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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Henrique Sugahara Francisco

Transgressores da ordem e dos bons costumes:


os adeptos das práticas mágico-religiosas segundo as páginas sensacionalistas do
jornal A Capital, 1912-1930

Mestrado em História

São Paulo
2011
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP

Henrique Sugahara Francisco

Transgressores da ordem e dos bons costumes:


os adeptos das práticas mágico-religiosas segundo as páginas sensacionalistas do
jornal A Capital, 1912-1930

Mestrado em História

Dissertação apresentada à Banca Examinadora


da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
Mestre em História, sob a orientação da Profª.
Drª. Denise Bernuzzi de Sant’Anna

São Paulo
2011
Errata:

Na página 8, o termo “imprensa media” deve ser lido como “imprensa média”.

Na página 46, nota 176, o trecho “Com efeito, entendemos, a partir de Roger Chartier, o
conceito “cultura popular” não como objetos ou modelos culturais destinados a uma
determinada classe social, mas sim situá-lo” deve ser lido da seguinte forma: “Com efeito,
entendemos, a partir de Roger Chartier, o conceito “cultura popular” não como objetos ou
modelos culturais destinados a uma determinada classe social. Pelo contrário, procuramos
situá-lo”.

Na página 93, o trecho “Amalia através de conversas com um crucifixo, conseguiria ouvir a
voz de Cristo e responder a perguntas das mais diversas, tais como” deve ser lido da seguinte
forma: “Amalia, através de conversas com um crucifixo, conseguiria ouvir a voz de Cristo e
responder a perguntas das mais diversas áreas do conhecimento, tais como”.

Na página 155, o trecho “Na edição de 24 de agosto de 1914, A Capital publicou uma carta
da lavra de Antonio Mathias de Viveiros, cujo conteúdo narrava” deve ser lido da seguinte
forma: “Na edição de 24 de agosto de 1914, A Capital publicou uma carta da lavra de
Antonio Mathias de Viveiros, 2º sargento da Guarda Civil, cujo conteúdo narrava”.

Na página 178, o trecho “e do catedrático de psicologia professor francês Charles Richet,


sócio da Academia de Ciências de Paris” deve ser lido da seguinte forma: “e do professor
francês Charles Richet, catedrático de psicologia e sócio da Academia de Ciências de Paris”.
Banca Examinadora

_________________________
_________________________
_________________________

i
Poeminha Sensato In Extremis

No capitalismo ou no socialismo
A nata da nata.
Quando meu filho crescer
Vai ser burocrata.

Millôr Fernandes1

1
In: Poemas. Porto Alegre: L&PM , 2001, p. 61.

ii
Agradecimentos

Encerrado o presente trabalho de pesquisa, deixo aqui os seguintes agradecimentos:

A CAPES, pela bolsa parcial durante o ano de 2009, e ao CNPq, pela concessão da
bolsa integral no ano seguinte.

À professora Maria Cristina Cortez Wissenbach, pelas sugestões na banca de


qualificação.

À professora Denise Bernuzzi de Sant’Anna, pela orientação e liberdade concedida ao


longo deste trabalho, de modo que os eventuais erros cometidos são de inteira
responsabilidade deste que vos escreve essas linhas.

Aos docentes da graduação e pós-graduação da PUC-SP, em especial aqueles que


foram marcantes para minha formação: Mariza Romero, Eduardo Antonio Bonzatto, Pedro
Fassoni Arruda, Antônio Rago Filho, Vera Lúcia Vieira e Estefania Knotz Canguçú Fraga.

Aos amigos da época da graduação, principalmente aqueles com quem estabeleci


vínculos mais estreitos, a saber, Karla Maestrini, Luiz Felipe Loureiro Foresti (incrível
intelectual e futura referência em marxismo no Brasil), Eduardo Guilherme Piacsek, Luiz
Augusto Tavares e Carlos Gabriel Alves.

Aos amigos da pós Danilo Ferreira da Fonseca, Felipe Morelli Machado, Luciano
Deppa Banchetti, Adriano Henriques Machado e Leonardo Nunes Pereira.

Aos amigos Carlos Alberto Ungaretti Dias, José Cavalli Júnior, Modesto Tavares de
Lima e Yolanda Maux Vianna, funcionários do Acervo Histórico da Assembléia Legislativa
do Estado de São Paulo, onde tive o prazer de estagiar durante um ano e meio.

À historiadora Maria Lucia Mott, com quem tive oportunidade de trabalhar e por meio
da qual conheci a coleção do Primeiro Cartório de São Paulo.

A Waldir Fávero e Waldir Fávero Jr., da Xérox do Centro Acadêmico de Letras, e a


Reinaldo Rogério Moreira, da Print Express, localizado no mesmo C. A.. Como o trabalho
manual é ainda visto por muitos como uma atividade inferior e aviltante (vide o “jornalista”
Boris Casoy), aqueles que, com rapidez, para que possamos cumprir com os prazos, tiram as
cópias de partes de livros ou imprimem nossos textos, são esquecidos nos agradecimentos em
favor das contribuições intelectuais dos pares acadêmicos. Muito mais do que trabalhadores
que prestam um serviço em troca de valores pecuniários pagos pelo cliente, eles foram
grandes camaradas e incentivadores desse trabalho, mesmo que em rápidas conversas. Sem a
sua disposição, quando eu precisava urgentemente de uma cópia ou impressão, e o seu apoio,
não seria possível a feitura da dissertação.

Aos amigos de longa data Marciléia Egídio Sampaio, Mônica Nascimento da Silva,
Thiago Igor Santos Barbosa e Tiago Henrique Silva.

Ao meu pai, Joel de Col Francisco, e à minha mãe, Lúcia Massae Sugahara, pela
educação esmerada. E ao meu irmão, Rafael Sugahara Francisco, pelos incentivos. A eles

iii
agradeço ainda pela compreensão das minhas ausências e por entenderem quando, em vários
momentos, a porta do quarto esteve fechada, denotando a necessidade premente de silêncio e
concentração, essenciais para os estudos.

Aos meus tios e às minhas tias, tanto do lado paterno quanto materno.

Ao meu avô, João Francisco, e à minha avó, Tsutae Sugahara, exemplos de vida.

Aos meus estimados primos Fábio Yukio Ono, Jairo de Col Francisco Júnior e Karina
Sayuri Ono, donos de uma inteligência admirável e acima do comum. Que essa dissertação
sirva para reforçar-lhes que a ignorância nunca libertará alguém e que o conhecimento é
fundamental para entendermos o mundo à nossa volta, bem como para nos livrarmos dos
grilhões dos preconceitos.

Por fim, gostaria de agradecer mais uma vez à professora Mariza Romero. Recordo-
me como se fosse ontem do final da primeira aula de Teoria da História III, em março de
2006, ocasião em que lhe pedi ajuda para que eu pudesse fazer um projeto de Iniciação
Científica. Quando disse que desejava fazer um trabalho na área de História da Cultura no
Brasil, ouvi sua resposta: “Ah... História da Cultura? No Brasil? Em que época? Sobre qual
tema especificamente falando? É muito vago, não?”. Mas, em seguida, para me acalmar, ela
respondeu: “Fique tranqüilo. Começa assim mesmo... Faz parte do trabalho do historiador”.
A partir daí, conversamos mais vezes e ela me ajudou a escrever o projeto, aprovado no ano
seguinte.

A Iniciação Científica se transformou nessa dissertação e... bem, minha amiga e


professora Mariza, aqui estou eu defendendo um mestrado! Não fosse sua ajuda, talvez, ou
certamente, esse momento não estaria acontecendo, pois, quando ingressei na PUC, pesquisas,
teses, dissertações, mestrados, doutorados, enfim, esses elementos da vida acadêmica,
pareciam-me algo difuso e distante da minha realidade, impressão que você logo ajudou a
desfazer. Sei que Marc Bloch nos ensinou a não cair no “ídolo das origens”, contudo,
desobedeço a essa regra para dizer que o presente mestrado se tornou e as futuras pesquisas
tornar-se-ão possíveis principalmente em virtude de sua ajuda naquela aula de Teoria. Foi ali
que tudo começou...

Desejo aqui expressar não apenas minha enorme gratidão como também admiração
pelas suas aulas, pela sua enorme disposição em ajudar os alunos tanto na sala de aula quanto
na coordenação do curso naqueles casos “cabeludos” e, principalmente, pelo seu caráter
irretocável, possível de ser constatado durante uma incômoda e atribulada situação no
Departamento em fins de 2007. No momento em que muitos docentes carreiristas jogam no
lixo sua dignidade, visando à obtenção de sucesso no meio acadêmico a qualquer custo, é
admirável notar, de sua parte, a firmeza na defesa de princípios éticos.

Valeu, Mariza! Obrigado por tudo! Você é uma referência para a minha carreira de
historiador em todos os aspectos!

iv
Resumo

A presente pesquisa tenciona, no contexto de modernização da cidade de São Paulo,


analisar as representações dos praticantes de magia nas notícias sensacionalistas e nos faits
divers melodramáticos do jornal A Capital. Por constituírem-se, no entender desse periódico,
em símbolos de atraso rumo à civilização e imorais por excelência, feiticeiros, curandeiros,
falsos médiuns e cartomantes passaram por um processo de desqualificação, sendo
representados como sujeitos de alta periculosidade. Espíritas e ocultistas, por sua vez, em
virtude do fato de basearem suas práticas em fundamentos científicos, racionais e filosóficos,
foram noticiados sempre com louvor pelo jornal, tendo sido exaltados como indivíduos
capazes de regenerar a sociedade, por meio da difusão de valores que deveriam ser
incorporados pela população paulista e brasileira, como a erudição, a moral elevada, a
solidariedade e o sentimento religioso na direção do humanitarismo.

Palavras-chave: São Paulo, Práticas mágico-religiosas, Sensacionalismo, Espiritismo,


Ocultismo

v
Abstract

The aim of this research is to analyze, in the context of the modernization of the city of
São Paulo, the representations of the magic practitioners in the sensationalist news and in the
faits divers of the melodramatic newspaper A Capital. In the view of the publication, these
characters represented a setback on the way of civilization and were immoral per excellence.
Witches, faith healers, fake mediums and cartomancers underwent a process of
disqualification, being represented as highly dangerous people. On the other hand, spiritists
and occultists, due the fact that they based their practices on scientific, rational and
philosophic principles, were praised by the newspaper as people who were able to regenerate
society by spreading values that should be embodied by the people of Brazil and São Paulo,
such as erudition, highly moral, solidarity and religious feeling in the direction of
humanitarianism.

Keywords: São Paulo, Magic-religious practices, Sensationalism, Spiritism, Occultism

vi
Índice

Introdução........................................................................................................ p. 1
Capítulo 1. Na nova imprensa, uma pretensa cidade moderna...
e as culturas populares marginalizadas........................................................ p. 22
1.1 . O surgimento de um novo periodismo......................................... p. 22
1.2 . O novo periodismo e a celebração de São Paulo........................ p. 27
1.3 . Um jornal sensacionalista............................................................ p. 47
1.4 . Nem toda a urbe era modernizada: práticas mágico-religiosas
e a perpetuação do “atraso” exclamada pela A Capital................ p. 61

Capítulo 2. Magia desestabilizadora da ordem social.................................. p. 75


2.1. Os adeptos das práticas mágico-religiosas: um caso
de polícia......................................................................................... p. 75
2.2. Estranhas práticas charlatanescas.............................................. p. 82
2.3. Indivíduos desonestos atraídos pela possibilidade do dinheiro
fácil.................................................................................................. p. 89
2.4. Destruidores das instituições do casamento e da família............ p. 93
2.5. Biografias horrendas: devassos, bígamos, assassinos
e defloradores................................................................................ p. 114

Capítulo 3. Espiritualismo: forma de ciência e religião redentora do


do corpo social............................................................................................. p. 130
3.1. Ciência, filosofia e fé: o fenômeno espiritualista no Brasil...... p. 130
3.2. O entusiasmo do jornal pelas ciências ocultas.......................... p. 144
3.3. Ocultistas: adeptos da ciência ideais para a regeneração
da sociedade.................................................................................. p. 155
3.4. Espíritas: entre a magia enganadora dos incautos e a legítima
religião para a reforma moral da sociedade................................. p. 166

Considerações finais.................................................................................... p. 186


Bibliografia.................................................................................................. p. 191

vii
Introdução

Na edição de 27 de agosto de 1915, o jornal A Capital veiculou, com festividade, uma


entrevista concedida a um jornalista carioca pelo ocultista George Baçú. Nascido em 20 de
dezembro de 1861, na cidade de Calcutá, filho de Regis Baçú, sumo sacerdote hindu, e de
Kokriana Radams, que pertencia a uma nobre família local, logo aos nove anos, Baçú, de
acordo com o histórico exposto na notícia, manifestou seus primeiros “dons de cura” quando,
segundo o próprio ocultista, salvou um colega de escola “a quem o medico não conseguira
alliviar”1, alcançando tal habilidade plenamente quando ingressou nos templos do Himalaia,
para estudar as ciências ocultas. Membro de um grupo dedicado ao estudo e à prática do
ocultismo, em que ocupava uma alta posição na hierarquia religiosa, Baçú, no início do século
XX, em data desconhecida, chegou ao Rio de Janeiro para estudar medicina no Instituto
Nacional de Sciencias, e logo começou a praticar suas curas milagrosas. Um tempo depois,
Baçú chegou a São Paulo, a fim de continuar exercendo suas práticas, tanto na capital quanto
no interior paulista, ficando cada vez mais conhecido e prestigiado pelo referido periódico.
No entanto, a maioria dos médicos não apreciava muito estes feitos do professor
George Baçú2. Já A Capital noticiava seus milagres com um grande entusiasmo, defendendo-
o das críticas feitas por essa categoria, como, por exemplo, na ocasião em que o delegado
Cantinho Filho abriu um inquérito para averiguar a acusação, por parte do Serviço Sanitário,
de que o professor ocultista estaria exercendo ilegalmente a medicina, em outubro de 19153.
Porém, o prestígio conquistado por Baçú não durou muito tempo: o Serviço Sanitário
acabou multando-o por exercício ilegal da medicina4 e o delegado Cantinho Filho abriu
inquérito para investigá-lo 5. Essas condenações pesaram para o professor ocultista, o qual caiu
em descrédito, sendo caracterizado pelo jornal, a partir de então, como um mero curandeiro e
charlatão. Daí em diante, George Baçú vive seu ocaso, sendo noticiado outras vezes pela A
Capital, mas, doravante, em casos nos quais aparecia como um embusteiro.
Apesar de singular, esse caso é muito sugestivo sobre o comportamento do referido
jornal em relação às práticas mágico-religiosas: por que este denunciava as práticas de
feiticeiros e curandeiros, cobrando sua repressão, mas referia-se aos feitos do professor Baçú
inicialmente de forma tão entusiasmada? E por que essa viragem de comportamento?

1
A Capital, “Fala o professor George Baçú”, 27 de agosto de 1915.
2
Idem, “Prof. George Bacu”, 13 de outubro de 1914.
3
Idem, “A policia de Santa Ephigenia e o professor Baçú”, 19 de outubro de 1915.
4
Idem, “O professor Baçú foi condemnado!”, 21 de setembro de 1915.
5
Idem, “A policia de Santa Ephigenia e o professor Baçú”, 19 de outubro de 1915.

1
Talvez possamos explicar: o caso do professor George Baçú insere-se no momento de
modernização da cidade de São Paulo. Nessa fase de aguda transformação da capital paulista,
diversas foram as concepções que apontavam para tal modernização: médicos, engenheiros,
arquitetos e urbanistas procuravam intervir no espaço urbano, visando à sua ordenação de
acordo com os padrões higienistas e ao seu embelezamento, para, assim, torná-la uma urbe
erigida de acordo com os modelos das cidades européias. De mais a mais, o saber médico,
influenciado pelo pensamento científico europeu, desde meados do século XIX, avançava
sobre o cotidiano e a vida social da população, tornando-se uma voz de autoridade, capaz de,
em nome da boa higiene e da civilização, intervir em práticas, crenças e costumes
tradicionais. Desse modo, objetivava eliminar as temporalidades, espacialidades e práticas
que estivessem em descompasso com a modernidade.
Essas idéias ganharam espaço entre os governantes e as classes dominantes paulistas,
que, nesse contexto, já se encontravam imbuídos pela idéia de adoção dos padrões de
comportamento e convívio social europeus considerados civilizados. Por conseguinte, os
integrantes dessas classes viam-se como modernos, em contraposição ao restante da
população, cujo universo cultural era considerado símbolo da rusticidade, de modo que seria
seu dever – com a devida orientação dos “homens da ciência” – civilizar a cidade. Como
afirma Mariza Romero,

Construir a nação civilizada era uma tarefa a ser realizada por uma elite,
devidamente instrumentalizada pela medicina para as novas tarefas impostas pelo
desenvolvimento industrial. Esta, habilitada para prover a saúde dos corpos,
contribuiria para adestrar as mentes, adequando comportamentos, impondo novos
hábitos, novas maneiras de ver o mundo, criando distinções claras entre as classes
sociais, separando-as para além da detenção de riquezas, eliminando tudo que
pudessem ter em comum. Mesmo nas pequenas atitudes, a elite deveria dar a
conhecer a sua enorme diferença com relação às outras classes. Vencido esse
aprendizado de autocontrole, disciplina, economia de gestos, ela estaria apta a
conduzir o país na senda do progresso.6

Com efeito, em nome do ideal de modernidade, aquilo que não estivesse de acordo
com os padrões científicos deveria ser obliterado da sociedade. Nesse sentido, feiticeiros e
curandeiros, os quais baseavam seus ritos em tradições iletradas de origens diversas,
principalmente as religiões afro-brasileiras e indígenas, foram vistos como possuidores de
práticas avaliadas como puras crendices – portanto, símbolos do atraso cultural –, além de

6
ROMERO, Mariza. Medicalização da saúde e exclusão social: São Paulo, 1889-1930. Bauru: EDUSC, 2002,
p. 22. Ainda que, para tanto, os higienistas deveriam ensinar as classes dominantes “a superar sua própria
ignorância aceitando os preceitos higiênicos que inspiravam aversão ao suor, urina, fezes, secreções, insetos,
ratos, classes trabalhadoras”. Idem, Ibidem, p. 77.

2
serem considerados indivíduos charlatões, exploradores da credulidade pública. Contudo, por
outro lado, os componentes das chamadas correntes espiritualistas, do ocultismo ao
magnetismo animal, ao basear-se em princípios de cunho filosófico e científico, logravam
cada vez mais prestígio entre o meio intelectual, inclusive na imprensa.
Mas, nesse contexto, a ciência não constituía o pilar do que se denomina
modernidade? A resposta é afirmativa. Daí A Capital dar um valor elevado às curas
milagrosas de Baçú: este, como já mencionamos, integrava um grupo ocultista, uma das
correntes espiritualistas que conciliava a religião com a especulação filosófica e científica. E é
este o motivo de Baçú ser tão venerado, pois, ao invés de ser um curandeiro ou feiticeiro de
tradições iletradas, exercia suas curas milagrosas baseado em um pensamento religioso que
não se constituía, aos olhos daquele jornal, em meras crendices ou superstições, mas sim em
bases valorizadas pela chamada civilização moderna. O professor ocultista em questão apenas
começou a ser tratado como um curandeiro, explorador da credulidade pública, pelo fato de
ter cometido um crime atribuído justamente aos praticantes da magia 7, a saber, o crime contra
a saúde pública.
Deriva dos motivos expostos acima o caso do professor Baçú ser tão interessante para
nós, pois traz à luz as idéias e concepções do referido diário acerca dos diferentes personagens
da cidade de São Paulo que se dedicavam a práticas mágico-religiosas. Desse modo, o
objetivo do presente trabalho é analisar como o jornal sensacionalista A Capital engendrou a
figura de feiticeiros, curandeiros e cartomantes, bem como de espiritualistas. Tencionamos
revelar as representações construídas pelas notícias que desqualificavam aqueles que
praticavam a magia frente ao público leitor e exaltavam os adeptos das correntes
espiritualistas, no contexto de modernização da capital paulista.
Publicado na cidade de São Paulo, o jornal A Capital foi estabelecido no ano de 1912,
7
Aqui, o termo “magia” não designa algo inferior à religião, tal como os antropólogos evolucionistas do século
XIX – como James Frazer – enfatizavam. Para Frazer, a crença na magia antecedia a crença na religião, pois o
homem, a princípio, pensava ser capaz de mudar a natureza, porém, ao descobrir sua impotência perante esta,
criou os deuses. Em outras palavras, a magia pertenceria ao universo do pensamento primitivo, ao passo que a
religião seria a sua racionalização (FRAZER, James. O ramo de ouro. São Paulo: Círculo do Livro, 1982, pp.
97-98). Tampouco desejamos afirmar que magia e religião não possuem diferenças. Como afirma Silas
Guerriero, apesar “de se situarem em terrenos muito semelhantes, visto que ambas dependem de sistemas de
crenças, não significam a mesma coisa e nem podemos reduzir uma à outra sem causar prejuízos”
(GUERRIERO, Silas. A magia existe? São Paulo: Paulus, 2003, p. 80). Para o referido antropólogo, a magia –
sem ser desprezada enquanto forma específica de práticas e saberes – manipula o sagrado para fins específicos,
em prol do que foi solicitado, no aqui e agora – como a cura de uma doença ou a consecução de um emprego
novo, por exemplo –, sem a preocupação com o “outro mundo”. A religião, ao contrário, caracteriza-se pela
preocupação com o “além” e, conseqüentemente, com a busca da salvação eterna. O fiel não manipula o sagrado,
mas sim se entrega a ele, de modo que os pedidos feitos às divindades, em orações ou outras práticas, podem ser
atendidos ou não – em outras palavras, depende da vontade dos deuses (Cf. Idem, Ibidem, p. 82). Todavia, isso
não implica uma oposição entre ambos, já que, atualmente, algumas religiões utilizam-se da magia, caso, por
exemplo, da umbanda e das igrejas pentecostais (Cf. Idem, Ibidem, pp. 83-85).

3
por João Castaldi, pioneiro da publicidade no Brasil e criador da primeira agência de
publicidade da qual se tem notícia: A Eclética, em 1914. Castaldi também atuou fortemente
em defesa dos trabalhadores, tendo sido um dos fundadores da União dos Trabalhadores
Gráficos, de ligas de resistência de defesa das reivindicações dos operários, da Associação
Paulista de Imprensa, da Associação de Imprensa do Interior, do Sindicato das Empresas
Proprietárias de Jornais e Revistas do Estado de São Paulo e da União dos Jornalistas de São
Paulo. Viveu na França e, em seguida nos Estados Unidos, onde permaneceu por cinco anos e
dirigiu o jornal Las Novedades, além de ter trabalhado no Le Progres e num dos diários
pioneiros da imprensa sensacionalista, o New York World 8. O valor da assinatura do jornal
variava entre Rs. 12$000 e Rs. 50$000, e o exemplar avulso custava cem réis – preço médio
dos diários paulistanos da época9 e acessível, ao menos em termos absolutos, a uma boa parte
da população trabalhadora10.
Nas suas quatro páginas, o jornal noticiava acontecimentos da vida política nas
capitais paulista e federal. No entanto, seu foco constituía-se, nomeadamente, nos fatos da
vida cotidiana da cidade, delineando-se como um jornal de cunho sensacionalista. Desse
modo, notícias como assassinatos, casos de bigamia e de violência sexual, abandono de
menores, acidentes de trabalho, assaltos, prostituição, pedofilia, fatos extraordinários e
bizarros ocorridos em outras regiões do Brasil e do mundo (como a morte da mulher mais
velha do mundo ou o nascimento de uma criança com o corpo deformado), prática ilegal de
jogatina e tantos outros acontecimentos desse gênero apareciam diariamente, ocupando
praticamente todo o espaço. Tais fatos eram sempre noticiados por meio de narrativas
escandalosas, com a utilização de gírias, expressões muito próximas da linguagem oral e
títulos em letras garrafais, buscando atrair a atenção do leitor. O vocabulário de tom jocoso
estava presente até mesmo na seção destinada à política, denominada ora como
8
QUEIROZ, Adolpho. “Pioneiros da publicidade na cidade de São Paulo e o pioneirismo de João Castaldi”. In:
QUEIROZ, Adolpho & GONZALES, Lucilene (orgs.). Sotaques regionais da propaganda. São Paulo: Arte &
Ciência Editora, 2006, pp. 24-31.
9
Na capital paulista, em 1912, circulavam 14 jornais com o preço de cem réis e 12 custando entre Rs. 100$ e Rs.
5$000 (Cf. REPARTIÇÃO DE ESTATISTICA E ARCHIVO DO ESTADO. Annuario estatístico de São Paulo
(Brasil), 1912. São Paulo: Typographia do Diario Official, vol. I, 1914, pp. 140-141). No ano de 1920, eram 24
periódicos custando cem réis e 21 com o exemplar avulso variando entre Rs. 100$ e Rs. 5$000 (Cf.
REPARTIÇÃO DE ESTATISTICA E ARCHIVO DO ESTADO. Annuario estatístico de São Paulo (Brasil),
1920. São Paulo: Typographia Piratininga, vol. I, 1923, pp. 98-99).
10
No ano de 1920, um trabalhador adulto da indústria têxtil paulistana recebia por volta de 5.729 réis por dia
(Cf. BARBOSA, Alexandre de Freitas. A formação do mercado de trabalho no Brasil: da escravidão ao
assalariamento. Campinas, SP: Tese de Doutorado em Economia Aplicada, Instituto de Economia/UNICAMP,
2003, p. 343). Contudo, é necessário submeter esse dado à variação do custo de vida de um operário e sua
família, de maneira que a compra de um exemplar de um diário poderia se tornar onerosa. Em 1917, calculando-
se as necessidades mínimas de uma família composta por marido, esposa e duas crianças, a soma atingia o valor
de Rs. 207$650 ao mês, em face de um salário médio de Rs. 150$000 (Cf. FAUSTO, Boris. “Conflito social na
República Oligárquica: a greve de 1917”. In: Estudos Cebrap, São Paulo, n. 10, out./nov./dez. 1974, p. 108).

4
“Politiquices”, ora como “No domínio da politicagem”.
Pelo que pudemos notar em seu conteúdo e nos textos comemorativos de sua
fundação, A Capital punha-se como um periódico destinado à população pobre da cidade de
São Paulo, bem como seu defensor: ao noticiar, por exemplo, que solicitou ao então secretário
de Justiça do Estado, Eloy Chaves, a permissão para a realização de uma reunião de operários
na Liga Operária da Mooca, afirmou ter “cumprido strictamente o seu dever de orgam do
proletariado”11.
Essa imagem de órgão paladino dos trabalhadores se expressava nas notícias em que
eram cobradas das autoridades providências com relação aos diversos problemas citadinos,
como o péssimo estado dos bondes ou a venda de leites deteriorados. Em outras ocasiões, o
diário criticava a miséria da população, culpando os mais abastados por tal situação, como,
por exemplo, na edição em que criticou o aumento dos impostos12. Igualmente era simpática à
causa dos trabalhadores, publicando textos do movimento operário e apoiando-o durante as
greves de 1917.
Todavia, isso não significa que o jornal possuía uma posição revolucionária. Pelo
contrário, era plenamente a favor da ordem constituída. Como mostra Yara Aun Khoury, em
sua dissertação sobre o movimento grevista de 1917 na cidade de São Paulo, o diário, apesar
de reconhecer a situação precária do operariado (carestia da vida, baixos salários e exploração
do trabalho, com pesadas multas por infrações), apoiando as reivindicações de melhoria das
condições de trabalho e aumento de salários, foi contra qualquer posição mais radical,
sugerindo uma solução mais conciliatória entre os trabalhadores e seus patrões13. Exemplo
patente de sua linha moderada é o comentário tecido sobre os rumores de que fantasmas
teriam se estabelecido no casarão da usina da Light, localizado na Rua Mauá. Após contestá-
los, garantido serem produtos de alguns charlatães, A Capital arremata:

Nosso paiz é o paraizo das cousas boas e más. É por isso que para aqui convergem
todas as actividades uteis ou nocivas que estabelecem o equilibrio normal do nosso
progresso. As actividades boas e bem aproveitadas, nos trazem beneficios
inolvidaveis que se revelam na agricultura, lavoura, industria e commercio. São as
edificadoras da nação. As actividades más, hostilisadas eternamente pela justiça, não
logram, por muito que façam, alcançar seu ideal que seria o bem, a virtude, o
trabalho, na figura horrenda do communismo [grifo nosso].14

11
A Capital, “A gréve geral”, 13 de julho de 1917.
12
Idem, “A grande crise – Submettem o povo á miseria para que os magnatas vivam á tripa forra”, 12 de
janeiro de 1917.
13
Cf. KHOURY, Yara Aun. As greves de 1917 em São Paulo e o processo de organização proletária. São
Paulo: Dissertação de Mestrado em História, PUC-SP, 1978, pp. 139-140.
14
A Capital, “A casa dos phantasmas”, 1 de agosto de 1928.

5
Na mesma direção, em outro texto, repudiava membros do operariado brasileiro
propagadores dos ideais socialistas, caracterizando-os como subversivos e demagogos,
responsáveis por instigar “as massas populares contra o poder constituído”15. Desse modo,
no que diz respeito ao movimento operário e à classe trabalhadora, o jornal expunha os limites
considerados aceitáveis: reivindicar melhores salários e condições de trabalho era louvável,
mas desejar subverter a ordem e implantar um governo socialista, atentando, assim, contra o
princípio da propriedade privada, seria inadmissível. Por conseguinte, ao noticiar que, na
cidade do Rio de Janeiro, socialistas estariam atuando no meio operário, declarou que as
autoridades policiais deveriam combatê-los severamente, para evitar que os trabalhadores
fossem influenciados pelos disseminadores de ideologias perturbadoras da ordem social:

Temos, já o provamos, pelo proletariado a maior sympathia. O que queremos evitar,


é que elle, nos toques de clarins que descem do Rio, se deixe levar por essa meia
duzia de prophetas até hontem desconhecidos; o que queremos é que elle se torne
surdo aos gritos incendiarios lançados por essa imprensa amarella, que préga o
socialismo e que... prudentemente aferrolha nos bancos centenas de contos de réis.16

Os comentários acerca da Guerra do Contestado igualmente expõem a face favorável à


ordem estabelecida. Certa feita, o periódico, ao criticar a falta de uma ação mais incisiva das
autoridades sobre a população que se rebelava, afirmou que “é systema nosso sermos muito
optimistas nessas occasiões. Temos a mania de desfazermos nessa gente que, em bandos
revolucionários, se levanta contra as instituições [grifo nosso]”17. Em outra ocasião,
repreendendo o radicalismo de outros jornais favoráveis ao movimento operário, após lembrar
que se punha como uma voz contra os desmandos e a exploração sobre a população, advertiu
que isso não significava que o diário seguisse “o trilho de certos pamphletos cujo programa
parece ser a demolição do tudo o que lhe é feito”, atacando a tudo e todos, “sem o menor
dislumbre de justiça, por um motivo qualquer ou sem algum motivo na falta delles”18.
Já em um artigo de comemoração do seu aniversário, afirmou enaltecer ou criticar as
atuações dos governos segundo seus méritos, mas sempre reverenciando as instituições,
declaração que deixa ainda mais patente sua posição a favor do sistema capitalista, na medida
em que não vislumbra outra alternativa para o progresso do País. Ao contrário, a evolução da
sociedade somente poderia ocorrer no âmbito das instituições políticas, sendo fruto das ações
do grupo de homens públicos à frente dos governos, composto pelas classes dominantes. Em

15
Idem, “Socialistas de occasião”, 26 de julho de 1917.
16
Idem, Ibidem.
17
Idem, “A revolução em Santa Catarina”, 2 de janeiro de 1914.
18
Idem, 11 de maio de 1925.

6
outras palavras, tudo deveria acontecer dentro dos parâmetros da ordem. A elite dirigente tudo
solucionaria:

Respeitando os poderes constituidos, fizemos o elogio e a censura dos governos,


quando acertaram e quando erraram.
A grandeza de nosso paiz, a sua prosperidade, o crescente revigoramento, dentro da
ordem, – foram os ideaes que nos animaram, que nos fortificaram. 19

Como exposto no excerto acima, essa posição não denotava que os governantes
fossem imunes a críticas. Durante as greves de 1917, por exemplo, foram duramente
recriminados por não intervirem pela melhoria das condições de vida e trabalho do
operariado. Este, segundo o diário, desconfiaria das promessas de mudança da situação
precária feitas pelos homens públicos em virtude da “indiferença em todos os tempos
manifestada pelos poderes publicos em relação aos interesses do proletariado [...] sem
jamais terem promovido uma medida em seu favor”20. Desse modo, as injustiças sociais não
seriam decorrentes das desigualdades geradas pelo capitalismo. Ao contrário, A Capital,
conforme poderemos constatar em outros momentos mais adiante, possuía um modo de
entender o seu contexto fundamentado em uma visão moralista e maniqueísta, como se os
indivíduos e as relações humanas fossem movidos por forças morais, de modo que cada um,
por natureza, seria bom ou mau – ou se tornaria perverso com o passar do tempo. Como
resultado, a carestia de vida do operariado seria conseqüência da improbidade e falta de
compromisso de políticos desonestos e mal-intencionados à testa dos governos.
Nessa lógica, as mudanças se dariam dentro da ordem e dos poderes constituídos,
longe das vias revolucionárias, bastando apenas a obliteração, na política, de homens públicos
de caráter vil. Dito de outra maneira, tratava-se de uma reforma moral no cerne do grupo de
governantes pertencentes tanto ao Poder Executivo quanto ao Poder Legislativo. Tal forma de
pensar é patente, por exemplo, quando, certa feita, afiançou que lutou bravamente contra as
explorações de políticos destituídos de ideal, afirmação que pressupõe a crença nas
instituições e no jogo político realizado dentro da ordem:

Não deixámos impunes, ao contrario, verberámos com palavras quentes e


fervilhantes de sincera indignação as maroteiras desmarcadas, que se praticaram; os
erros dos partidos, o avaccalhamento dos reformadores da “fuzarca”, o
peculato e o latrocínio; as explorações de políticos destituídos de ideal [grifo
nosso]; todos os erros, todas as gangrenas, que corroem familias e que dissolvem a
sociedade. 21
19
Idem, 11 de maio de 1925.
20
Idem, “O movimento grévista”, 19 de julho de 1917.
21
Idem, 11 de maio de 1929.

7
O mesmo raciocínio era empregado quando se tratava do empresariado, admoestado
em virtude de seus atos injustos cometidos com relação às reivindicações do movimento
operário. Na edição de 11 de julho de 1917, por exemplo, censurou a recusa dos patrões em
aumentar o salário dos trabalhadores:

“Os pobrezinhos”

Enquanto os directores e gerentes de fabricas ou companhias se recusam a satisfazer


o pedido dos operarios, que desejam um pequeno augmento de salarios, os jornaes
publicam, na sua parte comercial, estes pequenos avisos:
“A Companhia Antarctica Paulista, por intermedio do Brazilianische Bank für
Deutschland, está pagando o cupom n.º 9 de juros de suas debentures, sem dedução
do imposto federal.”
“A Companhia Predial Alvares Penteado, em sua séde á rua de S. Bento, 51-A, está
pagando o 9.º dividendo, correspondente ao primeiro semestre do corrente anno, á
razão de 30$000 por acção.”
“A Companhia Cortumes ‘Dick’ em seu escriptorio central, em Agua Branca, está
pagando o 4.º dividendo de suas acções á razão de 12% ao anno, ou 24$000 cada
acção.”
“A Companhia União dos Refinadores está pagando em seu escriptorio á alameda
Barão do Rio Branco, 59, os juros de suas debentures á razão de 4$000 por cupom.”
E é esta gente, ou é gente dessa mesma massa, que não póde augmentar cem réis a
cada operário.22

Em outra oportunidade, destacou a “tirania do industrialismo absorvente, ou de


patrões deshumanos”23. Todavia, de forma alguma, o periódico se voltava contra a burguesia,
afinal, em uma dada ocasião, afirmou que o seu sentimento de dever cumprido, entre outros
motivos, residia “na bondade com que nos recebe o commercio” e “as classes productoras
do paiz”24. Com efeito, a seu ver, nem todos os membros do empresariado eram perversos
com seus trabalhadores, sendo imperioso separar o bom patrão dos industriais nefandos,
exploradores do proletariado nas fábricas.
Nesse sentido, Yara Aun Khoury classificou o jornal A Capital como um periódico
componente da “imprensa media”, reverberadora das opiniões dos setores intermediários da
sociedade25, cuja característica principal seria a abertura para a situação precária do
proletariado, demonstrando simpatia pelas manifestações dos operários. Contudo, estas eram
aceitas desde que expressassem uma luta pela melhoria das condições de vida e de trabalho,
pois, “quando esta luta representava uma transformação do ‘status quo’ e uma alteração na
relação entre as classes, esses setores abrigavam-se nas frações burguesas contra possíveis

22
Idem, “O movimento grévista alastra-se”, 11 de julho de 1917.
23
Idem, “O movimento grévista”, 19 de julho de 1917.
24
Idem, 11 de maio de 1925.
25
KHOURY, Yara Aun, op. cit., p. 18.

8
investidas das classes assalariadas”26.
Assim, A Capital, apesar de sensibilizar-se com a situação da população pobre de
cidade, não deixava de defender o capitalismo, bem como a existência de diferentes classes
sociais. Salvaguardava as instituições e apontava para aquilo que fosse contrário ao que
considerava serem a ordem, a normalidade e os bons costumes. Com efeito, noticiava os
acontecimentos cotidianos julgando-os, exercendo a função de denunciar o que estaria em
desacerto com a sociedade, o que, em outras palavras, deveria ser excluído, construindo,
assim, representações negativas daqueles que se encontrassem em desajuste com o ideal de
modernização dos intelectuais e das classes dominantes.
No contexto de modernização da cidade de São Paulo, o referido jornal continuou a
exercer aquela função característica da imprensa no início do século XX: o que não estivesse
de acordo com o projeto modernizador, o que representasse o obstáculo ao caminho rumo à
civilização, era objeto de inúmeras denúncias. Como a imprensa se constituía no veículo, por
excelência, formador de opiniões, este jornal não seria a exceção: fazia o possível para jogar a
opinião pública contra aqueles que se desejava excluir.
Em outras palavras, A Capital, assim como a imprensa em geral, punha-se no dever de
orientar a opinião pública para que, desse modo, a cidade de São Paulo e o restante do País
seguissem sua trajetória rumo ao progresso, ao moderno, à civilização, conforme o jornal
expressava em um artigo, por ocasião de seu aniversário. Neste, o diário traz à tona o caráter
de heroicidade do jornalismo ao lembrar suas “lutas inesquecíveis” e “campanhas
memoráveis”, salvando, assim, o desnorteado público leitor dos caminhos destruidores da
sociedade, além da idéia de povo incapaz (por “povo”, leia-se a população pobre da cidade),
que necessitaria ser devidamente encaminhado para os “princípios sadios”. Recobra ainda a
noção de que constituiria um jornal imparcial, acima das lutas de classes, pois guiaria seus
leitores por meio dos “comentários mais sinceros”, desprovidos de interesses e ideologias:

No cumprimento de nosso dever [...] mantivemos, invariavelmente sempre, a linha


inquebrantavel das convicções definidas, sem um hiato compremettedor.
Executámos o nosso programma tanto quanto nol-o permittiam as contingencias
humanas, procurando nortear o povo para os principios sadios, à luz dos
commentarios mais sinceros. Temos acabada convicção, – que nos envaidece e que
nos reconforta, – de que, ao fim de quatro lustros, algo fizemos, collaborando no
progresso moral e material do nosso paiz.
Onde um erro e um deslise, ahi estavamos nós. Travámos campanhas memoraveis,
luctas inesqueciveis.27

26
Idem, Ibidem, p. 142.
27
A Capital, 11 de maio de 1929.

9
E uma das bandeiras do jornal era a erradicação dos adeptos das práticas mágico-
religiosas da cidade de São Paulo, os quais se constituíam, a seu ver, naqueles que estariam
em desacordo com o projeto modernizador. Para tanto, engendrou representações negativos
acerca dos mesmos para o público leitor. Todavia, ressaltemos, diários como o Correio
Paulistano e O Estado de São Paulo agiam da mesma maneira. Conforme Paulo Koguruma28,
Maria Cristina Wissenbach29 e Lísias Nogueira Negrão30 mostraram brevemente em seus
trabalhos, aqueles que exerciam práticas mágico-religiosas eram criminalizados nas páginas
dos jornais da grande imprensa paulistana. As pesquisas dos referidos autores nos trazem
notícias e artigos de periódicos, nomeadamente de ambos os jornais supracitados,
apresentando-nos a representação, engendrada pelos diários, de feiticeiros e curandeiros como
charlatões e exploradores do “comércio da ilusão”, os quais realizariam rituais depravados,
lascivos e primitivos. Desse modo, os jornais reservaram suas páginas para noticiar as
campanhas policiais promovidas contra os praticantes da magia popular, em contraposição
aos espaços destinados aos anúncios para proclamas de ocultistas e de publicações de editoras
espiritualistas.
O que diferenciaria, então, A Capital dos outros periódicos, tornando-se objeto e fonte
singular desta pesquisa? Expliquemos: em jornais que privilegiavam as notícias da vida
política e deixavam as poucas notas sensacionais – tratadas pelos seus leitores como um
gênero vulgar e inferior – para as páginas finais, como O Estado de S. Paulo e o Correio
Paulistano, destinados às classes dominantes, o tipo de linguagem era outro. Ambos os
diários traziam notícias apenas reforçando a perspectiva de feiticeiros e curandeiros como
charlatões, falsos médicos e, por conseguinte, nocivos à ciência médica oficial e à saúde da
população.
Contudo, no jornalismo sensacionalista, como um gênero de discurso específico, os
parâmetros são outros. Praticamente todas as suas notícias são estruturadas por meio de
narrativas melodramáticas, assemelhando-se a um folhetim. Evidentemente, a figura do
charlatão, do perigo à saúde pública, era apresentada. Porém, as narrativas acerca das ações
dos praticantes da magia contidas nas notícias, para fazer com que seu público leitor deles se
afastasse, remetiam a outras representações, deixando aquela figura para segundo plano.

28
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. “A mercantilização da magia na urbanização de São Paulo, 1910-
1940”. Revista de História, São Paulo, 150, 2004.
29
KOGURUMA, Paulo. Conflitos do imaginário: a reelaboração das práticas e crenças afro-brasileiras na
‘metrópole do café’, 1890-1920. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001, pp. 209-270.
30
NEGRÃO, Lísias Nogueira. Entre a Cruz e a Encruzilhada. São Paulo: EDUSP, 1996, pp. 42-66.

10
Destarte, o jornal sensacionalista A Capital, como veremos mais adiante de modo mais
detalhado, classificava seu público leitor, ao contrário, d’O Estado e do Correio, como
intelectualmente inferior e irracional, incapaz de entender, naquele contexto, os critérios da
ciência, de maneira que seria imprescindível o apelo a narrativas que provocavam sensações.
Por isso, sentimos a necessidade de um estudo aprofundado das concepções implícitas nas
notícias na perspectiva específica de um jornal sensacionalista como A Capital, que, ao
veicular fatos envolvendo feiticeiros, curandeiros e cartomantes, noticiava-os como
personagens de grandes casos de crimes transgressores da ordem que as classes dominantes
desejavam impor sobre a cidade e os hábitos da população. Assim, praticantes de magia eram
associados a outros tipos de representações, para além do simples charlatão cujas práticas não
eram legitimadas pelo discurso científico.
Exemplo disso é a edição do dia 28 de fevereiro de 1913 do mesmo jornal, em que o
leitor poderia encontrar a seguinte notícia, intitulada “S. Paulo está cheio de ‘deuses’
exploradores”:

É do dominio publico o facto sangrento desenrolado na avenida Tiradentes, ha


tempo, em casa de uma feiticeira, ledora da <<buena dicha>>. A policia desvendou
o caso e, após, conseguiu, ainda, descobrir mil e uma bandalheiras engendradas por
uma destas madames, cuja vida é um mar de mysterios.
No entanto, nada foi feito para extinguir estas ulceras da sociedade. Com a sua
permanencia, entre nós, os casos tristes se succedem, continuamente.
Soubemos, hontem, que, no Bom Retiro, uma ingenua italiana, indo seguidamente a
um desses templos, acabou por impressionar-se de tal forma com o que lhe dizia a
mulher <<cavadora>>, que enlouqueceu. O marido, sentidissimo, está á cata da
marafona disfarçada que lhe quiz roubar a mulher, não a tendo, porém, encontrado,
ainda. Uma vez a encontrado, é possivel que tenhamos a accrescentar uma tragedia á
muitas já desenroladas em terrenos identicos.
O facto é que esta gente prolifera por todos recantos da cidade. É uma exploração
vergonhosa da gente pobre e ignorante. 31

O texto acima associa a feitiçaria com a perda da razão. A protagonista morava no


Bom Retiro, bairro que, no século XIX, era ocupado por sítios e chácaras banhados pelo rio
Tietê. Servia como região intermediária entre a zona rural e a cidade, pois sua localização,
“próxima ao centro e anterior ao rio facilitava o acesso daqueles que para lá se dirigiam”32
– ainda que esse mesmo rio dificultasse investimentos imobiliários na região, devido às
invariáveis inundações de sua várzea. A partir de 1880, iniciou-se sua urbanização: a
proximidade dos trilhos da Estrada de Ferro Inglesa atraiu a instalação de indústrias, caso da

31
A Capital, “S. Paulo está cheio de ‘deuses’ exploradores”, 28 de fevereiro de 1913.
32
TRUZZI, Oswaldo. “Etnias em convívio: o bairro do Bom Retiro em São Paulo”. Estudos históricos. Rio de
Janeiro, n. 27, 2001, p. 144.

11
Olaria Manfredi, primeira grande olaria da cidade, e da Fábrica Anhaia, fundada em 1886 33.
Na década de 1910, a atividade econômica do Bom Retiro foi se diversificando, surgindo
fábricas destinadas aos ramos de estamparia, tecelagem, vestuário, calçados e móveis. Foram
estabelecidas também as oficinas da Companhia Inglesa e da Ford, uma fábrica de doces na
Rua José Paulino e a Destiladora do Bom Retiro (destinada à fabricação de xaropes, licores e
vinagres)34. Algumas casas comerciais e pequenas oficinas igualmente faziam-se presentes.
Aos poucos, devido à possibilidade de emprego nas indústrias e proximidade com o
centro, o Bom Retiro caracterizou-se como um bairro proletário e de imigrantes. Inicialmente
vieram portugueses. Em seguida, os italianos formavam a maioria entre a população
estrangeira, em contraposição a um menor número de judeus, sírios, libaneses e turcos. Como
em outros bairros proletários, grande parte das habitações era modesta, e alguns casarões
foram transformados em cortiços. No mais, a população operária – e, em sua maioria,
analfabeta35 – da região ainda tinha que viver em um ambiente caracterizado pela má
qualidade dos serviços de limpeza pública, falta de ruas com calçamento, má higiene dos
locais de venda, ausência de um mercado livre e pelo insatisfatório serviço de transporte,
devido aos atrasos e à insuficiência de bondes36, além de enfrentarem, nas fábricas, duras
condições e longas jornadas de trabalho, com baixos salários.
Eram essas as dificuldades cotidianas com as quais a italiana, de nome não revelado na
notícia, deparava-se. Mesmo que não fosse uma operária (pois o jornal não nos informa),
certamente fazia parte do contingente imigrante pobre do Bom Retiro. Daí A Capital
caracterizá-la como ingênua, já que a própria notícia liga sua condição social ao estado de
“ignorância”, coadunando, assim, com a opinião dos cientistas e de parte da intelectualidade
brasileira, os quais consideravam a população pobre supersticiosa e desprovida de
inteligência. No mais, sua ingenuidade possui outra fonte: o fato de ser do sexo feminino,
pois, na visão estereotipada da época, a mulher era vista como passiva e sexualmente
inocente.
Ao freqüentar o templo da feiticeira, não apenas acreditou em suas palavras. Foi muito
além disso: impressionou-se “de tal forma”. Essa expressão de maneira alguma é utilizada de
modo despretensioso. Muito pelo contrário, presenteamos na notícia uma influência do
discurso médico, nomeadamente das teorias de alguns psiquiatras. Para estes, as mulheres,

33
SIQUEIRA, Uassyr. Clubes e sociedades dos trabalhadores do Bom Retiro: organização, lutas e lazer em um
bairro paulistano (1915-1924). Campinas, SP: Dissertação de Mestrado em História, IFCH/UNICAMP, 2002, p.
38.
34
Idem, Ibidem, pp. 38-39.
35
Cf. TRUZZI, Oswaldo, op. cit., p. 146.
36
SIQUEIRA, Uassyr, op. cit., pp. 44-49.

12
psicologicamente mais frágeis, seriam mais propensas a ataques histéricos37. Daí a italiana em
questão ter se impressionado “de tal forma”: já era predisposta a loucura.
E tamanho estrago foi, segundo o jornal, causado pela feiticeira, de nome igualmente
desconhecido: levou uma moça já tendente à insanidade, de vida difícil e sem muitos bens
materiais para o trágico caminho da completa perda da razão. Aproveitou-se de sua
ingenuidade, tentando roubar-lhe os poucos vinténs que possuía. Por fim, conseguiu ainda
destruir uma estável relação conjugal, afinal, como seria a vida do casal após o
enlouquecimento da italiana? Tudo isso, de acordo com o diário, fruto de mais um caso de
exploração da credulidade pública.
Entretanto, outro aspecto, em especial, deve ser destacado, qual seja, a utilização de
termos exagerados, de forte entonação, reforçando a gravidade do assunto em pauta, algo
típico da imprensa sensacionalista, afinal, feiticeiros e curandeiros não se constituíam apenas
em charlatões: ao contrário, eram “cavadores” e “úlceras da sociedade”, cujas vidas seriam
no mínimo estranhas (“um mar de mysterios”). Suas práticas superariam a reles exploração,
tratando-se de “uma exploração vergonhosa”, cercada de outras “bandalheiras”. Os
consulentes eram algo mais além de vítimas, consistindo em “gente pobre e ignorante” –
além do fato de que a italiana em questão era “ingênua” e seu marido não ficou apenas
preocupado, mas sim “sentidissimo”. E o enlouquecimento da italiana em questão não foi
somente mais um caso: foi uma “tragédia”, a qual se juntava ao “facto sangrento” ocorrido
na Avenida Tiradentes e a outros “casos tristes”.
Devemos sublinhar ainda a utilização da gíria “marafona”, utilizada para denominar
as mulheres pertencentes ao meretrício. Se a feiticeira da notícia citada estava na condição de
meretriz, não sabemos. Entretanto, independentemente de sê-la, “marafona” é mais um termo
empregado para engendrar sua representação negativa frente ao público leitor, num contexto
em que a imagem da meretriz na imprensa, nos romances e nos textos científicos possuía duas
figuras polarizadas, ambas com sentido negativo: de um lado, as “prostitutas vitimizadas”,
produto da inexperiência e ingenuidade face ao mundo urbano moderno e de contingências
exteriores à sua vontade (o meretrício ora como único meio de se sustentar, ora como
resultado de um acidente incompreensível por ela mesma, ora como decorrente do anseio de
retaliação à opressão masculina), contra as quais não há possibilidade de resistência 38; de
outro, a femme fatale, noturna, má, bela, portadora de um instinto sexual irredutível, encarna a

37
ALMEIDA, Angélica Aparecida Silva de. Uma fábrica de loucos: psiquiatria x espiritismo no Brasil (1900-
1950). Campinas, SP: Tese de Doutorado em História, IFCH/UNICAMP, 2007, pp. 71-72.
38
RAGO, Luzia Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo,
1890-1930. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 240.

13
supremacia do instinto sobre a razão, a destruidora dos homens fracos e das famílias
responsáveis. “Ameaçadora para a sobrevivência da civilização, ela, que deseja a ruína e a
castração de todos os homens pelo puro prazer da destruição, invade o imaginário dos
poetas, pintores, artistas, assim como dos médicos e juristas do período”39.
Pior seria se a feiticeira pertencesse ao baixo meretrício. As imagens de cabarés
elegantes e bordéis de luxo evocavam a idéia de locais de prazer e tranqüilidade, onde se
impunham códigos de civilidade que instigavam um comportamento mais regrado na relação
entre o freguês e sua “protegida” pelo fato daquele estar cercado por amigos influentes na
vida pública citadina, o que não excluía a ocorrência de situações violentas. Porém, o baixo
meretrício era remetido à imagem de animalidade da carne, bestialidade do sexo e orgia sem
qualquer limite. Ou seja, tratava-se do descontrole desenfreado, a última escala da degradação
humana. Por último, se os ambientes de luxo de alguns cabarés e bordéis traziam à tona a
noção de lugares elegantes, o baixo meretrício era ligado a um ambiente cercado de
delinqüência e crime40.
Desse modo, as palavras não foram empregadas de modo aleatório: pelo contrário,
expressam valores e idéias dos seus autores acerca do objeto tratado pelo enunciado proferido,
ou seja, sua posição em relação ao mesmo. Mikhail Bakhtin concebe as palavras como um
produto social e ideológico. Para o referido teórico russo, os signos são um objeto material,
“um fenômeno da realidade objetiva que vai adquirindo uma função ideológica”41. Diz o
teórico russo:

Um produto ideológico faz parte de uma realidade (central ou social) como todo
corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao contrário
destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é exterior. Tudo que
é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em
outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia.42

Com efeito, o domínio do ideológico coincide com o dos signos. Ambos são
mutuamente correspondentes. Ou seja, ali “onde o signo se encontra, encontra-se também o

39
Idem, Ibidem, p. 229.
40
Idem, Ibidem, p. 277.
41
PONZIO, Augusto. A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. São
Paulo: Contexto, 2008, p. 109.
42
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Annablume/HUCITEC, 2002, p. 31.
Todo corpo físico pode, segundo Bakhtin, ser percebido como signo, adquirindo, assim, um sentido que
ultrapasse suas particularidades e convertendo-se em signo ideológico. É o caso, por exemplo, da foice e do
martelo como emblema da União Soviética, ou do pão e do vinho enquanto símbolos religiosos no sacramento
cristão da comunhão.

14
ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico”43. Signo esse que possui dupla
materialidade: por um lado, como corpo, é material no sentido físico; já como signo, é
material na medida em que se constitui em um produto histórico-social. Ambos os sentidos
dessa materialidade estão “unidos por um nexo dialético, que é próprio da materialidade de
todo produto histórico social”44.

Cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra, mas também um
fragmento material dessa realidade. Todo fenômeno que funciona como signo
ideológico tem uma encarnação material, seja como som, como massa física, como
cor ou como outra coisa qualquer. Nesse sentido, a realidade do signo é totalmente
objetiva e, portanto, passível de um estudo metodologicamente unitário e objetivo.
Um signo é um fenômeno do mundo exterior.45

Nesse sentido, com relação à ideologia, a materialidade sígnica, no aspecto físico,


presta-se como seu veículo, seu instrumento de circulação e transmissão. Em troca, a
materialidade do signo estende-se enquanto realidade histórico-objetiva, de modo que passa a
não ser exclusivamente divulgador da ideologia: acaba por coincidir-se com esta. Com efeito,
“o material sígnico ‘é’ o material ideológico. Essa materialidade sígnico-ideológica,
semioticamente considerada, é inseparável da materialidade física que funciona como
veículo sígnico, seja ele som, massa física, cor, movimento do corpo etc.”46. Sendo assim, o
signo não pode ser isolado do contexto social, e muito menos ao contexto ideológico ao qual

43
Idem, Ibidem, p. 32. O teórico russo divide a ideologia em duas esferas: a ideologia do cotidiano e a ideologia
oficial. Esta seria uma forma estável que procura implantar uma concepção única de mundo, tal como o direito, a
arte, a religião etc.; ao passo que aquela, constituir-se-ia em formas de pensamento instáveis, ainda não
cristalizadas, mas que, quando se tornam mais sólidas, possuem grande poder revolucionário. No mais, é válido
ressaltar que, em Bakhtin, ideologia não significa apenas uma visão de mundo e não é reduzida a uma questão de
falsa consciência. O termo designa algo para além disso: indica uma tomada de posição, que torna a práxis
efetiva, cumprindo, desse modo, uma função social. Nesse sentido, o signo ideológico não seria mera expressão
de idéias, tendo também, desse modo, uma função social em determinado contexto histórico. Tal concepção de
ideologia aproxima-se muito da elaborada por Georg Lukács, para quem um pensamento não pode ser
compreendido como ideologia por ser falsa consciência, mas sim, em sua caracterização mais ampla, por ser
“aquela forma de elaboração ideal da realidade que serve para tornar a práxis social dos homens consciente e
operativa” (LUKÁCS, Georg. “O problema da ideologia” Apud VAISMAN, Ester. O problema da ideologia na
ontologia de G. Lukács. João Pessoa: Dissertação de Mestrado em Filosofia, UFPB, 1986, p. II). Já em sua
caracterização mais restrita, é entendida enquanto função social, instrumento de conscientização e luta social
“que caracteriza pelo menos aquelas sociedades da ‘pré-história’ da sociedade” (LUKÁCS, Georg. “O
problema da ideologia” Apud Idem, Ibidem, p. III).
Ainda de acordo com Lukács, qualquer expressão humana pode sê-la, afinal, essa “possibilidade universal de
transformar-se em ideologia comporta ontologicamente que o seu conteúdo (e em muitos casos também a
forma) conserve marcas incanceláveis de sua gênese. Que estas marcas se tornem imperceptíveis ou resultem
claríssimas depende de sua – possível – função no processo de conflitos sociais” (LUKÁCS, Georg. “O
problema da ideologia” Apud Idem, Ibidem). Assim, pensamos que as idéias e representações acerca dos
praticantes da magia são ideológicas não por serem uma mera visão de mundo, mas sim por cumprirem uma
função social no contexto de modernização da cidade de São Paulo, qual seja, a criminalização dos mesmos,
constituindo um instrumento de conscientização e operacionalização da prática social humana.
44
PONZIO, Augusto, op. cit., p. 119.
45
BAKHTIN, Mikhail, op. cit., p. 33.
46
PONZIO, Augusto, op. cit, p. 120.

15
está ligado.
Para o teórico russo, os signos verbais (a palavra) constituem o fenômeno ideológico
por excelência, servindo de trama a todas as relações sociais em todos os domínios47. A
constituição e objetivação da ideologia se realizam na comunicação incessante em grupos
socialmente organizados em todas as esferas das atividades humanas48. E o campo
privilegiado de comunicação tem lugar na interação verbal, fato que atribui à linguagem o
lugar mais completo da materialização do fenômeno ideológico, pois a representação do
mundo é melhor expressa por palavras, dado que não necessita de qualquer outro meio para
ser produzida senão apenas o ser humano em presença de outro49.
As palavras e os enunciados se encontram, de acordo com o teórico russo, sempre
marcados pela “entonação”, que nada mais é do que a expressão da atitude valorativa
(admiração, surpresa, aflita e outros) do indivíduo em relação ao objeto do seu discurso e aos
enunciados de seus interlocutores concernentes ao mesmo objeto, consistindo em uma tomada
de posição, uma práxis concreta – nunca como expressão de um subjetivismo psiquista, mas
sim das ideologias do ser social. O falante, ao conceder à palavra e ao enunciado uma dada
entonação, dialoga com os valores da sociedade, expressando, assim, seu ponto de vista no
que tange a estes. Ponto de vista este, repitamos, sempre condicionado pelas ideologias de seu
locutor constituídas em suas relações societárias, de maneira alguma produto de uma
consciência individual auto-suficiente, já que, no pensamento bakhtiniano, “individual”
jamais se opõe ao “social”. O indivíduo, enquanto detentor dos conteúdos de sua consciência,
autor de seus pensamentos e personalidade responsável por suas idéias e seus desejos,
apresenta-se como um fenômeno sócio-ideológico. Dito de outra maneira, sua individualidade
também é social. Posto isso, Bakhtin propõe as seguintes regras metodológicas para o estudo
da linguagem:

1. Não separar a ideologia da realidade material do signo (colocando-a no campo


da “consciência” ou em qualquer outra esfera fugidia e indefinível).
2. Não dissociar o signo das formas concretas da comunicação social (entendendo-
se que o signo faz parte de um sistema de comunicação social organizada e que não
tem existência fora deste sistema, a não ser como objeto físico).

47
Cf. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem, op. cit., pp. 36-38.
48
Afinal, para Bakhtin, não basta que dois homo sapiens estejam face a face para que o signo se constitua. É
necessário que ambos estejam socialmente organizados, formando uma unidade social. “É apenas sobre este
terreno preciso que a troca lingüística se torna possível”. Idem, Ibidem, p. 70.
49
MIOTELLO, Valdemir. “Ideologia”. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto,
2008, p. 170.

16
3. Não dissociar a comunicação e suas formas de sua base material (infra-
estrutura).50

Com isso, “a palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido


ideológico ou vivencial”51. Enfim, as línguas constituem-se em concepções de mundo
concretas, nunca abstratas, inseparáveis da prática corrente e da luta de classes. Por isso,
“cada objeto, cada noção, cada ponto de vista, cada apreciação, cada entoação, encontra-se
no ponto de interseção das fronteiras das línguas-concepções do mundo, é englobado numa
luta ideológica encarnecida”52.
Isso significa que cada palavra jamais possui um valor absoluto. Seu sentido não se dá
de modo apriorístico, sendo constituído no processo de interação verbal social. “A
significação não está na palavra nem na alma do falante, assim como também não está na
alma do interlocutor”53. É o efeito da interação do locutor e do receptor. Classes sociais
diferentes se servem de uma mesma língua, mas com significados diferentes para cada signo
verbal. Portanto,

Conseqüentemente, em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor


contraditórios. O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes. Esta
plurivalência social do signo ideológico é um traço de maior importância. Na
verdade, é este entrecruzamento dos índices de valor que torna o signo vivo e móvel,
capaz de evoluir. O signo, se subtraído às tensões da luta social, se posto à margem
da luta de classes, irá infalivelmente debilitar-se, degenerará em alegoria, tornar-se-á
objeto de estudo dos filólogos e não será mais um instrumento racional e vivo para a
sociedade. 54

Por conseguinte, o enunciado, surgido de maneira significativa em determinado


momento sócio-histórico,

não pode deixar de tocar os milhares de fios dialógicos existentes, tecidos pela
consciência ideológica em torno de um dado objeto de enunciação, não pode deixar
de ser participante ativo do diálogo social. Ele também surge desse diálogo como
seu prolongamento, como sua réplica, e não sabe de que lado ele se aproxima desse
objeto.55

50
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem, op. cit., p. 40. Vale lembrar que terceira proposição
está longe de indicar um reducionismo infra/superestrutura. Como exposto na obra do teórico russo, a infra-
estrutura determina as maneiras pelas quais se dá a comunicação entre os indivíduos: “As relações de produção
e a estrutura sócio-política que delas diretamente deriva determina determinam todos os contatos verbais
possíveis entre indivíduos, todas as formas e os meios de comunicação verbal: no trabalho, na vida política, na
criação ideológica”. Idem, Ibidem, p. 42.
51
Idem, Ibidem, p. 95.
52
Idem. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo:
HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1993, p. 415.
53
Idem. Marxismo e filosofia da linguagem, op. cit., p. 132.
54
Idem, Ibidem, p. 46.
55
Idem. Questões de literatura e de estética. A teoria do romance. São Paulo: EDUNESP, 1993, p. 86.

17
Assim, o jornal A Capital, em suas palavras e seus enunciados, expressa suas
percepções do real, posicionando-se frente ao seu objeto – no caso em questão, os praticantes
da magia –, afinal, longe de ser detentora da verdade, a imprensa constitui um instrumento de
manipulação de interesses e intervenção na vida social. Como assevera Maria Helena
Capelato, a “categoria abstrata imprensa se desmistifica quando se faz emergir a figura de
seus produtores como sujeitos dotados de consciência determinada na prática social”56.
Nesse sentido, se a tarefa do historiador consiste em desmistificar os significados aparentes do
documento, analisando as condições em que este foi produzido – visto que é o produto de
uma montagem inconsciente ou consciente da sociedade que o engendrou e, por conseguinte,
resultado das relações conflitantes de seus produtores –, cabe ao mesmo, em lugar de
perguntar se as idéias e informações contidas na fonte-jornal são corretas, procurar saber
quem produziu tal ou tal jornal, quando e como este foi feito e com quais finalidades57.
Como conseqüência, um jornal, como qualquer fonte documental, precisa passar pela
crítica, ser desconstruído e reconstituído. Cabe ao historiador apreender as idéias contidas em
suas páginas, compreendendo seus produtores como agentes de práticas sociais determinadas:

A imprensa, ao invés de espelho da realidade passou a ser concebida como espaço


de representação do real, ou melhor, de momentos particulares da realidade. Sua
existência é fruto de determinadas práticas sociais de uma época. A produção desse
documento pressupõe um ato de poder no qual estão implícitas relações a serem
desvendadas. A imprensa age no presente e também no futuro, pois seus produtores
engendram imagens da sociedade que serão reproduzidas em outras épocas.58

Desse modo, ao analisar as edições do diário A Capital das primeiras décadas do


século XX, procuramos não entendê-lo como um reprodutor fiel da realidade, mas sim como
uma das várias formas de se divulgar e sedimentar percepções e valores, engendrando
representações acerca de determinada realidade ao público leitor. Como argumenta Roger
Chartier, as representações do mundo social construídas “embora aspirem à universalidade
de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de um grupo
que as forjam”59. Sendo assim, as

percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem


estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma
autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto
reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas.

56
CAPELATO, Maria Helena Rolim. A Imprensa e História do Brasil. São Paulo: Contexto/EDUSP, 1994, p.
21.
57
Idem, Ibidem, p. 24.
58
Idem, Ibidem, pp. 24-25.
59
CHARTIER, Roger. A história cultural. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 1990, p. 17

18
Por isso esta investigação sobre as representações supõe-nas como estando sempre
colocadas num campo de concorrências e de competições cujos desafios se
enunciam em termos de poder e dominação.60

De modo que, ainda segundo Chartier, as “lutas de representações” possuem tanta


importância quanto as “lutas econômicas”, para melhor compreensão dos mecanismos pelos
quais um determinado grupo procura impor sua concepção de mundo social e seus valores – o
que não significa separar ambos os aspectos da realidade, ou dar maior importância apenas a
uma delas. Com efeito, ocupar-se “dos conflitos de classificações ou de delimitação não é,
portanto, afastar-se do social [...] muito pelo contrário, consiste em localizar os pontos de
afrontamento tanto mais decisivos quanto menos imediatamente materiais”61.
As representações possuem, obviamente, o intuito de atuar sobre a exterioridade, sobre
o mundo representado. Como afirma Michel de Certeau, “o jogo escriturístico, produção de
um sistema, espaço de formalização, tem como ‘sentido’ remeter à realidade de que se
distinguiu em vista de mudá-la. Tem como alvo uma eficácia social. Atua sobre a sua
exterioridade”62. Assim, o texto, ao ser construído, recebe uma série de operações articuladas,
que traçam na página palavras, frases e, enfim, um sistema, de modo que esse processo
compõe outro mundo, não recebido, mas fabricado. Porém, tal mundo distinto foi criado com
a intenção de agir sobre o meio. Enfim,

O laboratório da escritura tem como função “estratégica”: ou fazer que uma


informação recebida da tradição ou de fora se encontre aí coligida, classificada,
imbricada num sistema e, assim, transformada; ou fazer que as regras e os modelos
elaborados neste lugar excepcional permitam agir sobre o meio e transformá-lo. A
ilha da página é um local de passagem onde se opera uma inversão industrial: o que
entra nela é um “recebido”, e o que sai dela é um “produto”. 63

O próprio Chartier, aliás, alerta para o caráter prático da representação, eliminando a


falsa clivagem entre a objetividade das estruturas – “que seria o território da história mais
segura, aquela que, manipulando documentos maciços, seriais, quantificáveis, reconstrói as
sociedades tal como eram verdadeiramente”64 – e a subjetividade das representações – “à
qual se ligaria uma outra história, destinada aos discursos e situada à distância do real”65 –,
como se estas últimas não fizessem parte do plano da realidade. Dessa maneira, as

60
Idem, Ibidem.
61
Idem, Ibidem.
62
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 226.
63
Idem, Ibidem.
64
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude. Porto Alegre: Editora
Universidade/UFRGS, 2002, p. 72.
65
Idem, Ibidem.

19
representações devem ser consideradas não como um conjunto abstrato de idéias descoladas
das condições objetivas, mas, pelo contrário, como verdadeiras “instituições sociais”, que
incorporam sob a forma de representações coletivas as divisões do mundo social, e como
“matrizes de práticas que constroem o mundo social”66, já que apenas possuem existência na
medida em que comandam atos.
E assim será analisado o jornal: como um texto que cria “outro mundo”, que classifica
uma informação, transformando-a em um produto capaz de intervir na realidade – e não como
um mero discurso situado fora da objetividade. Ou seja, a construção da representação dos
feiticeiros, curandeiros e espiritualistas corresponde à expectativa de ação no plano concreto,
naquele momento de urbanização da capital paulista, em que existia, por parte das classes
dominantes paulistanas, dos intelectuais e daqueles ligados à ciência, o afã de uma metrópole
civilizada.
Por último, ressaltamos que o recorte temporal selecionado para a análise abrangerá o
período compreendido entre 1912 (ano de fundação do jornal) e 1930, quando foram
distinguidas, de forma mais clara, as práticas religiosas consideradas legais ou ilegais, visto
que, inicialmente, havia uma indefinição quanto a esse assunto, em virtude de o espiritismo
ter sido criminalizado no Código Penal de 1890, o que gerou uma discussão, entre
magistrados, policiais e a própria imprensa, sobre a legitimidade das práticas dos espíritas67.
Evidentemente, o jornal A Capital não deixou de acompanhar esse momento de
definição – como é possível notar, por exemplo, na publicação, em 1927, dos textos do
professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Leonídio Ribeiro, acerca dos
eventuais perigos que a crença espírita poderia, a seu ver, trazer à sociedade. Se, inicialmente,
o diário criminalizava o espiritismo, durante a década de 1920 começou a relativizar essa
postura, de forma que classificava seus adeptos ora como sujeitos pertencentes ao rol dos
charlatães, ora como seguidores de uma religião legítima. Desse modo, a escolha do recorte se
deu pelo fato de o diário contemplar o período de discussão sobre as práticas que estariam no
nível da legalidade, para que, assim, pudéssemos acompanhar como o periódico se posicionou
a respeito do assunto, ou seja, se incluiu o espiritismo como magia, devendo, portanto, ser
reprimido pela polícia, ou se o considerou uma lídima prática religiosa.
No primeiro capítulo, trataremos do conturbado contexto de modernização da cidade
66
Idem, Ibidem, op. cit., p. 72.
67
Como observaremos no segundo capítulo, o artigo 157 do Código Penal de 1890 proibia, entre outras práticas,
o espiritismo. Só em fins da década de 1920, após a argumentação, por parte de juristas, de que a doutrina
kardecista não representaria, em parte, perigo à ordem vigente, as práticas de seus adeptos não foram mais
encaradas como crime, sendo diferenciando, a partir de então, o que seria o “baixo espiritismo” e “alto
espiritismo”.

20
de São Paulo, destacando a atuação de higienistas, engenheiros e urbanistas, as ações dos
praticantes de magia, bem como as condições da imprensa da época e, por conseguinte, do
surgimento das notas sensacionalistas. No segundo, dissertaremos acerca das representações
negativas engendradas em relação àqueles que se dedicavam a práticas mágico-religiosas. Por
fim, no terceiro, discorreremos sobre a representação dos adeptos das correntes espiritualistas
– nomeadamente ocultistas e espíritas kardecistas. Essa parte se pôs como necessária, na
medida em que, se alguns espiritualistas eram tratados com muito louvor, outros, por sua vez,
eram, da mesma maneira que feiticeiros e curandeiros, criminalizados pelo diário. Neste
capítulo, assim, vamos nos dedicar a tal distinção, explicitando as suas razões.

21
Capítulo 1. Na nova imprensa, uma pretensa cidade moderna... e as
culturas populares marginalizadas

1.1. O surgimento de um novo periodismo

Na virada do século XIX para o XX, a imprensa paulistana passou por uma série de
mudanças que modificaram a prática jornalística. Se, ao longo do período imperial, a vida
letrada permaneceu ligada à produção de jornais políticos e revistas acadêmicas redigidos pela
elite intelectual formada entre os muros da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco –
como o Observador Constitucional (1829-1831) ou a revista Ensaios Literários do Ateneu
Paulistano (1853), por exemplo –, a partir da década de 1880 surgiu uma enorme quantidade
de pequenas folhas e revistas de cultura e variedades, com uma linguagem mais leve e
financiamento relativamente barato, possuindo os mais distintos objetivos, interesses e
temáticas: tratavam-se das revistas literárias, comerciais, doutrinárias, feministas, de
entretenimento, artes, humor e esportes, bem como dos jornais de bairros, imigrantes e
operários, que, pouco a pouco, ganharam seu espaço em meio aos diários de grande porte.
“Essas publicações transformaram-se no suporte impresso das mais variadas
concepções e práticas culturais”68, tornando-se responsáveis pela democratização do acesso à
cultura impressa, afinal, paulatinamente, as redações e grupos de leitores das pequenas folhas
e revistas congregaram outros grupos sociais, como imigrantes, mulheres cultas pertencentes
às classes dominantes, professores, funcionários públicos, tipógrafos, linotipistas e outros
trabalhadores que compunham o operariado69. Com efeito, tais periódicos, ao incorporarem
parcelas significativas da população, permitiram a ampliação dos circuitos da cultura letrada
para além dos doutores do Largo de São Francisco, dando voz a personagens e espaços
estranhos aos círculos das elites ilustradas da época70.
Entretanto, o processo técnico de produção dessa pequena imprensa era incipiente.
Ainda que algumas das pequenas folhas tenham se consolidado – caso d’A Platéa, por
exemplo –, tornando-se jornais e revistas conhecidos pelo público leitor, muitas foram
desaparecendo no inicio dos Novecentos. Os pequenos grupos editoriais formados por duas
ou três pessoas, com escritórios e redações adaptados em casas, bares, escolas, sindicatos e

68
CRUZ, Heloísa de Faria. “A imprensa paulistana: do primeiro jornal aos anos 50”. In: PORTA, Paula (org.).
História da cidade de São Paulo. Vol. II. São Paulo: Paz e Terra, 2004, pp. 364-365.
69
Idem, São Paulo em papel e tinta: periodismo e vida urbana, 1890-1915. São Paulo: EDUC; FAPESP;
Arquivo do Estado de São Paulo; Imprensa Oficial, 2000, p. 80.
70
Idem, Ibidem, p. 117.

22
associações foram dando lugar a editoras mais organizadas e capitalizadas, as quais
assumiram a edição da maior parte dos materiais impressos lidos pelos paulistanos71. Desse
modo, tais publicações quase artesanais foram assimiladas por algumas poucas revistas com
estruturas de financiamento e produção profissionalizadas, como A Vida Moderna (1905-
1925), a Revista Feminina (1914-1936) e A Cigarra (1914-1975).
Os diários também viveram este processo: ao passo que no interior e nas pequenas
cidades prevalecia ainda o jornal de caráter artesanal e as folhas semanais produzidas em
tipografias, nas grandes capitais o jornal se encontrava em sua fase industrial, transformando-
se em empresa. A produção do periódico enquanto aventura individual e amadora
progressivamente perdeu seu espaço, de modo que, em seu lugar, surgiram e se afirmaram
novas empresas jornalísticas72: é a consolidação da grande imprensa, capitalista e industrial,
em substituição à pequena imprensa73, como afirma Nelson Werneck Sodré. Com efeito,

a empresa jornalística recompõe suas formas de financiamento, racionaliza custos,


introduz inúmeras inovações mecânicas, aprofunda a divisão de trabalho no interior
da oficina gráfica e cria demanda por novas especializações profissionais.
Descaracterizando-se enquanto empreendimento individual, modernizando suas
estruturas de financiamento, produção e circulação, articulando-se à também
nascente indústria do reclame, o periodismo industrial impõe-se e diferencia-se de
vez das pequenas tipografias.74

No início da primeira década do século XX, os novos jornais já nasceram estruturados


como empresa, ao passo que as tradicionais folhas do período imperial – caso d’O Estado de
São Paulo e do Correio Paulistano, por exemplo –, foram se modernizando75. Dali em diante,
as grandes empresas, tendo em vista a obtenção do lucro, procuraram ampliar seu público
leitor, objetivando moldar suas folhas ao gosto deste último. A primeira mudança a ser feita
concernia à qualidade do impresso. Paulatinamente, novos artefatos tecnológicos foram
incorporados76, como a máquina de papel, de Louis Robert (1798), a prensa mecânica, de

71
Idem, Ibidem, p. 147.
72
No ano de 1912, praticamente um terço dos jornais diários eram produzidos no Rio de Janeiro e em São Paulo
(23 jornais diários noticiosos na então capital federal e 17 em São Paulo). Cf. SOUZA, José Inácio de Melo. O
Estado contra os meios de comunicação (1889-1945). São Paulo: Annablume; FAPESP, 2003, p. 20.
73
SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 1983, pp. 261-275.
74
CRUZ, Heloísa de Faria. “A imprensa paulistana: do primeiro jornal aos anos 50”, op. cit., p. 375.
75
MEDINA, Cremilda de Araújo. Notícia: um produto à venda (Jornalismo na sociedade urbana e industrial).
São Paulo: Alfa-Ômega, 1978, p. 55.
76
Ainda que, segundo Juarez Bahia, foi apenas na década de 1950 que importantes reformas abrangendo
composição, formato, impressão e papel de fato ocorreram. BAHIA, Juarez. Jornal, história e técnica. São
Paulo: Ática, 1990, p. 128. No mais, a importação de “máquinas, a adoção de técnicas, a compra de serviços de
agências, a incorporação de valores do jornalismo americano são todos sinais importantes de um desejo de
fazer do jornal um negócio. Mas a falta de condições na economia local de sustentar essa vontade faz com que
ela se frustre, embora alguns jornais consigam sobreviver (como o Jornal do Brasil e O Estado de S. Paulo,
ambos inaugurados no século 19 e ainda hoje entre os quatro maiores diários do país). A fragilidade dessa

23
Frederico Koning (1812), a prensa rotativa, de Marinoni (1850), que possibilitou maiores
tiragens, e a linotipo, de Mergenthaler (1885)77. No mais, essas empresas igualmente
aperfeiçoaram a distribuição (ferroviária, rodoviária e marítima, caso se desejasse enviar
exemplares para o exterior) e dinamizaram as assinaturas (com entregas diretas, domiciliares
ou pelo correio), bem como a venda avulsa, realizada em bancas, em substituição aos
quiosques, e por jornaleiros78. Junte-se a isso o recrudescimento dos serviços de correios, dos
telégrafos e das ferrovias, que possibilitaram uma agilidade maior na transmissão de notícias.
Por fim, os diários começaram, graças ao telégrafo, a contar com os serviços de agências de
notícias estrangeiras, criadas a partir de 1835, como a Havas e a Reuteurs, as quais, todavia,
malgrado a pretensa independência de opinião, estavam sujeitos aos governos dos países que
lhes serviam de base doméstica. “Logo, passamos a ser também reféns de um noticiário da
conveniência dessas grandes empresas jornalísticas”, que serviam a “interesses dos grupos e
países que as subsidiavam”79. Com o passar do tempo, visando à circulação mais ágil da
informação, alguns jornais investiram no serviço exclusivo de correspondentes, em
substituição às agências internacionais.
O conteúdo também sofreu relevantes alterações. Em primeiro lugar, a publicidade
começou a ganhar as páginas dos periódicos80. De mais a mais, se, ao longo do século XIX, o
jornal era caracterizado pela linguagem sisuda e por longas digressões políticas (o
denominado jornal-tribuna81), feito por “panfletários, por autores que polemizam, divergem,
desafiam, conciliam, lutam, instigam, ensinam, constroem, destroem”82, a partir das primeiras
décadas do século XX, os editores notaram que esse tipo de jornalismo não mais atendia às
exigências do heterogêneo público leitor. Para além do universo da política, novos assuntos
foram contemplados. Passou-se a publicar notícias sobre esportes, carnaval, eventos populares
e, nomeadamente, o tipo de nota que conquistaria progressivamente o espaço das folhas, a
saber, o sensacionalismo policialesco, acerca do qual trataremos mais adiante.
O destaque dado à produção da notícia em detrimento dos prolixos textos políticos
característicos do período imperial realça o novo tipo de estilo de escrita dos diários, marcado

‘aventura industrial’ até a segunda metade deste século é inquestionável”. SILVA, Carlos Eduardo Lins da. O
adiantado da hora: a influência americana sobre o jornalismo brasileiro. São Paulo: Summus, 1991, pp. 63-64.
77
BAHIA, Juarez, op. cit., p. 109.
78
Idem, Ibidem, p. 179.
79
MARTINS, Ana Luiza & LUCA, Tania Regina de. Imprensa e cidade. São Paulo: EDUNESP, 2006, p. 43.
80
Sobre as transformações pelas quais a publicidade passou, ver RAMOS, Ricardo. Do reclame à comunicação:
pequena história da propaganda no Brasil. São Paulo: Atual, 1985, pp. 9-40.
81
MEDINA, Cremilda de Araújo, op. cit., p. 55.
82
BAHIA, Juarez, op. cit., p. 84.

24
por uma linguagem objetiva e direta83. Nesse sentido, o artigo político perde seu espaço para a
entrevista, e os folhetins, para o colunismo e, posteriormente, a reportagem – ainda que
possuíssem seu lugar garantido, afinal, como adverte Marlyse Meyer, os grandes diários
brasileiros não prescindiram do velho folhetim84. Com essa nova maneira de redação, os
literatos igualmente viram sua presença nas páginas dos grandes jornais cada vez mais
reduzida. Lembra Brito Broca que

os jornais, sem desprezarem a colaboração literária, iam tomando um caráter cada


vez menos doutrinário, sacrificando os artigos em favor do noticiário e da
reportagem. As notícias de polícia, particularmente, que outrora, mesmo quando se
tratava de um crime rocambolesco, não mereciam mais do que algumas linhas, agora
passavam a cobrir largo espaço; surge o noticiário esportivo, até então inexistente, e
tudo isso no sentido de servir o gosto sensacionalista do público que começava a
despertar.85

Desse modo, o trabalho solicitado aos escritores já não concernia à composição de


crônicas, contos e versos, mas sim a uma atuação condizente com a prática jornalística, como
a redação de reportagens, fato que causou uma grande polêmica no meio literário, pois nem
todos aceitaram se adequar à nova demanda. Em virtude do aspecto mercantil do nascente
jornalismo moderno, incompatível, portanto com a “arte pura” da literatura, grande parte dos
literatos – ainda que alguns afirmassem ser o mesmo um “mal necessário” para verem seus
textos publicados – considerava-o um meio malsão de vida, destacando seus efeitos trágicos,
como a corrupção do estilo, o rebaixamento da língua, o empobrecimento da cultura, o
impedimento à reflexão, a superficialidade e a pressa com que o escritor ver-se-ia forçado a
trabalhar 86. A esses críticos ferrenhos restavam as mesas de café e os expedientes da boêmia,
ao passo que para aqueles que se adaptaram às exigências dos novos tempos, conquanto
houvesse um pequeno espaço para que escrevessem pequenos contos, artigos, folhetins e
críticas literárias, a atividade mais solicitada tangia à vida profissional de jornalista
propriamente dita. Em outras palavras, não seriam as concessões à literatura pelos diários que
ofereceriam maiores possibilidades de trabalho aos escritores na imprensa, mas sim o
desdobramento e alargamento de “seções puramente jornalísticas. Começamos a ver muitos
83
SODRÉ, Nelson Werneck, op. cit., p. 296.
84
MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 370. Foi pela imprensa,
por sinal, que foram publicados os grandes folhetins nacionais e estrangeiros. Para uma análise da constituição
do romance-folhetim no Brasil, ver HEINEBERG, Ilana. La suite au prochain numéro: Formation du roman-
feuilleton brésilien à partir des quotidiens Jornal do Commercio, Diário do Rio de Janeiro et Correio Mercantil
(1839-1870). Paris: Tese de Doutorado em Estudos Lusófonos (Literatura Brasileira), Universidade de Paris III –
Sorbonne Nouvelle, 2004.
85
BROCA, Brito. A vida literária no Brasil – 1900. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1975, p. 218.
86
COSTA, Cristiane. Pena de aluguel: escritores jornalistas no Brasil 1904-2004. São Paulo: Companhia das
Letras, 2005, pp. 20-21.

25
escritores a fazer reportagem policial e a alinhavar ‘sueltos’, anonimamente, ao lado dos
artigos assinados que publicavam, muitas vezes, na primeira página”87.
Enfim, a produção da reportagem passou a ser a tônica dos jornais. Sua entrada
constitui-se na essência do novo tipo jornalismo que então surgia, na medida em que, a partir
daquele instante, como estratégia editorial, houve a divisão entre os textos pretensamente
neutros (notícia) e os artigos claramente opinativos, procurando transmitir ao leitor a imagem
de uma imprensa neutra. Dito de outro modo, a valorização do pretenso caráter imparcial do
periódico acarretou a criação de colunas fixas destinadas à informação e outras para a opinião,
ao mesmo tempo em que se privilegiou a edição de notícias informativas88.
Nessa direção, emergiu a figura do repórter como o profissional comprometido com a
verdade, sempre eivado de imparcialidade, distante dos fatos relatados, representando o
jornalista como um cidadão privilegiado, destacado da sociedade e de seus conflitos, acima de
qualquer suspeita, e o jornal enquanto repositório da verdade. “Essa pretensão dos
representantes da imprensa, por um lado, permitia ocultar os interesses econômicos e
políticos mesclados no jornal, e, por outro, impossibilitava a constatação de que os fatos são
construções, e não relatos precisos”89. Ao público leitor, a imprensa procura se caracterizar
como reflexo da sociedade, cujos jornalistas expressam sempre a realidade de modo fiel,
desaparecendo, assim, as relações sociais partícipes do processo de engendramento de tal ou
tal periódico90.
A própria inserção de imagens, que progressivamente fez parte do projeto editorial de
revistas e jornais, cooperava para a edificação dessa representação. Aparecendo inicialmente
por meio de caricaturas e charges, a imagem passou, já no alvorecer da primeira década dos
Novecentos, a exercer a função de ilustrar os acontecimentos noticiados, reproduzindo fatos
populares, cenas parlamentares, eventos políticos e, nomeadamente, matérias policiais – sem,
contudo, esquecer sua especialização na produção de charges e cartuns de teor humorístico ou
satírico. Em um país de maioria analfabeta, a ilustração mostrou-se mais eficaz que a letra,
possuindo um alcance imenso, “levando-se em conta a força da imagem, decisiva para a

87
BROCA, Brito, op. cit., p. 220.
88
BARBOSA, Marialva. História cultural da imprensa: Brasil, 1900-2000. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007, p.
48.
89
CAPELATO, Maria Helena Rolim. “Imprensa na República: uma instituição pública e privada”. In: SILVA,
Fernando Teixeira da e outros (orgs.). República, liberalismo, cidadania. Piracicaba, SP: UNIMEP, 2003, p.
142. Ainda de acordo com a mesma autora, a propalada objetividade na coleta da informação por parte do
repórter assemelha-se à do cientista, “tal como a concebeu a perspectiva positivista. A sociologia positivista,
erigindo o fato social à condição de coisa passível de ser captada e analisada com base em uma relação de
exterioridade, consolidou uma noção de objetividade que privilegia a posição do sujeito – o pesquisador
cientista. Os periodistas introduziram essa concepção”. Idem, Ibidem.
90
Idem, Ibidem, p. 147.

26
comunicação de massa”91. Com efeito, o periodismo “potencializou-se com base em
litografias precisas, caricaturas inventivas, imagens arrebatadoras de rotogravura,
ilustrações florais art-nouveau, soluções fotográficas inusitadas”92.
A introdução do processo de fototipia, permitindo a divulgação de fotografias e, por
conseguinte, o recrudescimento da reportagem fotográfica, acentuou ainda mais a importância
que a informação gráfica tomava. Desse modo, seja por meio de ilustrações, seja por meio de
fotos, às imagens cabia a função de fornecer a sensação de veracidade à informação
estampada nas páginas dos diários e das revistas, afinal, ao “ser vista por um aparelho
técnico – e portanto carregado da idéia de neutralidade – a imagem estanca o tempo. Não é
apenas o repórter que está presente na cena do acontecimento, mas o repórter e a máquina
capaz de captar o real”93.
Houve, a partir daí, uma tentativa de cercar a imagem de um caráter neutro e objetivo,
robustecendo a representação do repórter, bem como do seu jornal, enquanto agente imparcial
ao noticiar os episódios sucedidos no cotidiano da cidade de São Paulo. No processo de
modernização que a capital paulista atravessava, muitos periódicos favoráveis ao mesmo
utilizaram-se dessa neutralidade para imprimir ao público leitor uma cidade moderna, cujas
mudanças teriam lugar sem quaisquer conflitos, contradições e tensões. Nas imagens e nos
textos veiculados, tencionavam mostrar que a urbe modernizada era um acontecimento
verídico e incontestável. Não se trataria de um fato construído em virtude de suas ideologias.
Ao contrário: estariam apenas noticiando algo real, constituindo-se no mais puro reflexo da
realidade.

1.2 . O novo periodismo e a celebração de São Paulo

O surgimento dessa nova imprensa foi a expressão da modernização da capital paulista


ocorrida entre o último quartel do século XIX e início do XX, em função do processo de
crescimento e industrialização a qual São Paulo cruzava. Em curto espaço de tempo, a cidade
passou da condição de vila pacata de feição colonial para importante centro regional.
Principal produto de exportação por volta da década de 1840, o café94 possibilitou a
acumulação interna de capital e a diversificação das atividades comerciais e manufatureiras,
91
MARTINS, Ana Luiza & LUCA, Tania Regina de, op. cit., p. 44.
92
Idem, Ibidem, pp. 44-45.
93
BARBOSA, Marialva, op. cit., p. 36.
94
Lembra Joseph Love que, entre 1910 e 1920, ”o Brasil produziu cerca de dois terços do café mundial, sendo
as fazendas paulistas responsáveis por 70% desse total, ou seja, quase a metade da produção mundial”. LOVE,
Joseph. A locomotiva: São Paulo na federação brasileira, 1889-1937. São Paulo: Paz e Terra, 1982, p. 65.

27
além do aumento da população, graças, nomeadamente, à maciça imigração de trabalhadores
livres provenientes do continente europeu95, o que rapidamente a transformou em metrópole
industrial. Esse período foi considerado tão significativo pelo historiador Eurípides Simões de
Paula que o mesmo acabou por designá-lo como a Segunda fundação de São Paulo96.
O café foi responsável por essa segunda fundação, se comparados o burgo colonial de
1860 e a vigorosa cidade comercial do fim do século97. Seus principais produtores não se
restringiram apenas à sua plantação. Pelo contrário, também financiavam o estabelecimento
de novas plantações ou a modernização daquelas já existentes – exercendo assim uma função
bancária –, concediam empréstimos aos fazendeiros em dificuldade e compravam a produção
de outros cafeicultores. Em outras palavras, essa camada superior da burguesia cafeeira98
investia em outros setores da economia, caso, por exemplo, de Antônio da Silva Prado, que,
além de cafeicultor, era acionista da Companhia Paulista de Estradas de Ferro e proprietário
de um dos primeiros e principais bancos de São Paulo, bem como da Vidraria Santa Marina.
O capital cafeeiro, com efeito, possuía diversos aspectos, apresentando ao mesmo
tempo as características de capital agrário, mercantil, bancário e industrial, de modo que os
mesmos proprietários se encontravam à frente de empresas que exerciam funções diversas 99.
Eles não eram apenas fazendeiros, mas também diretores de bancos, companhias de estradas
de ferro e indústrias. Logo, esse capital constituiu-se no principal promotor do
desenvolvimento econômico e da modernização da capital paulista, já que a lavoura cafeeira
originou capital primitivo fomentador de outras atividades essenciais ao seu desenvolvimento,
que, ao mesmo tempo, tornavam-se novas oportunidades de investimento para os

95
Já em 1920 a porcentagem de estrangeiros na cidade de São Paulo atingiu a marca de 35%. Nesse mesmo ano,
“entre a população acima de quinze anos, os estrangeiros na Capital (188.045) eram mais numerosos do que os
brasileiros (186.077)”. HALL, Michael. “Imigrantes na cidade de São Paulo”. In: PORTA, Paula (org.).
História da cidade de São Paulo. Vol. II. São Paulo: Paz e Terra, 2004, p. 121.
96
Cf. PAULA, Eurípedes Simões de. "A segunda fundação de São Paulo. Da pequena à grande metrópole de
hoje". In: Revista de História. São Paulo: FFCLH/USP, n. 17, jan/mar, 1954.
97
Cf. SINGER, Paul Israel. Desenvolvimento econômico e evolução urbana. São Paulo: Editora Nacional e
Editora da USP, 1968.
98
De acordo com Sérgio Silva, o desenvolvimento do capital cafeeiro desde meados do século XIX acarretou
sua divisão entre grandes capitais e capitais médios. Os primeiros (a camada superior da burguesia cafeeira)
definiriam uma burguesia essencialmente comercial, ao passo que os segundos (a camada inferior da burguesia
cafeeira) formariam uma burguesia agrária, composta por uma simples classe de proprietários de terra. Contudo,
faz-se necessário “insistir no fato de que essa divisão não é uma divisão entre, de uma parte, o capital
comercial e, de outra parte, o capital agrário: os maiores ‘produtores’ de café, os maiores fazendeiros fazem
parte da camada superior da burguesia cafeeira; as grandes plantações são propriedades do grande capital. O
capital cafeeiro representa a unidade dos dois, sob a dominação do primeiro. [...] Na realidade da economia
cafeeira dessa época, esses capitais não existem de uma maneira autônoma”. SILVA, Sérgio. Expansão
cafeeira e origens da indústria no Brasil. São Paulo: Alfa-Ômega, 1985, p. 61.
99
Contudo, é válido ressaltar que inexistia no seio do capital cafeeiro uma divisão de frações de classe
autônomas. Não havia uma burguesia agrária cafeeira ou uma burguesia comercial, mas sim uma burguesia
cafeeira desempenhando múltiplas funções. Idem, Ibidem.

28
cafeicultores, casos, por exemplo, das indústrias e do sistema ferroviário, bancário e de
transporte urbano100. Entre os anos 1920 e 1930, São Paulo superou a cidade do Rio de
Janeiro, tornando-se a primeira cidade industrial do País. Por ocasião da realização do
primeiro censo industrial no Brasil, no ano de 1907, fornecia somente 16% do total da
produção industrial nacional. Todavia, em 1919, essa proporção dobrou, atingindo 32%, e,
vinte anos depois, chegou a 43%101.
Dessa maneira, como assevera João Manuel Cardoso de Mello, convém pensar num
complexo exportador cafeeiro, composto por um núcleo produtivo, o qual abarcava as
atividades de beneficiamento, e por um segmento urbano integrado pelos serviços de
transportes (estradas de ferro, portos e outros), bem como pelas atividades comerciais (casas
importadoras e exportadoras) e financeiras (bancos)102. Enfim, na medida em que a lavoura
cafeeira recrudesceu,

passou a induzir, crescentemente, o surgimento de uma série de atividades


tipicamente urbanas, como a industrial, a bancária, escritórios, armazéns e oficinas
de estradas de ferro, comércio atacadista, comércio de exportação e importação e
outros, requerendo e facultando, ainda, a expansão do aparelho do Estado. No
momento em que estas crescessem, uma série de outras, mais vinculadas ao processo
de urbanização, também se desenvolveriam: o comércio varejista, os transportes
urbanos, comunicações, energia elétrica, construção civil, equipamentos urbanos,
etc.103

Consolidadas suas funções bancária, comercial e industrial, foi implementado, pelo


Poder Executivo Municipal, um conjunto de ações que mudaram a feição de parte da cidade
de São Paulo, tendo como modelo as principais capitais européias, nomeadamente as cidades
de Paris e Londres. Afinal, para as classes dominantes, ligadas ao capital cafeeiro, que, em
virtude da expansão dos negócios, passaram a residir na capital paulista, fazia-se urgente a
modificação do espaço urbano e dos costumes, em favor de uma aparência considerada mais
“civilizada” e “moderna”, o que equivalia, a seu ver, estar em consonância com os padrões
urbanísticos, arquitetônicos e de comportamento das grandes cidades da Europa, para que,
assim, a herança colonial portuguesa, vista como atrasada, fosse superada. Era importante
para a burguesia a organização de um Estado republicano secular que fosse capaz de
100
Daí João Manuel Cardoso de Mello afirmar que a burguesia cafeeira foi a matriz social da burguesia
industrial. Ou, dito de outro modo, “o capital industrial nasceu como desdobramento do capital cafeeiro
empregado, tanto no núcleo produtivo do complexo exportador (produção e beneficiamento do café), quanto em
seu segmento urbano (atividades comerciais, inclusive as de importação, serviços financeiros e de
transportes)”. MELLO, João Manuel Cardoso de. O capitalismo tardio: contribuição à revisão crítica da
formação e do desenvolvimento da economia brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1998, p. 100.
101
LOVE, Joseph, op. cit., p. 81.
102
MELLO, João Manuel Cardoso de, op. cit., p. 129.
103
CANO, Wilson. Raízes da concentração industrial em São Paulo. Rio de Janeiro: Difel, 1977, p. 69.

29
“civilizar” o País, dar-lhe uma imagem distinta dos períodos colonial e imperial,
sintonizando-o com o continente europeu104.
Nesse contexto, idéias como novo, progresso, ruptura e outras na mesma linha
passaram a fazer parte “não apenas do cotidiano dos agentes sociais, mas, principalmente, a
caracterizar o imaginário, o discurso intelectual e os projetos de intervenção junto à
sociedade”105. Nas últimas décadas do século XIX, homens letrados (médicos, engenheiros e
educadores) das nascentes metrópoles que começavam a criar faculdades, museus e institutos,
influenciados por modelos teóricos em voga na Europa, como o darwinismo social, o
evolucionismo e o positivismo, reconheceram-se enquanto um grupo de “modernizados”, à
medida que, concomitantemente, identificavam alguns grupos internos do País – índios,
africanos e mestiços – como “atrasados” e os intelectuais europeus como modernos
fornecedores de teorias que necessitavam de adaptações frente à realidade nacional106. Seu
projeto era superar o que denominavam como “atraso cultural” do Brasil e abreviar sua
marcha evolutiva para que, assim, alcançasse os padrões dos países europeus, considerados
como a parcela mais avançada da humanidade107.
Estes intelectuais, portadores de um saber técnico e especializado, reivindicavam o
encargo de organizar a sociedade. Proclamando o imperativo de um ensino prático, “eles
argumentavam que esse era o único caminho para a superação das deficiências e
anacronismos, que só assim seria possível a integração do país à ‘marcha’ da civilização
ocidental”108. Seria necessário “intervir”, “organizar”, “sanear” e “prevenir”, com o fito de se
evitar os “perigos”, os “excessos”, as “falhas” e os “desvios” que “ameaçavam o meio
ambiente, a cultura e o indivíduo, isto é, a concretização do principal objetivo: a ‘realização
plena da nação’”109. O pensamento positivista, ao transformar a ciência no único caminho
para a consecução da saúde plena do corpo social e do estágio de “civilização”, além de ter
concebido esses cientistas como os grandes e únicos “missionários do progresso”, fez com
que suas idéias influenciassem as classes dominantes paulistas e as autoridades das três

104
HERSCHMANN, Micael H. “A arte do operatório. Medicina, naturalismo e positivismo, 1900-1937”. In:
HERSCHMANN, Micael H. & PEREIRA, Carlos Alberto Messeder (orgs.). A invenção do Brasil moderno:
medicina, educação e engenharia nos anos 20-30. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 44.
105
HERSCHMANN, Micael H. & PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. “O imaginário moderno no Brasil”. In:
HERSCHMANN, Micael H. & PEREIRA, Carlos Alberto Messeder (orgs.). A invenção do Brasil moderno:
medicina, educação e engenharia nos anos 20-30. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 14.
106
SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. Sortilégio de saberes: curandeiros e juízes nos tribunais brasileiros
(1900-1990). São Paulo: Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, FFLCH-USP, 1994, p. 61.
107
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense; Brasília: CNPq,
1990, p. 81.
108
HERSCHMANN, Micael H., op. cit., p. 45.
109
Idem, Ibidem, pp. 56-57.

30
esferas do poder público, respaldando sua ascensão junto ao Estado e legitimando suas
intervenções na cidade e na vida dos habitantes.
A exigência de se acertar os ponteiros brasileiros com o relógio global acarretou a
hegemonia dos discursos técnicos de médicos, engenheiros e educadores, “confiantes em
representar a vitória inelutável do progresso e por isso dispostos a fazer valer a
modernização ‘a qualquer custo’”110. Dessa maneira, o nascente Estado republicano estava
preocupado em estabelecer uma racionalidade que obedecesse às transformações sociais,
econômicas e políticas ocorridas no continente europeu no último quartel do século XIX111.
Em outras palavras, para os intelectuais, os governantes e as classes dominantes, o desafio era
transformar cada brasileiro num cidadão capaz de ocupar, ordenada e corretamente, as
modernas funções e os renovados espaços públicos. Seria o momento de “reformar”,
“regenerar” e “civilizar” o País. Tratava-se de estabelecer uma “cruzada modernizadora”
em que poucos brasileiros, “avançados”, conduziriam muitos outros, “atrasados”, a
alcançarem, em ordem, o progresso112.
Nesse sentido, as palavras “civilização” e “moderno” incorporam-se cada vez mais à
linguagem do cotidiano da burguesia cafeeira, tornando-se palavras de ordem e “instrumentos
de batalha, além de fotografias de um ideal alentado”113. Nomeadamente por meio da
publicidade, o vocábulo “moderno” adquiriu “conotações simbólicas que vão do exótico ao
mágico, passando pelo revolucionário”114. Utilizado no baixo-latim como equivalente a
“recente”, o termo, segundo Jacques Le Goff, no século XIX, com o surgimento do conceito
de “modernidade”, associou-se às idéias de novo e de progresso, em contraposição ao
arcaico. Na São Paulo que se modernizava, tal contraposição era eminente: desejava-se
europeizá-la, sinônimo de “civilizada” aos olhos das classes dominantes, e, sobretudo, deixar
para trás as marcas do que era considerado antigo e atrasado. Era a oposição antigo/moderno.
Sobre esta, diz o mesmo historiador:

A oposição antigo/moderno, que é um dos conflitos através dos quais as sociedades


vivem as suas relações contraditórias com o passado, agudece-se sempre que se trata
de lutar contra um passado recente, um presente sentido como passado, ou quando a
110
SEVCENKO, Nicolau. “Introdução. O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso”. In:
SEVCENKO, Nicolau (org.). História da vida privada no Brasil. República: da Belle Époque à Era do Rádio.
São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 27.
111
HERSCHMANN, Micael H. & PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. “O imaginário moderno no Brasil”, op.
cit., p. 26.
112
SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore, op. cit., p. 60.
113
COSTA, Angela Marques da & SCHWARTZ, Lilia Moritz. 1890-1914: no tempo das certezas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000, p. 12.
114
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20.
São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 227.

31
querela dos antigos e modernos assume as proporções de um ajuste de contas entre
pais e filhos115.

A utilização do termo “moderno” era ilimitada. Representava a emancipação e, para


além da oposição ao antigo, o avanço, nomeadamente da ciência. Nesse vocábulo,
encontravam-se depositadas as expectativas de uma vida melhor – melhoria essa que se daria
nos avanços da tecnologia que alcançariam diretamente a vida privada –, excetuando-se os mais
tradicionalistas, para quem a modernidade soava com indisciplina e promiscuidade. Em outras
palavras,

Nos termos da nova tecnologia publicitária, essa palavra se torna a peça decisiva
para captar e mobilizar as fantasias excitadas e projeções ansiosas da metrópole
fervilhante. [...] O vocábulo ‘moderno’ vai condensando assim conotações que se
sobrepõem em camadas sucessivas e cumulativas, as quais lhe dão uma força
expressiva impar, muito intensificada por esses três amplos contextos: a revolução
tecnológica, a passagem do século e o pós-guerra. ‘Moderno’ se torna a palavra-
origem, o novo absoluto, a palavra-futuro, a palavra-ação, a palavra-potência, a
palavra-libertação, a palavra-alumbramento, a palavra-epifania.116

Doutrinadores, historiadores, educadores, jornalistas, cientistas, enfim, aqueles


intelectuais favoráveis ao nascente regime republicano, combateram o passado,
caracterizando-o como atrasado e retrógrado. Nessa linha de raciocínio, a Monarquia foi
tratada como uma anomalia na América e o Poder Moderador como cerceador das liberdades,
demasiadamente centralizador. “Os republicanos tiveram que construir uma tradição e uma
memória que mostrassem como o regime republicano tinha sido sempre uma aspiração
sufocada pelo governo imperial”117. Com efeito, na supracitada oposição entre antigo e
moderno, a República representava este último, salvando o País da “letargia da Monarquia”
e da “barbárie da escravidão”, representantes do antigo e, por conseguinte, sintomas do
atraso118. Os intelectuais e propagandistas da República exaltavam o novo regime enquanto
uma etapa de “atualização” do País, sua entrada triunfal no século civilizado119. Como afirma
Sevcenko, era como se a instauração do novo regime acarretasse pelo mesmo ato a extinção

115
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora UNICAMP, 2003, p. 202.
116
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20,
op. cit., p. 228.
117
LAHUERTA, Milton. “Os intelectuais e os anos 20: moderno, modernista, modernização”. In: DE
LORENZO, Helena Carvalho & COSTA, Wilma Peres da. A década de 1920 e as origens do Brasil moderno.
São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997, p. 188.
118
COSTA, Angela Marques da & SCHWARTZ, Lilia Moritz, op. cit., p. 27.
119
OLIVEIRA, Lúcia Lippi, op. cit., p. 90.

32
de toda a herança do passado do brasileiro e “pela mera reforma institucional ele tivesse
fixado um nexo co-extensivo com a cultura e a sociedade das potências industrializadas”120.
Em meio a uma verdadeira batalha simbólica visando à legitimação do novo regime,
ocasião em que nomes, hinos, bandeiras e heróis que lembravam a extinta Monarquia foram
substituídos com o intuito de se demarcar a diferença (Tiradentes, por exemplo, substituía
antigos marcos imperiais), a República preparava-se para redesenhar outra representação da
Nação brasileira. Nas últimas décadas do período imperial, o esforço de figurar ao lado dos
grandes países modernos era patente. Mas, com a proximidade da virada para o século XX, o
desafio parecia ainda maior. “Era hora de reformar cidades, planejar novos inventos,
adaptar descobertas, enfim, vestir as diferentes capitais com a nova roupagem que escondia
os trópicos e exaltava a modernidade”121.
Na busca do “moderno”, o Estado contou com a contribuição de importantes aliados,
a saber, os cientistas. O discurso dos educadores, nesse contexto, ganhou força, visto que a
escola emergiu como um meio imprescindível para a consolidação dos ideais republicanos,
além de instrumento de progresso social e elevação moral da população. Uma instrução
elementar apareceu como condição sine qua non para que o Brasil pudesse estar em sintonia
com o progresso das sociedades consideradas mais civilizadas. Nesse sentido, foi construída e
exaltada a imagem do docente enquanto grande reformador social responsável pela
remodelação dos cidadãos.
Desse modo, no discurso educacional elaborado no cerne do pensamento republicano,
à instituição escolar e aos docentes incumbia a regeneração do brasileiro, o qual somente
poderia ser aperfeiçoado pela ação educativa, cuja atuação possibilitaria a eliminação da
ignorância, das superstições e dos maus costumes122, já que, segundo os educadores
republicanos, o progresso da Nação não poderia ocorrer sem a mudança de hábitos e valores
morais da população, sendo imperioso transformá-la em brasileiros plenamente instruídos e
alfabetizados – em uma sociedade cujo índice de analfabetismo atingia a cifra de 80%. Para
que essa modificação se realizasse, o Executivo Estadual reformou a estrutura administrativa

120
SEVCENKO, Nicolau. “Introdução. O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso”, op.
cit., p. 27.
121
COSTA, Angela Marques da & SCHWARTZ, Lilia Moritz, op. cit., p. 128.
122
SILVA, Ilíada Pires da. “Educadores paulistas: regeneração social, república e nação”. In: FERREIRA,
Antonio Celso; LUCA, Tania Regina de; IOKOI, Zilda Grícoli (orgs.). Encontros com a História: percursos
históricos e historiográficos de São Paulo. São Paulo: EDUNESP, 1999, p. 127.

33
do ensino público 123 e investiu na fundação de novas instituições escolares – medida que não
logrou evitar a exclusão dos mais pobres do acesso ao ensino124.
Os engenheiros formados pela Escola Politécnica, criada em 1893, por sua vez, em
publicações especializadas, como a Revista de Engenharia e a Revista Polytechnica,
discutiam sobre possíveis obras de melhorias – criação, calçamento e alargamento de ruas e
avenidas, construção de pontes e viadutos, retificação e canalização de rios e córregos,
expansão dos serviços de distribuição de água e coleta de esgoto – possíveis de serem
realizadas mormente na região central da cidade, visando torná-la um espaço salubre e amplo
para a circulação de pessoas e automóveis.
Da mesma forma, os médicos tiveram larga atuação. Pode-se considerar a década de
1870 como um marco na atuação médica no Brasil, visto que doutores das faculdades de
Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia – as duas únicas à época – interpretaram aquele
momento como um chamado que os invocava enquanto grandes missionários saneadores dos
males físicos do Brasil: as epidemias de cólera, febre amarela e varíola, o retorno de doentes e
inválidos da Guerra do Paraguai, o desenvolvimento tumultuado das cidades, o avanço da
criminalidade, a multiplicação de casos de alienação e embriaguez e a vinda de grupos de
imigrantes, considerados endemicamente doentes, foram vistos como um sinal de desordem
do País e de que o seu bem-estar dependia da sua imediata e eficaz intervenção 125.
Com efeito, em fins do século XIX, com vistas ao combate a surtos epidêmicos de
doenças, como cólera, varíola, tifóide, febre amarela e tuberculose, que atingiam muitas
cidades brasileiras, o Estado de São Paulo foi o primeiro a lançar uma sólida campanha de
saneamento urbano126. Em 1891, foi estabelecida a Inspetoria de Higiene, substituída no ano
seguinte pelo Serviço Sanitário, criada pela Lei n. 43, de junho de 1892, e reformado nos anos
de 1893, 1896, 1906, 1911, 1917 e 1925127. Em seguida, institutos foram criados, de modo

123
Cf. NASCIMENTO, Terezinha Aparecida Quaiotti Ribeiro do. A administração do ensino público paulista
na Primeira República. Campinas, SP: Dissertação de Mestrado em Educação, Faculdade de
Educação/UNICAMP, 1980.
124
No Primeiro Gymnasio da Capital, por exemplo, os alunos deveriam pagar taxa de matrícula, entregar uma
série de documentos e realizarem exames de admissão, etapas que, por si mesmas, acabavam por excluir a
maioria da população. Entretanto, é lícito lembrar que houve alguns casos de estudantes não oriundos das classes
dominantes que conseguiram ingressar na referida instituição. CABRAL, Maria Aparecida da Silva. O Curso de
Bacharelado em Sciencias e Letras do Primeiro Gymnasio da Capital, em São Paulo: um estudo sobre o
currículo da escola secundária. São Paulo (1894-1913). São Paulo: Tese de Doutorado em Educação: História,
Política e Sociedade, PUC-SP, 2008, p. 157.
125
SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore, op. cit., pp. 77-78.
126
SANTOS, Luis Antonio de Castro. “A reforma sanitária ‘pelo alto’: o pioneirismo paulista no início do século
XX”. In: Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 36, n. 3, 1993, p. 381.
127
CUNHA, Maria Clementina Pereira. “Os bacamartes da República: saberes e poderes no Brasil na virada do
século”. In: SILVA, Fernando Teixeira da; NAXARA, Márcia Regina Capelari; CAMILOTTI, Virgínia (orgs.).
República, liberalismo, cidadania. Piracicaba, SP: Editora da UNIMEP, 2003, p. 126.

34
que, já no alvorecer dos Novecentos, São Paulo possuía uma desenvolvida e organizada rede
de instituições de saúde pública128: o Instituto Bacteriológico (1892), com a incumbência de
investigar as causas e as formas de propagação das epidemias e das doenças transmissíveis; o
Instituto Vacinogênico (1892), responsável pela fabricação da vacina contra a varíola; o
Laboratório Farmacêutico e o de Análises Químicas (ambos em 1893), tendo este último o
encargo de realizar análises de produtos alimentícios, bebidas, águas minerais e remédios; o
Instituto Soroterápico do Butantã (1899), criado inicialmente para a produção da vacina
contra a peste bubônica, por ocasião de um surto dessa doença na cidade de Santos; e o
Serviço de Desinfecção, cuja tarefa era desinfetar instalações sanitárias em edifícios públicos,
habitações, ralos, bocas de lobos, ruas e praças públicas. Some-se a isso a Faculdade de
Medicina e Cirurgia, fundada em 1912.
Nesse ínterim, no ano de 1894, foi promulgado o primeiro Código Sanitário do Estado.
Por meio de 520 artigos, reuniu as normas de higiene e saúde pública, regulamentando o
espaço público e privado, desde ruas e praças até habitações, fábricas e oficinas. “Estendia as
normas de higiene para outras esferas da vida dos habitantes da cidade de forma mais
rigorosa do que a das Posturas municipais”129. Para que as normas do Código fossem
acatadas, os responsáveis pelo policiamento e vigilância sanitária eram os inspetores
sanitários, a quem competiam “as visitas domiciliares, a vigilância da habitação, a
vacinação, a direção e a fiscalização das desinfecções feitas pelos desinfetadores”130. Sua
rotina incluía a fiscalização dos alimentos comercializados e fabricados, da qualidade da água,
dos esgotos, da limpeza das ruas da cidade, do lixo, das farmácias e das drogarias131. Esses
verdadeiros “exércitos da saúde pública” invadiam ruas e habitações, diagnosticando
moléstias e determinando melhorias132. Sob o manto do discurso técnico-científico, possuíam
o poder de entrar nas moradias, intervir na organização de seu espaço, ordenar mudanças nos
costumes de seus habitantes e a demolição das casas, caso estas não se encontrassem em
conformidade com os preceitos higienistas, sem qualquer direito de defesa por parte de seus
proprietários.
As ações autoritárias tinham lugar nos cortiços, localizados nas periferias da cidade.
No discurso dos médicos higienistas, os palacetes da região central eram representados

128
SANTOS, Luis Antonio de Castro, op. cit., p. 378.
129
RIBEIRO, Maria Alice Rosa. História sem fim... Inventário da saúde pública. São Paulo: EDUNESP, 1993,
p. 28.
130
Idem, Ibidem, p. 45.
131
Idem, Ibidem, p. 46.
132
MOTA, André. Tropeços da medicina bandeirante: medicina paulista entre 1892-1920. São Paulo: EDUSP,
2005, p. 47.

35
enquanto lugares onde havia uma ordem reinante, ao passo que os cortiços eram encarados
como espaços em que imperavam a desordem, o caos e a promiscuidade133. Sua falta de
asseio era apontada como responsável pelos surtos epidêmicos, contaminando assim toda a
cidade. Ausência de asseio que, por sinal, de acordo com os higienistas, era resultante dos
hábitos dos moradores, considerados “bárbaros” e “incivilizados”, de maneira que os
cortiços e a população moradora foram incontinenti identificados com a sujeira, a imoralidade
e a selvageria.
Desse modo, em nome da saúde dos cidadãos, os habitantes dos cortiços passaram a
ser pesquisados, suas moradias invadidas e reviradas e os doentes removidos134. Contudo, a
arbitrariedade dos inspetores sanitários despertava resistências da população, o que acarretou
a solicitação da intervenção da força policial durante as visitas135, afinal, segundo os mesmos,
para uma população considerada “ignorante” e “rebelde”, tornava-se mais que urgente a
escolta policial. Assim, por diversas oportunidades, foi utilizada a violência da Força Pública
para tornar efetiva a prática médica, como, por exemplo, para coagir aquele que se recusasse a
ser vacinado. Foi institucionalizada, por conseguinte, a violência enquanto meio legítimo de
atuação dos agentes sanitários. A resistência da população pobre aos desmandos das medidas
médico-sanitaristas acabou sendo revestida de um caráter criminoso, de forma que os
populares foram estigmatizados como indivíduos suspeitos e, portanto, passíveis de sofrerem
ação policial. “Encarada como um obstáculo aos interesses da sociedade, a resistência
popular era criminalizada sob o pretexto do bem comum, donde a ação da polícia mostrava-
se imprescindível para o sucesso dos intentos médicos”136.
No mais, a cidade, do ponto de vista territorial, passou por uma redefinição de suas
áreas funcionais: o centro velho foi se caracterizando como zona comercial varejista; a zona
industrial localizava-se nos bairros de várzea, perto da vias férreas, assim como os bairros
operários; os bairros residenciais da classe média se encontravam em áreas mais afastadas do
centro, na periferia, ao passo que os mais nobres estavam localizados nas regiões mais altas e

133
ROLNIK, Raquel. “São Paulo na virada do século: territórios e poder”. In: Cadernos de História de São
Paulo. São Paulo: Museu Paulista da Universidade de São Paulo, n. 1, jan./dez. 1992, p. 42.
134
Idem, Ibidem.
135
Cf. MOTA, André & SANTOS, Marco Antônio Cabral dos. “Entre algemas e vacinas: medicina, polícia e
resistência popular na cidade de São Paulo (1890-1920)”. In: Novos Estudos, CEBRAP, n. 65, março de 2003,
pp. 152-168.
136
SANTOS, Marco Antônio Cabral dos. “Criminalizando a pobreza: implicações entre ação policial e políticas
médico-sanitárias em São Paulo (1890-1920)”. In: Mneme – Revista de Humanidades. Caicó (RN), vol. 7, n. 17,
ago./set. 2005, pp. 78-79. Todavia, torna-se válido ressaltar que nem sempre a população era refém do Serviço
Sanitário. “Muitos enfrentaram os órgãos competentes, para impedir que determinadas normas e leis sanitárias
se executassem ou para denunciar posturas de seus representantes que consideravam inadequadas”. MOTA,
André, op. cit., p. 106.

36
salubres, estendendo-se desde os Campos Elíseos até a Avenida Paulista e o Jardim América,
compostos por palacetes, casarões e sobrados de estilo europeu, desde os tijolos e vidros até a
mobília137.
Essa área nobre, ocupada pela burguesia cafeeira, passou por sucessivas reformas
encabeçadas pelo Estado, ao contrário das regiões periféricas, cada vez mais precárias no que
tange à infra-estrutura. O Poder Executivo Estadual, visando à sua higienização e salubridade
segundo os preceitos dos médicos higienistas, ampliou a rede de serviço de coleta de esgotos
e realizou melhorias no serviço de abastecimento de água – o que não significou avanços na
qualidade do líquido fornecido. Em 1892, foi encampada a Companhia Cantareira de Águas e
Esgotos – criada em 1877, de capital privado –, sob o argumento de que a empresa não
lograva atender à demanda da população em crescimento, e, em fins do século XIX e início
do XX, o abastecimento foi ampliado com a construção de reservatórios na cidade, como o da
Consolação (1898) e do Araçá (1907)138. De mais a mais, sob a influência da teoria dos
miasmas – segundo a qual as doenças se difundiam por meio de fluidos nocivos derivados da
decomposição de matérias orgânicas, do solo, de águas pútridas ou de lugares insalubres em
que a circulação do ar fosse prejudicada139 –, deu-se início a drenagens, aterramentos,
canalizações e retificações dos rios – a título de exemplo, a retificação do Tamanduateí,
concluída em 1914, solucionou parcialmente o problema da insalubridade das regiões
adjacentes, devido à extinção das águas estagnadas, de onde poderiam derivar fluidos
nocivos140. A prefeitura, por sua vez, no ano de 1911, encampou os serviços de limpeza
pública.
O Poder Executivo Municipal, com vistas ao embelezamento e melhoramento da
região habitada pelos mais abastados, de acordo com os arquétipos urbanísticos provenientes
do continente europeu, mormente as transformações haussmannianas em Paris141 – o que de

137
GLEZER, Raquel. “As transformações da cidade de São Paulo na virada do século XIX e XX”. In: Cadernos
de História de São Paulo. São Paulo: Museu Paulista da Universidade de São Paulo, n. 3/4, out./dez. 1994 e
ago./out. 1995, p. 19.
138
SANTOS, Fábio Alexandre dos. Domando as águas: salubridade e ocupação do espaço na cidade de São
Paulo, 1875-1930. Campinas, SP: Tese de Doutorado em Economia Aplicada, UNICAMP, 2006, p. 93.
139
“Embora essa concepção estivesse em declínio desde a segunda metade do século XIX, ela ainda permanecia
como explicação de doenças cuja forma de transmissão se ignorava. Particularmente, isso ocorria com a febre
amarela, cujo meio de propagação continuava desconhecido, apesar dos avanços das pesquisas
bacteriológicas”. RIBEIRO, Maria Alice Rosa, op. cit., p. 32.
140
SANTOS, Fábio Alexandre dos, op. cit., p. 101.
141
Termo que faz alusão a Geroges-Eugène Haussmann, prefeito de Paris entre 1853 e 1870 no período de
Napoleão III e responsável pelas reformas urbanísticas da capital francesa. Sobre o caráter ideológico de sua
atuação, ver LÖWY, Michael. “A cidade, lugar estratégico de enfrentamento das classes. Insurreições, barricadas
e haussmannização de Paris nas Passagens de Walter Benjamin”. In: Margem Esquerda, Ensaios Marxistas, n.
8. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006.

37
forma alguma significou uma mera transposição de idéias142 –, também abriu novas vias
públicas, pavimentou, alargou e arborizou ruas e avenidas, para melhor circulação do fluxo de
pessoas, além de ter remodelado as praças e os jardins públicos, caso das praças da República
e João Mendes, bem como dos largos do Carmo, do Arouche, Concórdia, Sete de Setembro e
General Osório 143. Pontes e viadutos foram construídos, como o Viaduto do Chá, concluído
em 1913. Já os novos edifícios públicos foram erigidos possuindo fachadas de acordo com o
estilo neoclássico ou eclético, concebidos por arquitetos estrangeiros ou brasileiros formados
na Europa. Francisco de Paula Ramos de Azevedo, por exemplo, formado na Bélgica, foi
responsável, entre outras obras, pela construção do prédio da Secretaria da Agricultura (1896),
do Liceu de Artes e Ofícios (1900), do Palácio das Indústrias (1911-1924), da segunda
estação da Estrada de Ferro Sorocabana (1914) e do Teatro Municipal (1900-1911).
Ao contrário dos periódicos humorísticos, que traziam em textos e charges de tom
jocoso as incongruências da modernização da capital paulista 144, as principais revistas

142
Caso exemplar é o de Victor da Silva Freire, professor da Escola Politécnica de São Paulo e chefe da Seção
de Obras da Prefeitura de São Paulo entre 1899 e 1926. Filho de pais brasileiros e nascido em Lisboa no ano de
1869, iniciou sua formação em Engenharia Civil na Escola Politécnica de Lisboa, concluindo seus estudos na
cidade de Paris, em 1891. Em artigos publicados na Revista Politécnica, Freire advertia que, nas reformas
urbanísticas, era necessário levar em conta as condições específicas de cada lugar, em lugar da imposição de
modelos prontos. Certa feita, afirmou: “É commum a tendência em muitas partes – commum e infeliz – de copiar
sem discernimento leis postas em vigor em outras cidades. Acceita-se assim a hyphotese de que o que se justifica
n’uns casos, justificado fica para todos”. FREIRE, Victor da Silva. “Melhoramentos de São Paulo”. In: Revista
Polyhtecnica Apud RICCI, Sandra. Os engenheiros e a cidade: São Paulo, 1904-1926. São Paulo: Dissertação de
Mestrado em História, PUC-SP, 2006, p. 63.
Nesse sentido, Maria Stella Bresciani lembra o quanto é freqüente na historiografia do urbanismo a idéia de que,
no caso brasileiro, houve uma importação inadequada e empobrecida de projetos idealizados em solo europeu (as
denominadas idéias fora do lugar), como se, face aos problemas específicos, “’nossos’ urbanistas não tivessem
conseguido pensar uma ‘solução nacional’, demonstrando, dessa maneira, sua incapacidade de pensar
autonomamente ‘nossa’ singularidade”. BRESCIANI, Maria Stella Martins. “Imagens de São Paulo: estética e
cidadania”. In: FERREIRA, Antonio Celso; LUCA, Tania Regina de; IOKOI, Zilda Grícoli (orgs.). Encontros
com a História: percursos históricos e historiográficos de São Paulo. São Paulo: EDUNESP, 1999, p. 36.
143
Para uma explanação mais detalhada do processo de urbanização da cidade e das mudanças do ponto de vista
arquitetônico, ver SEGAWA, Hugo. “São Paulo, veios e fluxos: 1872-1954”. In: PORTA, Paula (org.). História
da cidade de São Paulo. Vol. II. São Paulo: Paz e Terra, 2004, pp. 341-381.
144
Pequenas folhas como O Pirralho ou O Bilontra apontavam, de forma irônica, para os problemas decorrentes
da modernização, desde os violentos acidentes e atropelamentos envolvendo automóveis e bondes – além dos
constantes atrasos destes últimos – até o pretenso asseio do espaço público. Muitas vezes também faziam chistes
com as autoridades públicas. Em outras palavras, com “fortes traços de crítica social, aliados a inovações na
linguagem e nas ilustrações caricaturais, essa imprensa destoa radicalmente das revistas ilustradas de
variedades e entretenimento, como a Cigarra (1914) ou mesmo a Vida Moderna (1907), que primavam, no geral,
em representar, mediante a combinação do instantâneo fotográfico, da reportagem impactante, do comentário
rápido, da vida mundana e das crônicas ligeiras, a face mais civilizada da cidade, como um palco cujo cenário
teria que ser construído de acordo com o refrão republicano da ‘Celebração do Progresso’, em que tanto o
espaço público quanto o cidadão republicano foram idealizados; definindo-se determinadas condutas, novas
identidades comprometidas com um olhar classificador de uma imprensa voltada para a rapidez da ‘novidade’ e
a venda dos tablóides. JANOVITCH, Paula Ester. Preso por trocadilho: a imprensa de narrativa irreverente
paulistana de 1900 a 1911. São Paulo: Alameda, 2006, p. 18. Sobre o assunto, além da referida autora, ver
VILHENA, João Eduardo Cezar de. Metrópole na ponta do lápis: charges e urbanização na cidade de São Paulo
– 1900-1914. São Paulo: Dissertação de Mestrado em História Social, FFLCH-USP, 2007; SALIBA, Elias

38
ilustradas de variedades e entretenimento retratavam incessantemente as mudanças,
procurando transmitir ao leitor a imagem de uma metrópole europeizada e civilizada, em
constante progresso. O São Paulo Ilustrado, por exemplo, celebrava em suas páginas o
alargamento e ajardinamento de parte da antiga ladeira de São João, entre o Largo do
Paissandu e a Rua dos Timbiras, além dos melhoramentos da Várzea do Carmo145. Da mesma
maneira, a Ilustração Paulista, exaltando a remodelação da urbe paulistana, estampava
imagens do aprazível bairro de Higienópolis e as tomadas panorâmicas do Anhangabaú. Já a
Revista Ypiranga expunha ao público os edifícios suntuosos, a moderna Avenida São João, a
grandiosa Estação da Luz, o Jardim da Luz e a Praça da República 146.
Mas as mudanças ocorridas na região central não se limitavam ao aspecto físico. A
modernização também se expressou nos novos hábitos de consumo incorporados pela
burguesia cafeeira também provenientes do continente europeu. No contexto em que havia a
intenção, por parte dessa burguesia, de superação da herança colonial ibérica, considerada um
atraso à civilização, fazia-se, a seu ver, necessária a importação daquilo que soasse com o
“moderno”, ou seja, de tudo que fosse, nomeadamente, de origem inglesa ou francesa 147, pois
“a dinâmica da aquisição de padrões de luxo não pode ser separada do ideal de construção
da uma nação civilizada e moderna”148. Com efeito, o crescente comércio se dedicou à
introdução das últimas novidades advindas do outro lado do Atlântico:

O rol de produtos proclama os novos rumos da moda, tanto feminina, quanto


masculina; alimentos importados de luxo, mas também aqueles que representam
uma mudança profunda no seio da família, como os leites condensados, as conservas
e enlatados, os alimentos infantis, que substituem a amamentação; os perfumes e
sabonetes franceses e o apuro da higiene pessoal; móveis austríacos, cristais
Baccarat, porcelana de Sèvres e tapeçaria francesa.149

Era exatamente na região central de São Paulo onde o comércio dedicado às classes
dominantes paulistanas se localizava150. Já no ano de 1900, a Rua 15 de Novembro era vista
como a mais luxuosa, para a qual convergiam intelectuais, jornalistas, acadêmicos e

Thomé. Raízes do riso: a representação humorística na história brasileira: da Belle Époque aos primeiros tempos
do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 154-218.
145
MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revista: imprensa e práticas culturais em tempos de República, São Paulo
(1890-1922). São Paulo: EDUSP: Fapesp, 2008, p. 500.
146
Idem, Ibidem, p. 504.
147
OLIVEIRA, Milena Fernandes de. Consumo e cultura material, São Paulo “Belle Époque” (1890-1915).
Campinas, SP: Tese de Doutorado em Desenvolvimento Econômico, Instituto de Economia/UNICAMP, 2009, p.
329.
148
Idem, Ibidem, p. 17.
149
Idem, Ibidem, p. 137.
150
Cf. DEAECTO, Marisa Midori. Comércio e vida urbana na cidade de São Paulo (1889-1930). São Paulo:
SENAC, 2002, pp. 148-217.

39
excursionistas. A Rua da Quitanda concentrava os principais escritórios financeiros da capital.
Naquela região, importavam-se e vendiam-se os produtos dos considerados grandes centros
de cultura. As lojas se especializaram em variedades para o comércio da nova moda feminina
e masculina, ditadas pelas revistas dedicadas a difundir ao público as novidades da capital
francesa: a Casa Clark recebia seus mais finos clientes no número 37 da Rua 15 de
Novembro, e as principais lojas de confecção encontravam-se nas ruas Direita, como a Casa
Garnicelli, e São Bento. Nesse logradouro, de mais a mais, eram vendidas as maravilhas do
mundo moderno, desde máquinas para lavouras até utensílios destinados às residências, como
relógios, caixas de música e gramofones.
Nesse contexto, os bazares também estavam em voga. O Grand Bazar Parisien,
localizado no número 17 da Rua São Bento, importava para os mais abastados brinquedos,
artigos de perfumaria, jogos diversos, artigos para bilhares e outros. Ainda nessa rua, bem
como na Boa Vista, comercializavam-se aparelhos elétricos, ferragens e máquinas.
O crescimento da indústria química ainda trouxe farmácias, drogarias e casas de
instrumentos cirúrgicos, ópticos e destinados a dentistas, estabelecimentos localizados
nomeadamente nas ruas São Bento, Direita e Boa Vista. Lojas destinadas à comercialização
de produtos para o lar (móveis importados, colchões, pratarias, banheiras esmaltadas e
outros), casas de artigos musicais, joalherias, relojoarias, magazines dedicadas à venda de
bebidas (champanhes, vinhos, licores, conhaques), livrarias e ourivesarias igualmente
marcaram presença no Centro, como a Casa Fratelli Gabos, pequeno atelier de jóias situado
na Rua Boa Vista. Enfim, no intenso processo de modernização da cidade São Paulo, em que
se almejava equipará-la às principais metrópoles européias, constituiu-se em grande parte do
Centro todo um comércio luxuoso, destinado ao desfrute da burguesia cafeeira, em
contraposição ao comércio popular das ruas Florêncio de Abreu e 25 de Março, o qual
cresceria nas décadas seguintes151.
Assim como o comércio luxuoso, as opções de lazer cresciam e se diversificavam. À
medida que o hábito de comer fora recrudescia, nomeadamente em ocasiões especiais, cafés,
bares e restaurantes foram erigidos, caso do Café Pavarenti, na Rua 15 de Novembro, do Bar
Guanabara e do Restaurante Santino, na Boa Vista, para encontros dos hommes d’affaires ou
de intelectuais152. As audições musicais igualmente caíam no gosto da burguesia cafeeira:
pianistas, violinistas e cantores freqüentemente realizavam suas apresentações nos grandes

151
Idem, Ibidem, p. 191.
152
Idem, Ibidem, pp. 200-203.

40
salões paulistanos153.
Do mesmo modo, crescia o número de clubes privados destinados a práticas
esportivas, sobretudo o tênis, o remo, o ciclismo, a natação e os esportes hípicos, como o
Clube Atlético Paulistano, o Jockey Club e o Automóvel Club, todos freqüentados apenas
pelos mais abastados. A presença nesses lugares significava um sinal de distinção social: no
que tange aos espaços para a prática de turfe, por exemplo, “as várias referências às corridas
mostram que comparecer a um hipódromo era um acontecimento chique e distinto, e as
famílias do melhor meio social não deixavam de concorrer ao rendez-vous com suas toilettes
maravilhosas”154. Em consonância com a elitização de alguns esportes considerados finos, os
regulamentos dos clubes expressavam um caráter segregacionista. Nos espaços destinados ao
joga de péla ou pelota, malgrado a entrada gratuita, era permitido o ingresso apenas de
pessoas “decentemente trajadas” e a empresa possuía o direito de proibir a entrada de
qualquer um cuja presença julgasse ser inconveniente155.
As casas de espetáculo e os teatros, com preços bem elevados (o Polytheama, por
exemplo, cobrava Rs. 30$000 o camarote e Rs. 5$000 a cadeira 156), também foram se
multiplicando, tendo maior destaque o suntuoso Teatro Municipal, inaugurado em 1911,
símbolo maior do desejo das classes dominantes de ver a urbe paulistana europeizada.
Consagrado como ponto de encontro dos afortunados, foi construído no estilo eclético,
adornado com pinturas a ouro e um enorme lustre suspenso sobre a platéia contendo 700
pingentes de cristal e 220 lâmpadas. A sala do andar principal foi ornamentada “por
candelabros de bronze, aplicações de cobre dourado para iluminação, espelhos capitéis e
fustões dourados sobre os tetos. Suas escadas são de mármore branco e os balaústres em
mármore de Siena, inteiramente esculpidos”157. O teatro trazia ao público temporadas líricas,
teatrais e de dança, contando sempre com a apresentação de companhias estrangeiras.
Outra forma de lazer que com o passar do tempo conquistou a burguesia cafeeira foi a
ida ao cinema. Entre os últimos anos do século XIX e no início do XX, as projeções ainda
eram ambulantes, ocorrendo em lugares variados, desde teatros e circos até palcos de café-
concertos. Dividiam a atenção do público com outras formas de entretenimento, como

153
PIRES, Mário Jorge. Lazer e turismo cultural. Barueri, SP: Manole, 2002, p. 93
154
Idem, Ibidem, p. 94.
155
Idem, Ibidem, p. 95.
156
Idem, Ibidem, p. 90. Ainda que existissem alguns teatros que apresentavam operetas, peças cômicas e
números de dança e canto com preços mais populares. Idem, Ibidem, p. 92.
157
BERNARDES, Maria Elena. O estandarte glorioso da cidade: Teatro Municipal de São Paulo (1911-1938).
Campinas, SP: Tese de Doutorado em História, IFCH-UNICAMP, 2004, p. 54.

41
números circenses de malabarismo, prestidigitadores ou apresentações de dançarinas 158.
Contudo, a partir do ano de 1907, salas de cinema foram estabelecidas, e, durante a década de
1920, os negócios do ramo de exibição tomaram impulso definitivo, de forma que foram
abertos recintos os quais ostentavam luxo e sofisticação, com vistas a atrair uma platéia
pertencente às camadas mais abastadas da população. Com efeito, em contraposição às salas
de cinemas de bairros periféricos, mais baratos e freqüentados pela população pobre da
cidade, havia os cinemas da região central da cidade, recomendados às “boas moças” pela
grande imprensa, freqüentados pela burguesia cafeeira e inscritos “numa paisagem
aburguesada, decorados luxuosamente e que ofereciam pequenas orquestras nos salões de
entrada”159, caso do Cine Rosário e do Cine-Theatro Republica. A abertura de tais
estabelecimentos suntuosos dava ares de civilidade e modernização à paisagem urbana do
centro de São Paulo, bem como aos seus freqüentadores160.
O cinema, por sinal, era apenas um exemplo da série de máquinas, produtos e
equipamentos inventados durante a Revolução Científico-Tecnológica, ocorrida em meados
dos Oitocentos no continente europeu, que os habitantes da capital paulista foram
conhecendo. Para se ter uma idéia desse processo em curso, no ano de 1900 circulavam os
primeiros bondes da Light and Power; a iluminação a elétrica, cuja implantação foi iniciada
na década de 1880, substituiu em grande escala a iluminação a gás; em 1913, o número de
aparelhos telefônicos, presentes desde 1884, atingia a marca de 10.000 em todo o Estado161; e
os automóveis, pouco vistos nos primeiros anos dos Novecentos, já eram mais notados nas
ruas a partir da segunda metade da década de 1910, quando ultrapassaram a cifra das mil
unidades, chegando a 13.270 em 1927162.
Esses e muitos outros produtos decorrentes das inovações da tecnologia constituíam
por si mesmos uma novidade, de modo que por vezes o que mais chamava a atenção dos
apreciadores não era o conteúdo, mas sim o aparelho em si. A técnica era a verdadeira
atração. Como assevera Flora Süssekind, os primeiros anúncios do cinematógrafo davam
pouca atenção às cenas reproduzidas, concedendo grande destaque à descrição da máquina e
ao seu modo de funcionamento. O que se desejava ver, portanto, não eram as cenas de danças
158
FERRARESI, Carla Miucci. Papéis normativos e práticas sociais: o cinema e a modernidade no processo de
elaboração das sociabilidades paulistanas na São Paulo dos anos de 1920. São Paulo: Tese de Doutorado em
História Social, FFLCH-USP, 2007, p. 257.
159
Idem, Ibidem, p. 276.
160
Idem, Ibidem, p. 252.
161
LOVE, Joseph, op. cit., p. 130. No mais, em “1895, já havia 680 aparelhos instalados na cidade e se podia
telefonar para Santos. Por essa época [...] fazendeiros ricos faziam questão de ter telefone em suas propriedades
rurais”. Idem, Ibidem.
162
SÁVIO, Marco Antônio Cornacioni. A modernidade sobre rodas: tecnologia automotiva, cultura e sociedade.
São Paulo: EDUC, 2002, pp. 48-49.

42
ou brigas de galo, mas as ações espetaculares daquela novidade denominada cinematógrafo 163.
A chegada de tais produtos alterou significativamente as formas de percepção de boa
parte dos habitantes paulistanos. O cinematógrafo acostumou o olhar à reprodução mecânica
do movimento e o automóvel automatizava um modo de observação de tudo a sua volta como
se existissem apenas meras imagens passando ao lado. “Enquanto o cinema parecia tornar
ainda mais verazes as imagens técnicas, a movimentação dos automóveis, bondes e trens
dava aos objetos cotidianos contornos meio mágicos. Desrealizava-os subitamente”164.
Sua progressiva presença na capital paulista foi de tal forma que acabou por abafar e
até mesmo eliminar antigos sons que ainda podiam ser ouvidos na provinciana cidade do
século XIX, desde os sinos da igreja ou os chiados de carros de bois até o simples assobio dos
alfaiates165. Dessa maneira, as novidades tecnológicas vindas do continente europeu eram
claros exemplos do processo de urbanização e modernização em curso almejado pelas classes
dominantes, na medida em que sua gradativa presença expressa de maneira eminente o
processo de transformação da região do Centro de São Paulo, bem como a nova feição que
esta ia adquirindo:

Os batuques de escravos; as rodas de capoeira, de violeiros e de seresteiros; os


pregões das quituteiras, dos vendedores ambulantes e dos prestadores de serviços; o
som da passagem, pelas ruas e caminhos, das inúmeras tropas de mulas; as
discussões entre autoridades e mulheres pobres; os ruídos das lavadeiras nos
chafarizes públicos e todos os demais sons presentes na cidade durante o século XIX
foram se tornando, com o limiar do novo século, cada vez mais tênues,
imperceptíveis, frente aos ruídos dos trens, dos bondes e dos automóveis; frente aos
barulhos provocados pelas fábricas e pelos meetings; frente aos rumores das vozes
imigrantes e aos gritos frenéticos dos torcedores esportivos às margens do Tietê;
frente à difusão, pela indústria fonográfica, de novos ritmos musicais.166

Se os jornais da grande imprensa, malgrado sua apologia à modernização da cidade,


não deixavam de mostrar os problemas decorrentes desse processo tanto em notícias quanto
em espaços destinados à publicação de cartas de leitores contendo inúmeras reclamações (o
próprio diário A Capital possuía a Secção do Povo, espaço para o qual “foram freqüentemente
dirigidas reclamações sobre ‘águas podres estagnadas, lixo acumulado, falta de higiene’ em
várias localidades”167), as revistas de variedades não cansavam de exaltar os novos hábitos e

163
SÜSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de letras: literatura, técnica e modernização no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1987, p. 39.
164
Idem, Ibidem, p. 50.
165
APROBATO FILHO, Nelson. Kaleidosfone: as novas camadas sonoras da cidade de São Paulo. Fins do
século XIX – início do XX. São Paulo: EDUSP; Fapesp, 2008, p. 146.
166
Idem, Ibidem, p. 25.
167
SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. “História do conforto na cidade de São Paulo”. Anos 90. Porto Alegre, n.
14, dezembro de 2000, p. 170.

43
espaços de lazer da burguesia cafeeira, registrando os pic-nics bucólicos na Cantareira, as
tardes elegantes do hipódromo da Mooca ou os passeios pelo Triângulo168. A Terra Paulista,
por exemplo, fundada em 1920, retratava, por meio de matérias ilustradas com fotografias de
qualidade, o cotidiano refinado das classes dominantes paulistanas: as afortunadas senhoras e
senhoritas em compras pelas luxuosas lojas da Rua XV de Novembro, a abertura de novas
bombonieres na região do Triângulo ou o elegante chá oferecido por Zélia Street, esposa do
industrial Jorge Street169. Enfim, essas revistas colocavam o leitor frente a uma cidade que aos
domingos passeava no Jardim Público, assistia a matchs em velódromos, aplaudia as
apresentações no Polytheama, apreciava o botequim chic do Teatro Municipal e freqüentava
as elegantes soirées do Germânia170. Ao fazê-lo, matizavam a realidade, apresentando apenas
o lado sofisticado da cidade moderna, como se toda a urbe paulistana se resumisse à região
central e não houvesse desigualdades sociais, e “veiculando imagens conciliadoras de
diferenças, atenuando contradições, destilando padrões de comportamento, conformando o
público leitor às demandas convenientes à maior circulação e ao consumo daquele
impresso”171. Era como se toda a capital paulista estivesse presenciando uma fase de intenso
progresso e como se a modernidade fosse experimentada e apreciada por todos.
E foi no clima de celebração do progresso da cidade que se engendrou o mito
paulista172. Na Revista do Brasil, mensário fundado em 1916, por exemplo, eram publicados
artigos em que era louvada a Nação brasileira por meio da exaltação da extensão e fertilidade
das terras, além da diversidade da natureza. Contudo, nos textos, tal extensão era atribuída
exclusivamente aos bandeirantes, representados como aqueles que, embrenhando-se nas
matas, garantiram as dimensões continentais do território brasileiro. Desse modo, o período
colonial paulista foi imbuído de uma positividade, ao ser cunhada a figura do herói
bandeirante, desbravador, altivo, determinado e destemido que contribuiu enormemente para a
expansão territorial das terras brasílicas e, por conseguinte, a construção da Nação.
O engrandecimento do Estado de São Paulo enquanto berço dos bandeirantes, somado
à glorificação do fato de a proclamação da Independência ter ocorrido na então capitania e à
sua pujante economia cafeeira no cenário nacional, instaurou uma linha de continuidade que
afirmava a sua supremacia dos tempos coloniais ao alvorecer do século XX. Tal interpretação,
além estabelecer uma identificação entre a História de São Paulo e a História do Brasil,

168
MARTINS, Ana Luiza, op. cit., p. 127.
169
Idem, Ibidem, p. 504.
170
CRUZ, Heloísa de Faria. São Paulo em papel e tinta: periodismo e vida urbana, 1890-1915, op. cit., pp. 93-
94.
171
MARTINS, Ana Luiza, op. cit., p. 22.
172
Idem, Ibidem, p. 528.

44
distinguiu os paulistas enquanto herdeiros e continuadores dos bandeirantes, seus gloriosos
antepassados, e concedeu a São Paulo uma proeminência em relação aos demais entes da
Federação. Essa construção do passado contribuía não apenas “para explicar e justificar a
riqueza e a supremacia econômica então desfrutada por São Paulo, como também para
legitimar as pretensões da elite local de conduzir politicamente o país”173.
Entretanto, o sonho de ver uma São Paulo dentro do concerto dos países considerados
modernos não seria facilmente concretizado. Com o rápido crescimento populacional,
impulsionado principalmente por contingentes de imigrantes de procedências diversas, a
cidade tornou-se pluridimensionada, com múltiplas e descompassadas temporalidades e
espacialidades, acentuando antagonismos existentes e fermentando novos. Para a Metrópole
do café, vieram os negros recém-libertos, que vinham para a cidade desfrutar de sua
liberdade; os caipiras, que, oprimidos pelo avanço das fazendas, vinham realizar pequenos
serviços e vendas; e, por fim, os imigrantes, que aqui chegavam aos milhares, com o desejo de
construir uma vida melhor do que a que tinham nos seus países de origem174. Este caudal de
raças e culturas contribuiu para dar uma feição cosmopolita à metrópole que estava se
gestando.
Porém, na fase de aguda transformação e modernização da capital paulista, os
intelectuais e as classes dominantes tinham como perspectiva obliterar aquilo que poderia
obstruir o projeto modernizador, ou seja, eliminar as temporalidades, espacialidades e práticas
que, no seu entender, estivessem em descompasso com a modernidade. Com efeito, um dos
grandes rivais a ser combatido já estava identificado: os costumes pertencentes às culturas
populares175, encarados como símbolos de atraso, sendo que uma das práticas que mais sofreu

173
LUCA, Tania Regina de. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: EDUNESP, 1999,
p. 106. Todavia, é válido ressaltar que nem todos os intelectuais viam com bons olhos o processo de
modernização em curso, pois repudiavam os estrangeirismos incorporados aos hábitos da burguesia cafeeira.
Caso exemplar é a Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Segundo Antonio Celso Ferreira, a
publicação de artigos de pesquisas das genealogias de tradicionais famílias e de biografias consagrando grandes
personagens da época colonial paulista considerados ilustres (donatários, governantes, bandeirantes e outros) e
responsáveis por grandes realizações, denota “tanto o investimento grupal na tradição como a identificação
subjetiva do indivíduo com o passado regional, uma vez que muitos dos autores descendiam das pessoas ou das
famílias estudadas. Tal identificação era, quase sempre, o porto seguro para aqueles que se viam cercados por
forças velozes e desestruturadoras, advindas da modernização: o cosmopolitismo, a imigração, as classes
médias e populares, as multidões, a expansão urbana e a fugacidade dos valores sociais e morais”. FERREIRA,
Antonio Celso. A epopéia bandeirante: letrados, instituições, invenção histórica (1870-1940). São Paulo:
EDUNESP, 2002, p. 128.
174
Em 1925 São Paulo já era considerada a segunda cidade do Brasil e a terceira da América do Sul,
contabilizando oitocentos mil habitantes. Cf. PETRONE, Pasquale. “A cidade de São Paulo no século XX”. In:
Revista de História, São Paulo, n. 21/22, Janeiro-Julho, s.e., 1955.
175
Cultura popular aqui compreendida não enquanto algo em oposição binária à cultura erudita dominante,
dentro de uma perspectiva que supõe implicitamente que à hierarquia das classes ou grupos corresponde uma
hierarquia paralela de produções e hábitos culturais. Pensamos que, ao contrário, há uma circularidade entre as
duas esferas culturais, tal como está explicitado em BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no

45
tentativas de exclusão foi aquela ligada ao campo das crenças e das religiosidades distintas do
ideal preconizado pela Igreja Católica, os quais, desde os tempos coloniais, defrontaram-se
com os ritos religiosos oficiais176. No fim do século XIX e nas primeiras décadas do XX,
curandeiros, feiticeiros, pitonisas e benzedeiras exerciam suas práticas mágico-religiosas em
diversos distritos populares da cidade de São Paulo. Essas manifestações da religiosidade
popular sofreram um forte rechaço nesse período, tendo cumprido a imprensa um papel
significativo na desqualificação de seus adeptos. Por outro lado, a capital paulista também
recebeu a onda do espiritualismo moderno, que assolou os principais centros urbanos
brasileiros desde meados do século XIX. Do magnetismo animal às formulações espíritas de
Allan Kardec, as idéias de comunicação com os mortos, da imortalidade da alma e da
reencarnação foram bem recebidas pela maioria da cultura letrada. E os mesmos jornais que,
em nome da modernização da cidade, noticiavam as campanhas policiais promovidas contra
feiticeiros, curandeiros e pitonisas, fazendo o possível para eliminá-los, veiculavam, com
louvor, os feitos de praticantes das ciências ocultas e os livros lançados por espiritualistas
renomados, além de fazer propaganda de associações destes últimos177.
Dessa maneira, no contexto modernizador da cidade de São Paulo, a grande imprensa
exercia o papel de denunciar as práticas culturais que, segundo os cientistas e intelectuais,
poderiam perpetuar o “estado de ignorância” e “incultura”, herdados do passado e da
mestiçagem do povo brasileiro, impedindo assim o avanço à civilização. Em outras palavras,
arrogava para si a tarefa de orientar os paulistas em direção aos caminhos de uma vida em
conformidade com os padrões civilizatórios que se desejava implantar, conforme é possível
notar em um artigo publicado n’A Capital, com o sugestivo título de Missão da Imprensa.
Recuperando a antítese metafórica iluminista entre as palavras luz, sinônimo de sabedoria,
progresso científico, aperfeiçoamento do conhecimento e uso pleno da racionalidade, e
escuridão, termo representante das trevas da ignorância, da superstição, do lugar da não-
razão, da ausência da luz da ciência e do esclarecimento, o texto em questão alça a imprensa

Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da UnB, 1987. Com
efeito, entendemos, a partir de Roger Chartier, o conceito “cultura popular” não como objetos ou modelos
culturais destinados a uma determinada classe social, mas sim situá-lo no “espaço de enfrentamentos as relações
que unem dois conjuntos de dispositivos: de um lado, os mecanismos da dominação simbólica, cujo objetivo é
tornar aceitáveis, pelos próprios dominados, as representações e os modos de consumo que, precisamente,
qualificam (ou antes desqualificam) sua cultura como inferior e ilegítima, e, de outro lado, as lógicas
específicas em funcionamento nos usos e nos modos de apropriação do que é imposto” (CHARTIER, Roger.
“Cultura popular: revisitando um conceito historiográfico”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 16,
1995, p. 185).
176
Cf. SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil
Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
177
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Ritos de Magia e sobrevivência: sociabilidade e práticas mágico-
religiosas no Brasil (1890-1940). São Paulo: Tese de Doutorado em História Social, FFLCH-USP, 1997, p. 98.

46
ao posto máximo de guia e orientador da opinião pública, nomeadamente da população pobre,
vista como menos esclarecida, destituída de qualquer saber e que, portanto, deveria ser
conduzida pelos jornais a decidir pelos rumos corretos. A atividade jornalística, por
conseguinte, é revestida de uma heroicidade, pois à mesma caberia despertar e governar uma
parte da opinião pública vista como ignorante, levando-a rumo à civilização:

A medida que a luz da civilisação se vae diffundindo, espancando a escuridão do


atraso e da ronça humana, mais se vae alteando a poderosa força, o prestigio
incontrastavel do jornal como éco e reflexo do sentir do povo. Já hoje se aquilata do
grau de desenvolvimento de um meio pelo numero de imprensa que mantem. E
depois que se firmou definitivamente a assistencia jornalistica a todos os
phenomenos que se chocam na ordem social, o estudo destes ganhou fócos de
autoridade, illustrando o espirito popular e o preparando para tomar parte na critica
de todos os problemas.
Si algum resurgimento se nota nas camadas illetradas, mas ledoras, si um ésto de
actividade se constata nas massas populares que procuram intervir pela discussão
em todos os assumptos que interessam ás collectividades, deve-se substancialmente
á copiosidade dos jornaes que debatem, orientam, pregam e norteam o
sentimento publico, o espirito popular [grifo nosso].178

Entre os inúmeros costumes e hábitos que, naquele momento e segundo os


intelectuais, representavam a “escuridão do atraso”, podem ser citadas as práticas mágicas de
cunho popular exercidas na urbe paulistana. Aos olhos da cultura letrada, os saberes mágico-
religiosos, além de obstruírem a modernização de São Paulo, também se constituíam em
charlatanismo e exploração daquilo que os intelectuais à época denominavam como
“fanatismo” e “crendices populares”. Com efeito, os médicos e sanitaristas publicavam
obras reprovando as crenças em curas desse gênero, além de divulgarem relatórios que
mapeavam os lugares em que feiticeiros, curandeiros e cartomantes se faziam presentes em
grande número. Vários jornais igualmente denunciavam casos de feitiçaria, cartomancia e
curandeirismo, alertando a polícia para que as repreendesse. E um dos diários denunciadores
era A Capital.

1.3. Um jornal sensacionalista

Conforme afirmamos anteriormente, praticamente todo o conteúdo d’A Capital


consistia em casos de crimes como bigamia, assassinatos, violência sexual ou jogatina, além
de fatos estranhos e bizarros, ocorridos no Brasil e pelo mundo afora, noticiados com enorme
alarde por meio de narrativas com um estilo praticamente literário, o que caracteriza o diário

178
A Capital, “Missão da imprensa”, 11 de maio de 1919.

47
como uma publicação de cunho sensacionalista. O nascimento desse tipo de gênero de notícia,
segundo Danilo Angrimani179, é um tanto incerto. Desde finais do século XV, eram
publicados os occasionnels informando o público em notícias que tratavam desde guerras até
as ações do rei. Porém, a partir do século XVI, começou a surgir occasionnels que se
dedicavam a publicar exclusivamente os faits divers – acerca deste conceito veremos adiante
– relatando fatos extraordinários. Já na França do século XVII, circulavam as Nouvelles
Ordinaires e o Gazette de France, com estilo muito semelhante aos jornais sensacionalistas
feitos atualmente. Mas talvez seja no século XIX que podemos encontrá-lo. Naquele mesmo
país, os chamados canards, jornais ilustrados de uma ou mais páginas, faziam sucesso entre
público. Os mais procurados eram os que continham os chamados fait divers sobre
parricídios, crianças martirizadas, inundações, naufrágios e muitos outros fatos excepcionais
que rompiam com a ordem do cotidiano.
Nos Estados Unidos, tal forma de fazer notícia ganhou impulso: a imprensa
sensacionalista e os tablóides apareceram como modo de entretenimento, ao utilizarem como
conteúdo editorial o fait divers, fato que acarretou críticas por parte dos adeptos da chamada
alta cultura, na medida em que não encaravam o entretenimento com bons olhos,
considerando-o algo inculto, grosseiro, vulgar, não edificante e que não exigia esforço
intelectual para ser compreendido, ao contrário da arte180. Porém, malgrado as críticas, nesse
país foram surgindo diários dedicados à difusão das notas sensacionais, tendo sido o jornal
New York Sun o pioneiro. Fundado em 1833 por Benjamin Day, o referido periódico rompeu
com os moldes do jornalismo da época ao apresentar em suas páginas casos de crimes,
assassinatos, mortes, curiosidades e fatos bizarros narrados de maneira a atrair a curiosidade
do público leitor181.
No fim dos Oitocentos, despontaram dois jornais que moldaram o gênero
sensacionalista: o New York World e o Morning Journal. O Word, editado por Joseph
Pulitzer, foi o primeiro jornal em cores, tendo investido pesadamente em amplas ilustrações e
manchetes de tom sensacional. O sucesso foi tamanho que, em 1890, seu lucro atingia a
incrível cifra de US$ 1,2 milhão. Por sua vez, o Journal, propriedade de Albert Pulitzer,
irmão de Joseph, foi adquirido por William Randolph Hearst, pelo valor de US$ 180 mil, em
1895. Competindo entre si para obter mais leitores, ambos utilizaram como trunfo o

179
ANGRIMANI SOBRINHO, Danilo. Espreme que sai sangue: um estudo do sensacionalismo na imprensa.
São Paulo: Summus, 1995, pp. 19-20.
180
DEJAVITE, Fábia Angélica. “O poder do fait divers no jornalismo: humor, espetáculo e emoção”. In:
BARBOSA, Marialva (org.). Estudos de jornalismo. Campo Grande: INTERCOM, 2001, p. 206.
181
Idem, Ibidem, p. 207.

48
sensacionalismo. Neste contexto surgiu o que se conhece por “imprensa amarela”, em alusão
à cor do Yellow Kid, personagem da história em quadrinhos denominada Hogan’s Alley, do
New York World. O Yellow Kid era um menino calvo, desdentado, sorridente e orelhudo que
trajava uma camisola de dormir amarela e vivia em um gueto de Nova York entre outras
crianças igualmente com aparência estranha. Nas falas expressadas por meio de gírias e
escritas na sua camisola, estavam presentes observações críticas e satíricas com relação aos
usos e costumes da época. Posteriormente, o Yellow Kid passou a integrar as páginas do
Morning Journal, pois Hearst contratou alguns dos jornalistas de seu rival, e, entre eles, o
criador do referido personagem, Richard Felton Outcault, que passou a desenhá-lo no
Journal, ainda que Pulitzer tivesse mantido Yellow Kid, feito dali em diante por George Luks.
As características dessa “imprensa amarela” – algumas que ainda permanecem nas atuais
notícias sensacionalistas – eram, entre outras:

1) manchetes escandalosas em corpo tipográfico excessivamente largo, “garrafais”,


impressas em preto ou vermelho, espalhando excitação, freqüentemente sobre
notícias sem importância, com distorções e falsidade sobre os fatos; 2) o uso abusivo
de ilustrações, muitas delas inadequadas ou inventadas; 3) impostura e fraudes de
vários tipos, com falsas entrevistas e histórias, títulos enganosos, pseudociência; 4)
quadrinhos coloridos e artigos superficiais; 5) campanhas contra os abusos sofridos
pelas “pessoas comuns”, tornando o repórter um cruzado a serviço do
consumidor.182

Principal fonte de notícias, opinião e entretenimento para a maioria da população dos


EUA, os jornais, entre 1880 e 1890, ampliaram sua circulação em 135%. Por volta de um
terço dos diários dos 21 maiores centros metropolitanos se valiam do gênero sensacionalista e,
praticamente em toda grande cidade, o mais vendido era sempre aquele cuja linha editorial
seguia os parâmetros da “imprensa amarela”183, malgrado as sucessivas recriminações que o
jornalismo sensacionalista sofria por, de acordo com os críticos, apelar aos instintos humanos
mais baixos, obscurecer a razão, despertar o mau gosto e incitar o público leitor (formado,
segundo tais críticos, somente pela população pobre e menos instruída, representado naquele
contexto como indivíduos ignaros, sem capacidade crítica e facilmente manipulados) a
cometer atos violentos e ilícitos184. Esse pensamento derivava em grande parte da psicologia
social, nomeadamente a denominada psicologia das multidões, surgida na última década do
182
ANGRIMANI SOBRINHO, Danilo, op. cit., p. 22.
183
DEJAVITE, Fábia Angélica, op. cit., p. 207.
184
Ressalta ainda Mariza Romero que “o repúdio ao sensacionalismo pode ser considerado menos por sua
linguagem, por sua temática, mas principalmente por ser um jornalismo com parâmetros culturais fortemente
populares, organizado em torno de narrativas orais cujo universo incomoda a cultura culta”. ROMERO,
Mariza. Inúteis e perigosos: o “Diário da Noite” e a representação das classes populares. São Paulo, 1950-1960.
São Paulo: Tese de Doutorado em História, PUC-SP, 2008, p. 17.

49
século XIX, cujos pensadores, como os franceses Gustave Le Bon e Gabriel Tarde,
dedicaram-se a refletir acerca do fenômeno do crescente contingente populacional presente
nas grandes metrópoles européias, em virtude de sua industrialização. A despeito das
diferenças no pensamento dos autores supracitados, havia em comum uma interpretação
negativa acerca das multidões (sinônimo de “povo” e “classes populares”), vistas – dentro do
paradigma conservador da época, ao qual pertenciam também os psicólogos, que representava
as classes subalternas enquanto seres ainda constituintes da parcela animal da humanidade –
como impulsivas, instintivas, crédulas, irracionais, irascíveis, sem idéias próprias e altamente
sugestionáveis. Dessa forma, como as multidões seriam formadas por indivíduos de fraco
estado mental, as “alucinações coletivas” aconteceriam devido a uma primeira ação de um de
seus membros, prontamente reproduzida pelos outros, por imitação e contágio, daí a
facilidade de grandes líderes políticos lograrem influenciá-las185.
Da mesma forma, o sensacionalismo por aqui não ficou imune a críticas. Desde o final
do século XIX, a imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro de grande circulação começou a
incluir as chamadas “notas sensacionais”, que poderiam ser encontradas nos mais diversos
diários da época e naqueles que foram surgindo e obtendo popularidade nas primeiras décadas
dos Novecentos, inclusive grandes periódicos como a Gazeta de Notícias, o Jornal do Brasil,
O Estado de S. Paulo, o Correio da Manhã, o Diário Popular e A Gazeta186. Afinal, à época,
com a transformação da imprensa em empresa capitalista, o apelo ao sensacionalismo, com o
intuito de atrair o leitor, tomou grandes proporções187. O noticiário criminal ganhou destaque
nos periódicos supracitados e surgiram os primeiros repórteres que introduziram a crônica
policial, competindo por vezes, com as autoridades na apuração de crimes misteriosos. Na

185
Para mais detalhes, ver CONSOLIM, Márcia Cristina. Crítica da razão acadêmica: campo das ciências
sociais “livres” e psicologia social francesa no fim do século XIX. São Paulo: Tese de Doutorado em Sociologia,
FFLCH-USP, 2007; COCHART, Dominique. “As multidões e a comuna: análise dos primeiros escritos sobre
psicologia das multidões”. Revista Brasileira de História. São Paulo, vol. 10, n. 10, mar. 1990.
Esse tipo de juízo ainda se encontra muito presente no pensamento de alguns intelectuais das áreas das ciências
da comunicação e da psicologia. Nos discursos de alguns profissionais do jornalismo e dos campos de estudos
referidos anteriormente, há a idéia de que o noticiário sensacionalista existe apenas porque o chamado
“populacho” o aprecia, como se o leitor menos instruído não quisesse saber de política, mas sim de sangue,
crime, sexo e histórias da vida privada. Nesse sentido, para alguns psicólogos, prevalece ainda a noção de que o
referido público, “massa ignara”, ao tomar contato com tal forma de notícia, despertaria a propensão a atos
libidinosos e violentos. Para tanto, ver os textos de Darcy Arruda Miranda, Zuleica Sucupira Kenworthy,
Virgínia Bicudo, Cícero Christiano de Souza e Ramão Gomes Porão, disponíveis em MELO, José Marques de
(coord.). Jornalismo sensacionalista: documentos da primeira I Semana de Estudos de Jornalismo. São Paulo:
Editora Comunicações e Artes – ECA/USP, 1972, pp. 23-72.
186
GUIMARÃES, Valéria dos Santos. “Tensões e ambigüidades na crônica sensacionalista: o jornalismo no Rio
de Janeiro e São Paulo no início do século XX”. In: GRUNER, Clóvis & DeNIPOTI, Cláudio (orgs.). Nas
tramas da ficção: história, literatura e leitura. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008, p. 227.
187
Contudo, de forma alguma tencionamos repetir o preconceito de que isso seja típico somente do jornalismo
sensacionalista. Toda empresa jornalística produz para atingir um dado mercado, “seja ele popular ou de elite”.
AMARAL, Márcia Fraz. Jornalismo popular. São Paulo: Contexto, 2006, p. 51.

50
capital paulista, a “aparição da imprensa sensacionalista na década de 1910 (A Capital e
mesmo O Combate) vem radicalizar esses traços”188. Já na década de 1920, no Rio de
Janeiro, foram criados jornais dedicados somente ao tipo de conteúdo sensacionalista, tais
como, por exemplo, a Manhã (1925) e a Crítica (1928), ambos de Mário Rodrigues.
Abandonando “as longas digressões políticas, os jornais passaram a exibir em manchetes,
em páginas em que editavam, em profusão, ilustrações e fotografias, os horrores
cotidianos”189. No entanto, a imprensa sensacionalista em terras brasileiras igualmente era
avaliada como um modo de escrita capaz de induzir os leitores a atos desvairados190, além de
ter sido entendida como grosseira devido à ausência de compromisso com a verdade e os
valores éticos. Seria o ramo da profissão jornalística em que atuariam apenas os maus
repórteres, classificados como sórdidos, inescrupulosos, sem caráter e preocupados
exclusivamente com o prestígio profissional em detrimento do compromisso com a
informação191.
Ao folhear as páginas da Gazeta de Notícias ou d’O Estado de S. Paulo, o leitor se
deparava com a importância que o noticiário de grandes crimes narrados de modo
sensacionalista tomava quando lia histórias de pequenos roubos, atuações de quadrilhas,
homicídios e graves delitos sucedidos pelo mundo afora. Porém, as narrativas de crimes não
se estabeleceram por aqui de forma isolada. Pelo contrário, em terras brasílicas, o
sensacionalismo, da mesma maneira que do outro lado do Atlântico e nos EUA, ao chegar às
páginas dos jornais, encontrava-se imerso em um ambiente literário propício. Desde a década
de 1870, por influência dos jornais franceses, alguns diários brasileiros publicavam as
“crônicas judiciárias”, tipo de narrativa folhetinesca que relatava crimes julgados nos
tribunais de júri. Descreviam com pormenores as sessões, desde os apartes dos advogados até
a empolgação do público presente, muitas vezes inventando detalhes, além de publicarem
trechos dos processos192. As crônicas faziam parte de um boom de publicações de literatura de
crime existente entre 1870 e 1920, divulgada em formatos de volumes, folhetins e imagens

188
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: EDUSP, 2001, p.
26.
189
BARBOSA, Marialva e ENNE, Ana Lúcia Silva. “O jornalismo popular, a construção narrativa e o fluxo do
sensacional”. Eco-Pós. Rio de Janeiro, vol. 8, n. 2, agosto-dezembro 2005, p. 69.
190
Cf. GUIMARÃES, Valéria dos Santos. “Leituras suicidas: análise de uma conferência de Gilberto Amado de
1910”. In: Anais do XVII Encontro Regional de História da ANPUH/SP – O lugar da História. Campinas, SP:
UNICAMP, 2004.
191
Idem. “Tensões e ambigüidades na crônica sensacionalista: o jornalismo no Rio de Janeiro e São Paulo no
início do século XX”, op. cit., p. 239.
192
PORTO, Ana Gomes. Novelas sangrentas: literatura de crime no Brasil (1870-1920). Campinas, SP: Tese de
Doutorado em História, IFCH-UNICAMP, 2009, p. 24.

51
(em periódicos e no cinematógrafo)193. Nas diferentes histórias de crimes e criminosos era
essencial seu caráter de veracidade. Por mais que a narrativa fosse apenas fictícia, havia um
apelo ao verossímil, daí a utilização de um encadeamento lógico e plausível dos
acontecimentos. Um recurso literário recorrente nesse modo de narrativa era a recorrência ao
“sensacional”194, algo intrínseco à literatura de crime do período compreendido entre 1870 e
1920. O “sensacional” emanava do apelo “exagerado ao real. Assim, cenas sangrentas,
descrições de cadáveres e delineação do momento do crime eram sensacionais por se fixarem
em contar os fatos nas suas minúcias”195, criando um ambiente de suspense e mistério para
causar emoções e sensações no leitor. Em dados momentos, a demasia no emprego da estética
do sensacional acabava por engendrar cenas que mais se assemelhavam a situações
inverossímeis196.
Como resultado, histórias de assassinatos horrendos, ações de quadrilhas e biografias
das façanhas de bandidos foram publicadas por editores e tipografias. Algumas narravam,
com elementos ficcionais, famosos casos verídicos veiculados exaustivamente pelos jornais.
A título de exemplo, o assassinato, em 1873, na cidade de São Luís do Maranhão,
empreendido pelo sexagenário desembargador Pontes Visgueiro com a ajuda de seu escravo
Luís (em troca de alforria) e de outro cúmplice chamado Guilhermino (em troca de dinheiro),
de Maria da Conceição, amante do desembargador e cujo corpo fora esquartejado para caber
no pequeno caixão, enterrado no quintal do mesmo; e o roubo de uma joalheria situada à Rua
da Carioca seguido do estrangulamento dos dois sobrinhos do proprietário do
estabelecimento, Jacob Fuocco, perpetrado por uma quadrilha chefiada pelo italiano Eugênio
Rocca, no ano de 1906, também no Rio de Janeiro, foram enredos, respectivamente, dos
livros Maria da Conceição, a vítima do desembargador Pontes Visgueiro, publicado no Rio
em 1873, e Os estranguladores do Rio ou o crime da rua da Carioca, impresso pela
Tipografia Luiz Miotto em 1906, da lavra de Abílio Soares Pinheiro 197.
Mas, antes de prosseguirmos, faz-se necessária uma questão: o que se entende por
sensacionalismo? Consideramos aqui o jornalismo sensacionalista, em primeiro lugar, como
um gênero que apela ao extraordinário, foge do comum, aproximando-se do inominável: é,

193
Idem, Ibidem, p. 46.
194
Na literatura, o termo “sensação” não denotava um gênero literário específico ou uma categoria fechada e
fixa. Era utilizado por autores, editores e livreiros, nos reclames em jornais, para fisgar a curiosidade do leitor,
indicando-lhe o conteúdo do livro que estava por vir: dramas emocionantes, conflituosos, apinhados de violentas
mortes, crimes apavorantes e eventos imprevisíveis. EL FAR, Alessandra. Páginas de sensação – literatura
popular e pornográfica no Rio de Janeiro (1870-1924). São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 14.
195
PORTO, Ana Gomes, op. cit., p. 7.
196
Idem, Ibidem.
197
Idem, Ibidem, pp. 4-5.

52
enfim, o sensacional. E, em segundo, como “um tipo de notícia que apela às sensações, que
provoca emoção, que indica uma relação de proximidade com o fato reconstruído exatamente
a partir de uma memória dessas sensações”198. Sua linguagem é coloquial, marcada pela
oralidade, sendo empregadas gírias, figuras de linguagem e expressões de fácil entendimento
para o mais rudimentar leitor. Por meio da narrativa, a notícia é dramatizada, assemelhando-se
a um folhetim, o que, por diversas vezes, acaba por transformá-la em mero entretenimento.
Como conseqüência, a informação desejável não é aquela que produz conhecimento, mas sim
a que engendra um efeito estético e dramático do fato noticiado e de seus personagens 199. O
noticiário sensacionalista, com efeito, sentimentaliza as questões sociais, cria a penalização no
lugar da reação de descontentamento e se constitui num mecanismo reducionista que
particulariza os fenômenos sociais200. Procura-se, assim, apenas despertar sensações no leitor,
tornando a notícia um mero entretenimento, no lugar da informação e do conhecimento 201.
Para tanto, nos dizeres de Marialva Barbosa, ao dissertar acerca do aspecto narrativo da
notícia, o jornalista-narrador

conta “o que se passou efetivamente” ou explica de que forma tomara conhecimento


daqueles fatos, mas, sobretudo, transporta para o relato algo que já é, de alguma
forma, do conhecimento do público. Outra característica é a ênfase aos detalhes
singulares. Ao particularizar esses detalhes, o narrador constrói uma seqüência
textual em que o leitor também pode se visualizar. Lugares conhecidos, relatos
comoventes de fatos que adquirem a marca da excepcionalidade. O fato e a trama
evocam uma realidade, tragédias que não puderam ser presenciadas, mas que foram
sentidas por intermédio da narrativa produzida pelos repórteres, que passam a ver e
ouvir por delegação e outorga desses mesmos leitores. 202

Narrador onisciente e onipotente, o jornalista “recompõe a trama, anterior ao fato


principal, destacando elementos que conduzem à reflexão e à participação do leitor na
apreensão do sentido daquele texto”203. Os fatos descritos, envolvendo as tragédias diárias da
cidade, transportam aos textos uma cidade real, com lugares existentes e personagens

198
BARBOSA, Marialva e ENNE, Ana Lúcia Silva, op. cit., p. 67.
199
AMARAL, Márcia Franz, op. cit., p. 98.
200
MARCONDES FILHO, Ciro. O capital da notícia. São Paulo: Ática, 1989, p. 18.
201
Entretanto, como assevera Márcia Amaral, todo processo de comunicação é sensacionalista, pois
fundamentalmente mexe com sensações físicas e psíquicas. No mais, é impossível não trazer à tona os aspectos
trágicos de um acontecimento por si mesmo dramático, como um tsunami ou uma chacina. Os fatos sensacionais
não são sinônimos de sensacionalismo. “O jornalismo tem a missão de mostrar o sofrimento gerado por uma
catástrofe, um fato violento ou uma injustiça, mas o drama é decorrente do fato em si, não precisa ser forjado
pelo jornal”. AMARAL, Márcia Franz, op. cit., p. 120. O sensacionalismo é exatamente a exacerbação do lado
dramático de um acontecimento, aumentando o foco sobre a tragédia pessoal, em detrimento do contexto
histórico-social mais amplo do evento.
202
BARBOSA, Marialva e ENNE, Ana Lúcia Silva, op. cit., p. 73.
203
BARBOSA, Marialva. “Jornalismo popular e o sensacionalismo”. Verso e Reverso, Rio Grande do Sul,
UNISINOS, ano XVIII, 2004, n. 39. Disponível em:
http://www.versoereverso.unisinos.br/index.php?e=3&s=9&a=31. Acessado em 15/02/2008.

53
identificáveis. A sociedade parece de tal maneira contida nas narrativas que o leitor tem a
impressão não só de estar em contato permanente como também de participar dessa
realidade204. Como vimos anteriormente em Michel de Certeau, o texto, em seu processo de
construção, compõe um novo mundo, mas um mundo fabricado. Nas páginas do jornal,
“compondo o seu texto a partir de um mundo, o repórter gera um novo mundo”205. Mundo
esse que mescla realismo e romance, uma vez que a estrutura da narrativa se assemelha aos
folhetins, ainda que os personagens sejam provenientes da realidade. Entretanto, a mistura
entre ficção e realidade não pode ser efetuada com exageros na descrição e na fantasia, pois,
caso contrário, corre-se o risco de se transformar a notícia em mero folhetim. A edição
fantasiosa deve ser oferecida sob determinados padrões, sendo a verossimilhança a principal
regra a ser seguida206.
Os títulos em letras garrafais são acompanhados de pequenos subtítulos que resumem
em breves palavras o conteúdo do texto, bem como, dependendo do nível do aparato
tecnológico do jornal, de ilustrações e fotografias da cena do crime e/ou dos personagens
envolvidos. “Ao lado da imaginação criadora, colocada em evidência com a descrição da
cena, assiste-se à reconstrução da tragédia ao visualizar a imagem. A imagem induz à
sensação do olhar”207. Palavras e imagens se juntam para trazer diariamente cenas de
horrores da vida cotidiana: incêndios, estupros, adultérios, atropelamentos, homicídios,
latrocínios, suicídios e mais dezenas de temas envolvendo dramas humanos.
As notícias sensacionais, no mais, por meio da estrutura narrativa dos melodramas,
introduzem os leitores, movidos pelo inusitado da trama, em ambientes alheios, de modo que
são transportados à cena do acontecimento, tornando-se personagens, além de se identificarem
com a tragédia cotidiana de uma realidade, que pode ser, ou não, a sua. O leitor sente
emoções, podendo se comover e se aproximar, na dor e no medo, das vítimas. Em outras
palavras, na leitura de uma narrativa que apela a valores emocionais, pode sentir compaixão,
horror, medo e muitas outras sensações, frente à realidade romanceada que lhe é apresentada.
“O público é, assim, movido tanto pelo inusitado da trama quanto pela participação – ainda
que indireta – na vida daqueles personagens”208. Enfim, o sensacionalismo constitui um tipo
de noticiário que permite ao leitor liberar desejos, temores e horrores. Nos dizeres de
Marialva Barbosa, é exatamente aquele desejo do extraordinário e do excepcional, presente

204
Idem, Ibidem.
205
Idem, Ibidem.
206
Idem, História cultural da imprensa: Brasil, 1900-2000, op. cit., p. 50
207
Idem, Ibidem, p. 67.
208
Idem, Ibidem, p. 50.

54
em todos os grupos sociais, que o gênero sensacionalista explora209. Como diz Edgar Morin,
“é esse universo de sonho vivido, de tragédia vivida e de fatalidade que valorizam os jornais
modernos do mundo ocidental”210.
Um modo peculiar de narrativa muito próximo ao gênero sensacionalista é o chamado
fait divers, que, etimologicamente, remete à notícia do dia, ou fato do dia. Seus antepassados
foram, como vimos anteriormente, os occasionnels, pequenos folhetos de informação
impressos grosseiramente surgidos no fim do século XV e que desde meados do século XVI
se destinaram a narrar acontecimentos extraordinários, e os canards do século XIX, folhas
não periódicas impressas com mais qualidade e maior número de exemplares, além de
compostas por textos contendo títulos em letras em negrito e sempre acompanhados por
imagens desenhadas de maneira mais cuidadosa, com o formato variando entre um exemplar
contendo apenas uma página até uma brochura de uma quinzena de páginas. Ambos traziam
sempre notícias de fatos sensacionais, geralmente com invenções de detalhes, sendo que, com
o passar do tempo, os temas se modificaram. Entre os séculos XVI e XVII, nos occasionnels,
eram oferecidas histórias de aparições diabólicas, monstros e outros fenômenos sobrenaturais
– sempre como se fossem verídicas –, ao passo que, a partir de meados do século XVIII,
traços humanos foram inseridos em alguns textos, por meio da divulgação de histórias
contando grandes façanhas de determinados homens tratados como célebres heróis (o feito do
sargento Gillet, o qual salvou uma mulher atacada por ladrões de estrada, por exemplo), para
culminar, nos canards do século XIX, em notícias de crimes de violência sexual e
assassinato211.
Mas foi em meados do século XIX, na França, que o termo fait divers passou a ser
utilizado, graças a Moïse Polydore Millaud, criador do Le Petit Journal, cujo primeiro
número circulou no dia primeiro de fevereiro de 1863. O diário de Millaud foi o pioneiro da
pequena imprensa, destinado “às novas classes sociais que aderiram à leitura e ao prazer de
um novo romanesco multiplicado pelas folhas baratas e rapidamente divulgadas”212. Já em
1836, Émile de Girardin quis expandir o público leitor de jornais, restrito unicamente àqueles
que podiam pagar as caras assinaturas. Ao fundar o Le Siècle e o La Presse, lançou as bases
da grande imprensa. Seus jornais possuíam preços mais baratos, assuntos mais leves e espaços
para entretenimento, daí Girardin ter inserido o romance-folhetim, histórias em série no estilo
“continua no próximo capítulo”, localizadas no rodapé de ambos os diários e que

209
Idem, “Jornalismo popular e o sensacionalismo”, op. cit.
210
MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997, p. 100.
211
DUBIED, Annik & LITS, Marc. Le fait divers. Paris: Presses Universitaires de France, 1999, pp. 6-20.
212
MEYER, Marlyse, op. cit., p. 97.

55
contribuiram para o sucesso de vendas. Não obstante, o público de Girardin era
eminentemente burguês. Por isso o caráter inovador do Le Petit Journal: destinar-se à
população pobre francesa. Investindo sobre um público leitor que não fosse aquele formado
pela burguesia, o novo jornal de Millaud era encontrado em todas as cidades francesas,
vendido de forma avulsa por apenas um sou. Suas tiragens atingiram a cifra de 262.369
exemplares em fevereiro de 1866, em contraposição aos 33 mil exemplares de julho de 1863.
Além do preço, o diário de Millaud, bem como aqueles que, inspirados no Le Petit Journal,
foram surgindo posteriormente, utilizou-se de outra estratégia para alcançar seu público leitor:
a publicação de folhetins e de uma tradicional modalidade de informação popular, a saber, o
canard, doravante veiculado nas páginas do Petit Journal e rebatizado como fait divers. A
partir dali, e com a crescente publicação de outros jornais com preços acessíveis, feitos
segundo os mesmos moldes do jornal de Millaud, os canards perderam espaço para a grande
imprensa até desaparecerem definitivamente. Nos grandes jornais populares parisienses,
foram desenvolvidos departamentos específicos em que atuavam os fait diversiers,
incumbidos de preparar as matérias que seus colegas organizariam 213.
O fait divers é uma notícia extraordinária transmitida em forma romanceada214, ou
seja, um relato romanceado da vida real215. Consiste na combinação de formas tradicionais de
informação com o melodrama e o suspense do romance de folhetim. Seus críticos, sob
influência da psicologia social, viam no fait divers uma informação perigosa, capaz de induzir
seus leitores a cometerem os mesmos atos violentos lidos nos jornais216. Entretanto, a despeito
das críticas tanto na Europa quanto no Brasil, na virada do século XIX para o XX, a imprensa
diária das grandes cidades, como Rio de Janeiro e São Paulo, abriram espaços, em suas
páginas, para a veiculação de noticias diversas, narradas em forma de melodrama, com o
intuito de atrair leitores217.
Podemos ainda caracterizar o fait divers como uma narrativa de tom extraordinário,
romântico e dramático, repleto de emoção, com toques de ficção utilizados para tornar a
notícia mais atraente ao leitor, suscitando-lhe emoções. As histórias são extremamente
estereotipadas: os fatos narrados são, de acordo com seus títulos, sempre apresentados como

213
DUBIED, Annik & LITS, Marc, op. cit., p. 21.
214
MEYER, Marlyse, op. cit., p. 98.
215
Idem, Ibidem, p. 94.
216
Cf. M’SILI, Marine. Le fait divers en République: Histoire sociale de 1870 à nos jours. Paris: CNRS Éditions,
2000, pp. 21-29; KALIFA, Dominique. L’encre et le sang: récits de crimes et société à la Belle Époque. Paris:
Fayard, 1995, pp. 223-233.
217
GUIMARÃES, Valéria. “Os dramas da cidade nos jornais de São Paulo na passagem para o século XX”.
Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 27, n. 53, 2007, p. 324

56
“prodigiosos”, “terríveis”, “horríveis”, “espantosos” e “abomináveis”218. Para Morin, no
fait divers, o limite do real ou do inesperado, o bizarro, o crime, o acidente, a aventura
irrompem na vida cotidiana. As proteções da vida normal são rompidas por acidentes,
catástrofes, crimes, paixões, ciúmes, sadismos. “O universo do fait divers tem em comum com
o imaginário (o sonho, o romance, o filme) o desejo de enfrentar a ordem das coisas, violar
os tabus, levar ao limite, à lógica das paixões”219. O fait divers transporta o leitor ao mundo
dos sonhos, das fantasias e dos medos.
A intenção é entretê-lo, e não trazer informação. Como diz Angrimani, pode “suscitar
a seus leitores toda a gama de emoção, funcionando no limite da ambigüidade que garante
sua significação duvidosa”220. Sua linguagem é carregada de oralidade. Apesar de não fazer
parte da cultura oral, mas sim constituir-se em um texto escrito, o fait divers incorpora
expressões típicas do universo da oralidade para tornar a leitura familiar ao leitor. Sua
linguagem é caracterizada pelo uso de expressões formulares, lugares comuns, repetições,
exageros, provérbios e violência explícita. No que tange ao estilo, a fórmula é sempre a
mesma, afinal, não “se quer inovar, longe disso, se quer reproduzir um modelo bem
conhecido, sem sofisticações ou dificuldades, propiciando um entendimento imediato” 221. Os
temas dos acontecimentos apresentados tragicamente são variados. De acordo com a definição
proposta no século XIX, por Pierre Larousse, no Grande Dicionário Universal, o fait divers
abrangeria casos como

pequenos escândalos, acidentes de carro, crimes terríveis, suicídios de amor,


operários caindo do quinto andar, roubo a mão armada, chuvas torrenciais,
tempestades de gafanhotos, naufrágios, incêndios, inundações, aventuras divertidas,
acontecimentos misteriosos, execuções, casos de hidrofobia, antropofagia,
sonambulismo letargia. Ampla gama de atos de salvamento e fenômenos da
natureza, como bezerros de duas cabeças, sapos de quatro mil anos, gêmeos
xipófagos, crianças de três olhos, anões extrordinários. 222

Desse modo, o fait divers refere-se a acontecimentos múltiplos. Dentro deste conceito,
podemos enumerar tantos outros fatos. Como afirma Roland Barthes, é o inclassificável, o
refugo desorganizado das notícias informes223. Em outras palavras, é a notícia de ordem não
classificada em face de um catálogo conhecido (política, economia, cultura e outros). No

218
DUBIED, Annik & LITS, Marc, op. cit., p. 9.
219
MORIN, Edgar, op. cit., p. 78.
220
ANGRIMANI SOBRINHO, Danilo, op. cit., p. 28.
221
GUIMARÃES, Valéria dos Santos. “Tensões e ambigüidades na crônica sensacionalista: o jornalismo no Rio
de Janeiro e São Paulo no início do século XX”, op. cit., p. 237.
222
Apud ANGRIMANI SOBRINHO, Danilo, op. cit., p. 25.
223
BARTHES, Roland. Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva, 1966, pp. 57-58.

57
mais, ainda de acordo com o semiólogo francês, distingue-se por ser uma informação total,
imanente, contendo em si todo o seu saber. Não remete a nada além de si próprio.
Evidentemente, “seu conteúdo não é estranho ao mundo: desastres, assassínios, raptos,
agressões, acidentes, roubos, esquisitices, tudo isso remete ao homem, à sua história, à sua
alienação, a seus fantasmas, a seus sonhos, a seus medos”224. Mas não é preciso conhecer
nenhum dado do mundo real para consumi-lo. Tudo é fornecido em um fait divers: as
circunstâncias, as causas, o passado e o desenlace, não remetendo a nada de implícito, a
contextualização alguma225. O fait divers encerra uma estrutura fechada, a partir da oposição
de dois termos, ou notações:

Eis pois uma estrutura fechada. Que acontece no interior dessa estrutura? Um
exemplo, o menor possível, o diria talvez. ‘Acabam de limpar o Palácio da Justiça’.
Isso é insignificante. ‘Não o faziam há cem anos’. Isso se torna um fait-divers. Por
quê? Pouco importa a anedota (não se poderia encontrar menor do que esta); dois
termos são opostos, que apelam fatalmente para uma certa relação, é a problemática
dessa relação que vai constituir o fait-divers; a limpeza do Palácio de Justiça, de um
lado, e sua raridade, de outro, são como os dois termos de uma função: é essa função
que é viva, é ela que é regular, portanto inteligível.226

Assim, não há um fait divers composto por apenas uma notação: é necessário que
existam duas notações opostas que comportem a certeza de uma relação entre ambas. E é a
problemática desta relação que constitui um fait divers. De acordo com Barthes, todas as
relações imanentes a este podem ser reduzidas a dois tipos. O primeiro é o fait divers de
Causalidade, apresentando duas manifestações: causa perturbada e causa esperada. No
primeiro caso, ocorre o desvio de causalidade:

[...] em virtude de certos estereótipos, espera-se uma causa, e é outra que aparece:
“Uma mulher esfaqueia seu amante”: crime passional? Não. “Eles não se entendiam
em matéria de política”. “Uma empregada rapta o bebê de seus patrões”: para obter
um resgate? Não. “Porque ela adorava a criança”. “Um assaltante ataca mulheres
solitárias”: sádico? Não. “Simplesmente ladrão de bolsas”. Em todos esses
exemplos, vê-se bem que a causalidade revelada é de certa forma mais pobre do que
a causa esperada; o crime passional, a chantagem, a agressão sádica têm um longo
passado, são fatos pesados de emoção, com relação aos quais a divergência política,
o excesso de afeição ou o simples roubo são móveis irrisórios; existe, com efeito,
nesse gênero de relação causal, o espetáculo de uma decepção; paradoxalmente, a
causalidade é tanto mais notável quanto mais é decepcionada.227

Desse modo, na situação em que ocorre a causalidade perturbada, “a excepcionalidade

224
Idem, Ibidem, p. 59.
225
BARTHES, Roland. Essais critiques. Paris: Éditions du Seuil, 1964, p. 189.
226
Idem, Crítica e verdade, op. cit., p. 59.
227
Idem, Ibidem, p. 62.

58
está localizada no porquê da factualidade”228. Este desvio de causa ocorre pelo fato de que a
mesma aparece fatalmente penetrada por uma força estranha, a saber, o acaso, de forma que,
quando revelada, parece surpreendente ao leitor, afinal, é mais pobre do que o esperado. Com
efeito, faz-se presente o espetáculo de uma decepção, e a causalidade decepcionada é
espetáculo espantoso, pois, conforme explicitado no trecho acima, a causalidade constitui-se
em algo cada vez mais notável na medida em que se caracteriza como inesperada,
decepcionada: “para pequenas causas, grandes efeitos”229. No entanto, quando a causalidade
é normal, esperada, a excepcionalidade desloca-se da relação entre ambas as notações para
enfatizar os protagonistas. A dramaticidade é centrada no dramatis personae, essências
emocionais encarregadas de vivificar o estereótipo, tais como a mãe, o velho e a criança, que
simbolizam a fragilidade e a pureza humanas230.
O outro tipo de fait divers é o de Coincidência, o qual se subdivide em Repetição e
Antítese. No primeiro tipo, a repetição de uma factualidade (“Uma joalheria foi assaltada
três vezes”) sem uma lógica histórica remete-nos à noção de coincidência 231, levando a
imaginar uma causa desconhecida, “tanto é verdadeiro que na consciência popular o
aleatório é sempre distributivo, nunca repetitivo: o acaso deve variar os acontecimentos; se
ele os repete, é que quer significar qualquer coisa através deles: repetir é significar”232. Já
no segundo tipo, aproximam-se dois termos, ou conteúdos, qualitativamente distantes, como,
por exemplo, “uma mulher põe em fuga quatro gangsters”, ou “pescadores islandeses
pescam uma vaca”. Como aponta Barthes, há uma distância lógica entre a pretensa fraqueza
da mulher e o número de gangsters, bem como entre a pesca e a vaca. Cada termo pertence,
em princípio, a um percurso autônomo de significação, mas “a relação de coincidência tem
por função paradoxal fundir dois percursos diferentes em um único percurso”233.
Tomando como referência o conceito formulado por Barthes, podemos estabelecer
uma diferença entre a notícia sensacionalista e o fait divers, malgrado ambos possuírem
muitas semelhanças. Se os dois gêneros apelam para emoções e sensações, chegando a
constituir uma forma de entretenimento, a página do fait divers é a única, no jornal, que não
chega a envelhecer. Dito de outro modo, ao passo que é impossível lermos uma notícia de um
jornal antigo tratando de política sem recorrermos ao contexto e ao conhecimento histórico,

228
RAMOS, Roberto. “Roland Barthes: semiologia, mídia e fait divers”. Revista FAMECOS, Porto Alegre, n.
14, 2001, p. 125.
229
BARTHES, Roland. Crítica e verdade, op. cit., p. 62.
230
RAMOS, Roberto, op. cit., p. 125.
231
Idem, Ibidem, p. 126.
232
BARTHES, Roland. Crítica e verdade, op. cit., p. 64.
233
Idem, Ibidem.

59
inversamente, a leitura de um fait divers ainda pode, cem ou duzentos anos depois, acarretar
os mesmos arrepios, provocar as mesmas reações emotivas, na medida em que o relato “desse
tipo de crônica se caracteriza por sua temporalidade e constitui uma informação ‘imanente’,
total, que contém em si mesma todo seu saber”234.
Roland Barthes nos fornece um exemplo claro. Eis um assassinato: se ocorreu por
motivos políticos não é um fait divers, pois o assassinato escapa desse conceito cada vez que
as razões forem exógenas. Com efeito, um homicídio político é sempre uma informação
parcial, já que precisamos apelar ao contexto em que teve lugar, mas um assassinato por
outras razões pode não sê-lo se for prescindível nos remetermos a uma conjuntura exterior ao
texto para compreendê-lo235. Para apreendermos o conteúdo de uma notícia sensacionalista,
faz-se imperioso retomarmos alguns dados da realidade política, social e econômica que
permeia o evento descrito, ao passo que em um fait divers nada externo a ele é imprescindível
para o apreciarmos. No nível da leitura, tudo é fornecido no fait divers: as circunstâncias, as
causas, o passado, o desfecho, a duração e o contexto, não remetendo a nada de implícito,
assemelhando-se a um mero conto236. Dito de outro modo, entre a narrativa de um assassinato
por meras questões de ciúmes (algo existente em qualquer lugar ou momento histórico) e um
assassinato político, existe um sutil e pequeno hiato.
Por fim, vale ressaltar que o fait divers é precisamente uma narrativa curta, enquanto
uma notícia sensacionalista não necessita, essencialmente, ser um texto escrito em forma de
narrativa dramática. Há outros expedientes para se causar sensações e emoções para além de
uma história melodramatizada. Uma notícia acompanhada de títulos em letras garrafais,
estampando imagens trágicas do fato e contendo opiniões acerca do evento retratado
expressas de forma retórica com exclamações, excesso de adjetivos e palavras fortes, exagero
no foco exclusivamente sobre a face dramática do acontecimento e superdimensionamento da
tragédia individual, ao invés de remetê-la a um contexto mais amplo de interesse público, já é
o bastante para se procurar provocar efeitos e sensações nos leitores237.
No diário A Capital, as notícias sensacionalistas, independente do fato de por vezes
terem um caráter de entretenimento devido à ênfase no aspecto dramático da notícia, em
detrimento da informação e do conhecimento, e os faits divers, mesmo ao assumirem sempre
forma de diversão e de narrativa fechada, jamais deixaram de se posicionar acerca do que

234
MEYER, Marlyse, op. cit., p.
235
BARTHES, Roland. Essais critiques, op. cit., p. 189.
236
Idem, Ibidem.
237
Nesse sentido, ver a descrição dos sensacionalismos lingüísticos e gráficos em DINES, Alberto.
“Sensacionalismo na imprensa”. In: MELO, José Marques de (coord.), op. cit., pp. 16-19.

60
veiculavam. Desse modo, forneciam representações positivas ou negativas concernentes aos
diversos grupos sociais do contexto modernizador da cidade de São Paulo. Os adeptos das
práticas mágico-religiosas não constituíram exceção.

1.4. Nem toda a urbe era modernizada: práticas mágico-religiosas e a


perpetuação do “atraso” exclamada pela A Capital

As ambigüidades do processo modernizador da cidade de São Paulo também se faziam


presentes. Os artefatos tecnológicos, símbolos da modernidade, causavam dupla sensação: de
um lado o fascínio pelo seu funcionamento, e, de outro, a repulsa em virtude dos prejuízos
que poderiam ocasionar. Exemplo claro dessa confusão de impressões foram os bondes e os
automóveis, representantes do progresso, bem como de um novo mundo no qual a agilidade
de deslocamento era muito maior e os ritmos não eram mais “determinados pelas forças da
natureza, representadas pelos animais usados como tração, mas sim por novas fontes de
energia que impulsionavam esses veículos de forma nunca antes testemunhada”238. Porém,
ambos também trouxeram inúmeras perturbações no cotidiano da cidade. Os automóveis, por
causa de falhas mecânicas ou imprudência dos seus condutores, foram responsáveis por
inúmeros casos de atropelamento, de modo que começaram a representar um enorme perigo
para os transeuntes, os quais passaram a pôr em risco suas vidas quando realizavam o simples
ato de atravessar uma rua. Os bondes da Light & Power, do mesmo modo, devido
nomeadamente a descarrilamentos, a falhas mecânicas e à alta velocidade para o cumprimento
dos horários estabelecidos, envolviam-se constantemente em acidentes com carroças e casos
de atropelamento. No mais, outras atribulações atormentavam a vida daqueles que habitavam
as regiões periféricas e dependiam dos bondes, como a má conservação dos veículos, os
constantes atrasos, a superlotação e a grosseria, por parte dos motorneiros, no trato com os
passageiros. Com efeito, a dificuldade de adaptação a ambos os artefatos – até porque a
fiscalização surgiu para reprimir as carroças e os transeuntes ao invés de controlar os
motoristas que desrespeitavam a lei239 – “e toda a sua trama de significados levava um
grande número de pessoas a considerarem o veículo como uma força assassina em si”240.
Além do mais, as intervenções modificadoras do espaço público da urbe paulistana
não ocorreram pelo mesmo motivo daquelas ocorridas nas principais capitais européias. As

238
SÁVIO, Marco Antônio Cornacioni. A cidade e as máquinas: bondes e automóveis nos primórdios da
metrópole paulista, 1900-1930. São Paulo: Tese de Doutorado em História, PUC-SP, 2005, p. 210.
239
Idem, Ibidem, p. 125.
240
Idem, Ibidem, p. 210.

61
reformas haussmannianas de Paris, por exemplo, para além do seu embelezamento, foram
empreendidas por questões estratégicas: o alargamento das estreitas ruas dos bairros operários
tinha o objetivo de dificultar os combates de barricadas e os bulevares retilíneos permitiam a
utilização do canhão contra insurretos241. Ressalte-se ainda que, tanto em Paris como em
outras capitais do outro lado do Atlântico, o urbanismo surgiu para responder às necessidades
de cidades industriais, ao passo que no Brasil, país cujo capital era predominantemente
agroexportador, as cidades ganhavam importância “como centros decisórios, comerciais,
administrativos e portuários, mas não eram vistas como centros produtores, e muito menos
como locais para habitação e reprodução da força de trabalho”242. Com efeito, as reformas
da capital paulista ocorreram como resposta às suas novas funções de centro decisório,
comercial e administrativo, bem como à afirmação e sucesso do novo papel que “deveria
cumprir, em termos de sua reestruturação interna e reinserção na realidade socioeconômica,
cultural e política – nos planos regional, nacional e internacional”243. Centro periférico no
capitalismo mundial, a adoção, por parte da cidade de São Paulo, dos padrões urbanísticos
europeus prendeu-se muito menos àqueles objetivos que presidiram o “estabelecimento do
modelo na França (circulação e visibilidade como soluções de zoneamento e controle para os
problemas sociais dos novos aglomerados urbanos) do que às necessidades de inserção no
sistema capitalista mundial”244. Foi objetivando essa inserção que se buscou fazer de São
Paulo uma metrópole nos moldes das principais capitais do mundo, mormente Londres e
Paris. As intervenções realizadas tiveram uma preocupação plástica, procurando, no momento
em que a cidade era cada vez mais proeminente no comércio exportador de café na conjuntura
nacional e internacional, construir a imagem de uma cidade cosmopolita, moderna e
equiparada às metrópoles européias.
Com efeito, as qualidades estéticas e funcionais da cidade moderna foram
empreendidas apenas parcialmente, nos espaços de maior relevância simbólica ou importância
econômica245. Assim, a modernização da capital paulista caracterizou-se pelo privilégio
concedido à região central e aos seus habitantes (a burguesia cafeeira), de modo que, de um
lado, havia as arborizadas e bem desenhadas ruas de Higienópolis, dos Campos Elíseos e da

241
LÖWY, Michael. “A cidade, lugar estratégico de enfrentamento das classes. Insurreições, barricadas e
haussmannização de Paris nas Passagens de Walter Benjamin”. Margem Esquerda, Ensaios Marxistas, n. 8. São
Paulo: Boitempo Editorial, 2006, p. 69.
242
CAMPOS, Candido Malta. Os rumos da cidade: urbanismo e modernização em São Paulo. São Paulo:
Editora SENAC, 2002, p. 618.
243
Idem, Ibidem, p. 32.
244
BARBUY, Heloisa. A cidade-exposição: comércio e cosmopolitismo em São Paulo: 1860-1914. São Paulo:
EDUSP, 2006, p. 72.
245
CAMPOS, Candido Malta, op. cit., p. 23.

62
Avenida Paulista; de outro, as desguarnecidas ruas da Moóca, do Belenzinho, do Brás e da
Casa Verde246, locais onde praticamente inexistia a iluminação pública e o serviço de esgoto,
o calçamento e asfaltamento das ruas eram precários e os bondes se restringiam a poucas vias,
entre tantos outros problemas. Contudo, de forma alguma isso significa que a população
moradora das regiões mais afastadas tenha permanecido inerte frente à ausência do poder
público. Pelo contrário, soube se apropriar dos saberes técnicos de engenheiros, arquitetos e
médicos sanitaristas, utilizando-os como instrumento para fazer valer suas demandas. Por
meio de requerimentos, abaixo-assinados e representações destinados à Câmara Municipal,
queixas e demandas partiam de vários bairros do município, solicitando providências
administrativas

sobre a regulamentação do espaço e da vida urbana (verificação de edifícios


‘ruinosos’, alinhamentos, autorização para abate de reses, regulamentação do
comércio de ambulantes, revisão de impostos e pagamento de taxas), sobre as obras
e medidas sanitárias (desobstrução de galerias pluviais e bocas de lobo, limpeza das
ruas, nivelamento de terrenos alagadiços), sobre obras viárias (denominação de ruas,
colocação de balsas de travessia nos rios, prolongamento e calçamento de ruas,
reparos diversos em vias públicas, principalmente na época das chuvas), ou ainda
sobre novos equipamentos e obras urbanas (construção e reforma de cemitérios,
instalação de iluminação pública, verificação de trilhos e serviços de bondes,
construção de mercados), entre outras solicitações.247

Nesses distantes arredores, perduravam hábitos e costumes provincianos e coloniais,


como a realização de transportes em carros de boi, carroças e cavalos ou a existência de várias
chácaras com plantações e criações de animais. No alvorecer do século XX, em virtude da
maior atenção concedida à região central, permaneciam formas distintas de ocupação dos
espaços, “alternando áreas densamente ocupadas por moradias, oficinas e chácaras com
outras onde predominavam os descampados, matas, várzeas e beiras de rios que ofereciam
condições para a sobrevivência de grande parcela da população pobre”248, de maneira que
não havia ainda distinção eminente entre o urbano e o rural.
Até mesmo em lugares próximos ao centro, como o Bexiga ou o Anhangabaú, ainda
lavava-se roupa, pequenas hortas eram criadas, cortava-se lenha e a pesca era praticada. Da
mesma forma, na Várzea do Carmo, no Largo Nossa Senhora do Rosário e na região
conhecida como Sul da Sé era constante a presença da parcela nacional pobre da cidade.
246
MEYER, Regina Maria Prosperi. “O papel da rua na urbanização paulistana”. Cadernos de História de São
Paulo. Museu Paulista da Universidade de São Paulo, n. 1, jan./dez. 1992, p. 21.
247
CERASOLI, Josiane Francia. Modernização no plural: obras públicas, tensões sociais e cidadania em São
Paulo na passagem do século XIX para o XX. Campinas, SP: Tese de Doutorado em História, IFCH-UNICAMP,
2004, pp. 69-70.
248
MANZONI, Francis Marcio Alves. “Campos e cidades na capital paulista: São Paulo no final do século XIX
e nas primeiras décadas do século XX”. História & perspectivas. Uberlândia (36-37), jan./dez. 2007, p. 94.

63
Mestiços e negros carregavam trouxas, cestos, tabuleiros e balaios, lavavam roupas, cuidavam
dos seus cavalos e conduziam carroças. Na Várzea do Carmo, eram freqüentes as famosas
lavadeiras no rio Tamanduateí, vistas como inconvenientes e caracterizadas pelo poder
público e pelas autoridades como barulhentas, de pouca vergonha, sem educação por
pretensamente soltarem muitos palavrões e um tanto masculinizadas, devido a brigas com
homens. Ali também existia o chamado “Mercado Caipira”, onde os moradores das áreas
mais longínquas, como Santana, Penha, Santo Amaro e Guarulhos, vendiam produtos
agrícolas, medicinais e artesanais, madeira e outros itens – esses vendedores, em virtude da
distância de suas residências, suas origens indígenas, suas características físicas e seus modos
de comportamento associados à população nacional pobre, ficaram conhecidos como
“caipiras”. Havia, por fim, os vendedores de ervas, chamados por vezes de “curandeiros” ou
“pretos véios”, os quais vendiam folhas secas, raízes, figas, chifres de veado e bode, unhas de
cobra, couros ou pêlos de animas e alguns preparados249. Todo esse contingente muitas vezes
também circulava na região central da cidade, sendo visto como um incômodo e símbolo de
atraso para aqueles que tencionavam ver uma capital nos moldes das principais metrópoles
européias.
As casas e os cômodos dos distantes bairros populares do Brás, da Moóca, do
Cambuci, da Lapa, do Ipiranga, do Bom Retiro, da Barra Funda, do Pari e do Bexiga,
organizados às margens das ferrovias e próximos de indústrias, foram o destino da classe
trabalhadora. Nesses arredores, as habitações populares formaram a paisagem marcante. As
janelas debruçadas sobre as ruas desfaziam a almejada distinção espacial das elites
empenhadas em distinguir fronteiras entre espaços públicos e privados. Como afirma Paulo
Garcez Marins:

De espaço previsto para a circulação viária, os logradouros, com escasso movimento


automotivo, transformaram-se em extensão das pequenas salas de estar, e rodas de
cadeiras espalhavam-se pelas calçadas, metamorfoseando a sociabilidade dos
vilarejos rurais europeus. As músicas, o vozerio alto e acalorado rompiam os tênues
limites de paredes e vidraças, fundindo experiências – e fomentando
solidariedades.250

Os bairros supracitados eram habitados por imigrantes pobres, nomeadamente


italianos, espanhóis e portugueses, cujas oportunidades de ganho se davam no trabalho como

249
SANTOS, Carlos José Ferreira dos. Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza (1890-1915). São Paulo:
Annablume/Fapesp, 2008, pp. 67-83.
250
MARINS, Paulo César Garcez. “Habitação e vizinhança: limites da privacidade no surgimento das
metrópoles brasileiras”. In: SEVCENKO, Nicolau (org.). História da vida privada no Brasil – República: da
Belle Épque à Era do Rádio. Vol. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 173.

64
operário em indústrias ou em ocupações informais, como as oficinas artesanais (sapatarias,
tinturarias, marcenarias e outros), o subemprego (pedreiros, ambulantes, engraxates etc.) e o
pequeno comércio251, já que a oferta de emprego nas fábricas não absorvia a demanda
decorrente do crescimento populacional de São Paulo. Esse contingente proveniente do
continente europeu organizou várias associações recreativas e dançantes, responsáveis pela
promoção de bailes e teatros amadores, bem como clubes de futebol ou associações
esportivas. No mais, seu lazer girava em torno de casas de jogo e apostas, bares, festas
religiosas, quermesses, procissões e romarias252. Tais atividades não eram vistas com bons
olhos pelos militantes do movimento anarquista, pois, no seu entender, seriam malsãs por
alienarem e despolitizarem o operariado, desvirtuando-o da luta contra o patronato. A
burguesia industrial também as repudiava – com exceção dos eventos de cunho religioso – por
considerá-las práticas determinantes para o trabalhador perder sua força produtiva e adquirir
idéias subversivas, além de constituírem práticas aviltantes, típicas dos indivíduos
incivilizados e desprovidos de cultura e educação253.
No mais, junto com os denominados “caipiras”, negros recém-libertos ou descendentes
de escravos também compunham a população habitante dos longínquos bairros periféricos,
nomeadamente Barra Funda, Bexiga e Lavapés/Liberdade, sobrevivendo a partir do
subemprego em ferrovias e armazéns, no caso dos homens, e em domicílios da burguesia
cafeeira, no caso das mulheres. Na capital paulista que se pretendia modernizada, os negros
logravam constituir locais para manifestações culturais afro-brasileiras, consubstanciadas nas
rodas de partido alto, capoeira e pernada, nos momentos de realização do jongo, dos batuques
e do cateretê, nas práticas mágico-religiosas, na macumba e nas irmandades, espaços onde
mulheres e homens negros poderiam, com relativa autonomia, exercer suas práticas e
experiências culturais. Tais irmandades, como a de Nossa Senhora do Rosário ou Nossa
Senhora dos Remédios, funcionavam como ponto de encontro informal destinado a rituais
religiosos de caráter sincrético, além de prestarem serviços à comunidade negra, como o
auxílio aos ex-escravos sem moradia254.

251
Para mais informações, ver PINTO, Maria Inez Machado Borges. Cotidiano e sobrevivência: a vida do
trabalhador pobre na cidade de São Paulo (1890-1914). São Paulo: Edusp/Fapesp, 1994.
252
Cf. DE DECCA, Maria Auxiliadora Guzzo. A vida fora das fábricas: cotidiano operário em São Paulo (1920-
1934). São Paulo: Paz & Terra, 1987.
253
RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil, 1890-1930. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1985, pp. 113-116.
254
MORAES, José Geraldo Vinci de. As sonoridades paulistanas: a música popular na cidade de São Paulo –
final do século XIX ao início do século XX. São Paulo: Dissertação de Mestrado em História, PUC-SP, 1989, p.
35.

65
Se nos bairros da região central a população era eminentemente branca e burguesa,
sendo incorporados seletivamente os estrangeiros abastados, a alta densidade e as fronteiras
abertas dos arredores populares encorajaram uma contínua mistura de nacionalidades e
origens. “Isso não quer dizer que microcenários se misturassem e se tornassem confusos, mas
jamais constituíram guetos no sentido de bairros absolutamente exclusivos de um grupo
étnico ou de uma nacionalidade”255, de modo que imigrantes, negros e “caipiras” levaram aos
arrabaldes populares seus hábitos e as especificidades de suas tradições. Malgrado as tensões
que sucediam entre eles, sua convivência criou formas de sobrevivência e experiências sociais
distantes daquelas que os intelectuais, os cientistas e as classes dominantes ambicionavam
impor256, em meio à conturbada mudança que a cidade de São Paulo vivia, na qual se
impunham novas condutas e novos comportamentos que soassem com os termos
“modernidade” e “civilização”. A tentativa de europeização da urbe paulistana deve levar a
entender a cidade “não como algo harmonioso, em que ocorreu a vitória de um projeto
urbano que era ao mesmo tempo social e cultural, mas como um palco de interações e de
constantes lutas entre a ordem desejada e a experiência vivenciada no uso diário dos
espaços”257.
Dessa forma, tradições folclóricas, práticas e crenças pertencentes ao universo
religioso popular ainda persistiam. Na urbe paulistana, com suas múltiplas espacialidades e
temporalidades, para além da racionalidade, cientificidade e modernidade ditadas em virtude
de seu crescimento, elementos de práticas mágico-religiosas ligados às tradições africanas,
ibéricas e indígenas continuavam a existir na capital paulista, constituindo “formas de
representação de valores simbólicos ligados a outras concepções de mundo e de vida para
além da ordem racional, mecânica e dessacralizada imposta por um ideário tecnológico de
cunho industrial e capitalista”258.
Com efeito, nota-se a sobrevivência de práticas e crenças populares na São Paulo que
se pretendia modernizada. Todas aquelas tradições que constituíam o universo mágico-
religioso sincrético, construído ao longo do século XIX, passaram por um processo de
mudanças na metrópole paulistana do início do XX, ocorrendo uma “reelaboração das
práticas e crenças dos diversos grupos sociais e étnicos presentes no espaço urbano”259.
Desse modo, formou-se um “cadinho” de culturas, em que se concretizou uma série de ritos,

255
ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo:
Studio Nobel: Fapesp, 1997, pp, 81-82.
256
MORAES, José Geraldo Vinci de, op. cit., p. 24.
257
SANTOS, Carlos José Ferreira dos, op. cit., pp. 118-119.
258
KOGURUMA, Paulo, op. cit., p. 43.
259
Idem, Ibidem, p. 216.

66
crenças e práticas mágicas pertencentes às matrizes culturais africanas, européias e indígenas.
Isso se reflete quando, segundo afirma Wissenbach, tem-se contato com a documentação
policial e judiciária, que, ao tentar decifrar e codificar as crenças e práticas de feiticeiro,
curandeiros e cartomantes, apresenta-nos um quadro um tanto confuso acerca do universo
mágico-religioso popular. Assim, era possível, nessa documentação, deparar-se com práticas e
ritos mesclados e confundidos sob rótulos pouco esclarecedores, nos limites nem sempre
claros entre macumba, baixo espiritismo, curandeirismo, feitiçaria, etc.; “nas intensas
mesclas através das quais elementos dos ritos afro-brasileiros se misturam a elementos da
magia européia, a símbolos esotéricos, a figuras de orixás, santos católicos, rezas e guias de
diferentes origens”260.
Algo comprovador dessa diversidade das práticas de magia é um relato de um
botânico chamado F. C. Hoehne, que compilou alguns produtos vendidos por ervanários na
cidade de São Paulo, onde se encontram desde ervas conhecidas pelos indígenas até rezas e
produtos de origem africana:

Completo sortimento de figas e cruzes de arruda, de guiné, de azevim de Lisboa, de


azeviche africano, de Kengongo etc.; búzios, favas anti-rheumáticas, favas contra
máo olhado, favas divinas, colares indianos para facilitar dentição – Hervas próprias
para lavar a casa e para banhos – Hervas para coceiras, para urinas – para
suspensões – para estômago – para rheumatismo – para febres intermittentes ou
palustres – para gonorrhéa – para o figado etc. etc. Cascas de Catuába para a
impotência, – guias de Pagé, – defumações africanas para defumar a casa –
defumações completas gomma de batata purga – óleo e banha de capivara, banha de
coaty para fazer nascer o cabello e a barba, banha de raposa (gambá), de cobra, de
jacaré, de lagarto etc. – óleo de mamona – mel de páu – mel de jatahy – dentes de
jacaré – chifres de veado, contas de leite etc. obys – orobós – legítimas figas de
azeviche contra a inveja – figas de paú alho – Pó Egypciano – Iman em pó – signo
de Salomão – pedra de Santa Bárbara – pedra d’Era de Jerusalém – orações de todas
as qualidades – óleo de coco, azeite de dendê – chifre de cabra loura – Pemba
africana, Pimenta da Costa, Legitimas Pedras de Cervar da África. – Ory – azevim –
azeviche – chifre de veado raspado etc., remédio para tirar verrugas – cera da terra,–
contas de azeviche, favas do Pará para aromatizar o fumo.261

Sob essa diversidade de elementos, feiticeiros, curandeiros e cartomantes exerciam


suas atividades em meio à população paulistana, movendo-se pelos diversos bairros
populares, tais como Brás, Mooca, Luz, Barra Funda, Santana, Cambuci e Pinheiros, e
buscando nesses lugares esquivar-se das ações repressivas da polícia. Em um mercado formal
que não conseguia absorver o enorme contingente populacional que continuamente chegava à
capital paulista, os empregos informais constituíam-se no principal meio de sobrevivência. E

260
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Ritos de Magia e sobrevivência: sociabilidade e práticas mágico-
religiosas no Brasil (1890-1940), op. cit., p. 129.
261
Apud Idem, Ibidem, p. 134.

67
no ramo da informalidade também se enquadravam as práticas de magia, caso de Philomena
de Jesus, curandeira, com consultório na Rua Gomes Cardim, que exercia sua seus ritos sem
exigir dinheiro, mas apenas gratificações262. Por vezes, o exercício de práticas mágico-
religiosas era dividido com outros ofícios, como no caso de Benedicto Fabiano, oleiro de
profissão, morador da Penha, que “não dá remedio e cura apenas pela sua vontade e graça
de Deus”263; ou também de João Manoel, cozinheiro de profissão e curandeiro, que possuía
um consultório na Rua João Julião, 5, prometendo curar moléstias venéreas264.
Desenvolvendo as atividades geralmente em suas residências, ou de forma
institucionalizada – nos chamados “centros” –, feiticeiros e curandeiros procuravam atender
às demandas daqueles que procuravam a magia para que fossem resolvidos os mais diversos
problemas: para além das curas, solucionavam-se também as questões ligadas a assuntos
amorosos, além de serem dados conselhos “preciosos” e “infalíveis” aos indecisos. Havia um
sem-número de magias, fórmulas e simpatias para o alcance do sucesso, a obtenção de
emprego, a resolução problemas pessoais com vizinhos ou parentes e até mesmo a elaboração
de um feitiço contra algum inimigo, afinal, a crença na magia, bem como na capacidade de
produção de danos por meios ocultos ou sobrenaturais, é generalizada no Brasil desde a época
colonial. “De acordo com a crença, certas pessoas podem usar consciente ou
inconscientemente esses poderes sobre os outros para atrasar a vida, fechar caminhos,
roubar amantes, produzir doenças, mortes”265.
Exemplo disso são as várias cartas encontradas pela polícia na residência do feiticeiro
João Pedro266, vulgo João Colasso, no momento de sua prisão. Três delas foram reproduzidas
pelo jornal. É interessante, aqui, inserirmos duas missivas, na medida em que demonstram
que, apesar das tentativas de imposição do saber médico como único detentor da verdade e
dos meios legítimos de cura, praticantes de magia ainda eram procurados e solicitados pela
população. Na primeira carta, dona Annunziata de Estefano solicitou a João Pedro que curasse
sua doença e a de seu marido, além de intervir para que acabasse com os ataques de ciúmes
deste último:

Illmo. sr. João, esta lhe mando e Annunziata de Estefano, da rua Maestro Cardim N.
se deixa saber ao senhor que eu estou passando muito doente, a noite com muita dor
no figado e muita febre esmano a todo o corpo que não posso dormir, tambem muita
falta de ar, lhe peço por caritate o senhore de me fazere umas novenas no vosso

262
A Capital, “A feitiçaria campeia”, 19 de agosto de 1919.
263
Idem, Ibidem.
264
Idem, Ibidem.
265
MAGGIE, Yvonne. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 1992, p. 3.
266
A Capital, “A prisão de um feiticeiro”, 19 de maio de 1926.

68
auxilio prara me alliviare esto sofrimento que tenho na minha salute; e peço una
pequena caritate pelo mio marito do senhore me ajudare, que elo vae doente a una
setimana muita doente dos rins, elle vai muito nervoso e me insulta sempre por
causa do ciume contra mim de noite ele não dorme se peço por caritate do sinhore
fazere una presse de vosso santo auxilio di mio marito, para socegare esse ciume
contra mim fazo o piacere facere esta caritate para mim i mio marito. –
Annunziata.267

Em outra carta, da lavra de Marianna Gilberte, podemos notar a confiança em João


Pedro, pois este já havia sido solicitado anteriormente pela missivista:

É meu maior desejo que o senhor e a familha esteje gosando saude e felicidade, eu
lhe peço grande favor de me fazer uma presse para Sebastião Gilberte, que vai fazer
6 mezes no dia 28 que elle tomou remedio das suas mãos e foi tão feliz em todos o
arranjo da vida melhor muito a minha vida graças seja agora no dia 2 Sebastião
Gilberte tomou uma bebedeira terrivel veiu para casa sem chapeu e sem dinheiro e
mais nada só mais muitas infelicidades o senhor e a familha. (a) Marianna
Gilberte.268

Desse modo, os anseios e as aflições dos que procuravam a magia eram projetados
sobre feiticeiros, curandeiros e cartomantes. Esperava-se destes que, em meio ao vazio
deixado pelo ambiente hostil da cidade de São Paulo, como detentores do poder de contato
com o sobrenatural, pudessem intervir no destino, por vezes não muito promissor, de seus
consulentes269: trata-se do poder desses praticantes de magia de atuar diretamente no
cotidiano, mudar os rumos da vida de qualquer pessoa, podendo melhorá-la ou, ao contrário,
desgraçá-la a qualquer instante. Assim,

Inofensivas donas-de-casa, recendendo a cebola e o alho, transformam-se em


pitonisas e curandeiras; “negros de carapinha domesticada” transvestem-se em
manipuladores do sagrado e do feitiço, com poder suficiente para desarranjar as
vidas de quem os conhece e dos que os perseguem, deixando para trás uma
materialidade incômoda, na forma de talismãs anexados como prova processual,
carregados de maná, que as autoridades judiciárias não ousam nem ao menos
tocar.270

Entretanto, tais práticas não eram vistas com bons olhos pelas classes dominantes e
por intelectuais. Desde meados do século XIX, os ideais de modernização, civilização e
progresso, advindos das sociedades européias, permeavam o seu imaginário. Com efeito,
valores como racionalismo e cientificidade eram muito prezados pelos que possuíam o afã de
ver a capital paulista – junto com o resto do Brasil, obviamente – ingressando no concerto dos

267
Idem, Ibidem.
268
Idem, Ibidem.
269
Cf. WISSENBACH, Maria Cristina Cortez, Ritos de Magia e sobrevivência: sociabilidade e práticas mágico-
religiosas no Brasil (1890-1940), op. cit., pp. 56-57.
270
Idem, Ibidem, p. 125.

69
países ditos evoluídos. Cada vez mais, para os supracitados grupos, as crenças e práticas
culturais tradicionais dos mais diversos e heterogêneos grupos sociais que estavam se fixando
na capital paulista configuravam-se “como símbolos do ‘atraso’, da ‘ignorância’, como sinais
da ‘degeneração’ social da população paulistana, enfim, arcaísmos que desqualificavam a
sociedade brasileira e a urbe paulistana diante das nações modernas e civilizadas”271, de
modo que os adeptos das práticas mágico-religiosas foram estigmatizados, frente à população
como difusores de costumes supersticiosos contaminadores da paisagem higienizada e
europeizada da urbe paulistana, ainda que os incumbidos de reprimi-los tivessem ciência de
que muitos habitantes, inclusive os pertencentes às denominadas “famílias mais cultas”,
fossem seus consulentes272. As autoridades desencadearam, dessa maneira, um processo que
procurava excluir aqueles que praticavam os rituais mágicos, por meio da atuação das
autoridades policiais e dos fiscais do Serviço Sanitário.
Nesse contexto de repressão às práticas mágico-religiosas, o jornal A Capital,
coadunando com o discurso científico, entendia a presença de feiticeiros, curandeiros e
cartomantes como símbolos da exploração da credulidade pública, de fortalecimento do
fanatismo religioso e, portanto, do atraso rumo ao progresso:

Numa terra que se orgulha de seguir, pari-passo, a marcha da civilisação, os


progressos do mundo, mas que, por outro lado, procrêa, como cogumelos, bruxos,
feiticeiros e ‘santos’, tudo é possível, até mesmo o que vimos de prever.
S. Paulo deveria se envergonhar de manter em seu seio, á sua custa, essa malta
indecorosa de ‘santos’, de magos, de advinhos, de feiticeiros, de intrujões, enfim,
que por ahi campeia.
Onde se viu jámais um povo culto e civilizado deixar-se levar, docil, pelas manhas
de um negro retinto e beiçudo, de um galego burro como uma porta ou de um pária
afugentado lá da Italia, sujo, ignorante e mal se sustendo de pé, tão violento lhe vae
o “delirium tremens”? Não, decididamente é preciso acabar com essa horda de
“milagrosos” que anda por ahi a roubar a humanidade, por intermedio do que essa
humanidade tem de mais bronco e tapado, rindo-se, depois, á socapa, da crendice
humana, e bebendo á saúde da burrice dos homens... que se dizem reis da creação!
E os poucos que ainda tem uma nesga de luz e raciocinio, os poucos que ainda
sabem ser gente civilizada, devem prestar o seu apoio para esconjurar o terrível mal,
pois que os ‘embromadores’, hoje, na cidade, gozam de tal prestigio – incrivel! mas
pura realidade – que conseguem attrahir para as suas espeluncas, não sómente a
ultima camada da nossa sociedade, a camada facil de se iludir pela ignorancia em
que vive – melhor se diria: ‘vegeta’ –, mas attrahe tambem muita gente que lê, muita
gente que se veste pelos ultimos figurinos e frequenta as rodas chics...
Phenomenal!273

Por meio de um tom exclamativo de revolta e termos fortes, exagerados e ofensivos

271
KOGURUMA, Paulo, op. cit., p. 128.
272
Idem, “A saracura: ritmos sociais e temporalidades da metrópole do café (1890-1920)”. Revista Brasileira de
História. São Paulo, v. 19, n. 38, 1999, p. 92.
273
A Capital, 19 de agosto de 1919.

70
pertencentes ao vocabulário coloquial, típicos da linguagem sensacionalista, o jornal expressa
seu pensamento coadunável com o das teorias raciais, que chegaram ao Brasil em fins do
século XIX, recebendo entusiasmada acolhida em estabelecimentos de ensino, como a
Faculdade de Medicina da Bahia, e institutos de pesquisa, caso do Museu Nacional do Rio de
Janeiro. O termo raça foi introduzido no alvorecer do século XIX, pelo naturalista francês
Jean Leopold Nicolas Frédéric Cuvier, conhecido como o Barão Georges de Cuvier,
estabelecendo assim a noção de existência de heranças físicas imutáveis entre os vários
grupos humanos. Os teóricos da raça partiam de três princípios básicos, a saber, a existência
de diferenças entre as raças humanas; uma correspondência entre raça e caracteres físicos e
morais, de maneira que a divisão do mundo entre raças corresponderia a uma divisão entre
culturas; e, por fim, sob um pensamento determinista, o predomínio do grupo racio-cultural
no comportamento do indivíduo274. Dessa forma, haveria uma escala entre as denominadas
raças, de modo que os brancos constituiriam a escala superior. Os negros, por sua vez, eram
interpretados como aqueles que se encontravam na escala mais baixa, de modo que foram
caracterizados como sujeitos de aparência repugnante, além de cultural e moralmente
inferiores.
Se no continente europeu o racismo científico acabou justificando o imperialismo de
alguns países, em terras brasileiras transformou-se em instrumento conservador e autoritário
de identidade das classes dominantes, em face de uma população considerada étnica e
culturalmente inferior275. Associou-se, destarte, “aos interesses dos grupos letrados de se
diferenciarem da massa popular, cujas formas de cultura e religião eram depreciadas como
atávicas, atrasadas ou degeneradas”276. De acordo com os intelectuais, influenciados pelas
idéias do diplomata francês Arthur de Gobineau, o qual visitou o Brasil em meados dos
Oitocentos e para quem a combinação de raças inferiores com superiores levaria à
degeneração da civilização, as diferenças deixavam de ser produto da exclusão social para
tornarem-se resultado da miscigenação das raças, avaliada como fator de retrocesso e
declínio. A mistura do sangue europeu com o de indígenas e negros impediria o avanço do
País, por isso a defesa das medidas eugenistas de branqueamento da raça e a conseqüente
eliminação daquelas consideradas inferiores277.
Daí a notícia citada, pondo-se em harmonia com as teorias raciais, ter utilizado a

274
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-
1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 60.
275
VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991, p. 60.
276
Idem, Ibidem, p. 58.
277
Ver DIWAN, Pietra. Raça pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo. São Paulo: Contexto, 2007.

71
expressão “negro retinto e beiçudo”, reforçando a noção de fealdade dos negros. Ainda nessa
linha racista, sua moral inferior também foi destacada, afinal não estariam apenas enganando
a população, mas sim utilizar-se-iam de “manhas“, ou seja, seriam grandes dissimuladores,
possuidores de inúmeros estratagemas pérfidos e aliciantes para lograr seus objetivos, e
somente poderiam sê-lo por não serem moralmente evoluídos.
Já no que concerne aos praticantes da magia vindos do continente europeu, o jornal
também destilou seu preconceito para desqualificá-los frente ao público leitor, na medida em
que evocava conotações negativas concernentes aos imigrantes pobres, adjetivando-os
negativamente de “galego burro” e “pária afugentado sujo e ignorante”, em consonância
com o discurso dos médicos higienistas, os quais marginalizaram a população estrangeira
trabalhadora que aportava em terras brasileiras, ao representá-la como estúpida e sem asseio,
bem como portadora e difusora de doenças contagiosas, introduzindo assim moléstias
ocorridas com menos freqüência no passado e contribuindo para os males da cidade278.
Mas o restante da população não ficou imune aos adjetivos ultrajantes. Os consulentes
foram divididos em dois grupos, sendo o primeiro formado por alguns letrados e abastados,
em relação aos quais o inconformismo no texto de deve ao fato de que era justamente deles,
considerados mais evoluídos e civilizados, que o jornal esperava a iniciativa de esclarecer e
guiar a opinião da população pobre e, por conseguinte, o rechaço aos praticantes da magia.
Era das classes dominantes que o diário aguardava um comportamento exemplar. Já sobre
segundo grupo, composto pelas classes subalternas, foi derramada toda a carga de termos
desqualificadores. Sob a influência da psicologia social, que via a população trabalhadora
como um tipo animalesco, irracional e sugestionável, das teorias raciais (população
miscigenada igual a povo inferior culturalmente) e do pensamento médico higienista, para
quem o contingente pobre morador dos cortiços, devido às condições de falta de asseio e
higiene, era imoral, ignara, degradante e de costumes incivilizados, o jornal construiu a
representação de indivíduos incultos, de pouca inteligência, sem atividade mental, perdendo,
com efeito, sua autonomia enquanto sujeito ativo e consciente de suas ações, já que, de acordo
com A Capital, era “a camada mais fácil de iludir”, a “burrice dos homens”, aquela que
“vegeta”, de maneira que faria parte “do que essa humanidade tem de mais bronco e
tapado”. Enfim, constituía uma trupe de fanáticos eivada de uma supersticiosidade sustentada
pelos que exerciam práticas mágico-religiosas.
Dito de outro modo, a população pobre era facilmente enganada porque não possuía
inteligência alguma. Uma vez mais foi evocada a imagem de um povo carente, desorientado,
278
ROMERO, Mariza. Medicalização da saúde e exclusão social: São Paulo, 1889-1930, op. cit., pp. 67-71.

72
destituído de idéias próprias, conceito típico da imprensa sensacionalista, cujo pensamento
concebe o seu público leitor não na condição de cidadãos ativos, mas sim de meras vítimas
que necessitam da assistência e benevolência da empresa jornalística 279. Com efeito, A
Capital arrogava a si a tarefa de, frente a uma população interpretada como ingênua e ignara,
orientar os leitores rumo à luz dos valores científicos, racionais e modernos, para que não
prosseguissem guiando-se por saberes e crenças considerados pelo diário, em consonância
com os discursos científicos, meras crendices e símbolos de atraso.
Essa linha de raciocínio se expressa, inclusive, em termos desqualificadores ofensivos.
Certa feita, ao noticiar a presença de praticantes de magia no bairro do Cambuci, A Capital
afirmou que o “publico bobo e ignorante [grifo nosso] em verdadeira romaria nesses antros
de especulações simples de que um gesto destas predestinadas feiticeiras os livrem de todos
os males”280. Em outra ocasião, na notícia da prisão do falso espírita Cristobal Baca Requena,
conta que o mesmo explorava “a credulidade dos imbecis, vulgo ‘crentes’ [grifo nosso]”281.
Dessa maneira, segundo o jornal, era sua função, como um grande timoneiro, nortear a
população para a ordem e o progresso, distante do fanatismo e da superstição. Exemplo claro
disso é o já referido caso fartamente divulgado, nas edições dos meses de julho e agosto, dos
rumores acerca da existência de fantasmas no casarão da Usina da Light, na Rua Mauá. Após
refutá-los exaustivamente, assegurando que tais espíritos seriam produto de algum charlatão,
o diário, no dia 10 de agosto de 1928, afiançando que, graças aos seus esforços hercúleos, a
população não mais acreditava naqueles boatos, alega estar plenamente satisfeito por conduzir
“a opinião popular, libertando-a de uma athmosphera viciosa, em que se rendia credito a
affirmativas duvidosas. Era nosso dever destruir boatos, combater a crença de alguns
fanaticos e supersticiosos [grifo nosso]”282.
Todavia, é válido ressaltar nesse momento que o diário, ao desejar erradicar o que
considera ser o fanatismo popular, de maneira alguma prescindia da religião:

Não somos dos que alimentam preferencias em materia de religiões que praticadas
exactamente dentro dos preceitos moraes que ellas fazem subtender, têm sempre a
mesma e grandiosa finalidade qual seja Deus. Deus, entidade abstracta, omnipotente
e omnisciente, geratrix de tudo que tem existencia real e indiscutivel.283

Com efeito, além de demonstrar um pensamento ecumênico, o trecho acima revela o

279
AMARAL, Márcia Franz, op. cit., p. 72.
280
A Capital, “Os aguias e as ‘aguionas’”, 16 de abril de 1927.
281
Idem, “Grilleiro, curandeiro e chantagista de renome”, 28 de outubro de 1929.
282
Idem, “A casa dos phantasmas”, 10 de agosto de 1928.
283
Idem, “Falsos espiritas, exploradores das boas situações que se cream”, 26 de abril de 1928.

73
que já foi assegurado em linhas anteriores e será enfatizado no capítulo terceiro, a saber, que a
religião era bem vista pela A Capital, contanto que servisse para o progresso espiritual do
brasileiro e ressaltasse a importância de valores humanitários, da honestidade, da
solidariedade e do amor ao próximo. O excerto a seguir evidencia esse raciocínio. Retomando
novamente a representação de população pobre ignorante e facilmente explorada, o jornal
lamenta a possibilidade danosa de utilização da religião como meio de obtenção de dinheiro à
custa da fé alheia. Se os membros da Igreja estariam contribuindo para a renovação da fé e da
advertência ao povo no que tange à importância de se seguir os preceitos de Jesus Cristo, o
mesmo não aconteceria com alguns leigos infiéis e aproveitadores, expressão e causadores da
crescente perda dos valores cristãos:

A religião, não raro, tem servido de pretexto para muitos se enriquecer [sic],
explorando os incautos e illudindo os ignorantes.
Claro é que já não nos queremos referir áquelles que directamente exercem o
sacerdocio, o ministerio de Deus.
Fallamos dos leigos, dos <<cavadores>> que, abusando do sentimento religioso do
povo, o vae aproveitando, extorquindo lhe dinheiro, haveres, bens – em nome duma
cousa, que aquelles são os primeiros a desvirtuar.
Quando Christo andou, em sacra-via, pela terra, pregou verdades puras, deu
conselhos sublimes, trabalhando pelo amor, batalhou pela egualdade, soube, enfim,
a cada instante, mostrar aos homens que a linha a seguir, na vida, deve ser sempre
recta; as obrigações cumpridas, o dever mantido, – e tudo ás claras, sem
subterfugios, sem engazopar aos pobres de espirito, para os quaes até pediu
misericordia!
Hoje, porem, nada disso se vê.
O amor do proximo é uma ficção. O grande ideal de Christo vive por ahi profanado.
Os homens tratam é de enganar-se a si e uns a outros.
E, em se tratando da gente humilde, pobre, sem luz e sem instrucção, – então os
maus resvalam para o terreno religioso e exploram a fé e abusam do nome de Deus
para burlar e furtar.
O sentimento religioso anda, por isso, a toda hora, criminosamente em scena, no
theatro da vida humana, tendo por protagonistas os infieis...284

No grupo dos incrédulos exploradores do sentimento religioso para fins pecuniários,


encontravam-se os praticantes de magia, sendo esta vista como maléfica, em oposto à religião,
a qual, quando aproveitada de forma ímpia e verdadeira, contribuiria para a evolução moral.
Como os mesmos eram retratados pela A Capital? É o que veremos nas páginas seguintes.

284
Idem, “A religião, muitas vezes, é explorada em detrimento dos ignorantes”, 3 de junho de 1914.

74
Capítulo 2. Magia desestabilizadora da ordem social

2.1. Os adeptos das práticas mágico-religiosas: um caso de polícia

No ano seguinte à Proclamação da República, foi promulgado o Código Penal, no qual


foi contemplada a regulamentação do exercício da medicina. Conforme citado anteriormente,
o saber médico investia sobre o cotidiano da população, intervindo em crenças e hábitos
tradicionais. Dessa maneira, possuía o poder de eliminar os fatores da desordem, bem como
excluir os determinantes que, a seu ver, pudessem se constituir em obstáculos à modernização
do País. No que diz respeito a saberes populares para a cura e explicação de doenças, os
médicos as consideravam sinais de um anacronismo cuja presença poderia não mais ser
tolerada, interpretando com ironia e distanciamento um passado “povoado por cometas,
cóleras divinas, santos curadores e tratamentos que utilizavam o sangue mensal da donzela
na cura de morféia, a carne de víbora na cura da sífilis, o pescoço de galo para as anginas
[...] só poderiam, agora, encontrar justificativa na crendice, na ignorância, na
superstição”285.
Nesse sentido, os médicos viam nos praticantes de magia, como feiticeiros e
curandeiros, verdadeiros charlatões, exploradores da população que, devido à ignorância e ao
fanatismo, não sabiam distinguir a “verdadeira” da “falsa” medicina286. Seriam, com efeito,
perpetuadores de costumes atrasados e malsãos. Segundo o pensamento dos doutores, com o
avanço da medicina oficial e científica, o livre exercício da profissão médica por aqueles que
não possuíam o saber científico tornar-se-ia algo intolerável. Assim, o Código Penal de 11 de
outubro de 1890 garantiu aos médicos proteção efetiva contra aqueles que pudessem pôr em
xeque sua condição de únicos peritos em assuntos relativos ao corpo e à cura287. Mais
especificamente no Capítulo III – Dos crimes contra a saúde pública (arts. 156 a 164), o
Código dispunha:

Art. 156 – Exercer a medicina em qualquer dos seus ramos e a arte dentária ou
farmácia: praticar a homeopatia, a dosimetria, o hipnotismo ou magnetismo animal,
sem estar habilitado segundo as leis e os regulamentos.
Penas – prisão celular por um a seis meses e multa de 100$ a 500$000.
Parágrafo único – pelos abusos cometidos no exercício ilegal da medicina em geral,
os seus autores sofrerão, além das penas estabelecidas, as que forem impostas aos
crimes que derem causa.

285
ROMERO, Mariza. Medicalização da saúde e exclusão social: São Paulo, 1889-1930, op. cit., p. 61.
286
COLUCCI, Sandra Regina. Mães, médicos e charlatães: configurações culturais e múltiplas representações
dos discursos médicos-sanitaristas (São Paulo, 1920-1930). São Paulo: Scortecci, 2008, p. 118 e 148.
287
SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore, op. cit., p. 85.

75
Art. 157 – Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e
cartomancias para despertar sentimentos de ódio e amor, inculcar a cura de
moléstias curáveis ou incuráveis, enfim para fascinar e subjugar a credulidade
pública.
Penas – prisão celular por um a seis meses e multa de 100$ a 500$000.
§ 1 º se por influência ou em conseqüência de qualquer desses meios resultar ao
paciente privação ou alteração temporária ou permanente das faculdades físicas.
Penas – prisão celular por um a seis meses e multa de 200$ a 500$000.
§ 2º em igual pena, e mais na privação do exercício da profissão por tempo igual ao
da condenação incorrerá o médico que diretamente praticar das artes acima referidas
ou assumir responsabilidade por elas.
Art. 158 – Ministrar, ou simplesmente prescrever, como meio curativo para uso
interno ou externo e sob qualquer forma preparada, substância de qualquer dos
reinos da natureza, fazendo, ou exercendo assim, o ofício denominado de
curandeirismo.
Penas – prisão celular por um a seis meses e multa de 100$ a 500$000.
Parágrafo único – se do emprego de qualquer substância resultar à pessoa privação,
ou alteração temporária ou permanente de faculdades físicas ou funções fisiológicas,
deformidade, ou inabilitação do exercício de órgão ou aparelho orgânico, ou, em
suma qualquer enfermidade.
Penas – prisão celular por um a seis anos e multa de 200$ a 500$000.
Se resultar morte:
Pena – prisão celular por seis a vinte e quatro anos.288

Com relação à questão dos espíritas, trataremos no último capítulo do presente


trabalho. Mas o que importa, no momento, é notar que, com o Código, as práticas mágico-
religiosas foram criminalizadas, transformando-se em casos de polícia. Nessa linha de
pensamento, práticas terapêuticas populares, como meizinhas, garrafadas ou benzeduras,
sínteses de tradições culturais cristãs, africanas e indígenas, tornavam-se dali em diante
crimes contra a saúde pública. Estava declarada, dessa forma, uma guerra médico-policial-
jurídica contra os mais diversos agentes terapêuticos populares e suas atuações curativas. Sob
os rótulos de praticantes ilegais de medicina, charlatões ou curandeiros, estariam enquadrados
na lei velhos pajés-caboclos, negros feiticeiros, rezadores e curadores, santos milagreiros,
beatos, benzedeiras e raizeiros, entre outros289. A autorização para o exercício da cura, da
profissão médica, passou a se constituir em algo exclusivo para os adeptos da ciência
diplomados em academias.
No mais, vale ressaltar que o Código Penal encontrava-se em meio a um processo, de
diferenciação, por parte de magistrados e autoridades policiais, no quadro difuso das práticas
e crenças da população, entre a religião, com direito à proteção legal e ao livre exercício, e a
magia, prática social e anômica a ser combatida, algo necessário após o Decreto n. 119-A, de
7 de janeiro de 1890, ter concedido liberdade de culto a todas as confissões religiosas e
problema com o qual a constitucionalidade jurídica republicana se viu às voltas logo após a

288
Apud MAGGIE, Yvonne, op. cit., pp. 22-23.
289
SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore, op. cit., p. 86.

76
Constituição Federal de 1891, no artigo 72, § 3º, ter ratificado tal liberdade religiosa290.
Essa distinção também foi realizada pelo A Capital. Para o jornal, a religião seria algo
benéfico para o engrandecimento moral do povo brasileiro, como observaremos no terceiro
capítulo quando se referia a alguns espíritas; já a magia, pelo que pudemos notar nas notícias,
constituir-se-ia em uma prática destinada a produzir malefício e fascinar a credulidade dos
consulentes para fins pecuniários, devendo, portanto, ser duramente combatida e obliterada.
Com efeito, o diário indicava, em várias notícias de tom exclamativo e alarmante, os lugares
nos quais os praticantes da magia estariam localizados. Em 25 de junho de 1929, por
exemplo, alertava as autoridades e os leitores sobre os diversos feiticeiros que atuavam nos
diferentes bairros da cidade, ressaltando sua periculosidade. Como “perigosa” foi tachada
Marcellina Ceppo, vulgo D. Esperança, a qual “pelas altas ‘qualidades’ que possue, desfaz
casamentos e realisa grandes negocios, com a faculdade ainda que é o de fazer com o freguez
‘acerte’ no ‘bicho’”291. Ou seja, para o jornal, Marcellina representava uma grande ameaça
para os considerados bons costumes, já que destruía a instituição do sagrado matrimônio e
incentivava o vício em jogos de azar, atividade combatida pelas autoridades policiais. O
diário também chamava a atenção, cobrando uma ação incisiva da polícia, para o fato de que

Em Chora menino, existe, ha annos, Antonio Carlos Moraes mais conhecido por
“Torto”, “Pinta”, familiar ao pessoal do dr. Pisa e ‘divino’ famoso entre... as
mulheres.
O “Torto”, segundo estamos informados, é o ‘macumbeiro’ das mulheres.
Ha, alem de Antonio Carlos Moraes, no bairro do Chora Menino varios outros
espertalhões que precisam ser ‘acampanados...’
Ema Orio, italiana, é, sem favor, a ‘Santa’ do Bexiga.
Possuidora de um alto poder de ‘tapeação’, Ema, no baralho, faz verdadeiros
prodigios alem de com agua, assucar e drogas, preparar licores infalliveis contra as...
paixões.
Para todos esses ‘casos’, pois, pedimos a especial attenção dos especialisados do
Gabinete de Investigações.292

Assim, encontramos no jornal notícias elogiosas das campanhas repressivas da polícia


frente aos denominados “charlatões”, bem como cobranças para que as autoridades
tomassem as devidas atitudes, caso, por exemplo, do dr. Souza Meyer, delegado interino do 3º
distrito, que

obedecendo a ultima portaria do delegado geral, dr. Thyrso Martins, sobre salutar
campanha contra os feiticeiros, hontem, em brilhante diligencia [grifo nosso],

290
MONTERO, Paula. “Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil”. Novos Estudos. CEBRAP. São Paulo,
n. 74, março de 2006, p. 51.
291
A Capital, “Macumba”, 25 de junho de 1929.
292
Idem, Ibidem.

77
conseguiu <<encavar>> o allemão Gustavo Tungner, morador á rua Lavapés, 51, e
Sabato Guido, morador á rua Guaycurús.293

Gustavo Tunger, mais conhecido como “professor” Berard Nath, mediante o


pagamento da importância no valor de Rs. 5$000, dava garantias aos seus clientes de “tudo
quanto é desejável para bem viver” 294; já Sabato Guido teria sido preso sob a acusação de
aplicar drogas a todos os doentes, garantindo, assim, a cura de doenças consideradas sem
solução.
Caso em que também a força policial acabou sendo utilizada foi o de Christiano Lello,
morador das proximidades da fazenda Fartura, em São João da Boa Vista. Lello forneceria
receitas de drogas preparadas, assim como raízes do mato, cobrando a quantia de Rs. 5$000
de cada consulente para o serviço. Diante de tal fato, após algumas denúncias, o

illustre dr. João Pires Germano, dilligente [grifo nosso] delegado de policia [...]
organisou, habilmente [grifo nosso] uma diligencia policial, composta de nove
praças, commandante e escrivão de policia, que fez seguir sabbado [...] á noite, para
o local indicado pelos dennunciantes.
A dligencia policial uma vez lá chegada, procedeu o cerco da casa, conseguindo a
prisão do curandeiro Lello, assim como de sua numerosa clientela.
Ás seis horas da manha, do domingo, regressou a diligencia triumphante [grifo
nosso] trazendo a frente 38 presos, que se acham recolhidos na cadeia publica local,
afim de prestarem as suas declarações.295

Em outra matéria, intitulada “Os aguias e as ‘aguionas’”, é possível igualmente


observar o elogio feito às das autoridades policias, apesar da insistente presença de indivíduos
que exerciam práticas mágicas:

O exercicio de profissões ilicitas e condemnadas pela policia de costumes, mau


grado o rigor com que vem se impondo a nobre [grifo nosso] campanha encetada
pelas autoridades especialisadas no assumpto, cresce pavorosamente, extendendo
os seus tentaculos por todos os recantos de nossa capital e suas redondezas. 296

Era como se toda a cidade de São Paulo se encontrasse proliferada por feiticeiros,
curandeiros e cartomantes, em todos os bairros, a cada rua, avenida e esquina, como se
houvesse um tremendo caos provocado pela sua presença. Para dar um fim a esse estado de
coisas, e como as práticas mágico-religiosas por meio do Código Penal tornaram-se casos de
polícia, o jornal evocava a presença e atuação do corpo policial, de modo que os panegíricos
destinados aos delegados “hábeis”, bem como às “brilhantes” e “triunfantes” diligências,
293
Idem, “Campanha contra os feiticeiros”, 9 de março de 1918.
294
Idem, Ibidem.
295
Idem, “Os charlatães e engazopadores”, 25 de maio de 1918.
296
Idem, 16 de abril de 1917.

78
concediam à polícia uma roupagem heroicizante. Em contraposição aos poderosos vilões e
inimigos praticantes da magia, lá estavam os bravos soldados, heróis do público indefeso
frente às investidas dos que alegavam ler cartas para resolver os problemas dos consulentes e
curar os enfermos pela aplicação de saberes inaceitáveis aos olhos da medicina oficial.
Legitimava-se, portanto, sua ação violenta, encarada como mais que necessária para obliterar
do espaço urbano aqueles que exerciam práticas mágico-religiosas. Polícia essa que, por sua
vez, não era bem vista pela sociedade civil, mormente pela população pobre, alvo das suas
ações arbitrárias e violentas. Grande parte dos membros da corporação estava envolvida em
casos de abuso de poder e ilegalidade. Estupros, atos de violência física contra imigrantes,
principalmente italianos, tortura e forjamento de provas eram corriqueiros. Além disso,
costumeiramente, policiais detinham indivíduos na rua, sobretudo os embriagados, por serem
facilmente dominados e não se lembrarem dos detalhes do ocorrido, e aqueles mais humildes,
fossem homens ou mulheres. Eram solicitados os documentos de identificação. Ao mostrá-
los, o transeunte tinha todo o dinheiro e os pertences roubados, além de sofrer violência física
para que, intimidado, não denunciasse os infratores297. Em diversas oportunidades, mesmo
por ocasião de uma detenção legal, o dinheiro e os objetos pessoais de valor não eram
devolvidos no momento da libertação do detido. Outras práticas comuns dos soldados, com o
fito de aumentarem seus ganhos, era a formação de quadrilhas para prática de roubos, bem
como a realização de subornos e extorsões.
No mais, à polícia cabia a função normatizadora no contexto modernizador de São
Paulo, enquadrando a população nos padrões impostos e desejados pelo poder público. Em
nome de uma cidade civilizada e nos moldes europeus, hábitos e costumes populares foram
progressivamente reprimidos por soldados: ao coibirem a prática de jogos nos botequins,
retirarem as crianças de suas brincadeiras nas ruas, impedirem os banhos realizados no rio
Tamanduateí e fazerem “circular” os desocupados, “buscavam sobretudo impor um padrão
de conduta representativo do grau de civilização ambicionado [pelas classes dominantes]
para a cidade de São Paulo”298. Nesse sentido, responsáveis pela manutenção da ordem
vigente, também eram incumbidos de reprimir o movimento operário, sendo que, para
intimidar e pôr termo aos crescentes reclamos trabalhistas, utilizavam-se da força bruta para a
dissolução de reuniões e greves, infiltravam-se em assembléias e invadiam sedes de jornais

297
MUNHOZ, Sidnei José. “Ordem e desordem em São Paulo no limiar do século XX”. Diálogos. Maringá
(PR), vol. 2, n. 2, 1998, p. 134. Ver também SOUZA, Luis Antônio Francisco de. Lei, cotidiano e cidade: polícia
civil e práticas policiais na São Paulo republicana (1889-1930). São Paulo: IBCCRIM, 2009, pp. 219-266.
298
SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. “Entre a lei e o arbítrio: ordem pública e poder de polícia em São
Paulo (1890-1920)”. Locus: revista de História. Juiz de Fora (MG), vol. 13, n. 1, 2007, p. 173.

79
anarco-sindicalistas, organizações operárias e domicílios dos grevistas, sob ameaça de prisão
caso o proletariado se recusasse a voltar ao trabalho299.
Outro tipo de prática coercitiva eram as prisões por conta de contravenções diversas,
como a vadiagem, embriaguez, prostituição e mendicância, também permeadas pela
arbitrariedade e violência, até porque geralmente sucediam por mera suspeição ou
conveniência. As detenções em virtude da cognominada vadiagem, por exemplo, tinham lugar
caso o suspeito não pudesse comprovar “trabalho honesto” ou domicílio fixo, bastando para
prendê-lo em flagrante duas ou três testemunhas, as quais comumente pertenciam à própria
polícia300.
Os procedimentos ilegais de soldados e delegados eram tolerados e até mesmo
elogiados pelas autoridades do poder público, em nome do bem comum e da moralidade
pública. Sob o manto da manutenção da ordem, autoridades policiais agiam sobre a população
pobre por meio de ações marcados “principalmente pela arbitrariedade e pela ausência de
critérios legais na contenção e na vigilância da chamada ‘classe perigosa’”301. Tal modus
operandi, somado à péssima conduta de muitos membros, os quais se envolviam em brigas
com os seus colegas de profissão, soldados do Exército ou bombeiros, provocando confusões
e tiroteios302, certamente contribuiu para a desconfiança de uma parcela da sociedade civil em
relação à polícia. E era essa força repressora dos mais pobres que A Capital exigia para coibir
os saberes e costumes que não coadunavam com a modernidade.
No entanto, nem sempre o jornal elogiava com tanto vigor quando se referia às
autoridades policiais. Por vezes, as noticias assumiam um tom muito mais exigente,
cobrando-as, chegando até mesmo a criticar a lentidão na solução de alguns casos. Em uma
notícia de título “Macumba”303, criticou a demora da polícia da capital em prender feiticeiros
e curandeiros exaustivamente citados pelo diário, comparando-a com a agilidade do corpo
policial do interior:

É preciso declarar guerra á feitiçaria. E isto cabe á policia. E a policia, infelizmente,


299
Cf. Idem. “Polícia e trabalhadores urbanos em São Paulo (1890-1920)”. Locus: revista de História. Juiz de
Fora (MG), vol. 11, n. 1 e 2, 2005, pp. 33-50.
300
Idem. “Entre a lei e o arbítrio: ordem pública e poder de polícia em São Paulo (1890-1920)”, op. cit., p. 176.
301
Idem, Ibidem, p. 178.
302
MUNHOZ, Sidnei José, op. cit., p. 144.
303
Vale notar que, como veremos ao longo deste trabalho, o jornal não lograva decifrar as práticas mágicas. Ou
seja, “algumas vezes a notícia é pouco detalhada, utilizam-se termos genéricos ou ambíguos, tal como
espiritismo, sem que a cor ou a origem nacional dos envolvidos seja referida nem listados os objetos rituais
encontrados ou apreendidos, nestes casos, não há como determinar o tipo de incidência.” (NEGRÃO, Lísias.
op. cit., pp. 47-48). Nesse sentido, o termo “macumba” inserido pelo jornal não se refere necessariamente a um
rito específico, possuindo, inclusive, o mesmo sentido que “feitiçaria” e “curandeirismo”, conforme notamos em
outras notícias.

80
pouca coisa, nesse sentido tem feito.
O Christi continua em Pinheiros; o Antonio Moraes, na 4ª Parada; a Francisca
Napolitana, na rua Padre Adelino; o ‘dr.’ Velloso, em Itaquera. E, assim por diante,
todos os ‘macumbeiros’ trabalham, longe das persiguições [sic] policiaes.
No emtanto, emquanto isto acontece aqui na capital, as autoridades do interior agem.
Vejamos, por exemplo, a ultima ‘remessa’ que veio para o Gabinete de
Investigações: Sebastião Pereira de Camargo e sua companheira Hilaria Pereira.
Preso em Pirajuhy, esse casal foi posto á disposição da delegacia de Costumes e
Jogos, visto ter ficado apurado exercer sua actividade naquella cidade, como
feiticeiros, curandeiros, além de praticar outras sortes e charlatanices.
Sebastião conta ainda varias passagens pela delegacia de Roubos, não lhe sendo
estranhas, tambem, as grades das cadeias do Rio Claro, Itú, Itapetininga, Baurú e
Pirassununga.304

Em uma notícia publicada na edição de 23 de julho de 1929, o jornal igualmente teceu


duras críticas à corporação policial. Foram denunciados dois acontecimentos. No primeiro,
em São Caetano, a suposta agressão, na Estação Inglesa, a um vendedor do jornal A Capital
feita por feiticeiros. Como resultado,

a policia ficou ao lado dos ‘macumbeiros’, prendendo o vendedor da “A


CAPITAL”, José Castilhos, de 30 annos de idade, brasileiro, morador nesta capital,
em Villa Monumento.
Castilhos deceu para o xadrez de S. Caetano banhado em sangue.
E nem siquer foi medicado na policia.
A violencia, como se vê, foi das maiores.305

Por meio de uma linguagem eivada de exageros, pois o vendedor não estava apenas
ferido, mas sim “banhado em sangue”, a questão que se punha com essa notícia era: como
um trabalhador, em pleno exercício de seu ofício, pode ter sido agredido por feiticeiros, sendo
ainda por cima preso? E mais: os mesmos estariam, por meio das agressões a José Castilhos,
impedindo que a informação chegasse ao leitor, já que, com os ataques, impediriam a venda
dos exemplares do diário. O jornal insinuou uma ligeira proteção da polícia em favor dos
praticantes de magia no município de São Caetano, alcunhando-o de “cidade do ‘candomblé’,
o fóco da ‘macumba’ desbragada, perniciosa, doida”306, onde “vivem todos os
‘preparadores’, desde o ‘magico’ oriental até á ‘tiradeira’ de sorte mais barata”307. Em
seguida, na segunda parte da reportagem, eram denunciadas duas feiticeiras: a espanhola
Maria Peres Santes, casada, 50 anos, com várias passagens pela Delegacia de Costumes,
“afamada em toda zona, inclusive nos arraiaes da policia da rua dos Gusmões” 308; e
Ernestina Jannuaria, conhecida mais como Lucia Leite Januaria, ou mesmo Eliza, “que é
304
A Capital, 18 de julho de 1929.
305
Idem, “Um vendedor da ‘A CAPITAL’ aggredido em S. Caetano pelos feiticeiros e, banhado em sangue, o
pobre homem foi mettido no xadrez”, 23 de julho de 1929.
306
Idem, Ibidem.
307
Idem, Ibidem.
308
Idem, Ibidem.

81
perigosa ‘magica’”309. O jornal encerrava a notícia afirmando serem tais feiticeiras gente
“protegida da policia daquella cidade”310, pondo em xeque, assim, as ações e a idoneidade
das autoridades policiais.
Mas apesar das condenações A Capital defendia o uso pleno da violência policial,
afinal, ao criticar sua morosidade, desejava o contrário, ou seja, uma ação enérgica sobre
aqueles que exerciam práticas mágico-religiosas, os quais “necessitam de um correctivo
severo do poder repressivo [grifo nosso]”311. Para tanto, alertava a polícia e os leitores,
apontando os lugares onde feiticeiros e curandeiros estariam atuando e exigindo todo o vigor
do aparato da Força Pública, ainda que esta atuasse de forma arbitrária. Saberes populares e
tradicionais deixavam de ser reconhecidos, transformando-se em motivos de crimes e,
portanto, casos de polícia. Desse modo, para o jornal, far-se-ia necessário afastar a população,
de qualquer maneira, do contato com os saberes mágico-religiosos. Para tanto, A Capital
utilizou-se de expedientes sensacionalistas diversos, conforme veremos mais adiante.

2.2. Estranhas práticas charlatanescas

Seguindo o Código Penal de 1890, A Capital, como vimos, denunciava os inúmeros


casos de feiticeiros, curandeiros e cartomantes. Ao fazê-lo, apresenta-os frente aos leitores
como criminosos, cuja periculosidade seria considerável.
Muitas notícias objetivavam, em face de seu público, chamar a atenção para a
bizarrice de seus métodos, os quais poderiam acarretar graves efeitos. Certa feita, A Capital
noticiava a presença, na capital paulista, de Francisca Napolitana, “’mestra’ negra dos
cangerês e a mais perigosa ‘evocadora’, que possuimos”312. Prova disso seria um fato
ocorrido em novembro de 1928: Irma Pereira, 20 anos de idade, esposa de Carlos Pereira,
procurou Napolitana para que esta curasse o seu marido, o qual sofria de tuberculose. A
curandeira teria dado uma solução um tanto estranha. Segundo o jornal, a “megera, incutindo
no cerebro de Irma a necessidade de uma pratica exótica [grifo nosso] que curaria seu
marido, fêl-a beber os escarros purulentos do tuberculoso, misturados com assucar”313. Um
tempo depois, a esposa também teria contraído tuberculose. Ao procurar um médico,
declarou-lhe que “contrahia esse mal do qual soffrera seu fallecido marido, ao mando da

309
Idem, Ibidem.
310
Idem, Ibidem.
311
Idem, “Na rua 25 de março, um ‘cavador’ embrulha a gente pobre e ignorante”, 12 de maio de 1914.
312
Idem, “Macumba”, 25 de junho de 1929.
313
Idem, “Os curandeiros”, 9 de novembro de 1928.

82
curandeira Maria [sic] Napolitana, residente á rua Padre Adelino”314.
O curandeiro Gastão Florete e Silva igualmente teve destacado o aspecto horrendo de
seus procedimentos. Conforme noticiado, na Rua Uberaba, número 9, no bairro do Chora
Menino, “uma menor atoleimada estava sequestrada, sendo ainda sujeita a continuos máus
tratos e espancamentos”315 executados por Floret. A menor seria proveniente de Jaú e pagaria
Rs. 150$000 mensais ao curandeiro para tratar sua doença, possuindo como alojamento um
quarto nos fundos da casa. Todavia, a terapêutica para curá-la não seria das mais ortodoxas,
visto que a menor era

continuamente amarrada com fortes correntes e uma mulher argentina ou


hespanhola, amante de Ulysses Floret, filho do curandeiro, a espancava até deixal-a
sem sentidos.
Essa [sic] era o tratamento applicado!...316

José Miguel de Abreu, conforme uma notícia veiculada em uma pequena nota na
edição de 14 de março de 1929, parece não possuir um comportamento muito sutil. De forma
irônica, o jornal afirma que Abreu “acaba de descobrir novo processo therapeutico para
curar epilepsia e molestias da garganta”317, já que uma mulher teria comparecido à delegacia
do 5º Distrito, queixando-se das formas de tratamento do feiticeiro e curandeiro nada
convencionais. A mulher em questão chamava-se Maria de Laura, que, sofrendo dores na
garganta, “pagou cento e cincoenta mil réis para tomar uma surra em regra, não teve apesar
disso, minorado seu padecimento”318.
Já o heterodoxo método para a cura da epilepsia teria ocasionado conseqüências ainda
mais graves. A Capital conta que uma viúva entregou sua filha a Abreu, para que fosse sanada
daquela enfermidade. Contudo, novamente de maneira irônica, afirma-se que o “espertalhão,
depois de convencera moça que só um filho delle a poderia curar, deshonestou-a, fazendo-a
jurar nada dizer do novo processo de cura”319.
Se alguns seriam ameaçadores por empregarem procedimentos um tanto esquisitos,
culminando em comportamentos agressivos e em casos de violência sexual, outros o seriam
em virtude das fórmulas utilizadas para bolarem seus medicamentos. O jornal, certas vezes,
ao relatar a prisão ou denunciar as atividades de algum praticante de magia, compilava os
ingredientes empregados em seus preparados e os objetos utilizados nos ritos, pretendendo
314
Idem, Ibidem.
315
Idem, “Curandeiro perigoso”, 21 de agosto de 1928
316
Idem, Ibidem.
317
Idem, “A macumba da Penha”, 14 de março de 1929.
318
Idem, Ibidem.
319
Idem, Ibidem.

83
mostrar ao leitor o quão horríveis, extravagantes e pavorosas eram suas técnicas.
Benedicto José Ribeiro, residente à Rua Tibiriçá, número 126, não teve listadas as
substâncias por ele empregadas, porém, foi mencionado que, para enganar seus consulentes,
“o malandro ministrava varias drogas exquisitas”320. Já Gastão Florete e Silva, além das
surras em consulentes, dizia ter curado todas as moléstias “com hervinhas, aguinhas, pedaços
de ossos, pomadas feitas com terra de cemitério, etc.”321. Antonio de Moraes, vulgo “Torto”,
por sua vez, era adjetivado como um feiticeiro de alta periculosidade, visto que faria uso da
“feitiçaria mais perigosa, que é a de composição de sementes nocivas á saúde. Terra de
cemitério, espinhas de cobra e cabellos de camello são, em suma, os elementos que enchem
de dinheiro os bolsos do velho brucho da 4ª Parada”322.
Inadmissíveis perante o saber médico desde o século XIX, substâncias provenientes
dos corpos de animais, que provocam repulsas à mentalidade científica, eram de uso corrente
nos tempos coloniais, sendo relacionadas em tratados, farmacopéias e coleções de receitas
utilizados nos continentes europeu e asiático. Oficiais de cura atuantes em Minas Gerais ao
longo dos Setecentos empregavam partes de cadáveres humanos e de animais nos remédios
destinados ao tratamento das mais variadas doenças. O óleo resultante da fritura de ratos,
misturado com outros ingredientes, por exemplo, era indicado para cura de dores de ouvido.
Marfim, raspas de ponta de veado, concreções de olhos de caranguejo, ovos de formiga e pós
e príapo de cavalo marinho igualmente entravam na composição dos medicamentos. Outro
ingrediente conhecido era o unto feito do rim de um indivíduo morto de maneira violenta,
bem como pós de crânio humano proveniente de alguém cuja morte tivesse ocorrido devido a
causas naturais ou em decorrência de um homicídio violento. “Esses elementos eram
prescritos e aceitos, fazendo parte do contexto no qual eram utilizados”323. Entretanto, no
alvorecer do século XX, os tempos eram outros, de forma que a utilização de partes de
animais era visto como algo repugnante, fora dos padrões científicos. Com efeito, A Capital,
ao noticiar o aproveitamento de espinhas de cobra ou pêlos de camelo por parte do “Torto”,
garantia a extravagância abominável dos conhecimentos e costumes daqueles que exerciam
práticas mágico-religiosas.
O húngaro Francisco Gergely, 63 anos, também foi noticiado como possuidor de
métodos considerados exóticos na fabricação de medicamentos. Procedente de Buenos Aires,

320
Idem, “Prisão de um feiticeiro”, 7 de maio de 1926.
321
Idem, “Nos domínios da malandragem”, 10 de maio de 1928.
322
Idem, “O ‘Torto’ novamente em scena”, 28 de junho de 1929.
323
ALMEIDA, Carla Berenice Starling de. Medicina mestiça: saberes e práticas curativas nas Minas
setecentistas. São Paulo: Annablume, 2010, p. 106.

84
Gergely instalara-se na Pensão Alemã localizada na Rua José Bonifácio, para, conforme
noticia o jornal de maneira sarcástica, vender um preparado denominado Retoka, “um
‘maravilhoso’ preparado de sua descoberta, para a cura de todas as molestias, como fazia
324
constar de um annuncio pelos jornaes” . No entanto, Gergely foi descoberto pelo Serviço
Sanitário, sendo preso pelo delegado Pedro Ribeiro. Junto com o imigrante húngaro, foram
apreendidas “353 bolinhas de côr preta e diversos pacotes de fumo desfiado e outros de fumo
em corda”325. Descobriu-se, de acordo com a notícia, no Gabinete de Chimica Legal, que a
única composição do Retoka era fumo, e nada mais. Do mesmo modo que o “Torto”, Gergely
seria mais um explorador, já que suas técnicas em nada se assemelhavam ao saber médico
oficial.
Para patentear ainda mais ao leitor a feição esquisita das práticas de feiticeiros e
curandeiros eram também detalhados os pertences empregados durante os rituais e
encontrados no momento de sua prisão, caso de João Pedro Luz, vulgo João Colasso,
feiticeiro, morador de Santo Amaro, o qual foi preso, junto com seus consulentes, pelo
delegado Mário Bastos Cruz, sendo, em sua residência, apreendidas “innumeras bugigangas,
taes como: um santo Onofre enterrado no quintal, diversas receitas de remedio, raizes e
ervas, terra de cemitério, velas”326. Da mesma maneira, Manuel de Freitas, residente à Rua
Monte Alegre, 20, teve pelo diário arrolados os seguintes objetos: “raizes, folhas, velas de
sebo, rosarios”327. José Frederico de Moraes, conhecido mais como José Pereira Sant’Anna,
por sua vez, quando da busca efetuada em sua residência, teve apreendida uma “grande
quantidade de pós, cobras, cascas de lagartos”328.
Mas não eram apenas os feiticeiros e curandeiros que se enquadravam na categoria de
sujeitos de periculosidade considerável em virtude de suas práticas para subjugar o público.
Os “adivinhadores” e as cartomantes também aparecem nos jornais como embusteiros,
conforme se nota na reportagem “No dominio da magia – A Cartomante”. Dois repórteres
foram ao consultório de Madame Angelina. O diálogo entre os três é reproduzido nesta
narrativa. Notemos como se quer passar a idéia de uma cartomante que, por meio da
afirmação de que a vela sobre a mesa seria milagrosa e dos seus rituais, tenta de forma
dissimulada criar um ambiente eivado de sobrenaturalidade para fascinar seus consulentes:

324
A Capital, “A prisão de um curandeiro hungaro”, 17 de agosto de 1921.
325
Idem, Ibidem.
326
Idem, “A prisão de um feiticeiro”, 19 de maio de 1926.
327
Idem, “Mais um curandeiro preso”, 14 de maio de 1918.
328
Idem, “O curandeiro de Salto de Itú”, 15 de outubro de 1915.

85
Seriam seis horas da tarde, quando saltámos de um bonde da linha n. 18, lá pelos
fins da rua S. Caetano. Madme Angelina, uma italiana gorda, de olhos azues como
coral recebeu-nos amavelmente.
- Então, <<seu doutor>>?
- Eu queria que madame dissesse alguma coisa...
- Sobre o futuro?
- É sim sobre, o futuro...
Entrámos
Na sala acanhada, dois gatos espreguiçavam-se sobre um sofá de palinha.
Madame Angelina approximou-se de um oratorio que dascançava a um canto, tirou
uma vela e um maço de cartas, que tirou sobre uma mesa de centro.
- São os meus apetrechos...
- E a vela?
- É uma vela benta. Veiu da Santa Cruz dos enforcados, do largo da Liberdade.
E ajuntou:
- É milagrosa...
Depois, <<cortando>> o baralho, traçou no ar diversos signaes cabalisticos,
benzendo-os varias vezes e rezou para terminar, tres Aves Marias.329

Em seguida, segundo os repórteres, Angelina solicitou a um dos presentes que tirasse


uma carta do maço: previu-se briga em casa, por ciúmes (-“Briga em casa! Casado...
Ciúmes...). Ao tirar outra carta, novamente a madame profetizou outra desgraça: mais intrigas
no âmbito conjugal. E à medida que as cartas iam sendo retiradas, os lábios de madame
Angelina abriam-se para prever mais e mais infortúnios. Os repórteres solicitaram o fim da
sessão. Observemos, no desfecho do diálogo, através da descrição de sua alegria em cobrar a
consulta, bem como do momento em que guarda o pagamento recebido das mãos dos dois
integrantes d’A Capital, como a cartomante aparece desqualificada como charlatona,
exploradora, interessada em obter mais e mais dinheiro por meio de uma atividade ilícita:

Ella sorriu. E accrescentou, estendendo nos a mão:


- São só cinco mil réis...
Tirámos, com a maior dóse de philosophia possivel, uma nota de nossa carteira.
- Aqui está. O officio rende, hein?
- Qual! A policia anda sempre a metter o bico onde não é chamada...
E, depois de um pequeno silencio:
- Mas, sempre rende alguma coisa...
Dá para a gente ir vivendo <<seu>> doutor...
[...] No extremo da rua S. Caetano o carro electrico apontava.
Sahimos, enquanto madame Angelina, sempre alegre, sempre sorridente,
cautelosamente amarrava na ponta de um lenço de linho os nossos ricos cinco mil
réis...330

Algumas videntes, por sua vez, em suas propagandas, procuravam se diferenciar dos
feiticeiros e curandeiros, não permitindo ser com eles confundidas. Dessa forma, procuravam
afirmar seu caráter de cientificidade, como podemos atestar na reprodução de um anúncio
reproduzido pela A Capital com o intuito de denunciar uma vidente de passagem pela cidade
329
Idem, “No dominio da magia – A Cartomante”, 28 de março de 1917.
330
Idem, Ibidem.

86
de São Paulo. No reclame, Mme. Mariani prometia não apenas realizar adivinhações como
também resolver qualquer tipo de problema, desde as enfermidades até questões da vida
cotidiana:

O SEGREDO DO PODER

Presente, passado e futuro revelado pela inegualavel sonambula Mariani. A celebre


professora das sciencias occultas Mme. Marini [sic], de passagem por essa cidade,
aqui se demorará alguns dias descobrindo por pensamento pessoas ausentes,
enfermidades, assumptos amorosos, interessses [sic] particulares de familias e tudo
mais que possa interessar a vida intima de qualquer pessoa.
É esta a tão festejada vidente que tem percorrido as principaes cidades da Europa,
onde tem feito um ruidoso successo pelas suas extra ordinarias previsões de futuros
e que deixou um nome aureolado pelas mais raras demonstrações de apreço.
Pode ser procurada das 9 horas da manhã ás 8 da noite de todos os dias.
Avenida Tiradentes, 126, S. Paulo.331

Atentemos para dois aspectos ressaltados pela vidente em seu anúncio para se
legitimar. O primeiro diz respeito à sua experiência: Mariani (ou Marini?), conforme o
anúncio, fez viagens pela Europa. Com isso, procura-se dar maior credibilidade a seus
serviços, afinal, a passagem por aquele continente significa que esteve diretamente em contato
com os padrões de civilização e modernidade, diferenciando-se, assim, dos feiticeiros e
curandeiros de tradições iletradas. Já o segundo concerne à insistência em destacar o
conhecimento das ciências ocultas, para demonstrar a cientificidade de sua atividade. A
leitura das mãos e de cartas, as premonições ou as famosas “visões” também eram
consideradas pelo discurso científico como símbolos do atraso e da falta de civilização. Ao
invés de se contraporem a esse discurso, as videntes apropriaram-se exatamente dos
princípios de cientificidade e erudição para respaldarem suas práticas. Não propunham uma
nova forma de saber. Pelo contrário, faziam o possível para comprovar que seus
conhecimentos estavam de acordo com tais valores, constituindo, assim, uma forma de
legitimação similar àquela dos médicos empíricos, contrários à medicina ortodoxa e, portanto,
tratados como charlatães pelos doutores adeptos desta última, na Inglaterra entre a
Restauração e o fim do século XVIII.
Roy Porter indica que a sociedade inglesa “bem-educada esperava que seus médicos
se comportassem e falassem como cavalheiros, e é por isso que uma educação em Oxford ou
Cambridge, familiaridade com a cultura clássica e polidez permaneceram como passaportes

331
A Capital, “S. Paulo, com o seu bom numero de cartomantes e feiticeiras, ainda hospeda ‘aves’ de fóra”, 27
de novembro de 1912.

87
para o sucesso para o médico elegante”332. Por conseguinte, os denominados médicos
charlatães notaram que os anúncios destinados à venda de suas panacéias ou seus panfletos de
aconselhamento sobre saúde deveriam seguir esse perfil de doutor requintado. Para tanto,
inseriam em seus discursos o palavreado da filosofia natural, para torná-los ininteligíveis por
meio do intrincado linguajar científico; afirmavam possuir pleno conhecimento nas várias
áreas da filosofia natural, desde a Física até a Química; compunham os textos e rótulos em
latim; garantiam, aproveitando a fascinação de muitos europeus pelo Oriente, dominar saberes
exóticos deste continente devido a várias viagens; e exaltavam suas conexões, verdadeiras ou
inventadas, com a realeza. Tudo isso, muitas vezes, em conluio com médicos ortodoxos, os
quais lucravam com o empréstimo de seus nomes a remédios ou pílulas patenteados e feitos
com base em fórmulas secretas pelos charlatães333.
No caso das adivinhadoras do Brasil do alvorecer dos Novecentos, como dito
anteriormente, podemos perceber formas de validação semelhantes às dos médicos empíricos
ingleses, qual seja, o destaque concedido ao conhecimento científico, à experiência em
viagens e à erudição. Em um anúncio de outra vidente, que não forneceu seu nome, da mesma
forma que no anúncio de Madame Marini, prometia-se não só praticar a adivinhação para seus
consulentes como também a cura de qualquer enfermidade. O esforço para se destacar o
domínio de saberes científicos e a experiência no ramo também estavam presentes. Note-se
também outra forma de legitimação da atividade das videntes utilizada em ambos os
anúncios: há um local determinado de recepção dos consulentes, com horários de consulta
preestabelecidos, características, por sinal, muito próximas às dos médicos. Todos esses
aspectos – um atendimento organizado, o conhecimento das ciências ocultas e as passagens
pela Europa – confluíam para que as videntes, nas propagandas, tornassem sua visita algo
único e excepcional. Através das estratégias citadas, procuravam não apenas se distinguir das
práticas de feiticeiros e curandeiros, como também afastar-se das perseguições policiais e dar
credibilidade às suas atividades em face da ciência:

AOS BONS CONSELHOS

Aviso a minha freguezia e ao publico em geral, que depois de 15 annos de


constante esperiencia conheço todos os segredos da sciencia occulta, magnetica e
ipnotica e ainda mais todas as virtudes das plantas, de forma que posso aliviar todo
e qualquer mal ou doença.
Posso tambem dar conselhos sobre todos e quaesquer afectos intimos da alma
humana, descobrindo e cortando todos os enredos que á ella se referem.

332
PORTER, Roy. “A linguagem do charlatanismo na Inglaterra, 1660-1800”. In: BURKE, Peter & PORTER,
Roy (orgs.). História social da linguagem. São Paulo: EDUNESP,1997, p. 88.
333
Idem, Ibidem, p. 88.

88
Dirigir-se aos bons conselhos. Rua Manoel Dutra n. 42. Todos os dias de 7 ás 11
horas da manhã e de 1 hora da tarde até ás 9 horas da noite.334

No entanto, é importante destacarmos uma questão. Se A Capital valorizava os


praticantes das ciências ocultas, conforme afirmado anteriormente, por que não aceitava as
videntes supracitadas, as quais diziam embasar seus conhecimentos justamente no ocultismo?
Lembremos que, como destacaremos no capítulo terceiro, muitas das pitonisas, inclusive,
tinham suas previsões para os acontecimentos marcantes para ano que acabava de se iniciar
publicadas no jornal. Contudo, tais pitonisas cujas habilidades eram elogiadas apenas
realizavam previsões, sem prometerem curas ou aconselhamento sobre problemas particulares
dos consulentes, bem como sua resolução, algo considerado infração do artigo 157 do Código
(utilização de meios para despertar sentimento de ódio e amor). Com efeito, aos olhos do
diário, ao prometerem intervenção em questões amorosas, interesses particulares de famílias e
atribulações das vidas de indivíduos, além de cortar “os enredos que á ella se referem”, as
videntes acima citadas estariam infringido a lei, constituindo-se, assim, em charlatonas, ao
contrário de outras pitonisas e videntes.

2.3. Indivíduos desonestos atraídos pela possibilidade do dinheiro fácil

Antes de partirmos para a análise das notícias em que os adeptos das práticas mágico-
religiosas apareciam como principal razão ou personagens capitais de crimes noticiados de
modo sensacionalista, faz-se imperioso tecermos considerações sobre o que A Capital
imaginava ser o motivo fundamental para que indivíduos se tornassem feiticeiros, curandeiros
ou cartomantes. Em primeiro lugar, devemos ressaltar que o diário, em momento algum,
coadunando com o pensamento dos intelectuais e das classes dominantes, reconhecia as
práticas mágico-religiosas como uma forma específica de saber, de modo que o conhecimento
adviria apenas do letramento e dos estudos científicos. Seriam somente mais uma forma
vigarista de se amealhar dinheiro fácil.
Posto isso, se o universo mágico-religioso constituiria um crime, a questão posta pelo
jornal consistia em levantar as razões determinantes para que cada vez mais indivíduos
passassem a viver dessa atividade ilícita. Primeiramente, não deixava de reconhecer a
desigualdade social como uma das bases fundantes. Se as condições de vida dos trabalhadores

334
A Capital, “Feitiçaria – S. Paulo está cheio de ‘deuses’ exploradores”, 28 de fevereiro de 1913.

89
eram precárias, em decorrência dos baixos salários e dos preços elevados dos gêneros
alimentícios, muitos pobres recorriam à feitiçaria para sobreviverem:

Uma das causas dessa proliferação de especuladores é a carestia da vida. É


paradoxal, mas é verdadeira.
Quando maior é a pobreza das classes inferiores das sociedades maior é a bruxaria.
O pobre que tem alguns nickeis emprega-os numa forma de hypotheticamente
multiplical-os.
A fome os desvaira e surgem os feiticeiros.335

O trecho acima trar-nos-ia a idéia de que há uma ligeira alteridade por parte do diário.
Aqueles que passaram a se dedicar a práticas mágico-religiosas não seriam torpes, mas tão
somente fruto das terríveis condições de vida do operariado. Ledo engano. A leitura de outras
notícias logo desfaz essa falsa impressão. Exemplo claro é a edição de 3 de outubro de 1929,
em que é noticiada a prisão de José Alves Sobrinho. Logo no início, afirma-se, com uma
ponta de escárnio, que Sobrinho, antes de “se entregar á rendosa profissão de curar e
conhecer o futuro pela borra do café”, trabalhou como engraxate, lixeiro da Prefeitura e
“poeta nas horas vagas, quando não chovia”336. Entretanto:

De repente, arrepiou caminho. Aquellas profissões se lhe afiguravam muito honestas


e chatas.
Outros ganhavam a vida por ahi com grande facilidade, mercadejando a honra, a
familia e tudo o mais.
Por isso mesmo o ‘dr.’ José Alves Sobrinho, resolveu virar ‘medico’ desses famosos
de ‘arrebimba o malho’, que curam todas as enfermidades, desde os callos até a
caspa e a careca.
E montou um gabinete, com as retortas as caçarolas velhas, os baldes enferrujados,
‘pinga’ da bôa e fogareiro.337

Com o já citado Gastão Florete e Silva, também preso pela polícia, a mesma viragem
de comportamento teria ocorrido quando este se transformou em curandeiro. Expõe A Capital
que:

Uma prova de tão esplendida profissão temol-a com o esperto Gastão Florette e
Silva, ex-lnotypista [sic.].
Gastão que ganhava a sua vida honradamente mas com grande sacrificio, um dia
abandonou a officina e se fez ‘medico’.
[...] Gastão em pouco tempo tornou-se um graúdo.338

335
Idem, “A feitiçaria em São Paulo, não é só annunciada, nos jornaes, com o endereço: é ambulante”, 6 de
junho de 1913.
336
Idem, “O medico das Arabias que cura com hervas, raizes e ‘cangerê’”, 3 de outubro de 1929.
337
Idem, Ibidem.
338
Idem, “Nos dominios da malandragem”, 10 de maio de 1928.

90
Notemos bem, tanto no caso de Gastão quanto no de Sobrinho, as linhas escritas pelo
jornal aqui reproduzidas. Nada de Escola Positivista, de patologização do ato anti-social ou de
determinismo biopsicológico. Nenhuma concepção de criminoso enquanto doente e de crime
enquanto sintoma. Longe disso. Gastão é apresentado como um “esperto”, e, para Sobrinho,
suas antigas profissões lhe pareciam demasiadamente honestas e entediantes. Vejamos como é
engendrada a seqüência disposta pelo periódico. Ambos estavam no caminho certo. Eram
trabalhadores dignos e probos, esforçando-se, de maneira hercúlea, para obterem seus parcos
vinténs por meios lícitos. Viviam em uma pobreza decente e honesta, contudo, quem sabe,
futuramente os honrados ofícios poderiam trazer-lhes bons frutos. Mas, certo dia, tudo
mudou: vislumbrando a possibilidade de auferirem lucros de modo muito mais fácil, seguiram
o caminho da criminalidade. Malgrado a vida difícil de trabalhador, reconhecida pela A
Capital, a entrada no mundo da marginalidade não se justificaria. Poderiam continuar a trilhar
o duro, mas honrado, percurso da melhoria das condições financeiras pela labuta. Porém,
preferiram os meios ilícitos. A desigualdade não poderia servir como desculpa: ambos teriam
optado livremente pelos meios errôneos em lugar da vida honesta.
Nesse sentido, o diário se aproximava muito mais das concepções da Escola Clássica,
para quem era óbvia a associação do crime com o livre-arbítrio, de modo que a transgressão
das leis resultaria de uma escolha do indivíduo, dependendo do nível sua moralidade339.
Como resultado, aos olhos d’A Capital, Gastão e Sobrinho preferiram infringir o Código
Penal, acima de tudo, porque eram imorais por natureza, visto que poderiam ter continuado a
se dedicarem aos trabalhos honestos.
Desse modo, praticantes de ritos de magia constituiriam uma horda de malandros. Em
lugar de uma vida produtiva de trabalhador, formavam uma “especie de gente que vive no
ocio e nada mais faz do que explorar os incautos”340, uma “enorme caterva de cavadores e
vagabundos”341, ou, como se afirmou certa feita sobre os feiticeiros da cidade de São
Caetano, “trapos moraes”342. O moralismo latente destilado atinge o mais alto grau no trecho
a seguir, quando os adeptos das práticas mágico-religiosas são tratados como indivíduos de
“cultura nenhuma, finorio em excesso, escondendo, debaixo da capa de bonhomia que, em

339
Sobre as concepções das duas escolas acerca do crime e do criminoso, ver RIBEIRO FILHO, Carlos Antonio
Ribeiro. “Clássicos e positivistas no moderno direito penal brasileiro: uma interpretação sociológica”. In:
HERSCHMANN, Micael H. & PEREIRA, Carlos Alberto Messeder (orgs.). A invenção do Brasil moderno:
medicina, educação e engenharia nos anos 20-30. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
340
A Capital, “S. Paulo, com o seu bom numero de cartomantes e feiticeiras, ainda hospeda ‘aves’ de fóra”, 27
de novembro de 1912.
341
Idem, “Na rua 25 de março, um ‘cavador’ embrulha a gente pobre e ignorante”, 12 de maio de 1914.
342
Idem, “O successo de nossas reportagens hontem na visinha cidade”, 24 de julho de 1929.

91
certas horas, lhe cobre o rosto, num refinado tratante, um fanfarrão”343, sem qualquer
princípio ético, o que faz com que ponham “de lado todo o pundonor, a consciencia e o
proprio brio”344, e em cujo “organismo parece não existir um musculo decantado pelos
poetas e que se chama coração”345.
E mais: entraram no mundo ilícito da magia não para arrecadarem uma pequena
quantia de dinheiro a fim de que pudessem sobreviver, o que caracterizaria apenas um
pequeno desvio acarretado pelo desespero na luta por um prato de comida. Pelo contrário,
fizeram-no com o intuito de auferir mais e mais lucros, já que a “vida de curandeiro em São
Paulo é invejavel. Individuos ha que de simples operarios passam logo a ‘bons vivants’
felizes, endinheirados [grifo nosso], etc”346. Opulentos de tal modo que, certa feita, noticiou-
se que haveria “feiticeiros profissionaes que fazem hypothecas e emprestam dinheiro a longo
prazo e... asphyxiante juros”347. Daí, segundo a linha de raciocínio d’A Capital, Gastão,
Sobrinho e todos que praticavam magia serem destituídos de moralidade, pois se renderam à
ambição, à fortuna desmedida obtida sem grandes esforços, vivendo no conforto por meio da
exploração das denominadas “almas fracas”, sem se importarem se os meios para tanto eram
lícitos ou não. Deixaram de se importar com próximo, perdendo os princípios humanitários. O
vil metal falou mais alto!
Todavia de forma alguma isso significa que o referido periódico assentasse seus juízos
sobre a associação, engendrada pelas classes dominantes no fim dos Oitocentos, classes
pobres igual a classes perigosas348. Aqui, não se encontra presente a idéia de pobreza
enquanto portadora de vícios, que, por sua vez, produziriam os malfeitores. Tampouco
notamos a formulação pobre igual a indivíduo carregado de periculosidade para o corpo
social. Como veremos posteriormente, muitos dos sujeitos apresentados como vítimas dos
praticantes de magia eram qualificados como trabalhadores e íntegros, malgrado a penúria,
enfrentando tenazmente as duras condições financeiras. Por ocasião da veiculação do citado
episódio dos rumores sobre fantasmas no casarão da usina da Light, vale lembrar, o diário
afirmou que tais “mysteriosos acontecimentos” ainda preocupavam os “espiritos simples”,
associados à população de parcos recursos financeiros, como vimos anteriormente,
incomodando a “boa fé dessa gente ordeira a quem a Paulicéa deve o seu extraordinario

343
Idem, “Charlatães, curandeiros, ‘et caterva’”, 12 de março de 1917.
344
Idem, Ibidem.
345
Idem, Ibidem.
346
Idem, “Nos dominios da malandragem”, 10 de maio de 1928.
347
Idem, “Macumbeiros”, 25 de junho de 1929.
348
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996, pp. 20-29.

92
desenvolvimento”349. Com efeito, ainda que caracterizados como ignorantes, o contingente
pobre da cidade era adjetivado como um povo laborioso, não possuindo o estigma de
preguiçoso, vadio, indisciplinado e racialmente inferior destilado sobre o trabalhador
brasileiro pelos intelectuais entre o fim do século XIX e o início do XX350.
No entender do jornal, a questão não reside na pobreza, mas sim em princípios morais.
A classe social não se constitui em fator determinante, de maneira que o maniqueísmo d’A
Capital distingue os pobres dignos, portanto eivados de princípios éticos, dos pobres
destituídos dos mesmos, sendo sua entrada na criminalidade o resultado da imoralidade. A
indigência não seria, por excelência, carregadora dos vícios, sendo estes frutos da carência de
decência imanente aos imorais.

2.4. Destruidores das instituições do casamento e da família

Ao longo da segunda quinzena de novembro de 1928, A Capital publicou matérias


sobre o caso de Amalia de Jesus Flagellado, 27, jovem de nacionalidade espanhola, que,
segundo o jornal, dez anos antes chegara a Campinas, fundando o “Instituto Missionarios
Jesus Crucificado”. A freira Amalia, desde o dia 14 de agosto de 1928, teria começado a
sofrer de “todos os tormentos da paixão de Christo”351, apresentando altas febres de 44 graus.
Os médicos Clovis Peixoto e Cunha Campos conseguiram diminuir a temperatura da paciente,
porém, três dias depois, as primeiras chagas sangrentas teriam surgido, “como as de
Chatarina Neumann, ou de S. Francisco de Assis, desapparecendo logo depois, para dar
logar a numerosas outras chagas pelo corpo, nos joelhos, na ilharga, todas borbulhando
sangue vivo”352.
De mais a mais, Amalia através de conversas com um crucifixo, conseguiria ouvir a
voz de Cristo e responder a perguntas das mais diversas, tais como sobre filosofia, psicologia
e ciências, assuntos por ela desconhecidos quando em estado normal.
Após publicar opiniões de médicos e psiquiatras acerca do caso, o jornal arrematou, na
edição de 17 de novembro de 1928:

Discutam os sábios, apaixonem-se os sectários, solucione-se, scientifica e


religiosamente o caso das estigmatizações e dos milagres vários, mas o povo
349
A Capital, “A casa dos phantasmas”, 23 de julho de 1928.
350
NAXARA, Márcia Regina Capelari. Estrangeiro em sua própria terra: representações do brasileiro,
1870/1920. São Paulo: Annablume, 1998, pp. 37-75.
351
Idem, “Os milagres da época”, 14 de novembro de 1928.
352
Idem, Ibidem.

93
continuará a crêr no sobrenatural, expandindo a tendência nativa de sua raça, essa
latinidade emotiva, crivada de lendas, onde brilham a aureola dos santos e dos
martyres e furam o espaço os cornos ponteagudos dos demônios.
Basta de divagações, pois nos chama o cumprimento do dever que é,
materialmente, a confecção do noticiário tão lido pelas classes proletárias para
quem escrevemos as noticias desse gênero353.

Aqui se apresenta algo essencial para nossa pesquisa, a saber, a concepção que a A
Capital possuía de seu público leitor. Já constatamos anteriormente que o diário, em várias
notícias, tratava as “classes proletárias” como incultas, imbecis e de parca inteligência. A
irracionalidade da população operária, tão ao gosto da psicologia das massas, é retomada no
excerto acima, haja vista a sua “latinidade emotiva”, de modo que o contingente pobre da
cidade continuaria a crer cegamente em fatos ditos sobrenaturais, negando os parâmetros
científicos de pensamento, constituindo um comportamento típico da “raça” brasileira, juízo
que expressa, uma vez mais, um flerte do diário com o pensamento evolucionista racial.
Por conseguinte, em decorrência dessa apregoada ausência de racionalidade, de acordo
com a linha de pensamento do jornal, por mais que se publicassem as explicações científicas
acerca dos fenômenos encarados como sobrenaturais, os leitores ainda continuariam a crer nos
chamados milagres. De nada serviria a exposição de grandes elucidações advindas da ciência,
afinal, o seu público, naquele momento, não se encontrava suficientemente aparelhado
intelectualmente para compreendê-las.
Qual a importância dessa constatação? Lembra Mikhail Bakhtin que um enunciado
proferido por um indivíduo compõe um elo da cadeia de comunicação verbal, de modo que
seus enunciados, para existirem, pressupõem a existência de outros anteriores aos seus, aos
quais o seu próprio enunciado está vinculado por algum tipo de relação (de concordância,
polêmica, repúdio etc.). Todo discurso sobre um dado objeto encontra-se com os discursos
dos outros sobre o mesmo objeto ou tema. Assim, aquele que emite um enunciado não é o
primeiro locutor a romper o “eterno silêncio do mundo mudo”354, mas sim,
fundamentalmente, um interlocutor respondente, reagindo a outros enunciados já
pronunciados e buscando também despertar reações-resposta por parte de seus interlocutores
(de contestação, consentimento, objeção, revolta etc.). O engendramento do enunciado,
portanto, é de natureza dialógica e social, fruto da interação verbal envolvendo dois ou mais
indivíduos socialmente organizados:

353
Idem, “A freira santa de Campinas”, 17 de novembro de 1928.
354
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal, op. cit., p. 291.

94
O enunciado deve ser considerado acima de tudo como uma resposta a enunciados
anteriores dentro de uma dada esfera (a palavra “resposta” é empregada aqui no
sentido lato): refuta-os, confirma-os, completa-os, baseia-se neles, supõe-nos
conhecidos e, de um modo ou de outro, conta com eles.355

Desse modo, nossos enunciados estão carregados das palavras dos outros,
caracterizadas, “em graus variáveis, pela alteridade ou pela assimilação, caracterizadas,
também em graus variáveis, por um emprego consciente e decalcado”356. As palavras dos
outros introduzem seu tom valorativo sobre determinado objeto, que assimilamos,
completamos, reestruturamos ou modificamos e com o qual podemos concordar, discordar ou
polemizar. O jornal A Capital, por exemplo, seguindo a linha de raciocínio bakhtiniana
exposta, não foi o primeiro a tecer considerações sobre os adeptos das práticas mágico-
religiosas. Pelo contrário, intelectuais e cientistas – seus condenadores – e indivíduos
consulentes dos denominados “antros de feitiçaria” já o fizeram, de maneira que o diário, ao
articular enunciados sobre o objeto em questão (feiticeiros, curandeiros e cartomantes), está
efetuando uma atitude responsiva: concorda com os enunciados dos dois primeiros, desejando
a obliteração dos praticantes de magia, e discorda do segundo grupo, tencionando mostrar a
não legitimidade e a periculosidade daqueles. Com isso, procura influenciar os consulentes
para que deixem de freqüentar os “tempos de feitiçaria”, pois, o que se espera “não é uma
compreensão passiva que, por assim dizer, apenas duplicaria seu pensamento no espírito do
outro, o que espera é uma resposta, uma concordância, uma adesão, uma objeção, uma
execução, etc”357.
Contudo, para a construção dos nossos enunciados, não combinamos livremente as
formas da língua. Os enunciados possuem formas peculiares de estruturação da totalidade
discursiva, necessárias para a sua construção e compreensão. Tais formas variam conforme as
diversas esferas da atividade humana às quais estão associadas. Como assevera o teórico
russo, todas “as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre
relacionadas com a utilização da língua. Não é de surpreender que o caráter e os modos
dessa utilização sejam tão variados como as próprias esferas da atividade humana”358.
Com efeito, cada esfera da comunicação social utiliza de modo específico a
linguagem, ou seja, cria novos padrões peculiares de comunicação verbal. Essas fórmulas
específicas são, por Bakhtin, denominadas de “gêneros de discurso”, tipos estilísticos e
composicionais relativamente estáveis de enunciados.
355
Idem, Ibidem, p. 316.
356
Idem, Ibidem, p. 314.
357
Idem, Ibidem, p. 291.
358
Idem, Ibidem, p. 279.

95
Os gêneros de discurso não são frutos do subjetivismo de um indivíduo, embora este
possa empregá-los de maneira mais livre e criativa, possibilidade já inscrita no próprio
gênero. Estabelecem-se historicamente, tendo como ponto de partida as diferentes situações
sociais. “Uma dada função (científica, técnica, ideológica, oficial, cotidiana) e dadas
condições, específicas para cada uma das esferas da comunicação verbal, geram um dado
gênero, ou seja, um dado tipo de enunciado, relativamente estável do ponto de vista temático,
composicional e estilístico”359.
O querer-dizer do locutor se realiza na escolha de um gênero de discurso, ou seja,
todos os nossos enunciados dispõem de uma forma padrão. Os gêneros de discurso organizam
nossa fala, além de arranjar, construir e acabar “de maneira específica, a forma gramatical e
estilística do enunciado, assim como a estrutura do tipo do qual ele depende”360. São
variáveis e ricos em virtude de as atividades da vida humana serem inesgotáveis, de forma
que há uma forma padrão destinada a estruturar os enunciados no trabalho, na vida
acadêmica, no convívio familiar e em tantos outros campos da vida humana. Deles lançamos
mão com tanta segurança e destreza que, geralmente, ignoramos sua existência teórica.
Empregamos ou nos deparamos com vários gêneros – como o contrato, a ordem militar, o
texto legislativo, o relato, o bilhete, o discurso científico, o romance, a crônica, a dissertação
de mestrado, o artigo e outros – de forma tão intensa que podemos não suspeitar de sua
presença.
Como as possibilidades da atividade humana são inesgotáveis, os gêneros igualmente
possuem uma heterogeneidade e variedade, de maneira que cada esfera dessa atividade
contém um repertório de gêneros, orais e escritos, que se amplia e se diversifica à medida que
a própria esfera recrudesce e se torna mais complexa. Contudo, é válido lembrar que o
surgimento de um novo gênero de discurso não implica a exclusão de outro. Muito pelo
contrário, nada mais faz do que completar os já existentes. Bakhtin, tratando do romance
polifônico de Dostoievski, assevera que

o surgimento do romance polifônico não suprime nem limita em absolutamente nada


a evolução subseqüente e produtiva das formas monológicas de romance (do
romance biográfico, histórico, de costumes, romance-epopéia, etc.), pois sempre
haverão de perdurar e ampliar-se campos da existência humana e da natureza que
requerem precisamente formas objetificadas e concludentes, ou seja, formas
monológicas de conhecimento artístico.361

359
Idem, Ibidem, p. 284.
360
Idem, “La structure de l’énoncé” Apud SOUZA, Geraldo Tadeu. Introdução à teoria do enunciado concreto
do Círculo Bakhtin-Volochinov-Medvedev. São Paulo: Humanitas/FFLCH-USP, 2002, p. 102.
361
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997, pp.
273-274.

96
Mas como se dá a formação de um gênero? O caráter dialógico do enunciado, ou seja,
o fato deste ser proferido ou escrito esperando a resposta ativa por parte do destinatário
também influência sua forma. Qualquer enunciado possui determinados objetivos face ao
interlocutor: os enunciados de um professor desejam educar um aluno; os de um jornal,
convencer o leitor. O texto legislativo tenciona fazer com que todos cumpram a lei, ao passo
que a fala de um militar direcionada a um subalterno intenta fazê-lo obedecer a uma ordem.
Além do objeto do discurso, a relação social entre o autor dos enunciados e o destinatário
igualmente determinam sua composição.
No mais, o enunciado daquele para quem respondo (contesto, executo, anoto, etc.) é
já-aqui, contudo, sua resposta é por-vir. Enquanto preparo meu enunciado, tendo a presumir
como será essa futura resposta, algo que influi no meu enunciado: precavenho-me das
objeções que estou prevendo, assinalo restrições, etc.. Enquanto falo ou escrevo, sempre levo
em conta o fundo aperceptivo sobre o qual meu discurso será recebido pelo destinatário: o
grau de informação que este possui da situação, suas opiniões e suas convicções, seus
possíveis preconceitos, suas simpatias e antipatias, etc., afinal, é isso que condicionará sua
compreensão responsiva de meu enunciado. “Esses fatores determinam a escolha do gênero
do enunciado, a escolha dos procedimentos composicionais e, por fim, a escolha dos recursos
lingüísticos, ou seja, o estilo do meu enunciado”362.
Tais especificidades estão presentes nos gêneros de discurso. Estes, da mesma forma,
possuem uma concepção de destinatário. “As diversas formas típicas de dirigir-se a alguém e
as diversas concepções típicas do destinatário são as particularidades constitutivas que
determinam a diversidade dos gêneros do discurso”363. Para cada interlocutor, dentro de
diferentes interações sócio-ideológicas, utiliza-se um peculiar gênero de discurso. Na
atividade acadêmica, faço-me entender, frente aos meus pares, por meio de uma dissertação
ou tese. Um padre, por sua vez, para comunicar-se com os fiéis, emprega o sermão. Assim,
qualquer gênero se orienta em relação à realidade em duas direções: “a) ao ouvinte ou
receptor em conjunto com as condições precisas de performance e percepção; b) à vida pelos
seus conteúdos temáticos (acontecimentos, problemas, etc.)”364.
Se todos nós empregamos variados gêneros de discurso, A Capital não constituiria
exceção à regra. Para se comunicar com o leitor, o diário faz uso do gênero de discurso
jornalístico sensacionalista, conforme exposto no primeiro capítulo. E, como visto em linhas

362
Idem. Estética da criação verbal, op. cit., p. 321.
363
Idem, Ibidem, p. 325.
364
SOUZA, Geraldo Tadeu, op. cit., p. 102.

97
anteriores, para um jornal sensacionalista como A Capital, seu leitor (interlocutor) é distinto
dos jornais destinados às classes dominantes paulistas, como O Estado de S. Paulo e o
Correio Paulistano. Para estes dois últimos, seu público era aquele encarado como
intelectualmente elevado, de forma que os critérios científicos para desqualificar os adeptos
das práticas mágicas de cunho popular eram continuamente ressaltados. Já para o referido
diário sensacionalista, seu interlocutor era, no momento, irracional, inferior e intelectualmente
pobre, incapaz de entender os critérios científicos e para quem se publicavam as notas
sensacionalistas.
Dito em outros termos, na concepção d’O Estado e do Correio, seu interlocutor seria
alguém com o qual ambos poderiam dialogar, compondo assim um espaço de discussão, ao
passo que, no pensamento d’A Capital, seria impossível fazer o mesmo com o seu leitor. Se
este era destituído de racionalidade e sem instrução mínima, o jornal se sentia no dever de
exercer a função de educá-lo, guiando-o para o que avaliava serem as verdadeiras idéias e as
corretas condutas.
Mas como se deveria proceder para tanto? Já que, para o diário, o público não
conseguia, naquele contexto, compreender a realidade pelo viés da esclarecedora ciência,
seriam necessários outros meios para que deixasse de freqüentar os “antros de feitiçaria”.
Assim, apelou-se para outras representações mais próximas do universo que o jornal entendia
ser típico de seus leitores. Desse modo, eram noticiados casos em que aqueles que exerciam
práticas mágico-religiosas apareciam como autores ou catalisadores de crimes escandalosos
perturbadores da ordem do cotidiano, ou seja, como responsáveis por homicídios, estupros e
tantos outros casos que se pensava serem próximos do cotidiano da população pobre. Como
este era representado como despolitizado, irracional e movido apenas por emoções
(lembremos a sua “latinidade emotiva”), para o diário, a forma de influenciá-los (ressaltemos
que o mesmo se punha como guia da população para o caminho da verdade) não era o
discurso científico racional, mas sim a veiculação de notícias de crimes horrendos para, assim,
provocar-lhes sensações e emoções. Assim, a expectativa era de que o público, após lê-las,
sentisse compaixão pelas vítimas e medo da crueldade de feiticeiros, curandeiros e
cartomantes, afastando-se de todos eles.
Para tanto, A Capital narrava os eventos de maneira melodramática, típico da imprensa
sensacionalista. O melodrama, segundo Jesús Martín-Barbero, desde finais do século XVIII,
era compreendido, na França e na Inglaterra, como um espetáculo popular que é muito menos
e muito mais do que teatro, pois

98
o que aí chega e toma a forma-teatro, mais que com uma tradição estritamente
teatral, tem a ver com as formas e medos dos espetáculos de feira e com os temas
das narrativas que vêm da literatura oral, em especial com os contos de medo e de
mistério, com os relatos de terror.365

O melodrama é um teatro de ação, sem diálogos, proibidos pelas disposições


governamentais francesa e inglesa da época. O teatro seria reservado às classes altas, sendo
permitido ao povo apenas representações sem falas ou cânticos, para que a “verdadeira” arte
teatral não fosse corrompida. Como solução, foram utilizados estratagemas cênicos, tais como
a mímica e a utilização de cartazes e faixas, em que a fala ou o diálogo correspondentes à
ação dos atores estavam escritos. Enfim, era a predominância da encenação, do espetáculo
visual e sonoro366.
Em termos estruturais, possui uma forte carga emocional, posicionando-se ao lado do
público popular – que, segundo Martín-Barbero, não procurava palavras nas cenas, mas sim
ações e grandes paixões. Bipolar, estabelece contrastes em nível horizontal e vertical.
“Horizontalmente, opõe personagens representativas de valores opostos vício e virtude. No
plano vertical, alterna momentos de extrema desolação e desespero, com outros de
367
serenidade ou de euforia, fazendo a mudança com espantosa velocidade” . Sua intenção é
cultivar múltiplas emoções e sensações. Baseia-se na esquematização, ou seja, esvazia os
personagens de sua densidade psicológica, e na polarização maniqueísta dos mesmos entre o
Bem e o Mal. E é na vala dos viciados e nefandos que o jornal dispunha feiticeiros,
curandeiros e cartomantes, apontados como culpados por tragédias da vida cotidiana
conhecidas por seus leitores, conforme constataremos nas linhas a seguir.
A figura dos praticantes de magia como desagregadores do lar era uma das tônicas das
notícias. Estas transmitiam a idéia de feiticeiros, curandeiros e cartomantes como
perturbadores do ambiente familiar, acarretando ou catalisando brigas e desavenças e até
mesmo assassinatos. Caso exemplar de tais conflitos é o veiculado pela A Capital, em 2 de
agosto de 1915, sob o título de “Feiticeiros, cartomantes e curandeiros”, em que é narrada a
história de um imigrante, de nome não revelado pelo jornal – apenas se diz que era
proveniente da Ilha da Madeira –, que entrou desesperado na redação d’A Capital:

Meia hora, apenas após o início de poucos trabalhos, invadiu, ha dias, a sala de
redacção, de ordinario tão tranquila, tão calma, embóra ali se contem por minutos os

365
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 2001, pp. 169-170.
366
“Uma economia de linguagem verbal se põe a serviço de um espetáculo visual e sonoro, onde primam a
pantomima e a dança, e onde os efeitos sonoros são estudadamente fabricados”. Ibidem, p. 172.
367
HUPPES, Ivete. Melodrama: o gênero e sua permanência. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2000, p. 28.

99
durissimos combates que ferimos diariamente na defesa do povo opprimido,
ludibriado pelos potentados de todas as estopas, um homem suarento, de cabellos
desgranhados, escorridos, em pastos, pela fronte rugosa, quasi livida!
Entrava, diremos melhor, arremessava-se para o interior do nosso gabinete, como
um possesso, a gesticular, ao mesmo tempo que engrolava uma dezena de phrases
incompletas.
[...] Fosse o que fosse, um maluco, ou uma caça batida pela argucia dos inspectores
policiaes, como de costume, sem um movimento de espanto, perfeitamente seguros
de nossa fortaleza, corremos ao encontro do pobre homem, inquirindo-lhe
desassombradamente:
- Bom dia, cavalheiro, que o incomoda de tal maneira? Uma violencia?!...
- Sim; uma violencia! Que violencia!... um roubo de nova especie... Tratantes!
proseguiu o homenzinho enfurecido. Para tamanhos patifes, a bala é... nada!368

Após ser acalmado pelos membros da redação, o anônimo rapaz, segundo a


reportagem, começou a explicar os motivos de tamanha ira e de seu desespero latente:

- Perdão! eu não sou doido, por emquanto! Vim queixar-me, pedir a protecção de
seu jornal contra uma torpe exploração de que, como eu, têm sido victimas
innumeras pessoas...
Refiro-me ás cartomantes – que, ao mesmo tempo que têm as cartas, ou a linha das
mãos, nos despojam das carteiras e da tranquilidade!
É contra ellas que eu grito; que me revolto!...
Imagine o dr, que, assoberbado por certas desavenças conjugaes, desanimado, certo
de que só mesmo uma alma damnada seria capaz de metter á roda a cabeça sempre
certa da minha Thereza, que vae para os 30 annos que tirei dos paes, na Madeira,
procurei Mme. ***, expuz-lhe o negocio.
Que tudo aquilo nada era, dizia ella, porque, afinal de contas, para taes males havia
remedio certo, um especifico!
Deitou as cartas e leu.
Em seguida a brucha tirou dumma cesta um punhado de folhas, lançou-as n’agua e
disse-me:
- Vae p’ra tua casa; á noute, quando tua mulher dormir, toma de um ramo de cedro
e, com elle, faze tres cruzes sobre o corpo: uma na cabeça, outra no peito e a terceira
nos pés...
O resto da agua, jogarás no telhado, dizendo:
Vae ó agua, vae ó agua que a pedra fura, amollece o coração de Thereza. – Fiz.
No dia seguinte...
- O resultado foi magnifico!...
- Foi; a mulher constipou-se e, culpando-me de haver deixado aberta a porta,
arremessou-me á cara o primeiro prato que encontrou.
Voltei á brucha paguei-lhe mais 50$, e de lá trouxe eu um talisman, para juntal-o ao
peito.
- Para dominares a tua mulher, nada mais tens a fazer que apertares o patuá e
dizeres:
- Eu te domino!...
E foi uma desgraça; nunca a Thereza foi tão terrivel!...
Afinal, reflecti melhor; fui ao medico e a Thereza melhorou!
Abri o tal patuá e encontrei dentro...
- ... uma oração!
- ... oração?!... Um sapo, um sapo secco e mal cheiroso!
Fui lá hoje pedi o meu dinheiro, a metade pelo menos...
- ?...
- ... E já a não encontrei; havia embarcado para o Rio, porque o delegado de S.
Ephigenia havia mandado intimal-a para ir ao posto!

368
A Capital, “Feiticeiros, cartomantes e curandeiros”, 2 de agosto de 1915.

100
- Si ella partiu...
- Não é ella só; ha por ahi milhares de bruchas, de verdadeiras ladras, explorando os
imbecis!...
- Os imbecis...
Jurei perseguir as tratantes! E vim trazer-lhe o meu nome, a minha moradia, para
escachal-as...
E sahiu.
Acto continuo, a A CAPITAL iniciou as suas investigações sobre o assumpto,
acompanhado, uma a uma, as diligencias do dr. Cantinho Filho, delegado de Santa
Ephigenia, que simultaneamente, ataca, com intelligencia e pleno exito, dois casos
importantissimos: a repressão aos falsarios e a caça aos cartomantes e feiticeiros!369

Este é o trágico caso do anônimo rapaz da Ilha da Madeira, tratado na notícia como
uma inocente vítima da vilã cartomante e como um indivíduo tomado por fortes emoções,
haja vista o realce concedido à sua aflição e angústia na redação do jornal, onde adentrou
como “um possesso”, proferindo “frases incompletas”. Isso em contraposição ao
comportamento calculista e racional dos jornalistas, que, ao invés de pronunciarem elocuções
incompreensíveis da mesma maneira que o madeirense, trataram-no de maneira cordial (“-
Bom dia, cavalheiro”), “desassombradamente”. O destaque concedido à sua aparência
descuidada, não muito agradável (“homem suarento” e “cabelos desgranhados”), uma
prática comum d’A Capital quando o noticiado era um indivíduo pertencente ao contingente
de parcos recursos da cidade, faz-nos supor que o anônimo rapaz também não era um homem
de muitas posses, donde a caracterização exposta anteriormente, ou seja, alguém apenas
movido por comoções abruptas. Como teremos a oportunidade de conferir alhures, esse tipo
de procedimento era uma constante nos textos do jornal quando se referia à população pobre,
personagem central do noticiário sobre as atuações dos praticantes da magia, sempre rotulada
pela pena dos jornalistas d’A Capital como sujeitos irracionais, passionais, eivados de
emoções e, portanto, passíveis de sofrerem qualquer embuste. Nunca eram sujeitos com
iniciativas próprias, mas sim pessoas passivas, manipuladas ao gosto de feiticeiros,
curandeiros e cartomantes. Mesmo se tomassem alguma decisão, quase nunca o faziam por
meio de raciocínio próprio: ao contrário, estavam sob a influência decisiva de terceiros. Com
efeito, apareciam como meros joguetes de tipos maquiavélicos, daí o periódico, logo no início
da notícia, ressaltar, pela metáfora da guerra, seus “durissimos combates” pela “defesa do
povo opprimido, ludibriado”, colocando-se mais uma vez no papel de herói, do soldado que,
em dificílimas batalhas, esforça-se herculeamente para defender aqueles que considerava
serem meros incautos, pobres vítimas dos inimigos enganadores.
E qual teria sido a conseqüência do comportamento do imigrante madeirense

369
Idem, Ibidem.

101
destituído de racionalidade descrito na narrativa supracitada? Se a situação do relacionamento
com a esposa já era demasiadamente tensa, a consulta com a misteriosa madame, como
resultado, teria agravado ainda mais um momento atribulado do casal, quase acabando por dar
termo a uma vida conjugal de longa data, em um contexto no qual toda e qualquer ameaça ao
casamento constituía alvo de pesadas críticas, de modo que o divórcio era considerado imoral,
devendo ocorrer somente em último caso. Uma dura barreira feita de opiniões de juristas,
médicos e da própria opinião pública em geral reagia a tudo aquilo que “pudesse ferir as
instituições básicas da sociedade, sobretudo a imagem da família e do casamento. Não havia
felicidade possível fora deles: marido e mulher transformavam-se em papai e mamãe”370, e as
mulheres eram persuadidas de que não casar denotava um sinônimo de insucesso.
A partir das primeiras décadas do século XX, a escolha matrimonial, essencialmente,
deixou de ser um assunto familiar para tornar-se um pouco mais livre, sendo fundada no
sentimento recíproco371 – o que, evidentemente, não excluiu a interferência dos pais,
mormente quando havia interesses de ordem econômica. Contudo, em que pesem eventuais
casos de ingerência da família, acentuavam-se as uniões estabelecidas com base no amor
recíproco. Amor esse que, por sua vez, no discurso de médicos, educadores, juristas e
psicólogos, requeria ser racional, disciplinado, responsável e higiênico, inspirando respeito e
compromisso com as obrigações. Nada de paixões romanescas, cegas e mórbidas ou arroubos
sentimentais, cuja presença, segundo tais intelectuais, poderia se transformar em amores
perversos e obsessivos, ocasionando, por conseguinte, funestos casos de assassinatos, os
chamados “crimes de paixão”372. O casamento, dessa forma, seria precisamente a educação
dos sentimentos e dos comportamentos sexuais, bem como o controle dos prazeres – ou seja,
amor conjugal com a estrita finalidade de procriação, sendo excluída a sensualidade373 –, de
modo que os discursos científicos e religiosos determinavam que era no lar onde se formavam
as relações desejadas e legítimas, qualificadas como higiênicas e decentes. Com efeito, o
matrimônio representava uma etapa superior das relações amorosas, daí os intelectuais, os
clérigos e as classes dominantes desejarem universalizar e institucionalizar para toda a
sociedade esse modelo burguês de casamento, rotulando como imoral qualquer outro tipo de
370
DEL PRIORE, Mary. História do amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2005, p. 252.
371
TRIGO, Maria Helena Bueno. “Amor e casamento no século XX”. In: D’INCAO e outros (orgs.). Amor e
família no Brasil. São Paulo: Contexto, 1989, p. 89.
372
Cf. BESSE, Susan Kent. “Crimes passionais: a campanha contra os assassinatos de mulheres no Brasil: 1910-
1940”. Revista brasileira de História. São Paulo, vol. 9, n. 18, ago. 89/set. 89, pp. 188-190.
373
Lembra Márcia Padilha que o culto à beleza feminina era aceito e desejável, porém, nunca ligado à idéia de
sedução, mas sim a cuidados médicos e higiênicos. “Dessa maneira o discurso higienista procurava assegurar
os limites entre a vaidade das mulheres ‘honradas’ e a libertinagem de mulheres de ‘conduta duvidosa’ que
desfilavam pelos teatros e cafés da cidade”. PADILHA, Márcia. A cidade como espetáculo: publicidade e vida
urbana na São Paulo dos anos 20. São Paulo: Annablume, 2001, p. 126.

102
relacionamento entre homens e mulheres fora do contrato matrimonial, algo comum entre o
contingente pobre da população374.
Enfim, havia a construção de uma relação conjugal fundada mais na amizade e no
respeito mútuo entre os esposos do que no princípio do prazer. “Pretendia-se purgar os
exageros e os percalços das relações conjugais de modo a torná-las mais fortalecidas e
afastar cada vez mais a ameaça do divórcio”375. E é exatamente com a associação entre a
iminência do desquite, considerado vergonhoso e imoral, e a consulta a um praticante de ritos
mágico-religiosos que o jornal trabalha, engendrando a imagem da cartomante como uma
perigosa embusteira (o próprio termo “brucha” remete a uma pessoa ameaçadora), habilidosa
nos estratagemas utilizados para iludir seu inocente consulente e de uma inescrupulosidade tal
que acabou por subtrair do rapaz da Ilha da Madeira alguns preciosos vinténs e contribuir para
agravar as tensões de sua vida conjugal que quase resultaram no temido divórcio, no
rompimento do sagrado matrimônio, cujo ideal de indissolubilidade declarado pela Igreja
Católica foi penosamente aceito pela aristocracia e de forma mais espontânea pelas
comunidades rurais européias entre os séculos XI e XII376.
Não sabemos se a descrição dos detalhes das consultas foi proferida pelo imigrante
madeirense ou se a notícia alterou seu depoimento, porém, o essencial é ressaltar que, por
meio desse relato, tenciona-se mostrar como a mesma engana ardilosamente seu consulente
com ritos compostos por frases feitas (“-Vae ó agua, vae ó agua que a pedra fura”, ou “- Eu
te domino!”), bem como por meio de procedimentos e objetos considerados estranhos e
símbolos de crendices pela ciência médica oficial – como as três cruzes sobre o corpo, a
determinação de se jogar água no telhado e o patuá com um sapo dentro –, demonstrando-lhe,
assim, possuir de fato poderes sobrenaturais. Para o rapaz da Ilha da Madeira, assim, restava
apenas o que lamentar: conturbara um longo casamento, quase culminando no dito
“vergonhoso” divórcio, além de perder uma boa quantia em dinheiro. Ao leitor ficava a

374
MALUF, Marina & MOTT, Maria Lúcia. “Recônditos do mundo feminino”. In: SEVCENKO, Nicolau (org.).
História da vida privada no Brasil – República: da Belle Épque à Era do Rádio. Vol. 3. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998, p. 387. Lembra Del Priore que, entre os trabalhadores, uniões consensuais e concubinatos
“eram regra embora sujeitos à instabilidade e a circulação de crianças, ‘bastardas’, na casa de parentes e
familiares, bastante comum. Longe de ser fruto de ‘ignorância’ ou ‘irresponsabilidade’, como acusavam
médicos higienistas e juristas, essa classe trabalhadora possuía uma cultura diversa daquela das elites. Uma
cultura popular que se chocava, muitas vezes, com a das camadas dominantes. Era difícil, se não impossível,
adaptar-se à camisa-de-força dos valores burgueses quando se tinha de sobreviver em condições tão árduas”.
DEL PRIORE, Mary, op. cit., p. 266.
375
MALUF, Marina & MOTT, Maria Lúcia, op. cit., p. 392.
376
Cf. ARIÉS, Philippe. “O casamento indissolúvel”. In: ARIÉS, Philippe & BÉJIN, André (orgs.).
Sexualidades ocidentais: contribuições para a história e para a sociologia da sexualidade. São Paulo: Brasiliense,
1985, p. 178. A partir do século XII, surgiram os rituais de casamento segundo as regras da Igreja, que transferiu
o ato matrimonial, antes restrito ao espaço privado, para o templo católico, à vista do público.

103
advertência para que não se aproximasse dos praticantes da magia, sob o risco de se acabar
com uma bela união matrimonial, e o lembrete de que se devia recorrer à ciência para a
resolução das enfermidades, como o fez o imigrante ao levar Thereza ao médico – atitude
tomada não por iniciativa própria, pelo uso da racionalidade, e sim somente após a tristeza em
decorrência das brigas com a esposa, o que, na notícia, relega novamente o madeirense à
condição de indivíduo movido pelo lado emocional.
Outro caso, com conseqüências ainda mais nefastas, em que podemos igualmente
notar a responsabilidade atribuída a um praticante de ritos mágico-religiosos pela
desestruturação do lar alheio é o fait divers publicado em 31 de março de 1921. O título por si
já possui um significado bem claro: “Matou a esposa e filhos – Por causa da feitiçaria”. Em
uma casa localizada à Rua Bento Pereira, um pai de família, o lavrador Jacob Lorenzi, 40
anos de idade, assassinou sua mulher e dois de seus sete filhos:

Grande coisa é o Destino! O que está gravado em suas paginas, ha de cumprir-se,


mesmo á custa dos mais indescriptiveis sacrificios, inda que para tanto deva jorrar o
sangue innocente...
Estava escripto – dizem os musulmanos, e curvam-se, calados, resignados,
indifferentes, quiçá!, ante a maior das fatalidades!...
Mas, dahi a se deixar correr livremente a grande lei, vae um abysmo. Sempre que
se possa, ao despotismo do que “tinha de ser”, deve applicar-se um lenitivo, oppôr
diques, barreiras, tentar o sobrehumano para evitar que se cumpra com o
beneplácito dos homens um acto mau do fatalismo.
A policia poderia, talvez, ter evitado a tristissima tragedia que vamos registrar. Se
depois de tudo o que se tem dito e provado, depois de todos os crimes que pesam
sobre essa verdadeira chaga social – os feiticeiros – a policia tivesse movido uma
guerra atroz, guerra sem tregua contra esses exploradores torpes dos espiritos
fracos, trancafiando no xadrez quanto “mandigueiro”, curandeiro ou pseudo
espiritista que por ahi se anda, se a policia tivesse feito isso, não se teria tingido de
sangue, hoje, a chronica dos jornaes...
No aprazivel bairro de Sant’Anna, em local pittoresco e socegado, esta manhã, mal
o dia começava a despir-se do manto de nevôas para receber os beijos do primeiro
raio de sol, a essa de paz e amor, deu-se um crime estupidamente brutal e que muito
vae impressionar o espirito de nossa população.
Numa modesta casa da rua Bento Pereira (em Sant’Anna), viviam na doce paz de
um lar feliz, venturoso, dentro de sua miseria honrada, o lavrador austriaco Jacob
Lorenzi, de 40 annos de edade, sua esposa Catharina, de 45 annos, e seus filhos
Antonio, de 18 annos; Maria, de 16 annos; Francisco, de 12; Luiz, de 13; Jacob, de
10; Catharina, de 3, e Anna, de apenas dois mezes de edade.
Jacob, que se acha no Brasil, em São Paulo, ha 8 annos, foi sempre um trabalhador
assiduo, vivendo em perfeita harmonia com a esposa e os filhos.
Os dois primeiros, Antonio e Maria, contribuiam, com modestas occupações, ao
bem estar da familia.
Ultimamente, porém, Jacob começou a frequentar pseudas sessões espiritas e a
obedecer cégamente a feiticeiros (verdadeiras pragas sociaes que até agora a policia
não conseguiu extinguir).
Este facto transformou completamente o lavrador, tornando-o irascivel,
supersticioso e pouco assiduo ao trabalho.377

377
A Capital, “Matou esposa e filhos – Por causa da feitiçaria”, 31 de março de 1921.

104
Esse fait divers é um exemplo típico das críticas pesadas d’A Capital no que concerne
à ação policial. Por meio do recobramento do pensamento cristão de um Destino disposto de
antemão pela Providência ordenadora de todas as coisas, mas que não exclui a possibilidade
do livre-arbítrio, ou seja, a capacidade inata de alguns seres humanos realizarem escolhas em
virtude de sua racionalidade, de acordo com alguns pensadores medievais, como Severino
Boécio (480-525)378, por exemplo, o jornal condena o que pondera ser um desleixo por parte
da polícia, malgrado o elogio ao desempenho do delegado no desfecho do caso, como
veremos mais adiante, afinal, a censura é dirigida não exatamente a tal ou tal soldado, mas
sim à corporação como um todo, à ausência de uma estratégia eficaz no combate a feiticeiros
e curandeiros. Estes, na notícia, por meio de um recurso metafórico, deixam de ser tratados
como criminosos comuns, pois formariam uma verdadeira “chaga” e “praga”, ou seja, uma
doença que toma progressivamente o corpo social, debilitando-o, afinal, ao explorarem os
cognominados “espiritos fracos”, estariam contribuindo para a persistência do que A Capital
denominava como “estado de ignorância” da população e, por conseguinte, impedindo a
evolução da sociedade. Sua presença, desse modo, tornava-se ameaçadora à normalidade e ao
bom andamento da ordem social, donde o imperativo urgente de uma ação bem planejada e
enérgica capitaneada pelas autoridades policiais. Mas, para o jornal, frente a essa crescente
enfermidade corrompedora da frágil saúde corpo social, não bastaria a ação rotineira dos
guardas. Novamente recorre-se a outro recurso metafórico, pois seria necessário algo muito
maior, uma “guerra atroz, guerra sem trégua”. Frente a inimigos tão poderosos, apenas um
duro combate seria a atitude mais correta. Em face de um propalado caos, recorria-se à
violência policial legitimada sem limites.
Contudo, a omissão do Estado, a dita ociosidade da polícia, teria acarretado graves
conseqüências, a saber, um crime de enormes proporções. Teria ocorrido mais do que um
mero delito: seria um evento que acabara por tingir de “sangue, hoje, a chronica dos
jornaes”. A utilização de uma linguagem com tons exagerados contribui para potencializar o
drama que adviria naquela tranqüila manhã e, mormente, o poder e periculosidade da “chaga
social”, afinal, não se tratava apenas de um delito, mas sim de “um crime estupidamente
brutal”, uma “tristissima tragédia”, que não passaria despercebido aos olhos do público: ao
contrário, iria “impressionar o espirito de nossa população”. Tudo isso em contraste com o
esplêndido alvorecer e a tranqüilidade característica do bairro, além da “doce paz de um lar

378
Cf. SILVEIRA, Daniela Maria de Sousa. Os conceitos de Felicidade e Beatitude em De Consolatione
Philosophiae de Severino Boécio. Porto: Dissertação de Mestrado em Filosofia Medieval, Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, 2007, pp. 86-120.

105
feliz”, enfatizada na notícia quando é ressaltada a “perfeita harmonia” entre Jacob, a esposa e
os filhos, apresentando ao leitor um ambiente familiar perfeito e alegre.
O lavrador austríaco, no mais, bem como sua família, encarna o ideal de trabalhador
que as classes dominantes ansiavam impor sobre a população. Visto como aviltante ao longo
do período escravista, o trabalho, a partir do final da escravidão, assumia uma nova
roupagem, um valor positivo. Para a implantação da ordem burguesa no Brasil, era necessário
transmitir aos recém-libertos a noção de que o trabalho constituía o valor supremo da vida em
sociedade e o elemento essencial da vida civilizada379. De acordo com o empresariado,
impunha-se, assim, a construção de um “novo homem”, cuja integração ao universo social
dar-se-ia por meio “da valorização de sua identidade social enquanto trabalhador digno e
operoso”380. Ser apenas trabalhador não era o suficiente. Havia a necessidade de o “novo
homem” possuir algumas propriedades morais, um modelo de caráter pautado pela disposição
bem-humorada para o exercício do ofício, pela perseverança e pela valorização da razão.
Operoso e bem-disposto! É exatamente esse o perfil do lavrador austríaco traçado pela
notícia, dada a sua caracterização como “trabalhador assiduo”, bem ao gosto da
representação, engendrada pelas classes dominantes e por intelectuais, do imigrante europeu,
visto, sob a influência do pensamento racial, como, por excelência, laborioso, disciplinado,
sóbrio e morigerado, ideal para o progresso do Brasil381.
Mas Jacob não era o único labutador exemplar: Antonio e Maria, os descendentes mais
velhos do casal, igualmente o eram, já que contribuíam com “modestas occupações”, fato que
realça a harmonia no lar, na medida em que ambos dedicavam seus esforços para o benefício
de todos, ao “bem estar da familia”. O trabalho de menores em atividades informais era
comum entre as famílias com parcos recursos. Se o pesado trabalho de crianças nas fábricas
era mal visto entre a imprensa, os médicos e o operariado, muitos pais, preocupados em
despertar-lhes a “vocação e o hábito para o trabalho” e, nomeadamente, visando ao auxílio
na complementação do orçamento da casa, estimulavam os filhos, desde cedo, a praticarem
pequenas vendas a varejo nas ruas ou mesmo se oferecerem para cumprir pequenos serviços.
“A iniciação em torno dos sete anos, precoce para os dias atuais, era um fato comum,
previsto como parte do viver dos meninos pobres”382. Crianças e adolescentes do sexo

379
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle
époque. São Paulo: Brasiliense, 1986, pp. 40-43.
380
CARVALHO, Maria Alice Rezende de. Cidade e fábrica: a construção do mundo do trabalho na sociedade
brasileira. Campinas, SP: Dissertação de Mestrado em História, IFCH/UNICAMP, 1983, p. 95.
381
NAXARA, Márcia Regina Capelari, op. cit., p. 63.
382
BIROLLI, Maria Izabel de Azevedo Marques. Os filhos da República: a criança pobre na cidade de São
Paulo, 1900-1927. São Paulo: Dissertação de Mestrado em História, PUC-SP, 2006, p. 68.

106
masculino, desse modo, trabalhavam como entregadores de encomendas, jornaleiros,
engraxates, mensageiros, carregadores, caixeiros e vendedores ambulantes. As meninas, por
sua vez, além de atuarem como vendedoras de produtos feitos no próprio domicílio, eram
incentivadas ao trabalho de empregadas domésticas.
No mais, outras famílias que não logravam alimentar sua prole e habitavam exíguos
espaços de cortiços cediam seus filhos aos proprietários de pequenas empresas, leiterias,
quitandas e pequenas oficinas, os quais prometiam aos garotos um trabalho em troca de
comida em lugar de um salário (ou para complementá-lo), moradia no local de ofício e,
casualmente, a sua alfabetização. Com efeito, os patrões acabavam, frente aos pais,
convertendo-se em tutores e filantropos383. Porém a situação no ambiente de trabalho não era
das melhores: os pequenos trabalhadores dormiam em locais com condições precárias e
recebiam alimentação de péssima qualidade, além de, muitas vezes, não receberem salários ou
embolsarem remunerações muito baixas.
Ao destacar a índole laboriosa de Jacob e dos dois filhos mais velhos, o diário não
coaduna novamente com as concepções que identificavam as classes pobres como classes
perigosas. Pelo contrário, engendra um ideal nobre de pobreza, donde o destaque dado à
“miséria honrada” da família do lavrador austríaco: se alguns acabavam entrando no mundo
do crime, ainda haveria uma parcela da população de parcos recursos, que, malgrado a sua
indigência, vivia de forma honesta, disposta firmemente à labuta, ao invés de se sustentar por
meios ilícitos. Em contraposição a indivíduos trabalhadores como Jacob, obtendo dinheiro de
maneira proba e habitando uma “modesta casa”, existiriam aqueles que amealhavam recursos
por meio de práticas mágico-religiosas à margem da lei.
Dessa maneira, o melodramatismo sensacionalista engendra uma cena dual, a saber, o
homem trabalhador honrado e digno, que não anseia vorazmente pelo dinheiro, versus os
feiticeiros gananciosos, através da qual A Capital tenciona dizer o seguinte: veja só, leitor,
graças à perversa ação dos praticantes de magia, ávidos pelo dinheiro, um brilhante sujeito
laborioso, produtivo para o progresso do País, tranqüilo e carinhoso com a família, perde sua
racionalidade, tornando-se agressivo e supersticioso, e deixa de possuir o amor pelo trabalho!
E pior: não apenas seguiu as determinações dadas pelos feiticeiros, como também lhes
obedeceu “cégamente”, termo não inserido fortuitamente na notícia. Pelo contrário, o jornal,
sob a influência da psicologia das massas (população trabalhadora igual a tipo irracional e
sugestionável) e do pensamento médico-higienista, segundo o qual o estrangeiro pobre era um
perfeito ignorante, apresenta-nos Jacob, imigrante desprovido de recursos financeiros, como
383
Idem, Ibidem, p. 76.

107
um indivíduo altamente sugestionável, daí o mesmo ter seguido “cégamente” as ordens dos
feiticeiros. Ou seja, ainda que fosse um imigrante trabalhador, contribuindo para o
recrudescimento do País, integrava a “massa ignara”.
Mas o fato de obedecer “cégamente” não termina por aqui, tendo ainda acarretado
conseqüências mais drásticas para sua vida:

Hoje, ás 8 horas, mais ou menos, após a sahida dos filhos maiores para o trabalho,
Jacob, armado de faca e navalha, investiu contra as suas ultimas filhinhas Catharina
de 4 annos e Anna, de dois mezes de edade, matando-as desapiedadamente.
A esposa do lavrador, que se achava na occasião occupada em affazeres domesticos,
correu para o quarto de dormir onde foi praticado o primeiro horrivel delicto, e
diante da triste constatação começou a gritar por socorro.
Lorenzi, como um verdadeiro louco, investiu contra a esposa, vibrando-lhe
profundos golpes de navalha e faca.
Ferida, Catharina correu para a casa de seu vizinho Maximiliano Pereira da Silva, e
uma vez na sala de visitas desta casa, o lavrador continuou a desferir sobre ella
outros numerosos golpes de faca, deixando-a sem vida.
Praticado o uxoricidio, os vizinhos pullaram o muro da casa de Lorenzi, tirando
apressadamente os outros filhos do lavrador que estava accommetido de verdadeira
loucura sanguinaria.
Ao primeiro apparecimento de um soldado, o austriaco fechou-se em sua casa,
trancando as portas e conservando-se armado de faca e navalha, prompto a investir
contra o primeiro comparecimento.
Communicado o facto á Policia Central, compareceram ao local o delegado dr.
Adolpho Normanha e os medicos José Libero, legista, e Passos Junior, da
Assistencia.
Aquella autoridade, auxiliada por numeroso grupo de pessoas, depois de cercar a
casa, alli penetrou pelos fundos em companhia da sua ordenança e de tres outras
pessoas, após de uma luta extrordinaria, conseguiu desarmar e prender o lavrador,
que para ser conduzido á policia, foi indispensavel applicar-lhe a camisa de força.
Os cadaveres das duas innocentes crianças e de Catharina Lorenzi foram removidos
para o necroterio da policia.
Lorenzi, na carceragem, interpellado por nosso companheiro de trabalho, não sabe
explicar o modo da horrivel tragedia.
A pergunta, só respondeu que amava a esposa e os filhos e que... todos os membros
da casa estavam cercados de espiritos maus!
O inquerito policial prossegue na delegacia do 2º districto.384

Aqui, dá-se o segundo dano atribuído pelo jornal aos feiticeiros, qual seja, a destruição
da feliz e afetuosa família, conforme sua descrição no princípio da notícia, em um contexto no
qual alguns especialistas em Direito e Medicina Legal promoviam, em conferências,
periódicos e livros, uma campanha contra o homicídio de mulheres por seus esposos – os
nomeados “crimes de paixão” –, considerados ameaçadores à sociedade por simbolizarem a
desagregação da família, “e era exatamente a instituição da família que era encarada como o

384
A Capital, “Matou esposa e filhos – Por causa da feitiçaria”, 31 de março de 1921.

108
cimento necessário para proporcionar a estabilidade e a continuidade neste período de
transformações perigosamente rápidas”385.
Como o texto nos indica, Jacob não matou sua esposa em decorrência de ciúmes ou da
tão apregoada “defesa da honra”, mas sim sob influência da supersticiosidade inculcada
pelos feiticeiros, da ânsia de proteger Catharina e os filhos dos pretensos espíritos malignos,
devido à afeição que sentia pela família, fato que amplia ainda mais o caráter funesto do
evento ocorrido na manhã do bairro de Sant’Anna, pois o lavrador teria cometido o
assassinato não de forma fria e consciente: ao contrário, teria efetuado os golpes fatais num
momento de contradição, de confusão mental, enfim, “como um verdadeiro louco”. Não
sabia o que estava fazendo. A tragédia melodramática atinge, nesse momento, seu mais alto
grau: aquele que, na divisão sexista das funções dentro do lar, deveria trabalhar para prover a
família, ser o seu chefe e defendê-la, fazia o contrário, assassinando, tomado pela loucura,
seus pequenos filhos e sua amada esposa, exatamente sob a justificativa de protegê-los. Uma
vez mais, a linguagem enfática e exagerada está presente para dramatizar o evento, pois o
lavrador teria cometido mais que um crime: tratar-se-ia de um “horrivel delicto”, uma “triste
constatação”, uma “horrivel tragédia”, praticada não por meio de simples golpes, mas sim
por meio de “profundos golpes de navalha e faca”, perpetrados por um indivíduo tomado por
“verdadeira loucura sanguinária”.
O drama, nesse sentido, não é somente de Jacob, que vive um momento de confusão
mental, de inconsciência de seus atos, mas também da companheira, cujo sofrimento é
ressaltado quando é narrado o assassinato das filhas e o termo de sua vida, ocorridos
justamente pelas mãos de seu dedicado esposo. Para tanto, o jornal recorre ao estereótipo
apregoado pela Igreja, pela imprensa, por médicos e juristas da mulher mãe dedicada-esposa-
dona de casa, a quem caberia “atentar para os mínimos detalhes da vida cotidiana de cada
um dos membros da família, vigiar seus horários, estar a par de todos os pequenos fatos do
dia-a-dia, prevenir a emergência de qualquer sinal da doença ou do desvio”386, visto que a
narrativa afirma que Catharina, no momento do crime, encontrava-se “occupada em affazeres
domésticos” e que, ao ouvir os gritos, correu para socorrer as duas “innocentes crianças”.
Nesse sentido, a notícia apela para o mito do instinto maternal natural e inerente a todas as

385
BESSE, Susan Kent, op. cit., p. 187. Ainda que tal campanha não possuísse qualquer conotação feminista, ou
seja, de reivindicação do fim da hierarquia entre os sexos. Muito pelo contrário, a intenção era moralizar e
disciplinar o amor e as relações familiares, de maneira que a empreitada estava menos preocupada com a
proteção das mulheres do que com a proteção da instituição familiar. Num sentido mais geral, “esta campanha
ajudou a reforçar a continuidade da submissão e da passividade feminina através da promoção de um modelo
mais legítimo de família nuclear”. Idem, Ibidem, p. 196.
386
RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil, 1890-1930, op. cit., p. 62.

109
mulheres, cunhado no último terço do século XVIII387, advertindo o leitor: veja só, graças aos
terríveis feiticeiros, a angústia da pobre Catharina, a qual, em consonância com seu inato
amor materno, corre para salvar suas filhinhas e acaba sendo assassinada por seu amado
marido em estado de loucura!
Aos leitores, procurava-se transmitir a dor de todos os membros da família, para que
se aproximassem das vítimas da trama, sentindo compaixão pelas mesmas, identificando-se
com os personagens. Ao narrar melodramaticamente o caso de Jacob, A Capital tencionava
adverti-los tanto para os problemas de saúde física quanto para as perturbações de ordem
pessoal, de relacionamento, que as consultas a feiticeiros, curandeiros e cartomantes poderiam
acarretar. E, além do mais, a saúde mental igualmente seria afetada: uma consulta nos “antros
de feitiçaria” poderia levar à loucura e, por conseguinte, à temida internação no Hospício do
Juquery, afinal, em nome da defesa da coletividade, o saber psiquiátrico investiu sobre a
internação dos alienados e das denominadas “populações de risco”, compostas por indivíduos
que, de acordo com os psiquiatras, devido à sua débil condição social e fraqueza moral e
racial, eram degenerados, portadores e transmissores dos germes da balbúrdia e da
desagregação social, constituindo um meio-termo entre a loucura e a ausência de mentalidade
perfeitamente normal: delinqüentes, alcoólatras, prostitutas, suicidas, negros e anarquistas,
entre outros388. Tais internações forçadas eram legitimadas pela legislação federal, segundo a
qual o seqüestro de alienados vistos como ameaçadores não estabelecia um atentado ao direito
à liberdade, garantido pela Constituição Federal de 1891389.
Com efeito, o fait divers acerca do caso de Jacob tentava não apenas despertar a
compaixão dos leitores pelos personagens da trama, como também, principalmente,
transmitir-lhes a sensação de medo, para que se distanciassem dos praticantes da magia, ao
ressaltar o desfecho trágico da narrativa, chamando-lhes a atenção para os riscos que corriam

387
Batinder afirma que, após 1760, na França, surgiram cada vez mais publicações recomendando às mães
cuidarem pessoalmente dos filhos e amamentá-los, impondo à mulher o compromisso de, antes de tudo, ser mãe,
engendrando o mito ainda vivo do instinto materno, ou do amor espontâneo de toda mãe pelo filho. “No fim do
século XVIII, o amor materno parece um conceito novo. Não se ignora que esse sentimento existiu em todos os
tempos, se não todo o tempo e em toda parte. [...] Mas o que é novo, em relação aos dois séculos precedentes, é
a exaltação do amor materno como um valor ao mesmo tempo natural e social, favorável à e espécie e à
sociedade”. BATINDER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985, pp. 144-145.
388
REIS, José Roberto Franco. Higiene mental e eugenia: o projeto de “regeneração nacional” da Liga Brasileira
de Higiene Mental (1920-30). Campinas, SP: Dissertação de Mestrado em História, IFCH/UNICAMP, 1994, pp.
24-25.
389
ENGEL, Magali Gouveia. “A loucura, o hospício e a psiquiatria em Lima Barreto”. In: CHALHOUB, Sidney
et al. (org.). Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social. Campinas, SP: Editora da UNICAMP,
2003, p. 59.

110
ao se consultarem com eles, qual seja, a perda da racionalidade, o temeroso isolamento dentro
dos muros de um manicômio e a destruição de seu lar.
Mas a intervenção dos praticantes de magia em problemas pessoais, causando
conflitos, não se restringiria ao âmbito do lar. Para o jornal, os conflitos entre famílias,
inclusive com assassinatos, igualmente poderiam ter lugar. Caso exemplar é o evento ocorrido
em Morro Vermelho, próximo a Mogi-Mirim, narrado pelo fait divers d’A Capital, em 20 de
agosto de 1929. O subtítulo da notícia já antecipava ao leitor que seria narrado mais um
drama: “Scena de sangue”. Logo no início, o diário critica novamente a ação policial, vista
como demasiadamente passiva e acomodada, bem como utiliza mais um argumento
intelectualista para desqualificar aqueles que exerciam práticas mágico-religiosas e seus
consulentes, qual seja, a ausência de um nível mínimo de letramento, constatação posta para
reforçar a imbecilidade de ambos os grupos, descredenciando os primeiros para o ofício da
cura – cuja prática exigia erudição e formação catedrática, algo inacessível a um analfabeto –
e, mais uma vez, indicando a mentalidade atrofiada e a conseqüente a sugestionabilidade dos
segundos:

Não é só aqui, na cidade e nos suburbios, que os feiticeiros, analphabetos e


exploradores, vivem a explorar a ingenuidade de outros analphabetos e idiotas,
emquanto dorme e resomma a policia especialisada.390

Em seguida, antes de partir para a narrativa eivada de dramaticidade, o jornal descreve


a localidade supracitada, onde, de maneira irônica, afirma que “os feiticeiros acrescentaram
seu quartel general” e “exploram o batalhão dos bororós”391: “É um local pitoresco, de
clima ameno, habitado por sitiantes, na mor parte italianos, que cultivam suas terras,
provendo sua subsistencia com os proventos de um trabalho fecundo e honesto”392.
Novamente, atentemos para a definição dos habitantes, qualificados, da mesma forma que
Jacob, como imigrantes laboriosos e probos, sustentando-se por meios lícitos, do “trabalho
fecundo”, ou seja, tratava-se de indivíduos estrangeiros produtivos, contribuidores para o
progresso da Nação.
Essa caracterização se estende àquele que, na notícia, foi o alvo principal da “Scena de
sangue”: “Matheus Schiavon, velho e estimado agricultor, rodeado de seus filhos – todos
entregues á labuta diaria no preparo da terra e do café”393. Constrói-se, desse modo, uma

390
A Capital, “Os effeitos da feitiçaria em S. Paulo”, 20 de agosto de 1929.
391
Idem, Ibidem.
392
Idem, Ibidem.
393
Idem, Ibidem.

111
família de imigrantes semelhante à de Jacob, qual seja, unida e trabalhadora. Entretanto,
segundo o jornal, “de quatro a cinco annos a esta parte, têm surgido naquelle bairro serias
questões oriundas dos casos de feitiçaria”394. As famílias de Alberto Alexandre Duvigo,
Antonio Zaccharioto e Ricardo Bachega, assim como outras famílias, não mantinham relações
de amizade com os Schiavon, pois estes foram acusados de, por meio da “pratica de actos
occultos”395, produzirem enfermidades e causarem infelicidades em pessoas das redondezas.
Então:

Era voz geral no bairro que não demoraria uma explosão de odios, de consequencias
lamentaveis.
E sexta-feira ultima a policia registou em seus annaes um revoltante crime de
emboscada – que bem demonstra a feróz animosidade existente contra Matheus
Schiavon, agricultor morigerado, honesto e trabalhador.
Ás 15 horas da tarde, sentados num cabriolet, seguiam da cidade para sua casa, o sr.
Matheus Schiavon e seu filho sr. Eugenio Schiavon. Ao chegar no morro, este
desceu para não fazer peso ao animal e logo ouviu um tiro em sua direcção e a
picada de outras armas de fogo, que não detonaram; comprehendendo tratar-se de
uma emboscada, Matheus, em defesa, saccou de uma garrucha e, de pé, alvejou um
grupo de trez pessoas, armadas de espingardas que o haviam aggredido,
primeiramente.
Eram Alberto Alexandre Duvigo, Antonio Zaccharioto e Ricardo Bachega, que,
atocaiados, pretendiam eliminar sua victima, com o pretexto de que ella estava
causando infelicidades nos seus lares, não o conseguindo, naturalmente porque suas
armas negaram fogo, sahindo só o de uma.
O tiro disparado por Matheus attingiu a Alberto Alexandre Duvigo, ferindo-o
gravemente; este, num esforço derradeiro, saccou ainda de sua garrucha e alvejou
Schiavon, errando o alvo.
Bachega fugiu, escondendo-se na sua casa, enquanto que Duvigo cahiu a 50 metros
do local, ficando junto delle Zaccharioto.
Mais tarde a policia foi avisada da triste occorrencia, alli comparecendo ás 9 horas
da noite, removendo o ferido para a Santa Casa e effectuando a prisão de seus
companheiros de tocaia.
Matheus Schiavon, tendo recebido, na cabeça, alguns bagos de chumbo, também
veio á cidade, tendo sido medicado na Santa Casa; ficou offendido apenas no couro
cabelludo e no braço esquerdo, sem gravidade.
A policia abriu inquerito sobre a triste occorrencia, tendo aprehendido trez
espingardas, 1 cartucheira, 1 revolver e 1 garrucha.396

Nesse caso, de acordo com os parâmetros estabelecidos na tipologia de Barthes,


deparamo-nos com o fait divers de Causalidade perturbada, pois a emboscada poderia ser
fruto de contendas graves pela posse de terras, rixas políticas e disputas pelo poder local, algo
comum nas regiões rurais do País à época. No Nordeste, por exemplo, famosas eram as
disputas, entre outras, dos Nogueiras, Carvalhos e Saturninos contra os Pereiras e Ferreiras;
dos Calheiros e Cavalcanti Lins contra os Omenas da Silva; dos Fortes Nunes contra os

394
Idem, Ibidem.
395
Idem, Ibidem.
396
Idem, Ibidem.

112
Malta, em Alagoas; e dos Alencar contra os Sampaio, em Pernambuco397. Poderia,
igualmente, ser resultado de conflitos violentos existentes na comunidade italiana do interior
de São Paulo, imersa em um ambiente cercado por competições e rivalidades entre membros
da mesma família ou de famílias diferentes, malgrado as fortes relações de parentesco e de
aparente solidariedade, de maneira que um “ajuste de contas – relacionado a uma questão
amorosa ou a uma dívida ou cobrança – poderia terminar em tiros e facadas”398. No mais,
muitos imigrantes italianos se conheceram apenas quando estavam em São Paulo, criando
novas relações sociais inexistentes em seu país de origem. Com efeito, “a sua coletividade
era caracterizada pela instabilidade, o que gerava, logicamente, o confronto entre os seus
membros. Pequenas causas – como a disputa por uma loja de tecidos deixada como herança
– eram capazes de criar sérios enfrentamentos entre compatriotas, inclusive familiares”399.
Porém, a emboscada a Matheus Schiavon não possuía nenhuma relação com as possibilidades
levantadas, tratando-se de uma tragédia resultante de um mero boato de práticas de feitiçaria.
Novamente, aqui, vemos a riqueza de detalhes e a seqüência de cenas, para maior
dramaticidade do fato, característico do fait divers. Uma delas consiste na particularização da
contenda entre Matheus e Alexandre: o esforço abismal e derradeiro deste último, já ferido
gravemente, para atingir seu adversário constitui-se na cena mais dramática do texto, afinal,
em meio ao sofrimento e à dor, é a última cartada, a última chance de Alexandre vencer
Matheus. As ações de todos os personagens são descritas minuciosamente, o que transporta o
leitor à cena do ocorrido, tornando-o um espectador privilegiado da trama. Algumas
informações chegam a parecer meras invenções, como, por exemplo, a exatidão dos metros
que Duvigo rolou morro abaixo, ou a posição de Matheus ao atirar nos seus oponentes.
E toda essa tragédia foi creditada de forma indireta aos que exerciam práticas mágico-
religiosas, na medida em que a simples acusação de práticas de feitiçaria, atiçando, assim, a
credulidade pública, poderia trazer graves conseqüências, ocasionando o desentendimento
entre famílias vizinhas que viviam em plena harmonia. Mais do que isso, possibilitaria o
acontecimento de uma “triste occorrencia” com “consquencias lamentaveis”, a saber, a
hostilidade contra um trabalhador honesto e digno, quase resultando em sua morte.

397
PERICÁS, Luiz Bernardo. Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica. São Paulo: Boitempo, 2010, p.
28.
398
GABRIEL, Maria Cristina Chiaradia. Além das fronteiras do colonato (o ajustamento da coletividade
italiana à sociedade local campineira durante a grande imigração – 1886 a 1920). Campinas, SP: Dissertação
de Mestrado em História, IFCH/UNICAMP, 1995, p. 168.
399
Idem, Ibidem, p. 167.

113
2.5. Biografias horrendas: devassos, bígamos, assassinos e defloradores

Além de desagregadores, adeptos das práticas mágico-religiosas também foram


estigmatizados como sujeitos detentores de uma trajetória de vida marcada por atos
repugnantes, como homicídios, embustes e violência sexual, este último confirmando sua
devassidão desenfreada. O Código Penal de 1890, no artigo 266, determinava como delito
“atentar contra o pudor de pessoa de um ou de outro sexo, por meio de violência ou ameaça
com o fim de saciar paixões lascivas ou por depravação moral”400. Abrangendo as relações
sexuais feitas à base da coerção, o texto do Código objetivava a proteção da “honra” da
mulher – não como atributo individual feminino, mas sim como apanágio do marido ou da
família –, definindo como crimes que contra ela atentavam o estupro (artigo 269) e o
defloramento (267)401.
Antonio Joaquim Velloso e Luis Guimarães foram dois personagens noticiados com
bastante ênfase. O primeiro, segundo informa o jornal, além de deflorar uma menor, teria
ajudado um amigo a lançá-la à prostituição. Mas os crimes de Velloso teriam alcançado uma
escala muito maior. Notícias de edições seguintes o delineavam como um indivíduo da pior
espécie. Observemos como seu perfil foi esquematizado.
No dia 9 de agosto de 1915, A Capital anunciou em letras garrafais: “O ‘dr.’ Velloso,
feiticeiro e curandeiro, está na berlinda”402. Em seguida, as chamadas do texto já
desenhavam para o leitor um aspecto nada positivo. O primeiro subtítulo seguia a mesma
lógica de alguns casos anteriormente vistos, na medida em que remetia à bizarrice de suas
práticas, ao destacar alguns dos materiais empregados, cuja mistura, aos olhos do jornal, seria
destituída de qualquer princípio racional: “Raizes de caroba, cipó cruz, herva de rato e
alecrim”403. O segundo subtítulo, em tom exclamativo próprio do sensacionalismo,
antecipava o que seria afirmado ao longo da notícia, a saber, um comportamento longe de ser
pautado pelos valores morais: “Além de curandeiro, satyro!”404. Por último, a confirmação da
ausência de princípios: “Um repugnante caso de caftinagem em que o cunhado alicia
prohibidos amores para uma infeliz menor de 15 annos!”405. Quem seria o cunhado? Isso foi
declarado nas últimas linhas do “repugnante caso”.

400
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924), op. cit., p. 195.
401
Idem, Ibidem.
402
A Capital, “O ‘dr.’ Velloso, feiticeiro e curandeiro, está na berlinda”, 9 de agosto de 1915.
403
Idem, Ibidem.
404
Idem, Ibidem.
405
Idem, Ibidem.

114
Em primeiro lugar, expunha-se o quão dissimulado seria Velloso, pois este teria, por
meio de pérfidos artifícios, enganado muitos indivíduos, afinal, afirmava ser médico e tratava
enfermos sem, contudo, possuir formação adequada para tanto, com o fito de lograr alguns
vinténs. Por meio de metáfora estabelecida entre o feiticeiro e o mundo animal, dá-se
destaque ao seu modo de agir astuto (como a raposa), pronto para enganar a próxima vítima:

Preto como um urubú, manhoso como uma raposa e fino como um alho, o ‘dr.’
Velloso têm sido neste mundo tudo o que um homem pode ser: coroinha, sacristão,
missionario, protestante, irmão de S. Francisco, advogado e... medico!...406

As aspas na abreviação da palavra “doutor”, com efeito, não foram empregadas a


esmo, apontando para uma ironia do diário, pois Velloso denominar-se-ia médico, mas, ora,
não possuía diploma. Seria, em sua lógica, mais um falso médico a enganar os incautos.
Já a ênfase ao fato de ser negro por meio da comparação com o urubu, animal feio,
sujo e desengonçado, realça o pensamento racista do jornal. Em outras oportunidades, o diário
destilou o seu preconceito racial para desqualificar feiticeiros e curandeiros. Certa feita, ao
noticiar o caso da mulata Maria Augusta, a qual, estando doente, procurou o ex-escravo
Alexandre José Balduino, valeu-se da pretensa inferioridade dos negros propalada por
cientistas desde meados do século XIX:

Feiticeiros, porém, negros de carapinha cosmeticada, dansando ao redor de um


pobre Christo de latão, mergulhado num caneco de espirito de vinho com arruda ou
carobinha, é privilegio nosso, que temos nas veias um pouco do sangue dos
tocadores do congo, e muito dos costumes dos homens de yatagan recurvado, lá das
bandas de Benguela!407

O conceito de inferioridade intelectual dos negros também se fez presente. Ainda na


notícia sobre o caso de Maria Augusta, foi citado o “preto” Theodoro Soares, o qual, ao se
assustar com os rituais de cura realizados por Balduíno, teria se dirigido à polícia para
denunciá-lo. Todavia, o diário derramou sobre Soares todo o seu racismo ao afirmar que o
mesmo era “homem mettido a esperto, cheio de metaphoras, pernostico como um soberbo
mina da terra de S. Cruz”408.
Mas voltemos ao caso de Velloso. Após destacar a sua fealdade por meio de
argumentos racistas, o texto, novamente descarregando um ligeiro tom sarcástico, ressaltou
sua completa falta de princípios éticos, no momento em que afirmou que o feiticeiro possuía

406
Idem, Ibidem.
407
Idem, “A feitiçaria em S. Paulo. – Dansas, rezas, drogas e cachaça!”, 18 de novembro de 1915.
408
Idem, Ibidem.

115
“vistas largas”, ou seja, era um indivíduo de olhos bem abertos para as oportunidades de
ganho fácil de dinheiro por meios ilícitos. Prova disso seria o fato de não se contentar com a
profissão de médico sem habilitação, resolvendo “alargar o seu campo de clínica”:

e, comprando um bisturi, uma pinça e um forceps fez-se cirurgião, no que, afinal,


nada havia de causar pasmo, si era verdade que lhe era corriqueiro o processo de
encanar um braço partido, reduzir uma inxação e mandar ao diabo a phalangeta de
qualquer malaventurado por ahi ou ao caixão do lixo o cordão umbelical de qualquer
filho das hervas!409

Posto isso, parte-se para o primeiro ato de malfeitoria de Velloso. Este teria se
assentado na cidade de Jundiaí, onde, “de todo o geito, esfolou uma pobre cliente,
arrebatando-lhe as economias e os restos da vida... A cliente, como era natural, um bello dia
ingeriu o medicamento prescripto pelo famoso esculapio e disse adeus ao mundo!” 410. Aqui,
encontramos sua primeira vítima, cujo fim é narrado de forma dramatizada e com termos
exagerados, para ressaltar a esperteza, crueldade e periculosidade da “raposa”, pois não se
tratava simplesmente de uma moça: era uma “pobre moça”, e o mesmo não apenas matou a
vítima, mas sim “arrebatou-lhe os restos da vida”, fazendo-a dizer “adeus ao mundo”. No
mais, para reforçar o perigo representado pelo feiticeiro, o excerto traz ao leitor a
inevitabilidade da tragédia, quando se acredita em seus poderes sobrenaturais: como seu
tratamento não funcionava, pois se constituía apenas em uma charlatanice, era óbvio o
resultado ser terrível, como o agravamento da doença que se pretendia curar, ou até mesmo a
morte. Dito de outra maneira, não poderia ocorrer algo diferente. Era “natural”.
Desse modo, Velloso, em primeiro lugar, é retratado como um verdadeiro assassino.
Mas as malévolas ações não ainda não teriam terminado. Após os parentes de sua cliente
terem movido contra ele um processo por exercício ilegal da medicina, conta A Capital, de
forma irônica e recorrendo novamente à metáfora do mundo animal, que “receioso das
demonstrações de affecto da policia, bateu as negras plumagens, disposto a metter o bico em
todas as clinicas de pharmacias que alli encontrasse... E foi assim”411. Assim como o urubu,
que rodeia carne em putrefação para alimentar-se, Velloso estaria sempre de olhos bem
abertos, sobrevoando a localidade onde se encontrava para vislumbrar as próximas
oportunidades de amealhar recursos financeiros sobre outras vítimas.

409
Idem, Ibidem.
410
Idem, Ibidem.
411
Idem, Ibidem.

116
Após a fuga, passou a residir na capital paulista “realisou seu sonho e... diplomou-se,
graças à famosa lei Rivadávia!”412, obtendo o grau de Doutor em Ciências Médico-
Cirúrgicas numa instituição privada localizada na Rua José Bonifácio, mediante prestações
que totalizavam Rs. 60$000. Conhecido como Lei Rivadávia, ou Lei Orgânica do Ensino
Superior e do Fundamental da República, o Decreto n. 8659, de 5 de abril de 1911, de autoria
do então Ministro da Justiça e dos Negócios Interiores, Rivadávia da Cunha Corrêa, retirou a
ingerência do Estado no campo da educação, tornando livre o ensino no País, de maneira que
as instituições de ensino teriam plena autonomia administrativa e didática413, fato que
possibilitou a criação de institutos privados de educação superior, sendo a maioria na área da
saúde414. O jornal posicionou-se ferrenhamente contra essa lei, pois considerava serem tais
institutos o que hoje denominados como caça-níqueis, ou seja, ávidos pelo lucro e com
péssima qualidade de ensino. Em outras palavras, seria o equivalente à mercantilização da
instrução, de modo que todos poderiam ser titulados, desde que comprassem o diploma,
oferecido em troca de uma determinada quantia em dinheiro:

Todo o mundo fazia academias e doutores, desde o Laurence do Rio, até o Antonio
da esquina; doutores por correspondencia, doutores por 60$000 e doutores por
sorteios semanaes em series de mil!...
Multiplicaram-se as placas, os anneis de gráo e só não o tinha antes do cognome o
fascinador DR. quem não queria!415

Daí a indignação do diário. Não bastasse Velloso prometer curas sem um diploma,
teria vergonhosamente comprado-o, graças à Lei Rivadávia, para dar legitimidade às suas
atividades e continuar explorando os consulentes. E pior: dali em diante, o pedantismo era tal
que “a pose cresceu e quanto [sic] o seu Velloso lhe feria os ouvidos elle sibilava
descaradamente: <<dr.>> Velloso! si me faz o favor!”416. Justo ele, caracterizado como um
indivíduo que não entende os conceitos mais rudimentares de medicina, desejava ter
pronunciado o título de “Doutor” antes do nome. Por essa razão a inserção da palavra
“descaradamente”: sua petulância e falta de vergonha eram tão grandes que, mesmo após a
compra indecente de um certificado, outorgava-se o direito de se equiparar aos médicos

412
Idem, Ibidem.
413
CURY, Carlos Roberto Jamil. “A desoficialização do ensino no Brasil: a Reforma Rivadávia”. Educação e
sociedade. Campinas, vol. 30, n. 108, out. 2009, pp. 717-738.
414
Uma delas é a Universidade Livre de São Paulo, fundada em 1911 e extinta em 1917. Para mais informações,
ver MOTT, Maria Lucia et al. “Montando um quebra-cabeça: a coleção ‘Universidade de São Paulo’ do Arquivo
Público do Estado de São Paulo”. Cadernos de História da Ciência. São Paulo, vol. 3, n. 2, 2007, pp. 37-72.
Agradeço à historiadora Karla Maestrini pela indicação do texto.
415
A Capital, “O ‘dr.’ Velloso, feiticeiro e curandeiro, está na berlinda”, 9 de agosto de 1915.
416
Idem, Ibidem.

117
qualificados. Somente um sujeito imoral poderia ser arrogante mesmo tendo ciência de seus
atos errôneos.
A empáfia gritante teria atingido o ponto máximo por ocasião de uma rusga com o
delegado de polícia, após sua prisão:

Não obstante o seu pergaminho, um bello dia a policia de Santa Ephigenia, invadia-
lhe o consultorio e levava-o sem mais aquella para o fio da xadrez.
Ao ser interrogado pelo dr. Coutinho o esculapio abespiaho se, e ouvindo da
auctoridade o desaforado seu Velloso – teve um pigarro, estendeu o pollegar e,
fitando-a com descaso, arremessou-lhe ás bocheças, com empafia:
- Seu Velloso, não; <<dr.>> Velloso, si me faz favor!
- Ora, <<dr.>> de 60$000!
- E v. s. bacharel de quanto?417

É demonstrada, com efeito, toda a falta de caráter de Velloso. A soberba, de tão


inflada, acarretou até mesmo o desrespeito a uma autoridade policial. Ato contínuo, o
feiticeiro teria sido encarcerado, solto breve tempo depois e processado, mas “o processo
engasgou no forum e o sarado tio continuou a clinicar... quase esquecido”418.
Segundo A Capital, o feiticeiro atendia a clientela em um gabinete localizado na Rua
Almirante Barroso, número 76, cobrando Rs. 10$000 por consulta, devendo o valor ser pago
antecipadamente. Além de prometer curas, também assegurava poder amarrar corações,
desamarrar encrencas conjugais e financeiras, produzir sofrimentos à distância, preparar
talismãs e ensinar rezas para fins diversos, como a de São Custódio, destinada a quebrar
grades da cadeia.
Contudo, o pior estava por vir. Certa feita, o cliente e amigo Fabricio José de Almeida,
encerador da Prefeitura, “um bode escovado e pelintra”, apaixonou-se por Palmyra dos
Santos, de 15 anos, moradora de Campinas e cunhada de Fabrício, conforme revelou o jornal
em outra edição419. Mas, como a moça repelia seus galanteios, o diário informa, mais uma vez
apelando a um palavreado racista, que Fabrício recorreu “á sciencia do brusco preto”. Então,

a coisa se fez, não por meio das beberragens de agua de sovaco, ou pelas rezaes do
discipulo de S. Cypriano, mas por meio de um telegrama ordinario, sem cruzes, sem
alfinetes, sem pó de sapo virgem com pello de gato preto!
A mãe de Palmryra, elles o sabiam, estava em S. Paulo, para as bandas da rua Santo
Amaro, de modo que a coisa era simples, bastando escrever numa formula especial
<<Venha hoje. Tua mãe>>.420

417
Idem, Ibidem.
418
Idem, Ibidem.
419
Idem, “O ‘dr.’ Velloso, feiticeiro e curandeiro, está na berlinda”, 10 de agosto de 1915
420
Idem, “O ‘dr.’ Velloso, feiticeiro e curandeiro, está na berlinda”, 9 de agosto de 1915.

118
Dito de outro modo, a questão, naquele momento, não residia mais nas práticas
mágico-religiosas, mas sim nas ações atrozes de um indivíduo caracterizado como alguém
destituído de valores morais. O assassinato da moça em Jundiaí resultou de suas práticas
charlatanescas, ao passo que o que ia acontecer com Palmyra decorria da libido incontrolável
de um sujeito sem princípios.
Palmyra teria acreditado no telegrama, juntado as suas trouxas e partido rumo à cidade
de São Paulo. Velloso, que já estava à sua espera, conforme narra a notícia, conseguiu raptá-
la. O momento do seqüestro e do defloramento concretizados pelo feiticeiro é descrito com
toda a dramaticidade sensacionalista característica do jornal, apresentando toda a sua
barbaridade:

E assim se fez; Palmyra fez a trouxa e partiu, vindo a cahir nas garras do <<dr.>>
Velloso que a transferiu ao cliente, que reside no bairro de Agua Branca, numa
travessa da Villa Pompea, casa n. 16.
Palmyra, caindo de surpreza em surpreza, tonificada poderosamente pela
therapeutica demoniaca do medico-feiticeiro, perdeu a capella da virgem e o juizo...
Inteiramente desequilibrada, a pobre rapariga, soffre horrivelmente, graças ao
<<dr.>> Velloso que, a esta hora, continua a clinicar no populoso bairro do
Braz!!!421

A ênfase aqui recai sobre uma dramatis personae do fait divers levantada por Barthes,
qual seja, a criança. Dito de outra maneira, o trágico dessa notícia assenta-se na figura da
pobre e indefesa menor, explorada poderosa e cruelmente pelo feiticeiro Velloso. Isso fica
patente nas expressões inseridas para narrar a tragédia de Palmyra, pois esta, mais do que uma
menina, era “uma pobre rapariga”, tão inocente a ponto de acreditar ingenuamente em um
simples bilhete e cujas atribulações pelas quais passara fizeram-na ficar “inteiramente
desequilibrada”, além de sofrer “horrivelmente”.
Toda essa fragilidade e desventura trazem ao leitor um perfil que mostra ser a antítese
de Velloso, um sujeito delineado como pérfido e, nomeadamente, astuto nos modos de
efetuação de seus atos maléficos, aspecto reforçado quando a notícia lançou mão outra vez da
metáfora estabelecida entre o feiticeiro e um urubu, na medida em que não apenas capturou a
delicada garota, mas a fez “cahir nas garras”, cuja conseqüência foi a perda da honra de
Palmyra. O feiticeiro, sempre sobrevoando à procura do próximo corpo que irá atender às
suas necessidades, de modo semelhante à citada ave – com a diferença de que esta o faz para
se alimentar e aquele, para fins sexuais –, logrou novamente seus sinistros objetivos, por meio
de astutos estratagemas, como uma raposa.

421
Idem, Ibidem.

119
Urubu, raposa, garras, negras plumagens... Velloso, em face dessa linguagem
metafórica, perde sua natureza humana. Do gênero humano, resta-lhe apenas o uso da
racionalidade. Porém, esta é empregada apenas com o intuito de elaborar meios destinados à
satisfação de suas vontades, seja de obtenção de mais e mais dinheiro, seja do desejo sexual.
O feiticeiro, assim, torna-se um ente animalesco, movido apenas pelos desejos desenfreados,
dada a sua imoralidade. Em lugar de procurar contê-los, do mesmo modo que homens e
mulheres em sociedade, faz o possível para atendê-los, mesmo que para tanto tenha que
infringir as leis e romper as regras sociais de conduta consideradas decentes.
Notemos que, até aqui, A Capital, em nenhum momento, diferentemente dos casos de
Gastão e Sobrinho, relativiza toda essa feição maldita de Velloso. Aliás, este último sequer é
caracterizado como alguém que, um dia, dedicou-se a um “trabalho honesto” e, em seguida,
transformou-se em um embusteiro, como os dois primeiros. Pelo contrário, sua biografia
narrada de forma alguma possui a viragem de comportamento. Ou seja, se Gastão e Sobrinho
eram imorais por natureza em virtude de terem abandonado os meios dignos de vida, Velloso
o era simplesmente porque nunca se dedicou a uma atividade proba, tendo sido, em toda a sua
trajetória, um perfeito intrujão. Esse aspecto perverso e indecoroso imanente a ele está,
inclusive, implícito na expressão “therapeutica demoniaca”: o exercício de uma prática que,
de tão cruel, é associada ao nome do diabo somente poderia ser fruto de um sujeito imoral,
não iluminado por Cristo, destituído dos verdadeiros princípios cristãos e humanitários.
Se Velloso possuía uma personalidade de um indivíduo destituído de moral elevada,
aqueles com quem estabelecia vínculos amigáveis seriam semelhantes. A Capital afirma que o
feiticeiro deflorou Palmyra pelo fato de seu amigo, e cunhado da mesma, Fabrício, aliciá-la,
forçando-a a manter relações sexuais com Velloso422. Já em outra edição, é informado que “a
mocinha que havia deshonrado, teria casado com um dos seus cosinheiros, naturalmente
para lançal-a á prostituição, depois!!!”423.
Desse modo, tenciona-se expor ao leitor mais um fato comprovador do quão
desqualificado é o referido feiticeiro, pois além de ser um criminoso (assassinato decorrente
de exercício ilegal da medicina, prática de feitiçaria e violência sexual contra uma menor),
também teria auxiliado outros delinqüentes, visto que, tanto o cozinheiro quanto Fabrício, por
forçarem Palmyra a se prostituir, cometiam os crimes denominados de caftismo e lenocínio,
de acordo com o Código Penal de 1890. O jornal, aliás, adjetiva negativamente Fabrício como

422
Idem, “O ‘dr.’ Velloso, feiticeiro e curandeiro, está na berlinda”, 10 de agosto de 1915.
423
Idem, “O ‘dr.’ Velloso, feiticeiro e curandeiro, está na berlinda”, 12 de agosto de 1915.

120
um cáften424, contraventor combatido enfaticamente pela polícia e considerado por juristas um
tipo hediondo, explorador torpe das mulheres. O Dr. Bapitsta Pereira, em um artigo na Revista
de Jurisprudência, afirmou ser o mesmo um perigo à civilização, afrontando os costumes
públicos, bem como o pudor da sociedade425. O próprio diário, certa feita, realçou a
perversidade do cáften:

Nas casas de <<rendez-vous>>, menores arrebanhados no interior, sob pretexto de


bons empregos, na capital, são perdidas, por intermedio de astuciosas caftinas e
caftens repellentes. Vehiculo de innumeros desvios do lar, burlando a fidelidade
sagrada do matrimonio, as casas de <<rendez-vous>> tem, por todos os lados, os
seus inconvenientes, alem de tudo animar o crime...426

Por fim, o último ato criminoso de Antonio Joaquim Velloso foi narrado. Consistia em
mais um assassinato. Na edição de 11 de agosto de 1915, em uma nota, afirma-se que o
feiticeiro estaria sendo procurado pela polícia do Brás, por ser o causador da morte do
funcionário dos Correios, Liberalino José de Lima, 28 anos, morador da Rua Niterói, número
40. Velloso teria prescrito dois medicamentos a Liberalino: uma pomada para uso externo e
um preparado de nome Nevrita, para uso interno. Para demonstrar sua ausência de cultura
civilizada, o jornal ainda fez questão de publicar o atestado assinado para que o funcionário
apresentasse à repartição dos Correios e justificasse sua licença. Os erros de língua portuguesa
demonstrariam “sua supina ignorancia”427:

Eu attesto que – o sr. Liberalino José de Lima acha-ce enfermo de uma pelomoria
dupl.ista impocebilitado de trabalhar guardando o leito. – S. Paulo, 9 de agosto de
1915. – Dr. Antonio Joaquim Velloso. 428

Em seguida, o jornal indica ao leitor que realmente Velloso seria o responsável pela
tragédia ocorrida com Liberalino, ao afirmar que, no que tange à pomada e ao Nevrita,
“aquella droga foi por elle proprio manipulada, e o frasco do ‘Nevrita’ foi recebido aberto,
ignorando-se, portanto, si o seu conteúdo era o mesmo medicamento indicado no rotulo”429.
Então, “a verdade é que Liberalino José de Lima, fazendo uso de tal medicamento, nenhuma

424
Idem, “O ‘dr.’ Velloso, feiticeiro e curandeiro, está na berlinda”, 10 de agosto de 1915
425
GERALDI, Gisele Colaço. Sob a mira da polícia: homens, mulheres e autoridades policiais em São Paulo na
primeira década republicana. Campinas, SP: Dissertação de Mestrado em História, IFCH-UNICAMP, 2008, p.
90.
426
A Capital, “O jogo, as casas de <<rendez-vous>>, a mendicidade, a malandragem, a feitiçaria e a
cartomancia em S. Paulo”, 16 de outubro de 1912.
427
Idem, “O ‘dr.’ Velloso, feiticeiro e curandeiro, está na berlinda”, 11 de agosto de 1915.
428
Idem, Ibidem.
429
Idem, Ibidem.

121
melhora experimentou, vindo a falecer ante-hontem”430. É interessante notar que a mesma
notícia ainda informa que a autópsia atestou lesões no coração e nos rins, demasiadamente
inchados e descorados, levando a crer que a morte tivesse ocorrido em virtude de causas
naturais. No dia da publicação da reportagem, o exame toxicológico, que poderia provar se
houve de fato o envenenamento, não estava pronto ainda, porém, mesmo assim, o jornal já
atribuiu a culpa a Velloso pela morte do Liberalino. Não havia dúvidas, dado o histórico de
barbaridades do feiticeiro, afinal, como fez questão de ressaltar a notícia, “a verdade é que”...
Tentava-se, assim, chamar a atenção novamente do leitor para o absurdo causado pelas
ações do imoral Velloso, qual seja, a morte de um trabalhador. E, não bastasse isso, o mesmo
teria prejudicado uma estimada família, amada com todo o afeto possível por Liberalino, mas
dali em diante desolada, pois não o veria mais, donde o termo de sua vida ser tão “doloroso”,
conforme o excerto a seguir: “O caso do funccionario dos Correios é doloroso. Um chefe de
familia é roubado ao lar e ao convivio dos entes queridos”431.
No dia 10 de agosto, Velloso foi preso, já que havia contra ele um mandado de prisão
preventiva, expedido anteriormente como conseqüência de um processo que sofrera há
tempos, por exercício ilegal da medicina. Infelizmente não sabemos o desfecho do caso, pois
não se publicou mais nada a seu respeito.
O feiticeiro Luiz Guimarães, por sua vez, incorpora a figura de um devasso no sentido
lato do termo. Assim como no caso de Velloso, A Capital, logo na primeira edição em que
noticia Guimarães, antecipa ao leitor a gravidade do que seria narrado: “Um caso
repugnante”432. Em seguida, o outro subtítulo, utilizando o tom exclamativo para
potencializar ainda mais o ocorrido, resume: “Um velho, casado em terceira nupcias,
desnhonra a filha e, abandonando-a, abusa de uma menor!”433. Esse excerto já chama a
atenção para o caráter desajustado do feiticeiro, delineando-o como um tarado, destruidor de
todos os padrões sociais da moral, afinal, além de ter efetuado o ato de defloramento,
Guimarães estava em seu terceiro casamento, algo inaceitável para os valores da época,
segundo os quais o casamento deveria durar a vida toda e a separação constituía um evento
vergonhoso – imaginemos então o que três casamentos denotariam!
Logo no primeiro parágrafo, o diário, para demonstrar a perversidade de Guimarães,
retoma o discurso da sacralidade da unidade familiar por ele desrespeitada, de modo “que vae

430
Idem, Ibidem.
431
Idem, “O ‘dr.’ Velloso, feiticeiro e curandeiro, está na berlinda”, 12 de agosto de 1915.
432
Idem, “A feitiçaria, em S. Paulo, augmenta espantosamente”, 2 de dezembro de 1914.
433
Idem, Ibidem.

122
cavando a ruina de muitos lares e desgraçando innumeras familias”434. Com uma ponta de
sarcasmo afirma que o feiticeiro “que morou muito tempo á rua S. Joaquim, 82, exerce,
agora, a profissão á rua Conselheiro Brotéro, 68, onde dá consultas duas vezes por
semana”435.
Do mesmo modo que Velloso, Guimarães teria se diplomado em uma instituição
privada surgida após a Lei Rivadávia, qual seja, a Universidade Brasileira, ou como denomina
a notícia, “uma academia de cavação”. Esse seria um de vários outros embustes noticiados
em edições posteriores, os quais veremos em linhas posteriores, indicando aos leitores, assim,
sua falta de princípios éticos, na medida em que também teria comprado um diploma com o
intuito de dar legitimidade às suas atividades e propalar o domínio de conhecimentos que na
verdade não possuía para explorar a população: “o homem arrota ser occultista, saber se
utilisar de fluidos, etc.... com o que vae embuindo a boa fé dos incautos e abusando dos
ignorantes”436.
Mas o ato mais nefando seria ainda narrado. Novamente com um leve escárnio, o
diário apresenta Guimarães como um perfeito depravado, cuja ânsia pelos prazeres da carne
não conhece os limites impostos pela vida em sociedade, pois “é um portuguez ladino, de 70
annos, mas possúe a virilidade de um homem de 30!”437. Além do mais, a definição dada a ele
evidencia toda essa perversidade divulgada pela A Capital: “cynico satiro”438. Em outras
palavras, não bastasse a libido desenfreada, tratar-se-ia de um indivíduo hábil no embuste
para atingir os objetivos pretendidos.
O feiticeiro, ao que se conta, era casado em terceiras núpcias com Maria Conceição,
entretanto,

pouco liga á mulher: deshonrou a propria filha, de nome Joaninha [...],


abandonando-a, depois para unir-se a uma mocinha de 17 annos!
Esta, uma infeliz victima da suggestão, foi vendida pelos paes ao satyro e reside com
a familia e o velho á rua Conselheiro Brótero, lado par.
A nossa reportagem soube que a moça pertence a boa familia e faz vêr aos seus que
o que a une ao feiticeiro é o amor espiritual, a imantisação de ideaes reciprocos, que
se attrahhem!...
A infeliz creatura, cujas iniciaes são B. C. G., esta ultima letra adoptada por causa
do nome do velho fauno...

A ultima victima

é a rainha da belleza, na Barra Funda.

434
Idem, Ibidem.
435
Idem, Ibidem.
436
Idem, Ibidem.
437
Idem, Ibidem.
438
Idem, Ibidem.

123
Quem a visse, á rua, sem saber-lhe dos mysterios intimos, dil-a-ia uma monja
formosa e romantica. Sempre triste, cabisbaixa, olhos fitos, ora no solo, ora no azul
dos céus, a encantadora moça inspira compaixão e causa dó!...
O velho parece tel-a transtornado de tal fórma, que a desventurada rapariga vive
abstracta, longe do mundo...
Nas viagens que o feiticeiro emprehende, a moça o acompanha, religiosamente.
Moram num commodo só, á rua Conselheiro Brotéro...439

O caráter traiçoeiro de Guimarães chega ao seu mais alto grau. Antes de tudo, por não
cumprir, dentro dos padrões de divisão sexista das funções do casal à época, o papel de
marido provedor do lar e protetor da esposa. Por esse motivo, Maria da Conceição é apontada,
por meio de uma metáfora religiosa, como “uma verdadeira martyr, que vive resignada e
só!...” 440: em decorrência das ações diabólicas de Guimarães, a esposa, como uma santa, uma
mulher que acredita nos valores do casamento, leva uma vida eivada de sofrimentos. A
ausência do chefe da casa é agravada pelo fato de o feiticeiro possuir “mulher ainda viva e
filhos”441. Guimarães não era viúvo ou desquitado, mas sim um bígamo, característica
reforçada em outra ocasião, quando é noticiado, em tons exclamativos, que o mesmo, após ter
se casado na Igreja Romana, contraiu “novas nupcias num templo protestante, com a propria
sobrinha.[...] Essa moça acha-se asylada no collegio do Bom Pastor, no Ypiranga”442.
Tenciona-se advertir o público leitor para o absurdo da situação e da imoralidade do feiticeiro,
pois este teria atentado não somente contra a instituição familiar como também a do
casamento.
A jovem habitante do bairro da Barra Funda o faz constituir-se em um traiçoeiro no
sentido mais lato do termo. Se, por um lado, possuía a aparência de uma moça encantadora,
por outro, era quebradiça, com um ar tristonho, silencioso e introspectivo. Seus olhares
indicam o estranho comportamento: se estão centrados para baixo, mostram uma timidez
excessiva, bem como um desânimo, a falta de coragem de encarar o mundo afora; caso se
direcionem para o céu, são contemplativos, remetendo à imagem de uma menina pensativa,
“abstracta”, vivendo apenas no mundo de suas idéias, alienada da realidade. Enfim, uma
jovem frágil, sem ação, “victima da suggestão”, caracterização tão ao gosto do pensamento
médico, para quem seriam características inatas, por razões biológicas, do sexo feminino a
fragilidade, o recato e o predomínio das faculdades afetivas sobre as intelectuais. Daí
Guimarães tê-la transformado “de tal forma”: sua vítima, em virtude de ser do sexo feminino,
era facilmente influenciável.

439
Idem, Ibidem.
440
Idem, Ibidem.
441
Idem, Ibidem.
442
Idem, “A feitiçaria, em S. Paulo, augmenta espantosamente”, 3 de dezembro de 1914.

124
Com efeito, engendra-se uma cena dual envolvendo a inocência, fragilidade e virtude
de uma jovem versus a crueldade e a malícia de Guimarães, potencializando sua
periculosidade. Entretanto, a personagem cujo sofrimento torna-o um indivíduo inescrupuloso
face ao público leitor é sua filha:

É a Joanninha, a infeliz. Doente e semi-paralytica, rheumatica, a pobre moça,


deshonrada pelo pelo velho pae, deve ter seus 24 annos de edade. O pae abandonou-
a, expulsou-a do lar espurio. Mais tarde a aceitou, novamente, mas, como vimos, em
casa não apparece.443

O diminutivo do nome já remete à fragilidade da vítima. No mais, não bastasse o


horrendo crime de violência sexual contra a própria filha, pesava o fato de a mesma ser
deficiente. E, pior, dentro do lar, local por excelência onde os filhos deveriam receber uma
boa criação e estarem protegidos dos perigos do espaço público. Dito de outra maneira, aqui,
novamente, os leitores deparam-se com uma cena dual própria do melodrama, qual seja, a
debilidade e inocência de Joanninha em contraposição à robustez e libido sem freios do
feiticeiro. Por fim, a expulsão da mesma robustece o caráter vil de Guimarães: é o pai relapso,
ausente, frio, sem amor à filha, a qual, exatamente por estar doente, fragilizada, mais necessita
de seu apoio.
As atitudes destituídas de moral por parte de Guimarães não se encerraram por aí. Nas
edições dos dias três, quatro, cinco e nove de dezembro, o jornal traça uma biografia do
feiticeiro antes de sua chegada à capital e ao derradeiro estupro da filha. A expressão utilizada
para adjetivar essa narrativa é muito curiosa. Seria uma “autopsia moral”444. Dito de outro
modo, tratava-se de dizer ao público leitor: vejamos o quão desprovido de princípios é Luis
Guimarães!
Não seguiremos a ordem cronológica das notícias, algo que tornaria o percurso
cansativo e repetitivo, de modo que agruparemos as atitudes do feiticeiro narradas com o fito
de sintetizá-las e, por conseguinte, visualizarmos o perfil ético delineado pela A Capital.
Primeiramente, faz-se uma retificação: Guimarães não era proveniente de terras lusitanas, mas
sim um “máu brasileiro”445, tendo nascido no município de Quatis, localizado no Estado do
Rio de Janeiro. Repitamos: “máu brasileiro”. Se, na linha de raciocínio d’A Capital, havia,
como vimos anteriormente, na cidade São Paulo, gente ordeira e trabalhadora obrando pelo
progresso do município, formando assim a trupe dos bons brasileiros, existiam os maus
indivíduos das terras brasílicas, que, em lugar de se dedicarem à labuta diária para o
443
Idem, “A feitiçaria, em S. Paulo, augmenta espantosamente”, 2 de dezembro de 1914.
444
Idem, “A feitiçaria, em S. Paulo, augmenta espantosamente”, 3 de dezembro de 1914.
445
Idem, Ibidem.

125
engrandecimento do País, empregavam todos seus esforços com o fito de obter vinténs por
meio de atividades ilícitas, como Guimarães e os já citados Gastão e José Alves Sobrinho.
Seriam esses os responsáveis pela quebra da ordem social e, por conseguinte, pela evolução
da Nação.
Mas voltemos à história de Guimarães. Este, segundo informa o diário, antes de chegar
à capital paulista, passou, nos primeiros anos do século XX, pela cidade de Araraquara. Nessa
localidade, tocava violão e flauta, acompanhado dos cânticos das filhas. Aqui, tem lugar o seu
primeiro embuste: “Ao que se sabe aportou em Araraquara paupérrimo”, mas “conseguiu
incutir no espirito de um velho enfermo de que era seu irmão verdadeiro”446. Conforme a
narrativa, o mesmo acreditou no feiticeiro, tornando-o seu herdeiro universal.
A mesma estratégia fora utilizada, aliás, ao chegar à cidade de São Paulo. Convenceu
a italiana Felicita Stamato, residente à Rua Tabatinguera, de que era seu tio. A senhora
acreditou nos dizeres de Guimarães, passando a respeitá-lo como tal, inclusive beijando-lhe as
mãos. Com isso, o feiticeiro, junto com sua esposa e seus filhos, conseguiu morar na casa da
família Stamato por vários meses447. Uma vez mais nos deparamos com uma dramatis
personae do fait divers, utilizado para robustecer a imagem de imoral de Guimarães, a saber,
os idosos – e, não bastasse isso, o primeiro, morador de Araraquara, estava doente. A sua
perfídia seria tal que sequer tinha vergonha de explorar alguém em uma situação debilitada.
No mais, notemos, o feiticeiro não era apenas desprovido de recursos financeiros, mas
sim “paupérrimo”, termo que não foi inserido de forma gratuita no texto. Pelo contrário,
realça a sua cretinice, afinal, mais adiante, o jornal transmite a idéia de que Guimarães, assim
como Gastão e Sobrinho, após vários embustes, teria se tornado, em curto intervalo de tempo,
um indivíduo endinheirado. Realça-se, desse modo, o absurdo da situação: ao invés de viver
em uma pobreza honrada, como Jacob, trabalhando firmemente para, quem sabe um dia,
progredir em termos financeiros, Luis Guimarães preferiu o enriquecimento rápido, fácil e
ilícito.
Com o dinheiro da herança, o feiticeiro “comprou o cartório civil local, do qual
usufruiu os proventos durante dois annos e dois mezes, sem prestar o devido concurso, o que
foi mais tarde obrigado a fazel-o”448. O único candidato inscrito, além de Guimarães, era o
tenente Pio Corrêa, cujo perfil foi delineado como o de um “moço preparadissimo e distincto,
que metteu Luiz Guimarães num chinello e teria mettido uma duzia delles, se lá

446
Idem, Ibidem.
447
Idem, “A feitiçaria, em S. Paulo, augmenta espantosamente”, 4 de dezembro de 1914.
448
Idem, “A feitiçaria, em S. Paulo, augmenta espantosamente”, 3 de dezembro de 1914.

126
apparecessem” 449. Porém, malgrado a extrema superioridade de Corrêa, o feiticeiro foi
aprovado, continuando a atuar como escrivão, graças aos socorros do Dr. João de Araújo,
político local, chefe situacionista e protetor de Guimarães. Assim, quando parecia que este
havia tomado um rumo certo na vida, constatou-se que obtivera alguns vinténs de forma
irregular (ser tabelião sem passar por concurso) e, para piorar, contando com a influência de
um coronelista, típico mandonista controlador, em todas as esferas, da população da região na
qual atua política e economicamente.
Após a ascensão ao poder de outros chefes locais e a morte de João de Araújo,
Guimarães, “sem protecção e odiado pelos araraquarenses, não só pela sua vida publica e
privada, como pelo máu costume de caloteiro contumaz, emigrou com os seus para esta
capital”450, onde montou uma pequena venda na Rua Florêncio de Abreu. Mas, dias depois,
afirmou estar na miséria. Nesse instante, A Capital reforça a imagem de um malandro e
vagabundo, que finge encontrar-se na condição de plena indigência, força suas filhas a
mendigarem e, em seguida, passa a explorar a população por meio das práticas mágico-
religiosas:

Dahi por diante, a despeito de ter tido as brutaes felicidades da herança, das rendas
do cartorio e de duas sortes grandes de loteria, começou a apregoar-se pauperrimo,
mandando as filhas esmolar pelas ruas. Em seguida abriu seu afamado consultorio
de feitiçaria, bugigangas, pedras de cevar, magnetismo, espiritismo, occultismo e,
dizem parteiro de gabinete.451

Desse modo, Luís Guimarães se constituiria em um embusteiro no mais alto grau.


Certa feita, apontando para a sua esperteza nas artimanhas para lograr seus objetivos, o diário
adverte que logo “que se inicia uma palestra com elle, tem se a impressão de se estar falando
com um ser que já palmilhou o mundo todo, palmo a palmo”452. Suas mentiras não tinham
limites. Noticia também com escárnio que, para impressionar os outros, Guimarães dizia ter
contato com vários chefes de Estado pelo mundo afora, bem como ter sido membro da
comitiva da visita de Dom Pedro II a Minas Gerais, além de amigo de Duque de Caxias e de
todos os grandes homens da elite imperial, mas “só não disse ainda ter sido ama secca do sr.
barão de Cotegype”453. Além do mais, acrescenta, igualmente de forma irônica, que o mesmo
era um “homem de mil nacionalidades”, pois, apesar de nascido no Rio de Janeiro, “diz-se
aqui paulista, ali goyano e acolá sergipano, quando, não sáe ao exterior onde é allemão,
449
Idem, Ibidem.
450
Idem, Ibidem.
451
Idem, Ibidem.
452
Idem, “A feitiçaria, em S. Paulo, augmenta espantosamente”, 4 de novembro de 1914.
453
Idem, Ibidem.

127
turco ou russo, conforme lhe convem ao momento de declarar a patria postiça a que quer
pertencer, precisando embuir alguém”454, não obstante nunca “ter visto outra luz, senão a da
nossa America do Sul”455.
Todas essas ações de Guimarães narradas são utilizadas pelo jornal para, frente ao
público leitor, mostrar a periculosidade deste feiticeiro, bem como sua imoralidade, daí
afirmar-se que ele constitui um “typo desprezivel”, cuja vida é um “chaos de miséria
moral”456. Enfim, um “homem do porte deste é um perigo no seio duma sociedade”457.
Assim, Guimarães, do mesmo modo que Velloso, é caracterizado como um indivíduo
que, desde sempre, foi um desajustado social, haja vista sua trajetória marcada por meios
ilícitos de obtenção de dinheiro. Como outros praticantes de magia, foi tratado pelo jornal
como alguém cujas atitudes foram produtos de seu livre-arbítrio: poderia ter vivido uma vida
honesta e honrada, porém, preferiu os caminhos desonestos. E o fez devido à sua imoralidade
inerente.
Bigamia, violência sexual, auxílio de um coronel local, mentiras para ludibriar e
explorar outras pessoas... Com o intuito de chamar a atenção para as recorrentes ações
criminosas de Guimarães, A Capital estabelece uma metáfora entre este e o mundo animal, ao
associar o feiticeiro com a máxima “Raposa velha perde o pello, porém, não o vício!” 458.
Mas uma raposa astuta, donde, para destacar sua calma no momento em que ludibria suas
vítimas, o diário assevera que, até se o diabo aparecesse, o feiticeiro enganá-lo-ia
tranquilamente, sentado numa cadeira, “tendo movimentos lentos com os membros delgados e
compridos, como os de uma velha aranha marinha que se aninha no alto dum rochedo,
assistindo as scenas da lucta pela vida no seio sombrio do velho mar”459. Assim, Guimarães
estaria sempre de prontidão para tapear alguém, ou melhor dizendo, embaraçá-lo “na sua teia
de velha aranha ludibriadora”460. Já para destacar sua aparência grotesca, chama-o, em
referência à sua barba ruiva, de “macacão ruivo da Oceania”461.
Possuidor de uma libido descontrolada, transgressor dos princípios morais do corpo
social, o referido feiticeiro também é desprovido de sua natureza humana, sendo representado
como um ser animalesco, impulsionado somente pelos anseios desenfreados, ao invés de
procurar controlá-los, como todos os indivíduos inseridos numa dada sociedade devem fazer.
454
Idem, Ibidem.
455
Idem, Ibidem.
456
Idem, Ibidem.
457
Idem, Ibidem.
458
Idem, “A feitiçaria, em S. Paulo, augmenta espantosamente”, 3 de dezembro de 1914.
459
Idem, “A feitiçaria, em S. Paulo, augmenta espantosamente”, 4 de dezembro de 1914.
460
Idem, Ibidem.
461
Idem, Ibidem.

128
Assim, feiticeiros, curandeiros e cartomantes eram, no jornal, desqualificados como
atrasados, ignorantes, incivilizados, desonestos, possuidores de comportamentos animalescos,
devassos, bígamos, traiçoeiros, assassinos, violentos, imorais, disseminadores de conflitos
trágicos dentro do lar alheio e entre famílias vizinhas e responsáveis pelo enlouquecimento de
indivíduos. Tudo isso exposto por meio de narrativas sensacionalistas e fait divers, os quais
procuravam, por meio da dramatização, fazer com que o leitor presenciasse a cena trágica,
sentisse a mesma dor das vítimas e se aproximasse delas, bem como se comovesse com as
situações trágicas e sentisse medo e repulsa por aqueles que exerciam práticas mágico-
religiosas, cujas personalidades eram o oposto de espíritas e ocultistas, como será visto
adiante.

129
Capítulo 3. Espiritualismo: forma de ciência e religião redentora do
corpo social

3.1. Ciência, filosofia e fé: o fenômeno espiritualista no Brasil

Em meados do século XIX, o continente europeu se viu assolado por novas idéias e
religiões, que possuíam em comum o estudo da morte, bem como a crença na manifestação de
espíritos na Terra e no possível contato com os mesmos. As tentativas de contato com o
sobrenatural não se constituíam em uma novidade. O que havia de novo nesse século era a
tentativa de aplicação, nas comunicações com os mortos, de critérios e métodos pertencentes
ao pensamento científico ocidental, de modo que os fenômenos sobrenaturais passaram a ser
encarados à luz da razão.
Como resultado, as mensagens espirituais, ao invés de simples revelações, passaram a
ser objetos de rigorosas análises e reflexões acuradas. As manifestações sobrenaturais foram
cuidadosamente submetidas ao crivo racional, lógico e científico. Estimulava-se o espírito
crítico, a observação e raciocínio positivo. Nenhuma doutrina deveria ser simplesmente
imposta sem a sua verificação empírica.
Todas essas correntes, desse modo, que possuíam como fulcro a investigação da
comunicação com os mortos e de fenômenos sobrenaturais, fazem parte do que ficou
conhecido como espiritualismo moderno, “movimento de cunho religioso e intelectual que
reunia de forma eclética, difusa, tradições e filosofias de origens as mais diversas (orientais,
pré-cristas e/ou recentemente criadas, a exemplo da Teosofia, de Helena Blavatsky, e o
Espiritismo, de Kardec)”462. Em outras palavras,

esse movimento articula grupos, magos e correntes de tradição iniciática que


existiram no Ocidente em condição de complementaridade ou confronto com o
cristianismo, dentre os quais se destaca: a cabala cristã, resultante da fusão da cabala
judaica e do cristianismo; a tradição hermética; a Ordem Rosa Cruz, a maçonaria, a
tradição alquímica. Também se verifica a influência das religiões orientais,
sobretudo as da Índia, que começam a despertar interesse a partir das primeiras
décadas do século XIX.463

Muitas dessas correntes atravessaram o Atlântico, aportando em terras brasileiras. Do


mesmerismo ao espiritismo kardecista, passando pelas ciências ocultas, “tais idéias
encontraram campo fértil num universo social convulsionado por transformações agudas e

462
STOLL, Sandra Jacqueline. Espiritismo à brasileira. São Paulo: EDUSP; Curitiba: Editora Orion, 2003, p.
26.
463
Idem, Ibidem.

130
que ansiava por modelos de modernização”464. Conciliando religião, filosofia e ciência, o
espiritualismo logrou um bom número de intelectuais, médicos, militares e funcionários
públicos.
Entre as diferentes tendências espiritualistas, o magnetismo ganhou boa repercussão no
Brasil. Seu início teve lugar na França, em fins do século XVIII. À época, corria a notícia de
que Franz Aton Mesmer, doutor em Medicina pela Universidade de Viena e estudioso das
ciências ocultas, curava seus pacientes de forma bem distinta daquelas existentes até então.
Mesmer afirmava poder sanar os doentes por meio da transmissão de um fluido magnético.
Segundo ele, esse fluido invisível envolveria todo o universo, penetrando em todos os corpos,
inclusive os dos humanos. Por conseguinte, segundo sua linha de raciocínio, “a saúde era o
estado em que a substância, denominada magnética, fluía normalmente pelo organismo; a
doença, uma decorrência de algum obstáculo ao fluir constante da substância, o que
comprometia o funcionamento harmonioso do organismo”465.
Dessa maneira, Mesmer acabou desenvolvendo uma nova concepção de saúde e doença.
A cura por meio da “mesmerização” consistiria no restabelecimento do fluxo, do equilíbrio do
corpo com a natureza. Por meio do novo método, batizado com o nome de “magnetismo
animal” pelo seu próprio criador, Mesmer começou a realizar sessões, curando pessoas com
enfermidades variadas. As notícias sobre o novo tratamento logo se espalharam, de maneira
que muitos partiram do interior da França, e mesmo do exterior, para procurar o então
afamado médico. A novidade tornou-se cada vez mais popular, afinal, tal noção de fluido
universal mesmerista, longe de constituir uma extravagante idéia, não parecia ser absurda no
contexto do pensamento científico setecentista, se levarmos em conta que, à época, havia uma
considerável quantidade de teorias sobre outros fluidos existentes no planeta Terra, “para
provocar vertigens em qualquer leitor do século XVIII”466. Como assevera Darnton:

A ciência conquistara os contemporâneos de Mesmer revelando-lhes que viviam


cercados por forças invisíveis e maravilhosas: a gravidade de Newton, que Voltaire
fizera inteligível; a eletricidade de Franklin, popularizada por uma voga de pára-
raios e demonstrações nos liceus e museus elegantes de Paris; e os gases
miraculosos dos aeróstatos Charlière e Montgolfière que assombravam a Europa ao
elevar o homem ao ar pela primeira vez em 1783. O fluido invisível de Mesmer
parecia igualmente miraculoso, e ninguém poderia afirmar que era menos real do
que o flogisto que Lavoisier vinha tentando expulsar do universo, o do que o

464
WISSENBACH, Maria Cristina, Ritos de Magia e sobrevivência: sociabilidade e práticas mágico-religiosas
no Brasil (1890-1940), op. cit., p. 94.
465
DAMAZIO, Sylvia F. Da elite ao povo: advento e expansão do espiritismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1994, p. 80.
466
DARNTON, Robert. O lado oculto da revolução: Mesmer e o final do Iluminismo na França. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007, p. 20.

131
calórico pelo qual ele aparentemente vinha tentando substituí-lo, ou do que o éter, o
“calor animal”, a “natureza interna”, as “moléculas orgânicas”, a alma do fogo e as
outras potências fictícias que se encontram como fantasmas a habitar os tratados
mortos de cientistas do século XVIII tão respeitáveis como Bailly, Buffon, Euler, La
Place e Macquer.467

Após a morte do referido médico, seus seguidores continuaram os estudos acerca das
noções de magnetismo e de fluido universal. O marquês de Puységur, por exemplo, junto com
seu irmão, interessou-se pelo estado sonambúlico que alguns pacientes apresentavam durante
o tratamento por meio do mesmerismo, assegurando que os doentes poderiam ser curados de
forma efetiva em tal estado. No entender de ambos, um sonâmbulo possuía o poder de ver
suas próprias entranhas sob mesmerização, diagnosticar sua doença, pressagiar o dia de sua
efetiva recuperação e se comunicar com pessoas mortas.
Alguns médicos continuaram a pesquisar o fenômeno do sonambulismo, o qual passou a
ser denominado de hipnotismo, pelo médico escocês James Braid, em meados do século XIX.
Entretanto, o magnetismo gerou duas vertentes, a saber, uma de cunho científico e outra mais
popular, cuja difusão foi imediata468, de modo que logo se começou a crer que os indivíduos
“em transe – algumas em transe espontâneo, dispensando a ação do magnetizador – dispõem
de poderes ilimitados. Para o povo, esses sensitivos podem tudo: discernir o futuro, localizar
tesouros enterrados”469.
Dessa maneira, além dos pesquisadores do mesmerismo “científico”, muitos dos
chamados místicos começaram a exercer o magnetismo. O sonambulismo, de mais a mais,
também se tornou uma atividade permeada pelo misticismo muito famosa nos meios
populares, exercido principalmente por mulheres. Seus praticantes afirmavam possuir o dom
de vidência, prometendo a intervenção nos problemas de seus consulentes, bem como o de
diagnosticar enfermidades.
Ambas as práticas novas chegaram ao Brasil nas primeiras décadas do século XIX. Um
razoável número de magnetizadores e sonâmbulas místicos instalou-se nas principais cidades
brasileiras, abrindo seus gabinetes para consultas. Mas a corrente científica do magnetismo
igualmente obteve um relativo sucesso, nomeadamente entre bacharéis, doutores, escritores e
aristocratas, os quais se puseram a estudar os fenômenos produzidos pelo mesmerismo, tais
como o Marquês de Olinda, o Barão de Cairu e o Dr. José Maurício Nunes Garcia, da Escola
de Anatomia da Corte.
467
DAMAZIO, Sylvia F., op. cit., p. 18.
468
Idem, Ibidem, p. 82.
469
MACHADO, Ubiratan. Os intelectuais e o espiritismo: uma reportagem sobre meio século (1860-1910) de
difusão do espiritismo no Brasil, através das repercussões em nossos meios intelectuais e segundo o depoimento
da literatura. Rio de Janeiro/Brasília: Antares/INL, 1983, p. 43.

132
Um tempo depois, ocorreu outro fenômeno que logo repercutiu tanto entre a
intelectualidade brasileira quanto entre os místicos populares. Em dezembro de 1847, o
fazendeiro metodista John D. Fox alugou uma casa de madeira, localizada no vilarejo de
Hydesville, Nova York. Junto com ele, foram sua esposa e as duas filhas, Margareth e Kate,
de 15 e 12 anos, respectivamente. Após um tempo, a nova residência teria começado a ser
perturbada por ruídos, batidas, arranhões e estalos inexplicáveis. Conforme afirmavam os
membros da família Fox, quando se reuniam para jantar, era possível ouvir barulhos vindos
do quarto das filhas, os móveis se mudavam de lugar, estranhos passos podiam ser ouvidos
durante a noite, e, principalmente, eram freqüentes os “raps” – pancadas dadas nas paredes
da velha casa, que já possuía a fama de mal-assombrada.
Ainda segundo a família, na noite de março de 1848, a Sra. Fox, junto com suas filhas,
recolheu-se mais cedo. Entretanto, os barulhos se manifestaram novamente. Então, as garotas
começaram a imitá-los. Os golpes igualmente respondiam a cada batida. Kate, ao que se
conta, teria dito “Faça como eu”, e começou a bater palmas, sendo que os golpes seguiam o
ritmo das batidas da menina470. Espantada, a mãe pediu ao estranho ente que contasse até
vinte, e este o fez. Em seguida, segundo depoimento, a mesma afirmara: “Pedi-lhe, ainda,
caso fosse um ser humano, que desse uma pancada. Houve um silêncio completo. Se fosse um
espírito, que desse duas pancadas. E ouvimos duas pancadas...”471.
Após a resposta, a Sra. Fox fez algumas perguntas ao espírito. O mesmo respondeu
contando sua história: seu nome era Charles Rosma. Fora assassinado na casa em que morava
a família Fox pelo antigo inquilino, tendo sido queimado em um celeiro 472. Estabelecia-se,
com efeito, uma nova maneira de comunicação com o mundo dos mortos, realizado por meio
de um código ligeiramente inteligível, associando-se o número de pancadas com as letras do
alfabeto.
Os ruídos prosseguiram durante vários meses. A notícia acerca dos surpreendentes
acontecimentos da casa localizada em uma pequena fazenda de Hydesville se espalhou pela
região e, rapidamente, para o resto dos Estados Unidos. As irmãs Fox tornaram-se médiuns
famosas no referido país. Muitos vizinhos compareceram à residência dos Fox com o intuito
de presenciar os estranhos e assustadores fenômenos. Alguns deles, após observá-los,

470
CAVENDISH, Richard (org.). Enciclopédia do sobrenatural: magia, ocultismo, esoterismo, parapsicologia.
Porto Alegre: L&PM, 1993, p. 171.
471
MACHADO, Ubiratan, op. cit., p. 46.
472
A sra. Fox, em 1848, segundo depoimento, declarou que seu marido, com o auxílio de alguns interessados,
teria desenterrado do celeiro alguns restos que pareciam ser de um humano.

133
afirmaram que iguais acontecimentos teria lugar em suas casas, além de possuírem poderes
mediúnicos, tal como as duas irmãs, realizando demonstrações públicas.
Os denominados “centros” se espalharam. Mas a comunicação com as almas não se
restringiram às batidas. Em meados do século XIX, surgiram variados tipos de exercício da
mediunidade. O primeiro foi o das mesas girantes: um grupo de pessoas se reunia ao redor de
uma mesa, a qual daria pancadas, pronunciando letras que a entidade espiritual tencionava
transmitir. Em seguida, outras formas vieram à tona, como a escrita, ditada pelos espíritos,
com um lápis preso numa cesta e, posteriormente, através da mão dos médiuns, igualmente
ganharam repercussão.
O interesse pelos fenômenos espirituais cresceu vertiginosamente nos Estados Unidos,
de modo que o espiritismo angariou um bom número de médiuns, teóricos, simpatizantes e
adeptos naquele país. Muitos começaram a estudá-los, dedicando-se à sua divulgação.
Andrew Jackson Davis473, por exemplo, estudioso do mesmerismo, dizia possuir poderes para
invocar espíritos. Davis abriu duas clínicas, onde aplicava remédios cuja composição
afirmava ter aprendido em estado de transe. De mais a mais, ainda compôs obras inspiradas
por espíritos dos mortos – uma delas, Os Princípios da Natureza, obteve sucesso entre
intelectuais como Arthur Conan Doyle e Edgard Allan Poe.
Outro personagem conhecido foi o médium Daniel Douglas Home474. Nascido na
Escócia, mas passando a maior parte da vida nos Estados Unidos, Home afirmava produzir
fenômenos, tais como a levitação de objetos e a movimentação de mesas – conta-se que, certa
feita, em uma das sessões espíritas, a força de Home era de tamanha proporção que teria feito
toda a mobília e o recinto tremerem. No mais, segundo depoimentos, em inúmeras ocasiões, o
mesmo conseguiria pôr o rosto e as mãos na fogueira sem obter queimaduras, além de fazer
instrumentos tocarem sozinhos em virtude de sua presença.
Mas o espiritismo não permaneceu apenas no referido país. As notícias acerca dos
estranhos fenômenos continuaram a sua propagação, atingindo o continente europeu. Na
França, o professor Hippolyte-Léon Denizard Rivail, pesquisador do sonambulismo e
magnetismo, a convite de um amigo, presenciou uma sessão na casa da Sra. Pleinemaison e
começou a se interessar pelos fenômenos espirituais, passando a freqüentar outras sessões,
tanto as da referida senhora quanto as de outros médiuns. Em uma delas, um espírito teria
revelado a Rivail que, em sua encarnação anterior, teria sido um druida e se chamava Allan
Kardec, nome adotado pelo pedagogo como pseudônimo.

473
CAVENDISH, Richard (org.), op. cit., pp. 50-51.
474
Idem, Ibidem, p. 161.

134
Nas sessões, Kardec começou a fazer uma série de perguntas aos espíritos, estudando
suas respostas. Com base nas comunicações mediúnicas recebidas, construiu todo um corpo
teórico de cunho filosófico-científico, afiançando a natureza espiritual dos estranhos
fenômenos que ocorriam à época. Após um breve tempo, resolveu publicar os resultados das
consultas, engendrando, dessa maneira, o aparato teórico do que viria a ser o chamado
espiritismo francês. Interagindo com uma malha “epistêmica extremamente tributária da
crença na compreensão da natureza, do homem e da realidade social, o espiritismo propunha
uma síntese entre revelação divina e ciência”475. Dito de outro modo, imbuída pela fé
prometeica no papel da ciência enquanto libertadora da humanidade dos grilhões da
superstição, a doutrina espírita se classificava como um conjunto de idéias apto a deslindar a
inteligibilidade da natureza, o destino dos indivíduos e, como conseqüência, corroborar a
existência divina e de suas leis476.
A primeira obra de Kardec foi O Livro dos Espíritos, publicada em 18 de abril de
1857. Em seguida outros livros famosos foram divulgados: O Livro dos Médiuns, O
Evangelho Segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno ou A Justiça de Deus Segundo o
Espiritismo e A Gênese, os Milagres e as Predições. Já em 1858, foram fundadas a Revue
Spirite e a Société Parisienne d´Étude Spirites. Tanto as obras como a revista lograram uma
repercussão considerável477. A nova doutrina de Allan Kardec, conciliando os pensamentos
religioso, científico e racional478, exerceu um fascínio nomeadamente sobre a classe média,
bem como sobre o meio intelectual, artístico e científico da época: Arthur Conan Doyle, Vitor
Hugo e Camille Flammarion são exemplos daqueles que se dedicaram a estudar de forma
profunda os fenômenos espíritas.
O espiritismo kardecista se difundiu no Brasil principalmente por intermédio dos
letrados da Bahia e do Rio de Janeiro. De início restrito à colônia francesa – vale lembrar que
as primeiras obras disponíveis em terras brasileiras eram publicadas no idioma francês –, logo
ganhou força entre os intelectuais brasileiros. Breve tempo depois, surgiram os primeiros
grupos dedicados ao estudo do espiritismo enquanto ciência: em 1865, foi fundado o primeiro

475
ISAIA, Artur Cesar. “Espiritismo: religião, ciência e modernidade”. In: MANOEL, Ivan Aparecido &
ANDRADE, Solange Ramos de (orgs.). Identidades religiosas. Franca: UNESP-FDHSS; Civitas Editora, 2008,
p. 149.
476
Idem, Ibidem, p. 150.
477
Uma síntese acerca da circulação das obras de Kardec pode ser vista em STOLL, Sandra Jacqueline, op. cit.,
pp. 23-32.
478
Idem, Ibidem, pp. 37-48.

135
núcleo de estudos espíritas, o Grupo Familiar do Espiritismo; e, em 1875, estabelecia-se o
segundo núcleo, a Sociedade de Estudos Espíritas – Grupo Confúcio479.
Além dos núcleos, para que a doutrina pudesse ter maior alcance, foi dado início à
tradução de algumas obras. Em 1866, Olímpio Teles de Menezes publicou a Introdução ao
Estudo da Doutrina Espirítica, extraída da edição francesa d’O Livro dos Espíritos. Em
seguida, o Dr. Joaquim Carlos Travassos foi o responsável por traduzir O Livro dos Médiuns,
O Evangelho Segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno e toda a versão integral d’O Livro dos
Espíritos. E, para maior difusão do espiritismo, foram criadas algumas revistas especializadas
no assunto: primeiro, O Eco d’Além-Túmulo, fundado por Teles de Menezes, e,
posteriormente, a Revista Espirita, composta nos mesmos moldes que a Reviue Spirite,
dirigida por Antônio da Silva Neto.
Com o passar do tempo, o espiritismo pôde alcançar outras províncias. Entretanto, é
importante salientar que o movimento não se caracterizou pela unidade. Ao contrário,
algumas tendências foram surgindo no seu interior. Em outras palavras, como afirma Sylvia
Damazio, tais divergências começaram a aparecer no Grupo Confúcio, de modo que

A denominada “científica” privilegiava a parte experimental – a dos fenômenos


físicos; o “Espiritismo puro” era uma corrente formada por aqueles que (...) só
aceitavam a ciência e a doutrina filosófica reveladas mas não seu desdobramento
religioso, calcado nos Evangelhos; uma terceira, a “mística”, de orientação
evangélica, considerava toda a obra de Kardec. Para os espíritas “místicos” era
fundamental a leitura atenta de O Evangelho Segundo o Espiritismo.480

Sobre a questão da popularização do espiritismo, falaremos posteriormente. O que nos


importa nesse momento é salientar justamente o fato de a doutrina possuir esse caráter
cientificista, afinal, tal aspecto – não só do espiritismo kardecista, mas também das outras
correntes do espiritualismo moderno – contribuiu de forma relevante para que fosse angariado
um bom número de adeptos, ganhando prestígio entre o meio intelectual, em um momento no
qual se desejava a modernização do País:

Rapidamente mobilizando como adeptos militares, jornalistas, profissionais liberais,


as crenças na possibilidade de comunicação com os mortos e nos poderes dos
fluídos magnéticos, a idéia da imortalidade da alma e da reencarnação, fenômenos
que vinham sendo comprovados através de experimentos realizados na Europa e nos
Estados Unidos e, em especial, a idéia do progresso em direção à perfectibilidade
espiritual, ao mesmo tempo em que mantinham tais setores em contato com as

479
DAMAZIO, Sylvia F., op. cit., 103.
480
Idem, Ibidem, p. 105.

136
tendências evolucionista e cientificista da época, descortinavam renovados
horizontes.481

A cidade de São Paulo não poderia ser diferente. No início do século XX, com o afã
da modernização, a intelectualidade paulistana voltava os olhos para a Europa, seguindo seus
padrões científicos e filosóficos. Dessa forma, a sua religiosidade passava a ser canalizada não
apenas “para o catolicismo da Igreja Romana, conservadora e em constantes conflitos com
os ideais liberais e positivistas da mentalidade republicana, mas também para o
espiritualismo científico das doutrinas esotéricas e kardecistas”482.
Como resultado, a capital paulista possuía suas lojas de ciências esotéricas e seus
centros espíritas, que se dedicavam ao estudo dos fenômenos espiritualistas, procurando se
manter atualizados em relação às últimas experimentações científicas realizadas na Europa e
nos Estados Unidos. Também importavam livros, manuais e objetos mágicos, além de
produzirem publicações para a divulgação dos conhecimentos espiritualistas, desde a
astrologia até o magnetismo animal, “enfim, daquelas experiências e concepções que
procuravam consolidar a noção de uma nova harmonia entre ciência e fé, magia natural e
cientificismo”483.
Essas instituições não se dedicavam apenas aos estudos e às discussões eruditas acerca
de acontecimentos supra-humanos. Pelo contrário, tencionavam atuar diretamente no meio
social. Os centros espíritas, desse modo, foram fundados tendo como escopo, para além do
aprofundamento dos estudos da doutrina kardecista e sua difusão, a prática da caridade –
preceito decorrente do ideal de amor ao próximo –, exercida com o fito de aliviar as
provações pelas quais passam alguns durante a sua jornada na Terra, bem como a evolução
espiritual, já que o espírito imbuído da caridade, ao praticá-la, estaria caminhando rumo à
perfeição.
Nos seus estatutos, a prática da filantropia concernia, nomeadamente, ao tratamento de
doenças, de modo que os centros constituíram espaços de cura alternativa à medicina oficial
da época. Em 1908, a União Espírita do Estado de São Paulo, por exemplo, em seu estatuto,
determinava a abertura de um posto mediúnico receitista 484, com a finalidade de fornecer

481
WISSENBACH, Maria Critina, Ritos de Magia e sobrevivência: sociabilidade e práticas mágico-religiosas no
Brasil (1890-1940), op. cit., p. 94.
482
TRINDADE, Liana Maria Sálvia. Construções míticas e história: estudo sobre as representações simbólicas e
relações raciais em São Paulo do século XVIII à atualidade. São Paulo: Tese de Livre-Docência em
Antropologia, FFLCH-USP, 1991, p. 134.
483
KOGURUMA, Paulo, op. cit., p. 241.
484
Nesse posto, atuavam os médiuns receitistas que, inspirados pelo espírito de um médico já falecido,
diagnosticavam doenças, prescrevendo um tratamento baseado na utilização de medicamentos homeopáticos.

137
gratuitamente medicamentos aos enfermos485. O Centro Espírita Miguel Archanjo Fausto,
com sede na Rua Álvares Guimarães, 89, no estatuto de 1927, afirmava ter como objetivo,
além do estudo da doutrina kardecista, a distribuição de medicamentos homeopáticos486
gratuitamente aos sócios, a suas famílias e a todos os enfermos que à mesma recorressem487.
Na mesma linha, o Centro Espírita Amantes dos Pobres e dos Ricos, fundado no segundo dia
de maio de 1920 e localizado na Rua João Boemer, 276, no estatuto do mesmo ano, previa a
instalação não apenas de uma farmácia homeopática como também de um posto mediúnico
receitista, destinados ao atendimento dos enfermos pobres e a consultas que fossem
solicitadas do interior do Estado ou da República488.
Já o Centro Espírita Antônio Batuíra, sediado à Rua Lopes Chaves, número 25, em
489
1918 , e o Centro Espírita São José490, quatro anos mais tarde, apresentavam outras
alternativas: além de disponibilizarem medicamentos homeopáticos e conselhos mediúnicos,
ofereciam curas à distância através de preces, fluídos espirituais e transmissões telepáticas de
pensamento. Propunham também o tratamento do alcoolismo por meios “puramente physicos
e moral”. Todos esses serviços eram gratuitos e destinados a qualquer enfermo.
Alguns centros deram atenção ao tratamento da obsessão (influências prejudiciais que
um espírito poderia exercer sobre um indivíduo), afinal, Allan Kardec, em seus escritos, como
demonstra a historiadora Angélica Aparecida de Almeida, não negava a existência de causas
485
Primeiro Cartório de Registros de Imóveis da Capital – Sociedades Civis, Caixa C10402, Sociedade n.º
0266.
486
Homeopatia: doutrina médica criada pelo médico alemão Cristiano Frederico Samuel Hahnemann, e
difundida no Brasil através do francês Benoît Mure, o qual se estabeleceu no Rio de Janeiro, em 1843, fundando
o Instituto Homeopático no Brasil. Hahnemann, desgostoso com as incertezas da medicina à época, insurgiu-se
contra os procedimentos da terapia médica de seu tempo – tais como a utilização de sangrias e ventosas, ou a
ingestão de vomitivos e diuréticos –, classificados por ele como nocivos ao paciente. Após abandonar o exercício
da medicina, em 1789, desenvolveu um corpo doutrinário médico, formulando o princípio básico de seu método,
qual seja, a idéia de que um doente deveria ser tratado com um medicamento – ministrado em doses
infinitesimais – capaz de produzir no corpo são um conjunto de sintomas e sinais semelhantes aos do que ele
apresentava. Segundo suas teorias, havia uma força vital, intermediária entre o corpo e o espírito, que animava o
organismo. O estado de doença se caracterizaria pela perda do equilíbrio entre o organismo e a força vital.
Chegando ao Brasil, essa nova forma de terapêutica logrou adeptos tanto das classes populares quanto dos
membros da elite da Corte. Todavia, membros ligados à Academia Imperial de Medicina a recusaram
prontamente, alegando, entre outros motivos, que a homeopatia constituía-se em uma terapia inerte e nula, ou até
que seus medicamentos poderiam envenenar os doentes.
Cf. DAMAZIO, Sylvia, op. cit., pp. 82-83; SILVEIRA, Gláucia Regina. Utopia e cura: a homeopatia no Brasil
imperial (1840-1854). Campinas, SP: Dissertação de Mestrado em História, UNICAMP, 1997; WEBER, Beatriz
Teixeira. Medicina e homeopatia: relações sociais entre práticas de cura em Porto Alegre. Disponível em:
http://sitemason.vanderbilt.edu/files/iXomcg/Weber%20Beatriz%20Teixeira.pdf. Acessado em 25/01/2008.
487
Primeiro Cartório de Registros de Imóveis da Capital – Sociedades Civis, Caixa C10464, Sociedade n.º
1343.
488
Primeiro Cartório de Registros de Imóveis da Capital – Sociedades Civis, Caixa C10439, Sociedade n.º
0867.
489
Primeiro Cartório de Registros de Imóveis da Capital – Sociedades Civis, Caixa C10425, Sociedade n.º
0588.
490
Primeiro Cartório de Registros de Imóveis da Capital – Sociedades Civis, Caixa C10439, Sociedade n.º
0872.

138
sociais e biológicas dos transtornos mentais. Todavia, lembrava que, em certos momentos,
estes poderiam ser decorrentes da obsessão:

Não confundamos a loucura patológica com a obsessão; esta não provém de lesão
alguma cerebral, mas da subjugação que Espíritos malévolos exercem sobre certos
indivíduos, e que, muitas vezes, têm as aparências da loucura propriamente dita.
Esta afecção, muito freqüente, é independente de qualquer crença no Espiritismo e
existiu em todos os tempos.
Entre os que são tidos por loucos, muitos há que são apenas subjugados (...) Quando
os médicos conhecerem bem o Espiritismo, saberão fazer bem essa distinção e
curarão mais doentes que com as duchas.491

Com efeito, alguns centros previam, caso houvesse condições, a fundação de hospitais
para o tratamento e cura dos obsedados, fossem estes associados ou pessoas sem recursos
financeiros, caso da União Espírita do Estado de São Paulo (em 1908)492, do Centro Espírita
de Caridade (em 1918)493, do Centro Espírita Fé, Amor e Caridade494 e do Centro Espírita
Celestino dos Santos (estes últimos em 1922)495. Já o Centro Espírita Therezinha de Jesus,
localizado em Itaquera, no estatuto de 1927, permitia, em sua sede, o acolhimento daqueles
vindos do interior à procura de cura de moléstias (não apenas de obsessão), durante o período
máximo de três dias496.
Para o ingresso como sócio dos centros, não existiam muitas restrições. Nos estatutos
examinados, era permitida a entrada de indivíduos de ambos os sexos “sem distinção de cor,
classe ou nacionalidade”. Entretanto, era solicitado, basicamente, aos novos associados um
comportamento adequado aos “bons costumes”, a crença plena em Deus, o esforço na prática
do bem e o desejo de se aperfeiçoar moralmente pela prática da caridade, bem como de
aprimorar constantemente os conhecimentos da doutrina espírita. A idade mínima variava
entre 15 e 21 anos. Em certos casos, havia um pré-requisito muito específico: não ser
“absolutamente viciado”, conforme o estatuto do Centro Espírita Antônio Batuíra497. Se

491
KARDEC, Allan Apud ALMEIDA, Angélica Aparecida Silva de, op. cit., p. 84.
492
Primeiro Cartório de Registros de Imóveis da Capital – Sociedades Civis, Caixa C10402, Sociedade n.º
0266.
493
Primeiro Cartório de Registros de Imóveis da Capital – Sociedades Civis, Caixa C10425, Sociedade n.º
0592.
494
Primeiro Cartório de Registros de Imóveis da Capital – Sociedades Civis, Caixa C10439, Sociedade n.º
0866.
495
Primeiro Cartório de Registros de Imóveis da Capital – Sociedades Civis, Caixa C10439, Sociedade n.º
0869.
496
Primeiro Cartório de Registros de Imóveis da Capital – Sociedades Civis, Caixa C10466, Sociedade n.º
1385.
497
Primeiro Cartório de Registros de Imóveis da Capital – Sociedades Civis, Caixa C10425, Sociedade n.º
0588.

139
algum candidato a sócio se encontrasse nessa condição, aplicar-se-iam, primeiro, os meios
para regenerá-lo.
Alguns centros exigiam o prévio conhecimento dos princípios do espiritismo antes do
ingresso. O Centro Espírita Celestino dos Santos, por exemplo, sediado à Rua Luiz Gama,
número 14, no estatuto de 1922, dividia os sócios em duas categorias: os livres e os ativos.
Enquadrar-se-iam entre os primeiros aqueles que não possuíssem conhecimentos suficientes
da doutrina, sendo então, ligados ao centro para que fossem iniciados nos estudos. E, entre os
segundos, estariam os que tivessem passado por um período mínimo de três meses como
sócios livres, prazo suficiente para que obtivessem um bom conteúdo apreendido acerca do
espiritismo498.
Da mesma forma, o Centro Espírita Celso Garcia, em seu novo estatuto registrado em
1926, dividia seus associados entre correspondentes, honorários, beneficentes, efetivos e
aspirantes. Estes últimos seriam os indivíduos que, durante três meses, assistiriam a dez
sessões teóricas dos grupos de estudo e, ao fim do prazo, deveriam demonstrar conhecimentos
plenos da doutrina, sendo então elevados à categoria de efetivos. Além do mais, os candidatos
a sócios poderiam entrar como efetivos sem passar pelo período como aspirantes, desde que
provassem elevado conhecimento das idéias espíritas499.
Certamente, o pré-requisito de constante estudo da doutrina kardecista excluía muitos
que desejassem ingressar nos centros, já que o índice de analfabetismo à época era elevado. O
alto valor das mensalidades, levando-se em conta os baixos salários dos trabalhadores e o alto
custo de vida no início do século XX, também constituía outro sério obstáculo. Basicamente,
a jóia (valor cobrado no ato da adesão do sócio) variava entre Rs. 5$000 e Rs. 10$000, sendo
que outras não cobravam valor algum para o ingresso no centro. As mensalidades variavam
entre Rs. 1$000 e Rs. 5$000. Mesmo os valores que não eram fixos poderiam dificultar a
associação a algum centro. O Centro Espírita Amante dos Pobres e dos Ricos cobrava
mensalidades ao alcance do sócio, desde que constituíssem uma importância superior a dois
mil réis500. Todavia, isso não significava a inacessibilidade a benefícios advindos da prática
da caridade, como as consultas mediúnicas receitistas ou os remédios homeopáticos, visto que
eram destinados a todos os indivíduos, associados ou não.

498
Primeiro Cartório de Registros de Imóveis da Capital – Sociedades Civis, Caixa C10439, Sociedade n.º
0869.
499
Primeiro Cartório de Registros de Imóveis da Capital – Sociedades Civis, Caixa C10406, Sociedade n.º
0320.
500
Primeiro Cartório de Registros de Imóveis da Capital – Sociedades Civis, Caixa C10439, Sociedade n.º
0867.

140
Da mesma forma que os centros espíritas, as lojas de ciências ocultas e esotéricas
objetivavam não se limitar a leituras, a discussões e à propagação do ocultismo, de modo que
o sistemático estudo das leis ocultas da natureza e dos poderes latentes nos humanos ainda
não descobertos possuía a finalidade de intervir paulatinamente no restante da sociedade.
Esses grupos procuravam restabelecer, em primeiro lugar, aquilo que consideravam os
corretos valores morais, os preceitos humanitários e os princípios cristãos fundamentais à
humanidade. O Gremio Occultista de S. Paulo, por exemplo, fundado no dia 18 de março de
1910, preconizava em seus estatutos a fundação de escolas para a propagação da “verdadeira
moral christan”501. Na mesma linha, a Ordem Esoterica do Mentalismo, criada no mês de
fevereiro de 1924 e com sede na Rua Américo de Campos, número 2, determinava o
desenvolvimento das faculdades indispensáveis à saúde e “ao triumpho na Vida pelo
Trabalho, pelo Caracter, pelo Dever, pela Calma, pela Energia Mental”502. Já a Loja de S.
Paulo Sociedade Theosophica, fundada no primeiro dia de fevereiro de 1919, tinha como
principal meta de seu programa a formação de “um nucleo de fraternidade Universal na
humanidade, sem distincção de raça, crença, sexo nem castas”503. E o Circulo Esoterico da
Communhão do Pensamento, sediado à Rua Rodrigo Silva, número 23, tinha como finalidade
concorrer na “medida de suas forças para que a Harmonia, o Amor, a Verdade e a Justiça se
effectivem cada vez mais entre os homens”504.
O sistemático estudo das forças da natureza e dos indivíduos ainda não descobertas, no
mais, não seria restrito a um grupo seleto, formado por uma elite culta. As lojas ocultistas,
pelo contrário, pretendiam despertar aos poucos em todos os seres humanos o espírito
investigativo e o gosto pelas ciências esotéricas. Nesse sentido, a Ordem Internacional da
Communhão do Pensamento, fundada no primeiro dia do ano de 1924 e com sede em um
sobrado localizado na Rua Quirino de Andrade, número 21, no segundo artigo de seus
estatutos, desejava promover o estudo das energias do pensamento de cada membro da Ordem
de acordo com “os principios do mentalismo, vibração, correspondencia e rhytmo” entre
seus associados e disseminar o mais amplamente possível o gosto por esse ramo de

501
Primeiro Cartório de Registros de Imóveis da Capital – Sociedades Civis, Caixa C10405, Sociedade n.º
0302.
502
Primeiro Cartório de Registros de Imóveis da Capital – Sociedades Civis, Caixa C10447, Sociedade n.º
1027.
503
Primeiro Cartório de Registros de Imóveis da Capital – Sociedades Civis, Caixa C10437, Sociedade n.º
0825.
504
Primeiro Cartório de Registros de Imóveis da Capital – Sociedades Civis, Caixa C10408, Sociedade n.º
0344.

141
conhecimentos transcendentes por meio da publicação de uma revista 505. Do mesmo modo, o
estatuto da Loja de S. Paulo Sociedade Theosophica almejava estimular o estudo das religiões
comparadas, dos sistemas filosóficos e das ciências em geral506.
Logrado o progressivo esclarecimento da população, mesmo que de forma rudimentar,
poder-se-ia reformá-la, eliminando de seu cerne as idéias vistas pelos ocultistas como meras
crendices, conforme exposto na alínea “b” do primeiro artigo dos estatutos da Ordem
Esoterica do Mentalismo, que previa a “conquista da Prosperidade”, libertando os seres
humanos “da Mentira, do Charlatanismo, da Superstição, Medo”507. De mais a mais, seria
possível, para essas lojas, o aperfeiçoamento do comportamento social desejável segundo suas
concepções, caso do Circulo Esoterico da Communhão do Pensamento, cuja outra meta era
animar entre seus associados o respeito às leis e aos poderes constituídos do País, além do
combate ao que era avaliado como maus hábitos508.
As lojas também se dedicaram aos cuidados com a plena saúde dos indivíduos. O
Gremio Occultista de S. Paulo previa, em seu estatuto, a fundação de casas de caridade
destinadas ao tratamento dos obsedados. A Ordem Internacional da Communhão do
Pensamento, por sua vez, cogitava a manutenção de um posto médico gratuito para “attender
ás consultas que fizerem os seus membros, desde que sejam dados os esclarecimentos
precisos e sympthomas”509. Já o Circulo Esoterico da Communhão do Pensamento tinha
como fim, entre outros, empregar os meios ao seu alcance para o combate ao alcoolismo e aos
tóxicos inebriantes. E a Ordem Esoterica do Mentalismo visava à promoção da abstenção do
álcool e de outros vícios prejudiciais, bem como a uma alimentação racional.
Particularmente no que concerne ao Circulo Esoterico da Communhão do Pensamento
e à Ordem Internacional da Communhão do Pensamento, a aquisição de uma saúde vigorosa
dependia de algo mais para além do bem-estar corporal. Segundo seus estatutos, uma das
obrigações dos sócios consistia na comunhão mental entre si em dias e horas determinados e
de acordo com instruções fornecidas, mesmo que se desconhecessem, sendo que tais
vibrações mentais não teriam a necessidade de ter lugar em reuniões especiais, devendo cada
um praticá-las isoladamente. Donde a importância de os associados empregarem esforços para
505
Primeiro Cartório de Registros de Imóveis da Capital – Sociedades Civis, Caixa C10449, Sociedade n.º
1061.
506
Primeiro Cartório de Registros de Imóveis da Capital – Sociedades Civis, Caixa C10437, Sociedade n.º
0825.
507
Primeiro Cartório de Registros de Imóveis da Capital – Sociedades Civis, Caixa C10447, Sociedade n.º
1027.
508
Primeiro Cartório de Registros de Imóveis da Capital – Sociedades Civis, Caixa C10408, Sociedade n.º
0344.
509
Primeiro Cartório de Registros de Imóveis da Capital – Sociedades Civis, Caixa C10437, Sociedade n.º
0825.

142
a obtenção do maior número possível de novos adeptos, pois seu progressivo aumento teria
como efeito a potencialização das forças mentais, essenciais para o benefício geral da
humanidade.
Para ambas as lojas, o estudo das energias e vibrações latentes do pensamento de cada
indivíduo era de fundamental importância, na medida em que a sua aplicação auxiliaria na
concretização do bem-estar “physico, moral, mental e social”510 da humanidade em geral,
“mantendo-lhe a saude do corpo e do espirito”511. Daí a necessidade premente de que mais e
mais pessoas se associassem, afinal, quanto maior o número daqueles que estudassem tais
energias desconhecidas e exercessem suas forças mentais, maior seria a ininterrupta cadeia
mental coletiva geradora de ondas irradiadoras de pensamentos de paz, harmonia, amor e
justiça entre os indivíduos, e, por conseguinte, o bem-estar de todos os seres humanos seria
alcançado. Desse modo, o Circulo Esoterico da Communhão do Pensamento e a Ordem
Internacional da Communhão do Pensamento, possuíam outra concepção de saúde plena, a
qual dependia de outros pré-requisitos, ultrapassando a idéia de mero bom funcionamento do
corpo. A humanidade, para que fosse saudável, além de deter um bem-estar físico, deveria se
pautar pelo prevalecimento de valores morais, bem como pela busca da paz social e do
conforto espiritual e mental. Nesse sentido, a Ordem Internacional da Communhão do
Pensamento, no art. 9 de seus estatutos, afirmava ter como fim, entre outros, promover “a
Harmonia, o bem profundo da paz – a Saude, o bem profundo do corpo e da mente, e a
Sabedoria – o bem profundo do espirito, entre todos os seus membros e entre todas as
agremiações congeneres”512. Para um corpo são, uma sociedade sã, uma mente sã e uma
sociedade esclarecida.
Todavia, isso poderia ser alcançado apenas, como vimos, por meio do estudo metódico
das correntes filosóficas e das ciências. Trata-se, com efeito, de um pensamento que denotava
uma noção de ciência como o principal – senão o único – meio de modificação da sociedade
nos planos moral, espiritual, corporal e social, algo consubstanciado no sexto artigo dos
estatutos da Ordem Esoterica do Mentalismo, de acordo com o qual cada sócio poderia

510
Primeiro Cartório de Registros de Imóveis da Capital – Sociedades Civis, Caixa C10437, Sociedade n.º
0825.
511
Primeiro Cartório de Registros de Imóveis da Capital – Sociedades Civis, Caixa C10408, Sociedade n.º
0344.
512
Primeiro Cartório de Registros de Imóveis da Capital – Sociedades Civis, Caixa C10437, Sociedade n.º
0825.

143
consultar “a ‘Ordem’ quando necessitar resolver qualquer problema que dependa da Luz da
Sciencia [grifo nosso]”513. Ciência evoluída, povo evoluído.
Por último, resta notar que a intenção de universalização do conhecimento científico
esotérico e geral e do ingresso massivo e ilimitado de novos membros, exposta nos estatutos
das lojas esotéricas e ocultistas supracitadas, poderia ser obstada em virtude das próprias
condições estabelecidas para a admissão de sócios. Ainda que essas instituições ressaltassem
a aceitação de inscrição de candidatos sem distinção de sexo, raça, nacionalidade, posição
social e religião, o alto valor das mensalidades e taxas, da mesma forma que no caso dos
centros espíritas, poderia obstruir o ingresso de muitos pretendentes pertencentes à classe
trabalhadora. O Circulo Esoterico da Communhão do Pensamento cobrava dos associados
efetivos o pagamento de trinta mil-réis no ato da admissão e quinze mil-réis de anuidade para
os nascidos em terras brasileiras, e sessenta mil-réis para filiação e vinte mil-réis de anuidade
para estrangeiros. A Loja de S. Paulo Sociedade Theosophica, por sua vez, ia mais longe:
solicitava a importância de dez shillings (moeda inglesa), ou equivalente, no ato de adesão e
três mil-réis de mensalidade. As exceções eram a Ordem Esoterica do Mentalismo, a qual, no
artigo terceiro dos estatutos, determinava a isenção do pagamento de mensalidades ou
qualquer outra forma de contribuição, e o Gremio Occultista de S. Paulo, que requeria o
pagamento de dois mil-réis apenas aos que tivessem condições para tanto.

3.2. O entusiasmo do jornal pelas ciências ocultas

Da mesma forma que parte dos letrados brasileiros, o jornal A Capital viu com bons
olhos as várias correntes do espiritualismo moderno, nomeadamente o espiritismo e o
ocultismo, o qual constitui uma das diferentes e variadas tendências do esoterismo ocidental.
O termo ciências ocultas, ou ocultismo, foi empregado no século XVII, no contexto de
perseguição aos hereges, caça às bruxas e forte atuação da Inquisição, de maneira que esse
momento turbulento contribuiu para que os racionalistas e membros das religiões constituídas
lhe imprimissem um significado negativo, associando-o à bruxaria, à superstição, à heresia e
ao satanismo514. Entretanto, atribui-se a Eliphas Lévi (1810-1875), a criação desse
substantivo, em meados do século XIX. Em termos gerais, ocultismo pode ser caracterizado
como um conjunto de práticas (alquimia, psicometria, fisiognomonia, magia, astrologia,

513
Primeiro Cartório de Registros de Imóveis da Capital – Sociedades Civis, Caixa C10447, Sociedade n.º
1027.
514
CORSETTI, Jean-Paul. Histoire de l’ésoterisme et des sciences occultes. Paris: Larousse, 1992, pp. 9-10.

144
quiromancia, grafologia e cabala, entre outras)515, baseadas na teoria das correspondências516,
ou seja, na idéia de que há uma rede de signos significantes existentes entre o mundo visível e
o transcendental, bem como entre os diferentes planos da realidade corporal e espiritual.
Contudo, tais correspondências não são inteligíveis facilmente, devendo ser decifradas.
Com efeito, o ocultismo consistiria no lado prático e experimental do esoterismo, de
forma que este seria uma filosofia e legitimação daquele517, afinal, como lembra Pierre
Riffard, não há esoterismo que não tenha recorrido às ciências ocultas, “pois o cabalista se
interessa pela ciência das letras; o pitagórico, pela ciência dos números [...] o zenista, pela
caligrafia; o universista, pela ciência do calendário; o pansofista, pela interpretação dos
sinais da natureza”518. Isso, todavia, não significa a ausência de práticas no esoterismo,
tampouco a ausência de aspectos teóricos no ocultismo519.
O discurso, por parte dos ocultistas, do anseio pela difusão, entre a população, da
instrução, do espírito investigativo e do gosto pelas ciências, além da idéia de pensamento
científico enquanto força motriz das mudanças no mundo, seduziu A Capital, que, de muito
bom grado, concedeu algumas colunas de suas páginas para variados ocultistas. O periódico,
em primeiro lugar, garantiu espaço para a veiculação de reuniões realizadas pelas lojas
esotéricas e de ciências ocultas. Na edição de 6 de junho de 1929, era anunciado que a Loja de
S. Paulo da Sociedade Theosophica realizaria “a sessão semanal de costume. Commentando
os assumptos debatidos nas sessões anteriores, o sr. Henrique Serra falará sobre o thema:
‘Panteismo e Espiritismo”520. Em outra ocasião, a seção “Factos e echos” veiculou a
realização, na sede do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento, de um sessão
esotérica, em que seria “lida mais uma instructiva e interessante mensagem do ‘Homem dos
Milagres’, o chefe illustre do povo Maya do México”521. Já em 25 de julho de 1916, era
informado aos leitores que

Os srs. Raul Silva e Arthur Santos, realizarão no salão da <<Sociedade Leale


Oberdank>>, à rua Brigadeiro Machado, n. 5, no Braz, pelas 8 e meia da noite, de
hoje, um <<sarau>> theorico-experimental sobre o occultismo, que obedecerá a este
programa:
Primeira parte: conferencia do sr. Raul Silva, que tocará sobre os pontos do
occultismo seguintes: Breve exposição sobre sciencias occultas, magnetismo e suas
modalidades, pensamento, seu dominio e cultura, exteriorização da sensibilidade e

515
FAIVRE, Antoine, O esoterismo. Campinas, SP: Papirus, 1994, p. 30.
516
CORSETTI, Jean-Paul, op. cit., p. 14.
517
FAIVRE, Antoine, op. cit., p. 30.
518
RIFFARD, Pierre. O esoterismo. São Paulo: Mandarim, 1996, p. 300.
519
CORSETTI, Jean-Paul, op. cit., p. 10.
520
A Capital, “Sociedade Theosophica”, 6 de junho de 1929.
521
Idem, “Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento”, 20 de fevereiro de 1926.

145
da motricidade, photographias astraes, desdobramento astral, magia branca e negra,
lethargia, catalepsia e somnambulismo, phenomenos espiritas, levitação, transporte
de objectos e etc., fakirismo indiano e occidental.
Segunda parte: o sr. Arthur Santos fará as experiencias seguintes: Auto-catalepsia
parcial (insensibilidade), auto catalepsia total, transmissão de pensamento,
allucinações hypnoticas; psychometria, e marcha e leitura guiadas pelo astral.522

Algumas colunas do diário também eram destinadas à propaganda de livros sobre os


mais variados assuntos esotéricos e ocultistas. As livrarias anunciavam, na chamada Secção
Livre, diversas obras que prometiam, com sua leitura, o domínio do conhecimento de questões
referentes a diferentes correntes espiritualistas. É com esse intuito que a Livraria Magalhães,
localizada na Rua Líbero Badaró, número 68, mediante a importância de Rs. 1$000, vendia
um antigo livro, de nome não fornecido, “elaborado com muitas gravuras descriminando
todos os signaes das mãos”, que ajudaria a “descobrir o destino humano pelos signaes das
mãos, cabeça e rosto e além disso elle abrange innumeras outras varias revelações”. A
propaganda ainda procura dar credibilidade ao conteúdo da obra pelo fato de que sua
veracidade teria sido “confirmada pelo sabio philosopho atheniense, Socrates”523.
A maioria dos anúncios, para atrair a atenção do leitor, prometia não apenas o domínio
do saber ocultista, de maneira que leitura dos livros igualmente ensinaria a sua aplicação
prática. Afirmava-se que a aquisição do produto, além de pôr o seu comprador em contato
com um saber científico e erudito, poderia ajudá-lo a intervir nos problemas cotidianos e
solucioná-los. Em 20 de novembro de 1919, por exemplo, a Lawrence & Comp., localizada
na Rua da Assembléia, número 45, na Capital Federal, anunciou a venda da obra O
Occultismo Pratico, de autoria do Dr. Lawrence. Para adquiri-lo, era necessário o envio de
uma carta de pedido à livraria, junto com a importância de dez mil réis. A propaganda
ressaltava que a leitura daquela obra daria uma espécie de poder para se atuar em diversas
situações, afinal O Occultismo Prático

faz entreter amor ou harmonia, neutralizar males de inveja ou odio, facilitar


casamento com a pessoa desejada, destruir feitiçaria, attrahir abundancia de
dinheiro, alcançar collocação, adivinhar numeros da sorte, ganhar no jogo da Bolsa,
loteria ou qualquer outro. Serve tambem para hypnotizar ou magnetizar, fazer curar
sómente com a mão ou olhar, ou em distancia por carta dirigida ao doente. 524

Por fim, a sua credibilidade: não se tratariam de meras crendices de cunho popular. Ao
contrário, além de serem elaboradas por um “doutor”, as idéias contidas na obra seriam

522
Idem, “Uma <<soirée>> theorico-experimental”, 25 de julho de 1916.
523
Idem, “Chiromancia e physionomia”, 14 de novembro de 1919.
524
Idem, “Quereis ganhar?”, 20 de novembro de 1919.

146
corroboradas pelos mais conhecidos e renomados homens de ciência do continente europeu,
haja vista que o livro seria “gabado pelo coronel Rochas, director da Escola Polytechnica de
Paris, e pelo dr. Ochorowicz, professor da Universidade de Lemberg, o sabio que mais tem
escripto sobre psychologia e cujas numerosas obras são adoptadas nas Faculdades de
Medicina officiaes”525.
A livraria Milton & Cia., localizada na Capital Federal, ao anunciar os livros que
tratavam de temas ligados às ciências ocultas e ao esoterismo, também se utilizava do seu
caráter prático, principalmente no que diz respeito à solução de problemas pessoais. Na
propaganda de 16 de julho de 1921, veiculava a venda d’O Livro de Influencias
Maravilhosas. Entretanto, este possuía uma peculiaridade: seu funcionamento prático só teria
sucesso caso fossem utilizados os chamados Accumuladores Mentaes, os quais, segundo o
anúncio, seriam uma espécie de amuletos magnéticos. Dessa forma, o livro, além de trazer ao
seu leitor um bom conhecimento das ciências ocultas, seria também um manual, com as
devidas instruções para o uso dos tais acumuladores.
Para adquiri-los, bastava o envio de um pedido em vale postal, com o valor em
dinheiro junto. Como havia diferentes Accumuladores e o Livro de Influencias possuía cinco
volumes de distintas abordagens (Hipnotismo Afortunante, Magnetismo Utilitário, Ocultismo
Prático, Medicina Moderna e Ciências Secretas), a livraria oferecia alternativas para a
aquisição dos produtos: quarenta mil-réis para um volume da obra – junto com um
acumulador –, noventa mil-réis para dois volumes com dois acumuladores diferentes e cento e
vinte mil-réis para todos os volumes, juntamente com dois acumuladores. Com o intuito de
atrair o leitor, a propaganda se utiliza, primeiramente, das vantagens que os acumuladores
trariam, a saber, a felicidade, a riqueza e a influência direta sobre outros indivíduos:

Com os Accumuladores Mentaes sereis feliz e vivereis na abundancia, porque


vosso desejo de boa sorte, devido á saturação dos vossos efluvios nervosos, ao
preparar os Accumuladores conforme o ensino impresso que os acompanha, se
formulará na atmosphera magnetica da Terra, e nella ficará vitalisado pela vossa
intenção, á maneira de torpedo espiritual que insinuará suggestivamente os
acontecimentos por vós desejados. As pessoas sobre as quaes tivestes intenção de
influenciar procederão a vosso favor desde então como inspiradas pelo livre arbitrio
delas proprias, mas estarão de facto suggestionadas indirectamente por vós, e talvez
mesmo sem mais estardes pensando no que desejastes.526

Em seguida, o anúncio, de forma mais explícita, traz ao leitor o quanto a utilização do


conteúdo científico do livro, junto com o amuleto, poderia influenciar na sua vida:

525
Idem, Ibidem.
526
Idem, “Dinheiro, saude e felicidade”, 16 de julho de 1921.

147
Tendes algum desejo que, apesar do vosso esforço, não conseguis realizar? Sois
infeliz em vossa familia ou em commercio? Precisaes descobrir alguma coisa que
vos preoccupa? Fazer voltar para vossa companhia alguem que tenha separado?
Recuperar algum objecto que vos tenham roubado? Alcançar bom emprego ou
negocio? Fazer casamento vantajoso? Revigorar a potencia? Augmentar a vista ou
memoria? Adivinhar numeros de sorte? Attrahir abundancia de dinheiro? Empregae
as instrucções dos LIVROS DE INFLUENCIAS MARAVILHOSAS e os
ACCUMULADORES MENTAES.527

Tais amuletos também poderiam ser vendidos sem o acompanhamento de uma obra
específica. Na edição de 3 de setembro de 1915 d’A Capital, o Instituto Americano, com sede
no Rio de Janeiro, anunciava a venda do Talisman Hipno-Magnetico. Os que adquirissem o
produto poderiam, com ele, “facilitar casamentos difficeis, reconciliações, obtenção de
empregos, resolver favoravelmente difficuldades da vida, etc., etc.”528. Em outras palavras,
“eis o Amor!... Eis o successo!... Eis a felicidade!... Eis a fortuna!... Tudo vem mui
naturalmente, como simples consequencia de uma modificação na aura psychicha, ou sem se
pensar em obter taes vantagens!”529. O anúncio ainda fazia questão de realçar uma influência
positiva dos talismãs sobre o comportamento moral dos seus detentores e, por extensão, sobre
os outros indivíduos à sua volta:

O homem ou a mulher que usam os <<Talismans>> estão em melhor condição do


que aquelles que seguem os preceitos dos manuaes do bom tom ou de saber viver:
além de nada empregarem de nocivo á moral, á religião, ás leis e aos bons costumes,
são eminentemente uteis pela influencia salutar que sobre o ambiente social exerce
sua aura superior: não prevaricam nem commettem actos reprovaveis, porque
reconhecem e sentem a desnecessidade desses actos!530

Além do mais, os Talismans, além de imbuírem os seres humanos de uma bondade de


grandes proporções, teriam o poder de trazer todas as vantagens à vida ao comprador,
intervindo em todos os campos, desde relações familiares até os problemas de ordem
econômica:
Na vida de um casal a mulher sentirá que seu amor, suas preoccupações desviam-se
para aquelle que usa os <<Talismans>>... Na vida social o homem que usa os
<<Talismans>>, ainda que não tenha intenção de adquirir grande clientela, verá que
os seus freguezes, sem motivo evidente, lhe dão a preferencia sob o pretexto de
melhores preços ou simples sympathias. Os que estiverem em condições de fallencia
deixarão de pagar aos credores que mereçam talvez maior gratidão, para solverem
integralmente os seus compromissos com os fornecedores que empregam os
<<Talismans>>... Na vida financeira, os banqueiros ou corretores que usam os
<<Talismans>> estarão sempre na lembrança de todo o mundo, para virem ás suas

527
Idem, Ibidem.
528
Idem, “Os talismans”, 03 de setembro de 1915.
529
Idem, Ibidem.
530
Idem, Ibidem.

148
mãos os bons negocios... Os filhos procurarão sempre ser bons e carinhosos quando
seus paes possuem os <<Talismans>>. É tambem assim que os empregados são mais
delicados, que as boas relações nos procuram e que todos se empenham em nos dar
provas de amizade, mesmo sem as merecermos ou correspondermos a essas
distincções. Um banco vai fallir, as apolices vão baixar... O homem que possue os
<<Talismans>> tem sempre quem avise ou salve os seus interesses, mesmo sem que
lhe devam favores... 531

Entretanto, na maioria dos anúncios, os amuletos vinham acompanhados por uma obra
para explicar todo o seu fundamento científico. A venda de um livro, que servia tanto como
manual quanto como um meio para se aprofundar o conhecimento acerca dos assuntos
espiritualistas, acompanhado de amuletos para utilização prática também fora estratégia de
um Sr. Aristóteles, morador da Rua do Senhor dos Passos, número 98, no Rio de Janeiro. Em
17 de março de 1917, o mesmo divulgava a venda de um objeto com poderes de tornar mais
feliz a vida do comprador: os casais de Pedras de Cevar, “mineral indiano que attrahe as
influencias beneficas e afugenta as maleficas”532. O anúncio ainda afirmava que “as suas
emanações fluidicas facilitam a realização de todos os pensamentos humanos”533. O custo de
cada par variava segundo o tamanho e o poder, vindo junto com ele um manual com
instruções escritas para o preparo, o uso e a conservação das pedras.
Além do mais, mediante a quantia de trezentos réis, era enviado um livro ilustrado.
Nesse caso, tal obra ocupava um papel importante, a saber, o de explicitar e comprovar o
fundamento científico do amuleto – objetivando, assim, assinalar que o objeto não integrava
as “crendices” populares –, bem como o prestígio decorrente de tal cientificidade, conforme
está explícito no final do anúncio: “Nesse livro, acha-se a explicação scientifica das virtudes
e da origem das Pedras de Cevar, assim como a opinião dos principaes jornaes do Brasil a
seu respeito”534.
Desse modo, tencionava-se mostrar aos leitores que as idéias contidas nos livros e os
amuletos não eram produto das denominadas “crendices” e “superstições” populares, fruto da
tão repetida condição atávica do País por parte da intelectualidade brasileira, mas sim de todo
um aparato científico, erudito e racional proveniente do venerado continente europeu. Além
disso, mais do que oferecerem aquisição de conhecimentos, os anúncios procuravam
aproximar a ciência do cotidiano do público leitor. Vendiam não um amontoado difuso de
especulações e discussões dos homens da ciência incompreensíveis para os leigos: pelo
contrário, seduziam um potencial cliente pelo seu caráter prático, qual seja, a resolução dos

531
Idem, Ibidem.
532
Idem, ”Ser feliz!”, 17 de março de 1917.
533
Idem, Ibidem.
534
Idem, Ibidem.

149
vários problemas que poderiam surgir na vida dos indivíduos, desde questões amorosas até
dificuldades financeiras. Retomavam, enfim, a crença do início do século XX no pensamento
científico como um poderoso e infalível agente de mudanças e melhorias imediatas na vida da
população.
Essa tentativa de aproximação entre as ciências ocultas e o cotidiano do público
também se consubstanciava nas publicações das previsões de videntes estrangeiros para o ano
que acabava de se iniciar, caso da edição de 25 de março de 1926, em que foram noticiadas as
previsões da diretora da Academia Astrológica de Nova York, miss Bella Bart, para quem, em
1944, haveria paz absoluta na Terra e o mundo seria governado por um parlamento instalado
nos Estados Unidos535.
Contudo, eram os videntes nacionais que obtinham maior destaque nas páginas do
jornal, como o ex-cônsul do Brasil na Venezuela, jornalista e literato Múcio Teixeira, o qual,
sob o pseudônimo de Barão de Ergonte, recebia, no seu consultório de ocultismo e magia na
então Capital Federal, enfermos e indivíduos interessados em saber o futuro536. Outro
ocultista bastante noticiado foi Henrique Silva, ou Iodyran, que, segundo anúncio publicado
n’A Capital, atendia seus clientes na Rua Formosa, 54, mediante a importância de Rs.
20$000537. Iodyran, no ano de 1916, teve suas profecias publicadas pelo diário. Entre outros
presságios, previu um escândalo envolvendo um deputado, uma grande sensação de guerra até
o dia 19 de março, um acidente na Estrada de Ferro Central538 e a derrota da Alemanha na
Primeira Guerra539. O jornal, inclusive, afiançava ao público a veracidade de algumas
predições: certa feita, noticiou que Iodyran teria previsto, já em 17 de março, a proximidade
da morte do general Francisco Glicério, ocorrida no mês seguinte, afirmando que os
“sucessos são sem conta. De resto, os seus trabalhos psychometricos são de notavel exacção,
que tem merecido os melhores elogios [...] as suas predições não podem ser postas á margem,
claro como está que acerta commumente”540.

535
Idem, “A astrologia e as suas predicções”, 25 de março de 1926.
536
ARAÚJO, Vicente de Paula. A bela época do cinema brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 349. O
médico, desenhista, escritor e caricaturista José Madeira de Freitas, na sua famosa obra História do Brasil pelo
método confuso, sucesso editorial ao longo da década de 1920 e lançada sob o pseudônimo de Mendes Fradique,
assim o descrevia: “Barão de Ergonte. Cônsul do Brasil na Venezuela, moralista notável, foi um dos maiores
cartomantes de seu tempo. Nasceu em São Cristóvão, foi educado em Vila Nova de Gôa onde fez preparatórios,
completando o curso em Bangkok. Virou Faquir”. FRADIQUE, Mendes. História do Brasil pelo método
confuso. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, pp. 262-263.
537
A Capital, “Graphologia”, 11 de março de 1916.
538
Idem, “Prophecias de Iodyran”, 11 de março de 1916.
539
Idem, “Prophecias de Iodyran”, 11 de maio de 1916.
540
Idem, “Iodyran predisse a morte do general Glycerio”, 13 de abril de 1916.

150
Além de prever eventos que poderiam ocorrer no Brasil e no mundo afora, Iodyran era
responsável pela seção denominada “A Capital occultista”, presente nas páginas do jornal
entre os anos de 1916 e 1920, onde prometia, por meio da grafologia, ler o caráter e os traços
psicológicos de personalidades em destaque no meio social, além de adivinhar o seu passado
e pressagiar acontecimentos futuros que os envolvessem. Foram analisados por Iodyran, entre
outros personagens da vida pública brasileira, o literato Olavo Bilac, o então Secretário da
Fazenda e Interior da Agricultura, José Cardoso de Almeida, o então prefeito de São Paulo,
Washington Luís, o senador Alfredo Ellis, o conselheiro Antonio da Silva Prado, o deputado
estadual João Pedro da Veiga Miranda e o psiquiatra Franco da Rocha.
Por fim, outro modo d’A Capital conceder algum espaço de suas páginas para a
difusão do ocultismo consistia na publicação de artigos escritos por ocultistas. Na edição do
primeiro dia de dezembro de 1922, por exemplo, Iodyran teve publicado um texto rebatendo
as idéias contidas no artigo “Psychologia das superstições”, da autoria de Franco da Rocha e
publicado n’O Estado de S. Paulo. No entender do psiquiatra, o indivíduo, em momentos de
medo e desespero, tem a necessidade premente de se ater a alguma força superior com a
finalidade de se livrar dos seus temores, de modo que acaba por se apoiar em explicações
baseadas na idéia de forças sobrenaturais atuantes na natureza e na vida humana, por mais
irracionais e ilógicas que elas possam parecer. Como resultado, ao recorrer a esse tipo de
recurso para mitigar os receios e as desesperanças, o indivíduo adulto, perdendo sua
racionalidade e auto-sugestão, retornaria a um estado de inocência característica das crianças:

O homem, ameaçado no que elle tem de mais caro – na sua vida – volta a um estado
mental infantil. Surge-lhe do inconsciente a necessidade de recorrer ao papae
grande, visto que na sua infancia era o papae da terra quem o socorria nos tranzes
afflictivos; se não era o papae, era a mamãe, a titia, o padrinho ou qualquer outro
ente que tinha certo poder superior ao da criança. Hoje vemos a cada passo a criatura
humana recorrer, quando não ao proprio Deus, a Santo Antonio, a S. Bento, etc. As
promessas enchem os santuarios de objectos de cêra com que o homem vae pagar o
curativo de uma doença cruel, como tambem a salvação que lhe foi concedida num
momento de aperto.541

E isso não ocorria apenas com os pobres, pois “ha gente da melhor sociedade (que
pode ser supinamente ignorante)”, de modo que havia “superstições em todas as camadas
sociaes, em todas as condições, em todas as profissões”542. Com isso, a existência de muitos
indivíduos de todas as classes sociais destituídos de racionalidade e, por conseguinte,

541
O Estado de S. Paulo, “Psychologia das superstições”, 19 de novembro de 1922.
542
Idem, Ibidem.

151
facilmente sugestionáveis, abriria a oportunidade para que exploradores pudessem incutir-lhes
a idéia de que curam qualquer enfermo por meio de milagres.
De acordo com Franco da Rocha, no rol de práticas charlatanescas, estaria o
espiritismo, classificado como terreno fértil para embustes, juízo do qual, evidentemente,
Iodyran discordava. No raciocínio do ocultista, as influências de espíritos e forças supra-
humanas “ainda escapam do ambito scientifico ou de percepção humana, cabendo aos
exemplos e ensinamentos do passado e á videncia dos vindouros – o Conhecimento de factos
que, hoje, para nós, se afigram [sic] inverossimeis”543. Ao contrário do referido psiquiatra,
Iodyran não se baseava na costumeira divisão ente ciência e religião, afirmando que cientistas
como Louis Pasteur, Alexander von Humboldt e Georges Cuvier acreditavam em Deus e nas
forças superiores, além de, em suas obras, não cansarem “de erguer louvores á essa divina
força que, segundo a phrase de Gouper, existe para além das realidades palpaveis”544.
Dessa maneira, não haveria uma cisão entre os fenômenos humanos ou supra-
humanos, de modo que ambos estariam integrados, acarretando múltiplas influências entre si,
donde a negação da força de vontade, da fé, da sugestão, das doutrinas ocultas, da providência
e do espiritismo enquanto agentes efetivos de cura dos enfermos constituiria “manifesta
ignorancia ou persistencia num erro pessoal que não indagamos”545. O tratamento de uma
doença apenas por meio de remédios ou a prevenção com base em vacinas não seria
suficiente: dever-se-ia garantir a plena ação das forças extra-humanas sobre o corpo de cada
indivíduo.
Por via de conseqüência, ao possuir uma concepção de saúde que admitia a
importância dos fatores da realidade sensível e supra-sensível, o ocultismo se encontraria em
um patamar mais elevado do que a ciência médica oficial. Assim, Iodyran afirmava ser aquele
uma “sciencia provada. E sobre elle já se externam as maiores mentalidades do mundo
inteiro”546, ao passo que a medicina, “como a quer o dr. Franco da Rocha, é uma especie de
estatua assyriaca: cerebro de ouro, ventre de bronze e pés... de barro, ruirá por terra ao
primeiro sopro”547.
Além do artigo de Iodyran, o diário veiculou para seus leitores a “Columna
Theosophica”, seção criada no ano de 1921 e destinada à publicação de textos da lavra de
membros da Loja de S. Paulo da Sociedade Theosophica ou de renomados ocultistas

543
A Capital, “O monomorphismo scientifico, doutrina erronea e a psychologia das superstições”, 1 de
dezembro de 1922.
544
Idem, Ibidem.
545
Idem, Ibidem.
546
Idem, Ibidem.
547
Idem, Ibidem.

152
estrangeiros traduzidos para o português, como o inglês Charles Webster Leadbeater, os quais
traziam idéias acerca do sobrenatural e de reencarnação, do conceito de Deus, do sentido da
existência humana e das noções de vida, morte, alma e corpo. Outros artigos também emitiam
juízos sobre vida terrena e as relações humanas à época, possuindo acentuada crítica à
predominância de uma vida vastamente materialista, caracterizada pelo egoísmo, pela
ambição sem limites, pela ausência de sentimento religioso e pela falta de compaixão e
solidariedade tanto entre os indivíduos de uma mesma nação quanto entre diferentes povos.
Silva Junior, por exemplo, certa feita, declarou que a maioria dos sujeitos preocupados com
“os negocios, com o trabalho, ou com as immensas distracções que acorrentam o espirito á
vida do mundo physico, não são capazes de perceber a razão, o motivo e, mais que tudo, a
vantagem de se estudar a theosophia”548.
Da mesma forma, César de Almeida Campos afirmou que não “sómente notamos a
tendencia dos povos para as cousas materiaes, como ainda até a philosophia materialista
predomina hoje na sciencia e nas relações sociaes”549 sem tratar de grandes problemas
religiosos, “que deviam fazer parte intima e integrante na nossa existencia”550. Em outra
ocasião, asseverou que a humanidade se encontrava “no meio de uma civilização
progressista, rica e poderosa, mas ao mesmo tempo cheia de dores e de baixezas moraes; por
quase toda parte as paixões inferiores (ambição, orgulho, colera, sensualismo, hypocrisia,
avareza e egoismo), campeam largamente”551. Esse quadro caótico seria, segundo seu
raciocino, fruto de seres destituídos de moralidade, escrúpulo, domínio próprio e ideal nobre
para guiá-los em suas ações, tanto que as “nações mostram o grau attingido pela sua
cegueira e ambição, destruindo-se, guerreando-se entre si, prova mais que clara do ‘quanto o
mundo anda alheio ás questões altamente religiosas e fraternaes’!”552.
Contudo, para Campos, a idéia de um mundo permeado pelo caos não abrigava em seu
cerne um pensamento fatalista. Pelo contrário, tinha como princípio fundante uma concepção
cíclica de História, segundo a qual, após um período em que os indivíduos se distanciariam
cada vez mais dos princípios religiosos e morais, em favor da predominância de modos de
vida pautados por um pensamento egoísta e materialista, teríamos a vinda de um grande
instrutor espiritual para mostrar novamente à humanidade “o verdadeiro caminho que devem
trilhar, qual o dever que têm a cumprir com Deus, o Altissimo, e para com os seus irmãos,

548
Idem, “Columna Theosophica”, 3 de novembro de 1921.
549
Idem, “Columna Theosophica”, 26 de outubro de 1921.
550
Idem, Ibidem.
551
Idem, “Columna Theosophica”, 27 de outubro de 1921.
552
Idem, Ibidem.

153
companheiros de jornada”553. De acordo com o referido articulista, desde o hinduísmo até o
cristianismo, surgiram grandes “Senhores do Amor e da Sabedoria, fundando as suas
religiões, nas quaes fizeram ressaltar as qualidades que mais se coadunavam com o
desenvolvimento evolutivo do genero humano”554. Desse modo, as sucessivas vindas desses
“Instructores espirituaes”, incumbidos de dar um novo impulso à vida religiosa, lembrando a
todos as lições do amor e da fraternidade, constituem um fato periódico, um acontecimento
natural na ordem cíclica do plano traçado por Deus, de modo que, à medida que uma
civilização e uma religião começam a entrar no período de decadência, “uma outra
civilização e uma outra religião surgem para substituir as antigas, e notamos tambem que no
começo de uma nova epocha de civilização e religião, surge um grande Instructor”555.
Por conseguinte, segundo Campos, as notícias sobre o acontecimento de guerras, as
doenças que afligiam a população em escala mundial, a fome que grassava em vários povos e
a falta de sentimento religioso entre os homens e as mulheres seriam sinais da iminente
chegada de um novo instrutor espiritual, tal como o foram, entre outros fundadores de novas
religiões, Buda e Jesus Cristo em tempos passados, para ensinar a humanidade a pôr em
prática os deveres fraternais e as verdades morais já conhecidos, mas pouco aplicados.
Essa concepção cíclica do tempo, contudo, não possuía como base uma idéia de eterna
volta a um momento caótico, sucedido pela vinda do instrutor iniciador de um período de
prosperidade, o qual, por sua vez, declinaria em favor de um novo retorno ao caos. Na linha
de raciocínio do referido articulista, os ciclos não seriam iguais. Cada vinda de um novo
instrutor, após uma crise da vida espiritual da humanidade, representaria um passo a mais no
robustecimento dos valores morais, de maneira que progressivamente os princípios do amor e
da fraternidade seriam despertados nos indivíduos, até se tornarem plenos e universais. O
declínio de uma dada civilização e religião denotaria o surgimento de outras formas de
religião e sociedade mais evoluídas espiritualmente. Assim, as “perturbações que
presentemente dilaceram o mundo, não são mais do que o rapido passar de uma civilização
que decahe agonizante, para, dentro em breves tempos, surgir uma civilização nova e mais
progressista”556.
Ainda que o ocultismo possuísse um viés religioso ao discutir sobre questões
metafísicas, como visto no caso dos artigos de César de Almeida Campos, A Capital
destacava-o em virtude de seu caráter científico. Mais do que isso, elogiava-o não enquanto

553
Idem, Ibidem.
554
Idem, “Columna Theosophica”, 28 de outubro de 1921.
555
Idem, Ibidem.
556
Idem, Ibidem.

154
uma ciência especulativa e distante do cotidiano dos indivíduos leigos, mas sim como uma
forma específica de ciência caracterizada pelo fácil entendimento, destituído de um linguajar
ininteligível, haja vista que, por ocasião da inauguração da coluna “A Capital occultista”,
com o intuito de “orientar os nossos leitores nos meandros do occultismo”, afirmou ser este
“uma sciencia experimental, que se baseia sobre factos e principios ao alcance de todos”557.
Essa observação se torna importante ao levarmos em conta a forte confiança do diário
na eficácia da ciência enquanto agente catalisador de mudanças na sociedade, algo
característico do início dos Novecentos. O fato de, no jornal, a população pobre ser
caracterizada como ignorante e massa imbecilizada, não acarreta, no cerne do seu ideário, o
juízo de que as classes populares fossem degeneradas por excelência, ou seja, irrecuperáveis.
Pelo contrário, segundo A Capital, a ciência e a educação poderiam torná-las indivíduos
eruditos e esclarecidos. Certa feita, por exemplo, o jornal afirmou que as denominadas
“crendices”, componentes da religiosidade popular, desapareceriam apenas no dia em que
“ao povo chegarem os conhecimentos que são hoje o privilegio de uma elite intelectual que
soube collocar acima de todo interesse material a verdade e a justiça”558, e quando “pela
inevitavel evolução do espirito humano a logica e a razão superarem os sentimentos menos
sublimados da humanidade em geral”559.
Daí o ocultismo ser elogiado e, por conseguinte, veiculado exaustivamente pelo
periódico: qualificado como um saber legítimo cujo entendimento seria possível até mesmo
entre os leigos, constituiria, para A Capital, um legítimo ramo da ciência que poderia auxiliar
o povo a alcançar os estágios mais elevados do conhecimento, contribuindo para o
engendramento de uma sociedade plenamente ilustrada.

3.3. Ocultistas: adeptos da ciência ideais para a regeneração da sociedade

Na edição de 24 de agosto de 1914, A Capital publicou uma carta da lavra de Antonio


Mathias de Viveiros, cujo conteúdo narrava um hipotético milagre efetuado pelo já referido
George Baçú, ocultista fartamente noticiado em virtude dos relatos de curas miraculosas
supostamente por ele realizadas em outras cidades do Brasil e no interior do Estado de São
Paulo. Viveiros iniciava expondo que sua esposa, Maria do Carmo Mathias, “estava soffrendo
dos intestinos, baço, figado e utero; resultando em tuberculose uterina e intestinal, com febre

557
Idem, “A Capital occultista”, 25 de março de 1916.
558
Idem, “As miragens do mysticismo”, 26 de dezembro de 1928.
559
Idem, Ibidem.

155
intermittente e dores violentas no abdomen, sendo estas tão fortes que não podia supportar as
vestes, nem tocar-lhe com a mão”560.
Em certa ocasião, de acordo com o missivista, o estado enfermo de Maria do Carmo se
agravou, levando-a “até ás agonias da morte”. Então, informado por um parente sobre a
presença de Baçú na cidade, Viveiros decidiu procurá-lo em seu consultório, localizado na
Rua Brigadeiro Tobias, n. 114, afinal, um médico, identificado na carta como “dr. C.”, teria
dado como certa a morte da esposa, e, no mais, o sargento encontrava-se cansado de
“recorrer á sciencia medica, visto ter ella [Maria do Carmo] sido tratada por medicos
especialistas, não obtendo melhoras durante esse tempo”561. O ocultista, após o pedido de
ajuda, teria se transportado espiritualmente à residência onde estava localizada a enferma e, ao
constatar a gravidade da doença, seguiu imediatamente o sargento ao local para socorrê-la. Ali
chegando, o professor ocultista começou a animar Maria do Carmo com palavras, ao mesmo
tempo em que realizava um passe fluídico, “que lhe tirou as dôres como por encanto,
cessando tambem a grande febre intestinal”562.
Viveiros garantiu ainda ter ocorrido outro milagre protagonizado por Baçú. No exato
momento em que este fora chamado, a esposa declarou a Candida Padilha, moradora da Rua
Carlos Botelho, número 54, ter visto “uma estrella luminosa que, attravessando a sala,
pairava sobre o leito”563 – seria o espírito do professor ocultista? O sargento encerrou o texto
destacando aspectos que, curiosamente, como veremos adiante, foram bastante ressaltados
pelo diário no que tange a Baçú, a saber, o desapego pelo dinheiro e seu caráter altruísta,
consubstanciados na recusa em aceitar qualquer compensação pecuniária pela cura milagrosa
realizada e na disposição em continuar tratando Maria do Carmo:

Esse apostolado do bem, nada me exigiu em pagamento dos seus serviços,


promptificando-se ainda a continuar o tratamento, o que tem feito com todo o prazer
que lhe é peculiar quando se trata de fazer caridade.
Terminando esta humilde manifestação, agradeço a Deus Todo Poderoso por ter
enviado ao nosso meio um espirito superior, dotado da nobre missão de alliviar as
dôres da humanidade soffredora.564

George Baçú, em virtude de relatos sobre este e outros prodígios, logrou sucesso nas
páginas do jornal. Segundo seu anúncio no diário, atendia, inicialmente, os consulentes em
um consultório localizado à Rua Brigadeiro Tobias, número 114, no bairro da Luz, com

560
Idem, “Professor George Baçú”, 24 de agosto de 1914.
561
Idem, Ibidem.
562
Idem, Ibidem.
563
Idem, Ibidem.
564
Idem, Ibidem.

156
horários previamente combinados, das 12 às 18 horas e das 19 às 21 horas565. Passado um
tempo, mudou seu consultório, passando a atender seus pacientes na Rua Victoria, número
129, das 12 às 18 horas. Seu anúncio n’A Capital, para assegurar, frente ao público, a
credibilidade de suas práticas de cura por meio do ocultismo, assegurava que os feitos
realizados por ele seriam verdadeiros porque teriam sido publicados por vários jornais
paulistas, retomando, assim, a idéia de imprensa como isenta de interesses e portadora da
verdade absoluta, a qual, naquele início de século, os periódicos se esforçavam em incutir nos
leitores. Ou seja, se o jornal noticiou, então os tratamentos prodigiosos eram verdadeiros:
“Curas importantes tem realisado pelo occultismo, conforme tem comprovado a imprensa
paulista. Attestados photographicos e dedicatorias dos curados desta capital acham-se no
gabinete do professor Baçú”566.
O professor ocultista cobrava valores distintos por uma consulta. Caso fosse realizada
em seu gabinete, nos dias úteis, dever-se-ia pagar a importância de dez mil-réis. Se as curas
ocorressem ainda no mesmo gabinete, mas nos dias de feriados, eram cobrados vinte mil-réis.
Já para um tratamento realizado em consultas a domicílio ou à distância por meio de cartas,
George Baçú cobrava trinta mil-réis. Seus métodos, com o tempo, foram se aperfeiçoando. O
ocultista, além de realizar consultas, passou a vender os chamados Receptores Indianos, os
quais, segundo ele, possuiriam o poder de intervir em casos da vida terrena. Um receptor de
“força dupla”, contendo dois elementos, custava vinte mil-réis e um de “força simples”, dez
mil-réis, sendo que ambos vinham com instruções ensinando como utilizá-los. O anúncio,
para seduzir o público, pretendia dar legitimidade ao produto por meio da asseveração de que
a comunidade científica tinha reconhecido sua eficácia e várias missivas panegíricas teriam
sido enviadas a Baçú, associando, por conseguinte, popularidade com veracidade. Em outras
palavras, se muitos disseram terem sido beneficiados com os receptores, nada mais lógico,
então, que sua eficácia fosse patente e incontestável:

O Professor Baçú avisa aos seus amigos e clientes desta capital e do interior, assim
como os clientes de todos os Estados do Brazil que já está distribuindo os
Receptores Indianos, medalhas por todos os scientistas universaes reconhecedores
de suas virtudes para todos os casos da vida terrena em todos os povos que tiveram a
felicidade de o possuir. De milhares de pessoas desta capital e de todos os lugares
que o professor tem estado, onde distribuiu os Receptores Indianos, tem recebido
cartas elogiosas pelos seus efeitos beneficos.567

565
Idem, “Professor Baçú”, 29 de outubro de 1914.
566
Idem, “O Professor Baçú”, 19 de maio de 1915.
567
Idem, Ibidem.

157
Outros ocultistas, inclusive, em anúncios publicados no jornal, assim como Baçú,
procuravam mostrar ao leitor que as suas práticas se encontravam em consonância com os
princípios e métodos científicos. O “dr. prof. Hockner”, por exemplo, atendia em um
consultório localizado na Rua Mato Grosso, número 16, atrás do Cemitério da Consolação.
No anúncio, além de afirmar possuir o poder de decifrar horóscopos e curar seus clientes sem
utilizar medicamentos, pessoalmente ou por escrito, assegurava ter “em sua moradia um
apparelho que vos pode alliviar de muitas attribulações”568. Em um contexto de avanços
tecnológicos – do surgimento da eletricidade até a invenção do avião e a chegada das
locomotivas –, no qual havia a forte crença na pujança da ciência e, por via de conseqüência,
uma fascinação pelos seus inventos, como o cinematógrafo, o telefone e o automóvel, a idéia
de um aparelho utilizado nas consultas poderia constituir um ótimo atrativo para angariar
clientes e não parecia soar como absurdo no momento em que tal deslumbre pelos artefatos
tecnológicos levava pretendentes a grandes inventores a conceberem objetos cujos projetos
eram inexeqüíveis e mirabolantes, caso de Paschoal Segreto, autor de um projeto de
montagem de um boneco automático capaz de prever o futuro, denominado “O cartomante”,
e de André Cateysson, criador de um “Cinturão ideal Eletroterápico”, destinado, segundo
ele, a curar as moléstias do sistema nervoso através da distribuição de pequenas descargas
elétricas pelo corpo, entre tantas outras engenhocas arquitetadas entre o fim do século XIX e o
início dos Novecentos569.
As supostas curas fantásticas de Baçú, fundamentadas nas ciências ocultas e realizadas
em cidades do interior de São Paulo e de outros Estados, renderam-lhe inúmeros elogios pelo
jornal, o qual, por meio da veiculação da carta de Viveiros e de outras notícias, procurava
patentear ao leitor a veracidade dos feitos do ocultista, bem como mostrar-lhe a sua imensa
popularidade. Em 21 de dezembro de 1914, por exemplo, divulgou que amigos e admiradores
do professor ocultista realizaram uma manifestação de apreço ao mesmo no Teatro São Paulo.
Tencionando afiançar aos leitores a sua extrema notoriedade, afirmou que o “theatro encheu-
se literalmente, decorrendo a festa no meio do maior enthusiasmo. Foi representada uma
peça em tres actos, intitulada <<Os prodigios do professor Baçú>>, cujo desempenho

568
Idem, “Occultismo”, 31 de dezembro de 1923.
569
Os planos, desenhos e modelos dessas invenções eram enviados ao Arquivo Público do Império e ao
Ministério do Império – depois Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas (1860-1891), Ministério
da Indústria, Aviação e Comércio (1891-1906) e Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio – para a
concessão de patentes e privilégios industriais aos respectivos autores. Para outros criativos e extravagantes
inventos, ver ZEFERINO, Breno Martins. A Inventiva Brasileira: modernidade, saúde e ciência na virada do
século XIX para o XX. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado em História das Ciências e da Saúde, Casa de
Oswaldo Cruz-Fiocruz, 2007, pp. 77-150.

158
agradou bastante. Falaram saudando o homenageado, varios oradores”570. Em outra
ocasião, alegou ter notado, no gabinete do professor, “cartas e cartões de agradecimento
pelos resultados nas curas, grande numero de attestados de curas realisadas nessa capital”,
além de muitos “retratos e presentes de alto valor offerecidos por pessoas distinctas nesta
capital, com dedicatorias em termos muitissimos gratos”571. Nunca é demais lembrar que a
expressão “pessoas distintas” era utilizada pelo jornal para se referir a indivíduos
considerados de destaque no meio social, como intelectuais, políticos e capitalistas, vistos
pela A Capital como aqueles que deveriam conduzir o País rumo ao progresso, formando e
guiando a opinião dos iletrados. Desse modo, a notícia se vale desse grupo caracterizado
como mais esclarecido para garantir a veracidade dos prodígios do ocultista, concedendo-lhes
confiabilidade. Em outras palavras, intentava observar que, se os mais cultos acreditavam em
Baçú, por via de conseqüência, as curas incríveis eram verdadeiras.
O caso de Baçú não era exceção: adeptos das ciências ocultas destacados pelas páginas
d’A Capital eram exaltados em virtude de suas práticas terem como base uma corrente de
pensamento considerada pelo jornal como um lídimo ramo da ciência, possuindo, com efeito,
uma imagem positiva.
Em primeiro lugar, a erudição, o conhecimento das várias areas de saber da ciência e
as passagens por outros países eram aspectos sempre repetidos pelo periódico. Um exemplo
disso é o quiromante Mc. Andor’s. Em 3 de janeiro de 1917, A Capital, em mais uma
tentativa de aproximar as ciências ocultas do cotidiano do público, informou que abriria uma
“secção de CHIROMANCIA, que ficará a cargo do conhecido ocultista MC.ANDOR’S,
recem-chegado da America do Norte”572, sendo que o mesmo responderia a todas as
consultas por um mês. Para que o leitor fosse consultado, bastaria o envio de um cupom à
redação do jornal, acompanhado de uma folha na qual deveriam estar desenhados os traços da
mão direita, a serem lidos e analisados pelo ocultista.
No primeiro dia, segundo o diário, chegaram cinco cartas para análise de Mc. Andor’s.
Este, através da leitura da mão direita, afirmava poder ver o passado e o futuro. Ao comentar
sobre as linhas da mão de uma leitora identificada como Pequenina, disse: “Linha de Vida
bastante forte: existencia longa. Soffreu pequeno desgosto entre os 17 e os 18 annos. Noivará
breve”573. Já no que dizia respeito a Nolasco Freire, atestou que “tem sido infeliz. Só aos 35

570
A Capital, “Em homenagem ao professor Baçú”, 21 de dezembro de 1914.
571
Idem, “A A Capital entrevista o professor George Baçú”, 22 de outubro de 1914.
572
Idem, “Quer o leitor saber o seu futuro, sem dispender um real?”, 3 de janeiro de 1917.
573
Idem, “Quer o leitor saber o seu futuro, sem dispender um real?”, 8 de janeiro de 1917.

159
annos conseguirá ver modificada a sua linha da fortuna”574. Para M. O. Ramos, profetizou
que, apesar de ser pretensioso, não teria bom preparo, nem inteligência, de modo que nunca
ficaria rico, escrevendo ainda que, apesar do desejo de se tornar literato, “nunca chegará a
escrever tres linhas com acerto”575.
O ocultista também dava conselhos aos consulentes. Certa feita, respondeu ao traçado
de Santinha: “Geniosa. Não descreia do passado e encare o Futuro com muita confiança.
Tambem, não confie muito na sua robustez: evite viagens por mar, que lhe poderão ser
fataes”576. Para uma moça chamada Borboleta, dissera-lhe para ter cautela com suas amigas,
pois uma delas iria “desempenhar o papel de Judas”577. Enfim, para Rodolpho A. Barbosa, o
qual, ao que parece, pensava em cometer suicídio, Mc. Andor’s asseverou:

Genio inclinado a pratica de pequenos caprichos.


Ameaça matar-se, si não tiver boa sorte... A sorte que a dá é Deus e não nós, que
somos o seu mais humilde instrumento. Agora, um conselho: tentar contra a vida é
um crime é uma covardia. O homem foi feito para a luta e quem foge a ella é um
covarde – que os outros homens aborrecem a as mulheres desprezam.
Crie juizo. Aprenda a encarar a vida com mais respeito e seriedade...578

Por vezes, os contornos supostamente mal desenhados impediam, segundo o próprio


ocultista, a realização plena das previsões. A Carmine D’Andréa, Mc. Andor’s solicitou que
enviasse outro, “mais claro. Só as linhas principaes”579; e, para o leitor João C., o qual teria
enviado os contornos dizendo que eram “mais ou menos” daquela maneira, retrucou-lhe
afirmando que “assim não serve. Ninguem poderá ler num livro que não tenha... paginas, não
acha?”580. Além do mais, o quiromante não apenas adivinhava o futuro em relação à vida
profissional ou familiar como constatava também, pela leitura das mãos, algumas
enfermidades, passadas ou futuras: sobre Mme. Linda, profetizou que “deve soffrer fortes
enxaquecas, das quaes não se curará muito cedo”581. A Emilia F., afirmou que, apesar de
possuir vida longa, teria “enfermidades passageiras entre os 27 e 28 annos”582. Da mesma
forma, escreveu a Maria B. que teria vida longa, entretanto, sofreria de pequena enfermidade.
E, na edição de 19 de janeiro de 1917, após analisar alguns desenhos, finalizou atestando que,

574
Idem, Ibidem.
575
Idem, “Quer o leitor saber o seu futuro, sem dispender um real?”, 12 de janeiro de 1917.
576
Idem, “Quer o leitor saber o seu futuro, sem dispender um real?”, 10 de janeiro de 1917.
577
Idem, “Quer o leitor saber o seu futuro, sem dispender um real?”, 18 de janeiro de 1917.
578
Idem, “Quer o leitor saber o seu futuro, sem dispender um real?”, 19 de janeiro de 1917.
579
Idem, “Quer o leitor saber o seu futuro, sem dispender um real?”, 12 de janeiro de 1917.
580
Idem, Ibidem.
581
Idem, “Quer o leitor saber o seu futuro, sem dispender um real?”, 8 de janeiro de 1917.
582
Idem, “Quer o leitor saber o seu futuro, sem dispender um real?”, 10 de janeiro de 1917.

160
talvez por influência do tempo, “o facto é que quasi todos os traços examinados tinham
signaes bem visiveis de molestias proximas”583.
O diário, quando apresentou Mc. Andor’s para o leitor, exaltou, em primeiro lugar, sua
erudição e inclinação aos estudos, ao afirmar que “desde tenra idade dedicou-se ao
occultismo, aperfeiçoando se [sic] no estudo da Chiromancia e da Astrologia”584. No fim, a
notícia ainda se utilizou de outro argumento tornar o ocultista confiável frente ao público, a
saber, o prestígio que possuiria entre grandes personalidades do meio político e os principais
jornais no mundo afora:

Considerado em toda a America do Norte pela exactidão das suas previsões, - foi, ha
tempo, consultado pelo general Carranza, do Mexico, que o honra com a sua
amizade; pelo general Pancho y Villa, ao qual revelou o futuro com tamanho acerto,
que o illustre chefe revolucionario mexicano deu-lhe de presente, uma valiosa
lembrança.
Consultado, muito antes da campanha eleitoral dos Estados Unidos, pelo sr. Wilson,
assegurou-lhe a victoria nas urnas em palavras que foram registradas pelos
principaes diarios new-yorkinos.585

A pitonisa Madame Theodora, então recém-chegada à cidade de São Paulo, também


foi apresentada como conhecedora e estudiosa das ciências. Ao procurá-la para que realizasse
algumas previsões, A Capital salientou que Theodora, “ha pouco chegada da India, onde fôra
a estudos das sciencias occultas”, ainda não dava consultas, pois se encontrava “em
meditação, concentrada em estudos da alta sciencia e lhe são vedados alguns ramos do poder
astral e da revolução”586. No mais, a própria expressão empregada para caracterizar o local
onde se encontrava a pitonisa reforça a intenção do jornal em demarcar a linha que
diferenciava Theodora dos praticantes de magia: ao passo que estes atuavam nos
denominados de “antros de especulações”587, a pitonisa se encontrava em seu “gabinete de
estudos”.
O professor Baçú também foi caracterizado como alguém estudioso, erudito e
ilustrado. Certa feita, A Capital, ao comentar a visita feita pelos seus repórteres à residência
do ocultista, fez questão de realçar sua condição de indivíduo de gosto refinado, visto que, se
feiticeiros e curandeiros agiriam com fins pecuniários, o ocultista era dono de uma “rica
colleção de objectos de arte e de alto valor, dentre os quaes objectos de ouro, prata e

583
Idem, “Quer o leitor saber o seu futuro, sem dispender um real?”, 19 de janeiro de 1917.
584
Idem, “Quer o leitor saber o seu futuro, sem dispender um real?”, 5 de janeiro de 1917.
585
Idem, Ibidem.
586
Idem, “Pytjhonisa – Mme. Théodora”, 22 de outubro de 1913.
587
Idem,”Os aguias e as ‘aguionas’”, 16 de abril de 1927.

161
quadros a oleo e aquarella, que lhe foram, tambem, dados por cura dos gratos”588. A sua
vivência nas grandes academias também foi assinalada pelo jornal, na ocasião em que foi
reproduzida uma entrevista do professor para um jornalista da imprensa carioca. Após tecer
comentários sobre sua nobre estirpe e sua passagem pelos templos do Himalaia, Baçú afirmou
ter estudado no “collegio Oxford”, onde, segundo ele, diplomou-se obtendo notas brilhantes.
Além disso, assegurou possuir o diploma de engenheiro pelo “acreditado estabelecimento
<<Federal Institute>> de Nova York e o de medico pelo Instituto Nacional de Sciencias”589,
unidade que, junto com o Instituto Americano de Engenharia, o Instituto de Medicina
Elétrica, Cirurgia Dentária e Massagem, a Escola Prática de Engenharia Elétrica, o Instituto
Profissional de Eletricistas, Maquinistas e Pilotos e o Instituto Técnico Nacional, integrava a
Universidade Escolar Internacional, instituição de ensino profissional superior sediada na
então Capital Federal, cujo método de aprendizado consistia em preleções e demonstrações
em laboratórios ou oficinas a ela pertencentes, além do sistema de livros ilustrados
denominado “correspondência”, devendo este ser complementado “pela pratica em
estabelecimentos adequados ou a serviço de profissionaes idôneos”590, segundo o extrato de
seus estatutos publicados no Diário Oficial.
Se aqueles que exerciam práticas mágico-religiosas eram apresentados como
ambiciosos e acusados de objetivarem apenas a obtenção de mais e mais dinheiro por meio de
embustes e estratagemas maquiavélicos, adeptos das ciências ocultas possuíam uma imagem
contrária. Do jornal, emanavam as representações de ocultistas como filantropos que
praticavam suas atividades por solidariedade, sem interesse pelo dinheiro ou por bens
materiais. A Capital, certa vez, enquanto Mc. Andor’s esteve analisando os traços das mãos
dos leitores, ressaltou que o mesmo não recebia “pagamento algum pelas consultas que lhe
são enviadas”591, enfatizando, em outra edição, que “as suas respostas são inteiramente
gratis. Sua senhoria não acceita, pelo seu trabalho, retribuição de especie alguma [grifos do
jornal]” 592.
George Baçú, por sua vez, foi elogiado pela sua bondade em relação aos mais pobres,
que não poderiam pagar pelas consultas. Na edição do dia 3 de setembro de 1914, o diário, ao
apresentar um breve histórico da vida e da passagem do professor pelo Brasil, alegou que os
“milagres que elle realiza com seu poder occulto, levando a todos consolo e allivio são

588
Idem, “As curas do professor Jorge Baçú”, 22 de agosto de 1914.
589
Idem, “Fala o professor George Baçú”, 27 de agosto de 1915.
590
Diário Official dos Estados Unidos do Brazil, “Sociedades civis – Universidade Escolar Internacional –
Extracto dos Estatutos”, 17 de outubro de 1912, p. 13743.
591
A Capital, “Quer o leitor saber o seu futuro, sem dispender um real?”,15 de janeiro de 1917.
592
Idem, “Quer o leitor saber o seu futuro, sem dispender um real?”, 09 de janeiro de 1917.

162
praticados por um profundo sentimento de altruismo, com o maior desprendimento possivel,
sem a menor idéa de ambição ou de lucro”593. Em outra ocasião, ao findar da entrevista de
Baçú, destacou ser este “um homem que só tem feito beneficios palpaveis, com
desprendimento enorme, não recebendo nenhuma paga, ás mais das vezes, por tantos
beneficios feitos”594. Desprendimento esse que seria confirmado pelo fato de o professor,
segundo o jornal, ter atendido, em apenas um dia, mil e quatrocentas pessoas gratuitamente.
Com o intuito de comprovar esse espírito elevado e eivado de bondade, foram
veiculadas notícias exaltando a figura do professor ocultista em virtude deste, segundo A
Capital, ter despendido quantias um tanto elevadas para o auxílio de pessoas e algumas
instituições. Certa vez, foi noticiado que o ocultista doou oitocentos mil-réis, valor produto de
gratificações que lhe foram ofertadas pelos seus agradecidos clientes, assim distribuídos: Rs.
100$000 para a Santa Casa, Rs. 200$000 ao Hospital de Lázaros do Guapira, Rs. 200$000 às
viúvas pobres, Rs. 200$000 para a Comissão de Auxilio aos Operários e Rs. 100$000 a um
albergue noturno595. Já em outra notícia, afirma-se que, em Limeira, antes de partir para a
capital paulista, o professor distribuiu a importância de Rs. 421$900 para ser dividido entre os
presos da cadeia local, além de Rs. 40$000 aos pobres de um centro espírita596. Daí o jornal
proferir extensos panegíricos ao professor Baçú, qualificado como

um verdadeiro apostolo do bem, um perfeito paladino dos actos generosos, um


pioneiro modelar dos mais grandiosos sentimentos de altruismo e philanthropia.
Vemol-o sempre prompto á pratica do bem e quando, ao soffrimento physicho dos
que o chamam, se reune a miseria, elle o mestre insigne, super-homem, (podemos
dizel-o) abre sua bolsa e com ella ajuda os que se acolhem sob o manto protector da
sua bondade grandiosa.
Nesta épocha horrivel em que o mais feroz egoismoim pera [sic] em toda a parte, em
que as mais tortuosas ambições cavam verdadeiros abysmos ente um e outro
homem, registamos com verdadeiro prazer a vinda entre nós do professor George
Baçú, fazendo votos para que o seu bello exemplo como scientista emerito e
especialmente como philanthropo, produza fructos salutares.597

No trecho acima, a linguagem sensacionalista, característica do jornal, se fez presente,


nomeadamente nas expressões exageradas, como “épocha horrivel”, “feroz egoismo” e
“tortuosas ambições”. Esse tom de exagero das palavras remete à idéia de que o mundo vivia
imerso ao caos, pois a “humanidade perversa não aproveita o que se lhe apresenta neste
egoistico seculo, onde rareiam os que se destacam pela sua philanthrophia. A humanidade é

593
Idem, “Ainda o professor sr. George Baçú”, 03 de setembro de 1914.
594
Idem, “A A Capital entrevista o professor George Baçú”, 22 de outubro de 1914.
595
Idem, “As curas do professor Jorge Baçú”, 22 de agosto de 1914.
596
Idem, “Professor Baçú”, 24 de agosto de 1914.
597
Idem, “Ainda o professor sr. George Baçú”, 3 de setembro de 1914.

163
cumplice de todos os crimes que se praticam nas sociedades modernas”598. Nesse sentido,
pela leitura dos trechos supracitados, é curioso notar que o diário, defensor da inviolabilidade
da propriedade privada e do capitalismo, da mesma forma que, como visto anteriormente,
alegava serem a injustiça social e a miséria do operariado produtos do desleixo dos
governantes e do egoísmo inerente a alguns (e apenas alguns) membros do empresariado, e
não conseqüências da existência daquele sistema, analisava a ganância e a falta de altruísmo
da humanidade sob um viés moral e maniqueísta.
A acirrada concorrência entre os indivíduos pela obtenção de mais e mais dinheiro,
desprezando-se o próximo, seria resultado da moral deficiente no seio da humanidade à época,
e não da competitividade exacerbada estimulada pelo capitalismo. O diário efetuava uma
leitura fatalista de seu contexto, como se o momento em que se vive fosse sempre
infinitamente pior aos tempos anteriores: em uma época de ouro – seja lá quando isso teria
acontecido –, não havia tanto desamor e ódio entre os humanos, contudo, progressivamente,
tudo foi mudando, as animosidades aumentaram e todos se transformaram em sujeitos frios e
inescrupulosos.
Enfim, a “épocha horrivel” e o “egoistico seculo” seriam frutos unicamente da
fraqueza moral dos seres humanos, responsáveis pela debilidade dos princípios éticos. Os
valores de amor ao próximo e solidariedade teriam se degenerado com o passar do tempo,
tendo os indivíduos se transformado em perversos e ambiciosos ao extremo, marca, segundo o
periódico, das “sociedades modernas”. Vocábulo que representava o avanço das civilizações,
“moderno”, aqui, foi empregado como adjetivo com conotações negativas, associado a um
desajuste na vida humana. Com efeito, A Capital não possuía um discurso totalmente
alinhado com os ideais de progresso e modernidade, a qual, segundo seu pensamento, também
possuía sua face tenebrosa: de nada adiantaria os avanços materiais e a evolução da ciência se
não houvesse a pertinência dos valores humanitários e de altruísmo.
Todavia, Baçú e outros bondosos ocultistas, exemplos de erudição, sabedoria e
sentimento humanitário, poderiam ajustar novamente o comportamento da humanidade.
Eram, em terras brasileiras, o modelo a ser seguido, devendo servir como um arquétipo de
conduta para toda a população. Daí A Capital arrematar: “Oxalá que Deus conserve por
muitos annos a preciosa existencia do distincto professor George Baçú”, para que
continuasse “a prestar á humanidade soffredora os preciosos beneficios do seu
extraordinario poder, e para que tão admiravel conjuncto de virtudes seja a licção e o

598
Idem, “A A Capital entrevista o professor George Baçú”, 22 de outubro de 1914.

164
exemplo de como devemos preencher o nosso destino sobre a terra, isto é, praticar sempre o
bem”599.
Como resultado, além de grandes filantropos, desprendidos do egoísmo materialista e
portadores de um sentimento humanitário de grandes proporções, os estudiosos e praticantes
do ocultismo também apareciam nas páginas do diário como pessoas de conduta moral
elevada e incontestável, ao contrário daqueles que se dedicavam às práticas mágico-religiosas,
os quais se caracterizariam, conforme vimos anteriormente, como devassos e mentirosos,
ganhando a vida por meio de embustes. A pitonisa Madame Magdar, por exemplo, foi
considerada uma “senhora distinctissima, possuidora de elevados dotes moraes”600. Já em
relação ao professor Baçú, A Capital registrou que um “dos traços mais sympathicos da sua
nobre individualidade consiste na modestia e na sobriedade que o caracterisam, e toda a sua
existencia, nos menores actos, é um exemplo vivo de moralidade e de perfeição”601.
Essa legitimação dos métodos de Baçú e dos demais ocultistas revela outro aspecto
curioso do jornal, qual seja, a aceitação de práticas de cura diferentes da ciência médica
oficial, que, naquele início de século, procurava se impor sobre a população. O diário, longe
de ser um defensor ferrenho da categoria médica diplomada pelas academias oficiais de
ensino, não apenas taxava-a de gananciosa, devido ao alto valor cobrado nas consultas – em
contraposição ao desprendimento do professor ocultista em relação ao dinheiro –, como
também punha em xeque a eficácia da medicina oficial, se comparada a todo o aparato teórico
do ocultismo, cujas idéias e práticas eram noticiadas como algo indubitável:

São os medicos que pensam fazer fortuna e que gritam porque ainda não encheram
os bolsos! Levam a vida inteira na incerteza a consultar formularios, apprendendo
quase sempre e receitando xaropadas e drogas que contaminam o organismo
humano, porque para os srs. medicos, em geral, a medicina é ainda uma sciencia
empirica.602

Os procedimentos do Serviço Sanitário igualmente eram questionados, sofrendo


severas críticas. Certa feita, defendendo George Baçú, A Capital arrematou: “O Serviço
Sanitario lance as suas vistas para os hoteis, onde não se tomam as refeições sem ser
rodeados de mosquitos, transmissores de varias doenças”603, e também “que fiscalise
diversas ruas desta capital; onde ninguem póde passar sem um lenço ao nariz, devido ao máu

599
Idem, Ibidem.
600
Idem, “Mme. Magdar”, 3 de fevereiro de 1915.
601
Idem, “Ainda o professor sr. George Baçú”, 3 de setembro de 1914.
602
Idem, “A A Capital entrevista o professor George Baçú”, 22 de outubro de 1914.
603
Idem, Ibidem.

165
cheiro que dellas se exhalam!”604. Inclusive, em contraposição à serenidade do professor
ocultista, o serviço foi criticado pela sua truculência no trato com a população por ocasião da
vacinação: “Melhor será que o Serviço Sanitário se preoccupe mais com a saúde publica,
principiando a ensinar, delicadamente, ao povo vaccinar-se, sem vexame, violencia!”605.
Isso não significa que havia uma propaganda extensa de práticas alternativas de cura,
entretanto, A Capital detinha uma postura um tanto aberta e flexível para novas maneiras de
tratamento de enfermidades, posicionando-se contra o monopólio do exercício de sanar os
enfermos, desejado avidamente pela categoria médica, de modo que, se considerasse tal ou tal
“arte de curar” divergente da medicina acadêmica um método lídimo, defendia-a das críticas
dos doutores formados pelos cursos oficiais.

3.4. Espíritas: entre a magia enganadora dos incautos e a legítima religião


para a reforma moral da sociedade

Após o acolhimento das idéias de Allan Kardec por intelectuais e profissionais liberais
no último quartel dos Oitocentos, logo nos primeiros anos do século XX, uma polêmica em
torno do espiritismo emergia: tratava-se do artigo 157 do Código Penal606, que criminalizava a
sua prática e, junto com os artigos 156 e 158, foi objeto de inúmeras discussões entre os
magistrados no Rio de Janeiro. Segundo Yvonne Maggie, até o ano de 1940, havia três
posições, por parte de juízes, advogados e criminalistas, no que concerne a esses artigos e às
práticas de feitiçaria, curandeirismo e espiritismo. A primeira, concordando com os três
artigos, afirmava que toda “arte de curar” não baseada nos preceitos da medicina oficial
deveria ser considerada fora da lei, por ser prejudicial à saúde pública. A segunda procurava
abrandar as suas disposições, defendendo que alguns eram adeptos de religiões verdadeiras –
devendo ser protegidos – e outros agiam para iludir o povo – devendo, assim, ser perseguidos
–, além de afirmar que nem todos os espíritas eram charlatães, existindo o “verdadeiro
espiritismo” e o “falso espiritismo”. Por fim, a terceira posição considerava os três artigos
inconstitucionais, visto que estariam de encontro à liberdade profissional e religiosa garantida
pela Constituição. Os defensores do espiritismo baseavam-se na segunda linha de
argumentação.
Desse modo, a história do espiritismo esteve marcada “por um lento processo de
legitimação junto aos órgãos oficiais, sobretudo nas batalhas travadas nos fóruns do Rio de

604
Idem, Ibidem.
605
Idem, Ibidem.
606
MAGGIE, Yvonne, op. cit., pp. 87-89.

166
Janeiro por juristas renomados como Viveiros de Castro e Macedo Soares”607.
Reconhecendo sua legitimidade enquanto religião, e amparados pelo artigo 72 da Constituição
da República, o qual permitia a liberdade de cultos, os defensores da doutrina espírita
afirmavam a legalidade de sua prática, procurando isolar o “espiritismo científico”, “puro” e
fiel às idéias de Kardec, do espiritismo de caráter popular, que se amalgamou com os ritos de
origem afro-brasileira, deturpador, segundo os mesmos, do “verdadeiro” espiritismo
kardecista.
A matriz científica do movimento espírita não foi a única a obter sucesso. Com o
passar do tempo, o espiritismo proliferou também entre as camadas populares. O ecletismo de
sua doutrina permitia adequações às mais diversas tradições religiosas, desde o catolicismo
até os ritos afro-brasileiros. O espiritismo, além de não se colocar frontalmente contra o
catolicismo, possuía certos elementos em comum com as demais correntes que possibilitavam
sua união com práticas e crenças de origem afro-brasileira e tradições do catolicismo popular
e do curandeirismo, tais como “a possibilidade de comunicação com o sobrenatural através
dos transes e da mediunidade, a crença na imortalidade da alma, a utilização de
magnetismos para os diagnósticos e exorcismos dos infortúnios e doenças”608. Em outras
palavras, houve um processo de sincretismo entre elementos advindos do espiritismo, as
fórmulas da magia ibérica e indígena e, principalmente, os cultos afro-brasileiros, o que
implicou uma reelaboração de crenças e ritos religiosos, bem como o surgimento de novas
religiões, caso da umbanda, para citarmos um exemplo.
E foi exatamente o espiritismo sincretizado com as crenças afro-brasileiras que os
defensores da legalidade da doutrina espírita rejeitavam, considerando-o um “baixo
espiritismo”, em contraposição ao “verdadeiro” ou “alto espiritismo”. A utilização e
definição dessas categorias ocorreram principalmente ao longo das décadas de 1910 e 1920,
nas inúmeras e polêmicas discussões sobre os artigos 156, 157 e 158 entre os magistrados,
além de tais classificações serem encontradas nos registros policiais da cidade do Rio de
Janeiro, a partir de 1920, em que o termo “baixo espiritismo” aparecia, geralmente, associado
à acusação de exercício ilegal da medicina, sendo empregado em situações nas quais se
pretendia tirar proveito da credulidade da população609.

607
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez, “A mercantilização da magia na urbanização de São Paulo, 1910-
1940”, op. cit., pp. 25-26.
608
Idem, Ritos de Magia e sobrevivência: sociabilidade e práticas mágico-religiosas no Brasil (1890-1940), op.
cit., p. 97.
609
Cf. GIUMBELLI, Emerson. “O ‘baixo espiritismo’ e a história dos cultos mediúnicos”. Horizontes
Antropológicos, Porto Alegre, ano 9, n. 19, 2003, pp. 255-258. Para este antropólogo, a definição quanto a
grupos e doutrinas legítimos ocorre não no plano da jurisprudência, como afirma Yvonne Maggie, mas sim na

167
Em fins da década de 1920, foram definidos, entre juízes e autoridades policiais, os
conceitos de “alto espiritismo” e “baixo espiritismo”. O primeiro representaria a religião
protegida pelo Estado, “culto semelhante aos demais e livre, inspirado nos nobres princípios
da caridade, envolvendo pessoas instruídas de elevada condição social”610, designando
algumas vertentes do espiritualismo, nomeadamente o espiritismo científico, o sonambulismo,
o hipnotismo, o magnetismo animal e ramos do ocultismo oriental. Já o segundo concernia ao
espiritismo popular, equiparado à feitiçaria e ao curandeirismo, sendo, portanto, enquadrável
no Código Penal como ato “despido de moralidade e motivado por interesses escusos,
envolvendo pessoas desclassificadas socialmente e ignorantes”611. Como resultado, de um
modo geral, era consenso que a simples prática decorrente da crença nas idéias kardecistas
não poderia constituir crime. Porém o artigo 157 não estaria revogado, pois o espiritismo, no
entendimento de juristas e das autoridades policiais, poderia acarretar outros tipos de atos
dolosos contra a pessoa – caso seu exercício resultasse em dano à saúde de outro indivíduo –
ou contra a propriedade – se houvesse finalidade de obtenção de lucros ilícitos, como no
crime de estelionato. “Era fundamental, enfim, verificar a ocorrência do exposto na segunda
parte do artigo: ‘(...) despertar sentimentos de ódio ou amor (...)’”612.
Some-se a isso o fato de que, ao longo da segunda metade do século XIX, o
espiritismo foi objeto de especulações por parte do pensamento médico, sendo tema de
discussão na Academia Imperial de Medicina por inúmeras vezes. As práticas de cura de
espíritas nunca foram bem vistas pela categoria médica. Em sua opinião, o espiritismo
constituiria mais um caso de charlatanice. Em primeiro lugar, porque charlatão seria
exatamente aquele que desrespeitava os códigos da medicina e que ia de encontro aos seus
métodos, considerados a expressão do pensamento racional; e, em segundo, porque a doutrina
espírita seria irreligiosa, uma superstição. Com efeito, as práticas de cura com base na crença
espírita não fariam parte da medicina legítima, além de entrar em conflito com as crenças e
idéias da religião oficial do Império613.
No findar do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, época de
consolidação da Medicina Legal e da Psiquiatria, as acusações de charlatanismo foram as
mesmas. Eram condenadas as formas de tratamento de doenças através de passes, de orações,

lógica da ação conduzida pelos agentes responsáveis pela repressão aos crimes contra a saúde pública.
Entretanto, por não constituir-se em uma discussão essencial para os fins desta pesquisa, não nos
aprofundaremos nesta polêmica.
610
NEGRÃO, Lísias, op. cit., p. 57
611
Idem, Ibidem.
612
SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore, pp. 88-89.
613
GIUMBELLI, Emerson. “Heresia, doença, crime ou religião: o Espiritismo no discurso de médicos e
cientistas sociais”. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 40, n. 2, 1997, pp. 37-39.

168
da desobsessão e da homeopatia, bem como da ação de médiuns receitistas e curadores.
Porém, uma nova questão emergia: a associação entre espiritismo e loucura. A primeira
publicação acerca deste assunto data de 1896: trata-se do relatório de atividades do Hospício
do Juquery, escrito pelo seu diretor, Franco da Rocha, o qual afirmava ser o espiritismo a
causa do aumento do número de indivíduos tomados pela loucura614.
Os debates sobre a associação entre a perda do juízo mental e o espiritismo cresceram
entre os médicos: conferências, teses e artigos foram apresentados às faculdades de Medicina
do Rio de Janeiro e de São Paulo, procurando comprovar o desenvolvimento de transtornos
mentais em decorrência da crença nas idéias kardecistas. Para grande parte dos psiquiatras,
aqueles acometidos pela loucura em virtude da presença em centros espíritas eram
desequilibrados, de baixa instrução e tendentes ao misticismo615, sendo que três grupos seriam
predispostos em potencial, a saber, os pobres, pois estes, segundo os médicos, por sua
ignorância, necessitavam encontrar alívio e consolo para seus males; os negros, pelo fato de
os transes de possessão em seus cultos se assemelharem à mediunidade espírita, além de sua
pretensa instabilidade emocional e inferioridade cultural, pensamento bem ao gosto das
teorias raciais do século XIX; e as mulheres, por serem consideradas psicologicamente
debilitadas, e, por isso, propensas a crises histéricas616. No mais, de acordo com os
psiquiatras, além de acarretar a loucura nos consulentes dos médiuns, o espiritismo seria
capaz de induzir os indivíduos à prática do estupro, do homicídio, do suicídio e da
desagregação do ambiente familiar.
No diário A Capital, inicialmente, durante a década de 1910, o espiritismo não era
uma crença muito bem aceita, sendo associado a uma prática malsã à saúde mental. Exemplo
disso era um fait divers publicado na edição do dia 6 de março de 1914, em que se afirma ter
sido a presença em sessões espíritas o motivo da completa perda do juízo e, como
conseqüência, do suicídio do cabo José Félix Filho, pensamento coadunável com as idéias de
grande parte dos psiquiatras da época:

Triste fim de um espiritista

Um cabo, suicidou-se, hoje no Quartel do 2.o Batalhão

614
ALMEIDA, Angélica Aparecida Silva de, op. cit., p. 111.
615
Na definição de Franco da Rocha, misticismo “é um estado da alma em que se acredita haver em todos os
phenomenos do universo a manifestação de potencias occultas que em vão se procura adivinhar ou interpretar,
pois entre os phenomenos tudo é mysterio, dependente da vontade de entidades superhumanas”. O Estado de S.
Paulo, “Psychologia das superstições”, 19 de novembro de 1922.
616
Idem, Ibidem, pp. 135-146.

169
Hoje, às 6 horas da manhã, a policia Central recebeu communicação, que no quartel
do 2.o batalhão, proximo ao da Luz, um cabo havia se suicidado.
Apos a communicação compareceu ao local o delegado de serviço dr. Teophilo
Nobrega, seu escrivão capitão Amancio, e o médico legista dr. Paiva Lima.

No Local
Sobre um canto da sala de secção de reserva de metralhadores, achava-se um
cadever em decubito dorsal, com o queixo encostado no peito, o braço esquerdo
estendido ao lado do corpo e anti-braço em flexão sobre o corpo.
O braço direito estava semi-extendido, segurando a extremidade de um cano de
carabina <<Mauser>>.
As pernas estavam destendidas, tendo o dedo grande do pé esquerdo preso ao gatilho
da mesma arma.
Vestia camisa branca e calça de brim branco.

Quem era o suicida

O suicida era o cabo José Felix Filho, de 25 annos de edade, casado, n. 118 da 1.a
companhia do 2.º batalhão, residente á rua Madeira, n.52.
José, conforme declararam varios seus collegas era um bom soldado e bom chefe de
familia.
Ultimamente soffria das faculdades, devido a sua continua frequencia a sessões
espiritas.
Hoje de manhã, ás 6 horas entrou ao quartel, apparentemente calmo e armando-se de
seu <<Manuser>>, amarrou um barbante no cano da carabina e no dedo grande do
pé direito.

O exame cadaverico
O dr. Paiva Lima, procedendo o competente exame, notou que o cadaver
apresentava um ferimento de forma arredondado, cordes denegridos e reentrantes,
tendo meio centimetro de diametro e grande parte anterior do pescoço, denegrido
pela polvora.
O mesmo orificio acha-se a esquerda da linha mediana, bem acima da região sub-
maxilar, tendo soffrido uma direcção de baixo para cima e para traz, indo sahir o
projetcil na região occipital a esquerda da linha mediana; orificio dê forma irregular,
com despedaçamento e expulsão de fragmentos do cerebro, cujo orificio tinha dois
centimetros de extenção.
A morte do pobre cabo, foi produzida em consequencia de fractura da base do
craneo com hemorrhagia e despedaçamento do cerebro.

O encontro de duas cartas

O dr. Theophilo Braga, 2.º delegado auxiliar, procedendo nas competentes


diligencias encontrou no bolso da calça do suicida duas cartas, que reproduzimos
fielmeote [sic].

1.a carta
“Aos meus prezados amigos e collegas”. Peço-vos desculpar-me pelo que acabo de
praticar, si lhes offendi peço desculpar-me; faço isso não por desgosto da vida, mas
sim para cumprir meu destino, mesmo assim serei vosso amigo.
Ultima vez que assino.
José Felix Filho.
S. Paulo, 14 de fevereiro de 1913.”

2.a carta
“A todos
Á minha mulher Maria Gozzo, rua Madeira 52 – Pague tudo quanto deve e orae por
mim – aos meus amigos – Perdoae-me as maldades que fiz, não é por maldade, sim
por cumprir uma sorte.
Não se esqueçam da minha mulher, rua Madeira 52.

170
A Calla é marca R.M.D.R. 18 98, e não B.M.K 18-98 do fuzil.”

O cadaver no necroterio da Central

O cadaver do pobre Jbsé Felix José [sic], foi transportado para o necroterio da
policia central.617

Nesse texto, é curioso notar os expedientes de um jornal sensacionalista para


dramatizar o evento. Em primeiro lugar, o leitor é transportado àquela cena horrível, por meio
da descrição detalhada do ocorrido, como se presenciasse a desgraça que ocorrera no quartel:
a posição em que o corpo se encontrava, o trajeto da bala e a narração do momento trágico do
disparo de José Félix contra si – alguns pormenores, inclusive, poderiam até se constituir em
invenções do jornalista: por exemplo, se ninguém presenciou o suicídio de José, como se pode
afirmar que ele entrou no quartel às seis horas e, principalmente, aparentando calma? Em
segundo, a transcrição das cartas, pois uma missiva consiste em um espaço reservado para o
diálogo íntimo entre o missivista e o destinatário, propício para a confissão e o pedido de
desculpas de José aos queridos amigos, de modo que a publicação das mensagens por ele
escritas acaba por criar uma intimidade do leitor com o personagem principal da notícia, na
medida em que mostram o desespero e a tristeza profunda de José, bem com o carinho que
possuía por sua amada esposa, materializado no reiterado pedido para que alguém cuidasse de
Maria Gozzo. E, por fim, a caracterização do suicida como excelente chefe de família e
soldado exemplar, tornando, assim, a morte do José Félix ainda mais trágica. Desse modo, o
espiritismo de forma alguma foi apresentado como algo positivo, pois não apenas teria sido
responsabilizado por um suicídio, como também pela destruição de uma família, que não mais
veria o pai carinhoso e atencioso, pela desestabilização do batalhão, o qual perdera um dos
mais competentes, jovens, dedicados e promissores soldados e por prejudicar a segurança do
País, já que este teria um defensor a menos do território brasileiro.
Outro interessante fait divers, ligando as crenças espíritas à perda do juízo mental,
ainda que com conseqüências menos funestas, narrava as desventuras do caboclo João
Baptista Queiroz, cujo título não poderia ser mais sugestivo: “O mal do espiritismo”:

- Dá licença?
- Entre.
E um caboclo maltrapilho, mas bem falado, assomou á porta. Vinha queimado pelo
sol. Seus olhos vivos faiscavam.
Aquella exquisita figura interessou-nos. Atedemol-o. E elle assim se espraiou:

617
A Capital, “Triste fim de um espiritista – Um cabo, suicidou-se, hoje no Quartel do 2.0 Batalhão”, 6 de
março de 1914.

171
- Um escandalo, sr. redactor, fui miseravelmente roubado por um advogado.
Avançaram na minha herança. Judiaram de mim.
- Conta lá isso direito. Como se chama? Donde veiu? Onde mora?
- João Baptista de Queiroz, seu creado. Tambem me chamo João Zimbra; é que meu
pae foi o José Ferreira Zimbra Queiroz, um portuguez, fazendeiro outr’ora em
Descalvado. Morreu, ha muito, o coitado. Minha mãe, que ainda é viva, mora em
Bocayuva, Estado de Minas Geraes e tem cerca de 40 annos. Tenho mais irmãos;
moram em Campinas, uns e os outros em Minas. Fui criado em Descalvado; mas
sahi de lá aos 12 annos. Depois fui tambem para Minas, em Bocayuva.618

Em seguida, João Baptista contou o que ocorrera. Ciente de que seu pai havia lhe
deixado uma herança, em maio de 1915 fora à cidade de Descalvado para saber mais sobre o
assunto. Ali, disseram-lhe que procurasse um senhor de alcunha Fabião. E foi então que,
segundo Baptista, o roubo começara: Fabião, em conluio com o tabelião Camargo e o juiz
local, roubou sua herança. Baptista bolou um plano: furtaria algo para ser preso, e, assim, ter a
chance de prestar queixa e denunciar todo o roubo para as autoridades policiais. Na loja de
nome Alfandega, surrupiou um lenço, mas o dono ficou com pena do mesmo, deixando-o
fugir, contudo, tentou mais uma vez:

- E foi roubar mais adeante?


- Fui. Fui ao Bazar dos 500 reis. Nesta occasião, o tabellião e o Fabião me espiavam
da janella do cartorio. Era a hora da missa. Tinha gente que não acabava mais. A
occasião não podia ser melhor. Entrei no Bazar. E, fui logo a um vidro de extracto
de 5$000; o capitão Jayme viu. Chamaram a policia e, oh! felicidade a minha, fui
preso!
O caboclo neste ponto pediu um copo de agua. Arquejava, cansado. Tambem falava
como um motu-continuo...
Depois prosseguiu:
- Rolei pelo chão com os <<fardados>>. Afinal, chegamos á Cadeia. E metteram-me
na enxovia. Protestei. Queria ficar na sala livre. Queria contar para todos os caso da
minha herança. Eu não podia ser preso na enxovia. Tenho privilegio?
- Tem privilegio?
- Sim. Vem de d. Pedro II. Elle era muito amigo da minha mãe... Elle estava em
Descalvado... Quando se fez a Republica, quem fez a constituição fui eu!
- Sim?
- Oh! singular...
- É verdade. D. Pedro II, veiu, esteve na egreja de N. S. do Belém e vendo o menino
nos braços da Virgem, deu-lhe uma corôa, dizendo que aquelle menino era eu!
-?
- Não sabe que sou espirita?
- Ah! é?...
- Sim. E lá me contaram tudo. Eu nem sabia. Agora, recordo-me que, naquella
occasião, era muito pequenino. Tenho 26 annos...
O pobre caboclo começou a delirar. Era mais uma victima do terrivel fanatismo
espirita! Apiedamo-nos delle. Aquella historia de herança, os furtos, os privilegios,
d. Pedro e a constituição – nada mais são, por certo, que frangalhos do cerebro tr’ora
[sic] são deste infeliz transviado.
Mas o caboclo ainda queria falar:
-Tenho mais uma coisa a dizer. Exportaram-me de Descalvado para cá!
-Exportaram-no?

618
Idem, “O mal do espiritismo”, 3 de dezembro de 1915.

172
-Sim! é verdade. Quando fui preso, o sargento do destacamento me disse que o meu
dinheiro estava com o presidente da Republica, no Rio de Janeiro. E aconselhou-me
que fosse buscal-o. Concordei. Deram-me passagem de graça para S. Paulo. Aqui
cheguei, acompanhado pelo meu estado maior, composto de alguns soldados.
Desembarquei na Luz. Ahi, pediram que eu esperasse que vinha um trem especial,
para me levar ao Rio. E esperei,; esperei, esperei até hoje! Já fazem dias; e... nada!
Por isso é que vim á A CAPITAL.
[...]
E, ao estendermos a mão ao caboclo, sob promessa de attendel-o, vivissima luz
espalhou-se nos seus grandes olhos. O homem estava possesso. Coitado! Uma onda
de tristeza invadiu a nossa sala. Todos estavam compadecidos do infeliz, que
perdera a luz da razão, na treva duma diabolica sessão de espiritismo...619

Assim foi narrado o drama vivido por João Baptista, caracterizado como uma vítima
do cruel espiritismo. A loucura causada pela crença fervorosa na doutrina era tal que o fez
acreditar, com extrema convicção, que possuía privilégios – justo ele, um pobre “caboclo
maltrapilho” – ou até mesmo pensar ser alguém muito importante, considerando-se amigo de
D. Pedro II. Novamente, o expediente sensacionalista é empregado: em primeiro lugar, a
riqueza de detalhes, trazendo o leitor para a cena do ocorrido, como se estivesse presente; e,
em segundo, os termos exagerados, pois não se tratava apenas de um caboclo, mas sim de um
“pobre caboclo”, um “infeliz transviado”, e mais do que uma reles sessão espírita, era uma
“diabolica sessão de espiritismo”.
Além de pretender que o público leitor visse toda a desgraça de Baptista, para que
sentisse compaixão pela vítima da crença nas idéias kardecistas, o texto não deixa de possuir
um alerta, visto que se expõe com riqueza de detalhes a tragédia de um “infeliz” homem que
sofria sem saber a situação humilhante e caricata pela qual estava passando em decorrência de
seu comportamento vexatório, como a felicidade enorme ao ser preso e acreditar piamente ser
um indivíduo de extrema importância – daí, para Baptista, nada mais natural que o valor
pecuniário a receber estivesse sob a custódia de uma personalidade à sua altura, no caso, o
Presidente da República. No mais, lembremos, o inconformismo era devido a um motivo
maior, pois, no pensamento do caboclo a questão era: como poderiam roubar e enganar uma
pessoa tão ilustre como ele? Afinal, ressaltemos, Baptista não se dirigiu à redação d’A Capital
pelo simples fato do embuste, mas sim porque considerava um absurdo fazê-lo esperar tanto
tempo pelo trem especial. Tal fato constituía-se em um ultraje: ele necessitava,
desesperadamente, falar com o Presidente. Não poderia se atrasar, afinal, o principal chefe de
Estado, certamente, estaria aflito, ansioso por recebê-lo de braços abertos, e ter a honra de
entregar-lhe sua herança. Assim, adverte-se o leitor para o perigo das crenças baseadas no

619
Idem, Ibidem.

173
espiritismo, as quais, além de acarretar a perda da razão, poderiam fazê-lo passar por
situações ridículas.
Além de causador de perdas do juízo e suicídios, o espiritismo, mais uma vez bem ao
gosto de psiquiatras opositores a essa doutrina, era rotulado como prática charlatanesca. Prova
disso é o caso de Estanislau Jacob Arantes, morador da Rua Francisca Miquelina, número 45.
Segundo o jornal, certa feita, o lavrador de Bom Sucesso, Minas Gerais, Vicente Luiz Alves
viajou para a cidade de São Paulo, hospedando-se no Hotel Belo Horizonte, junto com sua
esposa Maria Julia Vilella, para que os médicos do Instituto Paulista pudessem curá-la de uma
enfermidade. Entretanto, como Maria Julia não obteve melhoras, o lavrador mineiro, seguindo
o conselho de Lasmo Lacerda, empregado do hotel, levou-a para a residência de Estanislau, o
qual, após examinar a esposa, alegou que o processo de cura seria longo, sendo, portanto,
mais econômico que Vicente alugasse uma casa. Este concordou com o médium, mudando-se
para a Rua S. Amaro, 102.
Dias depois, Estanislau, acompanhado por José Scobar e por uma moça de nome
Paulina Chaves, dirigiu-se à casa do lavrador para uma sessão espírita. O médium sentou-se a
uma mesa, junto com Vicente, acompanhado por alguns parentes: seu pai, José Alves de
Lima, seu cunhado, Juvenal José Queiroz, e seu irmão, Pedro Alves de Lima. Na mesa,
Estanislau pôs três velas, três copos com água e uma caçarola, contendo arruda, alho, fumo e
água. Então,

Consultando os “espiritos” da sala, Estanislau disse aos presentes que era necessario
collocar sobre a meza a quantia de 1:500$000, para que o remedio produzisse o
effeito desejado. Os “otarios”, crentes nas palavras proferidas, fizeram entre si um
rateio, collocando o dinheiro sob um copo.
Estanislau embolsou o dinheiro; deu á doente alguns vidros contendo agua salgada
e... retirou-se, dizendo, antes, ao lavrador, “que a cura da esposa era certissima”!
O lavrador, dias após á celebre consulta, percebeu ter cahido num “conto do vigario”
e, contricto e cabisbaixo, foi ao dr. Mascarenhas queixar-se.620

Em outro interessante fait divers veiculado no dia 7 de março de 1917, novamente um


médium foi representado como charlatão. O título revela-nos o conceito que o jornal possuía
acerca dessa nova doutrina: “No dominio da magia”. Lembremos que, como observado em
páginas anteriores, o termo “magia” era associado a práticas ilegais e charlatanescas, devendo,
portanto, ser objeto de intensa repressão policial. Por conseguinte, integrando os domínios da
magia, o espiritismo seria também um crime, um método utilizado para obtenção de bens
pecuniários por meio da exploração da crença alheia, tal como exposto no artigo 157 do

620
Idem, “Uma sessão espirita por 1:500$”, 22 de julho de 1918.

174
Código Penal. No mais, o próprio subtítulo, já indicando o que seria narrado, reforça tal
conceito: “Os ‘centros’ espiritas e a credulidade popular – Feiticeiros e chiromantes”. Em
uma dada ocasião, inclusive, para defender George Baçú, investigado pela polícia sob a
acusação de exercício ilegal da medicina, o periódico alegou que o professor ocultista “não se
intitula medico, não usa talismans, não é espirita [grifo nosso]”621.
No fait divers em questão, foi narrado um encontro, segundo o texto, meramente
casual entre o funcionário público Leoncio Caldas, que acabara de obter a receita de um
remédio em um centro espírita, e alguns repórteres do jornal:

Oito horas da noite. Em uma das travessas da rua Carneiro Leão, no Braz, fomos
encontrar, escondido sob as abas de um enorme chapeu de feltro, o sr. Leoncio
Caldas, funccionario publico em vesperas de ser aposentado.
- Por aqui, meu velho?
Elle piscou os olhos cançados, afagou uns restos de barbas brancas e sorriu
mysteriosamente. Depois, accrescentou, accendendo um cigarro:
- Fui lá buscar uma receitazinha.
- Receita? Lá, onde?
- Ora! Ali, no centro...
Ficamos, então, sabendo que ali por perto existia um <<centro>> que fornecia
receitas. Era uma reportagem que nos apparecia <<dos pés para as mãos>> e não
deviamos perdel-a.
- Mas, <<seu Leoncio>>, o Centro dá receitas...
- E remedios, tambem, mas, só para os pobres... Eu, graças a Deus ainda posso
compral-os... Contento-me com a receita, apenas.
Varias mulheres, todas ellas italianas, passeavam aos grupos, conversando alto.
O velho Leoncio, envolvendo-as num mesmo gesto largo, foi nos dizendo:
- Todas ellas vêm de lá... Aquella de lá de blusa clara tem uma filhinha doente... Vae
já com os remedios necessarios.
- Mas, quem é que dá os remedios?
- Quem dá os remedios? Ora, esta é boa! É o <<medium>>...
E accrescentou:
- Para o <<medium>> não ha segredos... Eu que aqui estou, estive para <<bater as
botas>> duas vezes...
Cancei-me de dar dinheiro aos medicos da Avenida Rangel Pestana e da cidade e
nada! Um dia, disseram-me que no Belemzinho havia um feiticeiro que curava. Fui
lá e fiquei peior. Recorri, depois, ao nosso Centro e aqui estou, graças a Deus, forte
e rijo!
Quiz ver a receita. Dizia assim:

<<Para o irmão Leoncio.


Mercurio Soluvel para 15 dias>>

E, a um canto:
<<Procure a Pharmacia ***, á rua ***.>>
A um canto, estavam designados o nome da pharmacia e a rua.
- Isto, <<seu Leoncio>>, não será... exploração?
O velho teve um gesto de indignação: agitou a mão espalmada no ar, saccudiu os
restos da barba branca e, num -<<Passe bem!>> rispido e secco, despediu-se de nós.
Voltámos satisfeitos. O passeio fôra bem aproveitado.622

621
Idem, “A policia de Santa Ephigenia e o professor Baçú”, 19 de outubro de 1915.
622
Idem, “No domínio da magia”, 27 de março de 1917.

175
Aqui, a melodramatização foi centrada na dramatis personae descrita por Barthes e ao
qual nos referimos no primeiro capítulo. Apenas para relembrarmos, de acordo com o
semiólogo francês, quando esse tipo de personagem se faz presente, a ênfase recai sobre suas
emoções e seus sofrimentos, possuindo a função de realçar a dramaticidade do fato narrado,
na medida em que a dramatis personae consiste em estereótipos que simbolizam a fragilidade
e a pusilanimidade humana, nomeadamente, as figuras da criança, da mãe e do velho. No caso
do encontro entre o funcionário público e os jornalistas d’A Capital, os dois primeiros foram
utilizados. Primeiro, Leoncio, um senhor, cuja descrição da feição e das características físicas
(“olhos cançados”, “restos de barbas brancas”) denota sua avançada idade, bem como sua
fraqueza, e, em seguida, de forma mais discreta, as mães de origem italiana, esperançosas de
que os medicamentos indicados resolvessem o problema da enfermidade de seus filhos e cuja
alegria pela obtenção dos remédios, bem como a convicção de sua eficácia, impedia de se
darem conta do que o jornal caracteriza como exploração. Em conluio com dono(s) de uma
farmácia para o alcance de lucros por meio de abuso da boa-fé de idosos e mães desesperadas
pela cura dos filhos, nem de longe os médiuns foram, no diário, inicialmente, caracterizados
como indivíduos confiáveis de boa índole. Pelo contrário, eram equiparados a feiticeiros e
curandeiros.
Contudo, ao longo da década de 1920, essa representação foi matizada. O diário
começou a ceder algumas de suas colunas para a divulgação de textos da lavra de espíritas
que tencionavam legitimar ao leitor as idéias kardecistas, caso de Roberto Daniel, o qual teve
veiculado seu artigo, em que refutava a associação, por parte de alguns membros da Igreja
Católica, entre crença no espiritismo e o suicídio623. Já na edição do dia 16 de junho de 1920,
J. Lawrence, pseudônimo de João Lourenço de Souza624, publicou um artigo no qual alegava
ser inconstitucional a criminalização do espiritismo no Código Penal. Afirmou também que,
ainda que muitos seguidores da doutrina kardecista pudessem exercer a prática ilegal da
medicina, não era justo que todos os seus adeptos fossem tratados a priori como charlatães.
Em outras palavras, para Lawrence, a fiscalização era correta e necessária, mas não a
repressão a todos os espíritas sob a idéia de que qualquer um deles tinha a intenção de
subjugar a credulidade pública, pois outras profissões, como as de médico, banqueiro,
advogado ou engenheiro, também “têm servido, em innumeros casos, como meios de fraude,

623
A Capital, “O espiritismo e o suicidio”, 10 de março de 1922. Sobre essa e outras acusações da Igreja
Católica contra o espiritismo, ver COSTA, Flamarion Laba da. Demônios e anjos (O embate entre espíritas e
católicos na República brasileira até a década de 60 do século XX). Curitiba: Tese de Doutorado em História,
UFPR, 2001.
624
Cf. Diário Official dos Estados Unidos do Brazil, 27 de fevereiro de 1910, p. 19.

176
charlatanismo, homicidio, assalto á bolsa alheia; os crimes que assim ficam impunes por
acusa do diploma sendo muito maiores que os dos ladrões ou homicidas sem hypocrisia”625,
de maneira que, se tudo devesse ser proibido de antemão com o intuito de “se acautelar a
sociedade, tambem os automoveis, os aeroplanos e as estradas de ferro deviam ser
prohibidos”626.
No mais, em sua opinião, as ações de espíritas e de outros adeptos de formas
alternativas de cura não se enquadrariam no charlatanismo, na medida em que muitos os
procurariam porque as consultas de médicos custavam um alto valor, ou porque os hospitais
públicos eram insuficientes, ou porque os casos dos enfermos seriam aqueles que os
profissionais formados pelas tradicionais academias “não querem tratar, não sabem, ou de
que não têm pratica ou em que já fizeram tentativas inuteis, apesar de serem curaveis pelo
espiritismo ou suggestão, de que ha innumeros exemplos”, não existindo, portanto,
charlatanismo “nos que se propõem a curar o que para a sciencia official é incuravel”627.
Lawrence também não deixou de tecer críticas à medicina acadêmica, chegando a pôr
em xeque algumas de suas práticas, como, por exemplo, a vacinação contra a varíola.
Segundo a linha de raciocínio do referido espírita, era absurda não apenas a sua
obrigatoriedade como também a certeza de sua eficácia, pois o contágio ocorreria não devido
ao fato de o indivíduo rejeitar ser vacinado, mas em virtude da falta de higiene em muitos
lugares. Mais do que isso, a própria vacina, em lugar de imunizar a população, poria o
organismo em afinidade com a varíola, estimulando sua propagação, afinal, “sabemos de
muitos casos de pessoa com oito ou mais vaccinas, todas tendo pegado, virem a morrer de
variola da peor espécie”628. E, se a vacina porventura imunizasse alguém, isso aconteceria
apenas porque teria funcionado como “vehiculo de suggestão indirecta”, tendo o médico
logrado incutir no paciente a crença no seu poder de protegê-lo da doença.
Outros adeptos do espiritismo defendiam o caráter científico das idéias de Allan
Kardec. O médium José da Costa Faria, certa feita, publicou uma carta, segundo ele, escrita
sob influência de um espírito cujo nome não quis revelar. A certa altura da missiva, disse ser
o espiritismo uma “realidade sem contestação possivel em sciencia, a cousa mais grandiosa
que existe; sciencia da qual, com a graça de Deus, podes dar as provas que te pedirem, mas
nunca deverão servir para satisfazer curiosidades, e sim para fazer a Caridade”629. Armando

625
A Capital, “O espiritismo prohibido”, 16 de junho de 1920.
626
Idem, Ibidem.
627
Idem, Ibidem.
628
Idem, Ibidem.
629
Idem, “Tribuna espirita”, 31 de agosto de 1921.

177
Guimarães, por sua vez, além de reafirmar a cientificidade da doutrina espírita, lembrou
igualmente sua função de guia ético para a humanidade, ao declarar que o “espiritismo é ao
mesmo tempo uma sciencia de observação e uma doutrina philosophica. Como sciencia
pratica elle consiste nas relações que se estabelecem entre nos e os Espiritos”. Já como
filosofia “compreende todas as consequencias moraes, que dimanam dessas mesmas
relações”630.
O jornal também veiculava notícias ou artigos relatando experiências de intelectuais e
cientistas pertencentes às mais renomadas academias estrangeiras, ora confirmando, ora
questionando os fenômenos espíritas. Desse modo, eram informadas ao leitor as experiências
do jesuíta Campos Maria Heredia, o qual negava a existência do fenômeno da levitação631, e
do catedrático de psicologia professor francês Charles Richet, sócio da Academia de Ciências
de Paris, para quem a manifestação e aparição de espíritos eram verdadeiras632, além da oferta
de vinte e cinco mil dólares, por parte dos editores do periódico Sciencias de Estados Unidos
de Norte America, para aquele que, sem embustes, evidentemente, conseguisse fotografar um
espírito633.
A questão da associação entre a prática do espiritismo e a loucura também foi tratada.
Na edição de 5 de outubro de 1927, por exemplo, veiculava-se a transcrição do artigo de
Leonídio Ribeiro, médico-legista e docente da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro,
originalmente publicado n’O Jornal, do Rio de Janeiro. Neste, Ribeiro acenava para os
perigos sociais das idéias espíritas, as quais

não tem sido uma seita religiosa inoffensiva, porque tem servido, infelizmente, até
agora, para permittir e favorecer o desenvolvimento de um sem numero de perigosas
explorações do grande público, sempre prompto, pela sua boa fé e ignorancia, a
acceitar as mais absurdas crendices, com todo o seu cortejo de perigos e
inconvenientes para a communidade.
É bastante consultar as estatisticas do hospital da Praia Vermelha, desta cidade [o
Rio de Janeiro], e do Juquery, de S. Paulo, para verificar o contingente importante
de doenças mentaes, cujo factor predisponente é o espiritismo actuando
especialmente sobre os individuos degenerados e de pouca instrucção, sem recursos
para resistir a esses phenomenos, tidos pelos leigos e pelo povo como phantasticos e
sobrenaturaes.634

Tendo em vista esse suposto perigo do espiritismo, Ribeiro afirmou que a Sociedade
de Medicina e Cirurgia promoveria um “inquérito” sobre a doutrina kardecista, a ser realizada

630
Idem, “O Espiritismo”, 21 de junho de 1929.
631
Idem, “O espiritismo desmascarado”, 8 de junho de 1923.
632
Idem, “No mundo dos espiritos”, 31 de maio de 1922.
633
Idem, “Será possível photographar a alma dos mortos?”, 7 de dezembro de 1925.
634
Idem, “Os perigos sociaes do espiritismo”, 05 de outubro de 1927.

178
por uma comissão com o intuito de estudá-la, além de iniciar uma campanha para “educar” o
povo, mostrando-lhe os supostos perigos resultantes da presença em sessões espíritas.
Iniciando seus trabalhos, a comissão enviou a um engenheiro, professor da Escola Politécnica
do Rio de Janeiro, e a alguns membros da classe médica o seguinte questionário:

1.o “É v. exa. de opinião que exista fundamento scientifico nos chamados


phenomenos espiritas?; 2.o “Conhece v. exa. factos ou experiencias que
documentem scientificamente o espiritismo?”; 3.o “A pratica do espiritismo póde
trazer damnos á saude mental do individuo?”; 4.o “O exercicio abusivo da arte de
curar pelo espiritismo, acarreta perigos para a saude publica?”.635

As respostas ao breve questionário foram publicadas no referido diário carioca. A


Capital republicou algumas delas. Na edição de 18 de outubro de 1927, o Dr. Amaury
Medeiros, ex-diretor de Saúde Publica em Pernambuco, reafirmou a inexistência de
cientificidade da doutrina espírita, além de afirmar que os indivíduos já predispostos por
“doenças contrahidas ou herdadas, para as perturbações mentaes, muitas vezes podem ser
levados à loucura pelas praticas espiritas, que agem no caso como verdadeiro excitante
especifico”636. Na mesma direção, em 7 de janeiro de 1928, Pedro Pernambucano, docente da
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e diretor do Sanatório do Botafogo, ao responder à
terceira questão, declarou que a “atmosphera que cerca as praticas espiritas, a promessa aos
fieis tumulo e de visões sobrenaturaes, etc., estabelecem um ambiente favoravel a despertar
nos individuos predispostos e suggestionaveis a eclosão de disturbios mentaes, verdadeiros
episodios delirantes, acompanhados de perturbações psycho-sensoriaes”637. Os outros
entrevistados seguiram a mesma tendência, negando a existência dos fenômenos mediúnicos,
os quais poderiam se resumir a três explicações básicas, quais sejam, “fraude, fenômenos já
explicados pela ciência, retirando-lhes o caráter sobrenatural, e outros que, embora ainda
não tenham sido inteiramente desvendados pela ciência, com certeza seriam explicados num
futuro próximo”638. Os resultados do inquérito foram publicados na obra O Espiritismo no
Brasil (1931), da autoria de Leonidio Ribeiro e Murilo Campos.
Em meio à divulgação para o público leitor dos embates envolvendo espíritas, médicos
e membros da Igreja Católica, A Capital, se por vezes duvidava dos fenômenos de levitação
de objetos ou pessoas, mostrou ser favorável à possibilidade de manifestações de espíritos que
apareceriam com o intuito de trazer mensagens ou tratar de acontecimentos futuros. Em certa
ocasião, declarou que os fenômenos psíquicos eram constantemente negados por indivíduos
635
Idem, Ibidem.
636
Idem, “O espiritismo e a sciencia”, 18 de outubro de 1927.
637
Idem, “O espiritismo e a sciencia”, 7 de janeiro de 1928.
638
ALMEIDA, Angélica Aparecida de, op. cit., pp.122-123.

179
“que se não dão ao trabalho de estudar e investigar os factos que se nos offerecem e que
tomamos como sobrenaturaes, quando, nada mais são que uma manifestação da propria
vida, que, não desapparece, que é eterno”639. Em seguida, declarou ainda que os espíritos,
afirmando “essas verdades se veem combatidos pelos atheus, pelos materialistas e até, com
muito vigor, pela propria egreja, que é no entanto, a primeira a offerecer em todos os factos
da sua vida, as provas mais concludentes a favor do espiritualismo”640.
O jornal também mudou sua posição com relação ao espiritismo e seus seguidores.
Embora declarasse, ainda nos primeiros anos da década de 1920, que muitos espíritas eram,
no geral, “os que menos ligam a doutrina do mestre [Allan Kardec], pois são maus,
rancorosos, falladores, mentirosos e calumniadores”641, lembrava que, provavelmente, “um
por cento apenas de espiritas sejam leáes á doutrina”642, indicando, desse modo, que admitia
a existência de adeptos da doutrina kardecista não embusteiros, mesmo que, com exceções,
um espírita “não presta neste ou em outros mundos, pois, os espiritas que se encarnam neste
já foram deportados de outros planetas”643 por serem considerados imprestáveis à sociedade.
Dessa maneira, o diário foi efetuando uma distinção, assim como as autoridades policiais e os
magistrados, entre o que considerava ser o “bom espiritismo” e o “falso espiritismo”:

Pela leitura que procedemos, pelos factos que no decorrer dos estudos encetados
tivemos aso de constatar, propendemos a crêr que o espiritualismo, exercido com
sinceridade e religioso desprendimento, é a seita que para dias mais a dentro dos
séculos, reunirá a maioria, realisando o milagre de conjugar, “au tour” de suas
verdades, legiões e legiões de crentes, sem distinção de especie alguma, nem mesmo
de ordem social. Opinião tão simplesmente. É possivel que a nossa provenha de um
equivoco, o que, aliás, duvidamos.
Entretanto, o espiritualismo mal comprehendido e criminosamente praticado, dá
margem, mais que outras religiões, a torpes explorações que caiam nos espiritos
menos esclarecidos em detrimento da moral que elle encerra com uma sublime
elevação.
Neste caso, é preciso que os verdadeiros espiritas, procedendo como Jesus que
escorraçou os vendilhões do Templo, movam campanhas sem treguas aos intrujões
que servem de um instrumento divinal para que locuplem, amontoando fortuna e
represando bens, que deveriam ter sido applicados a beneficio dos que soffrem e
carecem de assistencia material.644

Em outras palavras, o espiritismo, se praticado de acordo com os princípios de Allan


Kardec, poderia contribuir para a evolução social por meio da caridade e difusão dos valores
morais entre a humanidade. Dito de outra forma, o “espiritismo, porém, bem intencionado,

639
A Capital, “Apparição mysteriosa”, 10 de fevereiro de 1930.
640
Idem, Ibidem.
641
Idem, “Comedia ao ar livre”, 17 de janeiro de 1923.
642
Idem, Ibidem.
643
Idem, Ibidem.
644
Idem, “Falsos espiritas, exploradores das boas situações que se cream”, 26 de abril de 1928.

180
como, de resto, todas as religiões, tem um lado bom, util e pratico”645, fato que não poderia
ser ocultado em virtude de alguns se utilizarem dessa doutrina para fins pecuniários, da
mesma forma que feiticeiros e curandeiros.
Nesse sentido, é válido nesse momento ressaltar que, se havia os exploradores do
espiritismo com o fito de obtenção de dinheiro fácil, no ramo das ciências ocultas poderia
ocorrer o mesmo. Um deles, para citarmos um exemplo, era o conhecido George Baçú. Um
tempo após os vários elogios ao famoso professor, o jornal noticiou que o mesmo fora
multado por exercício ilegal da medicina646 e, breve tempo depois, que o delegado Cantinho
Filho abrira inquérito para investigá-lo647. Ainda nesta notícia, Baçú foi ferrenhamente
defendido, mas, posteriormente, o diário se silencia diante do caso, de forma que,
provavelmente, as acusações tinham fundamento aos olhos do jornal, já que, na edição de 23
de março de 1916, há uma nota com comentários em que não mais são questionadas as
atitudes das autoridades policiais e sanitárias. No excerto a seguir, podemos perceber que
Baçú é já tratado como um mero charlatão: antes possuidor de notável conduta moral,
humanitário, altruísta e solidário, haja vista suas consultas gratuitas e os altos valores em
dinheiro doados, teria se tornado mais um dos exploradores da credulidade pública, pois
começara a cobrar pelas curas. A vida simples, honesta e humilde teria dado lugar à ambição
por mais e mais bens pecuniários, afinal, os “modestos commodos” do hotel foram
substituídos por uma casa alugada. Desse modo, o professor ocultista caiu em descrédito
frente ao referido diário, sendo equiparado a feiticeiros e curandeiros e tornando-se, dali em
diante, apenas mais um dos vários charlatões que infestavam a cidade:

Quando por aqui aportou, certo dia, um senhor moreno e alto, escondendo,
veladamente, seus pequeninos olhos espertos por detraz dum par de oculos,
intitulando-se professor George Baçú e abrigando-se em certo hotel da rua
Brigadeiro Tobias – a nossa população facil e credula, boa e ingenua, acreditou ver
nelle um enviado do setimo ceu...
Era uma romaria constante. E, num vae-vem de gente, dentro em pouco, o famoso
professor, que se dizia occultista, foi enchendo os bolsos e enriquecendo.
Dahi, resolveu, então, abandonar os modestos commodos do hotel, acabar com as
consultas gratis e alugar uma casa da rua Victoria.
Parece, porém, que o professor <<urucubacou>>, ali.
Veiu o Serviço Sanitario, veiu a policia, choveram as contas dos advogados – sendo
que um só delles, que era, então, deputado estadual dissidente, lhe <<comeu>> 20
contos – alarmaram-se os jornalistas, entrou a <<cavação>> de permeio não raro
alliada á <<chantage>> e – zás – dum dia para o outro, Baçú cahiu, cahiu
desastradamente para nunca mais levantar!648

645
Idem, “A exploração do Além”, 22 de janeiro de 1924.
646
Idem, “O professor Baçú foi condemnado”, 21 de setembro de 1915.
647
Idem, “A policia de Santa Ephigenia e o professor Baçú”, 19 de outubro de 1915.
648
Idem, “Onde andará o Professor George Baçú?”, 23 de março de 1916.

181
No que concerne ao espiritismo, o jornal empregava, para distinguir aqueles que
considerava serem verdadeiros espíritas dos indivíduos ligados à vertente popular da doutrina,
vistos como charlatães, termos como “falso espiritismo”, “espiritismo de fancaria” e “baixo
espiritismo”. Por ocasião da veiculação de uma notícia sobre João Lethieri, “que explora uma
casa de mediuns á rua Barão de Iguape n. 91”649, afirmou que “todo o individuo que explora
o espiritismo de fancaria tem, segundo declaram, o dom da videncia”650. Já quando noticiou a
prisão, efetuada pelos inspetores da Delegacia de Costumes e Jogos, de José Teixeira de
Assumpção, dirigente do Centro Espírita Luiz Góes, localizado na Rua Bartira, frisou que o
mesmo já havia sido preso anteriormente, em dezembro de 1927, na Rua Cardoso de
Almeida, “onde dava receitas e onde fazia as suas feitiçarias, para ‘concertar e desarranjar
vidas’”651, e, “além de se entregar ao baixo espiritismo, exercia a medicina illegalmente,
auferindo disso fartos proventos”652.
Não bastassem as ações com fins pecuniários, era apontada outra grave conseqüência
gerada pelo espiritismo, qual seja, o fanatismo, causador da perda do juízo mental e de
suicídios, daí o periódico declarar que “havemos de combater sempre o espiritismo mania, o
espiritismo obcesão, assim como combaterem o fanatismo, seja lá por que religião for –
sempre prejudicial e não raro causa de funestas consequencias”653. Com efeito, A Capital
assimila, parcialmente, as teorias dos psiquiatras, pois, ao passo que, na apreciação destes, a
loucura e o fanatismo eram motivados pela simples presença em sessões espíritas, na opinião
do jornal, isso teria lugar somente se se tratassem de sessões em centros presididos pelos
falsos espíritas, caso de Odair Santos, personagem da notícia “Falso espiritismo – Em Santos
um rapaz doido”:

Foi preso em Santos um rapaz, Odair Salles, Um louco authentico, victima do


espiritismo.
Dizia tolices, falava em “corpo astral”, em “subconsciente”, espiritos maus... E
queria alli mesmo na carceragem “invocar” o seu “guia”.
Homem de parcos recursos intelectuaes, tinha, entretanto um phaseado proprio, uma
serie de termos evidentemente decorados e dos que são usados pelos “mediums” nas
sessões de fancaria onde elles endoidecem.
Pobre Odair!
Oh! o falso espiritismo...
Não é preciso mais.
Que se mirem nesse espelho aquelles que, incautamente, se deixam arrastar para
essas taes casas, verdadeiras sucursaes de Juquery, mas que ostentam vistosos
rotulos e que têm nomes vistosos e attrahentes.

649
Idem, “No mundo do Além”, 5 de maio de 1928.
650
Idem, Ibidem.
651
Idem, “Nos arraiaes da feitiçaria”, 8 de agosto de 1929.
652
Idem, Ibidem.
653
Idem, “A exploração do Além”, 22 de janeiro de 1924.

182
Livra...654

Aqui, fica explícita a associação entre loucura, fanatismo e o “baixo espiritismo”, a


falsa mediunidade, na medida em que Odair freqüentou não as sessões de espíritas científicos,
mas sim “sessões de fancaria”. De mais a mais, o fato de a parca intelectualidade de Odair
ter sido posta como a razão de seu enlouquecimento mostra as influências do discurso
psiquiátrico sobre o diário, afinal, na concepção de alguns psiquiatras, um dos determinantes
para que um indivíduo fosse levado a freqüentar os centros espíritas e, como resultado, ser
acometido pela loucura seria exatamente a baixa instrução. Daí a fácil exploração de Odair
efetuada pelos falsos médiuns. Exploração essa que, por sua vez, apenas ocorreria, segundo a
linha de raciocínio d’A Capital, em virtude de a doutrina espírita “ser uma das crenças mais
ao alcance do povo, que para elle se inclina com rara facilidade, entregando-se, corpo e
alma, ás suas leis e ás suas theorias”655, tendo a capacidade de se adaptar rapidamente às
“pessoas fracas e sem a minima parcella de entendimento”656, de modo que “não só se
enraiga fortemente nas camadas populares, de preferencia como justamente entre ellas tem
servido de admiravel campo de exploração”657.
Já no que dizia respeito ao cognominado “verdadeiro espiritismo”, da mesma forma
que no caso dos ocultistas, A Capital concedia espaços de algumas de suas páginas para a
divulgação de médiuns conhecidos e artigos da lavra de membros associados a centros
espíritas. Por ocasião do aniversário do nascimento – ou, melhor dizendo, encarnação – de
Allan Kardec, por exemplo, veiculou-se um texto do espírita Roberto Daniel rendendo
homenagens ao codificador da doutrina, qualificado como aquele que “pela Caridade
consagrou-se em apontar aos homens o polo delicioso do Amor em que se synthetisam os
preceitos da verdade Espirita”, e cuja obra constituiria um “conjunto racional da
metaphysica e do metapsychismo, a harmonia da contemplativa mystica com as applicacções
dos deveres sociais, é fonte de Sabedoria, catecismo de Crença e codigo de Sociologia,
segundo a lei de Deus e os dictames da Razão”658. Já na edição de 24 de janeiro de 1925, foi
noticiada a proferição de uma conferência, na Associação Espirita S. Pedro São Paulo, da
escritora Adelaide Camara, a qual, dado “o elevado desenvolvimento das faculdades

654
Idem, “Falso espiritismo – Em Santos um rapaz doido”, 8 de dezembro de 1927.
655
Idem, “A exploração do Além”, 14 de janeiro de 1924.
656
Idem, “Comedia ao ar livre”, 17 de janeiro de 1923.
657
Idem, “A exploração do Além”, 14 de janeiro de 1924.
658
Idem, “Anniversario de Kardec”, 11 de outubro de 1923.

183
mediumnicas desta nossa distincta confreira, que ora nos visita, é de se esperar um excellente
agape espiritual”659.
Os fenômenos de manifestações de espíritos na Terra também estavam presentes nas
colunas do jornal. Como afirma Sandra Stoll, o contato com os mortos não se constituía em
novidade no imaginário europeu, sendo, entretanto, associado às práticas de feitiçaria e visto
como algo próprio da cultura popular. A crença espírita, por sua vez, foi recebida como “uma
versão erudita: não apenas pelo fato de ser letrada mas, principalmente, por ter sido
formulada tendo como parâmetro preceitos, idéias e procedimentos que se querem
‘científicos’”660. Possuindo tal aspecto, os fenômenos que envolviam revelações de espíritos
foram os mais presentes nas páginas do jornal.
Se as ações de feiticeiros e curandeiros eram caracterizadas, nas notícias, como
geradoras de desavenças entre indivíduos, seja no cerne da família, seja em uma pacata
vizinhança, as manifestações de espíritos eram associadas nos textos a um efeito contrário.
Por vezes, veiculavam-se notícias tratando de revelações de conhecidos intelectuais, filósofos
ou personagens destacados de acontecimentos recentes, que teriam se manifestado para
ensinar aos presentes questões relativas ao espiritismo. Tais notícias davam destaques a
mensagens de paz por parte das entidades espirituais para tranqüilizar seus parentes e amigos,
transmitindo positivamente a idéia de sua passagem para o mundo dos mortos. Certa feita, por
exemplo, foi divulgada a evocação, na residência de um advogado napolitano, da alma do
tenor italiano Enrico Caruso, que teria declarado estar mais feliz após morte do que em
vida661. Em outra ocasião, foi reproduzido o relato de Elpidio Goulart Ferreira, presidente do
Centro Espírita Augusto e Santos, localizada na Rua Eça de Queiroz, número 24, em que é
narrada a aparição do espírito do aviador italiano Carlo Del Prete, o qual teria baixado para
agradecer “ao povo brasileiro, do intimo da minha alma, o acolhimento e hospitalidade que
me dispensou, desde o dia que pisei as terras deste grandioso paiz”662. Já em 28 de agosto de
1928, outro relato de Ferreira era publicado pelo jornal, em que afirma ter presenciado a
manifestação do espírito do médico português José Rodrigues. Este teria solicitado aos
membros daquele centro que escrevessem à sua família, residente em Coimbra, dizendo “que
elle não está morto, mas bem vivo, e esperando refazer as suas forças para ir trabalhar no
sentido de encaminhal-a na senda estreita que conduz á verdadeira felicidade”663.

659
Idem, “Conferencia espírita”, 24 de janeiro de 1925.
660
STOLL, Sandra Jacqueline, op. cit., p. 26.
661
A Capital, “O espirito de Caruso”, 19 de setembro de 1923.
662
Idem, “Pelo espiritismo”, 15 de setembro de 1928.
663
Idem, “Pelo espiritismo”, 28 de agosto de 1928.

184
E, ao contrário de feiticeiros e curandeiros, que, devido a seus “embustes”, eram
classificados como sujeitos cujas ações causariam a morte de seus consulentes, as práticas de
evocar os espíritos poderiam conservar a vida de outros indivíduos. Na edição de 8 de outubro
de 1928, por exemplo, o mesmo Elpidio narra que Bernardino de Campos teria solicitado aos
médiuns do Centro Espírita Augusto e Santos uma prece para que se curasse a enfermidade de
seu filho, Carlos de Campos. O pedido fora aceito, de modo que os membros do centro
solicitaram ao “Creador” que “fizesse baixar sobre Carlos o balsamo alliviador de sua
materia, prolongando a sua existencia no planeta”664. O resultado foi, conforme o texto, o
mais positivo possível: além de ficar totalmente curado, o filho, muito agradecido, acabou se
convertendo ao espiritismo, integrando-se ao centro presidido por Elpidio, “onde foi
doutrinado e hoje está incorporado ao vultoso grupo de guias deste centro”665.
Em seguida, Elpidio relata outro caso de cura, afirmando que, desde a fundação do
centro, “começou a baixar entre nós, sob anonymato, um espirito muito elevado”666, apenas
identificado como K. A. Um tempo depois, invertendo as iniciais, um médium descobriu que
se tratava do espírito do próprio Allan Kardec. Este teria passado a dirigir espiritualmente o
centro, estabelecendo “sessões de passes, consultas, preces e desenvolvimento de médiuns em
dias e horas determinados, presididas espiritualmente pelos guias de antemão
designados”667. Antes de ir embora, para repousar, K. A. teria realizado curas, sendo que
entre as mais “importantes effectuadas por K. A., destacaram-se por sua natureza, a de uma
tuberculosa desenganada pelos medicos e uma victima de obcessão violenta, hoje nosso
companheiro de trabalhos e activo empregado do commercio”668. Espiritismo verdadeiro,
ações benéficas para a humanidade.

664
Idem, “Pelo espiritismo”, 8 de outubro de 1928.
665
Idem, Ibidem.
666
Idem, Ibidem.
667
Idem, Ibidem.
668
Idem, Ibidem.

185
Considerações finais

Durante os meses de maio e junho de 1916, um personagem ocupou as primeiras


páginas d’A Capital. Tratava-se do médium Carmine Mirabelli. Nascido em 2 de janeiro de
1889, na cidade de Botucatu, Mirabelli estudou no Grupo Escolar Cardoso de Almeida,
localizado no mesmo município, no Colégio de S. Luiz, em Itú, e no Colégio Cristóvão
Colombo, na capital paulista, onde se estabeleceu 669. Afirmando possuir poderes
sobrenaturais, dizia ter a capacidade de fazer cadeiras caminharem, mover outros objetos ou
até mesmo fazer um lápis sair de uma garrafa sem tocá-lo. Tudo isso por inspiração divina e
força dos fluidos.
Destarte, ao longo de todo o ano de 1916, Mirabelli esteve presente nas páginas de
jornais da grande imprensa paulistana, como o Correio Paulistano e A Gazeta. Espíritas,
intelectuais, cientistas e acadêmicos das mais variadas tendências, praticamente até a data de
sua morte, ocorrida no primeiro dia de maio de 1951, discutiram sobre a veracidade dos
estranhos fenômenos provocados pelo médium. Para dar termo às duvidas acerca dos poderes
de Mirabelli, Antonio Fonseca, jornalista do Correio, desafiou-lhe a comprovar suas
habilidades mediante a realização de cinco sessões na redação do jornal. Fonseca dar-se-ia por
satisfeito se o médium efetuasse com sucesso apenas uma experiência, a saber, fazer um lápis
sair do fundo de uma garrafa sem ser tocado.
O diário A Capital narrou todas as sessões exaustivamente, além de, a cada dia, trazer
notícias sobre o passado de Mirabelli. Segundo o jornal, o médium não conseguiu, em
nenhuma das ocasiões, realizar a prova com sucesso. Dessa forma, no seu entender, Mirabelli
seria mais um embusteiro, o qual, através de estratagemas muito bem elaborados, lograria
ardilosamente enganar indivíduos para fins pecuniários.
Em uma das várias notícias sobre o “caso mirabellico”, como foi denominado, um
comentário nos chamou a atenção:

E o mais interessante é que essa crendice grosseira attinge tambem, e de maneira


lamentavel, a pessoas de illustração e tidas como familiarizadas com as coisas da
sciencia.
Sendo posta em debate uma questão delicadissima como é essa dos chamados
phenomenos espiriticos, que tanto tem interessado as pessoas de saber de outras
partes, cabia aos nossos homens de cultura e entregues a estudos scientificos
esclarecer o publico a respeito, impedindo que um intrujão ousado viesse contribuir
para tornar mais intensos os sentimentos supersticiosos dominantes.

669
Cf. Jornal A Palavra, 8 de novembro de 1936 Apud GOES, Eurico de. Prodrigios da Biopsychica obtidos
com o médium Mirabelli. São Paulo: Typographia Cupolo, 1937, p. 245.

186
Com surpreza geral, constatou-se, porém, o procedimento bem diverso dos senhores
que em nosso meio social apparecem como astros de primeira grandeza no
firmamento da nossa cultura.
Esperava-se que elles, patenteando os seus indispensaveis conhecimentos da
materia, viessem espargir luz, muita luz sobre este ambiente de
incomprehensivel ignorancia [grifo nosso].670

Na mesma linha de raciocínio, esbravejando contra aqueles que confiavam nos


fenômenos atribuídos a Mirabelli, o diário afirmou que o mais surpreendente era o fato de
“que homens formados, de certa responsabilidade social se prestem a servir de seus passivos
comparsas, como se se tratasse de pobres creaturas a quem faltasse o necessario preparo
intellectual pra resistir ás suggestões de um fulano qualquer, matreiro comediante”671.
O motivo dessa revolta d’A Capital deve ser associado à incumbência atribuída pelo
jornal aos mais esclarecidos, qual seja, a tarefa de guiar a opinião dos mais pobres e menos
ilustrados para o que considerava ser os verdadeiros atos e as corretas idéias. Era, portanto,
um absurdo, a seu ver, que aqueles acreditassem nos feitos atribuídos a Mirabelli,
considerados meras crendices.
Contudo, isso não indicava, por parte do diário, um conceito de sociedade baseada
numa divisão rígida e imutável da população entre, de um lado, os intelectuais e, de outro, os
indivíduos pouco instruídos, devendo os primeiros, eternamente, conduzir os segundos.
Afinal, lembremos que, conforme visto no capítulo terceiro, ainda que jornal pensasse ser a
população pobre uma massa imbecilizada, ela não seria irrecuperável, cabendo à ciência e à
educação torná-la erudita e intelectual.
Dessa forma, A Capital, da mesma maneira que frações da imprensa operária da
672
época , absorvia as idéias oriundas da psicologia das multidões, na medida em que
imaginava ser a população pobre da cidade de São Paulo uma turba de indivíduos irracionais
e sugestionáveis, sendo, então, urgente a intervenção da elite esclarecida. Contudo,
apreendeu-as parcialmente, pois, se os adeptos de tal corrente, como Gustave Le Bon e
Gabriel Tarde, declaravam que as “massas” eram incapazes de formular opiniões próprias, de
modo que se faria imprescindível uma elite de líderes para conduzi-las a todo instante – já que
elas não desejariam a liberdade, mas sim a submissão a uma autoridade constituída673 –, na
opinião do jornal, a elite intelectual deveria guiar a opinião da população, mas despertando-
lhe paulatinamente o poder de discernimento, por meio da difusão da instrução e dos saberes

670
A Capital,”O ‘homem mysterioso’ não passa de um vulgar intrujão”, 14 de junho de 1916.
671
Idem, “O ‘homem mysterioso’ não passa de um vulgar intrujão”, 27 de maio de 1916.
672
Ver PEREIRA, Andréa Regina Sampaio. A influência da psicologia de massas sobre o movimento operário
brasileiro (1917-1922). Campinas, SP: Dissertação de Mestrado em Ciência Política, IFCH/UNICAMP, 1997.
673
Idem, Ibidem, pp. 46-73.

187
científicos, até o dia em que as “as multidões” pudessem pensar de modo independente. Esse
pensamento se torna patente, por exemplo, quando A Capital, ao noticiar a comprovação de
que eram falsos os boatos sobre a existência de fantasmas no antigo casarão da Light,
localizado na Rua Mauá, não passando de invenções de charlatães, arrematou:

Ora, o povo já não anda no arrastão assim facilmente. Acostumado com as


maravilhas do nosso século, ás quaes se assimilou, pouca ou nenhuma admiração lhe
causam os processos dos advinhos [sic], magos ou prophetas que perdem a sua
originalidade á proporção que as sciencias se diffundem. As escolas
multiplicadas diariamente, abrem horizontes vastos aos analphabetos,
apparelhando-os ás exigencias de nossa civilisação [grifo nosso].674

Contudo, para o jornal, o esclarecimento dos mais pobres era um processo demorado e
ainda em andamento, de maneira que, como destacado no capítulo segundo, de acordo com a
sua linha de raciocínio, haveria naquele contexto muitos indivíduos agindo apenas por
impulsos emocionais. E incumbia à elite intelectual educar-lhes. Elite essa, por sinal, a qual o
diário, imbuído pela idéia de imprensa enquanto norteadora dos leitores, julgava integrar.
Destarte, A Capital igualmente se arrogava a tarefa de educar e guiar a opinião
pública. Contudo, a seu ver, enquanto a instrução, a racionalidade e os saberes eruditos não
eram universalizados, havia apenas um viés de orientação dos leitores: se estes ainda agiam
sob influência de impulsos emotivos, nada mais lógico que o emprego de narrativas
sensacionalistas e de fait divers melodramáticos com o intuito de gerar-lhes sensações.
Por meio da dramatização sensacionalista, tencionava-se atrair o público às cenas das
narrativas, para que se identificasse com a angústia e a dor das vítimas, acabando por se
comover com o ocorrido. Além disso, a intenção das narrativas melodramáticas era fazer com
que o leitor, ao constatar o sofrimento das vítimas dos perversos praticantes de magia,
também imaginasse: se essa tragédia ocorreu com tal ou tal pessoa, por que não com ele
também? O perigo, assim, era-lhe iminente. Bastaria uma simples consulta e a vida do
consulente transformava-se em um tormento. Tal como os personagens do drama que acabara
de ler, sua filha e/ou esposa igualmente estariam sujeitas às libidos de um devasso, sua
estimada família poderia ver o alegre e afetivo ambiente se desmoronar, e ele mesmo poderia
ser acometido pela loucura, passar por alguma situação ridícula e constrangedora ou até ter a
sua vida levada a termo prematuramente.
Como resultado, além do sentimento de compaixão em relação à vítima desejava-se
igualmente transmitir a sensação de medo, definido por Jean Delumeau como um “hábito que

674
A Capital, “A casa dos phantasmas”, 10 de agosto de 1928.

188
se tem, em um grupo humano, de temer tal ou tal ameaça (real ou imaginária)”675. O mesmo
historiador distingue dois tipos de medos, a saber, os nomeados (objetivos) e os
desconhecidos (subjetivos). Estes seriam os ligados ao imaginário, aos temores inconscientes
(a loucura, a morte, a fome e outros) causadores de angústia676, ao passo que aqueles diriam
respeito aos medos desconhecidos objetivados e materializados em elementos do cotidiano 677.
O medo dos saqueadores e mendigos à época do período pré-Revolução Francesa, por
exemplo, pode ser identificado com o medo da fome. Dito de outra maneira, ambos
compunham a objetivação do temor à escassez de alimentos.
Com isso, pensamos ser válido afirmar que aqueles que sobreviviam por meio de
práticas mágico-religiosas constituíam-se em objetivações, nas páginas d’A Capital, de
diversos medos, tais como o da loucura, da morte ou da violência, sendo, conseqüentemente,
tratados como indivíduos de uma periculosidade considerável, os quais tornavam a cidade
irracional e desarmoniosa, para que, desse modo, os leitores que os procuravam para resolver
seus problemas pessoais passassem a evitá-los.
Por via de conseqüência, para além da afamada figura do charlatão, o diário remetia o
leitor a outras representações dos praticantes da magia de cunho popular. Estes, mais do que
exploradores da credulidade pública, causariam sérios problemas nas vidas de seus
consulentes. Seus nomes eram associados à disseminação de conflitos dentro do alegre
ambiente familiar, bem como em pacatas vizinhanças, à morte, à loucura, à devassidão, à
bigamia, ao comportamento violento, à imoralidade e, finalmente, ao suicídio.
Conforme assevera Marc Ferro, o fait divers é um sintoma cuja significação varia de
acordo com o tempo e as culturas. Sua natureza, função e relação com o corpo social também
podem se modificar678. Por conseguinte, os faits divers e as notícias sensacionalistas do jornal
A Capital, no contexto estudado, possuíam características, finalidades e funções específicas.
Mais do que serem publicados apenas para atrair mais leitores e, assim, vender um número
maior de exemplares, sua veiculação possuía como características marcantes a divulgação
predominante de narrativas trágicas com conseqüências funestas e horrendas e, por
conseguinte, a intenção de atuar sobre a sensação de medo nos leitores, sobrando pouco
espaço para o riso. No mais, tinha como fulcro a orientação e o direcionamento da população
675
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente (1300-1800) – Uma cidade sitiada. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999, p. 24.
676
De acordo com Delumeau, há uma diferença entre medo e angústia. O primeiro possui um objeto
determinado, ao qual se pode fazer frente, ao passo que a angústia “não o tem e é vivida como uma espera
dolorosa diante de um perigo tanto mais temível quanto menos claramente identificado: é um sentimento global
de insegurança”. Ibidem, p. 25.
677
Ibidem, pp. 24-34.
678
FERRO, Marc. “Présentation”. Annales. Économies, Sociétés, Civilisations. Ano 1983, vol. 38, n. 4, p. 822.

189
trabalhadora da cidade de São Paulo, dentro de um projeto de educação das “massas” visando
adequá-la aos padrões do que o periódico concebia serem a civilização e o moderno.
Por outro lado, o diário, ao mesmo tempo em que procurava intervir na opinião
pública pelo viés do sensacional, considerava o ocultismo um lídimo ramo da ciência e via
nos seus adeptos outro grupo integrante da elite intelectual norteadora dos menos instruídos.
A eles caberia a difusão dos saberes científicos, do gosto pelos estudos de diferentes ramos da
ciência, do amor às letras e do esforço contínuo pela busca de erudição. Dito de outro modo, a
sua tarefa consistia em racionalizar o comportamento dos menos instruídos.
Contudo, segundo a linha de raciocínio do jornal, a tão aclamada civilização jamais se
realizaria apenas por meio da evolução da ciência e da vida material. No cerne de seu
pensamento, reluzia a idéia de que o seu contexto encontrava-se maculado pelo egoísmo e
pela falta de sentimento altruísta entre os indivíduos, materializados, entre outros, nos
assassinatos, nos atos de embuste efetuados com fins pecuniários – como no caso dos
praticantes de magia –, na mesquinhez de parte do empresariado e na falta de ação do poder
público em favor do proletariado.
Aos ocultistas, membros da comunidade científica, caracterizados como civilizados,
filantropos, bondosos e possuidores de uma moral elevada e de bons costumes, também era
atribuída a missão de regeneração moral da sociedade brasileira, encaminhando-a para os
valores éticos e humanitários, como pudemos observar em notícias que, por meio de uma
linguagem de tom exagerado, inerente ao sensacionalismo, apresentavam ao leitor um quadro
horrível, nefasto e caótico da sociedade, em que os adeptos do ocultismo poderiam intervir.
Desse modo, o termo “ciência”, para A Capital, apontava para algo além do progresso
material consubstanciado em invenções e descobertas sobre a natureza e o corpo humano. Ao
contrário, o pensamento científico também deveria contribuir para o desenvolvimento dos
valores de boa conduta da humanidade.
Mas os ocultistas não estariam isolados nessa empreitada. A estes, juntar-se-iam os
“verdadeiros espíritas”, encarados como praticantes de uma corrente religiosa legítima, desde
que não caíssem no fanatismo.
Assim, a realização da civilização e do moderno, no discurso d’A Capital, equivalia à
universalização do entusiasmo pelas ciências e pelas letras, bem como do comportamento
racional, ético, solidário e altruísta. Ciência e religião não eram apartadas, de maneira que
ambas, por meio, respectivamente, de ocultistas e espíritas, integrantes da elite culta,
contribuiriam para o engrandecimento intelectual e moral da população menos instruída, a
qual um dia teria o poder de discernimento bem desenvolvido para elaborar idéias próprias.

190
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