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São Paulo
2015
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São Paulo
2015
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BANCA EXAMINADORA
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iv
Agradecimentos
E ... a minha Esposa ... Amiga ... Mulher ... VERA LUCIA CINTRA POSSAS, a Pimpa, por
TUDO ... Sem “TU”, nada disso teria qualquer sentido ...
vi
ABSTRACT
The research want to examine some artistic and journalistic trials of Antonio Juraci Smith,
artist "marginal" Para over eighty publications. His empirical corpus shall emphasize twine,
"Irmã Serafina Cinque: O Anjo da Transamazônica"; "Os Novos Versos Sacânicos" and "O
Chapéu do Boto" as well as some short stories, essays and poems in newspapers memories,
magazines and poetic anthologies. In his time delimitation, the research will follow the
storyline of the artist narrated by print, by the poet himself and voices witnessing this
trajectory. From these considerations, the extent to which cultural shifts in Amazons Juraci
would "geometricable" and / or neo-baroque features? In the search for answers to the
problems, the main hypothesis assumes that, when suturing multiple worldly voices to their
Arts, Juraci now relies intercultural narrative tissues, sometimes edge scriptures "necrotic" by
centripetal folklore. By the need to test, question and investigate (s) object (s) proposed (s),
the following methodological assumptions considering conducting an ethnographic and
cartographic were chosen: survey, the municipal public file of Bethlehem, newspapers,
magazines and anthologies accepting information about the artist and his works; consulting
the staff of the poet file; interviews with Juraci, researchers, craftsmen Pará; participant
observation in cultural events in the streets, squares, markets, cemeteries and theaters, and
"mining" of research in the light of Communication Theory in Latin America (Martin-
Barbero), the Russian Cultural Semiotics (Lótman, Bakhtin), Baroque and miscegenation
(Severo Sarduy, Haroldo de Campos, Lezama Lima, Alejo Carpentier, Jerusa Pires Ferreira
and Amalio Pinheiro). Subsequently, the holdings of such information, the following
analytical and empirical categories were extracted: the academic myopia marquetries Antonio
Juraci; the joints micro-macro in Amazonian spacetimes these textures; rearticulations its
cultural series using "satanic" representations, and the applicants becomings translation of the
symbiotic interaction between Amazon men, animals, nature and culture. To settle the
questions raised, it is expected, as of “transcriadores” voices of an unusual daily life, restore,
in multiple forms, provisional and open to contributions, these social maps historically
ignored, but full directions
Sumário
REFERÊNCIAS....................................................................................................................112
x
Lista de Figuras
1
Olhar sensível do pesquisador, sua integridade intelectual, e uma extraordinária percepção e abertura para o
outro (POSSAS, 2014).
2
Qualquer pena seria insuficiente para descrever a referida praça, uma das maiores da capital paraense. Uso a de
João do Rio (1997, p. 102): “A musa das ruas é a musa que viceja nos becos e rebenta nas praças, entre o barulho
da populaça e a ânsia de todas as nevroses, é a musa igualitária, a musa-povo, que desfaz os fatos mais graves
em lundus e cançonetas, é a única sem pretensões porque se renova como a própria Vida”.
33
Fico com a imagem de flâneur refletida por João do Rio (1997, p. 03): “O flâneur é ingênuo quase sempre.
Para diante dos rolos, é o eterno “convidado do sereno” de todos os bailes, quer saber a história dos boleiros,
admira-se simplesmente, e conhecendo cada rua, cada beco, cada viela, sabendo-lhe um pedaço da história,
como se sabe a história dos amigos (quase sempre mal), acaba com a vaga ideia de que todo o espetáculo da
cidade foi feito especialmente para seu gozo próprio. O balão que sobe ao meio-dia no Castelo, sobe para seu
prazer; as bandas de música tocam nas praças para alegrá-lo; se num beco perdido há uma serenata com violões
chorosos, a serenata e os violões estão ali para diverti-lo. E de tanto ver que os outros quase não podem entrever,
o flâneur reflete. As observações foram guardadas na placa sensível do cérebro; as frases, os ditos, as cenas
vibram-lhe no cortical. Quando o flâneur deduz, ei-lo a concluir uma lei magnífica por ser para seu uso
exclusivo, ei-lo a psicologar, ei-lo a pintar os pensamentos, a fisionomia, a alma das ruas. E é então que haveis
de pasmar da utilidade do mundo e da inconcebível futilidade dos pedestres da poesia de observação...”
4
Pequeno empréstimo da palavra usada por Gilberto Freyre, em “Bahia e Baianos”. Segundo Freyre e meu
orientador Amálio Pinheiro, em devir, elementos rotarianos parecem sobreviver na cultura brasileira. O civilismo
bem comportado aderido às formas de atualidade neoliberal desenham uma tela tosca e violenta de que dita
normas ou mata pessoas e pensamentos em nome de uma suposta democracia, resquícios estruturantes, porque
não, de práticas ditadoriais.
12
5
Para o pesquisador português Boaventura Santos (2002), seriam pensamentos, como sociedade patriarcal:
produção capitalista; consumismo individualista e mercadorizado; identidades-fortaleza; democracia autoritária;
desenvolvimento global desigual e excludente.
6
http://blogdobotojuraci.blogspot.com.br/
7
www.facebook.com.br/juraboto
8
Refiro-me a Walter Benjamin (1989), Todorov (1970) e Adorno (1983), quando em vozes uníssonas, anunciam
a “morte” das narrativas ancestrais, além de Vilém Flusser (2010), em seus ensaios provocativos, quanto à ida da
escrita para o túmulo.
9
Utilizarei a palavra, a partir dos estudos de Bakhtin (1999). Fricção como a trajetória da palavra em direção ao
meio extra verbal e contra a palavra do outro. Um encontro de muitos “eus” com os outros “culturais”.
13
10
Pensar pelas bordas, categoria analítica tramada por Jerusa Pires Ferreira (2010), exclui a ideia de centro ou de
periferia. Seriam culturas transitando por uma faixa delineada pelos chamados folclore e culturas institucionais.
11
Fernando Pessoa, ao buscar uma metáfora do mundo da construção civil, dá contornos aos poetas que trolha,
imitando com a colher no cimento a escultura em pedra. O fingidor encarna esse trolha, especializado na arte de
decorar fachadas. O trabalho em cimento e gesso imitava na perfeição a escultura em pedra e os especialistas em
acabamentos desses elementos decorativos eram os fingidores, por isso ainda hoje se chama à areia fina com que
se preparam as massas de acabamento, a areia de fingir. O verso popular é trabalho de fingidores: um linguajar
“rústico”, sem ambições metafóricas, de um lirismo recatado, de emoções partilhadas com batidas simples, tais o
ritmo dos passos de um peregrino ou o bater do coração. (FREIRE, 2014)
14
copta, bem como textos orientais logo traduzidos e divulgados em árabe e latim. A
aquisição do conhecimento tornou-se a primeira de todas as virtudes e o Al-Andaluz
foi o foco e a matriz do conhecimento e da ciência europeia. (FREIRE, 2014, p. 05)
Fazer Arte pelas ruas, pelas praças e pelos mercados é tentativa hercúlea de
representação da múltipla convivência de temporalidades-espaços e subjetividades nas
Amazônias. Ignorar tais processos criatórios, tradutórios e relacionais de representações, em
favor de um discurso facistóide de “raça” ou de “identidade”, é tentativa frustrada de
engessar, reduzir e solidificar um “território de interligação oscilante” (PINHEIRO, 2013, p.
49) repleto de paisagens cromáticas, banhadas continuamente de sol “[...] de onde escorre o
suor da experiência de uma comunidade que vive a poesia rústica do cotidiano [...] frêmito da
vida e o dinamismo do barroco.” (TOCANTINS 1987, p. 328).
O devir e a relação prevaleciam sobre o ser e a substância. Para esse tipo de
cosmologia, os outros são uma solução, antes de serem – como foram os invasores
europeus – um problema. A murta tem razões que o mármore desconhece.
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 221)
Para continuar transitando pelas memórias de seus leitores, Juraci Siqueira recarrega
suas obras de suplementos advindos de um realismo icônico indo e vindo do local para o
global, espaço de permanentes diálogos, significados “prenhes de saliências ondulantes”
(PINHEIRO, 2013, p.22) e estrutura semiótica em busca de ideogramas.
Ao atrair tantos leitores, esse entrelace de energias sígnicas imana um universo teórico
familiarizado com a efemeridade dessas paisagens simbólicas, encruzilhada de metapontos de
vistas dando luz ou não a esses movimentos “recreativos” pelos imaginários amazônicos.
Para Santos (2010), as signagens, em espaços cambiantes de experimentações
provisórias e facilmente descartáveis, são extremamente consistentes, mesmo as mais
efêmeras. Em “soleiras” latino-americanas12, como Belém do Pará, os “palavrões” de Juraci
parecem roçar com os de Bento Teixeira Pinto e os de Gregório de Matos Guerra
incomodando os monoteísmos acadêmicos, os epistêmicos e os culturais.
Este livro contém palavrão explícito, desaconselhável, portanto, a puritanos babacas,
moralistas fajutos e beatas juramentadas. Também não nos responsabilizamos por
eventuais faniquitos e despentelhamentos de madamas-peido-cheiroso. Somente as
almas puras, despidas de frescuras e preconceitos vãos, poderão captar seu
verdadeiro espírito. Saberão que a imoralidade não está nas coisas nem nas palavras
senão nas mentes mesquinhas e nas ações nefastas dos homens contra seus
semelhantes e o meio em que vivem, compreenderão que a verdade pode ser dita de
12
Talvez a expressão não dê conta do extenso e do complexo lugar da diversidade, mas já aparando as muitas
arestas por vir, América Latina será o espaço da existência, resistência e da criação “bastarda”. Não saber como
nos chamarmos parecer ser algo menor perto do que não saber como se representar e não saber quem se é. O
termo, como demonstra Mignolo (2007) pode perfeitamente se descolonizar de suas semânticas primevas,
representando essa pluralidade indomável e multiplicante.
15
mil maneiras, que a flor-de-lis pode brotar do lodo e que, finalmente, “rindo é que se
castiga os costumes”. 13
13
Nota de inutilidade pública escrita por Juraci no prefácio dos “Novos versos sacânicos”.
14
A expressão, assim como uma lista de outras “heresias”, custou ao cristão-novo Bento Teixeira Pinto um
longo processo inquisitorial torturando-o, arrancando sua “confissão” e, logo após, acelerando sua morte.
(ALVES, 1983).
15
Expressão comumente usada por uma “Boca do Inferno” ou para os adoradores de certidões de nascimento,
Gregório de Matos, em seus sonetos lírico-profanos.
16
Abdala, de tabela,
gostou do negócio dela
e se fez marido e sócio.
Do negócio do Abdala
Nazaré também gostou.
Da união dos dois negócios
nova empresa se formou.
Mais tarde vieram os filhos
e o trem do amor em seus trilhos
nunca desencarrilhou.
Essa história só comprova
que o amor quando dá pé,
viceja em pleno deserto,
navega contra a maré.
E, assim, os dois algemados
pelo amor e pela fé,
vivem sonho colorido
e ele, agora, é conhecido
por “Sírio da Nazaré”. (SIQUEIRA, 2012a, p. 59)
Eu venho de um mundo
que tu não conheces;
do onde, do quando,
do nunca, talvez...
Eu venho de um rio
perdido em teus sonhos,
um rio insondável
que corre em silêncio
entre o ser e o não ser.
Eu venho de um tempo
que os homens não medem,
nenhum calendário
registra os meus dias.
sou filho das ondas
que gemem na praia,
sou feito de sombras
de luz, de luar
e trago em meu rosto
mandinga e mistério
e guardo em meus olhos
funduras de um rio.
Jurar ao boto poderia ser uma colheita diária de fricções dos contrários, massas
oscilantes e coloridas: “[...] o indivíduo se torna, portanto, uma simples sucessão de fases,
determinadas pelos “grupos”, e que ele se vê no dever de atravessar”. (COLOMBO, 1991, p.
17
16
Estudos sobre os simbolismos religiosos amazônicos destacam as finalidades terapêuticas do boto. Seria o
cetáceo de água doce um eficiente “afrodisíaco” aos homens, utilizando como amuleto, o olho e o órgão sexual
do “animal”. Juraci, dando novas traduções à narrativa, costuma dizer que, boa parte de sua fertilidade artística e
física, já que atende diariamente a convites de escolas e de entidades culturais para apresentação de suas
performances, deve-se ao fato de ser herdeiro dessa “magia”. (SIQUEIRA, 2012b).
17
Expressão cunhada por Lezama Lima.
18
O libertino, para Duvignaud (1997), questiona o mundo; joga com as simetrias “impostas”; joga com os
costumes e joga com “Deus”.
19
Orelha composta por Antonio Juraci Siqueira para o livro “Aurora que vence os tigres” de Benilton Cruz.
18
20
Para Alessandro Portelli (1997), uma entrevista dificilmente pode criar uma situação de igualdade, mas ela- a
entrevista – pode pedir por isto.
20
Bachelard (1978) não parece ser o pensador mais adequado para esse exercício de
desprendimento do conhecimento ocidental, aparentemente, mas se de um sonho se faz um
devaneio, entendido como suspensão desse pensamento desbotado positivista, seria a pesquisa
uma cartografia de devaneios de um sonhador tecendo Amazônias reais-maravilhosas por
crenças, sentimentos e culturas, em constante reconstrução de sentidos:
As palavras, em nossas culturas eruditas, foram tão amiúde definidas e redefinidas,
ordenadas com tamanha precisão em nossos dicionários, que acabaram se tornando
verdadeiros instrumentos do pensamento. Perderam o seu poder de onirismo interno.
Para voltar a esse onirismo implícito nas palavras, seria mister empreender uma
pesquisa sobre os nomes que ainda sonham, os nomes que são "filhos da noite".
(BACHELARD, 1996, p.37)
21
Recorro a ideia de travestimento, tão bem vivida e descrita por Sarduy (1999). Tento demonstrar algumas
interseções sexuais são análogas às intertextualidades atravessando as artes de Juraci e a escrita dessa cartografia
de devaneios:“Planos que dialogan en un mismo exterior, que se responden y completan, que exaltan y definen
uno al otro: esa interacción de texturas lingüísticas, de discursos, esa danza, esa parodia es la escritura.”
(SARDUY, 1999, p.1151).
21
conhecimento” (SPIVAK, 2010, p. 08); não apenas falar de/pelos “marginais”, mas falar com
eles, sonhando algum dia: “trabalhar “contra” a subalternidade, criando espaços nos quais o
subalterno possa se articular e, em consequência possa também ser ouvido.” (SPIVAK, 2010,
p. 14)
Na exploração desse emaranhado diversificante de leituras e de vozes atravessando a
pesquisa, decidi pô-las em jogo, sem ideias justas e binárias. Preferi os rizomas22: “De Totó
do Cajary a Antonio Juracil” revirei algumas “gavetas memoriais” do Arquivo Público
Municipal de Belém e do arquivo pessoal - “a pasta preta de Juraci”, bem como os arquivos
23
imperfeito-acadêmicos , retratando as práticas recriadoras-cambiantes de Juraci. Em
“Bricolagens ao Devir”, movido pelo léxico-metáfora-devorador-deleuziano, analiso: o bicho-
homem Juraboto, personagem transportado do Cordel “Chapéu do Boto” para o vestuário e
22
Em Zourabichvili (2004, p. 52-53) encontro uma definição de rizoma cunhada por Deleuze, podendo dar
contornos à proposta da pesquisa: “O rizoma diz ao mesmo tempo: nada de ponto de origem ou de princípio
primordial comandando todo o pensamento; portanto, nada de avanço significativo que não se faça por
bifurcação, encontro imprevisível, reavaliação do conjunto a partir de um ângulo inédito (o que distingue o
rizoma de lima simples comunicação em rede - "comunicar" não tem mais o mesmo sentido [...] tampouco
princípio de ordem ou de entrada privilegiada no percurso de uma multiplicidade (para estes dois últimos pontos
[...] Ele não é feito de unidades, mas de dimensões. O rizoma é portanto um antimétodo que parece tudo
autorizar - e de fato o autoriza, pois este é o seu rigor, do qual seus autores, sob o termo "sobriedade", enfatizam
de bom grado, pensando nos alunos apressados, o caráter ascético. Não julgar previamente qual caminho é bom
para o pensamento, recorrer à experimentação, erigir a benevolência como princípio, considerar enfim o método
uma muralha insuficiente contra o preconceito, uma vez que ele conserva pelo menos sua forma (verdades
primeiras): uma nova definição do sério em filosofia, contra o burocratismo puritano do espírito acadêmico e seu
"profissionalismo" frívolo. Essa nova vigilância filosófica é aliás um dos sentidos da fórmula: "condições não
maiores que o condicionado" (o outro sentido é que a condição se diferencia com a experiência). O mínimo que
se pode dizer é que não é fácil manter-se nesse ponto: sob essa relação, o rizoma é o método do antimétodo, e
seus "princípios" constitutivos são regras de prudência a respeito de todo vestígio ou de toda reintrodução da
árvore e do Uno no pensamento. O pensamento remete portanto à experimentação. Essa decisão comporta pelo
menos três corolários: 1) pensar não é representar (não se busca uma adequação a uma suposta realidade
objetiva, mas um efeito real que relance a vida e o pensamento, desloque o que está em jogo para eles, os relance
mais longe e alhures); 2) não há começo real senão no meio, ali onde a palavra "gênese" readquire plenamente
seu valor etimológico de "devir", sem relação com uma origem; 3) se todo encontro é "possível" no sentido em
que não há razão para desqualificar a priori certos caminhos e não outros, todo encontro nem por isso é
selecionado pela experiência (certas montagens, certos acoplamentos não produzem nem mudam nada).
Aprofundemos este último ponto. Não nos iludiremos com o jogo aparentemente gratuito ao qual convida o
método do rizoma, como se se tratasse de praticar cegamente qualquer colagem para obter arte ou filosofia, ou
como se toda diferença fosse a priori fecunda, segundo uma doxa difundida. Decerto quem espera pensar deve
consentir em uma parte de tateamento cego e sem apoio, em uma "aventura do involuntário"; e, apesar da
aparência ou do discurso de nossos mestres, esse tato é a aptidão menos partilhada, pois sofremos de excesso de
consciência e excesso de domínio - não consentimos de forma nenhuma no rizoma. A vigilância do pensamento
nem por isso permanece menos requisitada, mas no próprio cerne da experimentação: além das regras
mencionadas acima, ela consiste no discernimento do estéril (buracos negros, impasses) e do fecundo (linhas de
fuga). É aí que pensar conquista ao mesmo tempo sua necessidade e sua efetividade, reconhecendo os signos que
nos obrigam a pensar porque englobam o que ainda não pensamos. E eis por que Deleuze e Guattari podem dizer
que o rizoma é questão de cartografia, isto é, de clínica ou de avaliação imanente. Acontece, sem dúvida, de o
rizoma ser imitado, representado e não produzido, e servir de álibi a amálgamas sem efeito ou a logorréias
fastidiosas: pois se acredita que basta que coisas não tenham relação entre si para que haja interesse em vinculá-
las. Mas o rizoma é tão benevolente quanto seletivo: ele tem a crueldade do real, e só cresce onde efeitos
determinados têm lugar.
23
Recorro a Colombo (1991), para representar nossas infindáveis práticas arquivistas, inclusive àquelas
desejando aprisionar e redefinir práticas artísticas recriadoras.
22
De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis
de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as
semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em
nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão
nem capim.
Guimarães Rosa
Revirando os baús mnemônicos desse Juraci plural, alguns “hostis” outros nem tanto,
encontrei, no ano de 1980, uma das primeiras referências às suas artes. Tratava-se do jornal,
não mais em circulação, A província do Pará, relatando, “em primeira mão”, Totó do
Cajary 24 , estudante de filosofia, açougueiro e leitor “metido a escrevedor” vindo dos
Marajós25 atrás de estudo, de “auditórios”, e de oportunidades na coluna dedicada à cultura
“Jornaleco”. (SIQUEIRA, 2012b). Totó, nessas primeiras “penas”, transcria o Chupa-chupa26.
O “seu” personifica governantes e seus estratagemas “vampirescos” “chupando” nossos bens
e a nossa paciência.
24
Distrito do município de Afuá/PA situado na extremidade norte-ocidental da Ilha de Marajó.
25
É o maior arquipélago flúvio-marítimo da Terra. Ilha de Marajó, com cerca de 42 mil quilômetros quadrados,
é a maior ilha, ainda existindo cerca de 2.500 ilhas e ilhotas “periféricas” espalhadas por todos os meandros da
região.
26
O chupa-chupa tratava-se de fenômenos relacionados com a suposta presença de objetos voadores não
identificados (OVNI) nas regiões ribeirinhas da Amazônia, aos arredores de Belém, na Ilha do Marajó e no delta
do Rio Amazonas. Tais fenômenos ocorreram na década de 1970 até os primeiros meses de 1981. De acordo
com as narrativas de testemunhas e de suas “vítimas”, o fenômeno ocorria pela noite com criaturas semelhantes
aos seres humanos de estatura média. Os OVNIs tinham formato esférico, aparência cilíndrica e mais raramente
forma de peixe. A maioria das pessoas que observavam fatos ligados à evidência de extraterrestres era atingida
por feixes de luz supostamente disparados. A "luz vampira" tinham ação paralisante e deixava consequências
duradoras: vertigem, dores no corpo, tremores, falta de ânimo, sonolência, fraqueza, rouquidão, queda de pelos,
descamação da pele lesada (queimaduras de 15 cm de primeiro grau no tórax) e dores de cabeça.
24
27
Primeira publicação que se tem notícia de Totó do Cajary.
28
Segundo Antonio Juraci: “À época eu trabalhava no açougue do João Roque, matadouro localizado às
proximidades da Fortaleza de São José (Amapá)”.
25
Outras gavetas memoriais, como a das imagens, registraram pela Folha de Belém 29, as
primeiras aparições visuais do então comerciário Juraci, participando e sendo premiado com o
poema “Poema para Belém”, no II Encontro de Poesias de Belém, em 28 de agosto de 1980.
Era descrita metonimicamente uma Belém morena, faceira e quente, diferente da capital
europeizada traduzida por seus “concorrentes”, trovas, já, carregadas de vozes.
Poema para Belém
Belém moreninha
das lindas mangueiras,
das tardes chuvosas,
das moças faceiras!
Portal da Amazônia,
recanto de amor!
Estrela ofuscante
sobre o Equador!
Teu brado de fé
ecoa pelos ares,
nas ruas, nas igrejas,
nas praças, nos lares!
Berço de poetas,
de grandes artistas,
de heróis valorosos
e iguais estadistas! (SIQUEIRA, 2015b)
Buscando outras espacialidades, Totó do Cajary, pelas charges nutridas das oralidades
nossas do dia a dia, demonstrava suas indignações diante de questões sociais não cessando de
se repetirem. Timidamente, representava as relações, às vezes “patológicas” – para não
falarmos de relação alguma – das políticas públicas com povos, costumeiramente chamados
da floresta, padecendo historicamente dos planos lisos e astuciosos do chamado “grande
capital.”
29
Periódico veiculado na cidade de Belém nas décadas de 1960/70 e 1980.
26
Em 1981, publicando seu primeiro livro artesanal, “Verde Canto”, há uma sutura de
lembranças de Cajary às experiências da “urbanidade”. Nessa dicotomia, em alguns
momentos, de contornos redutores, Totó lembrava dos “causos” de sua infância, inclusive do
Muiraquitã30, seu amuleto inseparável e indispensável para fertilizar suas produções artísticas
(SIQUEIRA, 2012b), magma subterrânea multivocal reverberando de seu “emaranhado
chavascal”.
Verde Canto
Verde é o meu canto
vivo muiraquitã de amor talhado
na pedra da existência e pendurado
30
Juraci reconta em diálogo a narrativa sobre esse amuleto tão perseguido por Macunaíma de Mario de Andrade
que garante fertilidade, em múltiplos sentidos, a quem se dispõe a usar o pequeno artefato zoomorfo de cor
verde. Seria ela, pelo olhar de vários historiadores, mescla de mitologia grega emaranhada de traduções
ameríndias.
27
31
Periódico, ainda em circulação, da cidade de Macapá/AP.
28
32
Periódico paraense não mais em circulação.
33
Nasceu em 1927, no município de Barcarena, próximo à Região Metropolitana de Belém. Ao longo de sua
carreira literária e como historiador autodidata, José Valente lançou mais de dez livros nos gêneros de história,
prosa e poesia.
29
Essa “crítica construtiva”, aos olhos de Totó, aos meus, rendição aos processos
recolonizadores34, coincidiu com o lançamento da obra “Piracema de Sonhos”, um “marco”
(SIQUEIRA, 2012b) nas suas relações com os circuitos culturais mais restritos. Tratava-se de
uma publicação financiada por recursos públicos divulgada nas “colunas sociais.”
(SIQUEIRA, 2012b). Totó do Cajary, como piracema, começava a “desovar” seus devaneios
provocando sujeitos de outras territorialidades:
Antonio Juraci Siqueira é um dos mais importantes trovadores do Brasil. É pela
trova que seu talento se expressa de modo peculiar e original. Todavia, o poeta
encontra, em outras formas poéticas, meio e finalidade de sua expressão, sem nunca
no entanto, perder a simplicidade de expressão e clareza na forma. (João de Jesus
Paes Loureiro35).
Recebi o Piracema de Sonhos, apanhados numa rede belamente tecida, malha de fios
de Ariadne, ou melhor, cabelos de Iara... que você canta o que é nosso, nosso chão e
nossas coisas, nossas ânsias e abundâncias. Quisera pegar uma cambada em cada
mão, empunhar pro alto e mostrar pra essa malta de arrivistas semicultos, que
maltratam essa terra, que a peixeira do caboclo é tão firme e tão poderosa como a
lança guerreira de Dom Quixote. E enfrentar numerosíssimos e poderosíssimos
exércitos com uma cambada em cada [...] (Vicente Salles36)
34
A colonialidade, pelo olhar de quem sente o peso de sua mão (QUIJANO, 2000), pode ser entendida um dos
elementos constitutivos e específicos do padrão mundial de poder capitalista. Se funda na imposição de uma
classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do dito padrão de poder e opera em cada
um dos planos, âmbitos e dimensões materiais e subjetivas, da existência social cotidiana e da escala social.
Origina-se e mundializa-se a partir da América.
35
Escritor, poeta e professor universitário paraense. Professor de Estética, História da Arte e Cultura Amazônica,
na Universidade Federal do Pará. Mestre em Teoria da Literatura e Semiótica, PUC/São Paulo e Doutor em
Sociologia da Cultura pela Sorbonne, Paris, França.
36
Historiador, antropólogo e folclorista paraense considerado um dos mais importantes intelectuais do século
XX, da Amazônia e do Brasil. Fez esse comentário na orelha de “Novos Versos Sacânicos”. (SIQUEIRA
(2012a).
30
(SIQUEIRA, 2012b), preocupação de não perder os laços de sua Arte com a vida “de
verdade”.
bulir com e no desconhecido, no perigoso e no inusitado. Era uma “pena” compartilhada com
os “escritos de Gregório de Matos, rebelde maldito, “subversivo, anticlerical e pornográfico”,
de um Brasil fudido e mal pago, como ainda hoje.”37
Sacânicas elucidações
Em 1989 publiquei “Os Versos Sacânicos” paródia ao título de “Os Versos
Satânicos”, livro do escritor britânico Salman Rushdie, pelo qual teve a cabeça posta
a prêmio pelo Aiatolá Khomeini, líder espiritual do Irã, na época. Na ocasião
publiquei parte do que havia saído até então no PQP - um jornal pra quem pode,
editado pelo jornalista e incentivador Raymundo Mário Sobral. Aqui reúno parte do
que foi publicado depois no citado jornal e que não se encontra nas edições
anteriores de “Os Versos Sacânicos”, deixando de fora os versos de cunho temporal
reunidos em “Colmeia de Tataíras – versos de circunstância, além de outras
composições já publicadas em outros títulos e outras que não achei relevante”.
Inclui, ainda, “As Aventuras do Anão Labioso” e o “Manifesto Cultural do Xiri
Relampiando”, ambos não publicados no PQP. Diferente das edições anteriores que,
por pura sacanagem, nem sumário tinham, aqui o leitor encontrará um pouco mais
de organização, estando este volume dividido em duas partes: a primeira, “No Reino
da Enrabação”, contendo versos satíricos e a segunda, “No Reino da Sacanagem”
versos sacânicos. E chega de papo-furado, que sacanagem, também, tem hora.
(SIQUEIRA, 2012a, p.01)
37
Comentário de Vicente Salles confidenciado, por carta, a Juraci.
38
No próximo capítulo, essa escritura receberá uma abordagem mais detalhada.
39
Segundo Antonio Juraci Siqueira, o seu primeiro verso sacânico foi aceito para publicação em meados de
dezembro/1979 (governo militar de João Baptista Figueiredo).
40
Para o jornalista Raimundo Mario Sobral, em entrevista concedida em 2012, o semanário O Pasquim, fundado
em 1969, foi um fenômeno editorial incentivando a aparição, na região norte, de espaços editorias despudorados:
SOBRAL, Raimundo Mario. Belém: 08 de novembro de 2012. Entrevista concedida a Hiran de Moura Possas.
32
41
O professor Amálio Pinheiro, nas reuniões do Grupo de Pesquisa Comunicação e Cultura: barroco e
mestiçagem, pensa a crise não sendo reduzida a um simples momento de revolução criativa nas cenas da
América Latina.
42
Do imaginário paraense, surgiu a explicação de que para falar de maneira despudorada sobre tudo e sobre
todos “Ridendo Castigat Mores”, fazendo severas observações sobre o grotesco das coisas supostamente solenes
e o ridículo das coisas supostamente respeitáveis. Esse fazer só poderia partir de alguém que tenha recebido a
comenda da coragem para empreender esse ofício. (SOBRAL,1994, p. 24)
33
Alguns monstros do jornalismo, na época, encontraram no PQP espaço para dar viés
às suas produções humorísticas, já que nos seus espaços editoriais oficiais não
encontravam aceitação para essas produções. Dentre muitos perdidos em minha
memória, lembro-me de Pedro Veriano (médico, jornalista e crítico de cinema),
Edyr Proença (advogado, jornalista e narrador esportivo) e Acyr Castro (crítico de
cinema) (SOBRAL, 2012, p.s/n).
carnavalesco de Florismunda Tamuatá43, àquela que “todo mundo” deseja “tirar seu couro”,
talvez ilustre metonimicamente “complexidades” substituindo definições para a capital
paraense.
Tirando o couro
Florismunda Tamuatá,
cabocla do cu pela
de trepar na capoeira,
no barranco, no cerrado,
veio cá para a cidade
e voltou no mês passado
com a xana calejada
e o juízo atarantado.
43
“Brincando” com o tupi, o tamuatá, peixe caliquitídeo, era também considerado “peixe do mato, meio anfíbio”
pela sua capacidade de viver no lodo, resistindo à seca dos rios. Dizia-se que era encontrado muitas vezes em
plena floresta, longe de lagos e rios, em migrações de cardumes, por ser seu costume passar de um lago para
outro, ou de um lago para um rio ou vice-versa, aproveitando-se para isso de qualquer banhado ou simples
umidade que apresentasse o caminho a percorrer, sendo que em certas circunstâncias, quando fica empoçado e
pressente uma seca maior, se arrisca migrar até sob uma simples chuva. Meio peixe, meio anfíbio. Híbrido e
cigano como muitas Frorismundas amazônicas.
35
Forçar-me ou “forçar” a crítica monolíngue a pensar com os pés essa cidade nomádica,
líquida e instável exige um labor hercúleo. Somos, ainda, as mentes e os corpos sedentários
tão bem descritos por Baitello (2005, p. 23): “inflamos os signos, símbolos e as próprias
imagens, para que nos protejam como escudos. E passamos a viver dentro da armadura dos
signos e símbolos, as imagens de corpos”.
O PQP, essa tela de outras Belém, desviou por três décadas os olhares treinados nos
“suntuosos teatros da Belle Époque” para as ruas e para as casas noturnas, paisagens nas quais
os códigos mais sólidos vão perdendo sua rigidez, experimentando a vulnerabilidade e a
reversibilidade.
44
O explorador-etnógrafo espanhol Vicente Yáñez Pinzón chamou o rio Amazonas de Río Santa María del Mar
Dulce, o que posteriormente foi reduzido para Mar Dulce (literalmente "Mar Doce"), devido à quantidade de
água doce impulsionada pela correnteza do rio para dentro do oceano Atlântico.
45
Pequeno empréstimo da obra homônima de Ítalo Calvino.
46
O termo chegou a mim Por Boaventura Sousa Santos (2002)
36
Travestidas por deboches, humor direto, conciso e quase ingênuo, essas oralidades
devoradoras invadem com “delicioso solavanco mental que resulta da passagem de um
sistema de referência para outro” (SALIBA, 2002, p. 98) “fazendo saliência ou saliente com
essa coisa séria e frígida.” (SIQUEIRA, 2012b).
Os “orgasmos criativos” do PQP chegaram ao fim em 2002, em parte, pela perda da
imprevisibilidade dos deboches. Sobral (2012) diz que as contestações e os “ferimentos”
provocados nas autoridades tardo-militares começaram a dar lugar à economia de
obscenidade. Em tempos de “democracia”, artistas mergulhavam na “esterilidade” criativa.
“literatice” [...] verborreia que, quase sempre, em relação à obra pornográfica (que
por isso mesmo não é mais pornográfica), é o elemento desumanização do obsceno,
das personagens da obra obscena e do expectador [...] uma experiência degradada do
obsceno (PIRES FERREIRA, 1985, p. 183).
47
Seguindo as impressões de Slavoj Zizek (2002): Ser marginal hoje em dia faz parte da cultura dominante, não
é algo automaticamente subversivo [...] Ser marginal não quer dizer que se é marginal, mas sim uma maneira de
determinar sua posição, que na verdade pode ser bem central. Gosto de citar Chesterton nesse ponto, ele diz que
a regra hoje em dia é ser heterodoxo, quer dizer, a posição verdadeiramente marginal é a ortodoxia. Vivemos
numa época muito estranha.
48
Para Elias Saliba (2002), a partir da terminologia usada por Propp (1992), o humor bom foi uma categoria
surgida no Brasil, início da república, para arrefecer as críticas e a língua ferina de quem transitava pelas vias dos
cantos paralelos.
38
Seguindo direções diferentes do PQP, Antonio Juraci Siqueira percebia que já era e
poderia tornar-se sujeito ainda mais múltiplo. Sem deixar para trás suas “alquimias”
hiperbólicas, sem cobranças ou culpas de traduzir uma cena artística menor ou pior,
experimentou o risco de jogar por novas moradias, em princípio, nas edições artesanais
confeccionadas pelo autor.
Não é todo tempo que as pessoas estão dispostas a publicarem seus textos. Percebi
que poderiam divulgar e vender minhas obras, por conta própria. Meu lucro é apenas
o reconhecimento das pessoas. Não quero fazer públicos. Eu escrevo pra todo
mundo. (SIQUEIRA, 2012b)
39
outras formas de vida49. Em “Sob o Signo da Merda” toca questões “mal cheirosas”, para não
dar em “merda”. É uma desescritura, supressão, omissão, acréscimos e deslocamentos
devoradores afiando seu ferrão para remexer um cotidiano confuso, desajustado e incerto: “as
convulsões do riso jogam abaixo o edifício de nossos princípios e corremos o risco de perecer
embaixo dos escombros” (PAZ, 1979, p. 15-16).
49
Tecendo e entrecruzando suportes narrativos.
42
“novas” críticas, como a do professor, poeta e “imortal” João Carlos Pereira 50: “Na poesia de
Antonio Juraci Siqueira, o que fica mesmo é a emoção. Emoção de mundo. Sentimento de
essência e espanto”.
Alfredo Garcia 51 , na mesma época, descreve Juraci com contornos barrocos,
considerando-o um doublé de filósofo, açougueiro, poeta, declamador, agitador cultural,
artesão e cartunista.
50
João Carlos Pereira pertence à Academia Paraense de Letras.
51
Alfredo Garcia é natural de Bragança/PA e reside há dezessete anos em Belém. Jornalista e radialista,
membro-fundador da APE (Associação Paraense de Escritores).
43
52
Periódico diário de Belém/PA.
44
“causos”. Fala sobre sua nova faceta: ser filho de boto53. Vestido de branco, com chapéu de
palha na cabeça, agora pretende seduzir transeuntes das praças, crianças nas escolas e o
público nos eventos culturais do Pará.
Nessa fase, sua massa criativa-obscena parece ter sido arrefecida em favor de um
Juraci, aparentemente, mais “sóbrio”. Agora, usava um terno branco e versava para os
“pequenos’.
53
Nas Amazônias, imbricando o real com o imaginário, ribeirinhas grávidas explicam suas astúcias sexuais
resultadas do encantamento do boto. Em forma de “gente”, o homem-bicho as seduz, não assumindo a
paternidade. Juraci afirma ser a consumação da cópula de sua mãe com o encantado.
45
54
Empresto o termo que dá título a um dos contos de Guimarães Rosa, tentando desenhar os contornos de
artistas alternativos, mas silenciados das cenas culturais paradigmáticas.
47
Ossip Mandelstam
55
Para Bachelard (1978) o empirismo e o racionalismo estão ligados, no pensamento científico, por um estranho
laço, tão forte como quem une o prazer à dor.
56
Pesquisadora paraense radicada por décadas em Paris, atualmente professora de língua portuguesa na capital
francesa.
57
Essa ilustração foi criada por Michel Daudibon, artista plástico, a partir das memórias de infância de Ana, sua
esposa.
48
58
Seriam, usando a opinião de Mielietinski, na sua poética do mito, estudos clássicos restritos à “satisfação” da
curiosidade sobre o homem “primitivo”.
59
Citado em MONNEYRON, Fréderic, THOMAS, Joël. Mythes et Littérature. Ed. Que sais-je? Paris, 2002.
60
BARTHES, Roland. Mythologies.Paris, Éd. du Seuil, 1970.
61
ELIADE, Mircea. Aspects du mythe. Gallimard, Cher, 1963.
62
DURAND, Gilbert. Introduction à la mythodologie: mythes et sociétés. Albin Michel, Paris, 1995.
63
Apropriando-me da metáfora de Paul Zumthor, em Escritura e Nomadismo: um passado limpo de “parasitas”.
64
Empresto a expressão forjada pelo geógrafo paraibano, vivendo grande parte de sua vida pelas Amazônias.
65
Não esqueçamos o imaginário ou simbólico atravessando nossas cenas sociais, uma ponte ininterrupta
edificada com o sobrenatural.
66
Análises assentadas a três cordéis do Juraboto: O chapéu do boto; Eu, o filho do boto; Nós, os filhos do boto.
49
com a qualidade e o preço das carnes. Por mais que tentasse desmentir a “piada”, tempos
depois, Juraci não superou a força e a ressonância alcançada pelo “causo”.
Daudibon (2011) cita os desdobramentos, de contornos metafóricos, dessa história.
Juraci, já bacharel em filosofia e poeta melhor reconhecido em Belém, traduziu a ribeira
“violada” como a Amazônia vítima dos assédios, dos estupros, dos abandonos e dos disfarces
capitalistas. Nós67 seríamos essa criança-bicho-bastarda inconformada com o ato de violência.
A mentira verdadeira amorteceu o decalque cultural geralmente atribuído aos botos-
homens: estupradores sobrenaturais. Juraci, ao contrário do vilanismo atribuído ao boto,
passou a ser considerado, pelos artistas, um crítico dos avanços e ressignificações do
capitalismo:
O Brasil se deslocou para a Amazônia. Tudo acontece lá, os interesses econômicos
estão lá, os grandes capitais estão fluindo para lá [...] o olhar do mundo, a paranoia e
ilusão do paraíso [...] o Lugar dos lugares [...] cozinhando um gigantesco guisado
cultural. (VIVEIROS DE CASTRO, 2008, p.174)
67
Juraci refere-se aqueles que nascem em terras amazônicas.
68
Na busca de uma leitura para o termo, por meio das escolhas mais simplistas, Baudelaire, na poesia-prosa
“Meu coração a nu”, entende essa crença ao progresso como “uma doutrina de preguiçosos”.
50
Forjado e disperso por tantas memórias, tantas culturas e tantas ciências, os botos de
Juraci cabriolam as razões fadadas à exaustão, nos convidando para o exercício de conexões
transversais: “Nativos e antropólogos ressurgem como posições precárias, reversíveis e
intercambiáveis, assim como o são humanos e não humanos para o perspectivismo
ameríndio.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2008, p. 15)
Daudibon (2011), a partir de sua dissertação de mestrado, desdobrou essa produção
para uma livre tradução do livro “O chapéu do boto”, exercício autômato, sacralizando a
linguagem pela linguagem, mera ação informativa, se analisada pelos estudos de Meschonnic
(2010).
Os “causos” sobre o boto falam de um chapéu escondendo um pequeno orifício,
denunciando a presença do delfim no homem. Ótima oportunidade desperdiçada pela tradução
literal de Daudibon. Foi perdida a chance de uma certa traição a essa cena cultural revestida
excessivamente de densas camadas dos vernizes cristãos.
Traída por seus labirintos memoriais amazônicos, sem a compreensão dos riscos e
perigos desse espaço complexo, a pesquisadora franco-brasileira percorreu os cada vez mais
estreitos corredores das razões clássicas, sem a preocupação de utilizar outros novelos.
O fascínio da construção labiríntica consiste na divergência de conhecimento
existente entre o arquiteto e o viajante [...] oprimido dentro das exíguas medidas dos
corredores, limitado pelas encruzilhadas obrigatórias e pela convencionalidade dos
símbolos-chaves, o usuário experimenta o mundo como uma sucessão de
fragmentos, cujo conjunto jamais é por ele captado. (COLOMBO, 1991, p. 41)
52
A dissimulação da textura pode, em todo o caso, levar séculos para desfazer seu
pano.
Jacques Derrida
69
Pesquisadora e professora da Faculdade Integrada Brasil Amazônia, Belém-PA.
70
Para o pesquisador Vicente Salles, em Literatura sotádica popular, sotádico corresponde a produções
apresentando um conteúdo que foge à regra da moral e dos “bons” costumes.
53
Palavras obscenas [...] ditas por meio de perífrases. O poeta quase não usa termos
técnicos, ele faz uso da linguagem popular, dos apelidos dados ao órgão genital
masculino [...] O apelido visa ressaltar as características de alguém ou de algo.
Nesse caso os apelidos dados ao pênis têm por objetivo suavizar o impacto que o
termo técnico causaria, além de reforçar suas características. (CARVALHO, 2010,
p.22-23)
71
Comentário atribuído por Vicente Salles, em nota de orelha, aos versos sacânicos de Juraci.
72
O escritor paraense Alfredo Garcia, na orelha dos versos sacânicos, pelo pensamento de Leon Eliachar,
comenta os possíveis efeitos dos versos de Juraci.
54
Se Descartes nos ensinou, a nós modernos, a dizer “eu penso, logo existo” – a
dizer, portanto, que a única vida ou existência que consigo pensar como
indubitável é a minha própria -, o perspectivismo ameríndio começa pela
afirmação duplamente inversa: “o outro existe, logo pensa”.
73
Professora da Universidade Federal da Paraíba.
74
CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2ª Ed. Bauru: EDUSC, 2002,
55
de uma antropologia simétrica 75, antropologizando não apenas a periferia de nossas culturas,
como nossos “centros”, em especial o europeu.
Assim como os xamãs espalhados pelas Amazônias, Juraci incorpora elementos
outros, alguns estranhos às análises redutoras. Suas expansões predatórias são complexas para
as leituras duais. Essas incorporações entre homem e boto: “bicho arteiro e brabo. Não se
deixava agarrar, pois tinha a força do mar e a lisura de um quiabo! [...] rosto sério e passos
firmes [...] sapatos pretos de couro, no pulso um relógio de ouro, terno branco e cinturão”
(SIQUEIRA, 2007, p. 1-2) são a múltipla captura de vozes culturais.
Por lo tanto no es nada sorprendente que, em cuanto imágenes definidas por su
disyucion em relacion com um cuerpo humano, los muertos sean atraídos por
cuerpos animales; es por eso que em la Amazônia es transformarse em animal [...]
chamán – capaz de hacer passar um flujo semiótico benéfico entre humanos y no-
humanos. (VIVEIROS DE CASTRO, 2001, p. 159)
75
Multiplicidade relacional de saberes.
56
O aberto não é outra coisa senão uma imobilização do não aberto animal. O
homem suspende a sua animalidade e, desta maneira, abre uma zona livre e
vazia na qual a vida é capturada e a-bandonada em uma zona de exceção.
Giordio Agamben
Nas reentrâncias da natureza com a cultura, Juraci não para de se tornar alguma coisa:
Não se deu ainda a devida atenção para o fato antropológico e geográfico de que
regiões como a América Latina e o Caribe nunca puderam excluir de sua produção
cultural e científica a massa de informações provenientes das forças da natureza,
tratem-se de fenômenos geotectônicos e geobotânicos reabsorvidos pelos materiais
do trabalho humano. (PINHEIRO, 2013, p. 39)
76
Empresto a expressão dos pesquisadores Amálio Pinheiro e Viveiros de Castro.
77
Agamben (2013) faz referência aos campos de concentração e aos experimentos históricos de separação-
extermínio.
58
Esta cidade
só é possível porque homens vindos
de todas as noites
urinam às cinco
seu fluxo amarelo
[e a germinam]
urinam ao meio-dia
seu fluxo esverdeado
[e a condenam]
urinam às dezoito e quinze
seu fluxo marrom
[esperma de pus e lodo]
seu fluxo escuro
(gozo de lixo e lama)
seu fluxo prateado
(rios e abortos de todas as partes)
e a adormecem.
Micheliny Verunschk
O tempo de engaste dessas dobraduras não passa diante de nossos olhos como as
“perdas” e “resgates” da tradição. O tempo amazônico somos nós em direção arbitrária, em
ritmo orbitário à programação dos relógios e dos calendários. Quem sabe, um tempo barroco,
tempo caótico, imprevisível e errático: “Os elementos de uma concepção diferente do tempo
jazem dispersos nas dobras e nas sombras da tradição cultural do ocidente” (AGAMBEN,
2005, p. 120).
Nesse mapa movediço de tempos barrocos, Juraci faz uma aposta alucinante com
Cronos, violando a caixa de tempos impostos pelas elites do pensamento ocidental,
epistemicídio, a ferro e fogo, nas Américas Latinas:
Não se pode, portanto, remeter qualquer meio de comunicação e arte a um quadro
lógico traçado a priori, dito moderno, pós-moderno ou contemporâneo, sem serem
ativadas as referências específicas e peculiares à rede estrutural do entorno da série
estudada (PINHEIRO, 2013, p. 62)
78
Significa no tupi, estrondo: força ingovernável regida pela confluência das águas (rio e mar) com o ar e a terra.
79
Utilizo a expressão de Boaventura Sousa Santos (2010), para demonstrar Juraci transcriando outras
temporalidades.
60
80
Já citado anteriormente, Juraci, na sua “formação” filosófica, compreendeu e bricolou para suas
experimentações o tempo clássico, que para Agamben, em Infância e história: destruição da experiência e origem
da história é movimento circular, assegurando a manutenção das mesmas coisas através de sua repetição e do seu
contínuo retorno.
81
Para Octavio Paz, em seu “Fijos Del Limo”, o tempo cristão introduz a ideia de tempo finito e irreversível,
sendo todo evento único e insubstituível.
82
Juraci brinca com a questão, em entrevistas concedidas e conversas informais, dizendo que “brinquedos”
pequeno-burgueses, como o carro e o dinheiro, são cada vez mais necessários para intensificar as seduções do
homem-boto.
83
Quer seja pensado como círculo, quer como linha, o caráter que domina toda a concepção desses tempos, para
Agamben (2005), é a pontualidade.
61
Delinear uma representação para essas badernas temporais de Juraci nos lembra dos
labirintos de Deleuze (1991) e de suas desdobras. Quem sabe a elipse, curvatura acidental à
deriva das retas, dê contornos aproximados aos tempos elásticos do Juraboto, uma função
operatória ou um traço não parando de fazer dobras: dobras vindas do oriente, dobras gregas,
romanas, românticas, góticas, clássicas. Dobra rumo ao infinito.
Encarcerar os tempos amazônicos em formas lineares é impossível diante de uma
multiplicação “cancerosa” de tantos “eus” e de tantos tempos:
Difícil para esse indivíduo vocal/escritural alistar-se numa linha retilínea do tempo
(a não ser pelos mecanismos facilitadores da ilusão ideológico-institucional), que
dicotomize o mundo em sim ou não, ser ou não ser, essência ou existência, dentro ou
fora (PINHEIRO, 2013, p.84-85).
O tempo amazônico seria o tempo dos artistas? “o tempo vai da direita para a
esquerda, da morte para o nascimento, em direção ao improvável, à maior das raridades, à
espantosa novidade.” (SERRES, 1993, p. 121).
Sobre esses colapsos temporais cambiantes espalhados pelas Amazônias, um fazer
cartográfico seria interminável. Não é à toa que Octavio Paz (1982) vai dizer que o tempo
será, na cena latino-americana, depositário sempre de tantos sentidos!
62
87
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução Myriam Ávila; Eliana L. de Lima Reis; Gláucia Renate
Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.
88
LAWN, Chrins. Compreender Gadamer. 2ª edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010, p. 14.
89
GLISSANT, Édouard. Poetics of Relation. Translated by Betsy Wing. United States of America: University
of Michigan Press, 1997.
90
CABRERA, Olga. A literatura e a filosofia da contracultura caribenha em Alejo Carpentier. In: ALMEIDA,
Jaime de; CABRERA, Olga; CORTÉS ZAVALA, María Teresa (Orgs.). Cenários Caribenhos. Brasília:
Paralelo 15, 2003, p. 32-48.
91
CANDIDO SÁ. Transamazônica humanizando. Itatocan Jornal. Marabá, Edição do Natal, dez. 1971, p. 2.
92
MARTINS, José de S. Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: Hucitec, 1997, p.
162.
64
No início de 1971, um grupo de trabalho formado pela Funai (chefiado pelo falecido
e saudoso antropólogo Eduardo Galvão, com participação de mais três antropólogos
do Museu Goeldi) reconheceu que os grupos ainda não pacificados que se
encontravam na rota da estrada, 'além de constituírem minoria, parecem não possuir
a força agressiva então demonstrada pelos Kayapó.94
93
MARTINS, José de S. Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: Hucitec, 1997, p.
163.
94
PINTO, Lúcio Flávio. História trágica. O Liberal, Belém, s/p, 16 Jun. 1979.
95
BRAGA, Magno M. M. Transamazônica em perspectiva: a experiência dos trabalhadores migrantes do
Nordeste. Marabá, 2014. (Texto inédito, 14f).
65
96
BRAGA, Magno M. M. Transamazônica em perspectiva: a experiência dos trabalhadores migrantes do
Nordeste. Marabá, 2014, p. 9 (Texto inédito, 14f).
97
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução Myriam Ávila; Eliana L. de Lima Reis; Gláucia R.
Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003, p. 53.
98
BARROS, João Maria. Futuro e Grandeza. Revista Itatocan, Marabá, Ano 8, nº 1, s/p, jan. 1971.
66
O progresso propalado
nos ditos da Ditadura
foi, aos poucos, se tornando
semente de desventura.
Comparada à bomba atômica,
a estrada Transamazônica
tornou-se “Transamargura”.
(SIQUEIRA, 2011, p. 19-20)
Do malfadado projeto
foi a miséria um produto.
Na cidade de Altamira
esse crescimento bruto
transformou-se num tumor
traduzido em muita dor,
desavença, pranto e luto.
(SIQUEIRA, 2011, p. 20-21)
99
Pela sinuosidade, condições precárias de pavimentação, tráfico de drogas, violência e agressões ambientais
enfrentados por quem transita por certos trechos da Transamazônica.
68
Perfurando passagens pelos meandros da rodovia, “num prostíbulo qualquer”, “um tal
lugar”, “a boa Samaritana” cruzou também com:
[...] campo, mata, rio
expondo um câncer latente
no coração do Brasil.
Atender toda essa gente
sem ter um canto decente,
era o grande desafio.
100
Município do Amazonas. O nome Coari provém de matrizes indígenas dos povos Catauixis, Irijus, Jumas,
Jurimauas, dentre outros. "Coaya Cory", ou "Huary-yu" significando respectivamente, "rio do ouro" e "rio dos
deuses".
101
Palavra em Tupi significando “Flor Matizada”. É derivada das expressões Manacá, que significa Flor em tupi,
e Puru, da mesma origem, que quer dizer enfeitado, matizado.
102
Vocábulo significando palmeiral, "lugar onde há muitas palmeiras". Do tupiurucuri: uma das muitas
variedades de palmeiras do Brasil; e tyba: grande quantidade, abundância.
69
tão próximas. Lá residem as cidades dos minérios; os espaços das palmeiras e o lugar dos se
“deuses” banhando.
No dia cinco de março
partiu em nova jornada
no rumo de Coari
pra onde foi enviada.
Lá, além de diretora,
foi, ainda, professora
competente e dedicada.
Diretora do Instituto
Maria de Mattias, fundou
a Escola Normal Rural
em Altamira e ajudou
a implantar, em Santarém,
outro colégio. Porém
a luta continuou.
Para Manacapuru
ela então segue viagem
onde fica por dois anos
de deus pregando a mensagem
entre Irmãs adoradoras,
em cujas mãos promissoras
deixava o grão da coragem
Regressa a Urucurituba,
as sua terra natal
e de lá, depois de um ano,
retornou à Capital.
Em Manaus, em cada escola
Noeme ensina, consola
e prega o amor divinal.
(SIQUEIRA, 2011, p. 13)
103
Essa proposição “teoricometodológica” que, para muitos pesquisadores, pode ser decolonial, interpretativa e
reflexiva quando devorar os outros e, ao mesmo tempo ser devorado, significa, para o pesquisador dos Marajós,
Agenor Sarraf Pacheco (2010), ver, observar, olhar, visitar, trafegar, apalpar, viver o bairro, pensar a cidade,
refletir sobre seus caminhos, debater suas presenças ausentes, mergulhar em sua história, captar usos e sentidos
de seus patrimônios edificados, abandonados, silenciados, restaurados, praticados por aqueles que os constroem,
compartilham e a eles dão existência física e simbólica.
70
Para essa prática rizomática, Boaventura Santos (2010, p. 53) dialoga com sua
ecologia de saberes, “reconhecimento da pluralidade de conhecimentos heterogêneos [...] em
interações sustentáveis e dinâmicas entre eles”. Martín-Barbero, na mesma trilha (2004, p.13),
vê o fazer cartográfico, como construção de outros mapas cognitivos traduzindo outras
figuras, o arquipélago, por exemplo. Com isso, o continente se desagrega em ilhas múltiplas e
diversas interconectadas. Glissant (2005, p.54), em devir com a “Transamargura”, imensa
rodovia serpenteando subjetividades, nos faz percebê-la sob a metáfora do rizoma,
“pensamento arquipélago, não sistemático, indutivo, que explora o imprevisto da totalidade-
mundo, e que sintoniza, harmoniza a escrita à oralidade, e a oralidade à escrita”.
Na Literatura, busquei Euclides da Cunha e sua escritura gráfico-geológica-botânica
(PINHEIRO, 2013, p. 110) para refletir sobre a complexidade das Amazônias de Juraci. Achei
adormecido, dentre seus sem número de textos, um diálogo, em tons de igualdade, das
humanidades confundidas com a natureza:
Era inevitável. O forasteiro, ao penetrar o Purus ou o Juruá, não carecia de
excepcionais recursos à empresa. Uma canoa maneira e um varejão, ou um remo,
aparelhavam-no às mais espantosas viagens. O rio carregava-o; guiava-o;
protegendo-o. Restava-lhe o só esforço de colher à ourela das matas marginais as
especiarias valiosas; atestar com elas os seus barcos primitivos e volver águas
abaixo – dormindo em cima da fortuna adquirida sem trabalho. A terra farta, mercê
duma armazenagem milenária de riquezas, excluía a cultura. Abria-se-lhe em
avenidas fluviais maravilhosas. Impôs-lhe a tarefa exclusiva das colheitas. Por fim
tornou- lhe lógico o nomadismo [...] O povoamento não se expandia: estirava-se.
Progredia em longas filas, ou volvia sobre si mesmo sem deixar os sulcos em que se
encaixa – tendendo a imobilizar-se na aparência de um progresso ilusório, de recuos
e avançadas, do aventureiro que parte, penetra fundo a terra, explora-a e volta pelas
mesmas trilhas – ou renova, monotonamente, os mesmos itinerários da sua
inambulação invariável. Ao cabo, a breve, mas agitadíssima história das paragens
novas, à parte ligeiras variantes, ia imprimindo- se toda secamente, naquelas
extensas linhas desatadas para S.O.: três ou quatro riscos, três ou quatro desenhos de
rios, coleando, indefinidos, num deserto... (CUNHA, 2000, p.196-197)
71
A raiz única é aquela que mata à sua volta, enquanto o rizoma é a raiz que vai
ao encontro de outras raízes.
Edouard Glissant
Pelos olhos de Pires Ferreira (1995), esse percurso sem fim entre a ancestralidade e o
futuro é marcado por múltiplos movimentos plagiotrópicos 107, inclusive nas Amazônias de
Juraci, um panteão de mesclas afroeuroindígenas.
Caro leitor, nestes versos
eu vou lhe dar uma dica
para você descansar
longe de qualquer pissica.
Essa fórmula porreta,
encontrei numa maleta
que veio da Martinica.
No reino dos vegetais
pegue 7 pés de arruda,
7 folhas de assacu,
7 bananas parrudas,
7 sementes de urtiga,
7 pimentas graúdas.
Coloque tudo num tacho,
acenda fogo debaixo
e aos orixás peça ajuda.
Pegue no reino animal
7 rabos de tatu,
7 pirocas de gato,
7 bicos de jacu,
7 miolos de pomba,
104
Juraci, ultimamente, acha-se um canoeiro. Leva e traz poesia ininterruptamente (SIQUEIRA, 2015)
105
Do tupi para’wara (de para=água, mar e wara=o que veio de, nascido de) que quer dizer: o que veio das
águas, do mar (o rio-mar).
106
Depoimento do leitor Orlando Brito de São Luís/MA transmitido por carta a Antonio Juraci Siqueira.
107
Utilizo termo de Haroldo de Campos (1981).
72
7 penas de urubu
e, nessa mistura fina,
acrescente estricnina
e veneno de urutu.
Terminada a operação,
reze 7 ave-marias
e derrame o conteúdo
do tacho em 7 bacias.
Faça uns rituais estranhos
depois tome 7 banhos
e espere melhores dias.
108
Do imaginário transeunte: azar, urucubaca.
73
109
Alimentos da criatividade, as metáforas ligadas à copulação ornamentam e nutrem nossos imaginários.
74
um bafafá do diabo
que nunca mais teve fim.
E antes que ocorra a mim
o mesmo que aconteceu
ao poeta Zebedeu
que apodreceu na masmorra,
eu mando todos à porra
e, pra sempre, viva eu!110 (SIQUEIRA, 2012, p. 78)
Leitor das pajelanças amazônicas, como o ato de rezar, benzer e invocar entidades e
deuses, Juraci agencia elementos do catolicismo popular com as crenças afroindígenas 112 ,
descrevendo mandingas113 e curas para os males da humanidade com o auxílio dos repertórios
culturais-tectônicos da floresta.
110
Utilizo o poema, na íntegra, para não abafar quaisquer rastros e resíduos da poética de Juraci.
111
Agamben (2007) esclarece a utilização da expressão, afirmando que a profanação toca o sagrado libertando-o
de seu uso comum. A escrita, em si, é uma proposta profana.
112
O termo foi cunhado pelo professor doutor da Universidade Federal do Pará, Agenor Pacheco Sarraf.
113
Em simbiose com a natureza, agentes da fé e da cura receitam “remédios” para os males físico-espirituais da
humanidade. Novelos de saberes da cura, para o historiador Agenor Sarraf (2013), construído por fios de
lembranças que o tempo não deu conta de esgarçar.
76
No poema protagonizado por Dico Tralhoto, “um cabra macho de Afuá 115” cedendo
aos assédios sexuais das forças “demoníacas”, “as variáveis se multiplicam [...] a
imprevisibilidade se confirma”. (GLISSANT, 2005, p. 101). Ocorrem da “entrega” mais
“arranjos tupinizantes” (PINHEIRO, 2013, p. 88) friccionando-confundindo homens, deuses e
diabos: “O divino, o humano, o natural, geralmente tão separados, parecem aqui colapsar-se”.
(AGAMBEN, 2007, p. 12)
114
Insisto no uso integral do texto para não silenciar a proposta fáustica de Juraci.
115
A “Veneza amazônica” localiza-se no arquipélago do Marajó.
79
ou da mulher do Capeta.
Mal acabou de falar,
toda a casa estremeceu
e uma formosa mulher
junto dele apareceu
completamente pelada
que, sacudindo a rabada,
lhe disse: – Aqui estou eu!
Venho do reino das trevas
atender o teu chamado.
Agora, ou trepas comigo
ou estarás condenado
a terminar os teus dias
numa zagaia espetado.
Dico Tralhoto não era
de fugir de assombração.
Saltou nu sobre a capeta
e os dois rolaram no chão.
Quando, enfim, cravou-lhe o ferro,
ela deu tamanho berro
que estremeceu o barracão!
A Diaba começou
a botar fogo do ouvido,
dos olhos, nariz e boca
fazendo um grande alarido
procurando amedrontar
o enrabador atrevido.
O cabra crava-lhe a pomba
sem ligar para a ameaça,
fita os olhos da Tinhosa
e diz, em tom de pirraça:
– Podes virar um vulcão,
sabrecar minha carcaça
que eu garanto, sem lorota:
do buraco da xoxota
não soltarás nem fumaça!
A Diaba deu um berro
e em fumaça se virou,
um forte cheiro de enxofre
pela casa se espalhou
enquanto o pobre caboclo
sozinho outra vez ficou
curtindo um grande desgosto
pois desde esse mês de Agosto
seu pau não mais levantou. (SIQUEIRA, 2012, p. 42-43)
116
A partir do pensamento de Viveiros de Castro sobre o perspectivismo ameríndio, as simbioses cosmológicas
nas Amazônias indicam o pacto-devir como um indicador de subjetividades.
117
Metáfora provocativa usada pelo poeta cubano José Lezama Lima, descrevendo os devires latino-americanos.
81
Três travestis
Três colibris de raça
Deixam o país
E enchem Paris de graça
Modelado dos fingidores cujos “barros” são signos em contágios múltiplos, Juraci
procura, quando é possível, driblar as armadilhas da repetição. Deseja girar os significados
despojando o signo dos seus sentidos habituais, uma procura insistente de germinação para
outros campos semânticos:
Essa mão que move as arestas, os espelhos as faces dos verbos movem-se com
cautela, apesar de impor-se inquieta e persistente; incontrolavelmente insatisfeita.
Em sua faina, tudo que ressoe a significado conta. Todas as maneiras de dizer o
verso, qualquer impostação vocabular. Tudo ao derredor participa de sua lavra, de
sua fortuna poética para que se conjugue à colheita a diversidade e o múltiplo.
Forma, disposição da grafia, cor, ritmo, sonoridade, disjunção e conjunção de
elementos significativos, o espacejamento que se dota de valor, a palavra em sua
integridade ou o fragmento, às vezes farrapos de palavras, prefixos que ganham o
mundo sozinhos desmembrados de seus radicais. (TUPIASSÙ, 2000, [ s.n])
Juraci costuma fazer arte acompanhado de “MALditos” 118 em bares, praças e rios-
ruas, rechaçando a ideia de associações, 119 para dar lugar “a aglomerados de párias”
(SIQUEIRA, 2015), como: A Malta de Poetas Folhas & Ervas; Sociedade dos Poetas
Vivos120; Cirandeiros das Palavras121 e o Instituto Cultural do Extremo Norte122.
118
Segundo o poeta e professor Benilton Cruz, um dos integrantes da Malta de Poetas Folhas & Verdes, ser
maldito é “um pária, um marginalizado, um do “contra” [...] “vagabundo” ou “mendigo” nesta “sociedade
82
Figura 17: Momentos “marginais”: Instituto Cultural do Extremo Norte; Sociedade dos Poetas Vivos e
Cirandeiros das Palavras.
moderna”, nascida da estranha “filosofia” burguesa de incentivar no dinheiro o seu lado corruptível [...]”
(MALTA DE POETAS FOLHAS & ERVAS, 2004, p. 149)
119
Para esses párias dos espaços públicos de Belém, poetas em clubes, associações, sindicados e academias são
ideias burguesas não refletindo, de fato, o verdadeiro artista da vida. (SIQUEIRA, 2015)
120
Juraci diz que esse movimento artístico nasceu, no início da década de noventa, provocado pelo filme
“Sociedade do Poetas Mortos”. Os poetas deveriam sair das cavernas e para povoarem os espaços públicos das
cidades. (SIQUEIRA, 2015).
121
“Cirandeiros da palavra” é um agrupamento de pessoas que têm afinidade com a palavra e que, como
educadores, tentam cumprir seu papel enquanto agentes de leitura e de cultura, pois acreditam que é pela palavra
que se constrói cultura. Fazem parte dos cirandeiros: O escritor, poeta e trovador que encanta rios e mundos com
a magia de suas palavras; membro do movimento de contadores de histórias da Amazônia, o filho do boto:
Antônio Juraci Siqueira; Sônia Santos, contadora de histórias, membro da Rede Internacional de Contadores de
histórias, membro do Movimento de Contadores de histórias da Amazônia, que alinhava e costura os fios do
encanto aumentando ponto a ponto; filha dos retalhos das linhas e dos bordados: Andréa Cozzi; militante da
palavra e amante da Arte, da Literatura e da Poesia sob o embalo cadenciado das vigilengas; membro do
movimento de contadores de histórias da Amazônia, a filha da mãe d’água. (SIQUEIRA, 2015)
122
O Instituto Cultural Extremo Norte criado no dia 25/11/2009, é fruto do Movimento Literário Extremo Norte
que congrega divers@s escritores e escritores paraenses, desenvolvendo atividades diversas no cenário cultural
de Belém desde fevereiro de 2004. (SIQUEIRA, 2015).
83
123
Faz parte do complexo “Ver-o-Peso”, emoldurada pelo Forte do Castelo, a Praça do Relógio e a baía do
Guajará. Lá desembarcam produtos provenientes das regiões insulares adjacentes, com destaque para o açaí,
alimentando o comércio local.
124
O Parque Zoobotânico do Museu Paraense Emílio Goeldi está situado no centro urbano de Belém, com uma
área de 5,2 hectares. Foi fundado em 1895, sendo o mais antigo do Brasil no seu gênero. Além de abrigar uma
significativa mostra da fauna e flora amazônicas, o Parque concentra as atividades educativas do Museu Goeldi,
tal como um laboratório para aulas práticas. Recebe anualmente cerca de 200 mil visitantes. No Parque
Zoobotânico estão instalados a Diretoria do Museu Goeldi, as Coordenações de Pesquisa e Pós-Graduação,
Comunicação e Extensão, Administração, Museologia, Assessoria de Comunicação Social e Editora.
84
125
As reuniões dessa corja de artistas são ditadas pelas noites de lua cheia.
85
126
Muito próximo daqueles considerados “vivos”, o cemitério de Nossa Senhora da Soledad, localizado no
coração de Santa Maria de Belém do Grão Pará, é um dos museus a céu aberto mais significativos da cidade.
Epitáfios, túmulos em mármore, história de silenciados e crenças em santos populares se misturam nesse espaço
cultural.
86
Para esses malditos, publicar até aqui três livros significou algo semelhante à teimosia
faustiana da humanidade, cedendo aos impulsos, às seduções e aos ultimatos que a vida nos
dá, nem “que para isso se perca a inocência.”127 (SIQUEIRA, 2015)
Leitoras e leitores nossos que estais na Terra
Santificado seja o vosso salário
Venha a nós o vosso interesse
Sejam alimentados os vossos sonhos
Assim na realidade como na ficção
O livro nosso de cada dia comprai hoje
Perdoai as nossas ofensas
Porque nós não perdoamos os editores
Não deixeis cair sobre nós a repressão
E livrai nossos livros das prateleiras
Amém!!! (MALTA DE POETAS FOLHAS & ERVAS, 1999, p. 2145)
A Malta ainda vive, inclusive nas lembranças de seus artífices e de seus públicos. Suas
memórias, além dos livros publicados com a “ajuda” dos poderes públicos, vivem e estão
“abertas” a novas traduções inclusive na arte de fazer “atas”.
ATA DA MALTA
SOBRE A PRIVATIZAÇÃO DA PRAÇA DA REPÚBLICA
No dia 31 de julho de 2998, por volta das 19:00h, reuniram-se como sempre debaixo
da lua cheia, em um dos coretos da Praça da República, a Malta de Poetas Folhas
& Ervas, agregados e simpatizantes da Malta.
O Juraci não chegou à praça, pois já estava lá, plantado no lugar, enfeitando o coreto
de vírgulas e sinais de pontuação, com um poema na mão e uma sacola de couro dos
guerrilheiros da palavra, cheia de estrelas. Por volta das 19:30h chegou o Edvandro,
com a Mariza, depois o Benilton com a Verônica, em seguida a Roseli e o Zé
Severino. Vieram depois o Eduardo Dias, o Walber e o Walcyr Monteiro e suas
assombrações. Pronto. Ah, o Onna Agaia chegava atrasado com um astrolábio na
mão hipnotizando a galera recitando AMA, SIMPLESMENTE CREIA... Mas, que
chegava por último mesmo era a Heliana, parece que havia deixado a barriga em
casa, chegou atrasada e se desculpando dizendo "No caminho, eu conheci a filha do
Jabuti". Todo mundo riu " hi, hi, hi".
Depois das gargalhadas, a discussão preliminar girou em torno da privatização da
praça. Foi levantada a seguinte hipótese: A Praça da República não tem mais
sentido. Nada mais pertence ao povo, nada mais nos pertence. Foi a justificativa. Em
seguida, a poesia foi posta na mesa e repartida com o vinho de Baco e o queijo da
Yamada. A poesia foi discutida (discute-se poesia?, disse um alguém que não deu
pra notar) de onde ela teria vindo, para onde iria, se a poesia é careca e se isso trai a
consciência e onde estaria a banda alfa dos cabelos das ideias. Finalmente a poesia
foi posta à venda. Quanto vale a poesia? Essa foi a questão. Quem compra?
Benilton põe na pauta a concepção do livro da Malta, dizendo que estava quase
pronto, faltando apenas a inclusão de poemas da dupla sertaneja Evandro e
Edvandro; tudo era questão de tempo, talvez mais um milênio e alguns meses. Ele
informa o orçamento, aí todos caíram para trás. Depois do susto a constatação: o
livro vai sair custe o que custar e vai ser independente, porque toda poesia é
independente.
Eduardo Dias propõe a gravação de um trabalho em fita cassete, oferecendo o seu
estúdio para a realização do trabalho, informação esta já antecipada por Roseli.
A discussão se acentua - fita, livro, orçamento, editores, falta de editores, falta de
sensibilidade dos editores, Viagra para os editores, etc. Um lunático sugere a
127
Juraci diz que, às vezes, o poeta precisa sair da “torre de marfim” e estabelecer conexões inclusive com os
“inimigos”. (SIQUEIRA, 2015)
87
gravação de um CD, o CD da Malta. Viche, Maria !!! Égua, mano !!! Vade Retro !!!
Tá ficando doido, doido? Este foi o comentário geral.
Um roteiro, um roteiro! É sugerido um roteiro para gravação da fita. Outros dizem,
roteiro? Que roteiro? A Malta nunca seguiu roteiro.
Enquanto isso, o Eduardo Dias conta "causos" de enterro e outros assuntos de
interesse internacional acontecidos em Abaeté. Onna Gaia disse que foi raptado por
um disco voador, lá em São Domingos do Capim, e assim justifica a estranha queda
repentina de alguns de seus longos cabelos. Walcyr Monteiro conta um fato ocorrido
com poeta Bruno de Menezes quando este era o presidente da sociedade Peixe Frito,
predecessora do PQP. Walber contou a piada do velório, mas ninguém riu, pois
fizeram café com a meia de defunto.
Quem dá mais? Quem dá mais? Começaram os lances de privatização da Praça, da
poesia e da banda alfa dos cabelos das ideias. Tudo se vende. O martelo do
Chapolim foi requisitado. Cada lance era um poema. Algumas declarações e leituras
de poemas são protagonizadas por Juraci, Benilton, Edvandro, Roseli, Eduardo e...
Quem mais, mesmo?
Walber confessa ao ouvido de Edvandro: "Escuta, a privatização é assunto sério,
mesmo? Eu tô sem nenhum puto no bolso e esqueci de vestir minha meia da sorte
que tem um furo no dedão."
A praça não foi vendida. Ainda bem. Os agiotas multinacionais não apareceram e se
essas gangues de especuladores aparecessem nós botávamos eles na cadeia! Foi
decidido que nada era decidido e que a praça ainda é das crianças, dos bêbados e dos
poetas. Depois de uma retomada no assunto do livro, fica acertado um encontro às
11:00h de domingo, 02 de agosto, na Praça da República. (MALTA DE POETAS
FOLHAS & ERVAS, 1999, p. 2041,20142 e 2043)
88
Cada encontro dessa trupe das margens é, de certo modo, uma “orgia” verbal regada
de encenações bufas rompendo, em trinta anos de existência, com a rigidez da vida e das
letras frias.
BANQUETE DE EROS
128
Burilado pela Fundação Tancredo Neves e o governo estadual do Pará, “A Noite é uma Palavra” é o nome de
um projeto cujo objetivo, segundo seus idealizadores, é despertar o interesse da sociedade paraense pela poesia,
além de divulgar nomes e trabalhos de escritores paraenses.
129
É brasileiro, nascido em Santarém (PA). Sociólogo e jornalista profissional desde 1966. Começou a carreira
escrevendo para periódicos de larga circulação em Belém e no Rio de Janeiro, mas em 1988 deixou a grande
imprensa, dedicando-se ao seu Jornal Pessoal, periódico quinzenal entendendo as Amazônias como “Província
energética desenhada pelos avanços e mutações do CAPITAL”. Tem 12 livros individuais publicados, a maioria
retratando o que chama de “Tempos de ditadura piorada”. Sobre esse jornalista de ideias subversivas para
“mentalidades conformadas”, Célia Regina Amorim em sua tese, na PUC/SP, “Jornal Pessoal: Uma
metalinguagem jornalística na Amazônia” destrincha questões amazônicas dialogantes com o mundo.
130
https://lucioflaviopinto.wordpress.com.
90
Quijano (1992, p.09) ajudando-me ou não a reconstruir um olhar mais otimista sobre a
questão de grupos culturais “marginais” escolhidos “a dedo” pelos eventos institucionais vê
“a ideia de totalidade [...] um produto da Europa, da modernidade”, dispositivo comumente
usado pelos maquinários governamentais dissimulando igualdade ao reconhecer, sob critérios
questionáveis, “artistas populares”. Por baixo desse “véu”, meu olhar diz e vê igualdade
hierárquica reaprisionando a produção do conhecimento, da reflexão, das artes, das culturas e
da comunicação.
Liberto ou bem “amarrado” pelas práticas reinventivas eurocêntricas, Juraci e seus
companheiros das bordas, ao serem ouvidos, refutam a ideia de aprisionamento. Dizem
praticar um ato subversivo, ao levarem das ruas para os teatros e para os “centros” culturais
seus discursos: “Quando sou chamado, digo logo que vou levar meus companheiros de ofício.
O cachê é pequeno. O que vale é a oportunidade de reconhecimento para outros públicos”.
(SIQUEIRA, 2015)
Quijano (1992, p.10) novamente poderia ser acionado para dialogar com esse fazer
chamado subversivo por Juraci: “libertação das relações interculturais da prisão da
colonialidade [...] de optar individualmente ou coletivamente em tais relações [...] liberdade
para produzir, criticar e mudar, intercambiar cultura e sociedade”.
91
131
“No pensamento decolonial a noção de colonialidade está diretamente ligada à de modernidade. Com efeito, a
colonialidade seria a face oculta da modernidade, que surge do sentimento de inferioridade imposto nos seres
humanos que não se encaixam no modelo eurocêntrico. A modernidade só pode ser pensada em coexistência e
simultaneidade com a colonialidade, na medida em que a identificaçao como “moderno” e “civilizado” se afirma
a partir da categorização da colônia como “bárbara” e “atrasada”. E nesse sentido a escravidão, o genocídio e a
exploração também são parte da modernidade, estão na face da colonialidade. O projeto decolonial ao adotar
essa noção de colonialidade implica em uma mudança de posicionamento diante da história, deixando de pensar
a modernidade como um objetivo e vendo-a como uma construção europeia da história a favor dos interesses da
Europa.” (MIGNOLO, 2007, p. 01)
132
1. A civilização moderna autodescreve-se como mais desenvolvida e superior (o que significa sustentar
inconscientemente uma posição eurocêntrica). 2. A superioridade obriga a desenvolver os mais primitivos,
bárbaros, rudes, como exigência moral. 3. O caminho de tal processo educativo de desenvolvimento deve ser
aquele seguido pela Europa (é, de fato, um desenvolvimento unilinear e à europeia o que determina, novamente
de modo inconsciente, a “falácia desenvolvimentista”). 4. Como o bárbaro se opõe ao processo civilizador, a
práxis moderna deve exercer em último caso a violência, se necessário for, para destruir os obstáculos dessa
modernização (a guerra justa colonial). 5. Esta dominação produz vítimas (de muitas e variadas maneiras),
violência que é interpretada como um ato inevitável, e com o sentido quase-ritual de sacrifício; o herói
civilizador reveste a suas próprias vítimas da condição de serem holocaustos de um sacrifício salvador (o índio
colonizado, o escravo africano, a mulher, a destruição ecológica etecetera). 6. Para o moderno, o bárbaro tem
uma “culpa” (por opor-se ao processo civilizador) que permite à “Modernidade” apresentar-se não apenas como
inocente mas como “emancipadora” dessa “culpa” de suas próprias vítimas. 7. Por último, e pelo caráter
“civilizatório” da “Modernidade”, interpretam-se como inevitáveis os sofrimentos ou sacrifícios (os custos) da
“modernização” dos outros povos “atrasados” (imaturos), das outras raças escravizáveis, do outro sexo por ser
frágil, etecetera (Dussel, 2000, p. 49).
92
133
Amplio o olhar de Spivak (2010) falando de camponeses, indígenas, quilombolas tentando incluir os artistas
marginais de Belém.
93
134
Pensamento pós-abissal tendo como premissa a ideia da inesgotável diversidade epistemológica do mundo, o
reconhecimento da existência de uma pluralidade de formas de conhecimento além do conhecimento científico.
Isso implica renunciar a qualquer epistemologia geral. Existem em todo o mundo não só diversas formas de
conhecimento da matéria, da sociedade, da vida e do espírito, mas também muitos e diversos conceitos e
critérios sobre o que conta como conhecimento. (SANTOS, 2007, p. 86)
135
Para Boaventura Santos (2007), metáfora para humanidades experimentando sofrimento sistêmico e injusto
provocado pelo capitalismo global e pelo colonialismo.
94
é preciso pensarmos que não temos de um lado uma língua e uma cultura (a do
colonizado), do outro lado outra cultura e língua (a do colonizador) [...]temos um
demorado confronto e convívio entre os dois lados. Não há, portanto, dois centros
propulsores de cultura e língua, mas um centro transicional, híbrido, com uma
extrema e rápida mobilidade, que absorve, transforma, rejeita e negocia
constantemente as culturas em convívio ou contradição [...] Por isso é que se dá a
colonização e a descolonização da palavra e pela palavra: porque há um sujeito em
transição que leva e traz, de umas para outras línguas, em sentidos diversos, sintaxes
e lexemas que vão desconstruir-se e reconstruir-se uns nos outros ou com os outros.
Quer isso dizer que a pessoa a que me refiro é uma espécie de língua intermédia, que
não chega a constituir-se como língua, mas opera sintática e imagisticamente
ligando os dois polos anteriores.
Não há, pelas palavras do professor angolano, espaço para leituras singulares e
dicotômicas aos sempre existentes processos de descolonização. É preciso compreender que
não há uma língua do colonizado, mas há várias, um português crioulizado, resultado de
invasões, conquistas, migrações, convívios e confrontos.
Nesse convívio de resistências e reorganização dos discursos hegemônicos, tanto o
colonizado quanto o novo conquistador incidem marcas a instilar, cravando significados,
traços semânticos, sintáticos e rítmicos. Um escritor intra e extraeuropeu, como Juraci,
inscreve em seus experimentos as alteridades coexistentes, coniventes ou paradoxais. Assim
sendo, um crioulês-amazônico eclode de um “Canto de Entrada”:
Aqui a porta
o porto
o parto
a ponte para o sonho sobre o leito
desse rio entulhado de incertezas
que guarda no tijuco da memória
a história do meu povo e do meu chão.
Aqui o homem
o verbo
a pá
a pena
a titânica missão de
erguer os ombros doloridos das manhãs.
Aqui a lavra
a pá lavrando a saga nhengaíba
entre restos e rostos soterrados
em busca de uma luz e de uma voz136. (BARRIGA, 2008, p. 12)
136
Poema de Juraci publicado em uma coletânea de autores “marginais” paraenses: BARRIGA, Heliana. Livro
da Malta-Folhas & Ervas. Belém: Editora Cromos, 2008.
96
Se os sábios narradores costumam dar os melhores conselhos 137 dizendo que “a vida é
madrasta de puta”138, poderiam também afirmar: “a vida é um jogo de cartas marcadas”. O
paradoxo da resistência, em rendição, das bordas artísticas do Pará e de quem pesquisa sobre
elas não perde de vista as “as racionalidades genocidas”. Parece até parte desse jogo! Será que
a velha arte da velhacaria e da falcatrua eclode dessa narrativa de trapaças chamada de vida
ou de academia?
137
Uma referência aos narradores de experiências traduzidos por Benjamin (1989).
138
Essa reflexão partiu de um repentista. No terminal rodoviário da cidade de Marabá/PA, esse personagem-
gente referiu-se a sua fome e ao fato de que ninguém parecia atento ou “comovido” com sua arte fingidora.
97
Identificar quem são e como são os fingidores é uma tarefa espinhosa para não dizer
impossível, mas revendo algumas literaturas, de maneira especial as antropológicas
debruçadas sobre personagens polêmicos, ambíguos, contraditórios e heróis trapaceiros
espalhados por uma variedade de culturais, surgiu o chamado trickster ou quem sabe uma
leitura para o quem está debaixo do chapéu do Juraboto.
Sarduy (1999, p. 1298) encontra na figura dos seres que se travestem artifícios,
dissimulações, excessos e mascaramentos, inter ou quem sabe transpessoalidade pulsando
pelos intertextos do poeta nascido em Cajary. Esses excessos de tanta gente dentro de um só
podem ser traduzidos, como:
trabajo corporal de los travestis a la simple manía cosmética, al afeminamiento o a
la homosexualidad es simplemente ingenuo: ésas no son más que las fronteras
aparentes de una metamorfosis sin límites, su pantalla “natural.”
Uma escritura híbrida costuma brotar desses seres ambíguos, mesclando o corpo com
idiomas, culturas, personagens, experiências extra-somáticas invadindo também as palavras:
Planos que dialogan en un mismo exterior, que se responden y completan, que
exaltan y definen uno al otro: esa interacción de texturas lingüísticas, de discursos,
esa danza, esa parodia es la escritura.” (SARDUY, 1999, p. 1151)
139
Busco a problematização do termo com Derrida (2005) em diálogo com Platão, na República: E, de fato, a
técnica da imitação, tanto como a produção do simulacro, sempre foi, aos olhos de Platão, manifestação mágica,
taumatúrgica.
98
140
Dentre esses pesquisadores, cito Antonio Candido (1970) e Carl Jung (2000).
99
Reside sob a pele dessa paisagem enfeitada, pesarosa, fustigada, lacunar, ocelada,
matizada, dilacerada, feita de nós e laços, com gorros e franjas já puídos, por toda parte,
(SERRES, 1993) um ser atrevido enfrentando as limitações impostas pela idade e pelas
geografias amazônicas, cruzando a cidade de Belém e o estado do Pará em forma de espiral.
Juraci tentando ser onipresente nos bairros mais inacessíveis, nas regiões insulares de Belém e
em outros municípios paraenses.
Ser filho de boto poderia ser “herdar do pai a lisura e a disposição” (SIQUEIRA,
2015). Esse trickster amazônico tenta suspender as limitações impostas pela vida, inclusive a
gagueira 141 , declamando com veemência trovas cravadas em suas memórias. Gesto de
ventriloquia, até certa medida:
arte de projetar a voz e, assim, dar vida a um boneco [...] fala pelo ventre, sacerdote
em comunhão com a abundância e a degradação da carne [...] profeta da barriga,
que, ao se comunicar desse modo, topograficamente, comunica-se também com o
mundo dos mortos. A voz do ventríloquo surge do subterrâneo. É a voz do morto.
(MACHADO, 2014, p.01)
141
Juraci, nas entrevistas realizadas, não gosta de falar sobre o assunto, mas nas entrelinhas admite conviver,
sem maiores problemas, com o “problema”, desde criança,
100
Sua voz, sem hesitações, performatiza semelhantemente à cena descrita por Pires
Ferreira (2009, p. 05)
O poeta popular (Komoróv) aparece tocando uma espécie de pandeirola, e por sua
voz que desafia os ritmos naturais, acelerado como no caso da embolada brasileira,
temerariamente conquista ouvintes e adeptos que são mostrados sob hierarquização.
A troça ancora no corpo, o artista joga-se, conforme o topos da cara e do culo, o
jogral baixa as calças mostra as nádegas, nas quais está pintada uma fisionomia.
Entre acrobacias e gracejos, pondo-se de ponta à cabeça, o riso é colocado, em cena,
mas a paródia, acompanhada pela censura nos faz ver que o texto oral, a emissão de
um poeta ou jogral pode causar a punição até a morte. No entanto escapará sempre
pela eficácia de sua transmissão a qualquer forma de controle que não se inscreva
nos limites da profunda relação do artista com seu público. Incontrolável e presente,
a voz viva pode receber castigos, mas se pereniza na força destas e de outras
palavras aladas.
excremento de urubu;
sou tacacá sem jambu,
prego velho enferrujado,
não valho um tição queimado
mas sou melhor do que tu!
Ontem eu voltava dum rolé pelo Bengola por volta do meio-dia. Ao passar pelo
Veropa vi, pelo rabo do olho, as canoas encalhadas na lama da doca... Égua não,
mano, bateu uma baita saudade de quando em pirralho eu vinha do Cajari e ficava
dias na canoa só na mutuca, macuricando o furdunço da feira... Desci do ônibus e
fiquei batendo pernas por lá, lembrando como era isso aqui no tempo do ronca. O
pitiú continua o mesmo mas o resto mudou pra chuchu. De primeiro só havia canoa
à vela e não tinha esse haver de carro esculhambando tudo. De tanto ficar zanzando
feito um leso, me deu uma gastura no estômago, uma broca fumada! Me arranquei
com mais de mil pras barracas de comida. Pedi um feijão bem adubado e ainda
arrematei com uma tigela até o talo de açaí do papa, de rocha, moleque. Ralado é
que quando eu estava no bem-bom, encostou na minha ilharga uma moleca
entanguida e perebenta dis que querendo que eu pagasse uma gelada pra ela. Ficou
lá me sujigando, enchendo a perema. Tá, cheirosa! Só o meu fraco pra gastar meus
borós com uma requenguela que nem conheço. Quando já estava bebendo a lavagem
da tigela de açaí pra evitar azia, me aparece um porre muito do seu enjoado que foi
logo empombando comigo. Axi, porcaria! Fiquei invocado com a fuleragem do cara
só falando merda. Fiquei tão encaralhado que por pouco não lhe sapequei uns
cocorotes. Mas aí, já com o estômago forrado, fui dar uma espiada nas barracas de
cheiro-cheiroso e caí na besteira de perguntar pelo preço dum raminho de mucura-
caá. Pra que: a mulher, talvez pensando que eu estivesse estribado, cheio do pacuru,
arrepiou! Eguá! Se calhá ela me achou com cara de pomboca, que cara de gringo eu
não tenho. Aqui, ó! Não dei na minha mãe...Continuei batendo pernas e quando
cheguei na Praça do Relógio foi que lembrei que dentro de dois dias Belém estaria
completando 397 anos! E bastou dar uma abicorada na praça Dom Pedro II pra ver
como a nossa cidade está mal cuidada! Lixo e cocô de urubu por todo canto,
brinquedos escangalhados, tudo levando o farelo! Que cuíra me deu de querer fazer
qualquer coisa ao menos para atamancar. O novo prefeito vai ter que roer uma
pupunha crua, trabalhar de-com-força se não quiser passar vergonha nos quatro-
centos anos da outrora Cidade das Mangueiras. (SIQUEIRA, 2013, p. 6-7)
103
142
O crioulismo de Glissant (2005) definiria-se, como algo novo, totalmente imprevisível, que surge por meio da
combinação de elementos culturais completamente diferentes, distantes um do outro. Esses elementos se
misturam, se confundem, dando origem a uma nova cultura, a cultura crioula.
104
pelos rios, tatear no escuro das noites da floresta, procurar os vestígios e os sinais perdidos
pela várzea, vagar pelas ruas das cidades ribeirinhas.” (Id)
Remar é preciso
...e aqui cheguei. Chegamos. De bubuia por esse rio de muitas águas. Minha canoa
com sua carga de sonhos tem muitos bancos à espera de outros manos e manas que
queiram seguir viagem comigo para os confins do imaginário. Nem carece saber
remar. Basta a vontade de desbravar o insólito, a capacidade de polir pedras, retirar
espinhos, colher girassóis e descobrir o caminho mais curto para o país da fantasia.
Sou irmão do rio. Conheço sua força, sua fúria e, principalmente sua generosidade.
Portanto, chega-te a mim, meu irmão de sonhos, minha companheira de andanças
que ainda temos muitos estirões a vencer. A noite não assusta quem conhece seus
mistérios, quem leva consigo, sempre, a poronga da poesia. Para sermos felizes já
temos o bastante: o afeto, a sinceridade e a coragem de falar de amor. O resto a
gente aprende navegando. Anda, vem logo que o rio tem hora para encher e vazar e
não convém remar contra a maré. Vem! (SIQUEIRA, 2013, p. 03)
Em meio ao cenário amazônico não precisando ser mais real maravilhoso do que já é,
encontrei um repertório infindável de artistas dando tons mais acentuados ao insólito. Juraci,
aqui representando essa “corja” multiplicante, encanta públicos, especialmente nas escolas,
porque simplesmente faz mágicas para as crianças; dá corações-trovas de papel; conta
estórias; incentiva jovens e adultos à leitura; “bate seu ponto funcionário público” sejam em
que bairros, cidades ou escola forem. Tudo isso maravilhoso ou fora do comum a quem faz da
educação e da cultura algo catatônico, amorfo e chato.
Se a minha fantasia teórica é o devaneio-sincrético-etnográfico-cartográfico, o real
maravilhoso amazônico repleto de verde, água, tricksters, bufões e uma corja de artistas em
bloco, podendo ser carnavalesco 143 , essa pesquisa é uma alegoria cujos adereços são o
convívio simbiótico, coral de vozes amazônidas, latino-americanas respondendo, desde o
143
Refiro-me a possibilidade, mesmo em um nível simbólico, de parodiar as esferas do poder. No caso da
coroação e do destronamento do rei, podemos tanto relacioná-los aos governos monárquicos da Idade Média,
como também aos governos precários desde sempre. Arte carnavalizada, destronamento e a dessacralização do
conceito platônico de cultura (cultura como sinônimo de obtenção do saber – mundo das ideias).
105
“começo” e mesmo às vezes “baixinho”, àqueles querendo desqualificar, para destruir, nosso
enredo barroco.
Neoindianismos nativistas; discursos efusivos ao “popular”, políticas públicas
duvidosas e folclorismos depreciadores são disfarces das garras e dos dentes afiadíssimos de
uma criatura, desde que chegou, querendo desagregar e destruir as barrocadas, insisto,
recheadíssimas de barricadas.
106
144
“Todo-Mundo” (“Tout-Monde”): uma cultura feita, cada vez mais, de muitos mundos, uma cultura
inexoravelmente feita de culturas. (GLISSANT, 1997)
107
chapéus, vozes, cemitérios, formas e cores ganharam a condição de texto e a Amazônia, desde
então, virou Amazônias.
Não adianta fazer parte de um mundo tão sensorial se os nossos sentidos estão estéreis.
A semiótica cultural traçada, pelos tons coloridos do barroco, vem aos poucos, aflorando meu
olhar para o outrora invisível. Juraci deixou de ser “escritor de rua” para receber tratamento
de flâneur, trickster, açougueiro e agitador de cultura. Já para as Amazônias, paisagens sociais
cotidianas começaram a se tornar mais maravilhosas. Agora parece quase “normal” a alegoria
do homem de terno branco caminhando pelo sol escaldante do Ver-o-Peso distribuindo trovas
para feirantes e moradores das ruas e, em outros atos, esse performer debruçado sob um
túmulo qualquer saudando e brindando Eros.
Loureiro (2001, 29-49) chama de sfumato145 essa “interpenetração entre as realidades
do mundo físico as do mundo surreal [...] zona difusa [...] coabitando, convivendo, deparando-
se com o surreal como contíguo à realidade.” Devaneio de imaginários, sem repouso, na
relação sem fim do homem com a natureza: “A natureza havia no princípio. O homem veio
depois. Confrontaram-se, enfrentaram-se, alternaram-se, modificaram-se, transfiguraram-se
[...] dominação submissiva versus submissão dominante.”
Em devir com Amálio cheguei a Gruzinski (2001) e à “mestiçagem”, leitura para as
misturas hiperinflacionando o solo americano de seres humanos, animais, imaginários e
formas de vida, “zonas estranhas” prevalecendo na improvisação no labor diário da vida. As
Américas, por esses olhares mestiços, ganharam o contorno surreal de “uma espécie de latrina
fabulosa, só que aí a operação não consiste na retenção.” (PAZ, 2008, p. 30)
Cartografando esse devaneio de reencaixes mundanos, vi na gambiarra uma expressão
mais próxima para traduzir a Arte de fingidores ou de malabaristas das culturas, àqueles que
administram “três objetos num território para apenas dois” 146 ou invenção de solução
improvisada para um problema. A gambiarra está nos malabares dos sinais de trânsito, nos
poetas que se arriscam, nas pesquisas sem certezas, nas esquinas, nas praças e nas feiras
amazônicas. Esses artistas da vida procuram dilatar territórios da obviedade: onde antes
cabiam dois, caberiam, três, quatro ou mil.
Essas narrativas seriam um trabalho de marchetaria: Arte da improvisação; do
remendo; dos encaixes; dos ajustes; dos inventos; das engenhocas; das geringonças,
145
Segundo Loureiro (2001, p. 49): “palavra italiana que significa esfumado, zona indistinta, vaporosa, difusa ou
esbatida no sombreado dos desenhos [...] fusão dos personagens no quadro com a natureza, resultando em algo
que confere uma unidade profunda ao trabalho e uma relação de empatia entre a natureza humana e a natureza
cósmica.”
146
Frase de Cildo Meireles.
108
(SIQUEIRA, 2015) ou quem sabe “o espírito criativo e dinâmico da cultura popular e seu
poder de reinvenção.” (SOBRAL, 2012)
Das inúmeras cenas vividas com os fingidores paraenses, uma delas, aquela aos pés da
escadinha das docas 147 , o Sarau da Lua cheia, reúne poetas fazendo “gambiarras”: as
declamações e os devaneios-desabafos acontecem em meio a transeuntes curiosos, vendedores
“fingindo” apreciar os poemas, crianças correndo, chuva, monumentos históricos, maré alta,
papéis em voo, e claro, lua cheia. Lá, livros são lançados, bebidas servidas e texturas
múltiplas ganham e cedem espaço.
147
Praça referência para a realização de eventos culturais públicos: passagem do círio de Nazaré, concentração
de bois, pássaros e blocos carnavalescos.
109
imaginamos as terríveis técnicas construídas para obtenção do lucro com morte. Eu e Juraci
fingimos também nãos nos importar, mas em devires rizomáticos, procuramos “desbussolar”
as imagens redutoras costumeiramente refletidas “centripetamente” ao mundo amazônico.
Relação é primeiramente consciência dela e do que é capaz de fazer, como pulverizar as
compreensões de “Ser” e de “Essência”. Não há vida cultural regida pelo costumeiramente
chamado de identidades-raízes, porque vida é interação infinita, profusa, acumulativa e
sempre em movimento dentro da roda-viva do nosso espaço-tempo planetário. Só a partir da
“crença” nesse devaneio rizomático seriamos capazes de abandonar as múltiplas fronteiras (do
“eu”, do “outro” da etnia, da religião, da língua, da nação) e seus corolários: a intolerância, o
racismo. (Glissant, 1997)
Alteridade não é valor de mercado. Esse Outro não pode se tornar ainda mais um
espectro pelas lógicas fundamentalistas. Devorar, numa perspectiva “oswaldiana” mais
tolerante, nunca significará absorção predatória-odiosa de um suposto inimigo, seja por que
razões culturais forem.
A predação tem tantos nomes: devastação florestal-cultural, concentração fundiária-
cultural, especulação insaciável, ocupação extensiva e violenta de terras e de culturas.
Imagem próxima de uma “sangria, isto é, de escoamento de riquezas para fora, sem benefícios
que lhes seja proporcionais” (LOUREIRO, 2001, p. 408)
O morticínio provocado por políticas “desenvolvimentistas” é acompanhado de
ressureições surpreendentes: Na companhia de Juraci e de suas “andanças” pelas Amazônias,
“provamos” saberes-sabores culturais inimagináveis para ambos. Experienciamos talvez o
“nomadismo circular” de Glissant (1997), aquele avançando e desbravando no “drama” da
Relação múltipla, infinita e mais tolerante de ouvir alteridades.
Na busca desses “Outros” optamos pela errância por não desejarmos ser mais o
viajante-descobridor-conquistador, mas sim, “canoeiros”, sem comandar nem possuir essas
alteridades. Estivemos juntos nos barcos-escolas, nas escolas, nos teatros, nas praças, nos
bares...
Não creio que essa cartografia de bordas recaia no risco “em mais uma versão do
‘velho processo’ colonial de transformar em recurso a ser explorado” para a “guetização, de
tribalismo e da refeudalização” (SANTOS, 2010, p. 68-302). A proliferação das diferenças
nessas páginas, pelo contrário, tenta, quase a todo custo, impossibilitar que raízes,
predatoriamente, se assentem fortemente sobre quaisquer chãos.
Nenhum pensamento-raiz sobrevive por muito tempo nas fronteiras cujas demarcações
são porosas e os “terrenos” sejam instáveis. Pensar e acreditar nas fronteiras significaria “uma
110
148
Manifesto Antropofágico (Oswald Andrade), maio de 1928, publicado na Revista de Antropofagia n°1.
112
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