
jfrj.jus.br. Acesso em: 02 dez. 2022.
25
PROCESSOS ESTRUTURAIS EM MATÉRIA PREVIDENCIÁRIA

O raio de atuação da jurisdição é diretamente proporcional à


quantidade de falhas cometidas pelo poder público: quanto maior o número
de falhas vislumbrado nas instâncias administrativas, maior a envergadura
assumida pelas Cortes; quanto menor o número de falhas visualizado nas
instâncias administrativas, menor a envergadura das decisões dos Tribunais.9
Em razão das numerosas falhas identificadas no cotidiano decisório do
INSS, “acaba o Poder Judiciário tutelando aquilo que, originalmente, cabia
à autarquia, e de forma repetitiva”.10
Ocorre que as demandas intentadas contra o INSS não refletem
contingências aleatórias, tampouco incidentes isolados que carecem de liame
causal. Elas refletem, na realidade, incidentes que decorrem de uma mesma
causa: a incorporação de padrões de conduta contrários à lei e à Constituição.
Por se tratar de uma estrutura burocrática que interage com
milhares de cidadãos, o funcionamento do INSS depende da criação de
“rotinas internas” e de “procedimentos padronizados” que orientem os
seus funcionários sobre o modo como devem agir frente a cada uma das
circunstâncias que compõem o seu cotidiano operacional.11 Desse modo,
a maior parte das deliberações tomadas pela autarquia está calcada em
protocolos internos, os quais modulam todo o modus operandi da instituição.
Acontece que, quando incorpora uma determinada prática à sua rotina
interna, os efeitos do comportamento adotado pela autarquia não se
adstringem à um segurado individualmente considerado, mas abrangem todos
os potenciais usuários de seus serviços. A postura do INSS, portanto, gera
repercussões em nível macroscópico.
Consequentemente, se autarquia institui uma rotina interna que
contraria diretrizes estabelecidas na lei e na Constituição, ela replicará atos
ilícitos para um universo indeterminado de requerimentos administrativos,
desencadeando um incidente de violação massiva e difusa aos direitos dos
segurados da Previdência Social. Por esse motivo, Marco Aurélio Serau

9. Abraham Chayes percebera, há muito, que “o crescimento do Poder Judiciário tem sido,
em grande parte, uma decorrência da falha de outras agências para responder a grupos que
conseguiram mobilizar consideráveis recursos políticos e energia” (CHAYES, Abraham. The
Role of the Judge in Public Law Litigation. Harvard Law Review, v. 89, n. 7, p. 1.281-1.316,
maio, 1976, p. 1.313, tradução livre).
10. TRICHES, Alexandre Schumacher. Cláusula da proteção Judicial Constitucional – Contornos
para uma Jurisdição Efetiva. In: FOLMANN, Melissa; SERAU JUNIOR, Marco Aurélio
(orgs.). Previdência Social: em busca da justiça social. São Paulo: LTr, 2015, p. 125.
11. Como bem descreve Colin Diver, instituições que operam em larga escala empregam “‘rotinas’
ou ‘procedimentos operacionais padronizados’. Como contraparte dos hábitos individuais, as
rotinas promovem a eficiência, capacitando a organização a lidar com grandes quantidades
de transações sem os altos custos envolvidos na elaboração de procedimentos específicos
para cada transação” (DIVER, Colin S. The Judge as Political Powerbroker: Superintending
Structural Change in Public Institutions. Virginia Law Review, v. 65, n. 1, p. 43-106, fev., 1979,
p. 59, tradução livre).
26
• COLEÇÃO LITIGÂNCIA ESTRATÉGICA E COMPLEXA ALBERTO LUIZ
HANEMANN BASTOS

Junior sugere que o (in)deferimento de benefícios previdenciários constitui


um “fenômeno social de massa”.12
A exemplificação revela-se útil para elucidar os contornos dessa
intrincada dinâmica.13 O art. 57 da Lei 8.213/91 indica que os segurados que
exerceram atividades laborativas em contato com agentes nocivos fazem
jus à aposentadoria especial, benefício cuja concessão dependia de tempo
de contribuição inferior àquele requisitado para a obtenção das demais
modalidades de jubilação.14 Em seus protocolos internos, o INSS adota uma
postura restritiva quanto à delimitação dos destinatários da aposentadoria
especial. Por intermédio das disposições veiculadas no art. 247 da IN
no 77/2015 e no art. 263 da IN no 128/2022, a autarquia indica que os
servidores somente estão autorizados a conceder a aposentadoria especial
aos segurados empregados, aos trabalhadores avulsos e aos contribuintes
individuais filiados à cooperativa de trabalho ou de produção.
Isso significa que, nos liames de sua rotina interna, a autarquia nega
a aposentadoria especial a todos os profissionais autônomos – como
os médicos e odontólogos que prestam atendimentos em consultórios
particulares. A justificativa utilizada pelo INSS é a de que os contribuintes
individuais não estão incluídos no rol de segurados que vertem contribuições
específicas para o financiamento da aposentadoria especial (art. 22, inciso
II, da Lei 8.212/91), motivo pelo qual a concessão do benefício para os
profissionais autônomos infringiria o chamado princípio da precedência do
custeio.
Não obstante, a postura da autarquia é diametralmente oposta àquela
perfilhada pelas Cortes. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), a Turma
Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais (TNU) e
praticamente todos os Tribunais Regionais Federais (TRF) comungam do
entendimento de que os contribuintes individuais fazem jus à aposentadoria
especial, a despeito de não recolherem tributos especificamente voltados ao

12. SERAU JUNIOR, Marco Aurélio. Resolução do conflito previdenciário e direitos fundamentais. São
Paulo: LTr, 2015, p. 65-66.
13. Exemplo similar foi apresentado no seguinte escrito: BASTOS, Alberto Luiz Hanemann. A
técnica dos processos estruturais aplicada ao Instituto Nacional do Seguro Social: pode o
judiciário remediar o caos da litigiosidade previdenciária? Revista Brasileira de Direito e Justiça,
Ponta Grossa, v. 3, p. 116-148, jan./dez., 2019, p. 128-129.
14. Enquanto a concessão da aposentadoria por tempo de contribuição pressupunha 30 (trinta)
anos de contribuição para as mulheres e 35 (trinta e cinco) anos de contribuição para os
homens, a concessão da aposentadoria especial dependia tão somente da comprovação
de 15 (quinze), 20 (vinte) ou 25 (vinte e cinco) de tempo de contribuição, a depender do
tipo de agente nocivo ao qual o segurado se expôs durante a carreira. Com o advento da
EC no 103/19 (Reforma Previdenciária), os requisitos da aposentadoria especial sofreram
significativas alterações. Caso haja interesse numa análise mais aprofundada do tema, remete-
se o leitor: LADENTHIN, Adriane Bramante de Castro. Aposentadoria especial: teoria e prática.
5. ed. Curitiba: Juruá, 2020, p. 31-34.
27
PROCESSOS ESTRUTURAIS EM MATÉRIA PREVIDENCIÁRIA

custeio do benefício.15 Note-se que, ao adotar um padrão de conduta tido


como inadequado pela jurisprudência, o INSS não lesa somente o direito
de um segurado em específico, mas afeta um universo indeterminado
de contribuintes individuais cujo direito à aposentadoria especial é
indevidamente negado.
No entanto, o Judiciário também tem oferecido respostas
insuficientes para lidar com esse fenômeno. Isso porque, tal como o diretor
que pretendia resolver o problema da linha de produção com o conserto
manual dos veículos gerados pela máquina defeituosa, as Cortes têm
adotado essencialmente a postura de lidar com as consequências do problema
da litigância previdenciária, ao invés de enfrentar as suas causas projetando
soluções orgânicas e estruturais.
De fato, em matéria previdenciária, a maioria dos esforços da
jurisdição estão centralizados no julgamento de litígios individuais, cujas
discussões gravitam em torno da aferição da (i)legalidade de um ato
concreto do INSS. Noutros termos, a atenção das Cortes tem se voltado
para a resolução de milhares de conflitos dotados de idêntica configuração
subjetiva, os quais estampam, de um lado, o INSS e, do outro, um segurado
individualizado. Nesse método de trabalho, o Judiciário procede à análise
pontual e atomizada dos atos administrativos exarados pelo INSS. Cada
irregularidade cometida pela autarquia enseja o ajuizamento de um processo
de caráter individual, dentro do qual a jurisdição exorta o INSS a conceder
benefício previdenciário a um cidadão cujo pedido foi indevidamente
negado na via administrativa.
Para ilustrar tal quadro, vale retornar à situação dos contribuintes
individuais que reivindicam aposentadorias especiais. Imagine-se que um
médico autônomo formula requerimento administrativo perante o INSS,
a fim de obter a concessão de aposentadoria especial. Ao se depararem
com o pedido do segurado, os funcionários da autarquia indeferem o
benefício almejado, valendo-se da orientação institucional consolidada no
art. 247 da IN no 128/22. Cônscio de que a decisão administrativa infringe
o posicionamento consolidado dos Tribunais, o segurado move ação
individual contra o INSS e, sem maiores atribulações, obtém ordem judicial
que impõe a implementação de aposentadoria especial em seu favor.
Note-se que, nesse cenário, os efeitos da decisão judicial detêm alcance
extremamente limitado, porquanto se adstringem à situação do médico
autônomo que requereu a concessão judicial da aposentadoria especial.
Embora tenha sanado a lesão ao direito do médico autônomo, a ordem
15. Para um levantamento do comportamento da jurisprudência sobre o direito dos contribuintes
individuais à aposentadoria especial, veja-se: NOCETI, Rodrigo Fagundes. A aposentadoria
especial do contribuinte individual. Dissertação (Mestrado em Direito Previdenciário) – Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2018, p. 165-173.
28
• COLEÇÃO LITIGÂNCIA ESTRATÉGICA E COMPLEXA ALBERTO LUIZ
HANEMANN BASTOS

proferida no processo individual em pouco contribui para a resolução dos


fatores conjunturais que desencadearam a propositura da ação. É que, a
despeito da decisão judicial que deferiu o benefício ao segurado, o art. 247
da IN no 128/2022 – que veda a concessão de aposentadorias especiais aos
contribuintes individuais – continuará a ser replicado pelo INSS durante
a análise dos requerimentos vindouros. Assim, contribuintes individuais
que vierem a requisitar aposentadorias especiais continuarão a ter os seus
pedidos indevidamente indeferidos no futuro.
Perfaz-se, então, uma espécie de ciclo vicioso: o comportamento ilegal
da autarquia jamais cessa e, provimento após provimento, a jurisdição se
vê obrigada a repetir o mesmo comando de que “contribuintes individuais
fazem jus à aposentadoria especial”. Como bem descrito por Juliana
Pondé Fonseca, “o mais marcante da postura do INSS é [...] a insistência
em persistir aplicando uma política ilegal mesmo após ter sido alertado
inúmeras vezes pelo Judiciário acerca dessa ilegalidade”.16 Apesar das
milhares de condenações impingidas ao INSS, as decisões proferidas em
processos individuais raramente desencadeiam mudanças na rotina interna
da instituição.
Portanto, a aposta de enfrentar a litigiosidade previdenciária com
tutelas individuais traz consigo duas principais inconveniências.
A primeira delas se trata do desperdício de recursos humanos e
materiais do Poder Judiciário. Como as tutelas individuais não geram
estímulos para que o INSS evite a reiteração da mesma ilicitude no futuro,
parcela significativa da força de trabalho de magistrados e servidores
estará permanentemente comprometida com a prolação de decisões que
se limitarão a reiterar um comando que já foi emanado em milhares de
processos anteriores. Após o término de cada processo judicial, a relação
entre o Tribunal e o INSS retorna ao status quo ante, de modo que as
Cortes desempenham um trabalho semelhante ao da figura mitológica de
Sísifo: analisam a (ir)regularidade da conduta da autarquia, determinam a
implantação do benefício em favor do segurado e, depois do trânsito em
julgado, são obrigadas a reiniciar o ciclo com a análise de outra demanda
idêntica – como se o labor pregresso não ostentasse utilidade.17

16. FONSECA, Juliana Pondé. O (des)controle do Estado no judiciário brasileiro: direito e política
em processo. Tese (Doutorado em Direito das Relações Sociais) – Universidade Federal do
Paraná, Curitiba, 2015, p. 126.
17. O mito de Sísifo já foi utilizado como metáfora para a atividade desempenhada pelas Cortes.
De acordo com a mitologia, Sísifo foi condenado a “rolar uma pedra de mármore com as
próprias mãos até o cume de uma montanha quando, chegando lá, descia ela rolando até o
seu ponto de partida, fazendo com que tivesse que repetir este fardo por toda a eternidade
para demonstrar que a vida dos mortais não era igual à dos deuses, e que para vencer a
monotonia, deveriam tornar-se criativos” (JOBIM, Marco Félix. Medidas estruturantes na
Jurisdição Constitucional: da Suprema Corte Estadunidense ao Supremo Tribunal Federal. 2. ed.
29
PROCESSOS ESTRUTURAIS EM MATÉRIA PREVIDENCIÁRIA

A segunda inconveniência, ao seu turno, consiste na perpetuação


das causas que ensejam a violação em massa dos direitos dos segurados da
Previdência Social. A causa da insuflada litigiosidade em determinados temas
da esfera previdenciária remonta à incorporação de uma prática inadequada
à rotina interna da autarquia, enquanto as decisões administrativas
irregulares e as lesões suportadas pelos segurados se tratam de consequências
que emergem da adoção de uma rotina interna inadequada.
Logo, a opção de priorizar a resolução dos conflitos atomizados
travados entre os segurados e o INSS dá ênfase à remediação das consequências
do problema ora apresentado, descurando-se do tratamento das suas causas.18
Os Tribunais optam por corrigir isoladamente os equívocos do INSS por
meio de milhares de decisões individuais, ao invés de adotar medidas que
se prestem a modificar a rotina interna da autarquia e, assim, eliminar os
fatores que dão causa às milhares de decisões administrativas irregulares.
Nessa quadra, o Judiciário enfrenta o problema da litigância
previdenciária da mesma forma que o diretor da empresa automobilística:
corrige isoladamente os produtos gerados por uma “máquina” defeituosa,
sem proceder ao reparo de suas falhas internas.
A jurisdição também vem tentando corrigir as rotinas internas do
INSS mediante o emprego de técnicas de coletivização de demandas, como
o IRDR, o IAC e os REsp e RE Repetitivos. Parte-se da premissa de que,
por meios dos julgamentos proferidos em sede de recursos repetitivos, as
Cortes compeliriam a autarquia a internalizar teses jurisprudenciais em seu
cotidiano operacional, inibindo a prolação de decisões administrativas tidas
pelo Judiciário como ilegais ou inconstitucionais.19
Contudo, em sua maioria, as teses firmadas durante o julgamento
de Incidentes de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), Incidentes
de Assunção de Competência (IAC) e Recursos Especiais (REsp) e
Recursos Extraordinários (RE) Repetitivos não têm sido capazes de conter
a litigiosidade previdenciária, pois, a despeito da miríade de súmulas e
temas formulados pelos Tribunais Superiores em matéria previdenciária, o
contingente de demandas contra o INSS não sofreu alterações significativas.20

Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2021, p. 250).


18. Noutros termos, a atividade jurisdicional é guiada por uma lógica que tende a “lidar com
os efeitos ou com as consequências, assim maquiando ou deixando em aberto a(s) causa(s)”
(MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Acesso à justiça: condicionantes legítimas e ilegítimas. 3.
ed. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 63).
19. Sobre o ponto, vale conferir: SIMONATO, Geisla Luara. O impacto dos precedentes na advocacia
previdenciária: precedentes selecionados do STJ e STF. Curitiba: Juruá, 2022, p. 95-100.
20. VAZ, Paulo Afonso Brum. A judicialização dos direitos da seguridade social. Curitiba: Alteridade,
2021, p. 358-359.
30
• COLEÇÃO LITIGÂNCIA ESTRATÉGICA E COMPLEXA ALBERTO LUIZ
HANEMANN BASTOS

Tendo em vista esse panorama, os seguintes questionamentos são


trazidos a lume: como modificar a perspectiva de enfrentamento dos
problemas vislumbrados nas políticas do INSS? Quais mecanismos o
Judiciário poderia utilizar para redirecionar o enfoque da sua atuação, a
fim de que os seus comandos extrapolem a órbita das tutelas individuais
e provoquem efetivas modificações no modus operandi da autarquia? Como
propor uma releitura das interações travadas entre o Judiciário e o INSS?
A hipótese do presente livro é a de que algumas respostas podem
ser localizadas no ambiente do processo coletivo, especialmente na técnica
que a doutrina tem alcunhado de processo estrutural.21 Legatário das structural
injunctions estadunidenses, o processo estrutural faz alusão à experiência
de Cortes que, ao se depararem com relatos de violação de direitos por
parte de uma corporação pública ou privada, identificaram a necessidade
de se promover uma ampla reforma dos protocolos que orientavam o
funcionamento da instituição.22 Assim, o processo judicial foi utilizado como
mecanismo de reforma do funcionamento de prisões, escolas, hospitais e
instituições responsáveis pelo gerenciamento de políticas públicas.23
Entende-se que a experiência dos processos estruturais pode revelar
algumas respostas para as questões envolvendo a interação do Judiciário
com o INSS, na medida em que os problemas enfrentados pelas Cortes
que aplicaram medidas estruturantes são análogos àqueles vivenciados pela
litigância previdenciária brasileira. Todos eles apresentam uma instituição que
ostenta padrões de conduta contrários à lei e à Constituição, cuja modificação
pressupõe uma ampla intervenção judicial. Se as Cortes obtiveram êxitos
significativos nos casos de reformas de prisões, estabelecimentos escolares
e instituições responsáveis pela prestação de políticas públicas, é possível
cogitar que as técnicas e os mecanismos processuais empregados durante
tais experiências sirvam de válvula motriz para a cessação das práticas

21. A doutrina apresenta controvérsias quanto à referida nomenclatura, sobretudo no que diz
respeito à utilização do adjetivo “estrutural” ou “estruturante”. Para os propósitos do presente
estudo, os adjetivos “estrutural” e “estruturante” serão tomados como sinônimos, pois se
entende que a diferenciação de nomenclatura não prejudica a inteligibilidade do fenômeno
avaliado. De toda a forma, caso haja interesse nas diferentes nomenclaturas utilizadas na
doutrina brasileira, vale conferir: MARÇAL, Felipe Barreto. Processos estruturantes. Salvador:
Juspodivm, 2021, p. 33-37.
22. Por todos, ver: FISS, Owen. The Forms of Justice. Harvard Law Review, v. 93, n. 1, p. 1-58,
nov., 1979.
23. Para um sucinto panorama histórico das structural injunctions no direito estadunidense, ver:
WEAVER, Russel L. The Rise and Decline of Structural Remedies. San Diego Law Review,
v. 41, p. 1.617-1.632, 2004. De outra banda, um acurado levantamento das medidas
estruturantes utilizadas no controle de políticas públicas pode ser localizado no seguinte
escrito: LANGFORD, Malcolm. The Justiciability of Social Rights: From Practice to Theory.
In: LANGFORD, Malcolm (ed.). Social Rights Jurisprudence: Emerging Trends in International
and Comparative Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2009, v. 3.
31
PROCESSOS ESTRUTURAIS EM MATÉRIA PREVIDENCIÁRIA

irregulares do INSS e para o enfrentamento das causas da lesão massiva aos


direitos dos segurados da Previdência Social.
Assim, o mote do presente livro é o de explorar de que modo a
técnica dos processos estruturais pode ser aplicada ao INSS. Partindo das
experiências do Direito brasileiro e estrangeiro, pretende-se desenvolver os
contornos conceituais e as características de um processo estrutural aplicado às
necessidades específicas dos litígios previdenciários. Em termos diretos, tem-se o
intuito de desenvolver um conceito de processo estrutural previdenciário.24
Para tanto, o livro se subdividirá duas partes distintas. A primeira delas,
intitulada “Teoria dos processos estruturais”, é composta por dois capítulos e tem
o objetivo de situar o solo teórico no qual foram concebidos os processos
estruturais. A segunda parte do estudo, intitulada “Processos estruturais em
matéria previdenciária”, também contém dois capítulos e visa promover
uma investigação focalizada nas possibilidades de aplicação da técnica dos
processos estruturais ao INSS.
Ao todo, a presente obra se estrutura em cinco capítulos. O
primeiro deles consiste numa exposição teórica e conceitual dos processos
estruturais. Primeiramente, indica a necessidade de se efetuar uma releitura
das concepções tradicionais de jurisdição, sugerindo que, ao invés de
visualizarem o Judiciário como um ambiente de resolução de disputas,
os juristas devem enxergá-lo como instância de promoção de valores
públicos. Após, explica as razões pelas quais o Judiciário foi gradativamente
exortado a extrapolar a sua função usual de corrigir ilícitos episódicos, para
promover alterações amplas e profundas no funcionamento de instituições.
O capítulo é encerrado com a exposição das principais críticas direcionadas
aos processos estruturais e das réplicas que lhes podem ser adereçadas, com
vistas a indagar se as objeções democráticas e institucionais às medidas
estruturantes são passíveis de superação.
O segundo capítulo desloca a análise do plano teórico para o plano
pragmático, apresentando uma análise das nuances procedimentais dos litígios
envolvendo reformas estruturais. Nesse momento, sinaliza-se quais são
as adequações que devem ser realizadas nos clássicos institutos de direito
processual para que a jurisdição possa lidar com as necessidades específicas
dos litígios estruturais.
O terceiro capítulo apresenta uma visão panorâmica da litigância
previdenciária brasileira e do funcionamento do INSS. Para tanto, a partir
24. A expressão já foi utilizada no seguinte escrito: BASTOS, Alberto Luiz Hanemann. A técnica
dos processos estruturais aplicada ao Instituto Nacional do Seguro Social: pode o judiciário
remediar o caos da litigiosidade previdenciária? Op. cit., p. 133. A terminologia também
pode ser localizada em:: BASTOS, Alberto Luiz Hanemann; NAKAMURA, Erick Kiyoshi.
Processos estruturais previdenciários. Anais da XXI Jornada de Iniciação Científica, Curitiba, v. 1,
n. 10, p. 24-42, 2019.
32
• COLEÇÃO LITIGÂNCIA ESTRATÉGICA E COMPLEXA ALBERTO LUIZ
HANEMANN BASTOS

de uma análise dos principais relatórios empíricos que versam sobre o eixo
temático da litigância previdenciária, investiga quais padrões de conduta
do INSS colidem com as diretrizes legais e constitucionais que regem a
Seguridade Social brasileira. Após, indica os motivos pelos quais a insuflada
litigiosidade no campo previdenciário não reflete incidentes pontuais
e atomizados de violação à legislação, mas sim problemas estruturais
consolidados nos liames das rotinas internas do INSS. Ao final, aponta
as respostas que os Tribunais têm oferecido para lidar com os efeitos da
insuflada litigiosidade no campo previdenciário e explica as razões pelas
quais tais respostas são insuficientes para enfrentar as causas dos problemas
estruturais que assolam o INSS.
O quarto capítulo esboça as principais características assumidas
pelos processos estruturais na área previdenciária, que são norteados pelo
propósito de modificar as rotinas internas do INSS. Nessa oportunidade,
sugere-se que os processos estruturais carregam consigo uma “dupla
função”: legitimar a atuação do INSS a partir da internalização do princípio
da máxima efetividade do acesso à proteção social e implementar as
reformas necessárias para assegurar a efetividade dos serviços ofertados
pela autarquia. Em seguida, apresenta as diretrizes procedimentais que
devem reger a condução dos processos estruturais previdenciários.
Por fim, o quinto capítulo sintetiza, em quarenta e dois itens, as
conclusões logradas ao longo da obra.

33
PARTE I
Teoria dos processos
estruturais
CAPÍTULO 1
Da resolução de incidentes à mobilização de
estruturas: Um breve panorama conceitual
dos processos estruturais

O presente capítulo apresentará os fundamentos doutrinários e


teóricos que constituem o conceito de processo estrutural.
A operacionalidade do processo estrutural pressupõe a ressignificação
de diversos dogmas sedimentados na disciplina do direito processual
civil. Para tanto, é necessário questionar a noção de que a jurisdição se
trata de instância exclusivamente voltada à resolução de disputas, bem
como ressignificar o papel desempenhado pelo magistrado na condução
de processos judiciais. Em outras palavras, processos estruturais não têm
condições de florescer em solos teóricos nos quais o único papel cometido
ao Judiciário consiste na pacificação de conflitos de interesse individuais,
tampouco em ordenamentos nos quais juízes não têm ferramentas para
lidar com problemas complexos e policêntricos.
Por isso, o presente capítulo tratará de expor os alicerces teóricos que
viabilizam a utilização da técnica dos processos estruturais.

1.1 DÍADES DO OFÍCIO JURISDICIONAL: RESOLUÇÃO


DE DISPUTAS E PROMOÇÃO DE VALORES PÚBLICOS,
MICROJUSTIÇA E MACROJUSTIÇA, AS ÁRVORES E A FLORESTA

O gérmen da discórdia é o conflito de interesses. Quem tem


fome, tem interesse em dispor do pão com que se saciar;
se são dois os que têm fome, e o pão não é suficiente mais
do que para um, surge o conflito entre eles. [...] Uma tal
situação não é ainda a guerra entre ambos, mas a contém
em potência, pelo que se compreende que alguém ou algo
deva intervir para evitá-la. Este algo é o processo, que se
chama civil porque ainda não surgiu o delito que reclama a
pena; e a situação diante da qual intervém leva o nome de
litis ou litígio.
PROCESSOS ESTRUTURAIS EM MATÉRIA PREVIDENCIÁRIA

A litis é, pois, um desacordo. Elemento essencial do


desacordo ou um conflito de interesses: se se satisfaz um
interesse de uma pessoa fica sem satisfazer o interesse da
outra, e vice-versa.1
As reflexões suso reproduzidas provêm de exposição ministrada por
Francesco Carnelutti junto à Rai Radio Tutta Italiana. Naquela ocasião, o
consagrado jurista dava início a um projeto que visava difundir conceitos
de processo civil e de processo penal ao público leigo, através de aulas
transmitidas em programas radiofônicos. Durante quinze aulas com duração
aproximada de quinze minutos, Carnelutti esmerou-se para ensinar, de
forma didática e simples, as diferenças havidas entre o processo civil e o
processo penal, os papéis exercidos pelo juiz e pelas partes e as etapas que
compõem um processo judicial.2
Na passagem acima citada, o professor italiano tentava explicar ao
seu público as razões existenciais do processo civil. Pode-se dizer que a
explanação do autor era permeada pelas seguintes indagações: que tipo de
incidente gera um processo judicial? Em quais circunstâncias uma pessoa
pode demandar outra em juízo? Afinal, para que serve o processo civil?
Para responder tais questionamentos, Carnelutti enfatizou a existência
de uma relação constitutiva entre processo e lide (litis). Para o autor, o
processo judicial é gerado pelo surgimento de uma lide, que incorpora
“um conflito (intersubjetivo) de interesses qualificado por uma pretensão resistida”.3
Desse modo, conclui que a finalidade do processo e da jurisdição é a de
fazer cessar a lide, solucionando-a através da aplicação do Direito vigente.4
Nessa visão, a função jurisdicional está atrelada à resolução das disputas
instauradas entre sujeitos que possuem vontades colidentes. O apanágio
central do magistrado corresponde à prolação de uma decisão capaz de
solucionar um conflito de interesses.
Ao perfilharem essa perspectiva como ponto de partida para a
concepção do ofício jurisdicional, juristas se depararam com uma série de
implicações práticas e teóricas.
A primeira delas consiste na exigência de uma postura passiva e
neutra do magistrado em relação à condução do processo. Se a essência da

1. CARNELUTTI, Francesco. Como se faz um processo. Tradução: Hebe Calleti Marenco. São
Paulo: Minelli, 2002, p. 25-26.
2. Posteriormente, as aulas proferidas na Rai Radio Tutta Italiana foram compiladas em livro
denominado “Come si fa un processo”, que foi traduzido para a língua portuguesa com o
título “Como se faz um processo”. As informações sobre o projeto são relatas na primeira aula
ministrada por Carnelutti no programa radiofônico, como pode ser visto em: Ibidem, p. 13-
15.
3. CARNELUTTI, Francesco. Instituciones del proceso civil. Tradução: Santiago Sentis Melendo.
Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America, 1973, v. 1, p. 28, tradução livre.
4. Ibidem, p. 27.
38
• COLEÇÃO LITIGÂNCIA ESTRATÉGICA E COMPLEXA ALBERTO LUIZ
HANEMANN BASTOS

atuação jurisdicional é a de resolver os conflitos que irrompem no seio da


sociedade, isso significa que o processo se trata de um ambiente no qual as
partes protagonizam uma batalha pelo prevalecimento de seus interesses
particulares, sendo a vitória ou a derrota de sua inteira responsabilidade.5
O magistrado funcionaria um mediador passivo, que apenas preserva as
prerrogativas formais das partes e, tal como uma “grande máquina de
silogismos”,6 declara a vontade exprimida pelos parlamentares no texto da
lei.7
Nas precisas palavras de Roberto Omar Berizonce, “prevalece a
autonomia da vontade e a irrestrita liberdade das partes, que têm à sua
disposição todos os instrumentos processuais para desenvolver uma
competição em que se discutem questões de seu exclusivo interesse”, razão
pela qual “o juiz não pode ser nada além do que um simples espectador
– verdadeiro ‘convidado de pedra’ que se limita a assegurar a retidão do
procedimento e arbitrar o conflito com a declaração do vencedor”.8
O compromisso do juiz se adstringe à preservação de garantias de
cariz processual, de modo que as preocupações ligadas à esfera do direito
material não estão incluídas no horizonte da sua atuação.9 Daí que o
magistrado careceria de legitimidade para alterar os rumos do procedimento,
ainda que as necessidades do direito material assim exigissem. Nesse cenário,
seria inviável cogitar a adoção de medidas processuais voltadas à atenuação
das desigualdades econômicas e informacionais havidas entre os polos do
litígio – como a alteração das regras de ônus da prova e a determinação
de produção de prova de ofício.10 Independentemente das características
5. Em interessante analogia, o jusfilósofo Roscoe Pound critica tal linha de pensamento
com a assertiva de que ela consolida uma espécie de “sporting theory of justice”, na qual o
funcionamento do processo judicial apresenta uma dinâmica semelhante à de um jogo de
futebol: as partes esforçam-se para alcançar a vitória e o juiz, ao invés de se preocupar com
os fins substanciais do Direito, comporta-se como um árbitro que busca apenas garantir o
respeito às regras formais da disputa. Sobre o ponto, ver: POUND, Roscoe. The Causes
of Popular Dissatisfaction with the Administration of Justice. Reports of the American Bar
Association, v. 29, p. 395-417, 1906.
6. A expressão se trata de uma tradução do termo “giant syllogism machine”, empregada no
seguinte texto: TUMONIS, Vitalius. Legal Realism & Judicial Decison-Making. Jurisprudence,
v. 19, n. 1, p. 1.361-1.382, 2012.
7. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso
de processo civil: teoria do processo civil. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, v. 1, p.
46-48.
8. BERIZONCE, Roberto Omar. Ideologías y proceso. Revista Eletrônica de Direito Processual, Rio
de Janeiro, v. 18, n. 2, p. 470-515, maio/ago., 2017, p. 479, tradução livre.
9. A postura de indiferença dos magistrados em relação às vicissitudes do direito material, típica
do processo civil liberal-clássico, é destacada em: MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica
processual e tutela dos direitos. 6. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 47-49.
10. MARINONI, Luiz Guilherme. Tutelas diferenciadas e realidade social. In: RODRIGUES,
Horácio Wanderlei (org.). Lições alternativas de direito processual. São Paulo: Editora Acadêmica,
1995, p. 135.
39
PROCESSOS ESTRUTURAIS EM MATÉRIA PREVIDENCIÁRIA

estampadas no plano do direito material, a atuação do magistrado deveria


se adstringir à fiscalização do comportamento das partes, de modo que o
seu único papel seria o de garantir a plena observância das “regras do jogo”
processual.11
Além disso, a vinculação da jurisdição ao ofício de resolver disputas
tende enviesar a compreensão do fenômeno processual à lógica individual
e bipolar. Em seu âmago, o conceito de lide é moldado a partir de um
recorte bastante específico da realidade empírica: um conflito entre dois
indivíduos que ocupam os polos ativo e passivo de um processo judicial e que
se digladiam para satisfazer interesses de cunho privado.12
Compreendendo os litígios sob uma ótica bipolar, o sistema jurídico
diagrama as decisões judiciais com base numa lógica binária, em que o
desfecho do conflito necessariamente coincide com a (im)procedência ou
com a parcial procedência da demanda. Ou o magistrado dá inteira razão
à uma das partes ou dá parcial razão à ambas, sem poder cogitar medidas
diversas daquelas enunciadas nos atos postulatórios dos litigantes.13
Terceiros que não detêm interesse jurídico para intervir no processo
e circunstâncias não aventadas pelas partes passam ao largo das reflexões
do juiz, uma vez que a lide se adstringe às figuras do autor e do réu. Tem-
se um julgador subordinado aos alvedrios dos litigantes, sendo-lhe vedado
avaliar fatos que não são relatados pelas partes, bem como determinar a
execução de providências que não tenham sido requeridas por elas.14 Pouco
importam os custos necessários para a implementação da decisão, os
terceiros eventualmente afetados com os efeitos da ordem judicial ou as
complexidades que emanam da realidade empírica, pois o ato de adjudicar
se resume à resolução da altercação travada entre dois litigantes – e o juiz

11. MOREIRA, José Carlos Barbosa. A função social do processo civil moderno e o papel do
juiz e das partes na direção e na instrução do processo. Revista de Processo, v. 37, p. 140-150,
jan./mar., 1985, p. 145.
12. Ao tecerem comentários sobre a doutrina de Francesco Carnelutti, Luiz Guilherme Marinoni,
Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero indicam que o professor italiano “partiu da ideia
de lide entre duas pessoas – compreendida como conflito de interesses individual ou, mais
precisamente, marcada pela ideia de litigiosidade, conflituosidade ou contenciosidade – para
definir a existência de jurisdição. [...] É evidente que o ângulo visual de Carnelutti revela uma
compreensão privatista da relação entre a lei, os conflitos e o juiz, além de uma imagem
puramente individualista dos conflitos sociais” (MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART,
Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil: teoria do processo civil. Op. cit.,
p. 44-45).
13. Abraham Chayes aponta que tal modelo é pautado pela lógica decisória de que “o vencedor
leva tudo” (winner-takes-all basis). Para tanto, ver: CHAYES, Abraham. The Role of the Judge
in Public Law Litigation. Op. cit., p. 1.282.
14. Para uma leitura crítica dessa visão: ARENHART, Sérgio Cruz. Reflexões sobre o princípio
da demanda. In: FUX, Luiz; NERY JUNIOR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim
(coords.). Processo e Constituição: estudos em homenagem ao Professor José Carlos Barbosa
Moreira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
40
• COLEÇÃO LITIGÂNCIA ESTRATÉGICA E COMPLEXA ALBERTO LUIZ
HANEMANN BASTOS

deve se ater a essa função independentemente dos fatores externos à lide


que lhe é apresentada.15 O apanágio jurisdicional está circunscrito à órbita
das duas figuras que ocupam os polos do litígio, razão pela qual nada mais
pode ser acrescido ao horizonte da cognição judicial.
Portanto, o paradigma da lide sinaliza uma preferência clara no que
diz respeito à subdivisão dos planos da microjustiça e da macrojustiça.
A microjustiça está ligada à resolução de problemas particulares
através do manejo das pretensões veiculadas por aqueles que ocupam a
posição de partes, ao passo que a macrojustiça manuseia julgamentos de
questões de ampla repercussão política, econômica ou social, cujos efeitos
extrapolam os interesses das partes.16 De um lado, a microjustiça versa sobre
os casos em que o magistrado se esmera para solucionar uma desavença
episódica havida entre duas unidades de interesse, com um julgamento
que impacta somente as partes que integram o processo.17 De outro, a
macrojustiça trata das situações em que o problema submetido ao crivo da
jurisdição não afeta apenas as partes que instauraram o litígio, mas também
atinge uma massa indeterminada de indivíduos.18
A microjustiça materializa a configuração clássica das disputas
individuais: “A” contra “B”, Caio contra Tício, autor contra réu.19 Neste
quadrante, inserem-se, por exemplo, as demandas que discutem o modo
como deve ser interpretada a cláusula de um contrato celebrado entre dois
particulares, a discussão da (in)existência de direito à indenização em razão
de uma colisão automobilística e a cobrança de uma dívida inadimplida. De
outro giro, a macrojustiça envolve questões cuja complexidade não pode
ser traduzida na acepção de um conflito entre dois polos, na medida em
que afetam uma ampla gama de indivíduos para além daqueles que ocupam
as posições de autor e réu do processo.20 Esse é o caso, por exemplo, das

15. Em certa medida, essa é a perspectiva perfilhada em clássico ensaio de Lon Fuller, no qual
o autor critica o posicionamento dos juízes que se envolvem em litígios “policêntricos”:
FULLER, Lon. The Forms and Limits of Adjudication. Harvard Law Review, v. 92, n. 2, p.
353-409, dez., 1978, p. 391-404.
16. NASCIMENTO, Filippe Augusto dos Santos. Entre a micro e a macrojustiça: contributos para a
objetivação da tutela dos direitos fundamentais. Tese (Doutorado em Direito), Universidade
Federal do Ceará, Fortaleza, 2018, p. 25-26.
17. CHAYES, Abraham. The Role of the Judge in Public Law Litigation. Op. cit., p. 1.282-1.283.
18. Ibidem, p. 1.302-1.304.
19. A assertiva é inspirada na doutrina de Sérgio Cruz Arenhart e Gustavo Osna. Ver:
ARENHART, Sérgio Cruz; OSNA, Gustavo. Curso de processo civil coletivo. São Paulo: Thomson
Reuters Brasil, 2019, p. 117.
20. Essa ideia converge com o conceito que Edilson Vitorelli atribui aos “processos de interesse
público”, que se tratam das “demandas nas quais se pretende efetivar um direito que está
sendo negado pelo Estado, não apenas para a parte que está no processo, mas para toda a
sociedade de potenciais destinatários daquela prestação” (VITORELLI, Edilson. Levando
os conceitos a sério: processo estrutural, processo coletivo, processo estratégico e suas
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