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Teologia

e prática da
IGREJA CATÓLICA ROMANA
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Allison, Gregg R.
Teologia e prática da Igreja Católica Romana: uma avaliação
evangélica / Gregg R. Allison; tradução de A. G. Mendes.
– São Paulo: Vida Nova, 2018.
496 p.
Bibliografia
ISBN 978-85-275-0762-2
Título original: Roman Catholic theology and practice
1. Igreja Católica – Teologia dogmática 2. Igreja Católica – Usos e costumes 3. Evangelicalismo I.
Título II. Mendes, A. G.
17-0721 CDD 282
Gregg R. Allison

Teologia e prática da
IGREJA CATÓLICA ROMANA
uma avaliação evangélica

Tradução
A. G. Mendes
©
2014, de Gregg R. Allison
Título do original: Roman Catholic theology and practice: an Evangelical assessment, edição publicada
pela CROSSWAY (Wheaton, Illinois, Estados Unidos).
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por
SOCIEDADE RELIGIOSA EDIÇÕES VIDA NOVA
Rua Antônio Carlos Tacconi, 63, São Paulo, SP, 04810-020
vidanova.com.br | vidanova@vidanova.com.br
1.a edição: 2018
Proibida a reprodução por quaisquer meios,
salvo em citações breves, com indicação da fonte.
Todas as citações bíblicas sem indicação da versão foram traduzidas diretamente da English Standard
Version. As citações bíblicas em trechos do Catechism of the Catholic Church foram traduzidas da Revised
Standard Version (RSV) e da New Revised Standard Version (NRSV) ou extraídas da Almeida Século 21
(A21).
_________________________
DIREÇÃO EXECUTIVA
Kenneth Lee Davis
GERÊNCIA EDITORIAL
Fabiano Silveira Medeiros
EDIÇÃO DE TEXTO
Aldo Menezes
PREPARAÇÃO DE TEXTO
Marcia B. Medeiros
REVISÃO DE PROVAS
Josemar de Souza Pinto
GERÊNCIA DE PRODUÇÃO
Sérgio Siqueira Moura
DIAGRAMAÇÃO E CAPA
OM Designers Gráficos
_________________________
Dedico Teologia e prática da Igreja Católica Romana a inúmeras pessoas
que exerceram uma influência profunda e duradoura sobre minha vida: R OY

A , meu querido pai, uma grande dádiva de Deus para mim e que de
LLISON

modo incondicional me amou, aconselhou, orientou e sustentou; S K , TEVE OVIC

que me discipulou nos anos que passei na universidade e que sacrificou seu
sonho pessoal por minha causa, para que eu pudesse crescer; W G , a AYNE RUDEM

quem Deus usou para fazer de mim o teólogo que sou, totalmente
comprometido com a veracidade e a clareza da Escritura; G B ERRY , que
RESHEARS

me pastoreou no início da minha carreira de professor e que soube


exatamente como me incentivar e me desafiar; J F
OHN , cujo ensino,
EINBERG

aconselhamento e supervisão fizeram de mim um melhor autor e


especialista; e B W , cuja amizade e telefonemas providenciais foram
RUCE ARE

instrumentos de Deus para me guiar às duas posições em que servi. Amo a


todos e agradeço a Deus por colocar vocês em minha vida!
SUMÁRIO

Prefácio: Intersecção e crítica


Reduções gráficas
Introdução
1 Escritura, teologia evangélica e teologia católica
A Escritura e sua interpretação
Uma visão evangélica da vida com Deus e o desabrochar humano
A teologia católica como um sistema coerente e abrangente
A interdependência natureza-graça
Avaliação evangélica
A interconexão Cristo-Igreja
Avaliação evangélica
Conclusão

I
A teologia católica de acordo com o
Catecismo da Igreja Católica
PRIMEIRA PARTE:
A PROFISSÃO DA FÉ

2 A profissão da fé (primeira parte, seção 1, capítulos 1—3)


A capacidade humana de acesso a Deus; a doutrina da revelação;
a doutrina da fé
Introdução: natureza e forma do Catechism
A capacidade humana de acesso a Deus (seção 1, capítulo 1)
Avaliação evangélica
A doutrina da revelação: Deus vem ao encontro do ser humano
(seção 1, capítulo 2)
A revelação de Deus (artigo 1)
A transmissão da revelação divina (artigo 2)
A Sagrada Escritura (artigo 3)
Avaliação evangélica
Revelação divina
A transmissão da revelação divina/Sola Scriptura
A Escritura e sua interpretação
O cânon da Escritura
A interpretação oficial da Escritura
A doutrina da fé: a resposta humana a Deus (seção 1, capítulo 3)
Avaliação evangélica
3 A profissão da fé (primeira parte, seção 2,
capítulo 1, artigo 1 — capítulo 3, artigo 8)
As doutrinas de Deus, dos anjos, da humanidade e do pecado;
as doutrinas da Pessoa de Jesus Cristo; a encarnação e a imaculada
concepção de Maria; a doutrina da obra de Jesus Cristo; as doutrinas
da ressurreição, da ascensão e da segunda vinda de Cristo;
a doutrina do Espírito Santo
As doutrinas de Deus, dos anjos, da humanidade e do pecado:
“Creio em Deus Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra”
(seção 2, capítulo 1, artigo 1)
Avaliação evangélica
A doutrina da Pessoa de Jesus Cristo: “... e em Jesus Cristo,
seu único Filho, nosso Senhor” (seção 2, capítulo 2, artigo 2)
Avaliação evangélica
A doutrina da encarnação e a doutrina da imaculada concepção:
“ele foi concebido pelo poder do Espírito Santo, nasceu da
Virgem Maria” (seção 2, capítulo 2, artigo 3)
Avaliação evangélica
A doutrina da obra de Jesus Cristo: “Jesus Cristo padeceu
sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado”
(seção 2, capítulo 2, artigo 4)
Avaliação evangélica
A doutrina da ressurreição: “desceu à mansão dos mortos,
ressuscitou ao terceiro dia” (seção 2, capítulo 2, artigo 5)
Avaliação evangélica
A doutrina da ascensão: “subiu ao céu e está sentado à mão
direita do Pai” (seção 2, capítulo 2, artigo 6)
Avaliação evangélica
A doutrina da segunda vinda e o juízo divino: “de onde virá
a julgar os vivos e os mortos” (seção 2, capítulo 2, artigo 7)
Avaliação evangélica
A doutrina do Espírito Santo: “Creio no Espírito Santo”
(seção 2, capítulo 3, artigo 8)
Avaliação evangélica
4 A profissão da fé (primeira parte, seção 2, capítulo 3, artigo 9)
A doutrina da igreja
A doutrina da igreja: “Creio na santa Igreja Católica”
(seção 2, capítulo 3, artigo 9; parágrafos 1-3)
Avaliação evangélica
Avaliação geral
Unicidade/unidade
Santidade
Catolicidade
Apostolicidade
A doutrina da igreja: “Creio na santa Igreja Católica” (seção 2, capítulo 3,
artigo 9; parágrafos 4-6)
Avaliação evangélica
Clero e hierarquia católica
Leigos católicos
Religiosos católicos
A comunhão dos santos
Maria como mãe da igreja
5 A profissão da fé (primeira parte, seção 2, capítulo 3, artigos 10-12)
As doutrinas da salvação, da ressurreição futura e da vida eterna
A doutrina da salvação: “Creio no perdão dos pecados”
(seção 2, capítulo 3, artigo 10)
Avaliação evangélica
A doutrina da ressurreição futura: “Creio na ressurreição do corpo” (seção
2, capítulo 3, artigo 11)
Avaliação evangélica
A doutrina da vida eterna: “Creio na vida eterna”
(seção 2, capítulo 3, artigo 12)
Avaliação evangélica
Conclusão

II
A teologia católica de acordo com o
Catecismo da Igreja Católica
SEGUNDA PARTE:
A CELEBRAÇÃO DO MISTÉRIO CRISTÃO

6 A celebração do mistério cristão (segunda parte, seção 1)


A liturgia e a economia sacramental
Introdução: Por que liturgia?
Avaliação evangélica
A economia sacramental (seção 1)
A liturgia — obra da Santíssima Trindade
(seção 1, capítulo 1, artigo 1)
Avaliação evangélica
O mistério pascal nos sacramentos da igreja
(seção 1, capítulo 1, artigo 2)
Avaliação evangélica
A celebração sacramental do mistério pascal (seção 1, capítulo 2)
Celebrando a liturgia da igreja (seção 1, capítulo 2, artigo 1)
e diversidade litúrgica e unidade do mistério
(seção 1, capítulo 2, artigo 2)
Avaliação evangélica
7 A celebração do mistério cristão
(segunda parte, seção 2, capítulo 1, artigos 1-2)
Os sete sacramentos; os sacramentos da iniciação cristã:
batismo e confirmação
Os sete sacramentos da igreja (seção 2)
Os sacramentos da iniciação cristã (seção 2, capítulo 1)
O sacramento do batismo (seção 2, capítulo 1, artigo 1)
Avaliação evangélica
Questões preliminares
Base bíblica
Desenvolvimento histórico
Fé e batismo
Cenários extraordinários
O sacramento da confirmação (seção 2, capítulo 1, artigo 2)
Avaliação evangélica
8 A celebração do mistério cristão
(segunda parte, seção 2, capítulo 1, artigo 3)
A eucaristia
O sacramento da eucaristia (seção 2, capítulo 1, artigo 3)
Excurso: a celebração contemporânea do sacramento da eucaristia
Avaliação evangélica
Interpretação sacramental do discurso do “Pão da Vida”
Prefigurações da eucaristia
O dogma da transubstanciação
Presentificação do sacrifício de Cristo
A participação da igreja na oferta de Cristo
Infusão da graça
Adoração contínua a Cristo
Relação entre eucaristia e penitência
9 A celebração do mistério cristão
(segunda parte, seção 2, capítulo 2, artigos 4-5)
Os sacramentos de cura: penitência e reconciliação;
unção dos enfermos
Os sacramentos de cura (seção 2, capítulo 2)
O sacramento da penitência e da reconciliação
(seção 2, capítulo 2, artigo 4)
Avaliação evangélica
A penitência não é um sacramento
Pecados anteriores e posteriores ao batismo
Dois momentos da conversão
Atos de penitência
A dupla natureza do pecado
Pecados mortais e veniais
Ação humana e divina
O duplo efeito da penitência
Indulgências
O sacramento da unção dos enfermos (seção 2, capítulo 2, artigo 5)
Avaliação evangélica
A unção dos enfermos não é um sacramento
Outras discordâncias
10 A celebração do mistério cristão
(segunda parte, seção 2, capítulo 3, artigos 6-7)
Os sacramentos ao serviço da comunhão: ordem; matrimônio
Os sacramentos ao serviço da comunhão (seção 2, capítulo 3)
O sacramento da ordem (seção 2, capítulo 3, artigo 6)
Avaliação evangélica
Governo/ofícios da igreja
Sacerdócio levítico da antiga aliança
Dois aspectos do sacerdócio
Eficácia ministerial
Celebração e recipientes do sacramento
O sacramento do matrimônio (seção 2, capítulo 3, artigo 7)
Avaliação evangélica
Conclusão

III
A teologia católica de acordo com o
Catecismo da Igreja Católica
TERCEIRA PARTE:
A VIDA EM CRISTO

11 A vida em Cristo (terceira parte, seção 1, capítulos 1—2)


A vocação humana: a vida no Espírito; a comunidade humana
A vocação humana: a vida no Espírito (seção 1)
A dignidade da pessoa humana (seção 1, capítulo 1)
O homem: a imagem de Deus (seção 1, capítulo 1, artigo 1)
Nossa vocação à bem-aventurança (seção 1, capítulo 1, artigo 2)
Liberdade humana (seção 1, capítulo 1, artigo 3)
A moralidade dos atos humanos (seção 1, capítulo 1, artigo 4)
A moralidade das paixões (seção 1, capítulo 1, artigo 5)
A consciência moral (seção 1, capítulo 1, artigo 6)
As virtudes (seção 1, capítulo 1, artigo 7)
O pecado (seção 1, capítulo 1, artigo 8)
Avaliação evangélica
A comunidade humana (seção 1, capítulo 2)
A pessoa e a sociedade (seção 1, capítulo 2, artigo 1)
Participação na vida social (seção 1, capítulo 2, artigo 2)
Justiça social (seção 1, capítulo 2, artigo 3)
Avaliação evangélica
12 A vida em Cristo (terceira parte, seção 1, capítulo 3)
Salvação; lei; graça e justificação; mérito; a igreja, mãe e educadora
A salvação de Deus: lei e graça (seção 1, capítulo 3)
A lei moral (seção 1, capítulo 3, artigo 1)
Graça e justificação; mérito (seção 1, capítulo 3, artigo 2)
A igreja, mãe e educadora (seção 1, capítulo 3, artigo 3)
Avaliação evangélica
Lei
Graça e justificação
Mérito
A igreja, mãe e educadora
Conclusão
CONCLUSÃO
Ministério evangélico com católicos
Prefácio
INTERSECÇÃO E CRÍTICA
A Igreja Católica está por toda parte. Basta ver seu tamanho: ela diz ter mais de
um bilhão de adeptos; os fiéis católicos estão, portanto, presentes na maior parte
do mundo. Onde quer que sejam encontrados, haverá os que ocupam postos de
liderança no governo, em instituições de ensino, na área da saúde, em programas
sociais, no direito, nos empreendimentos empresariais, nas artes e muito mais. O
líder da igreja, o papa, tem enorme influência no cenário internacional não
apenas em questões espirituais, mas também nas esferas da política, da ética, da
educação, da formação cultural etc. Escândalos recentes — abuso de crianças
por padres, o fiasco do Vaticano no setor bancário — puseram a igreja sob
holofotes, dando-lhe vasta notoriedade. Para o bem ou para o mal, a Igreja
Católica está no centro da atenção pública.
Essa igreja celebrou, pouco tempo atrás, os aniversários de dois eventos de
monumental importância de seu passado recente: o primeiro deles foi o Concílio
Vaticano II, o 21.º concílio geral da igreja, realizado entre 1962 e 1965. Esse
aggiornamento, ou atualização, lançou a Igreja Católica no caminho da
modernização, cujo processo continua mesmo após as comemorações do 50.º
aniversário do Vaticano II. Um dos resultados mais importantes dessa jornada,
até o momento, foi a publicação, em 1994, da edição do Catechism of the
Catholic Church, uma apresentação fiel e sistemática da teologia, liturgia e
1

prática da igreja. (Para os católicos americanos, essa edição atualizada do


catecismo substituiu o Catecismo de Baltimore, de 1885.) Em 2014, a igreja
destacou e celebrou um segundo aniversário: os vinte anos do lançamento do
catecismo.
Em vista da enorme visibilidade da Igreja Católica e da conjunção desses dois
aniversários, juntamente com minha longa familiaridade com essa igreja, é que
apresento este livro. Teologia e prática da Igreja Católica Romana: uma
avaliação evangélica visa a cumprir dois objetivos: em primeiro lugar, chamar
com fascínio e apreço a atenção para aquilo que há de comum entre a teologia
católica e a evangélica, relação que chamarei de intersecção (ou “pontos em
comum”, “pontos de acordo”, “concordâncias teológicas”; expressões também
utilizadas ao longo do livro para expressar essas similaridades); e, em segundo
lugar, examinar as diferenças entre as duas, demonstrando como a teologia e a
prática católicas desses pontos de divergência não se conformam como deveriam
com a Escritura — o que chamarei de componente crítico. Embora eu ofereça
este livro primordialmente ao público evangélico que queira se familiarizar com
a teologia e prática católicas e avaliá-las, tenho a esperança de que alguns
católicos também o leiam a fim de entender o que os evangélicos pensam da
teologia católica e como a avaliam. Não pretendo aqui me enveredar por uma
diatribe anticatólica, embora a crítica aqui apresentada seja justificável e
contundente. Não há a pretensão de avaliar tudo o que diz respeito ao
catolicismo; na verdade, o alcance da obra é bastante circunscrito, detendo-se na
doutrina e prática católicas conforme expostas no Catechism of the Catholic
Church. Portanto, este livro não procura saber de que modo a fé católica é
vivenciada de fato pelos fiéis, tampouco se envolve com as diversas faces da
Igreja Católica no que diz respeito às suas variações nacionais, étnicas,
teológicas e litúrgicas. Além disso, não presumo falar em nome de todos os
evangélicos e também não represento as muitas versões da teologia evangélica.
Dada a extensa natureza do evangelicalismo, ninguém, e nenhuma esfera
teológica específica, pode se incumbir dessa tarefa.
No que diz respeito às reações dos evangélicos a este livro, adianto que alguns
deverão concordar totalmente com minha avaliação; outros se queixarão de que
o livro se mostra conivente demais e muito compreensivo com a teologia
católica; outros ainda dirão que a obra foi longe demais em sua crítica ao
catolicismo. Seja como for, espero estimular a reflexão dos meus leitores, bem
como sua análise da teologia e prática católicas ao comparar a fé católica com a
Escritura e com a teologia evangélica.
Todo autor tem uma dívida de gratidão com inúmeras pessoas pelos conselhos
pessoais recebidos, pela direção, inspiração, pelas sugestões, pela ajuda editorial,
pelas correções etc; eu não sou exceção.
Contei com a colaboração de católicos, principalmente do padre James
Keleher, meu professor no curso de “Documentos do Vaticano II” no Seminário
St. Mary of the Lake; dom Pio Iorg, com quem trabalhei em Lugano, na Suíça;
padre Slider Steurnol, que contribuiu com minhas aulas de teologia católica no
Western Seminary; colaboraram ainda vários padres, monges e diáconos nas
minhas aulas de teologia católica no Southern Seminary. Agradeço imensamente
aos membros originais do Alfa-Ômega por concederem à Nora e a mim a
incrível oportunidade de trabalhar com seu movimento ainda incipiente: dom
Carlo Stanzial, Mario e Giulia, Ruggiero e Theresa, Lilli, Andrea, Luigi e Anna,
Antonio, Margherita, Ninetta, Maria, Sandro e Velia, Sandro e Ornella,
Annamaria, Stefano e Emilia, Roberto, la famiglia Poppi di Sorbara e outros
tantos dos quais já não me lembro mais.
Da parte dos evangélicos, tive contribuições específicas do dr. Harold O. J.
Brown, meu professor de “Teologia Católica Romana” no Trinity Evangelical
Divinity School; dos drs. Kenneth Kantzer e John D. Woodbridge, que deram
forma a uma parte significativa da minha consciência evangélica no que diz
respeito às demais variedades da cristandade; ao dr. John Nyquist (e Peggy), que
foi modelo de diálogo evangélico-católico.
Aos membros da equipe da Cru [antiga Campus Crusade for Christ] , que, de 2

modo especial, modelaram à Nora e a mim quando trabalhávamos em contexto


católico: Dennis Becker, diretor do campus da Cru, em Notre Dame; Kalevi
Lethinen, diretor europeu da Cru; seus aliados mais próximos Piryo Salminen e
Markuu Happonen; Paul Cowen, diretor nacional da Cru na França; Jose
Monels, diretor nacional da Cru na Espanha; e Gioele Baldari, Elfi Thaon de
Revel, LeeAnn Weibel e Donald Malcomb. Mais recentemente, em julho de
2013, dezesseis membros da Cru participaram do meu curso eletivo
“Ministrando a Católicos”, no Institute of Biblical Studies, e me permitiram usá-
los como “cobaias” para o primeiro rascunho, em estado ainda bem bruto, deste
livro. Sua discussão durante a aula e os comentários perspicazes que fizeram por
escrito ao rascunho suscitaram numerosas mudanças e fizeram do produto final
uma obra muito melhor. Por isso mesmo, agradeço a Mike Bost, Dawn Dishman,
Jessica e Nate Gilbert, Dan Hardaway, Linda Harrah, Bret e Elizabeth Hern,
Andi Mitchell, Marci Scholten, James e Sarah Ward, David Wetmoreland, Brian
e Erin White e meu assistente acadêmico, Ben McGuire. Também sou grato aos
alunos do meu curso mais recente de Teologia Católica Romana Contemporânea,
no Southern Seminary, por sua leitura atenta de um rascunho deste livro.
Agradeço especialmente à nossa querida amiga Ann Casas pelas melhorias
sugeridas.
Os seguintes colegas e amigos me incentivaram em meu ministério e na
redação deste livro: Frank Beckwith, com quem tive o privilégio de interagir
tanto na parte impressa quanto na apresentação oral do livro; Rob Plummer,
editor de Journeys of faith [Jornadas de fé], que propiciou uma plataforma
escrita para que Frank e eu trocássemos ideias; Chris Castaldo, autor de Holy
ground: following Jesus as a former catholic [Lugar santo: um ex-católico
seguindo a Jesus], que sabe como fazê-lo de um modo simpático e direto; e
Leonardo De Chirico, cuja dissertação de doutorado, Evangelical theological
perspectives on post-Vatican II roman Catholicism [Perspectivas teológicas
evangélicas sobre o catolicismo romano pós-Vaticano II], foi crucial para a
minha compreensão do catolicismo como sistema teológico.
Agradeço, principalmente, à minha família por seu apoio à minha vida e ao
meu ministério: Lauren, Troy, Caleb, Ali e Zoe Schneringer; Hanell, Mike, Anni,
Hudson e Vaughan Schuetz; Luke Allison e minha esposa, Nora. Ela sentiu o
mesmo chamado de Deus, partilhou o sonho de ministrar a católicos e com
católicos, dedicou-se incrivelmente à obra juntamente comigo em Notre Dame e,
na Itália, deixou família e amigos a fim de se mudar para um novo país e assim
aprender uma nova língua e começar a desenvolver um novo ministério, que
discipulou inúmeras mulheres e sempre me encoraja a seguir a liderança divina,
seja servindo como membro da Cru, seja me aprimorando em cursos avançados
de teologia, lecionando em dois seminários diferentes, pastoreando, escrevendo
livros ou sendo seu marido e pai dos nossos filhos.
1
Edição em português: Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Loyola, 1999).
2
No Brasil, o ministério era conhecido como Cruzada Estudantil e Profissional para Cristo e hoje se
chama Cru Brasil. (N. do E.)
REDUÇÕES GRÁFICAS

Allison, Gregg R. Allison, Historical theology: an introduction to Christian


HT doctrine (Grand Rapids: Zondervan, 2011).
Allison, Gregg R. Allison, Sojourners and strangers: the doctrine of the
SS church (Wheaton: Crossway, 2012).
ANF Ante-Nicene Fathers, organização de Alexander Roberts; James
Donaldson; Philip Schaff; Henry Wace (Peabody: Hendrickson,
1994), 10 vols.
Calvin, John Calvin [João Calvino], Institutes of the Christian religion,>
Institutes edição de John T. McNeill; tradução de Ford Lewis Battles
(Philadelphia: Westminster, 1960) [edições em português: João
Calvino, As institutas>, tradução de Waldyr Carvalho Luz (São Paulo:
Cultura Cristã, 2006), 4 vols.; e A instituição da religião cristã>,
tradução de Carlos Eduardo Oliveira; José Carlos Estêvão (São Paulo:
Ed. Unesp, 2008)] (veja tb. as listas abaixo para LCC> 20 e LCC> 21;
a ref. para as Institutas> aparecem também nessas fontes).
CCC Catechism of the Catholic Church> (New York: Doubleday, 1995)
[edição em português: Catecismo da Igreja Católica> (São Paulo:
Loyola, 1999)].
De Leonardo De Chirico, Evangelical theological perspectives on post-
Chirico Vatican II roman Catholicism. Religions and Discourse (Bern: Peter
Lang, 2003), vol. 19.
Grudem, Wayne Grudem, Systematic theology: an introduction to biblical
ST doctrine> (Grand Rapids: Zondervan, 1994, 2000) [edição em
português: Teologia sistemática> (São Paulo: Vida Nova, 2011)].
Heppe Heinrich Heppe, Reformed dogmatics, edição de Ernst Bizer; tradução
de G. T. Thomson (London: Allen & Unwin, 1950).
Kreeft Peter Kreeft, Catholic Christianity (San Francisco: Ignatius, 2001).
LCC 20 John Calvin [João Calvino], Institutes of the Christian religion, edição
de John T. McNeill; tradução de Ford Lewis Battles (Philadelphia:
Westminster, 1960), in: John Baillie; John T. McNeill; Henry P. Van
Dusen, orgs., Library of Christian Classics (Philadelphia:
Westminster, 1960), vol. 20.
LCC 21 John Calvin [João Calvino], Institutes of the Christian religion, edição
de John T. McNeill; tradução de Ford Lewis Battles (Philadelphia:
Westminster, 1960), in: John Baillie; John T. McNeill; Henry P. Van
Dusen, orgs., Library of Christian Classics (Philadelphia:
Westminster, 1960), vol. 21.
LW Martin Luther [Martinho Lutero], Luther’s works, organização de
Jaroslav Pelikan; Hilton C. Oswald; Helmut T. Lehmann (St. Louis:
Concordia, 1955-1986), 55 vols.
NPNF Nicene and post-Nicene Fathers, organização de Alexander Roberts,
1

James Donaldson; Philip Schaff; Henry Wace, 1. ser. (Peabody:


Hendrickson, 1994), 14 vols.
NPNF Nicene and post-Nicene Fathers, organização de Alexander Roberts;
2

James Donaldson; Philip Schaff; Henry Wace, 2. ser. (Peabody:


Hendrickson, 1994), 14 vols.
Schaff Philip Schaff, Creeds of Christendom (New York: Harper, 1877-
1905), 3 vols.
Schmid Heinrich Schmid, The doctrinal theology of the Evangelical Lutheran
Church, tradução de Charles A. Hay; Henry E. Jacobs (Minneapolis:
Augsburg, 1899).
VC II-1 Austin Flannery, org., Vatican Council II: volume 1, the conciliar and
post-conciliar documents, nova ed. rev. (Northport: Costello; Dublin:
Dominican, 1998).
VC II-2 Austin Flannery, org., Vatican Council II: volume 2, more post-
conciliar documents, nova ed. rev. (Northport: Costello; Dublin:
Dominican, 1998).
INTRODUÇÃO
A gênese deste livro remonta aos meus cinco anos de idade. É uma história
engraçada. Minha vizinha católica, tão jovem quanto eu (naqueles tempos pré-
Vaticano II), disse-me que eu ia direto para o inferno porque não era católico.
Muito perturbado, e receoso do meu destino eterno, perguntei aos meus pais se
podíamos ir à igreja. Eles atenderam imediatamente ao meu pedido e me
levaram à Igreja Metodista Unida local. Embora a escolha feita não contribuísse
em nada para mudar a avaliação da minha vizinha sobre minha condenação
futura, aquilo pelo menos me iniciou no caminho do protestantismo. Depois de
me instruir nas obras de Martinho Lutero, Ulrico Zuínglio, João Calvino, John
Wesley e muitos outros, esse caminho me levou ao lugar onde hoje estou: um
teólogo evangélico especializado em teologia sistemática do tipo batista
reformado.
Falando sério agora, a história da origem deste livro começou em maio de
1976, quando minha noiva (hoje esposa, Nora) e eu estávamos visitando um
empresário em Chesterton, Indiana, próximo de South Bend. Tínhamos recebido
permissão da Campus Crusade for Christ (atual Cru) para levantar recursos para
nosso futuro ministério no campus com aquela organização pareclesiástica.
Durante nossa conversa, em que Nora e eu apresentamos nosso futuro trabalho, o
empresário exclamou em tom de brincadeira: “Não seria interessante se vocês
dois fossem designados para fazer parte da equipe da Cru na Universidade de
Notre Dame?”. Depois de uma risada gostosa, disse: “Já pensou, um movimento
missionário protestante no campus da universidade católica mais importante dos
Estados Unidos!”. Concluímos então nossa apresentação, agradecemos e nos
despedimos. Ao entrar no carro para voltar a casa, Nora (sentada no banco do
carona) e eu (ao volante), olhamos um para o outro e, juntos, com uma forte
convicção impelida por Deus, dissemos: “Deus está nos chamando para a
Universidade de Notre Dame”.
Depois do nosso casamento, da lua de mel e do início da nossa preparação de
membros da Cru, recebemos o formulário de pedido de colocação como parte do
nosso treinamento. Imediatamente registramos para onde gostaríamos de ser
enviados: Universidade de Notre Dame. Pouco depois de receberem nossa
resposta, os líderes da Cru responsáveis pela colocação do seu pessoal nos
chamaram para uma pequena conversa. Eles ficaram intrigados com nossa
preferência pela Notre Dame (ND), uma vez que o ministério da Cru tinha
começado há pouco suas atividades naquele campus e a ideia era conseguir mais
gente para se juntar à pequena equipe iniciante. Nora e eu, porém, não
atendíamos às três qualificações exigidas por eles: não tínhamos um passado
católico, não éramos veteranos na Cru (geralmente os veteranos são responsáveis
pela abertura de novos ministérios nos campi) e não tínhamos filhos (de modo
que estivéssemos num mesmo momento da vida que estava a equipe da Cru que
já trabalhava na ND). Uma desvantagem, duas desvantagens, três desvantagens.
Os Allisons não fariam parte da equipe da Cru da Notre Dame.
Pouco tempo depois, em resposta à mesma pergunta do segundo formulário de
pedido de colocação, escrevemos: Universidade de Notre Dame. Um tanto
perplexos, os líderes do setor de colocação nos chamaram para uma nova
conversa indagando o que não havíamos entendido naquela primeira resposta —
“Não, vocês não irão para Notre Dame”. Eles tentaram nos consolar com a
possibilidade de que iríamos um dia para Notre Dame depois de ter passado
alguns anos na equipe da Cru, mas garantiram que a ND não estava em nosso
futuro imediato. É claro que dissemos a eles que estávamos dispostos a ir para
qualquer lugar que nos designassem. No entanto, bem lá no fundo, persistia a
firme convicção de que Deus estava nos chamando para a Universidade de Notre
Dame.
Por isso mesmo, quando o terceiro formulário de pedido de colocação foi
distribuído cerca de uma semana depois, nossa resposta àquela famigerada
pergunta foi “Universidade de Notre Dame”. A resposta atônita e categórica da
liderança do setor de colocação ao que parecia uma posição obstinada da nossa
parte foi: “Talvez Deus esteja chamando vocês para Villanova ou alguma outra
universidade católica, mas vocês não vão para a Universidade de Notre Dame!”.
Terceira derrota.
Pouco depois, Nora e eu, assim como os demais membros novos da Cru,
recebemos nosso envelope de colocação. Dentro dele havia um formulário que
decidiria para onde seríamos enviados. Presos à promessa de que guardaríamos
um período de silêncio e não falaríamos com ninguém a respeito do conteúdo do
envelope (o período era de 24 horas e deveria ser usado unicamente para
orarmos por nossa missão), fomos a um local externo e isolado debaixo de uma
palmeira e, nervosos, mas empolgados, abrimos o envelope:
Sua missão, caso decida aceitá-la, será... a Universidade de Notre Dame.

Depois de um dia todo de silêncio — que preenchemos arrebatados com muitas


ações de graças —, nossos líderes confirmaram conosco que a clareza do nosso
chamado para trabalharmos na ND havia superado quaisquer obstáculos à nossa
designação para esse posto. Depois de concluído nosso treinamento, Nora e eu
levantamos os recursos de que precisávamos, fizemos as malas e fomos para
South Bend, Indiana, para começar nosso ministério na Universidade de Notre
Dame.
Foi assim que teve início um período de dois anos (1976-1978) como parte de
um movimento missionário protestante no campus da mais conhecida e mais
conceituada universidade católica dos Estados Unidos. No início do nosso
segundo ano, mais de 250 estudantes expressaram o desejo de participar de um
dos nossos estudos bíblicos semanais. Conseguimos acomodar 150 deles.
Comunicar o evangelho com clareza, ensinar como ler e estudar a Palavra de
Deus, discipular novos crentes, desenvolver líderes para o ministério — todos
esses ministérios fundamentais da Cru foram contextualizados para o ambiente
de uma universidade católica. Na verdade, como mais de 80% dos alunos da
universidade são católicos, aprendemos muita coisa sobre teologia e prática
católicas e nos sentimos profundamente responsáveis ao ministrar a católicos e
com eles.
Desse interesse crescente pelo ministério católico, Nora e eu nos
candidatamos a um projeto de verão da Cru em Roma (1978), onde passamos a
maior parte das nossas primeiras semanas partilhando o evangelho com alunos
da Universidade de Roma. Embora não soubéssemos muita coisa de italiano,
rapidamente aprendemos uma frase que se tornou parte indissociável das nossas
conversas com os jovens italianos: Non credo in Dio (Não creio em Deus).
Como não havíamos ainda experimentado esse ateísmo profundamente arraigado
com os católicos da Notre Dame, perguntamos desesperadamente ao diretor
nacional da Cru italiana se ele conhecia algum católico evangélico. “Como
assim? Algum católico que tenha se tornado evangélico?”, ele perguntou. “Não”,
dissemos, “você conhece algum católico que seja católico, mas que creia como
nós, evangélicos, no evangelho, na justificação pela graça por meio da fé
somente etc.?”. Sua resposta nos pegou de surpresa: “Sim. Sei de alguns. Vocês
gostariam de conhecê-los?”. No dia seguinte, em uma reunião com dezenas de
católicos que acreditavam nas mesmas coisas em que os evangélicos criam,
participamos do lançamento de um movimento de evangelização católico leigo
chamado Alfa-Omega: perché Cristo sia tutto in tutti [Alfa-Ômega: para que
Cristo seja tudo em todos]. Esse encontro foi o início do cumprimento de uma
visão implantada vários anos antes. Então nos comprometemos a voltar à Itália
para trabalhar com o movimento.
Tendo concluído nosso projeto de verão, voltamos aos Estados Unidos.
Levantamos recursos para nossa nova atribuição, fizemos três meses de
treinamento para equipes que atuam no exterior e, depois de nos mudarmos para
Florença, estudamos italiano durante seis meses antes de nos estabelecermos em
Roma. Nos três anos que se seguiram (1979-1982), Nora e eu participamos como
membros da Cru agregados ao Alfa-Ômega. Fui diretor do primeiro centro de
treinamento ajudando a preparar leigos católicos na tarefa de compartilhar o
evangelho, conduzir estudos bíblicos, discipular novos crentes, preparar líderes,
organizar encontros evangelísticos, treinar líderes de estudos bíblicos etc.
Tínhamos também grupos de leitura semanais do evangelho que, em suas
reuniões, se ocupavam do texto do evangelho a ser lido na missa do domingo
seguinte. Ensinávamos a eles um método de estudo bíblico indutivo muito
simples que consistia na leitura do texto, observação, interpretação, aplicação e
oração. Nosso objetivo era expor os católicos à pessoa e à obra de Jesus Cristo
conforme apresentadas nos Evangelhos, de modo que pudessem abraçar as boas-
novas da salvação. Acompanhamos durante semanas os bastidores das
campanhas evangelísticas do Alfa-Ômega nas paróquias de Sorbara e de
Nonantola (perto de Modena, na província de Emilia-Romagna, no norte da
Itália) com o objetivo de treinar líderes de estudos bíblicos que trabalhariam com
centenas de residentes inscritos nos grupos de leitura semanais.
Durante nosso ministério no interior do Alfa-Ômega, surgiram diversas
oportunidades de trabalhar com padres, conhecemos um dos bispos da província
de Roma, participamos de uma audiência “privada” com o papa João Paulo II
(juntamente com outros 9.998 convidados), “contrabandeamos” o filme Jesus
para a antiga Iugoslávia, falamos diante de centenas de membros do clero
católico (bispos, padres, monges, freiras e professores de seminário) sobre o
tópico “A importância da Bíblia no ministério”, treinamos outros membros da
Cru para ministérios semelhantes com católicos e muito mais. 1

Além dessa experiência marcante de ministração a católicos e com católicos,


quando eu fazia meu curso de MDiv [pós-gradução em Teologia] no Trinity
Evangelical Divinity School (1982-1985), cursei a disciplina Documentos do
Vaticano II (S212; outono de 1983), num seminário próximo, o St. Mary of the
Lake Seminary. Embora o curso fosse uma extensão do meu preparo formal em
teologia e prática católicas em um contexto de ensino superior, fiz um seminário
sobre teologia católica romana (DST 845A; inverno de 1991) durante meus
estudos para o doutorado no Trinity, dei aulas regularmente no curso opcional de
teologia católica do Western Seminary (1994-2003), continuei a lecionar
regularmente no The Southern Baptist Theological Seminary, onde sou professor
de teologia cristã (de 2003 até hoje). Além disso, procuro me manter atualizado
com a evolução da teologia católica lendo e escrevendo sobre o assunto. Meus
escritos que tratam da teologia e prática católicas são “The Bible in Christianity:
Roman Catholicism” [A Bíblia no cristianismo: catolicismo romano] (in: ESV
Study Bible [Wheaton: Crossway, 2008], p. 2613-5), “The theology of the
Eucharist according to the Catholic Church” [Teologia da Eucaristia de acordo
com a Igreja Católica] (in: Thomas R. Schreiner; Matthew R. Crawford, orgs.,
The Lord’s supper: remembering and proclaiming Christ until he comes
[Nashville: B & H Academic, 2010], p. 151-92) e “A response to Catholicism”
[Uma resposta ao catolicismo] (in: Robert Plummer, org., Journeys of faith
[Grand Rapids: Zondervan, 2012], p. 115-28).
Estas breves informações introdutórias permitem chamar a atenção para dois
pontos: (1) Embora eu não tenha um passado católico, sou um teólogo
evangélico cuja experiência com a teologia e prática católicas é mais extensa e
pessoal do que a da maior parte dos evangélicos. Espero que essa familiaridade
me coloque numa posição de guia confiável para os evangélicos que queiram
conhecer o catolicismo. (2) Minha experiência ajuda a explicar os propósitos
deste livro, que são dois. O primeiro propósito consiste em destacar o que há de
comum entre a teologia católica e a evangélica, concordâncias ou semelhanças
que provoquem interseção. As doutrinas e práticas comuns — por exemplo, a
Trindade; a divindade e humanidade plenas de Jesus Cristo; adoração e oração
— devem ser reconhecidas e apreciadas, já que conduzem à ação de graças pela
unidade, limitada, porém real entre catolicismo e evangelicalismo. O outro
propósito é o de ressaltar as divergências entre a teologia católica e a evangélica
— discordâncias ou dessemelhanças que exigem crítica. Essas disparidades
doutrinárias e práticas — por exemplo, a sucessão apostólica, a
transubstanciação, a imaculada concepção de Maria, a oração pelos mortos do
purgatório — são pontos sérios de divisão que devem ser enfrentados de forma
honesta e com pesar, mas com a convicção humilde que evita minimizar a
distância substancial entre catolicismo e evangelicalismo.
Um livro desse tipo tem como objetivo atingir dois públicos, um principal e
outro secundário. Com relação ao público principal, ele é formado por
evangélicos que desejam se familiarizar com a teologia católica e avaliá-la sob a
perspectiva da Escritura e da teologia evangélica, e também por evangélicos que
querem conhecer melhor sua própria teologia comparando-a e contrastando-a
com a teologia católica. Quanto ao público secundário, ele é formado por
católicos que desejam aprender o que os evangélicos pensam sobre a teologia
católica e como eles a avaliam, e por católicos que desejam aprender a teologia
evangélica comparando-a e contrastando-a com a teologia católica, talvez porque
estejam a caminho para abraçar a fé evangélica.
Convém ressaltar que este livro não foi feito com a intenção de ser uma
diatribe raivosa anticatólica. Embora critique de forma contundente certas
doutrinas e práticas católicas, essa crítica deve ser posta no contexto da
interseção — isto é, da avaliação e da ação de graças pelos muitos pontos em
comum entre a teologia católica e a protestante. Além disso, é preciso enfatizar
que este livro não tem a pretensão de ser uma apresentação ambígua que acentua
as semelhanças e minimiza as divergências entre as duas posições teológicas, na
tentativa de promover algum tipo de ecumenismo de “mínimo denominador
comum”. Embora assinale com gratidão as muitas concordâncias entre a teologia
católica e a evangélica, tal aprovação deve ser situada no contexto da crítica —
isto é, na avaliação negativa do livro de certas doutrinas e práticas católicas
contra as quais a teologia evangélica se posiciona (e deve mesmo se posicionar)
fortemente.
Para tanto, escrevi Teologia e prática da Igreja Católica Romana para que
fosse um passeio pelo Catechism of the Catholic Church. A partir do capítulo 2
deste livro, para cada seção do Catechism, descreverei primeiramente de forma
sucinta e sem comentários a teologia ou a prática católica de que tratará aquela
seção; em seguida, farei uma avaliação da teologia ou da prática católica da
perspectiva da Escritura e da teologia evangélica. No capítulo 1, explicarei a
estratégia de interpretação da Escritura e apresentarei a perspectiva teológica
evangélica que usarei no livro todo. Nesse capítulo, trato também do que penso
da teologia católica e de como lido com ela, isto é, como um sistema que se
caracteriza por dois axiomas: a interdependência natureza-graça e a igreja como
encarnação contínua de Jesus Cristo. Posso então mostrar sucintamente como
esses dois princípios se manifestam em doutrinas e práticas católicas concretas.
Concluo o capítulo com uma avaliação dos dois axiomas.
Seguindo de perto a estrutura do Catechism of the Catholic Church, os
capítulos 2 a 5 cobrirão a primeira parte, intitulada “A profissão da fé”, porque
descreve a teologia católica conforme professada no Credo dos Apóstolos (com
alguns poucos acréscimos do Credo Niceno). Os capítulos 6 a 10 tratam da
segunda parte do Catechism, “A celebração do mistério cristão”, em que explico
a economia sacramental da Igreja Católica e os sete sacramentos. Os capítulos 11
e 12 discutem a terceira parte do Catechism, em “A vida em Cristo”, na qual falo
sobre a salvação, a lei, a graça, a justificação, o mérito etc. As conclusões e
aplicações serão tratadas na Conclusão. As divisões em capítulos deste livro são
mais ou menos aleatórias e não seguem as divisões (assinaladas de acordo com o
número da parte, seção, capítulo, artigo e parágrafo) do Catechism. As divisões
em capítulos são usadas para dividir o grande volume de teologia e prática em
partes acessíveis para os leitores.
Para facilitar o acompanhamento do fluxo do Catechism, há duas observações
estruturais importantes: desde suas divisões mais amplas até as mais reduzidas, o
Catechism caminha da parte para a seção, do capítulo para o artigo, com alguns
artigos divididos em tópicos específicos reunidos sob um tópico de parágrafo.
Por exemplo, a primeira parte, “A profissão da fé”, é subdividida em duas
seções: Seção 1, que analisa as expressões “Eu creio” — “Nós cremos”; e a
Seção 2, que analisa os credos. A Seção 2 divide-se ainda em doze artigos, um
dos quais é o artigo 3, sobre a doutrina da pessoa de Jesus Cristo, intitulado “Foi
concebido pelo poder do Espírito Santo” e “Nasceu da Virgem Maria”. O artigo
3 divide-se ainda em três parágrafos que analisa “O Filho de Deus se tornou
homem” (parágrafo 1), “Foi concebido pelo poder do Espírito Santo” e “Nasceu
da Virgem Maria” (parágrafo 2) e “Mistérios da vida de Cristo” (parágrafo 3).
De acordo com a segunda observação estrutural, todo parágrafo do Catechism
é numerado de forma consecutiva para maior facilidade de consulta. Aqui uso a
palavra “parágrafo” num sentido diferente do que foi usado como parte da
estrutura geral do Catechism — em que um parágrafo é um cabeçalho
secundário de um artigo. Agora, diferentemente disso, uso “parágrafo” em
sentido gramatical para me referir a uma série de sentenças marcadas por recuo
na página em que cada um expressa uma ideia ou tema independente. Usado em
sentido gramatical, os parágrafos do Catechism são numerados e ao longo de
todo o livro farei referência aos números dos parágrafos (e. g., CCC 813) ao
descrever e avaliar cada uma das ideias ou temas principais da teologia e prática
católicas. Cabe ressaltar que os números dos parágrafos são diferentes a cada
página. Os números são os mesmos para todas as versões e línguas do
Catechism, ao passo que os números das páginas variam.
1
A afirmação de Dave Armstrong de que agi como “um sabotador secreto que tenta achar erros no
catolicismo” durante meu ministério no Alfa-Ômega é totalmente descabida e falsa. Nego veementemente a
acusação (disponível em: http://art-of-attack.blogspot.com/2011/08/brief-refutation-of-gregg-r-
allisons.html).
1
ESCRITURA, TEOLOGIA EVANGÉLICA
E TEOLOGIA CATÓLICA
Minha avaliação da teologia e prática católicas romanas terá como base a
Escritura e a teologia evangélica; assim, este capítulo começará com uma breve
explicação da Escritura e de sua interpretação e, em seguida, se concentrará na
apresentação da doutrina evangélica. Além disso, proporemos aqui, para
compreensão e avaliação do tema em questão, uma estratégia que vê a teologia
católica romana como um sistema coerente e abrangente dotado de duas
características principais: a interdependência natureza-graça, isto é, uma forte
continuidade entre natureza e graça; e a interconexão Cristo-Igreja, isto é, uma
eclesiologia (uma doutrina da igreja) que vê a Igreja Católica como a encarnação
permanente de Jesus Cristo. Esses axiomas serão também submetidos à
avaliação.

A Escritura e sua interpretação


De acordo com a teologia evangélica, a Escritura tem 66 livros — 39 no Antigo
Testamento e 27 no Novo Testamento — e é interpretada em conformidade com
um método gramático-(salvífico)/histórico-tipológico. Essa hermenêutica, ou
1

estratégia interpretativa, se debruça sobre a gramática das passagens bíblicas


chamando a atenção para o significado e a função das palavras, para a relação
das palavras e frases nas sentenças, o gênero em que o texto foi escrito, o
desenvolvimento dos argumentos, o fluxo das narrativas, as imagens dos poemas
e das expressões figurativas, as alusões a passagens anteriores etc. Essa
2

hermenêutica se preocupa também com o contexto histórico no qual as


passagens foram escritas, procurando compreender os antecedentes
sociopolíticos, econômicos e culturais dos textos, seus autores e público, bem
como os propósitos para os quais foram escritos, tudo isso com o objetivo de
interpretá-los nesse contexto e com os propósitos especificados. Foi dada
3

atenção específica ao contexto histórico-salvífico das passagens bíblicas em


virtude da importância que têm para a compreensão do lugar que ocupam na
revelação progressiva de Deus, para a conexão que estabelecem com passagens
anteriores, com as passagens posteriores que antecipam, além de sua conexão
com as alianças bíblicas e aquilo que desejam enfatizar acerca de Jesus Cristo. 4

Essa estratégia de interpretação se ocupa também da tipologia, ou das relações


intencionais entre uma pessoa/lugar/instituição/coisa (o tipo) e uma
pessoa/lugar/instituição/coisa posterior (o antítipo), uma estrutura que enfatiza a
unidade da Escritura e seu tema de promessa-realização ou antecipação-
consumação. A interpretação evangélica não segue a estrutura católica romana
5

dos “quatro sentidos” para a compreensão da Escritura, segundo a qual há quatro


significados a discernir na Escritura — literal, alegórico, moral e anagógico —
na maioria, senão em todas as passagens bíblicas. Essa visão da Escritura e de
6

sua interpretação é a base do primeiro elemento sobre o qual a teologia e prática


católicas serão avaliadas. O segundo elemento será a teologia evangélica, para a
qual voltaremos agora nossa atenção.

Uma visão evangélica da vida com Deus e o


desabrochar humano
Com relação à teologia evangélica, é preciso compreender primeiramente que o
evangelicalismo não é uma igreja nem uma denominação, e sim um amplo
movimento que abriga milhares de igrejas e de ministérios de diferentes
convicções teológicas: reformados, luteranos e arminianos; aliancistas e
dispensacionalistas; pentecostais/carismáticos e não pentecostais/não
carismáticos; proponentes do batismo infantil e defensores do batismo do crente;
complementaristas e igualitaristas e muitos outros. Dado esse espectro teológico
impressionante, não é possível definir e apresentar uma teologia evangélica; o
que existe, na verdade, são teologias evangélicas — no plural. Contudo, para
evitar confusão em minha avaliação da teologia e prática católicas, exponho a
seguir a expressão típica da teologia evangélica a que pretendo me restringir
assinalando, quando apropriado, as divergências importantes em relação a outras
expressões da teologia evangélica. Antecipando-me a possíveis críticas de
católicos, observo que essa diversidade teológica não é um “problema” apenas
para o evangelicalismo. A teologia católica também “sofre” da mesma realidade,
uma vez que acolhe em seu âmbito o agostinismo e o semiagostinismo;
progressistas, adeptos da teologia da libertação, conservadores, adeptos da
teologia da Opus Dei; defensores do sacerdócio exclusivamente masculino e
defensores do sacerdócio feminino; os que defendem a inerrância e os que são
contrários a ela; inclusivistas e exclusivistas etc. O “problema” da diversidade
teológica não é inerente ao evangelicalismo, tampouco se restringe a ele, já que
se pode encontrá-lo também dentro do catolicismo, apesar das afirmações em
contrário.
Assim sendo, recorrerei a uma expressão típica da teologia evangélica que
chamarei de “uma visão da vida com Deus e do desabrochar humano”.
Deus existe eternamente em três pessoas — o Pai, o Filho e o Espírito Santo
—, cada um dos quais é Deus em plenitude, embora exista apenas um Deus.
Existindo eternamente, o Pai, o Filho e o Espírito Santo se caracterizam por um
relacionamento dinâmico e amoroso (Jo 17.24-26), de mútua glorificação (Jo
17.4,5) e propósito (e.g., 1Pe 1.20,21), e que inclui, em parte, a decisão de trazer
à existência nosso universo visível e tangível. Esse plano foi concretizado no
momento em que o Deus trino criou o mundo e tudo o mais ex nihilo, ou “do
nada” (Gn 1.1; Hb 11.3). Luz e trevas, a terra seca e os mares, o sol, a lua e as
estrelas, árvores e plantas, os peixes, aves, animais terrestres — tudo foi formado
(Gn 1.2-25), aparentemente, em preparação para o surgimento de uma criatura
final, especial e apoteótica; de fato, esse ser seria mais parecido com Deus do
que qualquer outro ser criado. Deus criou os seres humanos à sua imagem e em
conformidade com sua semelhança (Gn 1.26-31), ou seja, refletimos Deus e o
representamos no mundo em que vivemos. Com relação ao elemento reflexivo,
nós, seres humanos, manifestamos Deus, à imagem de quem fomos criados,
refletindo seu amor, sua justiça, a verdade no falar, sua fidelidade, sua
misericórdia, seu poder, sua sabedoria etc. — sempre imperfeitamente, em parte,
e misturado ao pecado por causa da nossa realidade decaída. O aspecto
representativo consiste em duas funções (Gn 1.28): procriação (“frutificai e
multiplicai-vos; enchei a terra”), o que significa que nós, na maioria dos casos,
somos casados ou nos casaremos; e vocação (“sujeitai-a [a terra]; dominai”) ou
edificação da civilização, isto é, nosso trabalho em profissões tais como
educação, política, negócios, saúde, construção e fabricação, artes e assim por
diante (e.g., Gn 4.17-22). Contribuímos com o desabrochar humano ao usarmos
7

as habilidades que nos foram dadas por Deus. Ao refletir Deus (manifestando
vislumbres do seu caráter) e representá-lo (por meio do estabelecimento da
família e da edificação da civilização), participamos do mais excelente dos
propósitos: glorificar a Deus.
Como portadores da imagem divina, nascemos dotados de um senso inato de
Deus (At 17.22-34), testemunhamos seu poder eterno e sua natureza divina por
meio do que observamos na ordem criada (Rm 1.18-25), testemunhamos
também da sua bondade graças ao cuidado da sua providência que nos sustenta
(At 14.8-18) e temos um sentimento intuitivo do certo e do errado pela
consciência (Rm 2.12-16). Por esses modos de revelação geral, sabemos que
Deus existe, conhecemos um pouco dos seus atributos e alguns princípios morais
que nos tornam responsáveis perante ele. Diante dessa revelação universal de
Deus, devemos adorá-lo e honrá-lo como Deus, dar-lhe graças e depender dele
para nossa existência, obedecendo ao senso moral do nosso coração.
Tragicamente, todos os portadores da imagem de Deus caíram em pecado e
vivem em um mundo que não é como deveria ser. Pessoalmente, estamos aquém
da glória de Deus (Rm 3.23); isto é, não adoramos e honramos a Deus como
deveríamos, não lhe agradecemos nem dependemos dele como deveríamos, e
não obedecemos (em geral, nem sempre) a nosso senso moral acerca do que é
certo, evitando fazer o que nossa percepção moral nos diz que é errado,
conforme deveríamos. Tudo isso evidencia nosso distanciamento de Deus.
Contudo, nossa queda não termina aqui: também estamos afastados de outros
seres humanos, absortos em nós mesmos, em vez de estar preocupados com os
outros, competimos com eles e deixamos de cultivar um bom relacionamento.
Além disso, somos desatentos em relação a nós mesmos, nosso entendimento se
obscureceu em busca de coisas que jamais nos satisfarão, a ponto de nos
enganarmos.
Na verdade, talvez nem sequer estejamos cientes da nossa situação atual de
pecaminosidade: nossa consciência talvez esteja anestesiada; quem sabe nos
julguemos moralmente justos em comparação com outros que são piores do que
nós; talvez nos entreguemos às boas obras (o que não significa necessariamente
que sejamos religiosos; no entanto, ser religioso e pertencer a uma comunidade
de fé que enfatiza a prática do bem contribui para isso), levando-nos a concluir
que ganhamos o favor divino. Bem lá no fundo, porém, sabemos que não está
tudo bem conosco: temos uma percepção confusa da nossa hipocrisia e, embora
esperemos que Deus nos seja favorável e aprecie nossas boas obras, suspeitamos
— e com razão — que um Deus perfeitamente santo e justo não nos avaliará
com base no volume positivo de boas obras que tivermos feito, e que até mesmo
a realização humana mais extraordinária, para não falar dos esforços mais
insignificantes da maioria dos seres humanos, de nada valerão diante de um
Deus perfeito. Portanto, não estamos em uma situação confortável, tampouco em
uma situação neutra; pelo contrário, nossa situação é terrível. Entramos neste
mundo sobrecarregados pelo pecado original e manifestamos essa realidade pela
vida toda: culpados diante de Deus, totalmente corruptos em nossa natureza (na
mente, nas emoções, na vontade, no corpo, nas motivações, em nossos
propósitos — tudo está desfigurado), e incapazes de sanar nossa culpa e de
reorientar nossa natureza pecaminosa tirando-a de seu estado de egoísmo e
levando-a para que se concentre em Deus, da vida do eu para a vida com Deus. 8

Neste mundo trágico de seres humanos decaídos, Deus interveio para resgatar
os portadores de sua imagem. No âmago da redenção em Jesus Cristo, o eterno
Filho de Deus, por meio de um milagre operado pelo Espírito Santo, foi
concebido pela virgem Maria e se fez carne (Mt 1.18-25; Lc 1.26-38), assumindo
a natureza humana (Fp 2.5-7). Como Deus-homem, Jesus viveu uma vida
perfeita sob a lei de Deus (Gl 4.4), fez milagres para mostrar sua divindade, 9

caminhou no poder do Espírito Santo (Lc 4.16-21; At 10.38; Lc 4.1), anunciou e


inaugurou o reino de Deus (Mc 1.14,15), ensinou as multidões (Mt 5—7),
discipulou vários homens (Mt 10.1-4), enfrentou tentações e provações como
qualquer ser plenamente humano, mas nunca pecou (Hb 2.14-18; 4.14-16),
prosperou em seu relacionamento com Deus (Mt 11.25-27), desfrutou de
relacionamentos pessoais íntimos com pessoas de todos os tipos (Mc 2.15-17) e
tornou visível o Deus invisível (Cl 1.15; Jo 14.8,9; Hb 1.3). Pouco antes de sua
morte, Jesus foi traído por um amigo próximo, abandonado por seus discípulos,
acusado de blasfêmia e condenado, embora fosse inocente. Foi espancado e, por
fim, crucificado numa cruz; seu corpo foi colocado no sepulcro em um jardim,
onde repousou durante três dias (Mt 26.47—27.66).
No terceiro dia, esse Jesus, que foi crucificado e sepultado, ressuscitou dos
mortos pelo poder de Deus. Durante quarenta dias ele apareceu a seus discípulos,
depois do que subiu ao céu (At 1.2,3,9-11) e se sentou à mão direita do Pai, de
onde exerce todo o poder e autoridade como soberano cósmico de todas as
coisas criadas (Ef 1.19-21), dirige a igreja ou o corpo do qual é a cabeça (Ef
1.22), intercede por seus seguidores (Hb 7.25; Rm 8.34) e prepara um futuro
eterno para eles (Jo 14.2,3). Ele voltará à terra, mas dessa vez não como Servo
Sofredor em vergonha e humilhação, e sim como o triunfante Rei dos reis e
Senhor dos senhores com poder, majestade e glória (Ap 19).
Essa obra de redenção, e a forma pela qual é concretizada na vida dos
pecadores, é comunicada por outro meio de revelação divina: a revelação
especial, sobretudo a Escritura. Essa Palavra de Deus escrita se caracteriza pelos
seguintes atributos: é inspirada ou soprada por Deus (2Tm 3.16; 2Pe 1.19-21);
isto é, o Espírito Santo supervisionou os autores da Bíblia de tal maneira que,
preservando sua personalidade, estilo de escrita, ênfases teológicas e habilidades
gramaticais, eles escreveram exatamente o que Deus queria que escrevessem.
Como a Palavra é inspirada por Deus, ela é totalmente verdadeira (inerrante) em
tudo o que afirma (Jo 17.17), quer se trate da pessoa e da obra de Jesus Cristo,
quer da existência e natureza dos anjos, da criação do Universo, da história do
povo judeu, do destino eterno dos justos e dos ímpios etc. Como é inspirada por
Deus, a Escritura tem autoridade, isto é, deve-se crer nela e obedecer-lhe (Rm
6.17), assim como se deve crer em Deus e obedecer-lhe. Ela é eficaz, desperta a
fé (Rm 10.17), expõe o pecado (Hb 4.12,13), mostra o caminho adequado pelo
qual se deve andar, salva o pecador empedernido e transforma e refaz vidas
arruinadas; sempre cumprindo o propósito para o qual Deus a concedeu (Is
55.10,11). A Escritura é suficiente e contém tudo o que as pessoas precisam
saber para se salvar e viver de um modo tal que agrade plenamente a Deus (Sl
19.7-11; 2Tm 3.16,17). Ela é necessária, isto é, o ser humano decaído precisa
dela para compreender o caminho da salvação, para conhecer a vontade de Deus
e adquirir sabedoria para viver em santidade (Mt 4.4; 1Pe 2.1-3). Na verdade,
sem a Escritura, a igreja não existiria ou não teria como existir. A Escritura é
clara, escrita de tal modo que o ser humano comum que possua a capacidade
adquirida normal de entender a comunicação escrita/oral possa lê-la com
entendimento, ou, se não for capaz de entendê-la, possa ouvir sua leitura e
compreendê-la (Dt 29.29). Por fim, a Escritura consiste em 66 livros — 39 dos
quais no Antigo Testamento e 27 no Novo Testamento. Esses livros constituem o
cânon bíblico, ou a lista dos livros que Deus quis incluir em sua Palavra
inspirada (soprada por Deus), verdadeira (inerrante), dotada de autoridade, eficaz
(poderosa), suficiente, necessária e clara.
De posse dessa revelação divina da Escritura, o ser humano decaído pode
conhecer e compreender o evangelho, que é obra da salvação operada por Deus
em Cristo e concretizada na vida humana. No tocante à efetivação da salvação, o
ponto central do evangelho é a morte e a ressurreição de Jesus Cristo (1Co 15.1-
4). Mediante seu sacrifício expiatório, Jesus Cristo pagou a penalidade do
pecado ao assumir o lugar do pecador; ou seja, Cristo morreu em nosso lugar,
por nós (Ef 5.2). Sua morte venceu quatro consequências terríveis do pecado
humano: ela foi expiatória, isto é, removeu o castigo da morte e da punição
eterna em razão da culpa perante Deus (Hb 10.5-18); foi propiciatória, pois
aplacou a ira impetuosa de um Deus furiosamente justo (Rm 3.23-26); foi
reconciliadora porque removeu a inimizade entre Deus e o ser humano por meio
da mediação de Cristo, restaurando a amizade entre as partes antes em conflito
(2Co 5.17-21); e foi salvadora porque libertou o ser humano escravizado ao
pecado de tal cativeiro pelo pagamento de um preço de compra ou de resgate, o
sangue de Cristo (1Pe 1.18-21). Por meio dessa reparação
expiatória/propiciatória/reconciliatória/redentora, Cristo operou a salvação do ser
humano pecador. A natureza satisfatória desse sacrifício foi confirmada quando
o Pai levantou seu Filho dos mortos, porque a ressurreição significava que Cristo
havia feito tudo o que era necessário para a salvação (Rm 1.4; 4.24,25). Além
disso, mediante sua morte e ressurreição, Jesus derrotou Satanás (Hb 2.14-18) e
triunfou sobre todas as coisas criadas (Ef 1.19-21; Cl 2.15), uma vitória cósmica
que será plenamente manifestada no final desta era, quando ele voltar em poder e
glória triunfantes.
Em relação à concretização desse plano divino de salvação, o ponto central do
evangelho é a obra graciosa de Deus independentemente de todo e qualquer
esforço ou mérito humanos. Essa aplicação multifacetada consiste nos seguintes
atos poderosos de Deus:
Eleição, ou a escolha soberana, graciosa e eterna de algumas pessoas a serem
salvas de seus pecados e que experimentarão a salvação não por alguma coisa
que sejam ou que tenham feito, mas porque Deus teve prazer nisso: salvar alguns
daqueles portadores da sua imagem do pesadelo infernal no qual todos caíram.
Essa decisão divina é inescrutável e misteriosa, pessoal, não aleatória ou volúvel,
graciosa e incondicional e independente da personalidade humana, de suas
inclinações religiosas, obras ou quaisquer outras coisas semelhantes (Ef 1.4;
2Tm 1.9). Embora se trate de escolha eterna e oculta, a eleição ganha
10

concretude por meio de uma série de atos de poder de Deus no espaço e no


tempo e, com isso, pode se conhecer a escolha divina (1Ts 1.4,5).
A convicção do pecado é obra realizada pelo poder do Espírito Santo (Jo 16.8-
11), que convence os descrentes do seu pecado (especificamente, de sua
descrença em Jesus), da sua autojustificação (de suas tentativas inúteis de
agradar a Deus e merecer a salvação pela prática de boas obras, frequência à
igreja e assim por diante, sem necessitar da graça divina) e de seu julgamento
falho (que avalia as pessoas pela mera aparência e por padrões mundanos). Essa
obra de convencimento do Espírito expõe os descrentes e sua culpa perante
Deus, deixando clara sua necessidade de salvação.
O chamado eficaz é o ato de poder por meio do qual Deus atrai para si seu
povo, um chamado que certamente resultará em seu abraço de salvação (Rm
8.29,30). Não é uma convocação coercitiva, mas é segura, e vem pela
comunicação da mensagem do evangelho (2Ts 2.13,14).
A regeneração é o ato de poder por meio do qual o Espírito Santo faz as
pessoas, mortas em seu pecado, nascerem de novo (Jo 3.1-8; Tt 3.5). Onde antes
não havia nada, senão indiferença pelas coisas de Deus, agora há nova vida
espiritual; as pessoas são novas criaturas (2Co 5.17), transformadas em seu ser, e
assim feitas filhos e filhas de Deus (Jo 1.12). 11

A justificação é o ato de poder por meio do qual Deus declara que o pecador
não é culpado, justificando-o, perdoando seus pecados e atribuindo a ele a justiça
de Cristo. A justificação está alicerçada na graça de Deus alcançada por meio da
morte expiatória de Cristo mediante a qual Deus, em sua justiça, proclama que a
penalidade pelo pecado foi paga e, portanto, o pecador não é culpado (Rm 3.25).
Em vista da exigência divina de retidão perfeita, a perfeita retidão de Jesus
Cristo, conquistada por sua obediência na vida e na morte, é atribuída ao
pecador. Esse ato declaratório não se baseia em qualquer bondade inerente ou
justiça pessoal alcançada pelos seres humanos decaídos (Rm 3.19-22) e não os
torna efetivamente justos; pelo contrário, a justiça de Jesus Cristo é apropriada
pela fé (Gl 2.15,16), e o pecador é justificado completamente, de tal modo que
jamais terá de enfrentar a condenação divina (Rm 8.1).
A adoção é a obra de poder por meio da qual Deus leva o pecador à sua
família e o acolhe como filho (Ef 1.5).
A união com Cristo é o ato de poder multifacetado do qual fazem parte os
crentes que estão em Cristo (Rm 6.1-11), ou que se identificam com sua morte,
ressurreição e ascensão; estando Cristo em seus seguidores (Gl 2.20); e sendo
todos os crentes um em Cristo (Jo 17.21-23).
Todos esses atos de poder de Deus — eleição, convicção do pecado, chamado
eficaz, regeneração, justificação, adoção e união com Cristo — se concretizam
no início da obra graciosa de salvação de Deus. A resposta humana a essa ação
multifacetada é a conversão, que implica ouvir e compreender a mensagem do
evangelho, arrependimento do pecado (dar-lhe as costas, renunciar a ele,
comprometendo-se a não viver mais em pecado; Lc 24.46,47; At 17.30) e fé
(crer que Cristo morreu pelos seus pecados, confiar em sua obra de salvação e
abandonar todo esforço humano, confiando em Cristo e em Cristo somente; Ef
2.8,9; Rm 10.9). Arrependimento e fé não são obras humanas, tampouco
respostas meramente humanas. Como virtudes evangélicas, estão atreladas ao
evangelho e são, portanto, inspiradas pela graça (At 18.27) e motivadas pelos
mensageiros do evangelho (1Co 3.5; 2Co 5.17-21). Contudo, constituem a
resposta humana adequada e necessária ao evangelho. De fato, sem
arrependimento e fé genuínos, não pode haver salvação.
A salvação, entretanto, é muito mais do que assunto individual, porque as
obras poderosas de Deus que resgatam o ser humano decaído também conduzem
os redimidos à igreja. O ato de poder específico nesse caso é o batismo com o
Espírito: Jesus batiza (Jo 1.33) os novos crentes com o Espírito Santo (Lc 3.15-
17), acolhendo-os em seu corpo, a igreja (1Co 12.13). O cristão está unido à
igreja universal e à igreja local.12

A igreja universal é a junção dos crentes falecidos, atualmente no céu, com os


crentes vivos do mundo todo. Essa igreja universal (pelo menos seus membros
vivos) é manifestada (por Cristo, sua cabeça, e pelo Espírito) e se manifesta a si
mesma (mediante a associação dos cristãos uns com os outros) nas igrejas locais.
Essas comunidades são lideradas por pastores, ou presbíteros, preparados e
publicamente reconhecidos, responsáveis pelo ensino da sã doutrina (1Tm 3.2;
5.17; Tt 1.9), pelo governo [da igreja] (1Tm 3.4,5), pela oração (especialmente
pelos enfermos; Tg 5.13-18) e pelo pastoreio (proteção do rebanho e uma
liderança cujo estilo de vida deve ser exemplar; 1Pe 5.2,3). Essas assembleias
também são servidas por diáconos (1Tm 3.8-13), membros preparados e
publicamente reconhecidos que servem a Jesus Cristo nos inúmeros ministérios
da igreja. As igrejas locais se reúnem regularmente para adorar a Deus,
proclamam sua Palavra por meio da leitura e da pregação da Escritura, celebram
as ordenanças do batismo e da ceia do Senhor, comunicam o evangelho a não
cristãos, exercem dons espirituais, discipulam seus membros, ministram às
pessoas por intermédio de orações e auxílio financeiro, praticam a disciplina da
igreja e se colocam a favor e contra o mundo, ajudando os pobres e os
marginalizados por meio de ministérios holísticos. As igrejas locais também são
fortemente interligadas e cooperam umas com as outras na realização de
ministérios de alto impacto em suas cidades.
Duas outras obras de poder de Deus acompanham esses atos e prosseguem
pelo resto da vida. A santificação é a obra colaborativa de Deus e do cristão (Fp
2.12,13) pela transformação contínua na semelhança cada vez maior com Cristo,
particularmente por meio da obra do Espírito Santo (2Co 3.18; Gl 5.16-23).
Diferentemente de outras obras divinas que são monergistas (operadas por “um”
[gr., mono] que “trabalha” [gr., ergon], i. e., Deus somente), a santificação é um
processo sinergístico (“trabalhando [gr., ergon] juntos [gr., sun]”) em que Deus
trabalha por meios próprios de sua atividade divina (e.g., convencimento do
pecado, revestimento de poder pelo Espírito, disposição e esforço para realizar o
que lhe apraz) e os cristãos trabalham em conformidade com sua atividade
humana (e.g., lendo a Escritura, orando, mortificando o pecado, entregando-se
ao Espírito).
A perseverança é o ato de poder por meio do qual Deus protege
poderosamente o cristão mediante o exercício contínuo da fé para levá-lo em
segurança à posse da plenitude da sua salvação no retorno de Cristo (1Pe 1.5).
Como o poder de preservação de Deus é fundacional nesse processo; como a fé
salvadora, por definição, persevera plenamente a vida toda (1Jo 2.18,19); e como
a Escritura está repleta de afirmações e de promessas da vontade resoluta de
Deus de salvar completamente todos aqueles em quem ele iniciou sua obra
redentora (e.g., Rm 8.28-35; Fp 1.6), o cristão desfruta do privilégio da
segurança de sua salvação. 13

No decorrer da jornada do cristão pela vida, ele espera por vários outros atos
de poder de Deus tanto no plano pessoal quanto no cósmico. Pessoalmente, à
medida que envelhece, sofre, adoece e se aproxima inexoravelmente da morte,
ele antevê com alegria, e sem sucumbir ao medo, sua chegada ao lar. A chegada
ao lar é o ato de poder de Deus no final da vida pelo qual o cristão se desprende
do corpo e vai viver com o Senhor. Ele passa imediatamente desta vida terrena
para a presença de Deus, apesar de estar sem corpo (2Co 5.1-10).
Consequentemente, ele espera ansiosamente pelo próximo ato de poder de Deus,
sua glorificação, que é o término da sua salvação quando Cristo retornar (Fp
3.20,21). A glorificação se caracteriza pela ressurreição do corpo; o cristão sem
corpo recebe seu corpo glorificado — imperecível, glorioso, poderoso e
totalmente dominado pelo Espírito Santo (1Co 15.42-44).
Cosmicamente, a consumação da presente era começará com o retorno de
Jesus Cristo. Ao descer do céu, acompanhado de seu povo fiel, o Rei dos reis e
Senhor dos senhores esmagará seus inimigos e se manifestará como o
Governante supremo (Ap 19). Dependendo da sua escatologia (visão do futuro),
o cristão acredita que o Governante supremo reinará por mil anos — durante o
milênio (Ap 20.1-6) — na terra antes de inaugurar o novo céu e a nova terra, ou
que imediatamente depois do seu retorno triunfante ele estabelecerá o novo céu e
a nova terra. Na esteira desses eventos cósmicos virão outros atos de poder de
Deus: o juízo final (At 17.30,31), em que Deus avaliará as obras de todos (2Co
5.10) e manifestará sua justiça recompensadora, premiando as boas obras, ou sua
justiça retributiva, condenando as más obras, o que culminará com o castigo
eterno dos ímpios (Mt 25.46). O último ato de poder de Deus consistirá na
remoção do céu e da terra como hoje existem e de tudo o que eles contêm (2Pe
3.10), dando lugar a um novo céu e uma nova terra (Ap 21 e 22) em que não
haverá mais pecado, sofrimento, doenças e morte. Os seres humanos redimidos,
plenamente renovados à imagem de Deus, habitarão ali para sempre, adorando o
Senhor.

A teologia católica como um sistema coerente e


abrangente
Será com base na Escritura e na teologia evangélica, conforme exposta
anteriormente, que se fará a avaliação da teologia e prática católicas. Tal
avaliação do catolicismo pela teologia evangélica não é inédita, contudo a
estratégia usada aqui será única por duas razões. Em primeiro lugar, a estrutura a
ser seguida consistirá em percorrer a teologia sistemática católica conforme
articulada no Catechism of the Catholic Church. Pelo que sei, a teologia
14

evangélica jamais se propôs a avaliar a teologia e prática católicas desse modo.


Em segundo lugar, a maior parte das avaliações evangélicas já feitas se
concentrou quase exclusivamente em comparar os pontos de acordo e de
discordância entre as duas posições de modo isolado e desconectado — uma
abordagem fragmentada que resultou na descrição e na crítica das crenças
católicas da transubstanciação, do purgatório, da imaculada concepção de Maria
e da sucessão apostólica como coisas à parte e sem ligação umas com as outras.
Embora tal estratégia se justifique e seja de fato necessária, é incompleta porque
não compreende a natureza sistêmica da fé católica. Por conseguinte, a avaliação
que faremos será diferente, no sentido de que tratará a teologia católica como um
sistema coerente e abrangente e a avaliará tomando por base esse ponto de
partida. Portanto, o restante desse capítulo se ocupará da teologia católica como
um sistema coerente e abrangente. Em seguida, ele se deterá nos dois axiomas
sobre os quais o sistema doutrinário católico está erigido (a interdependência
natureza-graça e a interconexão Cristo-Igreja), avaliando, cada um por vez, esses
princípios fundamentais. O restante do livro percorrerá o Catechism propondo
concordâncias e expressando diferenças a cada tópico, procurando ao mesmo
tempo associar as discordâncias evangélicas à crítica evangélica do sistema
doutrinário católico baseado em seus dois axiomas.
Essa estratégia sistêmica, necessária porque a teologia católica é um sistema
coerente e abrangente, deve muito à convicção original e perspicaz de Leonard
De Chirico. Sua dissertação de doutorado modificada intitulada Evangelical
theological perspectives on post-Vatican II roman Catholicism [Perspectivas
teológicas evangélicas sobre o catolicismo romano pós-Vaticano II] avalia vários
teólogos evangélicos e diálogos evangélico-católicos e ressalta que suas
avaliações do catolicismo padecem de um enfoque exclusivamente ou quase
exclusivamente atomístico do catolicismo — uma avaliação de doutrinas e
15

práticas individuais entendidas como questões distintas. Para ele, as vantagens


de uma estratégia sistêmica consistem no seguinte: (1) tal sistema permite uma
avaliação evangélica da teologia católica que vê essa última como “um padrão
estável, embora dinâmico, que permite ao sistema agrupar diferentes elementos e
outras orientações teológicas [como a teologia evangélica] consideradas
incompatíveis”; e (2) ele prepara a avaliação evangélica para que “trate [a
16

teologia católica] como catolicismo romano, isto é, uma religião que desfruta, ou
diz desfrutar, de amplitude e visão católicas, além de especificidade institucional
e histórica”.17

Analisada do ponto de vista sistêmico, o pressuposto é que a teologia católica


consiste em uma “unidade complexa que tem efetivamente um núcleo central, e
a vasta fenomenologia [manifestações concretas] por ela expressa pode ser
genuinamente compreendida sob a perspectiva desse elemento central”. De 18

Chirico demonstra de forma convincente que o catolicismo como sistema é


unificado, mas não uniforme; na verdade, como ele mesmo salienta, dentro da
unidade sistêmica da teologia católica prospera um grau fantástico de
diversidade. Por causa de sua unidade e diversidade, o catolicismo é um sistema
dinâmico capaz de assimilar novas ideias, de se tornar mais complexo, preservar
a tensão entre elementos díspares e de se desenvolver de forma significativa sem
alterar sua identidade unificada básica. Além disso, o catolicismo tem uma
natureza global e abrangente: ele é impulsionado por seu projeto de ampliação
de sua catolicidade ou universalidade, por isso busca interagir, influenciar e
acolher a realidade toda. Juntando esses dois elementos de unidade e de
universalidade, De Chirico explica que “para o catolicismo romano, a
catolicidade é um termo impregnado de nuanças associado simultaneamente à
unidade e à totalidade das quais a igreja já desfruta e é chamada a ampliar. A
premissa básica é que a realidade toda, que já é essencialmente uma, embora tal
unidade protológica [imbuída de propósito pela divindade] esteja arruinada pelo
pecado, seja levada à unidade católica”. Nesse momento, a firme convicção de
19

que “a unidade católica pode ser alcançada, deve ser alcançada e, no fim das
contas, será alcançada por obra do sistema” assume o controle e se torna o
objetivo do sistema, com a chave dessa unidade — a Igreja Católica — em seu
centro.20

Outro elemento essencial desse sistema católico é sua epistemologia, ou


método do conhecimento. A teologia católica se caracteriza pela integração de
elementos divergentes: sua estratégia é do tipo “e-e” [includente], a não “ou-ou”
[excludente]. Esse princípio de integração torna difícil para a teologia
21

evangélica compreender o sistema católico, porque o evangelicalismo está


edificado sobre os cinco solas (“somente”) do protestantismo: sola Scriptura (a
Escritura somente), e não a Escritura e a Tradição, como no catolicismo; sola
gratia (a graça somente), e não a graça e a cooperação humana, como na
teologia católica; solus Christus (Cristo somente), e não Cristo e a igreja, como
no sistema católico; sola fide (a fé somente), e não a fé e as boas obras/amor
para merecimento da vida eterna; e soli Deo gloria (glória somente a Deus), e
não glória a Deus e honra especial, por exemplo, a Maria. Ao mesmo tempo,
essa abertura à integração não é uma estratégia indisciplinada ou anárquica,
porque o sistema católico filtra e controla o que pode entrar no sistema e
assimila elementos novos e díspares aos seus fundamentos tradicionais.
Contudo, qualquer avaliação evangélica adequada do catolicismo como sistema
coerente e abrangente deve estar ciente desse elemento epistemológico
integrador e dar a ele especial atenção.
Além disso, a catolicidade do sistema católico “nunca é um conceito abstrato
ou imaginário; antes, está sempre entremeado por estruturas visíveis, materiais,
imanentes, organizadas, sociais, jurídicas e históricas”. Na verdade, tal
22

catolicidade concreta se manifesta na Igreja Católica e somente nela, que é uma


realidade visível, material e concreta. O fundamento dessa ideia é o “princípio
encarnacional” — “a graça deve estar corporificada de forma tangível” —, que é
o padrão normativo para a maneira de Deus manifestar sua graça neste mundo. 23

O protótipo desse princípio é a encarnação do Filho de Deus como o Deus-


homem Jesus Cristo: Deus manifesta sua graça de uma forma tangível,
encarnada, nesse caso por meio do Filho, que assume a natureza humana.
Contudo, esse princípio também entra em ação no conceito da teologia da Igreja
Católica como a encarnação — a manifestação tangível, visível, social e
concreta — da graça de Deus.
Esses últimos dois exemplos — o princípio da integração da teologia católica,
unindo a Escritura mais a Tradição, graça mais esforço humano, fé mais boas
obras etc.; e o princípio da encarnação da teologia católica, que se manifesta na
perspectiva da Igreja Católica como meio de graça — enfatizam esta ideia: a
teologia católica é um sistema coerente e abrangente. Por conseguinte, para
24

fazer uma avaliação apropriada dessa teologia, a teologia evangélica deve se


aproximar dela como um sistema e submeter à avaliação não apenas seus tópicos
específicos e cruciais — transubstanciação, purgatório, Maria — como itens
autônomos, separados, mas também todo o sistema. Conforme argumenta De
Chirico, “é preciso, em vez [de um enfoque exclusivamente atomístico de
avaliação da teologia católica], apropriar-se de uma visão efetivamente sistêmica
para a análise de cada um dos temas, sejam eles fundacionais ou periféricos, mas
sempre como expressão do sistema todo [...]. Cada uma das partes do sistema
está, de algum modo, diretamente conectada à teologia do sistema, ou dele
depende operacionalmente, à medida que a tentativa de compreender o centro
abre caminho para um entendimento do todo”. Assim, o objetivo dessa
25

avaliação evangélica é transpor essa estrutura sistêmica para a teologia católica


e, ao lidar com “a estrutura, ao mesmo tempo que se procura fazer justiça aos
detalhes”, oferecer uma apreciação sólida do catolicismo. 26

Contudo, podemos e devemos falar mais sobre os elementos principais da


teologia católica como sistema coerente e abrangente. De Chirico identifica dois
axiomas no sistema católico: o continuum natureza-graça (o que chamarei de
interdependência natureza-graça) e a Igreja Católica como encarnação
ininterrupta do Cristo que subiu ao céu (o que chamarei de interconexão Cristo-
Igreja). Cada um desses dois pilares será discutido e analisado individualmente.
27

A interdependência natureza-graça
De Chirico define dois conceitos principais da natureza e graça: “No vocabulário
cristão, a natureza é considerada o equivalente ao mundo criado em sua
totalidade, que é tanto resultado da atividade criadora de Deus quanto recipiente
de seus propósitos salvíficos. No que diz respeito a esse último, as interações de
Deus com o mundo (i. e., com a natureza) foram entendidas teologicamente sob
o aspecto da ‘graça’. Graça é o que Deus faz em relação ao mundo, tanto no que
se refere à providência quanto à redenção”. Em outras palavras, a natureza,
28

como produto da atividade criadora de Deus, corresponde à totalidade da ordem


criada e inclui a realidade inorgânica (os mares, as montanhas), o mundo das
plantas, o reino animal, anjos e demônios, seres humanos, água, petróleo, pão e
vinho etc. A graça, num sentido bem abrangente, é a atividade providencial de
Deus para que a natureza criada continue a existir direcionando-a para seu fim
divinamente designado; é também sua atividade redentora cujo propósito é
resgatar a ordem criada da queda que sofreu por causa do pecado.
Sem intenção de achatar os diversos modelos de relacionamento entre
natureza e graça, conforme elaborados por diferentes teólogos e movimentos
católicos no âmbito do sistema teológico católico, é possível estabelecer uma
29

ampla caracterização desse relacionamento: natureza e graça são


interdependentes porque existem em um continuum ou continuidade. As duas
foram divinamente projetadas para operar em mútua dependência, de tal modo
que a natureza seja um canal de graça, e a graça eleve ou aperfeiçoe a natureza. 30

Para dar um exemplo simples, a água (no reino da natureza) pode receber e se
tornar um canal de graça quando, consagrada pela Igreja Católica, é usada para o
sacramento do batismo, que confere graça aos que o recebem. De fato, George
Weigel afirma que “é por intermédio do material comum da vida — o material
dos sete sacramentos, tal como o pão, o vinho, o óleo e a água — que a graça
extraordinária de Deus entra na história, alimenta os amigos de Jesus e lhes dá
poder em seu discipulado missionário”. 31

Prosseguindo com sua descrição de natureza e graça, De Chirico explica que


“há uma ligação constitutiva e irreversível entre as duas que o pecado, quaisquer
que sejam suas consequências, não rompeu e não pode romper”. Em outros
32

termos, na queda de Adão e Eva, uma das consequências daquele trágico evento
foi o abalo dessa interdependência original natureza-graça. É importante
destacar, entretanto, que, embora desfigurada pelo pecado, a natureza maculada
ainda é capaz de receber e transmitir a graça e cooperar com ela. O sistema
teológico católico tem dois polos, natureza e graça, e situa o pecado (levado a
sério por esse sistema) na esfera da natureza, relativizando desse modo os efeitos
negativos do pecado sobre a natureza:
Natureza e graça são os dois elementos constitutivos do sistema católico, sendo
o pecado um elemento secundário sério, mas não devastador. A natureza, embora
ferida pelo pecado, conserva uma capacidade para a graça, e a graça eleva ou
aperfeiçoa a natureza. As duas continuam a operar de forma interdependente.
33

A teologia evangélica, por sua vez, tem três polos: Criação, Queda/pecado e
redenção/graça: 34

Nesse sistema, o pecado é levado mais a sério, e seu impacto corruptor sobre a
criação não é atenuado pelo fato de ser parte da natureza: “A natureza não é mais
algo simples, nem mesmo uma natureza intrinsecamente dotada de graça; ela é
sempre uma natureza drasticamente subvertida e que precisa ser restaurada pela
graça. Nessa perspectiva, a natureza teria passado por uma ruptura radical por
ocasião da Queda e, em sua perspectiva pós-Queda, que é o único contexto
historicamente real em que a criação se encontra, ela não pode ser outra coisa, a
não ser natureza decaída”. A teologia evangélica tem efetivamente três
35

elementos constituintes, sendo a Queda ou o pecado um elemento primordial do


seu sistema, e não secundário. Dado o impacto profundamente arrasador do
pecado sobre a criação, o conceito de natureza como possuidora de alguma
capacidade para a graça não faz sentido no sistema evangélico. Uma criação
assolada pelo pecado e totalmente corrompida “existe em um estado de
separação de Deus, é incapaz de restaurar a relação por seu próprio esforço e
tampouco deseja fazê-lo”. 36

Em suma: “A diferença entre os dois sistemas gira em torno do entendimento


diferente que têm da natureza e do pecado e do impacto do pecado sobre a
natureza”. Para a teologia católica, natureza e graça são interdependentes; para
37

a teologia evangélica, natureza e graça se opõem por causa do impacto


devastador do pecado sobre a natureza. 38

Em certo sentido, essas duas visões divergentes refletem, em parte, os


diferentes modelos da relação natureza-graça conforme formulada por Agostinho
e Tomás de Aquino: “Enquanto a tradição agostiniana enfatiza o conceito de
natura vitiata [natureza arruinada ou caída], ressaltando, portanto, a realidade
generalizada e corruptora do pecado e a primazia por excelência da graça, a
tradição tomista, pelo contrário, insiste nos recursos internos da capacitas dei
[capacidade para Deus] da natureza, proporcionando um relato mais positivo de
sua disposição intrínseca para as operações de elevação da graça”. Nessa
39

questão, a teologia evangélica segue a tradição agostiniana, com sua visão


pessimista da natureza em decorrência do impacto avassalador do pecado sobre
ela, ao passo que a teologia católica segue a tradição tomista, com sua
perspectiva relativamente otimista sobre a natureza e sua abertura e capacidade
para a graça.
Até este ponto, nossa preocupação foi com o elemento constitutivo da
natureza, com a discussão do pecado subordinada a esse elemento. Portanto,
temos de voltar nossa atenção agora para o segundo elemento constitutivo do
sistema teológico católico: a graça. “Uma postura totalmente positiva em relação
à natureza associada a um conceito brando de pecado leva a uma visão
correspondente de graça.” Esse conceito católico de graça “começa na natureza
40

[...] no sentido de que na natureza ele encontra uma atitude receptiva e possíveis
recursos aos quais pode recorrer em sua operação. A natureza sempre participa
da graça, ao passo que a graça sempre pressupõe a habilidade ad intra [a partir
de dentro; inerente] da natureza de ser tocada por ela e de cooperar com ela [...].
A continuidade entre natureza e graça permite o [...] mútuo envolvimento entre
as forças da natureza e as forças da graça. De acordo com o sistema católico
romano, a metodologia da graça requer sempre a participação da natureza e a
colaboração ativa desta última [natureza] na obra daquela [graça]”. 41

De acordo com a teologia evangélica, a graça nada tem a operar na natureza


porque a criação foi terrivelmente maculada pelo pecado; na verdade, “a graça
não pode senão operar ad extra [de fora; extrinsecamente] no que diz respeito à
natureza, porque a natureza está de tal modo entranhada no pecado, e a tal ponto,
que ignora completamente seu estado de depravação; por isso, somente uma
operação externa, unilateral, da graça divina, pode redimir o que está totalmente
perdido. Nada que faça parte da natureza pecadora é capaz de contribuir com a
graça”. Resumindo, o sistema teológico católico está construído sobre um
42

continuum entre natureza e graça, ao passo que a teologia evangélica insiste em


uma separação ou fosso entre natureza e graça.
Uma avaliação evangélica adequada do catolicismo tratará a teologia católica
como um sistema coerente e abrangente, sendo um de seus dois princípios
primordiais o continuum natureza-graça, que realça o impacto menos devastador
do pecado sobre a natureza, que, como consequência, ainda preserva alguma
capacidade de receber e transmitir a graça e cooperar com ela. As doutrinas e
práticas teológicas específicas decorrentes dessa compreensão do continuum
natureza-graça se expressam pela:

Epistemologia (modo de conhecimento): o catolicismo se mostra aberto a
toda verdade, não importa de onde ela venha, da Escritura e da Tradição,
por exemplo, ou do cristianismo e de elementos religiosos nobres de
religiões não cristãs. Além disso, essa epistemologia eleva a razão humana
(o reino da natureza) e faz dela elemento essencial da imagem de Deus,
enfatizando ao mesmo tempo a capacidade da razão humana, sem a graça,
de compreender a revelação geral e as provas teístas, convencendo-se desse
modo da existência de Deus.
Interpretação da Bíblia: as palavras da Escritura — ou, mais
especificamente, as coisas para as quais a Escritura aponta (o reino da
natureza) — trazem consigo significados ocultos e comunicam esses
significados mais profundos como verdades divinas (reino da graça).
Doutrina da humanidade: o sistema católico se caracteriza pelo “otimismo
moderado no que diz respeito à capacidade do homem [reino da natureza]
de ser tocado pela graça e de cooperar com esse processo de elevação”. 43

“Além disso, considerando sua receptividade ontológica para receber a


graça, o conceito que se tem do homem é de um ser intrinsecamente
religioso em que a graça ‘é experimentada como parte do próprio
homem’.” Uma manifestação dessa característica é a razão de Adão e Eva
44

(em seu estado de criação original) que exerce uma influência controladora
sobre seus sentimentos/paixões e desejos físicos.
Doutrina do pecado: a teologia católica acredita que, com a introdução do
pecado, a estrutura original da natureza humana foi corrompida, e os
aspectos da natureza de Adão e Eva usurparam o papel da razão. Contudo,
o sistema católico não acredita que o impacto do pecado seja tão devastador
que a natureza humana tenha perdido sua capacidade para a graça.
Doutrina da salvação: para a teologia católica, o processo pelo qual Deus
resgata o ser humano decaído é sinergético, isto é, há um esforço de
cooperação entre a graça divina e o empenho humano (reino da natureza),
auxiliado pela graça, num trabalho conjunto que faz por merecer a vida
eterna. Além disso, para a teologia romana a operação da salvação consiste
na infusão da graça divina sobre as pessoas, por meio da qual sua natureza é
transformada. Esse ponto está em sintonia com a compreensão católica do
objetivo da salvação como deificação, ou o processo pelo qual a natureza
humana, pela graça, se torna cada vez mais semelhante a Deus. Se esse
processo for interrompido pela prática de pecado mortal, poderá ser
reiniciado mediante o sacramento da penitência, por meio do qual a graça é
infundida novamente para o aperfeiçoamento da natureza humana. Por fim,
se esse processo não for concluído nesta vida terrena, isto é, se a graça não
tiver elevado plenamente a natureza humana à perfeição antes da morte, a
existência depois da morte no purgatório promete concluir o procedimento
de purificação.
Teologia sacramental: o catolicismo afirma que os elementos criados na
natureza — por exemplo, a água, o óleo, o pão e o vinho — têm o poder de
transmitir a graça divina pela ministração do batismo, da confirmação e da
eucaristia. Além disso, esses elementos (reino da natureza), quando
consagrados (reino da graça), são eficazes para a transmissão da graça ex
opere operato, isto é, simplesmente por serem sacramentos. A eucaristia
também confere incorruptibilidade ao corpo e, desse modo, é prenúncio da
ressurreição. Por fim, para a teologia católica, o pão e o vinho (reino da
natureza) são oferendas feitas a Deus por meio da igreja (reino da graça).
Eclesiologia: para o sistema católico, a graça deve ser expressa
concretamente na natureza, e a expressão mais elevada da graça (depois de
Jesus Cristo) é a Igreja Católica. Observa-se de maneira especial esse
aspecto na associação que a igreja faz entre o perdão de pecados e seu
sacerdócio. Na verdade, pelo sacramento da ordem, o homem (reino da
natureza) é consagrado para que possa administrar os sacramentos (reino da
graça).
Hierarquia: a Igreja Católica se caracteriza pela hierarquia, especificamente
entre os leigos (na extremidade inferior) e o clero (na extremidade
superior). Há também uma estrutura hierárquica no clero entre diáconos (na
extremidade inferior), padres (no meio) e bispos (na extremidade superior).
Há também uma hierarquia geralmente explícita entre os fiéis (na
extremidade inferior), os religiosos (no meio) e os santos (na extremidade
superior).
Teologia moral: a teologia católica acredita que as quatro virtudes cardeais
humanas (reino da natureza) — prudência, temperança, fortaleza, justiça —
são compreendidas, apreciadas e praticadas pelos seres humanos
independentemente da graça, que opera não para criar, mas para purificar e
elevar essas virtudes. Ela também enfatiza que a lei natural — uma lei
derivada do reino da natureza humana e dada a conhecer aos seres humanos
pela razão e que os capacita a distinguir o certo do errado — ainda opera,
apesar do pecado da humanidade, de modo mais ou menos intacto para
orientar as escolhas do ser humano.
Doutrina de Maria: “A mariologia é expressão [...] das características
quintessenciais do tema natureza-graça católico romano”. Maria, como ser
45

humano pleno, encontra-se no reino da natureza; porém, dada sua


imaculada concepção, não tem a natureza humana decaída e, por meio da
sua cooperação com a graça, permaneceu pura toda a sua vida. Por
conseguinte, na natureza de Maria, a graça encontrou abertura total e
capacidade plena para cooperação, culminando com a encarnação do Filho
de Deus e com os sofrimentos meritórios dela ao pé da cruz.

Avaliação evangélica
Todas as doutrinas e práticas supracitadas serão avaliadas no momento oportuno
no restante deste livro, contudo avaliaremos agora o primeiro pilar sobre o qual
se acham erigidas: a interdependência natureza-graça.
A teologia evangélica discorda veementemente da teologia católica no que diz
respeito à interdependência natureza-graça. Uma objeção diz respeito ao
conceito do sistema católico de natureza que, na visão evangélica, deve mais à
tradição filosófica — ao neoplatonismo no âmago da teologia de Agostinho; à
filosofia aristotélica, à qual a teologia de Tomás de Aquino se achava associada
— do que à Escritura. Como a teologia católica define “natureza”
filosoficamente, em vez de extrair esse conceito da Escritura, para a teologia
evangélica tal ideia de natureza se acha fundamentalmente equivocada. “O
enfoque sistêmico evangélico sublinha o fato de que a edificação de todo um
sistema sobre a natureza definida dessa maneira constitui um defeito estrutural
do sistema católico romano, que fica evidente em todas as expressões do sistema
e caracteriza seu aspecto geral.” 46

Na verdade, raramente a teologia evangélica trata do tema da “natureza”:


“Aos poucos, ela deixou de usar a linguagem da natureza e da teologia que ela
subentendia, preferindo, em vez disso, elaborar seu entendimento do mundo
criado sob a ótica da criação”, empregando uma terminologia do tipo “ordem
criada/criação” e “ordenança da criação”. Essa relutância em discutir o tópico e
47

mudar a terminologia já é uma segunda objeção ao entendimento católico da


relação natureza-graça. Na verdade, Eugene TeSelle crê que esse relacionamento
“talvez seja o único tópico teológico em que o pensamento católico e protestante
tenha seguido por caminhos diferentes, como embarcações que se deslocam à
noite, sem nenhuma noção dos problemas comuns e de referências de
julgamento”. 48

Ao avaliar o sistema católico de interdependência natureza-graça de acordo


com a Escritura, a teologia evangélica oferece uma terceira objeção: a
continuidade entre natureza e graça não tem apoio na Bíblia. Por exemplo, o
antigo estado da criação original, arquitetada e executada para que fosse um
lugar hospitaleiro em que os seres humanos desfrutariam de uma relação face a
face com Deus e prosperariam como vice-regentes dele, foi destruído quando o
primeiro casal se rebelou. Essa queda teve consequências terríveis para Adão e
Eva, já que se tornaram culpados diante de Deus, escravizados ao pecado, sua
relação se desintegrou e a morte se tornou seu destino final. Contudo, a narrativa
bíblica também ressalta as vastas e terríveis consequências da desobediência de
Adão e Eva no tocante ao seu relacionamento com a criação, conforme expressa
na maldição divina:
... maldita é a terra por tua causa;
com sofrimento comerás dela todos os dias da tua vida.
Ela te produzirá espinhos e ervas daninhas;
e terás de comer das plantas do campo.
Do suor do teu rosto
comerás o teu pão,
até que tornes à terra,
pois dela foste tirado;
porque és pó,
e ao pó tornarás (Gn 3.17-19).

Sujeitados à futilidade por Deus como castigo pelo pecado humano (Rm 8.20-
22), o reino da natureza se torna um lugar amaldiçoado. O único lugar em que
Adão e Eva poderiam ter encontrado refúgio da ruína — o jardim do Éden —
fecha-lhes a porta e lhes veda a entrada: “E havendo [Deus] expulsado o homem,
pôs a leste do jardim do Éden os querubins e uma espada flamejante que se
revolvia por todos os lados, para guardar o caminho da árvore da vida” (Gn
3.24). De acordo com nossa terminologia, se o jardim do Éden representa a
interdependência natureza-graça, os seres humanos pós-Queda se acham
efetivamente separados dele, vivendo em vez disso no exílio, no deserto, numa
terra desolada e, por eles mesmos, arruinada.
Além disso, a Escritura continua a enfatizar a descontinuidade, e não a
continuidade, entre o reino da natureza e o reino da graça na descrição que João
faz da recepção dada pela criação ao seu Criador, a Palavra de Deus, que é vida e
luz do mundo: “Pois a verdadeira luz, que ilumina a todo homem, estava
chegando ao mundo. Ele estava no mundo, e este foi feito por meio dele, mas o
mundo não o reconheceu. Ele veio para o que era seu, mas os seus não o
receberam. Mas a todos que o receberam, aos que creem no seu nome, deu-lhes a
prerrogativa de se tornarem filhos de Deus; os quais não nasceram do sangue,
nem do desejo da carne, nem da vontade da carne, mas de Deus” (Jo 1.9-13).
Jesus Cristo, a Palavra de Deus que se fez carne, aquele por meio de quem
vieram “graça e verdade” (v. 17), foi rejeitado pelo mundo por ele criado, mais
especificamente por seu próprio povo, os judeus. Mais uma vez, para usar nossa
terminologia, o reino da natureza não conta com nenhuma capacidade inerente
para Deus; mais do que isso, o reino da natureza agraciada, o povo privilegiado
de Deus, não possui nenhuma capacidade intrínseca para Deus. A única
esperança de socorro desse pesadelo sombrio e devastador é o novo nascimento,
nascer de Deus, o que não tem conexão ou continuidade alguma com o
relacionamento familiar, com a herança (inclusive judaica) ou com a volição
humana. Somente por um ato externo de Deus — o Verbo-Criador que veio até
sua criação hostil e ao povo que não o recebeu — e mediante uma obra radical
de recriação, podem os seres humanos pecaminosos desfrutar da graça de Deus.
O exemplo por excelência dessa obra radical de salvação não é a preparação
da natureza para a graça que é, em seguida, elevada até ela; não, o exemplo é
Abraão (Rm 4.17-22). Esse descrente de Ur, chamado pelo único Deus
verdadeiro do paganismo idólatra, creu na promessa divina quando ainda não era
circunciso e antes que as obras da lei fossem possíveis. Por conseguinte, a graça
resgatou Abraão tirando-o da natureza; ela não o refez a partir do interior da
natureza. Além disso, a promessa graciosa de um filho por meio do qual Abraão
49

se tornaria “pai de muitas nações” (v. 17) não tem contrapartida em sua natureza
e tampouco na natureza de sua mulher — “e, sem enfraquecer na fé, considerou
que seu corpo já não tinha vitalidade (pois já contava cem anos), e o ventre de
Sara já não tinha vida” (v. 19). Pelo contrário, a graça operou independentemente
da natureza e Abraão creu em Deus “que dá vida aos mortos e chama à
existência as coisas que não existem” (v. 17). Para usar nossa terminologia, a
natureza é morta e inexistente em relação à graça; mas a graça de Deus levanta
os mortos e cria uma nova criação.
Essa ênfase na recriação pela graça — e não na graça que encontra uma
capacidade na natureza, sua contrapartida, renovando-a — tem respaldo nos
capítulos finais da Escritura, na visão do novo céu e da nova terra por vir (Ap 21
e 22). Não há dúvida de que a consumação da presente era requer a renovação do
Universo inteiro (Sl 102.25-27; Rm 8.21; 1Co 7.31); entretanto, em vez de
compreender esse projeto de renovação no sentido de uma continuidade — em
que a graça retrabalha a natureza —, deve-se entendê-lo, conforme outras
passagens bíblicas, como uma renovação pela destruição da realidade atual: “Os
céus e a terra de agora têm sido guardados para o fogo, reservados para o dia do
juízo e da destruição dos homens ímpios. [...] Contudo, o dia do Senhor virá
como ladrão, no qual os céus passarão com grande estrondo, e os elementos,
queimando, se dissolverão, e a terra e as obras que nela há serão descobertas”
(2Pe 3.7,10). A substituição dessa realidade antiga radicalmente queimada é “um
novo céu e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra já se foram, e o
mar já não existe” (Ap 21.1). Além disso, o novo lugar da humanidade redimida
não será um espaço renovado feito da natureza terrena, mas “a nova Jerusalém,
que [desce] do céu” (v. 2,10).
Em suma, por motivos teológicos e bíblicos, a teologia evangélica discorda do
axioma do sistema teológico católico do continuum natureza-graça. Como esse
princípio é fundacional para o sistema todo, sua manifestação arruinará doutrinas
e práticas específicas, conforme ficará demonstrado em boa parte deste livro,
bem como na crítica aqui apresentada. Esse axioma, porém, é apenas o primeiro
de dois pilares do sistema católico, e é para esse segundo elemento que agora
voltamos nossa atenção.
A interconexão Cristo-Igreja
Dando continuidade à apresentação do sistema católico composto, conforme De
Chirico, por dois pilares, passamos agora ao segundo: a compreensão que tem a
Igreja Católica de si mesma como continuação da encarnação de Jesus Cristo. O
axioma está conectado ao primeiro da seguinte forma: “Entre as ordens da
natureza e da graça, há necessidade de um tema mediador que represente a
natureza para a graça e a graça para a natureza, de modo que a natureza seja cada
vez mais e mais completamente agraciada e a graça acabe por atingir seu
objetivo final de elevação da natureza. Essa mediação é a raison d’être [razão de
ser] da Igreja Católica Romana e tipifica o papel principal da igreja dentro do
sistema católico romano mais amplo”. A função de mediação da Igreja Católica
50

é possível pela interdependência natureza-graça: a natureza, sendo aberta à


graça, pode recebê-la pela mediação da igreja, e a graça precisa da natureza dada
a necessidade que a graça tem de se encarnar, ser tangível e concreta — e isto ela
o faz por intermédio da Igreja Católica. Essa mediação depende também do
princípio ou da lei da encarnação “como padrão mediante o qual a graça se
encontra com a natureza e a natureza acolhe a graça”. A primeira e mais
51

importante manifestação desse princípio foi quando o Filho de Deus se fez


carne: como Deus-homem encarnado, Jesus Cristo foi o mediador da graça para
a natureza. Contudo, esse episódio específico da encarnação não é a única
manifestação desse princípio encarnacional. “Tal padrão básico ultrapassa a
particularidade do evento histórico da missão de Jesus Cristo e afeta toda a
história da salvação [...] caracterizando o serviço ininterrupto da igreja. A Igreja
Católica Romana está em continuidade com a encarnação e é a nova
concretização da lei da encarnação, sendo ela o agente mediador pós-ascensão
que materializa as aspirações da natureza e a quem é confiada a missão da graça
para a natureza.” Como Deus-homem encarnado, Jesus Cristo mediou a graça
52

para a natureza — a primeira e mais importante manifestação do princípio da


encarnação — de tal modo que a Igreja Católica, encarnada e concreta, é
mediadora da graça para a natureza em uma manifestação análoga à do princípio
encarnacional.
Especificamente, a teologia católica “cria um forte laço entre a encarnação de
Cristo e a Igreja como prolongamento da encarnação por meio do qual esta
última [a Igreja Católica] se comporta como altera persona Christi [outra (ou
uma segunda) pessoa de Cristo], colocando-se desse modo entre Deus e o
mundo”. Além disso, essa instituição mediadora se caracteriza pela hierarquia;
53

assim como há um reino de graça superior e um reino inferior da natureza, assim


também dentro da Igreja Católica há um reino mais elevado do clero, que tem
autoridade e responsabilidade específicas para mediar a graça; e o reino inferior
dos leigos, abertos à graça e receptivos a ela. No topo dessa igreja estruturada
hierarquicamente e mediadora da graça encontra-se o papa.
Essa visão da Igreja Católica como agente mediador entre a graça de Deus e o
mundo da natureza conta com o respaldo de várias considerações importantes: a
analogia cristológica, o conceito da igreja como corpo místico do “Cristo total” e
a ideia da igreja como sacramento. A analogia cristológica já foi tratada quando
lidamos com o princípio encarnacional: tal como a encarnação do Filho de Deus
e sua mediação divina da graça para a natureza, assim também a Igreja Católica,
como encarnação contínua do Filho de Deus, faz a intermediação da graça para a
natureza. Especificamente, “a igreja é considerada a mesma pessoa que o Filho
de Deus, que continua e renova o evento ímpar da encarnação, sendo ela o locus
onde a continuação da encarnação ocorre e prossegue”. Com base no raciocínio
54

da doutrina tradicional de que Jesus Cristo é plenamente Deus e plenamente


homem, o resultado é que “de modo análogo, a igreja é constituída de elementos
divinos e humanos combinados na instituição teândrica [Deus-homem] da igreja.
A igreja é considerada, basicamente, divina e humana em sua essência, estando
os dois aspectos entrelaçados e sendo eles inseparáveis, de tal modo que o
aspecto humano carrega o divino e o aspecto divino se encarna em formas
humanas”. 55

À primeira vista, essa afirmação parece repleta de dificuldades e perigos, e a


teologia católica se esforça ao máximo para esclarecer a analogia entre Cristo e
sua igreja, ressaltando tanto as continuidades e as descontinuidades entre os dois:
“Embora o Filho de Deus seja de natureza divina de um modo próprio,
ontológico e substancial, a igreja deriva seus elementos divinos participando da
vida de Cristo, o que o torna presente na igreja e através dela”. Por conseguinte,
56

Cristo não é totalmente identificado com a igreja; antes, a igreja é um


prolongamento da encarnação do Filho de Deus, mediando a graça de Deus para
o mundo como o Cristo encarnado mediou a graça divina para o mundo.
Um segundo respaldo para esse papel mediador da Igreja Católica é o conceito
da igreja como corpo místico de Cristo. Evidentemente, essa compreensão está
enraizada na metáfora paulina da igreja como corpo, do qual Cristo é a cabeça. O
apóstolo explica que essa realidade foi obra de Deus Pai para exaltar seu Filho:
“Também sujeitou todas as coisas debaixo dos seus pés, para que seja cabeça
sobre todas as coisas, e o deu à igreja, que é o seu corpo, a plenitude daquele que
preenche tudo em todas as coisas” (Ef 1.22,23; cf. 5.23; Cl 1.18,24). Além disso,
Paulo emprega a natureza sacrifical, o amor, o respeito e a intimidade da relação
entre marido e mulher para iluminar a natureza da unidade entre Cristo e a
igreja, concluindo: “Esse mistério é grande, mas eu me refiro a Cristo e à igreja”
(Ef 5.32). Portanto, a igreja é o corpo místico de Cristo. “O ponto central da
metáfora se refere ao elo indissolúvel e orgânico entre a cabeça (i. e., Cristo) e os
membros (i. e., a igreja) na unidade de um único corpo, de modo que o que se
pode atribuir à cabeça pode também ser atribuído, em alguma medida, a seus
membros.” A implicação de que a igreja é esse corpo místico de Cristo é
57

fundamental: “A igreja está, portanto, organicamente relacionada a Cristo, está


permeada por sua habitação e é também subordinada a ele no sentido de que
tanto a igreja quanto Cristo têm localização diferente, mas são partes
inseparáveis do mesmo corpo. Embora os membros dependam da cabeça porque
recebem dela direção e servem à sua causa, eles se acham também tão
inextricavelmente unidos que formam um corpo único, de tal modo que a cabeça
não pode operar sem seus membros e não pode ser separada deles”. 58

O respaldo definitivo para esse conceito de corpo místico vem da proposta de


Agostinho do totus Christus (o Cristo total); conforme ele explicou, “o Cristo
total consiste na Cabeça e no corpo. A Cabeça é aquele que é o salvador do
corpo, o que já subiu ao céu; mas o corpo é a igreja, que padece na terra”. Em 59

outras palavras, o Cristo todo se refere a Cristo como cabeça, na totalidade de


sua natureza divina e humana, juntamente com seu corpo, a igreja. Para
Agostinho, as passagens paulinas supracitadas não podem ser entendidas
meramente como metáforas ou símbolos; pelo contrário, quando Paulo diz que a
igreja é “o corpo de Cristo”, ele está se referindo à igreja sob a perspectiva de
sua realidade concreta.
A razão para essa interpretação se deve à unidade profunda entre os dois por
meio da encarnação; embora tenha subido ao céu, Cristo continua intimamente
unido à sua igreja. A base dessa unidade é encontrada em Mateus 25.31-46 e
Atos 9.4,5. Sobre a última passagem, Agostinho comentou:
Não fosse pela união do corpo com sua Cabeça por meio do vínculo da caridade, um vínculo tão
próximo que Cabeça e corpo falam como se fossem um, [Cristo] não poderia ter censurado um certo
perseguidor do céu com a indagação “Saulo, Saulo, por que me persegues?” (At 9.4). Já entronizado
no céu, Cristo não fora tocado por nenhum agressor humano; como podia então Saulo, ao perseguir
os cristãos na terra, feri-lo? Ele não diz: “Por que persegues meus santos?” ou “meu servo”, e sim
“Por que me persegues?”. Isso é o mesmo que perguntar “Por que atacas meus membros?”. A Cabeça
bradava em favor dos membros e os transfigurava em si mesma.60

O grito comovido de Cristo diante do sofrimento de sua igreja chama a atenção


para a íntima unidade entre os dois. Diante disso, Agostinho formulou a seguinte
ideia: “Cristo não está simplesmente na cabeça e no corpo; é o Cristo total que
está na cabeça e no corpo”. Analisando esse conceito sob uma perspectiva
61

realista, Agostinho o projetou em sua doutrina de Cristo e propôs três maneiras


de compreender Cristo — em sua natureza divina, em sua natureza humana e em
sua natureza eclesiástica —, e a última significa “de um modo ou de outro o
Cristo total na plenitude da igreja, que é cabeça e corpo, de acordo com a
plenitude de um certo homem perfeito (Ef 4.13), o homem no qual cada um de
nós somos membros”. O totus Christus de Agostinho está no âmago do
62

conceito do corpo místico de Cristo que faz a mediação entre a presença divina e
a graça.
Como respaldo final da atividade mediadora da Igreja Católica, a teologia
católica se volta para o conceito de igreja como sacramento, uma categoria que é
“da máxima importância quando se lida com a relação profundamente
misteriosa, ainda que de vital importância, entre Cristo e a igreja” como
encarnação contínua de Cristo. De acordo com o Concílio Vaticano II, “a igreja,
63

em Cristo, é da natureza do sacramento”, no sentido de que é “sinal e


instrumento [...] de comunhão com Deus e de unidade entre os homens”. É 64

importante frisar que a igreja como sacramento vê a si mesma como


representante da união com Deus e da unidade da raça humana, trabalhando com
o objetivo de tornar concreta a realidade que simboliza. “Em outras palavras, há
uma relação de entrelaçamento entre a sua natureza de sinal e seu papel de
instrumento, de tal modo que, sendo o que ela é, a igreja desempenha
eficazmente seu papel e, ao fazer o que faz, põe em prática sua natureza de
forma adequada.” 65

Em suma, o segundo pilar do sistema teológico católico, além da


interdependência natureza-graça, é a compreensão que a igreja tem de si mesma
de ser o prolongamento da encarnação de Jesus Cristo — a interconexão Cristo-
Igreja. Como tal, a igreja se comporta como mediadora entre a natureza e a
graça. Além disso, como o continuum natureza-graça é caracterizado por uma
estrutura hierárquica, assim também a Igreja Católica, como agência mediadora,
caracteriza-se por uma estrutura hierárquica. São várias as linhas de justificação
propostas para esse entendimento que a igreja tem de si mesma. Uma delas é a
analogia cristológica: assim como o Filho de Deus se encarnou e fez a mediação
entre graça e natureza, assim também a Igreja Católica, como prolongamento da
encarnação do Filho de Deus, faz a mediação entre graça e natureza. Uma
segunda garantia é o conceito de igreja como corpo místico de Cristo. Quando
combinado com a proposta de Agostinho do totus Christus, isso significa que o
Cristo total, na totalidade de sua natureza divina e humana, juntamente com seu
corpo, a igreja, está hoje presente sob a forma da Igreja Católica e na Igreja
Católica. Um terceiro respaldo é a ideia da Igreja como sacramento, sinal e
instrumento da união com Deus e da unidade da raça humana.
Uma avaliação evangélica adequada do catolicismo tratará a teologia católica
como um sistema coerente e abrangente, sendo um de seus dois princípios
primordiais o entendimento que tem a Igreja Católica de si mesma como
prolongamento da encarnação de Jesus Cristo que subiu ao céu. Como tal, a
igreja se comporta como mediadora entre o reino da natureza e o reino da graça
(portanto, os dois axiomas se acham intimamente relacionados). As seguintes
doutrinas e práticas teológicas específicas em que se pode ver o efeito disso são:

Escritura: a Igreja Católica diz ser ela que determina o cânon da Escritura.
Fé: a Igreja Católica é a primeira a crer e, por isso, confere fé ao ser
humano.
Cristologia: a doutrina católica certamente afirma a visão tradicional que,
depois de quarenta dias da ressurreição, o Deus-homem Jesus Cristo subiu
ao céu. Contudo, ela enfatiza que há uma forte continuidade entre o Filho
de Deus encarnado que subiu ao céu e agora está sentado à mão direita de
Deus Pai no céu e a extensão desse Filho encarnado na vida da Igreja
Católica. De fato, a igreja assevera que o Cristo total, na totalidade de sua
natureza divina e humana, está presente em seu corpo, a igreja e, portanto,
se faz presente aqui na terra.
Eclesiologia: o sistema católico sempre associa Cristo e a igreja; o elo entre
os dois é tão fundamental e inquebrantável que pensar em Cristo sem a
igreja é impossível. Além disso, como o Cristo encarnado mediou a graça
para a natureza, a igreja como encarnação contínua do Cristo que subiu ao
céu faz a mediação da graça para a natureza e, portanto, é necessária à
salvação. Além disso, ela se identifica como igreja universal que professa
uma fé comum, participa da adoração a Deus com uma liturgia comum, é
alimentada pelos mesmos sacramentos e é ensinada, governada e
santificada por uma hierarquia comum por meio da sucessão apostólica.
A única igreja verdadeira: como a Igreja Católica é o prolongamento da
encarnação de Jesus Cristo, seu corpo místico, e sacramento de união com
Deus e com toda a raça humana, ela se considera a única igreja verdadeira.
Isso significa que os ajuntamentos evangélicos não passam de comunidades
eclesiais, isto é, não são igrejas verdadeiras. Além disso, para o sistema
católico, a igreja universal se identifica com a Igreja Católica visível na
terra. A igreja é ao mesmo tempo mãe e educadora.
Pneumatologia (doutrina do Espírito Santo): a teologia católica ressalta
claramente o papel importante do Espírito Santo no mundo e na igreja, mas
não explica como o Cristo que subiu ao céu, e que está presente
completamente aqui e agora, se relaciona com o Espírito, que é outro
Ajudador/Consolador enviado para ocupar o lugar do Cristo ausente (i. e.,
que ascendeu ao céu).
Teologia sacramental: para o catolicismo, quando os sacramentos são
ministrados na igreja, é o próprio Cristo quem batiza, é ele mesmo quem
celebra a eucaristia, é o próprio Cristo quem ordena etc. Além disso, esses
sacramentos, como mediadores da graça divina, são necessários à salvação.
Sacerdócio: para a teologia católica, o bispo/padre, em virtude de sua
consagração recebida por meio do sacramento da ordem, age na pessoa de
Cristo Cabeça (in persona Christi Capitis) quando ministra na igreja.
Portanto, é Cristo “quem, por meio da igreja, batiza, ensina, governa, ata,
desata, oferece, sacrifica”. 66

Ofícios de Cristo: o sistema teológico católico enfatiza que Cristo delega o


exercício desse triplo ofício — real, profético e sacerdotal — à igreja.
Como Cristo é rei, a igreja exerce seu governo por meio de líderes
revestidos de autoridade. Como Cristo é profeta, a igreja exerce seu
ministério de ensino mediante o Magisterium, isto é, seu ofício de ensino.
Como Cristo é sacerdote, a igreja exerce seu ministério sacerdotal por
intermédio de seu próprio sacerdócio.
Hierarquia: a Igreja Católica como instituição mediadora se caracteriza por
sua hierarquia, conforme se pode ver pela esfera superior do seu clero — na
qual existe também uma ordem hierárquica de pessoas que ocupam os
ofícios mais elevados como bispos (e seus auxiliares) e padres; e também os
mais baixos, diáconos — e a esfera inferior constituída pelos leigos. No
topo dessa igreja estruturada hierarquicamente, encontramos o papa, que é o
vigário — o representante concreto, tangível e visível de Cristo.
Doutrina de Maria: em relação à visão que a Igreja Católica tem de seu
papel geral na salvação, ela eleva Maria a um papel mediador especial na
distribuição da graça chamando-a de Medianeira juntamente com seu Filho,
o Mediador.
A comunhão dos santos e as indulgências: o catolicismo pratica a troca de
bens espirituais (e. g., orações, sofrimentos e méritos) em virtude da
comunhão de todos os fiéis no céu, na terra e no purgatório. Essa troca
significa, especificamente, que as indulgências podem ser obtidas não
apenas para o indivíduo em si, mas também para aqueles cuja alma está no
purgatório.
Ecumenismo: de acordo com a teologia católica, a igreja é um sacramento e,
nesse sentido especial, ela é instrumento de unidade de toda a raça humana
— disso resulta que o ecumenismo é um projeto muito importante para a
igreja e sua missão no mundo.
Transubstanciação: embora apresentado e defendido de maneira diferente,
o entendimento que o catolicismo tem do sacramento da eucaristia (i. e.,
que durante a missa o pão é transubstanciado, ou transformado, no corpo de
Cristo, e o vinho é transformado no sangue de Cristo) encontra guarida no
sistema teológico católico, fundamentado na compreensão que a igreja tem
de si mesma como prolongamento da encarnação de Jesus Cristo elevado ao
céu. Por motivo semelhante, a igreja incentiva os fiéis a participarem da
adoração contínua a Cristo, presente nas hóstias não consumidas guardadas
no sacrário. 67

Avaliação evangélica
Cada uma das doutrinas e práticas listadas acima serão avaliadas no devido
tempo no restante deste livro, porém a avaliação do segundo pilar sobre o qual
elas são construídas, a interconexão Cristo-Igreja, será feita agora.
A teologia evangélica discorda veementemente do conceito da Igreja Católica
de que ela é o prolongamento da encarnação do Cristo que subiu ao céu. Tal
formulação postula a continuação entre a encarnação do Filho de Deus, Jesus
Cristo, e a igreja como prolongamento dessa encarnação muito mais do que é
possível justificar. A encarnação da segunda pessoa da Trindade foi um evento
único: não houve prefiguração dela no Antigo Testamento, assim como
68

tampouco não há um princípio ou lei da encarnação articulado no Novo


Testamento. Por conseguinte, não pode haver continuação da encarnação, assim
como não pode haver também nenhum derivativo ou instância secundária dela
no que diz respeito à igreja (ou, a propósito, a qualquer outra realidade).
Além disso, a teologia evangélica identifica muita coisa de errado com o totus
Christus. O conceito se baseia em um entendimento equivocado da imagem do
corpo usada por Paulo, em que uma metáfora é interpretada de forma realista. De
fato, o apóstolo emprega uma linguagem analógica quando fala da cabeça em
relação ao corpo: “Pois o marido é o cabeça da mulher, assim como Cristo é o
cabeça da igreja, sendo ele mesmo o Salvador do corpo” (Ef 5.23). Aplicar o
conceito de totus Christus na interpretação dessa analogia resulta na
identificação próxima dos dois sócios do matrimônio, com a primazia da
existência do marido e a contingência da existência da esposa reforçada; esta não
é uma ideia paulina nem bíblica. De igual modo, a afirmação de Jesus (Mt
25.31-46) de que as pessoas, à medida que tratam de forma concreta e gentil (ou
menosprezam e deixam de ajudar) o menor de seus discípulos, é a ele que o
fazem, chama a atenção para o fato de que o bom ou o mau tratamento aos
seguidores de Cristo é uma medida ou reflexo de sua atitude em relação a Jesus e
seu alinhamento com seu reino. A advertência de Jesus a Paulo (At 9.4,5) de que,
ao perseguir os cristãos, Paulo perseguia a Cristo, certamente acentua a união de
Cristo com seus discípulos, que partilham de seus sofrimentos (Fp 1.29). Na
verdade, “a interpretação de certa forma ontológica” dessas passagens pelo
sistema católico é possível, reforçando assim a ideia que a Igreja Católica tem
69

de si mesma como extensão da encarnação. Contudo, ela é contrariada pela


interpretação relacional do sistema evangélico: essas passagens enfatizam que a
igreja, que está “em Cristo”, se acha em relacionamento íntimo com Cristo, mas
não é um prolongamento de seu ser que subiu ao céu — a interpretação
ontológica. Contudo, há outra crítica, mais severa, do entendimento da Igreja
Católica sobre si mesma, uma crítica que torna a interpretação ontológica dessas
passagens bastante implausível.
Um fato frequentemente negligenciado nessa discussão é a ascensão e suas
implicações para Cristo: atualmente, ele não está aqui na terra, mas no céu, de
onde governa de sua posição de autoridade à mão direita do Pai. Foi ao céu que
Jesus subiu (At 1.11); foi para esse estado exaltado que o Pai o levantou (Ef
1.20,21); foi dali que Cristo enviou o Espírito Santo para tomar seu lugar como
outro Auxiliador (Jo 15.26; At 2.33); e é do céu que ele voltará (Mt 26.64; At
1.11; 1Ts 4.16). “O sistema católico romano olha para a ascensão dentro da
continuidade do padrão estabelecido com a encarnação, embora reconheça a
novidade do período pós-ascensão da mesma lei [...]. O sistema evangélico tende
a ver a ascensão de maneiras mais abruptas e radicais, já que a concebe como
fim do ministério terreno de Jesus Cristo que não pode ser estendido ou
prolongado de forma alguma em razão de sua unicidade com a economia da
salvação e sua importância soteriológica de uma vez por todas.” 70

Essa posição de descontinuidade não pretende negar que a plenitude de Cristo


preencha seu corpo (Ef 1.23), mas é preciso compreendê-la em sintonia com sua
onipresença divina e sua presença espiritual: como ele é plenamente divino, o
Filho de Deus está presente, ao mesmo tempo, por toda parte, na inteireza do seu
ser divino, e essa presença divina é manifestada de maneiras específicas em
tempos específicos, por exemplo, para proporcionar bênção quando a igreja
exerce disciplina (Mt 18.15-20), interage por meio de missões (v. 18-20) e
celebra a ceia do Senhor (1Co 10.14-22). Por conseguinte, afirmar o totus
Christus como o Cristo total — o Deus-homem divino-humano entronizado
como rei no céu — presente tanto na cabeça quanto no corpo é errado. Na
verdade, isso resulta em inúmeros erros graves (assinalados acima e que serão
discutidos posteriormente), inclusive a visão católica da presença de Cristo na
eucaristia (transubstanciação); a substituição do “Senhor ausente pela igreja”, 71

especialmente visível na hierarquia da igreja colocada no lugar de Cristo; e a


identidade da igreja universal com a Igreja Católica visível na terra. 72

Além disso, a teologia evangélica contesta o papel fundamental de mediação


atribuído à Igreja Católica como prolongamento da encarnação do Cristo elevado
ao céu. Nesse ponto, o primeiro axioma do sistema teológico católico, a
interdependência natureza-graça, se une ao segundo axioma e exerce uma
influência maior. Embora enfatize a singularidade da mediação de Jesus Cristo
para a salvação — uma operação de graça claramente em sintonia com a
Escritura (e.g., 1Tm 2.4-6) —, a teologia católica incorpora o axioma da
interdependência natureza-graça com o consequente resultado de que ele
“permite, na verdade exige, a contribuição da natureza na operação da graça. De
acordo com o padrão natureza-graça católico romano, a singularidade da
mediação de Jesus Cristo precisa ser qualificada no sentido de que requer a
participação da natureza na obra da mediação [...]. A igreja, portanto, como
corpo de Cristo e sacramento da união íntima entre Deus e a humanidade,
partilha do ofício mediador de Jesus Cristo de cuja encarnação ela é extensão”. 73

É importante salientar que, para o catolicismo, tal cooperação eclesial e


assistência mediadora “não retira nem acrescenta nada à dignidade e à eficácia
de Cristo, o único mediador”. Embora uma avaliação evangélica do sistema
74

católico deva levar em conta a alegação do sistema de manter sob tensão o que
parecem ser princípios mutuamente contraditórios de mediação — a mediação
exclusiva de Cristo é realizada por meio da mediação partilhada da igreja —, a
teologia evangélica tem muita dificuldade em entender essa conjunção. Sua
crítica se preocupa com os dois axiomas que dão sustentação a esse conceito
católico de função mediadora da igreja: o continuum natureza-graça está errado,
e o entendimento que a igreja tem de si mesma como extensão da encarnação
está equivocado. E, nesse caso, duas coisas erradas postas juntas não fazem uma
certa. Portanto, a teologia evangélica vive com base no solus Christus
protestante — somente Cristo, e não Cristo mais a igreja.
A teologia evangélica faz uma crítica semelhante da teologia católica de
Maria, que é um exemplo particular de uma expressão mais geral da mediação
da igreja na operação da graça para salvação. Mais uma vez, os dois axiomas do
sistema católico servem de suporte para a elevação de Maria a medianeira. A
natureza tem uma capacidade para a graça; portanto, quando a natureza humana
de Maria foi preservada do pecado por meio de sua concepção imaculada (uma
obra da graça), e por ela não ter pecado graças à sua obediência à fé suscitada
pela graça, Maria se tornou a medianeira da graça pela graça, que está encarnada
na natureza (humana). Além disso, como a igreja é a mediadora entre a natureza
e a graça, e Maria se relaciona com a igreja na condição de sua mãe, disso se
segue que ela é membro fundamental na mediação da graça para a natureza.
Contudo, objeta a teologia evangélica, a mariologia está fundamentada nos
axiomas equivocados do continuum natureza-graça e na compreensão que a
igreja tem de si mesma como extensão da encarnação de Jesus Cristo. Por
conseguinte, Cristo, e somente Cristo, é o mediador entre Deus e o homem,
graça e natureza.

Conclusão
Este capítulo tratou de quatro assuntos importantes: (1) esboçou a estratégia
interpretativa em relação à Escritura e recorreu a um método gramático-
(salvífico)-histórico-tipológico que será o método para a compreensão da
Escritura usado nesta avaliação evangélica. (2) Descreveu uma expressão típica
da teologia evangélica — chamada de visão de vida com Deus e desabrochar
humano — que será a estrutura teológica geral empregada nesta avaliação
evangélica. (3) Buscou uma estratégia para a compreensão e avaliação da
teologia católica considerando-a como um sistema coerente e abrangente
baseado em dois princípios fundacionais. (4) Avaliou, por meio dessa estratégia,
esses dois axiomas — a interdependência natureza-graça e a interconexão
Cristo-Igreja — com uma crítica geral.
O restante deste livro será uma avaliação da teologia católica e da prática do
amplo sistema católico, com base na Escritura e na teologia evangélica.
1
A Bíblia da Igreja Católica Romana contém mais livros do que a Bíblia dos protestantes/evangélicos.
Para uma discussão mais ampla da hermenêutica evangélica, veja Grant R. Osborne, The hermeneutical
spiral: a comprehensive introduction to biblical interpretation, ed. rev. ampl. (Downers Grove: IVP
Academic, 2006) [edição em português: Espiral hermenêutica: uma nova abordagem à interpretação
bíblica (São Paulo: Vida Nova, 2009)]; William W. Klein; Craig L. Blomberg; Robert L. Hubbard, Jr.,
Introduction to biblical interpretation (Dallas: Word, 1993); Robert L. Plummer, 40 Questions about
interpreting the Bible (Grand Rapids: Kregel Academic & Professional, 2010) [edição em português: 40
questões para se interpretar a Bíblia (São José dos Campos: Fiel, 2017)].
2
Por exemplo, na história da conversão do eunuco etíope (At 8.26-40), temos a apresentação dos
personagens (v. 26-28) ou a exposição dos personagens principais (o eunuco, Filipe, um anjo do Senhor/o
Espírito Santo) e o cenário da narrativa (na estrada a caminho de Gaza, um local deserto); a ação crescente
(v. 29-33), incluindo-se aí a direção do Espírito dada a Filipe, a leitura de Isaías pelo eunuco, perguntas
sobre entendimento e interpretação e uma citação da Escritura; o clímax (v. 34,35), um crescendo dramático
que culmina com a comunicação do evangelho por Filipe; o decréscimo da ação (v. 36,38) centrada na
legitimidade do batismo seguido pelo batismo de fato do eunuco (o v. 37 é uma adição posterior e
desnecessária para efeito de esclarecimento); e a resolução (v. 39,40), ou a amarração dos vários fios (o
eunuco, Filipe e o Espírito Santo) para dar uma conclusão à história. Seguir o fluxo dessa narrativa é crucial
para o entendimento correto dessa passagem.
3
Por exemplo, compreender a história das religiões de mistério em Colossos é importante para
interpretar as advertências de Paulo sobre “os espíritos elementares do mundo” em sua carta aos colossenses
(Cl 2.8,20).
4
Por exemplo, os textos bíblicos sobre a construção do Templo de Salomão e a adoração no local devem
ser interpretados à luz de passagens anteriores (revelação antecedente) sobre a construção de altares e a
adoração feita neles pelos patriarcas e a construção e adoração no Tabernáculo pelo povo nômade de Israel.
Também devem ser entendidos como antecipação de passagens posteriores (revelação subsequente) sobre a
destruição do Templo, sua reconstrução depois do exílio, a insistência de Jesus de que se deve adorar em
espírito e em verdade (Jo 4.24), a igreja como templo do Espírito Santo (1Co 3.10-17) e Deus como templo
no novo céu e na nova terra (Ap 21.22).
5
Por exemplo, a ação de Moisés levantando a serpente no deserto é o tipo (Nm 21.9), e Jesus sendo
levantado na cruz é o antítipo (Jo 3.14,15).
6
Esses sentidos serão explicados e avaliados em discussão posterior.
7
O mandamento divino de Gênesis 1.28 é conhecido tradicionalmente como o “mandato cultural”, e o
começo do seu cumprimento é narrado em Gênesis 4.2,17-22 com referências ao pastoreio, à agricultura, à
construção de uma cidade, à criação de gado, participação em expressões artísticas e à fabricação de
ferramentas de metal.
8
A teologia evangélica faz referência a inúmeras variedades de pontos de vista sobre o pecado. Um
deles, por exemplo, é que o pecado de Adão é imputado a todos os seres humanos, portanto todos são
culpados do seu pecado; de acordo com outra visão, somente a natureza pecaminosa de Adão é herdada
pelos seres humanos. Um segundo exemplo trata da extensão e da intensidade do pecado original sobre a
natureza humana: uma perspectiva defende a depravação total e a total incapacidade, ao passo que outro
ponto de vista defende a depravação parcial e a inabilidade parcial.
9
Por exemplo, o quarto Evangelho apresenta sete sinais ou milagres que Jesus realizou para demonstrar
sua natureza divina (Jo 2.1-11; 4.46-54; 5.1-18; 6.1-15; 6.16-21; 9.1-41; 11.1-45); conforme João explica
perto do final do seu Evangelho, ele poderia ter registrado muitos outros sinais miraculosos (Jo 20.30),
porém “estes foram registrados para que possais crer que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que,
crendo, tenhais vida em seu nome” (Jo 20.31).
10
Essa perspectiva da eleição reflete a teologia reformada. Um ponto de vista diferente, defendido pela
teologia arminiana, considera que a eleição se baseia no conhecimento antecipado de Deus da resposta de
alguém ao arrependimento e à fé no evangelho para sua salvação, e a perseverança nessa salvação até o fim
da sua vida. Conhecendo antecipadamente tais realidades, Deus escolhe essas pessoas para que pertençam a
ele para sempre. Essa perspectiva da eleição é defendida por vários tipos de teologia evangélica.
11
A relação entre chamado eficaz, regeneração e conversão (a ser discutida em breve) é objeto de disputa
entre os vários tipos de teologia evangélica.
12
A apresentação a seguir é uma adaptação de Allison, SS, p. 29-32.
13
Outras variedades de teologia evangélica acreditam que é possível perder a salvação; portanto,
receberiam com ressalvas essa discussão sobre a certeza da salvação.
14
Edição em português: Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Loyola, 1999).
15
Leonardo De Chirico, Evangelical theological perspectives on post-Vatican II Roman Catholicism,
Religions and Discourse [daqui em diante De Chirico] (Bern: Peter Lang, 2003), vol. 19. Os teólogos
evangélicos com quem De Chirico interage são G. C. Berkouwer, Cornelius Van Til, David Wells, Donald
Bloesch, Herbert Carson e John Stott. As associações para o diálogo entre evangélicos e católicos com as
quais ele interage são a World Evangelical Fellowship e Evangelicals and Catholics Together. Por
atomismo, ele se refere “a uma estrutura epistemológica que favorece a análise de componentes, partes,
elementos de determinada realidade, sem avaliar de forma suficiente suas relações internas e seu elo
orgânico. Em suma, o atomismo é uma análise a que falta síntese, enfatiza os particulares, mas não dá conta
suficiente dos universais, enfatiza a importância dos aspectos particulares e subestima a relevância das
estruturas” (ibidem, p. 204).
16
Ibidem, p. 18.
17
Ibidem, p. 24.
18
Ibidem, p. 186.
19
Ibidem, p. 197.
20
Ibidem.
21
Ibidem, p. 199.
22
Ibidem, p. 201.
23
Ibidem.
24
Outra linha de evidência de que o catolicismo é um sistema é o fato de que foi contestado por um
movimento que, no fim, se tornou um sistema de oposição, coerente e abrangente — o protestantismo —
com axiomas próprios (o princípio formal do sola Scriptura; o princípio material da justificação pela graça
pela fé somente), suas marcas próprias da igreja verdadeira (pregação, sacramentos), suas confissões de fé
próprias etc.
25
De Chirico, p. 213, 218.
26
Cf. ibidem, p. 218.
27
O primeiro deles, que trata da relação entre natureza e graça, é o “alcance teológico” ou “horizonte
teológico” do sistema católico. O segundo elemento, que se debruça sobre a compreensão própria da igreja,
é o “principal ponto de referência teológica que determina a orientação e as expressões do sistema” (ibidem,
p. 219).
28
Ibidem.
29
De Chirico resume essas tipologias divergentes apresentadas em três polaridades: as tendências
dualistas da variedade rígida da tradição de Tomás de Aquino e as tendências holísticas do Surnaturel de
Henri de Lubac; a perspectiva essencialista da tradição patrística e as perspectivas
personalistas/existencialistas dos teólogos do século 20, bem como a tradição agostiniana e a tradição
tomista (que segue Tomás de Aquino) (ibidem, p. 222-9).
30
Conforme disse Aquino, “a graça não destrói a natureza; antes, ela a aperfeiçoa” (Thomas Aquinas,
Summa theologica, pt. 1, q. 1, art. 8 [edição em português: Tomás de Aquino, Suma teológica (São Paulo:
Loyola, 2001), 9 vols.]).
31
George Weigel, Evangelical Catholicism: deep reform in the 21st-century church (New York: Basic,
2013), p. 44. Em outro lugar, Weigel afirma que “o sistema sacramental da igreja leva muito a sério as
coisas do mundo e das relações humanas, vendo nelas veículos da graça divina” (ibidem, p. 47; cf. p. 63-4).
32
De Chirico, p. 236.
33
Ao tratar do conceito da teologia católica de que, mesmo antes da Queda, a razão em Adão e Eva tinha
uma função de controle sobre suas paixões e seus desejos físicos, a teologia evangélica pressente que há
alguma coisa fora de ordem: a natureza humana, embora não tivesse pecado quando foi criada, era, não
obstante, imperfeita ou, no mínimo, não desfrutava de um estado de integridade. O pecado, portanto, é um
transtorno no âmago da natureza, e não um rompimento radical com ela; a natureza já manifestava ou
havia sido preparada para um continuum natureza-pecado. Por conseguinte, o cenário está parcialmente
disposto para a aceitação, por parte da teologia católica, do pecado como um elemento secundário sob a
égide do elemento primário da natureza. A visão da teologia católica do estado original do ser humano antes
da Queda será discutida e avaliada posteriormente.
34
Algumas abordagens evangélicas acrescentariam um quarto elemento. O símbolo φ representa o caso
nulo; isto é, a teologia evangélica não tem elementos secundários. Especificamente, ela não considera o
pecado um elemento secundário, e sim primário.
35
De Chirico, p. 236.
36
Ibidem, p. 237.
37
Ibidem, p. 236. De Chirico classifica corretamente essa discussão do grave impacto do pecado sobre a
criação/natureza assinalando que a teologia evangélica também acolhe duas outras doutrinas que dizem
respeito a esse tópico: em primeiro lugar, a graça comum é concedida por Deus para preservar a criação e
encorajar a edificação da civilização, a despeito da corrupção generalizada introduzida pela Queda e
continuada pelo pecado. Em segundo lugar, embora a Queda “tenha alterado a ‘direção’ da criação”, não
destruiu sua “estrutura”. Por exemplo, ainda que o pecado tenha corrompido de forma devastadora a
natureza humana, o ser humano decaído ainda é um ser criado à imagem de Deus (ibidem, p. 238-9).
38
Isto não significa que a teologia evangélica leve ao gnosticismo, o que, de acordo com Weigel, é um
espectro do “espírito de era” contemporâneo. A teologia evangélica acolhe a bondade da criação original, a
corporificação humana (porque foi esse o projeto divino para o ser humano), a encarnação do Filho, o Deus-
homem, a ressurreição (tanto de Cristo quanto, no futuro, de todos os seus seguidores) e o novo céu e a
nova terra. Contudo, a teologia evangélica sustenta que a depravação decorrente do pecado é mais
abrangente e intensa do que acredita sua contraparte católica. Essa depravação significa que a natureza não
é e não pode ser canal da graça; pelo contrário, a natureza deve ser recriada pela graça.
39
De Chirico, p. 228.
40
Ibidem, p. 240.
41
Ibidem.
42
Ibidem, p. 241.
43
Ibidem, p. 242.
44
Ibidem, p. 84. Aqui, De Chirico reflete a avaliação que faz David Wells da teologia católica; a citação
é de David Wells, The search for salvation (Leicester: Inter-Varsity Press, 1978), p. 144.
45
De Chirico, p. 243.
46
Ibidem, p. 234.
47
Ibidem, p. 232.
48
Ibidem, p. 233; citação de Eugene TeSelle em “Nature and grace in the Forum of Ecumenical
Discussion”, Journal of Ecumenical Studies (Summer 1971): 540.
49
De fato, um tema constante da Escritura é a necessidade da salvação graciosa, que nos resgata da
adoração idolátrica da natureza (e.g., At 14.8-18; 17.22-31; Rm 1.18-25).
50
De Chirico, p. 247.
51
Ibidem, p. 249.
52
Ibidem.
53
Ibidem, p. 250.
54
Ibidem, p. 253.
55
Ibidem.
56
Ibidem, p. 259.
57
Ibidem, p. 261.
58
Ibidem.
59
Augustine [Agostinho], Expositions of the Psalms, in: The works of Saint Augustine: a translation for
the 21st Century, edição de John E. Rotelle, tradução de Maria Boulding (New York: New City, 2000-
2004), 4:149, 6 vols.
60
Ibidem.
61
Augustine, Tractates on the Gospel of John 28.1 (NPNF1 7:179).
62
Augustine, Sermon 341, in: John E. Rotelle, org., The works of Saint Augustine: a translation for the
21st Century, tradução para o inglês de Edmund Hill (Hyde Park: New City, 1992), vol. 10, p. 19.
63
De Chirico, p. 267.
64
Concílio Vaticano II, Lumen gentium 1 (VC II-1, 350).
65
De Chirico, p. 273.
66
Papa Pio XII, The mystical body of Christ (29 de junho de 1943), p. 54, disponível em:
http://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_29061943_mystici-
corporis-christi_en.html.
67
O sacrário eucarístico é um recipiente consagrado, lindamente decorado e seguro, disposto em um
local de destaque em uma Igreja Católica e usado para guardar a eucaristia fora da missa. Como a hóstia
consagrada é o corpo de Cristo, os fiéis são encorajados à adoração no momento em que se aproximam do
sacrário onde o sacramento se acha depositado. A eucaristia no sacrário pode também ser usada para a
administração do sacramento aos doentes como viático. “Viático” se refere aos preparativos para uma
viagem (do lat. via). Esse aspecto do sacramento da eucaristia será discutido em detalhes posteriormente.
68
As teofanias não eram prefigurações da encarnação porque consistiam em manifestações temporárias
de Deus em forma humana, mas nenhuma delas era uma união hipostática entre a natureza divina e a
natureza humana, como a encarnação de Jesus Cristo.
69
De Chirico, p. 278.
70
Ibidem, p. 276.
71
Michael S. Horton, People and place: a covenant ecclesiology (Louisville: Westminster John Knox,
2008), p. 5.
72
Para uma discussão mais ampla, veja ibidem, p. 155-89.
73
De Chirico, p. 281.
74
Ibidem, citando Concílio Vaticano II, Lumen gentium 62.
I
A teologia católica de acordo com o Catecismo
da Igreja Católica

PRIMEIRA PARTE:
A PROFISSÃO DA FÉ
2
A PROFISSÃO DA FÉ
(primeira parte, seção 1, capítulos 1–3)
A capacidade humana de acesso a Deus; a doutrina da revelação;
a doutrina da fé

Introdução: natureza e forma do Catechism


O Concílio Vaticano II (1962-1965) desenvolveu e promoveu afirmações
doutrinárias e princípios ministeriais para guiar a Igreja Católica no futuro. O
processo de comunicação e de introdução de grandes mudanças propostas pelo
concílio foi, é e será uma tarefa permanente. Um dos principais meios pelos
quais a igreja realiza essa renovação se dá por intermédio de um texto de
referência que apresenta suas crenças doutrinárias relativas à fé e à moral
intitulado Catechism of the Catholic Church. Embora catecismo não seja um
1

conceito muito familiar aos evangélicos, a palavra se refere simplesmente a uma


ferramenta de ensino que pode ser usada no processo de catequização, ou de
instrução das pessoas na fé e na prática.
A elaboração do Catechism começou em 1986 quando o papa João Paulo II
criou uma comissão de cardeais e de bispos para prepará-lo e escrevê-lo. O
presidente da comissão era o cardeal Joseph Ratzinger, que mais tarde se tornaria
o papa Bento XVI. Depois de nove rascunhos, da contribuição de inúmeros
especialistas bíblicos e teólogos, e de muitas consultas, o Catechism foi
aprovado por todo o episcopado (ou bispos) da Igreja Católica, inclusive pelo
papa João Paulo II, e é hoje considerado uma apresentação fiel e sistemática do
2

ensino da igreja de acordo com sua tripla estrutura de autoridade, isto é, a


Escritura, a Tradição da igreja (inclusive sua liturgia) e o Magistério, ou seu
ofício de ensino. O Catechism foi publicado pela primeira vez em inglês em
1994. 3

Embora a estrutura do Catechism pareça estranha à maior parte dos


evangélicos, sua organização é bastante tradicional e consiste em quatro partes.
A primeira parte, “A profissão da fé”, ou o “Credo”, trata inicialmente do tópico
da capacidade de a humanidade ter acesso a Deus e das doutrinas da revelação (a
abertura ou comunicação de Deus a suas criaturas humanas) e fé (a resposta
humana à revelação divina), seguida de outras doutrinas estruturadas de acordo
com o Credo dos Apóstolos (escrito entre o terceiro e o quarto séculos) e o
Credo Niceno-Constantinopolitano (escrito em 381). A segunda parte, “A
celebração do mistério cristão” , apresenta a liturgia, ou a celebração da igreja da
salvação divina tornada presente por meio de suas ações, particularmente os sete
sacramentos: batismo, confirmação, eucaristia, penitência, unção dos enfermos,
ordem e matrimônio. A terceira parte, “A vida em Cristo”, desenvolve a ideia de
beatitude ou bênção como projeto máximo de Deus para os que portam sua
imagem, um propósito que deve se realizar por meio da graça e da lei,
particularmente em obediência aos Dez Mandamentos e aos ensinos de Cristo no
Sermão da Montanha. A quarta parte, “A oração cristã”, repete as sete petições
do Pai-Nosso. Embora essa estrutura implique alguma sobreposição (e.g., a
4

doutrina do pecado é tratada nas duas partes, 1 e 3), o Catechism tem uma leitura
fluida e fácil de seguir. Alguns pontos finais para seus leitores: citações das
Escrituras, que aparecem com frequência e, de forma muito útil, escritas por
extenso são extraídas da Revised Standard Version e da New Revised Standard. 5

Os parágrafos escritos com letra pequena apresentam questões históricas e


apologéticas e, como materiais suplementares, sua leitura não é essencial. As
citações apresentadas em fontes menores são tiradas de materiais patrísticos,
litúrgicos e de outras fontes e têm propósito catequético ou instrutivo. Cada uma
das unidades termina com um resumo (“ ”), que pode ser consultado antes e
IN BRIEF

depois da leitura, para que o leitor tenha certeza de que compreendeu os


principais tópicos. 6

A capacidade humana de acesso a Deus (seção 1,


capítulo 1)
A primeira seção da primeira parte do Catechism, “A profissão da fé”, indaga e
responde à pergunta “o que significa crer?”. É evidente que a natureza da fé
precisa ser compreendida antes que seja possível fazer uma profissão da fé. De
acordo com o Catechism, a fé é uma resposta humana a Deus e sua revelação de
si mesmo a suas criaturas humanas, as quais ele criou à sua imagem e chamou
para conhecê-lo e amá-lo. Desde o início, portanto, o ser humano foi feito para
buscar a Deus; em certo sentido, fomos feitos para desejar Deus por meio de um
desejo divinamente implantado em nós. Como seres religiosos, portanto, todos
adoram. Deus é o objeto dessa adoração, mas, por causa do esquecimento e até
mesmo da rejeição humana, alguma coisa ou alguém se torna o substituto do
Deus único e verdadeiro. Contudo, Deus continua a buscar adoradores
verdadeiros em meio à tragédia da desobediência humana.
Deus, especificamente, proporciona certos meios pelos quais o ser humano
pode vir a conhecê-lo. Chamadas com frequência de provas da existência de
Deus, elas partem dos seguintes dois pontos: (1) Argumentos cosmológico e
teleológico têm o mundo (cosmos) e seu projeto ou propósito (telos) evidente
como pontos de partida. Quando as pessoas contemplam o Universo e tudo o que
nele há, sua dependência de alguma coisa ou de alguém para existir, em vez de
não existir, seu design e sua ordem etc., elas concluem corretamente que Deus
existe. (2) Argumentos estético e moral tomam a pessoa humana como seu ponto
de partida. Quando as pessoas contemplam o sentido moral e universal da
humanidade (o jeito que as coisas devem ser — e.g., leis comerciais justas); a
apreciação humana da bondade, verdade e beleza; e o desejo humano de
perfeição e felicidade, elas chegam justificadamente à conclusão de que Deus
existe. Grandes eruditos católicos como Tomás de Aquino elaboraram esses
argumentos formalmente, mas não estão muito longe do que diz a Escritura:
7

todos, por toda parte, veem evidências de Deus e suas características pessoais na
criação existente (Rm 1.18-25) e conhecem alguma coisa de suas leis morais por
meio da consciência humana (2.13-16). Além disso, mediante esses meios o ser
humano se torna disposto à fé e compreende que a fé é compatível com a razão
humana. De fato, o Catechism salienta que Deus “pode certamente ser conhecido
a partir do mundo criado pela luz natural da razão humana” porque ele criou o
ser humano como portador da sua imagem e com capacidade para conhecê-lo. 8

Tal conhecimento da existência de um Deus pessoal, porém, não é suficiente


para uma relação íntima com ele. A causa dessa insuficiência são os efeitos
perturbadores do pecado sobre a razão humana, que, embora garanta certeza do
conhecimento de Deus, fica tolhida pelos sentidos, pela imaginação e por
desejos confusos. Consequentemente, uma relação íntima com Deus requer a
revelação divina e a graça para acolher essa revelação pela fé.
Depois desses breves comentários iniciais, a capacidade humana de falar
sobre Deus é algo claramente fundamental. Mas, por que, especialmente em
nosso contexto pós-moderno em que há uma grande dúvida sobre as capacidades
linguísticas em geral, e a possibilidade da linguagem religiosa em particular,
pode se fazer tal suposição? Empregando a analogia do ser (analogia entis), o
Catechism assevera que, pelo fato de haver uma semelhança entre o ser humano
finito (a criatura; portadora da imagem) e o Deus infinito (o Criador; a fonte
geradora da imagem), a linguagem humana sobre Deus é possível. Embora a
linguagem humana não possa falar de Deus exaustiva e perfeitamente (essa seria
uma linguagem unívoca), ela pode fazer mais do que falar de Deus de forma
aproximada e errática (o que seria uma linguagem equívoca); na verdade, a
linguagem humana pode falar de Deus por correspondência e em verdade
(usando a linguagem analógica). É importante frisar que a linguagem humana
deve ser modificada para o discurso adequado a respeito de Deus. Por exemplo,
quando o cristão se dirige a Deus como “nosso Pai”, é preciso que ele purifique
o uso do termo para tirar dele toda imperfeição e ideia pecaminosa — por
exemplo, um pai alcoólatra e mulherengo que abusa dos filhos — e importar
para seu uso as qualidades mais elevadas de um pai terreno amoroso, protetor e
provedor conforme a igreja indica tais perfeições.

Avaliação evangélica
A teologia evangélica concorda com a ideia de fé do Catechism como resposta
humana a Deus e à sua revelação aos que são portadores da sua imagem, a quem
Deus criou para que o buscassem. Conforme explicou o apóstolo Paulo à
multidão reunida no Areópago:
Homens atenienses, em tudo vejo que sois excepcionalmente religiosos. Porque, ao passar e observar
os objetos do vosso culto, encontrei também um altar em que estava escrito: AO DEUS DESCONHECIDO. É
exatamente este que honrais sem conhecer que eu vos anuncio. O Deus que fez o mundo e tudo o que
nele há, Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos de homens. Tampouco é
servido por mãos humanas, como se necessitasse de alguma coisa. Pois é ele mesmo quem dá a todos
a vida, a respiração e todas as coisas. De um só fez toda a raça humana para que habitasse sobre toda
a superfície da terra, determinando-lhes os tempos previamente estabelecidos e os territórios da sua
habitação, para que buscassem a Deus e, mesmo tateando, pudessem encontrá-lo. Ele, de fato, não
está longe de cada um de nós; pois nele vivemos, nos movemos e existimos, como também alguns
dos vossos poetas disseram: Pois dele também somos geração (At 17.22-28).

Essa percepção inata de Deus com a qual todos os seres humanos foram
criados é um dos quatro modos de revelação geral, ou da comunicação de Deus
sobre si mesmo a todas as pessoas de todos os tempos e em todos os lugares. Os
quatro modos são a ordem criada (Rm 1.18-25); a consciência humana (Rm
2.13-16); o cuidado providencial de Deus na criação (At 14.8-18); e a percepção
inata da divindade (At 17.22-28). A partir dessa revelação geral, o ser humano
sabe da existência de Deus, conhece algo de suas características divinas e
amplos princípios de sua lei moral. A resposta inesperada, ou correta — como o
ser humano deveria responder — é a adoração adequada do único Deus vivo e
verdadeiro; com ações de graças a ele e submetendo-se à dependência dele; em
obediência à sua lei moral. Tragicamente, a resposta efetiva está longe da
pretendida; de fato, por causa do pecado humano, a adoração é mal direcionada,
de modo que a idolatria reina, a ingratidão e a confiança em si mesmo dominam
e, embora haja alguma obediência, a desobediência à lei moral é lugar-comum.
O resultado de toda essa situação trágica não é bom: Paulo diz que os seres
humanos são “indesculpáveis” porque suprimiram o conhecimento de Deus
concedido a eles por meio da revelação geral na criação (Rm 1.20-23), e o
apóstolo convida as pessoas para que se arrependam de sua resposta idolátrica e
se voltem para a percepção da divindade depositada em seu coração (At
17.30,31). Além disso, o quadro terrível da resposta inadequada à revelação
geral é encontrado em toda a Escritura e parece ser a única resposta dada pelo
ser humano pecador, que certamente não está em boa situação, não está nem
mesmo em uma situação neutra perante Deus. Pelo contrário, todos estão em
uma situação terrível perante ele. Contudo, Deus está sempre disposto a agir para
resgatar suas criaturas desviadas, mas a revelação geral não basta para tal
salvação ocorrer. Por conseguinte, a teologia evangélica discorda da atitude um
tanto esperançosa do Catechism em relação à revelação geral. Como pode ela
dispor os não crentes à fé quando eles rejeitam de forma sistemática e total a
revelação geral? No âmago dessa atitude otimista encontra-se a interdependência
natureza-graça, um dos axiomas do sistema teológico católico: embora o pecado
tenha afetado seriamente a natureza, ele não a corrompeu a ponto de que não
seja possível uma resposta humana à revelação geral. A teologia evangélica
discorda de forma veemente dessa posição. Contudo, a teologia evangélica
afirma o benefício de tal comunicação divina universal: apesar de uma rejeição
humana profundamente enraizada a ele e à sua revelação, Deus não desiste de
todas as pessoas em todo tempo e em todo lugar — na verdade, ele se comunica
com elas!
Com relação às provas da existência de Deus, a teologia evangélica tem várias
atitudes a esse respeito. Algumas versões afirmam que certas provas são
argumentos sólidos capazes de convencer os não teístas de que Deus existe.
Outras variedades rejeitam as provas, negando que haja argumentos
racionalmente convincentes para a existência de Deus. Contudo, outras atitudes
evangélicas afirmam o pressuposicionalismo, a visão segundo a qual as pessoas
devem admitir a existência de Deus e, portanto, tais provas são equivocadas. Em
todos os casos, porém, a teologia evangélica concorda com o Catechism de que o
mero conhecimento da existência de Deus é insuficiente para uma relação
pessoal com ele. Isso se deve a dois motivos: o primeiro deles, não afirmado
explicitamente pelo Catechism, é que a revelação geral não foi dada para
promover uma relação pessoal com Deus; esse é o papel da revelação especial. O
segundo motivo, assinalado no Catechism e na explicação acima, é que a
pecaminosidade humana distorce a percepção humana da revelação geral,
tornando-nos incapazes de estabelecer e cultivar uma comunhão íntima com
Deus. Por conseguinte, a visão do Catechism de que Deus “pode ser conhecido
com certeza a partir do mundo criado pela luz natural da razão humana” (o
9

Concílio Vaticano II acrescenta que “essas coisas, que em si mesmas não se


acham além da compreensão da razão humana, podem, na presente condição da
raça humana, ser conhecidas facilmente por todos os homens, com firme certeza
e sem contaminação de erro” ) é uma visão problemática por três motivos: em
10

primeiro lugar, mesmo que a revelação geral conceda algum tipo de


conhecimento de Deus, esse Deus que é certamente conhecido é uma distorção
do Deus único, verdadeiro e vivo. Em segundo lugar, há muita confiança na “luz
natural da razão” para que se perceba corretamente a evidência da existência de
Deus. A falsidade e a capacidade de destruição do pecado, expressas em parte
pelo Catechism, certamente se estendem à racionalidade humana e corrompem
sua habilidade de alcançar um conhecimento seguro de Deus por meio da ordem
criada, da consciência humana, do seu cuidado providencial, da percepção inata
da divindade, das provas da sua existência ou outros meios. A intuição
pecaminosa do homem acerca de Deus está certamente contaminada pelo erro.
Por último, no âmago dessas duas primeiras críticas encontramos a rejeição
evangélica do axioma do sistema católico de um continuum entre natureza e
graça que não foi totalmente devastado pelo pecado.
Por fim, a teologia evangélica afirma a capacidade humana de falar sobre
Deus. Algumas variedades adotam a analogia do ser como fundamento adequado
para tal afirmação; outras versões raciocinam de outra forma, mas chegam à
mesma conclusão. Fazem parte da capacidade humana de falar sobre Deus os
seguintes fundamentos, entre outros: (1) O próprio Deus criou o discurso
humano; o dom divino permite a comunicação entre Deus e os que portam sua
imagem. (2) Quando Deus se encarnou, o Deus-homem Jesus Cristo andou
ensinando a respeito de Deus e de seus caminhos em linguagem humana comum,
por meio de metáforas (e.g., “Porque, assim como o relâmpago sai do oriente e
se mostra até o ocidente, assim também será a vinda do Filho do homem”; Mt
24.27), figuras de linguagem (e.g., “Eu sou a videira; vós sois os ramos”; Jo
15.5), e ilustrações de tarefas humanas comuns (e.g., “O semeador saiu a
semear”; Mt 13.3). (3) Quando Deus quis comunicar algo sobre si próprio e seus
caminhos por meio da revelação escrita, ele recorreu às línguas humanas comuns
— hebraico, (um pouco de) aramaico e grego — para sua Palavra inspirada. Seja
qual for a justificativa para essa afirmação, a teologia evangélica concorda com
o Catechism quando este diz que a linguagem humana é suficiente, embora não
esgote o falar sobre Deus. Essa linguagem adequada e analógica, porém, deve
ser refinada no intuito de remover todas as ideias imperfeitas e pecaminosas, e
deve ser elevada de acordo com a Escritura para que atinja um senso de
excelência no que se refere a Deus. 11
A doutrina da revelação: Deus vem ao encontro do ser
humano (seção 1, capítulo 2)
A revelação de Deus (artigo 1)
Como o conhecimento da existência de Deus pela razão não é suficiente para um
relacionamento pessoal com ele, Deus providencia outra ordem de conhecimento
para o ser humano: a revelação divina (a teologia evangélica comumente se
refere a isso como revelação especial). Essa autorrevelação é uma decisão divina
completamente livre — Deus não tinha de se revelar — e tem como propósito
divino a salvação humana. Essa revelação “se dá simultaneamente ‘por ações e
obras intrinsecamente atreladas umas às outras’ e lançam luz umas sobre as
outras”. Por exemplo, a libertação do povo de Israel da escravidão no Egito, que
12

se deu por meio de pragas, da Páscoa, da travessia do mar Vermelho, da


peregrinação pelo deserto, da conquista da Terra Prometida etc., foi uma série de
atos de poder que revelaram Deus em seu poder, santidade, ciúme, ira, fidelidade
à aliança, misericórdia e compaixão. Esses atos foram, inicialmente, recitados
oralmente por seu povo e, por fim, narrados em forma escrita (Pentateuco), e
essas palavras revelam Deus em seu poder, justiça, ira, amor, graça e paciência.
Além disso, essa revelação divina é progressiva: Deus se comunica ao ser
humano paulatinamente culminando com a revelação máxima em Jesus Cristo.
Tal revelação começou com os primeiros seres humanos, a quem Deus se
revelou antes que pecassem e depois da sua queda, neste último caso por meios
que conduziram à salvação. Continuou com Noé, Abraão, os patriarcas e o povo
escolhido de Israel. Na verdade, a estrutura de aliança da revelação divina está
claramente evidenciada. Além disso, por intermédio dos profetas, Deus anunciou
a expectativa de uma nova aliança que, em última análise, traria salvação a todas
as nações. O ápice dessa revelação divina em atos e palavras é Jesus Cristo, a
Palavra final de Deus (Hb 1.1,2): “Nele [Cristo] ele [Deus] disse tudo; não
haverá outra Palavra além dessa”. Não se deve esperar nenhuma outra revelação
13

pública até que Cristo volte.


A transmissão da revelação divina (artigo 2)
Com relação à transmissão da revelação divina, o Catechism afirma dois meios:
Tradição e Escritura. Esse duplo padrão de comunicação se acha alicerçado nas
duas maneiras de pregar o evangelho pelos apóstolos, conforme ordenados pelo
próprio Cristo:

“oralmente ‘pelos apóstolos que transmitiram, pela palavra falada da sua
pregação, pelo exemplo que deram, pelas instituições que estabeleceram, o
que eles mesmos haviam recebido — quer dos lábios de Cristo, de seu
modo de vida e de suas obras, quer o tenham aprendido movidos pelo
Espírito Santo’;
por escrito ‘por parte daqueles apóstolos e outros homens associados aos
apóstolos que, sob inspiração do mesmo Espírito Santo, registraram por
escrito a mensagem de salvação’”. 14

Além disso, para garantir a preservação dessa revelação divina na igreja, “os
apóstolos deixaram bispos como seus sucessores” e “lhes deram ‘sua posição de
autoridade de ensino’”. Essa sucessão apostólica preserva a Tradição da igreja.
15

O Catechism afirma especificamente que a Tradição e a Escritura “acham-se


intimamente associadas e se comunicam uma com a outra. Isto porque ambas,
saídas da mesma fonte divina, se unem de algum modo para formar uma coisa só
e seguem adiante em direção ao mesmo objetivo”. Contudo, trata-se de dois
16

modos distintos de transmitir a revelação divina: “A Sagrada Escritura é o


discurso de Deus registrado por escrito mediante o sopro do Espírito Santo”; 17

esse modo corresponde à Bíblia católica. “E a sagrada Tradição transmite em sua


inteireza a Palavra de Deus que foi confiada aos apóstolos por Cristo, o Senhor, e
ao Espírito Santo” e que os apóstolos confiaram a seus sucessores, os bispos da
18

igreja. Eis dois exemplos da Tradição: (1) a imaculada concepção de Maria; isto
é, ela foi “preservada de toda mácula do pecado original” do momento em que
nasceu; e (2) sua assunção física — ela “foi assunta em corpo e alma à glória
19

celestial” — no final da vida. É importante notar que a igreja “não deriva


20

apenas da Santa Escritura sua certeza referente a todas as verdades reveladas.


Tanto a Escritura quanto a Tradição devem ser aceitas e honradas com igual
sentimento de devoção e de reverência”. 21

Tanto a Escritura quanto a Tradição constituem, juntas, o depósito sagrado da


fé, e o Catechism afirma que “a tarefa de conferir a interpretação autêntica da
22

Palavra de Deus, quer em sua forma escrita, quer na forma de Tradição, foi
confiada ao ofício vivo de ensino exclusivamente da igreja”. Esse Magistério é
23

formado pelo papa juntamente com os bispos da igreja. O exercício de sua


autoridade fica especialmente evidente quando o Magistério define as doutrinas
contidas na revelação divina, ou a ela associadas, uma vez que os católicos se
acham obrigados a crer nelas. São exemplos disso as duas supracitadas doutrinas
marianas — ou crenças a respeito de Maria.
Desse modo, a Igreja Católica tem uma estrutura tripartite de autoridade: a
Escritura, a Tradição e o Magistério. Assim como os três polos de uma banqueta
de três pernas suportam quem quer que se sente nela, assim também esses três
elementos proporcionam a revelação divina e sua interpretação oficial para a
igreja.
A Sagrada Escritura (artigo 3)
Com relação ao primeiro desses três elementos, a Escritura, o Catechism afirma
sua importância, sua inspiração divina e sua verdade; ele dá instruções para a
interpretação da Bíblia; discute seu cânon e incentiva sua leitura na igreja.
Com relação à importância da Escritura, o Catechism faz a íntima ligação da
Escritura com o corpo de Cristo, a Eucaristia, e requer igual veneração de ambos
para sua prática histórica. A Escritura é inspirada porque Deus é seu autor.
24

Contudo, essa supervisão divina da redação da Escritura não minimiza, diminui


ou destrói a redação humana da Escritura, uma vez que os autores bíblicos
empregaram plenamente sua personalidade e sua capacidade para a escrita.
Como a Escritura é inspirada, ela também é confiável: “Uma vez, portanto, que
tudo aquilo que os autores inspirados ou escritores sacros afirmam deve ser
recebido como afirmação do Espírito Santo, devemos reconhecer que os livros
da Escritura ensinam firmemente, fielmente e sem erro a verdade que Deus, por
causa da nossa salvação, quis ver confiada às Sagradas Escrituras”. 25

O mesmo Espírito Santo que inspirou a Escritura deve iluminar a mente de


seus leitores para que a compreendam à medida que obedecem atentamente a
seus princípios de interpretação. Fazem parte desses princípios a atenção dada ao
objetivo do autor/autores de suas palavras, seu contexto histórico, o gênero que
usaram (e. g., gênero narrativo, profético, poético), a gramática e a sintaxe. Esses
critérios de interpretação adequada da Escritura em harmonia com o Espírito
Santo dão atenção especial “ao contexto e à unidade de toda a Escritura”, lendo-
a “dentro da Tradição viva da igreja toda”, e com consideração “pela analogia da
fé” (enfatizando a coerência das verdades em toda a revelação divina). Mediante
o processo interpretativo, deve-se buscar o quádruplo sentido da Escritura. Os
dois sentidos da Escritura, que se tornam seu significado quádruplo, são:

o sentido literal: o significado das palavras da Escritura que se descobre
pela aplicação de princípios interpretativos saudáveis;
o sentido espiritual: o significado não das palavras da Escritura, mas das
coisas — as realidades, os acontecimentos, as instituições — a respeito das
quais a Escritura fala; esse sentido pode ser:
o sentido alegórico: o significado cristológico; por exemplo, a
travessia do mar Vermelho como sinal do batismo;
o sentido moral: o significado comportamental; por exemplo, como
viver de acordo com a justiça;
o sentido anagógico: o significado futuro ou a importância eterna; por
exemplo, a igreja na terra aponta para a Jerusalém celestial. 26

É claro que todas as interpretações da Escritura devem se conformar ao


julgamento oficial do Magistério.
A Igreja Católica afirma o cânon da Escritura, ou seja, a lista dos escritos que
devem pertencer à Bíblia conforme sua tradição apostólica; portanto, o Antigo
Testamento católico contém sete escritos a mais (e várias seções adicionais em
dois livros) em comparação com o Antigo Testamento protestante. Os sete
escritos adicionais são: Tobias, Judite, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico 27

(também chamado de Sirácida), Baruque e 1Macabeus e 2Macabeus. As seções


adicionais são encontradas nos livros de Ester (seis capítulos adicionais) e
Daniel (três capítulos adicionais). Esses escritos e seções adicionais constituem
os Apócrifos, um termo que significa “escondido”. O cânon do Novo Testamento
da Igreja Católica é exatamente o mesmo das igrejas protestantes. O Catechism
enfatiza a necessidade tanto do Antigo quanto do Novo Testamentos. O Antigo,
como preparação para Cristo, deve ser lido à luz do que Cristo fez para realizar a
salvação; e o Novo, como realidade máxima da revelação divina, deve ser lido
como cumprimento do Antigo.
Em vista de tudo o que é afirmado a respeito da Escritura, não deveria ser
motivo algum de surpresa que o Catechism encoraje a leitura da Bíblia. A igreja
deve incentivar a prática regular da leitura e do estudo da Escritura garantindo o
rápido acesso a ela, incentivando o ministério da Palavra em sua pregação e
catequese e exortando os católicos com as palavras de Jerônimo: “A ignorância
das Escrituras é ignorância de Cristo”. 28

Avaliação evangélica
Revelação divina
A teologia evangélica está de acordo com alguns elementos da doutrina da
revelação do Catechism, a começar com sua afirmação da insuficiência da
revelação geral para estabelecer e desenvolver uma relação pessoal com Deus e a
consequente necessidade da revelação divina (revelação especial, no jargão
evangélico) para que haja tal relacionamento. Há outros acordos no que se refere
à liberdade de Deus de se revelar, ou não, e de comunicar seus caminhos ao ser
humano decaído por amor à sua salvação. A revelação especial é um dom da
graça divina e com uma implicação muito importante que a teologia evangélica
enfatizará no devido tempo: a posição da igreja no tocante à revelação divina
deve ser a de receptora, e não sua doadora ou determinadora. Além disso, a
teologia evangélica concorda em princípio com a afirmação do Catechism a
respeito de ações e obras divinas em operação conjunta para a revelação de Deus
e de seus caminhos. O episódio da travessia do mar Vermelho, por exemplo, foi
uma revelação do poder da fidelidade de Deus; o texto de Moisés narrando esse
acontecimento (Êx 14) também é revelação divina. Certamente, esse ato de
poder de Deus estava acessível a todos os que cruzaram em terra seca as
muralhas de água, bem como a outros a quem a história foi contada e recontada
oralmente; mais tarde, a narrativa foi escrita sob a forma de texto. É importante,
porém, que a igreja conheça esse ato de poder e se beneficie dele somente por
meio do texto escrito. Toda e qualquer narrativa oral que tenha sobrevivido sem
dúvida conteria inúmeras e sérias distorções e não daria nenhuma autoridade à
igreja hoje. De fato, a autoridade é conferida exclusivamente ao registro escrito
do Êxodo conforme narrado por Moisés em Êxodo 14, uma vez que essa é a
narrativa inspirada pelo Espírito Santo.
Além disso, há concordância sobre a questão da natureza progressiva da
revelação divina: Deus se revelou efetivamente a Adão e Eva antes da Queda
(e.g., Gn 2.15-17) e, depois que caíram, por meio de uma comunicação direta
(e.g., 3.8-13). Essa revelação prosseguiu por meio de uma fala divina mais direta
(e.g., 12.1-3), sonhos e visões (e.g., o sonho de Abimeleque, 20.1-7; os sonhos
de José, 37.1-11), acontecimentos históricos (e.g., o dilúvio; Gn 6—9), e a
Escritura em registro escrito (e.g., Dt 31.9). Essa comunicação incessante
também foi progressiva. Por exemplo, Deus ensinou seu povo a adorá-lo no
Tabernáculo (e.g., Êx 40); mais tarde, ele lhe deu instruções para adorá-lo no
Templo (e.g., 2Cr 5). Pode se ver também claramente essa revelação progressiva
na profusão de alianças que Deus estabeleceu com seus parceiros humanos: as
alianças com Adão, Noé, Abraão, Moisés (ou antiga aliança) e a que fez com
Davi estavam em operação antes da vinda de Jesus Cristo. Foi profetizada então
uma nova aliança (e.g., Jr 31.31-34; Ez 36.25-27) que, por fim, tornou-se a
relação estruturada entre Deus e os membros da igreja. Essa nova aliança
convergiria em direção ao ápice da revelação divina tanto em ações quanto em
palavras: Jesus Cristo. Suas obras miraculosas foram o apogeu de muitos atos
poderosos de Deus feitos anteriormente, e suas palavras marcaram o auge do
discurso divino — a realização de tudo o que fora ordenado e profetizado (e.g.,
Mt 5.17-19) e o fundamento de tudo o que seria exigido e praticado
posteriormente (e.g., 1Co 11.23). Conforme prometido, Jesus Cristo é a Palavra
final de Deus (Hb 1.1,2), portanto não se deve esperar ou acolher nenhuma nova
revelação até a sua segunda vinda.
A transmissão da revelação divina/Sola Scriptura
Com relação à transmissão da revelação divina, há um grande distanciamento
entre a teologia católica e a evangélica. Enquanto a teologia católica afirma um
duplo padrão de comunicação da revelação divina (tradição oral e o texto da
Escritura), a teologia evangélica segue o princípio fundacional (chamado
princípio formal) do protestantismo: a fonte por excelência da revelação divina é
a Palavra de Deus escrita (sola Scriptura), e não a Escritura mais a Tradição.
Há diversas razões importantes para a rejeição, por parte da teologia
evangélica, da Tradição como modo distinto de revelação divina, não importa
quanto o Catechism insista na “mesma fonte divina” de Tradição e Escritura, no
elo próximo e na mútua comunicação entre os dois — até mesmo sua
singularidade em essência e objetivo. Uma razão para isso é a ideia da Tradição
29

como suplemento ao texto da Escritura, o que não conta com um bom respaldo
bíblico. A teologia católica busca esse apoio para sua Tradição nas palavras de
Jesus aos seus discípulos: “Ainda tenho muito que vos dizer; mas não podeis
suportá-lo agora” (Jo 16.12). Calvino contestou a (má) interpretação dessa
passagem:
Mas que afronta é essa? Admito que os discípulos ainda eram ignorantes e que era praticamente
impossível instruí-los quando ouviram isso do Senhor. No entanto, quando registraram por escrito
sua doutrina, será que estavam acossados por tal estupidez que precisavam, posteriormente,
completar com viva voz [Tradição] o que haviam omitido dos seus escritos em virtude do erro da
ignorância? Ora, se já haviam sido guiados a toda a verdade pelo Espírito da verdade [Jo 16.13, o
versículo imediatamente seguinte], o que os teria impedido de abraçar e de deixar registrado por
escrito o conhecimento perfeito e específico da doutrina evangélica?30

A crítica de Calvino expõe o equívoco católico do lamento de Jesus a seus


discípulos na época em que o expressou: dado o seu lugar no progresso da
história da salvação — antes da morte, do sepultamento, da ressurreição, da
ascensão de Jesus Cristo e do envio do Espírito Santo por ele —, os discípulos
não puderam compreender tudo o que Jesus queria lhes comunicar. Contudo, do
outro lado desses acontecimentos por meio dos quais se deu a salvação e a
inauguração da igreja, os discípulos tinham, de fato, o Espírito Santo, que os
guiou a toda verdade (Jo 16.13) e lhes ensinou todas as coisas, trazendo à sua
memória tudo o que Jesus havia dito a eles (Jo 14.26). Em outras palavras, o
obstáculo que antes impedia os discípulos de receber a plena revelação de Jesus
— e que foi motivo de lamento dele — fora removido. Nada impedia que eles
escrevessem por inteiro a revelação divina nos Evangelhos, na narrativa da igreja
primitiva (Atos), nas cartas (de Paulo, Tiago, Pedro, João e Judas) e no escrito
apocalíptico (Apocalipse). Os discípulos não tinham necessidade de nenhum
corpo complementar de comunicação oral — Tradição — que não teriam podido
registrar em seus escritos em razão de seu (anterior) estado de ignorância.
Uma segunda razão para a rejeição da Tradição pela teologia evangélica se
deve à demora por que passou o desenvolvimento de tal conceito. Em defesa da
inclusão da Tradição como parte da revelação divina, a teologia católica apela à
difusão da teologia e prática da igreja mediante a palavra falada e da letra escrita
nos primeiros séculos de sua existência (2Ts 2.15; cf. Jd 3). Tal comunicação
dupla foi certamente uma maneira de transmitir o evangelho e a sã doutrina na
igreja primitiva, mas não há indício algum de que consistisse em dois conjuntos
cujo conteúdo revelado fosse distinto — um conjunto que complementava o
outro. Por fim, a verdade original que havia sido necessariamente comunicada
oralmente foi registrada por escrito e se tornou o Novo Testamento. Conforme
explicou Ireneu, líder da igreja primitiva e defensor da fé cristã, no tocante aos
apóstolos e ao texto da Escritura:
Não foi de outros que aprendemos o plano da nossa salvação, mas daqueles por meio dos quais o
evangelho chegou até nós, e que eles, decisivamente, em dada época, proclamaram em público, e,
num período posterior, pela vontade de Deus, nos transmitiram por meio das Escrituras. Esse plano
de salvação, portanto, é fundamento e coluna da nossa fé. Assim, não é certo dizer que pregaram
antes de ter conhecimento perfeito, conforme alguns ousam dizer, vangloriando-se de ser
aperfeiçoadores dos apóstolos. Por conseguinte, depois que nosso Senhor se levantou dos mortos, [os
apóstolos] foram revestidos de poder do alto quando o Espírito Santo desceu [sobre eles], enchendo-
os [com seus dons], dando-lhes conhecimento perfeito: eles partiram para os confins da terra,
pregaram as boas-novas das coisas boas [enviadas] por Deus a nós.31

Os comentários de Ireneu são muito semelhantes à censura de Calvino à ideia da


teologia católica de Tradição baseada em João 16.12: o “conhecimento perfeito”
dos discípulos decorrente de um dom do Espírito Santo e espalhado
originalmente de modo amplo como comunicação oral foi por fim registrado por
escrito e se tornou a Escritura do Novo Testamento. Contudo, Ireneu não dá pista
alguma de que essa comunicação oral e sua forma em texto escrito da Escritura
fosse diferente no tocante ao seu conteúdo em que um complementaria o outro.
Mas Ireneu abraçou também e promoveu um conceito genuíno de tradição da
igreja. Quando a igreja primitiva denunciou as heresias expondo sua contradição
com a Escritura, os promotores da falsa doutrina acusaram a Escritura de
incorrer em erro, de falta de autoridade e de uma ambiguidade que só poderia ser
esclarecida por meio da tradição dos hereges. De fato, esses hereges diziam que
“a verdade não fora dada por meio de um documento escrito, mas vivâ voce, de
viva voz”. A reação da igreja primitiva foi insistir em uma tradição específica
32

que teve origem com os apóstolos e que foi preservada por meio da sucessão de
líderes das igrejas apostólicas. Os hereges deram sua resposta: a tradição da
igreja estava errada porque teve origem nos líderes da igreja, nos apóstolos e, em
última análise, no próprio Jesus Cristo, todos eles inferiores em conhecimento e
verdade se comparados aos hereges, os únicos que detinham o mistério oculto e
não adulterado. Ireneu resumiu o problema com os hereges: “Esses homens não
toleram nem a Escritura nem a tradição”. Por conseguinte, para Ireneu, a
33

tradição da igreja é a doutrina apostólica, que dispõe sobre o entendimento


adequado da Escritura. Tal doutrina está preservada nas igrejas apostólicas. 34

Contudo, ele não propôs uma tradição eclesiástica que fosse a “viva voz”
contendo a verdade que não estava igualmente registrada na Escritura. Se essa
tivesse sido a tática, seu argumento seria o mesmo dos hereges, o que resultaria
num empate.
Essa tradição propriamente dita — a doutrina apostólica em conformidade
com a Escritura e que proporcionou a estrutura correta para a interpretação da
Escritura — foi expressa pelo próprio Ireneu:
A igreja, embora dispersa pelo mundo todo até os confins da terra, recebeu dos apóstolos e de seus
discípulos esta fé: ela crê em um único Deus, o Pai todo-poderoso, Criador do céu, da terra e do mar,
e de todas as coisas que neles há; e em Jesus Cristo, o Filho de Deus, que se encarnou para nos
salvar; e no Espírito Santo, que proclamou pelos profetas as dispensações de Deus, e os adventos, e o
nascimento de uma virgem, a paixão e a ressurreição dos mortos, e a ascensão ao céu na carne do
amado Jesus Cristo, nosso Senhor, e sua [futura] manifestação do céu na glória do Pai “[para]
convergir todas as coisas em um” [Ef 1.10] e levantar de novo toda carne da raça humana inteira,
para que diante de Jesus Cristo, nosso Senhor, Deus, Salvador e Rei, conforme a vontade do Pai
invisível, “se dobre todo joelho, das coisas no céu, e das coisas na terra, e debaixo da terra, e toda
língua o confesse” [Fp 2.10,11], e para que ele execute o justo juízo para com todos; para que mande
os “malvados espirituais” [Ef 6.12] e os anjos que transgrediram e apostataram, juntamente com os
ímpios, os que não praticam a justiça, os perversos e os profanos entre os homens para o fogo eterno;
mas possa, no exercício da sua graça, conferir imortalidade aos justos, aos santos, e aos que
guardaram seus mandamentos e perseveraram em seu amor, alguns desde o princípio [de sua
trajetória cristã], e outros desde o dia do seu arrependimento, cercando-os de eterna glória.35

A tradição de Ireneu, chamada de cânon da verdade, era um esboço ou sumário 36

de doutrinas bíblicas fundamentais. Essas verdades não eram um acréscimo à


Escritura; na verdade, elas buscavam sua fonte e garantia na Escritura, conforme
afirmou Ireneu em sua justificação das doutrinas dos apóstolos: “Contudo,
enquanto apresento por meio dessas provas as verdades da Escritura, e exponho
brevemente, de forma resumida, coisas que se acham declaradas de várias
maneiras, vocês também se ocupam delas com paciência, e não as consideram
prolixas [verborrágicas]; levando isto em consideração, que as provas [das coisas
que se acham] contidas nas Escrituras não podem ser demonstradas, exceto pela
própria Escritura”. A doutrina apostólica tinha de ser decorrência da Escritura e
37

por ela garantida, não sendo suplemento da Escritura.


Essa ideia de tradição da igreja primitiva persistiu na primeira parte do
período medieval, conforme evidenciada pelo argumento de Tomás de Aquino
em defesa da supremacia da Escritura em relação aos escritos dos pais da igreja
para a determinação da teologia correta: “A teologia recorre especificamente à
autoridade das Escrituras canônicas como prova incontroversa e à autoridade dos
doutores da igreja como uma autoridade de uso recomendável, mas apenas
provável. Isso porque nossa fé repousa sobre a revelação feita aos apóstolos e
aos profetas que escreveram os livros canônicos, e não sobre revelações (se
houver) dadas a outros doutores”. Essa ideia de tradição, portanto, certamente
38

não é a que veio finalmente a se estabelecer no catolicismo medieval tardio,


conforme exemplificado nas novas alegações relativas à tradição — articuladas
primeiramente no século 14: 39


“a doutrina e tradição dos apóstolos [...] sem [fora da] Escritura”; 40

“as palavras não escritas dos apóstolos e suas tradições não escritas que
pertenceriam ao cânon da Escritura se tivessem sido escritas”; 41

“tal é a dignidade das tradições apostólicas que não foram registradas nas
Escrituras, que a mesma veneração e a mesma fé fervente são devidas a elas
como as que foram registradas por escrito”; 42

“as verdades que procedem verbalmente dos apóstolos ou que se acham nos
escritos dos fiéis, muito embora não se encontrem nas Sagradas Escrituras e
não se possa inferi-las com certeza das Escrituras apenas”; 43

“há uma infinidade de doutrinas católicas verdadeiras às quais não se pode


chegar de forma evidente a partir do conteúdo da Escritura Sagrada”. 44

Essa ideia de Tradição posteriormente desenvolvida está muito distante da ideia


de tradição da igreja primitiva e da igreja da baixa Idade Média.
Um terceiro motivo para a rejeição, por parte da teologia evangélica, da ideia
de Tradição da teologia católica é que a alegação da igreja de ser a mantenedora
e promotora de tal revelação divina se resume, basicamente, à declaração de ser
conduzida de maneira infalível pelo Espírito Santo sem a Escritura. Reitero,
conforme já foi dito, que tal alegação é nova, sem precedente antes do século 14,
numa época em que a Igreja Católica se empenhava para manter não apenas sua
autoridade espiritual, mas também sua autoridade sociopolítica.
Calvino chamou a atenção para duas passagens fundamentais às quais a Igreja
Católica recorria como base bíblica para sua alegação de infalibilidade: “Que a
igreja havia sido purificada ‘com o lavar da água na Palavra da vida, para
apresentá-la a si mesmo [...] sem ruga nem mancha’ [Ef 5.26-27], e, portanto, é
chamada em outra parte de ‘coluna e alicerce da verdade’ [1Tm 3.15]”. Com
relação à primeira passagem da Bíblia, Calvino objetou que ela “ensina o que
Cristo faz todos os dias na igreja, e não o que ele já fez”; de fato, a necessidade
da purificação diária da igreja por Cristo, algo tão empírico e prontamente óbvio
para todos, mostra que ela não atingiu ainda a santificação plena. Por
conseguinte, a igreja não tem nem pode ter, por enquanto, tal infalibilidade. Com
relação ao segundo versículo, Calvino disse que seu significado é totalmente
diferente da forma que a Igreja Católica o compreende: a igreja é “coluna e
alicerce da verdade” não porque ela — a igreja — é infalível, mas porque “a
verdade de Deus é preservada na igreja, isto é, pelo ministério da pregação”.
Como “guardiã fiel” da verdade, a igreja deve preservá-la contra toda perversão
e desafio; de fato, “essa preservação da verdade depende totalmente da Palavra
do Senhor, isto é, se ela é mantida e preservada fielmente em sua pureza”. 45

Portanto, a Palavra de Deus é infalível, e não a igreja que a preserva e a


sustenta.
Calvino deu um passo além ao criticar a insistência da Igreja Católica de que é
infalível por meio do Espírito Santo ao romper o vínculo indissociável entre a
Palavra de Deus e o Espírito de Deus. Apelando a passagens observadas
anteriormente em conexão com a defesa da Tradição pela Igreja Católica,
Calvino disse que as promessas de Jesus em relação ao Espírito Santo, isto é, que
ele “vos guiará a toda verdade” (Jo 16.13) e que “vos fará lembrar de tudo o que
tenho dito” (Jo 14.26), significam que “não devemos esperar nada mais do seu
Espírito, exceto que ele iluminará nossa mente para que percebamos a verdade
do seu ensinamento [a respeito de Cristo]”. Por conseguinte, embora a Igreja
Católica alegue uma infalibilidade conferida pelo Espírito para promoção de
doutrinas fora da Escritura, Calvino insistia em que todo o tempo “o Espírito
deseja estar unido à Palavra de Deus por um elo indissolúvel, e Cristo professa
isso em relação a si mesmo quando promete o Espírito à sua igreja”. 46

Uma quarta razão para que a teologia evangélica rejeite a Tradição é que a
estrutura Escritura mais Tradição é inerentemente instável. Na prática, quando as
duas entram em conflito, a autoridade da Tradição sobrepuja a da Escritura.
Embora a Igreja Católica diga que as duas se acham em perfeita harmonia, a
história mostra que não é bem esse o caso, e, quando os dois aspectos realmente
entram em conflito, um dos dois se torna a autoridade suprema. A colisão de
ambos, resultando na elevação da autoridade da Tradição em detrimento da
Escritura, pode ser claramente observada na promoção da doutrina da imaculada
concepção de Maria pela igreja. A Escritura afirma sem sombra de dúvida o
estado de pecaminosidade do ser humano e não permite exceções. Todo ser
humano, como descendente de Adão, é concebido em pecado, tem uma natureza
pecadora e peca em palavras, ações, pensamentos, intenções etc. De acordo com
a Tradição católica, porém, há uma pessoa que foi concebida sem pecado, não
tinha natureza pecaminosa e jamais pecou em palavra, ações, pensamentos,
intenções ou de qualquer outro modo. Nesse caso evidente, a Escritura e a
Tradição se acham em posições diametralmente opostas. Também fica evidente
aqui que a igreja tomou o partido da Tradição em detrimento da Escritura e
afirmou a concepção imaculada de Maria. Conforme observa James Warwick
Montgomery, toda autoridade que bebe em duas fontes é inerentemente instável
porque, quando as duas entram em conflito, uma se ergue inevitavelmente sobre
a outra, submetendo a ela sua autoridade. A primeira se torna autoridade de
facto, apesar das alegações em contrário. Portanto, a instabilidade inerente da
47

estrutura formada pela Escritura mais Tradição é motivo para que a teologia
evangélica rejeite a Tradição como modelo de revelação divina.
Por fim, a ideia da Tradição como revelação divina em acréscimo à Escritura
contradiz tanto a suficiência quanto a necessidade da Escritura, duas doutrinas
protestantes caras à teologia evangélica. A suficiência da Escritura significa que
tudo o que você precisa saber para ser salvo e para viver de um modo que agrade
plenamente a Deus está contido na Escritura. Faz parte da garantia bíblica desse
atributo da Escritura o testemunho de Davi de que “a lei do S é perfeita” (Sl
ENHOR

19.7) e a afirmação de Paulo de que a Escritura, como é inspirada por Deus, “é


proveitosa para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir em justiça”, o
cristão tem “pleno preparo para realizar toda boa obra” (2Tm 3.16,17). A 48

Escritura é suficiente para resgatar o pecador e prepará-lo para andar de um


modo que agrade a Deus à medida que pratica boas obras. Por conseguinte,
nenhuma formulação de doutrina ou de prática que venha de fora da Escritura —
purgatório, transubstanciação, indulgências, orações pelos mortos, penitência —
pode constranger a consciência do cristão como se fosse crença ou ação
complementar necessária à salvação e a uma vida santa. Contudo, é exatamente
isso o que diz a Tradição católica: “a igreja não deriva sua certeza acerca das
verdades reveladas unicamente das Santas Escrituras. Tanto a Escritura quanto a
Tradição devem ser aceitas e honradas com sentimentos iguais de devoção e
reverência”. Tal afirmação nega a suficiência da Escritura.
49

De igual modo, a ideia católica de Tradição contradiz a necessidade da


Escritura, já que o conceito ressalta que a igreja precisa da Escritura assim como
“o pão diário é necessário, porque não podemos passar sem ele nesta vida”. 50

Embora a Igreja Católica concorde que a Escritura é necessária para o bem-estar


da igreja, ela afirma — por causa da Tradição — que a Escritura não é necessária
para o ser da igreja; isto é, a igreja ainda assim existiria mesmo que a Escritura
deixasse de existir, porque ela seria guiada pela Tradição. A teologia evangélica
critica essa posição e insiste na necessidade da Escritura.
Por esses motivos, a teologia evangélica defende o sola Scriptura: a Escritura,
e não a Escritura mais a Tradição, é a fonte da revelação divina. É preciso
atenção especial na hora de promover e de discutir esse conceito, porque são
muitos os equívocos. O sola Scriptura, conforme originalmente concebido,
atribuía autoridade primordial à Escritura. Ela não é a única autoridade — na
verdade, o princípio não é uma rejeição de outras autoridades —, mas em todos
os assuntos teológicos a Escritura é a autoridade máxima. Assim, por exemplo, 51

enquanto Lutero e seu movimento luterano em formação rejeitavam a Tradição


da Igreja Católica e insistiam na suficiência da Escritura, a Igreja Luterana não
52

dispensava ou negligenciava a sabedoria acumulada pela igreja ao longo de


muitos séculos. Embora afirmasse a autoridade suprema da Escritura, a 53

Formula of Concord [Fórmula de Concórdia](1580) acentuava a importância de


certas tradições da igreja (chamadas “símbolos”):
Dado que imediatamente depois da época dos apóstolos — na verdade, enquanto ainda viviam —
surgiram falsos mestres e hereges, contra os quais foram criados símbolos na igreja primitiva, isto é,
confissões breves e explícitas que continham o consentimento unânime da fé cristã católica, e a
confissão da igreja ortodoxa e verdadeira (tal como o Credo dos Apóstolos, o Credo Niceno e o
Credo Atanasiano). Confessamos publicamente que os abraçamos e rejeitamos todas as heresias e
dogmas que um dia foram trazidos à igreja de Deus contrariamente à sua decisão.54

Por conseguinte, o sola Scriptura, quando corretamente definido e defendido,


não é uma rejeição das tradições da igreja como os credos antigos que são
resumos da sã doutrina, sinopses que refletem o entendimento adequado da
Escritura e nela estão alicerçados. “Sola Scriptura não é nuda Scriptura ” — a 55

Escritura e nada mais — e assim deve ela ser defendida e apresentada hoje. 56

Várias objeções importantes ao princípio evangélico do sola Scriptura foram


articuladas por líderes católicos e merecem uma resposta breve. Por exemplo,
Peter Kreeft, ao rejeitar o princípio, afirma que “nenhum cristão antes de Lutero,
nos dezesseis séculos que o precederam, ensinou tal princípio”. A teologia 57

evangélica indaga o que deve ser feito de afirmações como as seguintes,


atribuídas aos pais da igreja:

Atanásio (quarto século): “As Escrituras santas e inspiradas são suficientes
para a comunicação da verdade”; 58

Cirilo de Jerusalém (quarto século): “Com relação aos mistérios divinos e


santos da fé, nem mesmo uma declaração incidental deve ser feita sem as
Escrituras Sagradas [...]. Porque a salvação na qual cremos depende [...] da
comprovação pelas Santas Escrituras”; 59

Vicente de Lérins (morto aproximadamente em 450): “O cânon da Escritura


é completo e suficiente por si mesmo para tudo, e mais do que suficiente”. 60

Esses exemplos afirmando a suficiência da Escritura podem ser multiplicados.


Uma vez que a doutrina evangélica da suficiência da Escritura e seu princípio do
sola Scriptura se acham em sintonia, a teologia evangélica se pergunta por que
Kreeft diz que tal ideia é tardia.
Kreeft objeta novamente: “A primeira geração de cristãos nem sequer tinha o
Novo Testamento”. Veja, porém, o que diz o apóstolo Paulo sobre a suficiência
61

do Antigo Testamento, que a igreja primitiva tinha efetivamente como sola


Scriptura: “pois [...] sabes as Sagradas Letras, que podem fazer-te sábio para a
salvação, pela fé que há em Cristo Jesus. Toda a Escritura é divinamente
inspirada e proveitosa para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir
em justiça; a fim de que o homem de Deus tenha capacidade e pleno preparo
para realizar toda boa obra” (2Tm 3.15-17). Antes de surgir o Novo Testamento,
a igreja primitiva tinha “as Sagradas Letras”/“Escritura” — a Bíblia hebraica, o
sola Scriptura para os judeus, o que os cristãos chamam agora de Antigo
Testamento — e que um de seus fundadores considerava ser suficiente para dar
sabedoria que conduz à salvação pela fé em Cristo preparando o cristão para
toda boa obra — e não apenas umas poucas, algumas ou muitas — que Deus
lhes daria para que praticassem. Portanto, antes de ter os escritos adicionais que
hoje compõem o Novo Testamento, a igreja primitiva tinha a Palavra de Deus
suficiente em seu Antigo Testamento. Essa atitude refletia claramente o ponto de
vista do seu fundador, Jesus Cristo, que apelava constantemente à Bíblia do seu
povo, que ele citava, usava em suas argumentações, obedecia, tornava realidade
e na qual confiava. Portanto, se Jesus Cristo e a igreja primitiva exprimiam tal
confiança e dependiam da Palavra de Deus totalmente suficiente — o Antigo
Testamento —, não era de esperar que, quando a Escritura adicional viesse e
expandisse aquela Palavra, a igreja continuasse a exprimir sua confiança na
Palavra de Deus escrita totalmente suficiente — o Antigo Testamento e mais o
Novo Testamento?
Uma última objeção: “A Escritura jamais ensina sola Scriptura. Portanto, sola
Scriptura é um termo contraditório em si mesmo. Se cremos na Escritura, não
devemos crer no sola Scriptura”. A teologia evangélica se pergunta o que
62

Kreeft tem em mente quando diz que a Escritura ensina ou não ensina alguma
coisa. A Escritura, por exemplo, ensina a doutrina da Trindade articulando em
diversas palavras que Deus existe eternamente como Pai, Filho e Espírito Santo,
cada um dos quais é plenamente Deus. Contudo, existe apenas um Deus? A
Escritura não ensina claramente a doutrina da Trindade desse modo. Se for isso o
que Kreeft quer dizer, então a teologia evangélica concorda alegremente que a
“Escritura jamais ensina o sola Scriptura”. Contudo, Kreeft deverá concordar
que até mesmo a Igreja Católica crê em certas doutrinas — por exemplo, na
doutrina da Trindade — que a Escritura não ensina de modo semelhante à
doutrina descrita. Contudo, se for legítimo que a teologia católica abrace a
doutrina da Trindade pelo fato de que tal doutrina é um resumo adequado da
afirmação da Escritura sobre a natureza da Divindade, ou porque tal crença é
uma decorrência lógica de outras crenças, então, pelo menos em princípio, seria
legítimo para a teologia evangélica abraçar o sola Scriptura, uma vez que tal
crença resume adequadamente as afirmações da Escritura sobre sua natureza e
seus benefícios, ou porque tal crença é uma decorrência lógica de outras. Por
conseguinte, o argumento de que “a Escritura jamais ensina o sola Scriptura e,
portanto, a crença no sola Scriptura” é contraditória em si mesma não se
sustenta, porque tanto a teologia católica quanto a evangélica acreditam em
crenças que a Escritura não ensina, mas que são resumos ou decorrências da
Escritura e/ou de outras crenças. 63

A Escritura e sua interpretação


Uma concordância maior entre a teologia católica e a teologia evangélica se dá
na discussão do Catechism sobre a importância, a inspiração divina e a verdade
da Escritura. Embora as duas posições fundamentem de forma distinta a
importância da Escritura — a teologia católica associa intimamente a Escritura à
eucaristia, ao passo que a teologia evangélica apela à inspiração, à autoridade, à
64

suficiência, à necessidade, à clareza, ao poder e à veracidade —, as duas


insistem em seu papel vital na igreja. Além disso, a forma de o Catechism
65

apresentar a inspiração da Escritura vai ao encontro do entendimento evangélico


dessa doutrina. Deve-se ressaltar, principalmente, o excelente equilíbrio do
Catechism, ecoando 2Pedro 1.21, ao enfatizar tanto a autoria da Escritura
(“homens [autores bíblicos] falaram da parte de Deus”) e sua autoridade divina
(“conforme movidos pelo Espírito Santo”). Usando a metáfora da confluência,
da união de dois corpos de água para formar uma mesma corrente, a teologia
evangélica abraça normalmente um modelo de inspiração de “confluência”: o
Espírito Santo uniu-se aos autores bíblicos na redação da Escritura para produzir
a Palavra de Deus inspirada por ele e escrita por homens. A inspiração
“concursiva” (con = com; cursiva = escrita) é outro modelo usado pela teologia
evangélica: o Espírito Santo estava escrevendo [juntamente] com os autores
bíblicos para produzir a Escritura. Por conseguinte, eles estavam plenamente
envolvidos quando escreveram a Escritura, usando sua personalidade, suas
habilidades gramaticais, seus estilos de escrita, suas ênfases teológicas etc., e o
Espírito Santo estava plenamente envolvido também, supervisionando todo o
processo. Além disso, a teologia evangélica concorda com a proposição da
teologia católica que passa da sua afirmação sobre a inspiração da Escritura à
sua veracidade: porque a Escritura é inspirada por Deus — isto é, porque os
autores bíblicos foram supervisionados pelo Espírito Santo quando escreveram a
Escritura — seja o que for que afirmem, o Espírito Santo também o afirmou;
portanto, os escritos bíblicos ensinam a salvação “firmemente, fielmente e sem
erro”.66

Com relação à interpretação bíblica, há semelhanças e diferenças entre a


teologia católica e a evangélica. Uma das principais diferenças diz respeito ao
fundamento da abordagem que adotam para interpretar a Escritura. A teologia
evangélica, na esteira da herança teológica herdada do protestantismo, afirma a
clareza da Escritura; dessa doutrina decorre sua convicção de que a Escritura é
compreensível para os cristãos, que são também responsáveis pela tarefa de
interpretá-la e capazes de fazê-lo. A clareza da Escritura significa que ela foi
67

redigida de tal modo que seres humanos comuns, dotados da capacidade


adquirida normal de compreender a comunicação escrita e/ou oral, podem ler a
Escritura e compreendê-la, ou, se não forem capazes de compreendê-la, podem
ouvir sua leitura e compreendê-la. Homens e mulheres, jovens e idosos, pessoas
que moram na cidade e nômades do deserto, indivíduos com formação em
seminário e outros sem cultura podem ler e compreender a Bíblia.
Como podem os evangélicos afirmar tal clareza? A Escritura em si mesma se
caracteriza pelo pressuposto da inteligibilidade contínua; isto é, ela supõe que
quando a Palavra de Deus é lida/ouvida, até em contextos muito distantes do
cenário original em que foi escrita, as pessoas a compreenderão. Moisés, por
exemplo, disse que a Palavra de Deus que ele estava escrevendo para o povo de
Deus era plenamente acessível ao povo:
Porque este mandamento que hoje te ordeno não é difícil demais, nem está fora do teu alcance. Não
está no céu, para dizeres: Quem subirá ao céu por nós, e o trará, e o anunciará para nós, para que
obedeçamos a ele? Nem está do outro lado do mar, para dizeres: Quem atravessará o mar por nós, e o
trará, e o anunciará para nós, para que obedeçamos a ele? Sim, a palavra está muito perto de ti, na tua
boca e no teu coração, para que a cumpras (Dt 30.11-14).

Para o cristão, hoje, essa exortação significa que a Escritura não precisa ser um
livro obscuro e distante dele. Na verdade, toda vez que ele se senta na beira da
cama com os filhos e recita uma história da Bíblia, quando consola os amigos
que sofrem citando uma passagem que tenha memorizado, quando ouve uma
passagem bíblica lida em seu iPod a caminho de suas atividades diárias, ou
quando discute um sermão baseado na Bíblia na reunião de grupo da
comunidade, a Palavra de Deus inteligível está presente — não “fora do [...]
alcance”, mas “muito perto”.
Tal postura explica as instruções subsequentes de Moisés em relação aos seus
escritos:
Moisés escreveu esta lei e a entregou aos sacerdotes, filhos de Levi, que levavam a arca da aliança do
SENHOR, e a todos os anciãos de Israel. Moisés deu-lhes esta ordem: Ao fim de cada sete anos, no ano
da remissão, na festa dos tabernáculos, quando todo o Israel comparecer perante o SENHOR, teu Deus,
no lugar que ele escolher, esta lei será lida diante de todo o Israel, para que todos a ouçam. Reuni o
povo, homens, mulheres e crianças, e os estrangeiros dentro das vossas cidades, para que ouçam,
aprendam e temam o SENHOR, vosso Deus, e tenham o cuidado de obedecer a todas as palavras desta
lei; e para que seus filhos que não conhecem esta lei ouçam e aprendam a temer o SENHOR, vosso Deus,
todos os dias que viverdes sobre a terra que ireis possuir quando atravessardes o Jordão (Dt 31.9-13).

Moisés enfatiza a clareza da Escritura até mesmo em contextos muito distantes


do cenário original de seus escritos. Embora ele, por sua rebeldia pecaminosa,
não tenha entrado na Terra Prometida com seu povo (Nm 20.10-13), ele ordena a
leitura regular da Escritura em contextos sociais, econômicos, políticos,
religiosos e culturais certamente novos do outro lado do rio Jordão. Sua
expectativa era que o povo de Israel — homens, mulheres, crianças e viajantes
agregados a Israel — pudessem compreender a Palavra de Deus lida para eles,
onde quer que Deus os levasse. De uma perspectiva futura, o Antigo Testamento
se caracteriza pelo pressuposto da inteligibilidade contínua.
Uma expectativa semelhante caracteriza os escritos do Novo Testamento.
Abraão, fundador do povo de Israel e da fé judaica, é o exemplo por excelência
da justificação gratuita de Deus do povo pela fé independentemente das obras —
um exemplo não apenas para os judeus, mas também para cristãos gentios de
fala grega em Roma (Rm 4.22-25) e na Galácia (Gl 3.7-29) governados pelo
Império Romano. Na verdade, Paulo relata quatro episódios de pecado dos
judeus e do juízo divino — idolatria (Êx 32), imoralidade sexual (Nm 25.6-9),
pôr Deus à prova (Nm 21.4-9) e murmuração (Nm 14) — e antecipa que os
coríntios gentios seriam advertidos por esses exemplos para que não cometessem
os mesmos crimes hediondos (1Co 10.6-13). Como resume o apóstolo: “Porque
tudo o que foi escrito no passado foi escrito para nossa instrução, para que
tenhamos esperança por meio da perseverança e do ânimo que provêm das
Escrituras” (Rm 15.4). Em retrospectiva, a Escritura se caracteriza pelo
pressuposto da inteligibilidade contínua.
Acrescente a essa evidência as exortações bíblicas à igreja — a todos os seus
membros, e não apenas aos líderes — para que deem atenção à Palavra de Deus
e sejam alimentados por ela (1Pe 2.1-3; 2Pe 1.19-21) e a leiam publicamente
(1Tm 4.13), juntamente com exemplos que mostrem que foi lida e compreendida
(e.g., Ne 8; At 17.10-12). Deve-se ainda fazer uma sólida defesa da Bíblia. No
âmago disso há o princípio de Moisés: “As coisas encobertas pertencem ao S , ENHOR

nosso Deus, mas as reveladas pertencem a nós e a nossos filhos para sempre,
para que obedeçamos a todas as palavras desta lei” (Dt 29.29). Muita coisa sobre
Deus continua obscura e misteriosa para nós, mas o que ele, em sua soberania,
quis revelar a seu povo é suficientemente claro. Embora a Escritura não esgote a
categoria de coisas “reveladas”, ela certamente está aí contida. Isso significa que
a Escritura é acessível e inteligível para o povo de Deus — aí está a clareza da
Escritura.68

Essa doutrina é uma das razões pelas quais os reformadores se envolveram na


tradução da Escritura nas línguas do povo comum, motivo pelo qual os
protestantes distribuem milhares de exemplares da Escritura e por que os
evangélicos incentivam a leitura pessoal da Bíblia e os estudos bíblicos
familiares participando ativamente dessas coisas. Embora tenha havido um
movimento animador depois do Concílio Vaticano II, em que a igreja incentivou
a leitura e o estudo da Bíblia pelos católicos, isso empalidece em comparação
com a prevalência do estudo bíblico nas igrejas evangélicas, e uma razão
importante para isso é a doutrina da clareza da Escritura conforme afirmada pela
teologia evangélica.
O cânon da Escritura
No cânon da Escritura, isto é, a lista de escritos oficiais inspirados por Deus que
fazem parte da Escritura, percebe-se imediatamente semelhanças e diferenças.
Católicos e evangélicos estão de acordo em dois pontos importantes: o cânon do
Novo Testamento — composto por 27 livros (nunca houve um conflito sério
nesse sentido ) — e o reconhecimento por parte da igreja de quais escritos
69

deveriam ser incluídos no Antigo Testamento e no Novo foi resultado de um


processo histórico relativamente longo com acordos e desacordos e que foi
guiado pelo Espírito Santo.
Uma das principais diferenças entre a Igreja Católica e as igrejas protestantes
é o cânon do Antigo Testamento. O Antigo Testamento protestante consiste em
39 livros, ao passo que o dos católicos é mais extenso. Dele fazem parte os
Apócrifos, sete livros a mais — Tobias, Judite, Sabedoria de Salomão,
Eclesiástico (Sirácida), Baruque, 1Macabeus e 2Macabeus — bem como seções
adicionais aos livros protestantes de Ester e Daniel.
Essa diferença importante surgiu na igreja primitiva graças à presença de duas
versões diferentes da coleção de livros que foram escritos antes do advento de
Jesus Cristo. Por um lado, a Bíblia hebraica consistia em 22 livros (ou 24, de
acordo com um sistema de numeração diferente), distribuídos em três divisões:
Lei, Profetas e Escritos:

Lei: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio.
Profetas: Josué, Juízes-Rute (um livro), Samuel (um livro), Reis (um livro),
Jeremias-Lamentações (um livro), Ezequiel, Isaías, os Doze Profetas
Menores (um livro), Jó, Daniel, Esdras-Neemias (um livro), Crônicas (um
livro), Ester.
Escritos: Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos. 70

Por outro lado, a tradução grega da Bíblia hebraica — chamada de Septuaginta e


abreviada LXX — continha escritos adicionais que jamais fizeram parte da
Escritura judaica. Como judeu palestino bem versado na língua hebraica, Jesus
usou a Bíblia hebraica (e.g., o rolo de Isaías que ele leu na sinagoga [Lc 4.16-20]
estava escrito em hebraico), e essa coleção não incluía os livros adicionais
encontrados na LXX. Contudo, a igreja primitiva, ao se expandir pelo mundo
gentio de fala grega, usou a Septuaginta com seus escritos adicionais.
Essa situação suscita uma pergunta: qual cânon do Antigo Testamento era
reconhecido pela igreja primitiva? Será que era um cânon que refletia a
Septuaginta, de textos mais extensos, ou será que era o cânon mais curto da
Bíblia hebraica? Há evidências a favor de ambas as posições. Em favor da
primeira perspectiva há o fato de que os autores do Novo Testamento e líderes da
igreja primitiva citaram diretamente a Septuaginta em seus vários escritos.
Entende-se que tal evidência dá respaldo à ideia de endosso da igreja primitiva a
um cânon mais extenso do Antigo Testamento, inclusive com os escritos
apócrifos. Em defesa da segunda posição, há várias listas da igreja primitiva da
Escritura veterotestamentária canônica que correspondem ao cânon da Bíblia
hebraica e que negam explicitamente que os escritos apócrifos pertençam ao
cânon. Melito de Sardes, por exemplo, compôs a primeira lista existente dos
“livros da antiga aliança” (170 d.C.), que incluía todos os livros da Bíblia
hebraica, com exceção de Ester, mas não continha nenhum dos escritos
apócrifos. O cânon de Orígenes (morto em 254) correspondia ao cânon hebraico,
exceto pelo fato de que ele incluiu a Carta de Jeremias. Atanásio, cuja Thirty-
71

ninth Easter letter [Trigésima nona carta da Páscoa] (367 d.C.) apresenta uma
lista de livros do Novo e do Antigo Testamentos, deu prosseguimento a essa
tradição de se espelhar no cânon hebraico (embora tenha incluído a Carta de
Jeremias e Baruque em sua lista do Antigo Testamento). Além disso, Atanásio
rejeitou a “Sabedoria de Salomão, o Sirácida [Eclesiástico], Ester, Judite e
Tobias”, embora tenha ressaltado que esses livros, ainda que “não estejam
efetivamente incluídos no cânon”, haviam sido “indicados pelos Pais [líderes da
igreja primitiva] para leitura por aqueles que haviam se juntado há pouco a nós e
que desejam se instruir no mundo da santidade”. Cirilo de Jerusalém listou 22
72

livros do Antigo Testamento que correspondiam aos escritos da Escritura


hebraica e advertiu que “em nada se relacionam com os escritos apócrifos.
Estudem com fervor apenas os que lemos abertamente na igreja. Muito mais
sábios e piedosos do que vocês foram os apóstolos, e os bispos de antigamente,
os presidentes da igreja que nos legaram esses livros. Sendo vocês, portanto,
filhos da igreja, não transgridam seus estatutos”. 73

Em 382 d.C., o bispo de Roma incumbiu Jerônimo de fazer uma nova


tradução em latim da Bíblia. Para seu trabalho no Antigo Testamento, Jerônimo
começou pela Bíblia hebraica, e não pela Septuaginta. Em seu prefácio a suas
traduções dos livros de Samuel e de Reis, ele elaborou uma lista da Escritura
canônica. Os escritos correspondiam aos da Bíblia hebraica; esses, e apenas
esses, disse ele, eram Escritura. E acrescentou: “Este prefácio às Escrituras
poderá servir de introdução geral [“capacete”, no original] a todos os livros que
traduzimos [“transformamos”, no original] do hebraico para o latim, de modo
que tenhamos certeza de que aquilo que não for encontrado em nossa lista deve
ser situado entre os escritos apócrifos”. Esses livros não canônicos do Antigo
74

Testamento, de acordo com Jerônimo, eram Sabedoria (de Salomão), o Livro de


Jesus ben Siraque (Eclesiástico), Judite, Tobias, 1Macabeus e 2Macabeus. Em 75

outro lugar, Jerônimo descarta Baruque e, embora tenha traduzido as partes


adicionais de Daniel da LXX, ele as colocou no apêndice do livro. Além disso,
ao comentar Sabedoria de Salomão e Eclesiástico, Jerônimo disse qual era o
propósito dos Apócrifos: “Como na época a igreja lia Judite, Tobias e os livros
de Macabeus, mas não os admitia entre as Escrituras canônicas, que esses livros
sejam então lidos para a edificação do povo, e não para que confiram autoridade
às doutrinas da igreja”. É importante observar que Jerônimo prosseguiu na
76

tradição que havia sido traçada a partir de Melito e da qual faziam parte líderes
da igreja como Orígenes, Cirilo de Alexandria e Atanásio. 77

A intervenção decisiva que levou a igreja a incluir os escritos apócrifos no


cânon do seu Antigo Testamento foi obra de Agostinho, para quem “um e o
mesmo Espírito” havia falado por meio dos autores da Bíblia hebraica e dos
tradutores da Septuaginta. Deve ter sido esse o caso, supôs Agostinho, uma vez
que os apóstolos citaram tanto a Bíblia hebraica quanto a Septuaginta em seus
escritos do Novo Testamento. Portanto, Agostinho adotou a perspectiva
apostólica sobre o assunto: “Eu também, segundo a minha capacidade, e
seguindo as pegadas dos apóstolos, os quais citaram os testemunhos proféticos
de ambos, isto é, da Bíblia hebraica e da Septuaginta, creio que ambas devem ser
usadas com igual autoridade, já que são uma só e também divinas”. 78

Em uma série de cartas trocadas com Jerônimo, Agostinho insiste com o


colega para que traduza o Antigo Testamento em latim tomando por base a
Septuaginta, e não a Bíblia hebraica. Jerônimo cede ao pedido do amigo e inclui
as traduções dos escritos apócrifos em sua Vulgata Latina. A partir do momento
em que essa nova Bíblia se torna amplamente conhecida, seu Antigo Testamento,
incluídos os Apócrifos, se tornaram a Bíblia da igreja. Pouco tempo depois, esse
cânon ampliado do Antigo Testamento foi ratificado por três concílios regionais:
o Concílio de Hipona (393), o Terceiro Concílio de Cartago (397) e o Quarto
Concílio de Cartago (419). Portanto, o Antigo Testamento com os escritos
apócrifos (incluindo Tobias, Judite, adições a Ester, 1Macabeus, 2Macabeus, o
Livro da Sabedoria, Eclesiástico, Baruque e os acréscimos a Daniel), juntamente
com o Novo Testamento, seriam a Escritura canônica da igreja.
Essa perspectiva seguiu sem contestação significativa até a Reforma do século
16. Impulsionada pelo humanismo — um movimento cultural e educacional
significativo do século 14 ao 16 que promoveu a eloquência da fala e da escrita e
defendeu o retorno às fontes clássicas da sociedade ocidental —, a igreja
redescobriu seus escritos fundamentais: o Antigo Testamento hebraico, o Novo
Testamento grego e os escritos da igreja primitiva. A diferença entre a Bíblia
hebraica mais sintética e o Antigo Testamento ampliado da Bíblia latina se
tornou um problema e suscitou a seguinte questão: em quais dessas duas versões
o Antigo Testamento da igreja deveria se basear? Além disso, a antiga distinção
de Jerônimo entre os escritos canônicos e os Apócrifos veio novamente à tona,
bem como sua alegação de que os Apócrifos poderiam ser lidos para edificação,
mas não autorizavam a igreja a formular doutrinas, levou a outra indagação: se a
igreja houvesse apelado a um escrito apócrifo para justificação de uma de suas
crenças ou práticas, deveria ela abrir mão dessas doutrinas e interromper tais
práticas? Assim, por exemplo, se a base para a crença da igreja na doutrina do
purgatório e na prática de orar pelos mortos for o escrito apócrifo de 2Macabeus
(12.38-45), deveria a igreja continuar a afirmar tais doutrinas?
Os reformadores protestantes, a começar por Martinho Lutero, diziam que o
Antigo Testamento da igreja deveria se basear na versão mais curta da Bíblia
hebraica e não deveria incluir os escritos apócrifos simplesmente porque eles
constavam da Septuaginta. Foi fundamental para sua decisão o fato de que a
Escritura judaica, com seus 22 (ou 24) livros, fora a Palavra de Deus usada por
Jesus e seus discípulos. Além disso, alguns dos escritos apócrifos continham
79

detalhes históricos ou cronológicos incorretos, e muitos deles não eram tidos


como confiáveis pela igreja primitiva. Ao recorrer à clássica distinção de
Jerônimo, os reformadores insistiam que a igreja deveria apelar somente à
Escritura canônica como fundamento para suas doutrinas e práticas. Como os
apócrifos não eram canônicos, não poderiam ser usados como base para as
crenças da igreja. Por conseguinte, uma das principais diferenças entre a Igreja
Católica e a nascente igreja protestante era o cânon do Antigo Testamento.
A Igreja Católica reagiu com veemência a esse desafio protestante às
Escrituras canônicas. No Concílio de Trento (1546), a igreja afirmou que “se
alguém não recebe como sagrados e canônicos esses livros, em todas as suas
partes, conforme lidos pela Igreja Católica e contidos na antiga edição da
Vulgata Latina, rejeitando de forma consciente e deliberada as tradições
mencionadas, que seja anátema [amaldiçoado]”. Assim, os protestantes foram
80

ameaçados de condenação pela igreja por adotarem uma Bíblia sem os escritos
apócrifos. Essa condenação gerou outra diferença maior em relação à versão
oficial da Escritura canônica: com base na decisão do Concílio, a Vulgata Latina
passou a ser a Bíblia oficial da Igreja Católica. Embora a teologia protestante
não promovesse uma versão oficial, sua prática sempre consistiu em apelar à
Bíblia hebraica e ao Novo Testamento grego.
A oposição insistente do catolicismo a essa reformulação protestante do cânon
da Escritura (o Antigo Testamento, especificamente) com frequência parte do
princípio de que a Igreja Católica foi divinamente apontada para ser a
responsável pela determinação do cânon. Kreeft afirma: “A igreja (apóstolos e
santos) escreveu o Novo Testamento, e a igreja (bispos subsequentes) definiu seu
cânon”. Trata-se de uma perspectiva equivocada por pelo menos dois motivos:
81

em primeiro lugar, ignora o desenvolvimento real do reconhecimento do cânon,


especificamente durante os primeiros cinco séculos da igreja. Negligencia-se
com frequência o fato de que Agostinho rompeu com uma tradição bem
desenvolvida representada por seu contemporâneo Jerônimo, que não incluía os
escritos apócrifos do cânon do Antigo Testamento e, além disso, não leva em
conta que os concílios responsáveis pela aprovação desse cânon mais extenso do
Antigo Testamento eram concílios regionais — e não ecumênicos — e que
refletiam a influência de Agostinho. Em segundo lugar, há uma questão mais
82

problemática que decorre do segundo axioma do sistema católico, a interconexão


Cristo-Igreja, segundo a qual Cristo delegou sua autoridade à Igreja Católica
para ser, nesse caso, a responsável pela fixação do cânon da Escritura. Como
esse axioma já foi criticado (cap. 1), basta apenas um comentário, um lembrete
de John Webster: “A Escritura não é a Palavra da igreja; a igreja é a igreja da
Palavra [...]. A igreja existe no espaço constituído pela Palavra”. A teologia
83

evangélica reprova duramente a insistência da Igreja Católica em priorizar a


igreja em detrimento da Palavra de Deus. Tal insistência não leva em conta a
Escritura judaica já redigida anteriormente, que profetizava um derramamento
inédito, novo e sem precedentes do Espírito Santo, evento que, historicamente,
84

deu lugar ao nascimento da igreja. Em outras palavras, a Escritura precedeu


85

efetivamente a igreja no tempo e a trouxe à existência, e não o contrário. Além


disso, apesar de inúmeras negativas em contrário, tal insistência eleva a Igreja
Católica acima da Escritura. Ela se torna a instância determinadora da Palavra de
Deus, e não a beneficiária agradecida dela. Contudo, se a revelação divina é um
ato livre do Deus de graça, como pode a igreja se posicionar de qualquer outro
modo, senão como beneficiária agradecida dessa graça divina depositada na
Escritura?
A interpretação oficial da Escritura
Outra diferença crucial entre a teologia católica e a teologia evangélica no
âmbito da Escritura diz respeito à interpretação oficial da Bíblia. A Igreja
Católica insiste que a prerrogativa de determinar a interpretação adequada e
oficial da Escritura pertence exclusivamente ao seu Magistério, ou ofício de
ensino (constituído pelo papa e pelos bispos). Essa foi uma decisão tomada em
resposta ao crescente movimento protestante pelo Concílio de Trento (1546),
segundo o qual “ninguém que confie em seu próprio julgamento deverá, no que
diz respeito à fé e à moral próprias à edificação da doutrina cristã, distorcer a
Escritura Sagrada de acordo com seus próprios conceitos, ousar interpretá-la de
forma contrária ao sentido que a santa madre igreja, a quem pertence o
julgamento de seu verdadeiro sentido e interpretação, propôs e ainda propõe...”. 86

Portanto, a Igreja Católica diz ter direito exclusivo sobre a interpretação da


Escritura.
As igrejas evangélicas não têm um Magistério que julgue a interpretação da
Escritura, se é autêntica e autorizada. Contudo, elas insistem com todos os
crentes para que participem de forma cautelosa e responsável da interpretação da
Bíblia observando princípios sólidos de interpretação (inclusive os que foram
destacados no Catechism) sob a orientação do Espírito Santo (conforme afirma
também o Catechism) e com ajuda de líderes divinamente ordenados e
capacitados (1Tm 3.2; 5.17; Tt 1.9) ou pastores-mestres (Ef 4.11).
Diferentemente da estratégia de interpretação católica, que procura discernir um
quádruplo sentido na Escritura, os evangélicos seguem uma herança protestante
que converge para o significado histórico-gramático-(salvífico) da Escritura e
com uma preocupação com a tipologia, especialmente se tal tipologia vê nas
pessoas, nos acontecimentos, nas instituições etc. do Antigo Testamento um
prenúncio de cumprimento posterior na pessoa e obra de Jesus Cristo.
São inúmeras as razões para que a teologia evangélica trate dessa maneira a
interpretação bíblica. Conforme discutimos acima, essa estratégia de
interpretação bíblica está alicerçada na doutrina da clareza da Escritura. Ela
reflete também uma profunda desconfiança em relação ao quádruplo sentido da
Escritura. A abordagem católica está fundamentada na interdependência
natureza-graça: as palavras da Escritura — ou, para ser mais preciso, as coisas
para as quais essas palavras apontam (o reino da natureza) — apresentam
sentidos ocultos que podem comunicar graça. Já demonstramos a falsidade do
axioma natureza-graça. A história mostra que Martinho Lutero, embora tenha
sido formado nessa escola de interpretação, rejeitou-a porque o método,
conforme praticado na Igreja Católica, enfatizava de tal forma o sentido
espiritual — os sentidos alegóricos, morais (tropológicos) e anagógicos — que o
sentido literal ficava obscurecido ou era negligenciado. Lutero defendeu o
sentido literal, ou “gramatical e histórico”, que é “o mais elevado, o melhor, o
87

mais forte, em suma, a substância, a natureza e fundação da Santa Escritura em


toda a sua inteireza”. De fato, Lutero insistia que os intérpretes da Bíblia
88

“deveriam se empenhar, tanto quanto possível, para chegar a um significado


simples, verdadeiro e gramatical das palavras do texto”. De igual modo, João
89

Calvino rejeitava a interpretação alegórica da Escritura insistindo, em vez disso,


“que o verdadeiro significado da Escritura é o sentido natural e óbvio [não
oculto]”, o sentido que os autores bíblicos quiseram que seus leitores
90

compreendessem. Portanto, a tarefa do intérprete é discernir o propósito do


autor: “Sua única tarefa consiste, na prática, em abrir a mente do autor que
deseja explicar”. Para instruir o número cada vez maior de protestantes, Lutero
91

e Calvino defendiam princípios de interpretação bíblica que guiassem os crentes


ao entendimento apropriado da Escritura: familiaridade com a Carta de Paulo
aos Romanos, uma sólida estrutura teológica, uma visão cristocêntrica, atenção
92

ao contexto, cultivo da analogia da fé (interpretação de qualquer passagem em


conformidade com toda a Escritura) e se empenhar para ser o tipo certo de
intérprete no que diz respeito à santidade, humildade, disposição para aprender e
obedecer, persistência etc. Além disso, os dois reformadores acentuaram a
necessidade de iluminação do Espírito Santo para compreender corretamente a
Escritura. Lutero e Calvino também pregaram a Palavra de Deus e escreveram
comentários para sua correta interpretação, responsabilidades que lhes cabiam
como pastores de suas igrejas. Ao defender a clareza da Escritura e levar a sério
seu ofício de pastores-mestres preocupados em ajudar os cristãos a compreender
a Palavra de Deus corretamente, os reformadores romperam com a posição que
prevalecia havia séculos na Igreja Católica do quádruplo sentido da Escritura e a
prerrogativa exclusiva de interpretação do Magistério da igreja.
Contudo, a rejeição evangélica do Magistério não para por aí. Ao longo da
história, os protestantes contestaram o suposto respaldo bíblico da Igreja
Católica ao ofício do ensino autorizado que gira em torno dos seus bispos com o
papa à frente. Como tenho outras coisas a dizer a esse respeito mais adiante, não
farei nenhum comentário aqui.
Em suma, as teologias católica e evangélica sobre a doutrina da Escritura
apresentam áreas de concordância e discordância. Com relação aos pontos em
que há concordância, ambas as teologias afirmam a necessidade da revelação
divina/especial (em face da insuficiência da revelação geral para a salvação); da
natureza gratuita, concedida como dom, e o caráter progressivo dessa revelação;
a operação em conjunto das ações e das palavras divinas na constituição da
revelação divina; a importância, a inspiração divina e a veracidade da Escritura;
bem como alguns princípios importantes da interpretação bíblica. As duas
teologias colidem, porém, em relação a várias questões fundamentais: (1) a
transmissão da revelação divina: a teologia católica insiste nos dois modos da
Escritura registrada por escrito e da Tradição da igreja, ao passo que a teologia
evangélica defende o sola Scriptura (somente a Escritura); (2) a interpretação da
Escritura: a teologia católica se concentra no quádruplo significado da Escritura
e insiste que o Magistério da igreja tem prerrogativa exclusiva de sua
interpretação, ao passo que a teologia evangélica ressalta a clareza da Escritura e
segue uma estratégia gramatical-(salvífica) e histórico-tipológica para discernir o
significado da Escritura; e (3) o cânon do Antigo Testamento: a teologia católica
inclui os escritos apócrifos e adições ao seu cânon, enquanto a teologia
evangélica afirma que esses escritos adicionais não são inspirados, oficiais e
totalmente verdadeiros.

A doutrina da fé: a resposta humana a Deus (seção 1,


capítulo 3)
A resposta adequada e deliberada à revelação divina é a fé, o Catechism trata, a
seguir, da doutrina da fé. Ele realça o papel instrumental da fé: pela fé, o
indivíduo submete o intelecto e a vontade a Deus. Em face desse conceito de
submissão, a expressão bíblica da “obediência da fé” (Rm 1.5; 16.26) ganha
mais ênfase. Exemplos dos que se submeteram livremente à palavra que ouviram
são Abraão e Maria. A definição de fé acentua a ideia de adesão pessoal a Deus,
que é também “um consentimento livre a toda a verdade que Deus revelou”. O 93

objeto da fé do cristão é Jesus Cristo, e a convicção cristã é suscitada pelo


Espírito Santo. Especificamente, a fé:

é uma graça/dom: é “dom de Deus, uma virtude sobrenatural por ele
infundida”; 94

é um ato humano: “o intelecto e a vontade humanos cooperam com a graça


divina”; 95

está associada ao entendimento: a fé não é contrária à razão; ela vai além da


razão com o objetivo de produzir certeza, porque está alicerçada na Palavra
verdadeira de Deus: a fé busca entendimento à medida que o cristão cresce
no conhecimento de Deus e em sua revelação; ela está de acordo, e não em
conflito, com a ciência; 96
é livre: não pode ser imposta; 97

é necessária: a fé em Cristo é necessária à salvação; 98

pode ser perdida: como a fé é um dom gratuito, o ser humano pode perdê-
la; para impedir que isso aconteça, portanto, a fé deve se alimentar da
Palavra de Deus; ela requer “trabalho por meio da caridade” tendo seu
alicerce na fé da igreja; 99

é um começo: ela é o aperitivo da visão face a face de Deus; portanto, a fé é


o começo da vida eterna; 100

não está nas proposições, mas nas realidades que elas expressam: porque a
revelação divina é a um só tempo proposicional (inclui tanto a Tradição
transmitida oralmente quanto o registro escrito da Escritura) e pessoal
(revelando Deus, com quem as pessoas podem se relacionar intimamente),
aquilo em que o cristão crê em última análise é a realidade de Deus dada a
conhecer por meio das doutrinas da fé. 101

Contudo, a fé é mais do que uma questão individual, um ato pessoal, porque


ninguém pode crer somente. Na verdade, a fé é recebida de outros,
especificamente, da Igreja Católica: “É a igreja que crê em primeiro lugar, e
desse modo sustenta, alimenta e conserva minha fé”. Em parte alguma a
102

natureza eclesial da fé fica mais evidente do que no sacramento do batismo. À


criança que está sendo batizada, a igreja concede fé. Ao adulto que é batizado, o
sacerdote faz a pergunta: “O que você deseja da igreja de Deus?”. A resposta:
“Fé”. Por conseguinte, uma das ricas metáforas da igreja é que ela é mãe:
103

“Cremos que a igreja é mãe do nosso novo nascimento; não cremos na igreja
como se fosse ela autora da nossa salvação”. É a Igreja Católica que, do
104

começo ao fim, confessa essa fé herdada dos apóstolos.

Avaliação evangélica
Essa ideia de fé guarda semelhanças com sua contraparte evangélica, mas
evidencia também várias diferenças. Com relação às semelhanças, a teologia
evangélica e a católica afirmam igualmente que a fé é adesão pessoal, uma
disposição de confiar, que é, de fato, um ato humano vinculado ao entendimento
(especialmente alicerçado na Palavra de Deus), que é livre (sem coerção) e
necessário à salvação. Além disso, o objeto da fé é Deus, conforme ele se
revelou, e seu caminho de salvação por meio do evangelho, que foi comunicado
ao ser humano decaído por intermédio da verdade proposicional expressa
mediante vários gêneros (narrativa, poesia, cartas, profecia etc.) na Escritura (e
não Escritura e Tradição). Essa revelação serve efetivamente para criar uma
relação pessoal entre o Deus da Revelação e da Redenção e os que têm fé nele.
Em relação às diferenças, a teologia evangélica enfatiza a influência dos dois
axiomas do sistema católico (a interdependência natureza-graça e a interconexão
Cristo-Igreja) na formulação da doutrina e da fé católica. Aliado a esse primeiro
axioma, a teologia católica ressalta que a natureza humana — intelecto e vontade
— é capaz de cooperar com a graça divina de tal modo que a fé é um ato
humano, mas também pode deixar de cooperar com a graça, de modo que perca
a fé. Além disso, a teologia católica salienta que a graça divina recebida pela fé é
infundida na natureza humana para elevar e aperfeiçoar essa natureza. Com base
no segundo axioma, a teologia católica destaca o fato de que a Igreja Católica,
como encarnação permanente de Cristo, faz a mediação entre a natureza e a
graça de tal maneira que a igreja é a primeira a crer e a conceder, efetivamente, a
fé (o reino da graça) ao ser humano (reino da natureza). A crítica evangélica
desses dois axiomas já foi feita, o que significa que os pontos do sistema católico
da doutrina da fé que estão baseados nesses axiomas não têm fundamento.
Com relação a críticas específicas, a teologia evangélica concorda que a fé é
um dom de Deus (e não uma disposição arraigada ou reação natural), mas nega o
conceito de que seja infundida por Deus. Em sua discussão sobre o tema, o
Catechism apela à confissão de Pedro sobre a identidade de Jesus, o Cristo, o
Filho do Deus vivo, bem como o subsequente comentário de Jesus de que “essa
revelação não veio de ‘carne e sangue’, mas do ‘meu Pai que está no céu’”. Ao 105

que tudo indica, o Catechism tira essa implicação da seguinte passagem: “A fé é


um dom de Deus, uma virtude sobrenatural por ele infundida”. Na verdade,
106

porém, Jesus não trata da fé de Pedro como um dom, mas respalda a revelação
divina que Pedro recebeu; a revelação da identidade de Jesus, e não a fé de
Pedro, era um dom divino. Portanto, é difícil ver quanto essa passagem se
relaciona com a fé como dom. Além disso, a teologia evangélica insiste que,
antes de alguém expressar sua fé, a graça dos atos poderosos de Deus de
convicção do pecado, vocação, justificação, regeneração, adoção e união com
Cristo possibilita que um povo endurecido e rebelde, que agora foi efetivamente
chamado, seja declarado inocente e justo e receba uma nova natureza espiritual
receptiva a Deus, seja acolhido na família de Deus e, unido com Cristo, responda
verdadeiramente com fé a essa obra divina da graça. De fato, Paulo diz: “Porque
pela graça sois salvos, por meio da fé, e isto não vem de vós, é dom de Deus;
não vem das obras, para que ninguém se orgulhe” (Ef 2.8,9). Paulo diz que toda
essa realidade — salvação pela graça por meio da fé — é um dom de Deus, e
não apenas fé. Conforme discutiremos mais adiante, a graça não é uma coisa
infundida nas pessoas; tampouco a fé. Em vez disso, ela é a bondade de Deus
manifesta a todos os que merecem apenas a condenação. Essa bondade divina
suscita e permite uma resposta positiva ao evangelho e fé nele, resultando na
salvação.
Um segundo ponto importante de discordância diz respeito à fé salvadora: é
possível perdê-la? A teologia católica acredita que sim. Há uma corrente da
teologia evangélica que também pensa assim; outra corrente — à qual pertenço
— afirma que a fé genuína é permanente e não pode ser abandonada. O
Catechism dá o exemplo de “certas pessoas que naufragaram na fé” (1Tm
1.18,19) em apoio à possibilidade da perda da fé. Contudo, o exemplo de
107

Himeneu, uma das pessoas citadas na passagem sobre o naufrágio na fé (v. 20),
não parece convincente, já que ele é um falso mestre, “dizendo que a
ressurreição já havia ocorrido”; de fato, a doutrina herética de Himeneu
“[perverteu] a fé em alguns” (2Tm 2.17,18). Em seu comentário apostólico sobre
a situação, Paulo explica: “Todavia, o firme fundamento de Deus permanece e
tem este selo: O Senhor conhece os seus, e: Aparte-se da injustiça todo aquele
que profere o nome do Senhor” (v. 19). Em outras palavras, Paulo estabelece um
contraste entre os que pertencem genuinamente a Cristo (e.g., aqueles cuja fé foi
abalada pelo falso ensino) e os que são cristãos nominais apenas e praticam a
iniquidade (e.g., Himeneu, que propagava falsos ensinamentos). Por
conseguinte, Himeneu não é um exemplo confiável de cristão que perdeu a fé.
Outros supostos exemplos de cristãos que perderam a fé poderiam ser usados
em defesa dessa posição: Ananias e Safira (At 5.1-11); os seguidores de Jesus
que profetizavam, expeliam demônios e realizavam milagres em nome de Jesus
(Mt 7.21-23); os crentes descritos na Carta aos Hebreus como “aqueles que uma
vez foram iluminados, experimentaram o dom celestial e se tornaram
participantes do Espírito Santo, e experimentaram a boa Palavra de Deus e os
poderes do mundo vindouro, e caíram, [esses não podem ser] outra vez
renovados para o arrependimento; visto que eles estão crucificando de novo o
Filho de Deus e expondo-o à vergonha pública” (Hb 6.4-6) e outros.
Mas será que essas passagens afirmam, de fato, que as pessoas ali descritas
perderam sua salvação? No caso de Ananias e Safira, Lucas não dá detalhes
suficientes para que possamos saber se eram crentes genuínos ou não. Por um
lado, eles eram crentes dedicados à prática de um pecado horrível que ameaçava
subverter a oferta sacrifical que produzia uma unidade notável na igreja
primitiva (conforme descrito em At 2.42-47; 4.32-37); assim, Deus os retirou
mediante uma intervenção severa para evitar que seu exemplo se espalhasse
como câncer na comunidade. Por outro lado, o casal havia se associado à igreja
108

de Jerusalém e procurava imitar a generosidade manifesta por aquela


comunidade; contudo, essa fraude chocante mostrou que eles não eram
realmente seguidores de Cristo.
No exemplo seguinte, embora os seguidores de Jesus praticassem sinais
poderosos e maravilhas em seu nome, Jesus explica que no dia do juízo ele
“[dirá] claramente: nunca vos conheci; afastai-vos de mim, vós que praticais o
mal” (Mt 7.23). Não eram pessoas de fé genuína.
Com relação às pessoas citadas na Carta aos Hebreus, à primeira vista a
descrição delas pode dar a entender que se tratava de cristãos reais, mas o
comentário do autor a seus leitores (Hb 6.9,10) nos afasta dessa conclusão: “Mas
acerca de vós, ó amados, ainda que falemos assim, estamos certos de coisas
melhores...”. Mas que coisas poderiam ser melhores do que ter a iluminação,
saborear o dom celestial, partilhar do Espírito, experimentar a bondade da
Palavra de Deus e o poder da era por vir? O autor prossegue: “... estamos certos
de coisas melhores — coisas relativas à salvação. Porque Deus não é injusto para
se esquecer do vosso trabalho e do amor que mostrastes para com o seu nome,
pois servistes os santos, e ainda os servis”. Em outras palavras, o autor primeiro
descreve as pessoas que participaram da igreja com grande bênção, tiveram
respostas às suas orações, experimentaram o mover do Espírito Santo em ação
na comunidade e coisas semelhantes, mas, como não eram cristãos genuínos,
caíram — não da fé salvadora (que nunca tiveram), mas da convicção religiosa
que um dia os atraiu à igreja. No caso dos seus leitores, o autor está convencido
de que sua fé é verdadeira, resultando em salvação, conforme evidenciado pelo
fruto persistente de sua vida.
Uma passagem que ajuda a compreender esse fenômeno é 1João 2.19: “Eles
saíram dentre nós, mas não eram dos nossos, pois se fossem dos nossos teriam
permanecido conosco; mas todos eles saíram, para que se manifestasse que não
são dos nossos”. O que o apóstolo quis dizer pode ser esquematizado e
personalizado em relação aos membros da igreja de duas maneiras, uma positiva
e outra negativa. De maneira positiva:

Se são pessoas que estão em nosso meio (“dentre nós”) — isto é, se têm fé
salvadora —, então elas continuarão conosco; isto é, permanecerão de
maneira fiel na comunidade da igreja até o fim.
Sua fé é salvadora.
Portanto, você permanece fielmente conosco na igreja.

De forma negativa:

Se foram pessoas que saíram do nosso meio, não eram “dos nossos” — isto
é, não tinham a mesma fé salvadora.
Você não tem fé salvadora.
Portanto, sairá do nosso meio — você sairá da comunidade da igreja.

Especificamente, a fé salvadora, por definição, persevera. Um elemento


constitutivo da fé genuína é a perseverança. Quem não tem fé genuína acabará
109

caindo. Isso porque sua fé não era fé salvadora, mas uma fé espúria; não é da
salvação que se afastam, mas da fé religiosa que um dia tiveram. Diferentemente
disso, os que têm fé salvadora no evangelho de Jesus Cristo serão cristãos até o
fim. É claro que tal perseverança não depende exclusivamente deles e de seus
melhores esforços de permanecerem fiéis. Na verdade, “sois protegidos pelo
poder de Deus, mediante a fé, para a salvação preparada para se revelar no
último tempo” (1Pe 1.5). O poder protetor de Deus operando por meio da fé
diária e consistente desses fiéis preserva-os em seu futuro, enquanto aguardam a
salvação.
Como a salvação não pode ser perdida depois de genuinamente obtida, a fé
salvadora não pode ser perdida. Esse é o ensinamento consistente da Escritura.
Cristo prometeu que não perderia nenhum de seus seguidores (Jo 10.27-29; 6.37-
40) e sua intercessão permanente por eles resulta em sua salvação final (Hb
7.25). O Espírito Santo selou os crentes verdadeiros, e sua marca serve de
garantia da obra divina de preservação da sua vida (2Co 1.22; 3.18; Ef 1.13,14;
4.30), e seu testemunho interno mostra que são verdadeiramente filhos de Deus
(Rm 8.16). Para aqueles que têm o Filho de Deus, sua Palavra promete vida
eterna, dando a eles a segurança de que tal é sua posse (1Jo 5.11-13); de fato,
não há nada que possa separar o cristão do amor de Deus em Jesus Cristo (Rm
8.31-39). Além disso, a fidelidade perseverante dos crentes genuínos é coerente
com sua fidelidade a Deus e está nela fundamentada (1Co 1.9; Fp 1.6). Foi Deus
quem os escolheu (Rm 8.32; Ef 1.4), justificou (Rm 3.21-31; 8.1), regenerou (Jo
3.1-8), adotou (Rm 8.14,15; Gl 4.5,6) e os uniu a Cristo (Rm 6.1-11), que
também os batizou com o Espírito Santo em seu corpo (1Co 12.13).
Um último contraste importante se dá entre a visão católica de que a fé vem
de outros, especialmente da Igreja Católica, e a visão evangélica de que a fé é
uma responsabilidade pessoal que, embora ajudada e alimentada pela igreja, não
provém dela. Conforme já observamos, a visão católica depende de pressupostos
em segundo plano vinculados à interconexão Cristo-Igreja. Além disso, uma
fragilidade do Catechism na discussão desse ponto é sua falta de respaldo
bíblico. Sua alegação de que a igreja é a mãe dos cristãos porque eles
“receberam a vida de fé através da igreja” — especificamente, por meio da
administração do batismo pela igreja — é certamente uma parte importante da
110

Tradição da igreja; em meados do terceiro século, Cipriano, bispo de Cartago (no


norte da África), disse: “Não pode ter Deus por Pai aquele que não tem a igreja
por mãe”. Embora a Escritura recorra a uma imagem feminina muito explícita
111

para a igreja — ela é a noiva de Cristo (2Co 11.1-4; Ef 5.25-33; Ap 19.7; 21.2,9;
22.17) —, ela não emprega a metáfora de mãe.
Ao mesmo tempo, a teologia evangélica não se furta necessariamente à
imagem da igreja-mãe, contanto que seja compreendida sob um aspecto
específico. Por exemplo, João Calvino citou o dictum de Cipriano ao defender
112

a necessidade da igreja, “em cujo seio Deus se alegra em reunir seus filhos, não
apenas para que sejam alimentados por sua ajuda e ministério enquanto forem
bebês e crianças, mas também para que sejam guiados por seu cuidado maternal
até que amadureçam e alcancem, por fim, o objetivo da fé”. Ele insistiu com os
113

crentes para que conheçam a igreja como sua mãe, “pois não há outra maneira de
entrar na vida, a não ser que essa mãe nos conceba em seu útero, nos alimente
em seu seio [...]. Nossa fraqueza não nos permite que abandonemos sua escola
até que sejamos alunos por toda a vida. Além disso, longe do seu seio não se
pode ter esperança de qualquer perdão de pecados ou de qualquer salvação [...].
Deixar a igreja é sempre desastroso”. 114

É evidente que Calvino não estava promovendo o conceito de mãe de todos os


crentes conforme defendido pela Igreja Católica. Na verdade, pode-se dizer que
a discussão por ele proposta tinha como objetivo corrigir a ideia católica cujo
foco era Maria. Para Calvino, o objetivo da metáfora da igreja-mãe é o
ministério da Palavra de Deus conforme pregada pelos pastores da igreja e sua
administração dos sacramentos, cujo poder e eficácia são obra do Espírito Santo.
Contudo, a autoridade desses pastores não é como a do Magistério na Igreja
Católica; sua autoridade é ministerial. É para a natureza ministerial do ofício
pastoral que Paulo chama a atenção da igreja de Corinto da seguinte forma:
“Quem é Apolo? E quem é Paulo? São apenas servos por meio de quem crestes,
conforme o Senhor concedeu a cada um” (1Co 3.5, grifo do autor) — e não de
quem receberam graça para que tivessem fé. Essa mesma autoridade ministerial
é enfatizada para Apolo em outro contexto: “Quando ali chegou, auxiliou muito
os que, pela graça, haviam crido” (At 18.27, grifo do autor) — não de quem
receberam graça para ter fé. A igreja, mãe dos cristãos, quando entendida na
condição daquela que serve como ministra, ungida pelo Espírito, da graça de
Deus pela pregação do evangelho e pela celebração dos sacramentos, tem seu
lugar na estrutura teológica evangélica.
Em suma, a doutrina da fé encontra alguma sobreposição entre a teologia
católica e a evangélica: a fé é adesão pessoal, uma disposição para confiar; ela
está associada à livre (não forçada) compreensão, necessária à salvação e
direcionada para Deus, que é seu objeto, e aquele a quem os crentes são reunidos
em uma relação pessoal. Contudo, há também diferenças fundamentais: fé
infundida (teologia católica) versus fé como virtude não infundida vinculada aos
atos gratuitos de Deus de convicção de pecado, de vocação, justificação,
regeneração, adoção e união com Cristo (teologia evangélica); a possibilidade da
perda da fé e a relação da fé com a igreja.
1
Edição em português: Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Loyola, 1999).
2
O papa deu sua aprovação em 25 de junho de 1992 e promulgou o Catechism em 11 de outubro do
mesmo ano em sua constituição apostólica Fidei Depositum, que pode ser acessada neste endereço:
http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/apost_constitutions/documents/hf_jp-ii_apc_19921011_fidei-
depositum.html.
3
Depois de traduzido da versão original francesa em 1992 para o texto latino oficial em 1997, o
Catechism passou por algumas revisões em suas traduções, inclusive no texto em inglês em 1997.
4
Este livro não discutirá ou avaliará a quarta parte do Catechism.
5
Quando cito as seções do Catechism em que há citações bíblicas, elas serão tomadas da Revised
Standard Version ou da New Revised Standard Version, mas sem qualquer indicação de que versão se trata.
6
Todas as citações do Catechism serão abreviadas com as letras CCC e trarão o número do parágrafo da
referência, e não o número da página. Os números dos parágrafos são os mesmos para todas as edições do
Catechism, mas os números das páginas variam. Para mais explicações, veja novamente meus comentários
no penúltimo parágrafo da Introdução a este livro.
7
É interessante observar que o Catechism, em sua discussão dessas provas, não cita o argumento
ontológico, uma das provas clássicas e consagradas da existência de Deus.
8
CCC 36; a citação é do Concílio Vaticano I, Dei Filius 2; há também referências ao Concílio Vaticano
II, Dei Verbum 12.
9
CCC 36; a citação é do Concílio Vaticano I, Dei Filius 2; há também referências ao Concílio Vaticano
II, Dei Verbum 12.
10
Concílio Vaticano II, Dei Verbum 6 (VC II-1, 752-753); a citação é do Concílio Vaticano I, Dei Filius
2.
11
Como exemplo desses dois passos de exclusão e de excelência no mundo evangélico, veja o best-seller
de J. I. Packer, Knowing God (Downers Grove: InterVarsity, 1973), cap. 8 [edição em português: O
conhecimento de Deus, tradução de Paulo César Nunes dos Santos (São Paulo: Cultura Cristã, 2014)].
12
CCC 53; a citação é do Concílio Vaticano II, Dei Verbum 2.
13
CCC 65. Essa afirmação não exclui as revelações “particulares” (e.g., as aparições de Maria)
reconhecidas pela igreja, porém tais revelações não constituem parte do depósito de fé e tampouco
contribuem para a revelação definitiva de Jesus Cristo (CCC 67).
14
CCC 76; a citação é do Concílio Vaticano II, Dei Verbum 7.
15
CCC 77; a citação é do Concílio Vaticano II, Dei Verbum 7.
16
CCC 80; a citação é do Concílio Vaticano II, Dei Verbum 9.
17
CCC 81.
18
Ibidem.
19
Papa Pio IX, Ineffabilis Deus (8 de dezembro de 1854), disponível em:
http://www.papalencyclicals.net/Pius09/p9ineff.htm.
20
Papa Pio XII, Munificentissimus Deus (1 de novembro de 1950), disponível em:
http://w2.vatican.va/content/pius-xii/pt/apost_constitutions/documents/hf_p-
xii_apc_19501101_munificentissimus-deus.html.
21
CCC 82; a citação é do Concílio Vaticano II, Dei Verbum 9.
22
Talvez ajude a pensar nas palavras de Judas sobre a “fé entregue aos santos de uma vez por todas” (Jd
3).
23
CCC 85; a citação é do Concílio Vaticano II, Dei Verbum 10.
24
Essa reverência é demonstrada liturgicamente nos dois movimentos que constituem a missa: a Liturgia
da Palavra (com leituras do Antigo Testamento e do Novo Testamento e de um dos Evangelhos) e a Liturgia
da Eucaristia. Os dois movimentos são necessários.
25
CCC 107; a citação é do Concílio Vaticano II, Dei Verbum 11.
26
CCC 116-117. Os três sentidos espirituais se baseiam no sentido literal. O sentido moral é também
chamado de sentido tropológico, que é derivado do termo grego τρόπος (tropos) e que significa “maneira”
ou “caminho”; portanto, a maneira em que se deve viver à luz da passagem da Escritura. O sentido
anagógico é derivado do termo grego νάγω (anagō), que significa “subir” ou “conduzir”; portanto, refere-se
ao cumprimento futuro da passagem.
27
O título desse escrito apócrifo não deve ser confundido com o do livro canônico de Eclesiastes.
28
CCC 133; a citação é de Jerome [Jerônimo], Commentary on Isaiah, livro 18, prólogo.
29
CCC 80; a citação é do Concílio Vaticano II, Dei Verbum 9.
30
Calvin, Institutes 4.8.14 (LCC 21:1163-1164) [edições em português: João Calvino, As institutas,
tradução de Waldyr Carvalho Luz (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), 4 vols.; e A instituição da religião
cristã, tradução de Carlos Eduardo Oliveira; José Carlos Estêvão (São Paulo: Ed. Unesp, 2008)].
31
Irenaeus [Ireneu], Against heresies 3.1.1 (ANF 1:414, grifo do autor).
32
Irenaeus, Against heresies 3.2.1 (ANF 1:415).
33
Irenaeus, Against heresies 3.2.2 (ANF 1:415).
34
Com relação à identidade dessas igrejas apostólicas, Ireneu disse: “Suponhamos que surja uma disputa
entre nós sobre uma questão importante: não deveríamos apelar às igrejas mais antigas com as quais os
apóstolos mantiveram constante relação [discussão], e aprender com elas o que é certo e claro no que diz
respeito à presente questão? Como faríamos se os apóstolos não nos tivessem deixado seus escritos? Não
seria necessário, [nesse caso], seguir o curso da tradição que eles transmitiram àqueles que confiaram
efetivamente às igrejas?” (Irenaeus, Against heresies 3.4.1 [ANF 1:417]). As igrejas apostólicas foram
fundadas pelos apóstolos (e.g., Corinto, Éfeso, Galácia, Filipos) ou tiveram sua participação (e.g., Roma), e
assim preservaram a doutrina apostólica, que deveria ser consultada quando houvesse disputas. Seria esse o
caso mesmo que os apóstolos não tivessem registrado por escrito sua doutrina; contudo, é claro, a doutrina
apostólica foi registrada por escrito na Escritura.
35
Irenaeus, Against heresies 1.10.1 (ANF 1:330).
36
Irenaeus, Against heresies 1.9.4 (ANF 1:330). “Cânon” quer dizer padrão ou regra.
37
Irenaeus, Against heresies 3.12.9 (ANF 1:434).
38
Thomas Aquinas, Summa theologica, pt. 1, q. 1, art. 8 [edição em português: Tomás de Aquino, Suma
teológica (São Paulo: Loyola, 2001), 9 vols.].
39
Para uma discussão mais ampla a respeito do desenvolvimento dessa nova ideia de tradição, veja
Allison, HT, p. 82-7.
40
Gerald of Bologna [Geraldo de Bolonha], Commentary on the sentences, 457, citado em George
Tavard, Holy writ or holy church (London: Burns & Oates, 1959), p. 27.
41
Thomas Netter Waldensis, Doctrinale Antiquatum Fidei Catholicae Ecclesiae, cap. 23, in: Tavard,
Holy writ or holy church, p. 58.
42
Ibidem.
43
William of Ockham [Guilherme de Occam], Dialogue against heretics, livro 2, cap. 5, in: Tavard,
Holy writ or holy church, p. 35.
44
William of Waterford, LXXII Quaestiones de Sacramento Altaris, in: Tavard, Holy writ or holy church,
p. 43.
45
Calvin, Institutes 4.8.12 (LCC 21:1161).
46
Calvin, Institutes 4.8.13 (LCC 21:1162-1163).
47
John Warwick Montgomery, “The theologian’s craft: a discussion of theory formation and theory
testing in theology”, Journal of the American Scientifc Association 18 (September 1966): 65-77, 92-5.
48
Em outra carta, Paulo ordena: “Recorda-lhes [aos cristãos] que devem estar [...] preparados para toda
boa obra” (Tt 3.1). Juntando essa exortação apostólica à afirmação de Paulo de que toda a Escritura é
inspirada por Deus e proveitosa para preparar o cristão para toda boa obra, a teologia evangélica indaga
para o que a Tradição poderia preparar o cristão?
49
CCC 82; a citação é do Concílio Vaticano II, Dei Verbum 9.
50
Amandus Polanus a Polandsdorf, Syntagma Theologiae Christianae (Hanover, 1624), 1.35, citado em
Heppe, p. 32.
51
Conforme diz a seção da Confissão de Fé de Westminster quando trata do assunto em questão: “O Juiz
Supremo, pelo qual todas as controvérsias religiosas têm de ser determinadas e por quem serão examinados
todos os decretos de concílios, todas as opiniões dos antigos escritores, todas as doutrinas de homens e
opiniões particulares, o Juiz Supremo em cuja sentença nos devemos firmar não pode ser outro senão o
Espírito Santo falando na Escritura” (Confissão de Fé de Westminster, “Sobre a Escritura Sagrada”, 10).
52
Conforme formulada pela Confissão de Augsburgo, a suficiência da Escritura significa que “é
contrário à Escritura ordenar ou exigir a observação de quaisquer tradições cujo fim seja o de nos conceder
o mérito para remissão de pecados e satisfação dos pecados por meio delas” (Confissão de Augsburgo, “Do
poder eclesiástico”, art. 7 [Schaff, 3:64]). Conforme dissemos anteriormente, a ideia de Tradição contra a
qual Lutero se insurgiu era em si mesma um evento recente na igreja.
53
Formula of Concord, Epítome 1, “Of the Compendious Rule and Norm” (Schaff, 3:93-94).
54
Ibidem (Schaff, 3:94-95).
55
Timothy George, Theology of the reformers (Nashville: Broadman, 1988), p. 81, cf. p. 315 [edição em
português: Teologia dos reformadores, 2. ed. rev. e ampl. (São Paulo: Vida Nova, 2017)]. Cf. Alister
McGrath, Reformation thought, 2. ed. (Oxford; Cambridge: Blackwell, 1993), p. 144-7 [edição em
português: O pensamento da Reforma, tradução de Jonathan Hack (São Paulo, Cultura Cristã, 2014)]. Cf.
Chris Castaldo, “A journey to Evangelicalism”, in: Robert L. Plummer, org., Journeys of faith:
evangelicalism, Eastern orthodoxy, catholicism, and anglicanism (Grand Rapids: Zondervan, 2012), p. 156-
8.
56
De fato, veja Gregg R. Allison, “The Corpus Theologicum of the church and presumptive authority”,
in: Derek Tidball; Brian Harris; Jason S. Sexton, orgs., Revisioning, renewing, and rediscovering the triune
center: essays in honor of Stanley J. Grenz (Eugene: Wipf & Stock, 2014), cap. 16. Uma definição clara do
sola Scriptura em harmonia com o princípio articulado pelos reformadores protestantes responde a
contento, por exemplo, a réplica de Frank Beckwith ao meu “Response to Catholicism”, in: Plummer,
Journeys of faith, p. 115-28. Frank parece compreender meu apelo ao sola Scriptura como se com isso eu
rejeitasse todo e qualquer recurso às fontes extrabíblicas — por exemplo, aos credos da igreja primitiva e
suas listas de escritos canônicos do Antigo e do Novo Testamentos —, mas seu entendimento desse
princípio protestante está muito distante do que ele realmente significa, assim como a implicação que ele
tira disso (Francis J. Beckwith, “Catholicism rejoinder”, in: ibidem, p. 129-34).
57
Kreeft, p. 20.
58
Athanasius [Atanásio], Against the Heathen 1 (NPNF2 4:4). Em outro lugar, ele disse: “A Escritura
Sagrada é, em todas as coisas, mais do que suficiente para nós” (To the bishops of Egypt 4 [NPNF2 4:225]) e
“A Escritura Divina é suficiente sobre todas as coisas” (Councils of Ariminum and Seleucia, pt. 1, 6 [NPNF2
4:453]).
59
Cyril of Jerusalem [Cirilo de Jerusalém], Catechetical Lectures 4.1 (NPNF2 7:23).
60
Vincent of Lérins, Commonitory 2.5 (NPNF2 11:132). Para uma discussão mais ampla de Vicente de
Lérins e seu papel na formulação da ideia de Tradição, veja Thomas G. Guarino, Vincent of Lérins and the
development of Christian doctrine, Foundations of Theological Exegesis and Christian Spirituality (Grand
Rapids: Baker Academic, 2013).
61
Kreeft, p. 20.
62
Ibidem.
63
É interessante observar que Kreeft apela à doutrina da infalibilidade em suas objeções ao sola
Scriptura: “Se a Escritura é infalível, conforme crê o protestantismo tradicional, então a igreja deve ser
infalível também, porque uma causa falível não pode produzir um efeito infalível, e a igreja produziu a
Bíblia. A igreja (apóstolos e santos) escreveu o Novo Testamento, e a igreja (por meio dos bispos) definiu
seu cânon” (ibidem). Valendo-nos dessa lógica, cabe-nos concluir que a nação de Israel era infalível porque
produziu o Antigo Testamento. Ninguém, nem mesmo a Igreja Católica, jamais expressou ou defendeu tal
ideia absurda. Portanto, se não há alegação de infalibilidade da nação de Israel com base na ideia de que
uma causa infalível é necessária para que se produza um efeito infalível (o Antigo Testamento), por que
então Kreeft argumenta desse modo em favor da infalibilidade da Igreja Católica na produção de um efeito
infalível (o Novo Testamento)? O que a teologia evangélica propõe não é a infalibilidade da nação de Israel,
mas a inspiração do Espírito Santo quando os profetas, sábios, salmistas e narradores escreviam a Escritura
judaica; não se alega também a infalibilidade da igreja, mas a inspiração do Espírito Santo no momento em
que os autores dos Evangelhos, o narrador de Atos, os autores das cartas e o profeta de Apocalipse
escreviam a Escritura cristã. Para uma discussão mais ampla do assunto, veja Chris Castaldo, “Journey to
Evangelicalism” (p. 155-6).
64
Para as igrejas evangélicas que se colocam conscientemente dentro da herança protestante das “marcas
da igreja” — a verdadeira pregação da Palavra de Deus e a administração correta do batismo e da ceia do
Senhor —, essa vinculação próxima entre Escritura e essa última ordenança é muito apreciada, ainda que o
entendimento protestante da eucaristia/ceia do Senhor/comunhão seja muito diferente da doutrina católica
da transubstanciação.
65
A declaração do Catechism de igual veneração da Escritura e da Eucaristia por sua posição histórica
— “a igreja sempre venerou as Escrituras como venera o Corpo do Senhor” (CCC 103) — é extremamente
desconcertante se submetida ao crivo da prática atual da igreja. Por exemplo, não foi sem razão histórica e
empírica que os reformadores criticaram asperamente a Igreja Católica do seu tempo por diminuir a Palavra
de Deus e destacar a parte eucarística na missa. O equilíbrio entre Liturgia da Palavra e a Liturgia da
Eucaristia na missa católica foi obra do Concílio Vaticano II, e muito bem-vinda, mas ela foi precisamente
isso — uma obra que superou séculos de desequilíbrio entre os dois elementos.
66
CCC 107; citação do Concílio Vaticano II, Dei Verbum 11. A linguagem da Dei Verbum — “cabe-nos
reconhecer que os livros da Escritura, com firmeza e de maneira fiel e sem erro, ensinam aquela verdade
que Deus, por amor à nossa salvação, quis confiar às Escrituras Sagradas” (grifo do autor) — tem sido
motivo de controvérsia significativa e debate incessante. De um lado estão os que não se identificam com a
inerrância, para quem a frase se refere a partes da Escritura nas quais as questões relativas à salvação estão
isentas de erros. Apontam também para o desenvolvimento histórico dessa seção da Dei Verbum,
particularmente para a intervenção do cardeal Franz König no Concílio Vaticano (2 de outubro de 1964),
insistindo que a existência de erros na Escritura (e.g., quando se diz que Mc 2.26 está em conflito com 1Sm
21.1s., ou que Mt 27.9 cita equivocadamente uma passagem desconhecida de Jeremias, e não Zc 11.12),
significa que o Concílio não poderia afirmar a inerrância da Escritura. Do outro lado estão os que defendem
a inerrância, aqueles que, levando a frase toda em consideração, insistem que sua primeira frase
explanatória — “uma vez, portanto, que tudo o que os autores inspirados, ou autores santos, afirmam deve
ser entendido como afirmação do Espírito Santo” — impede a leitura do documento pela perspectiva dos
que acreditam na existência de erros. Eles apontam ainda para as notas de rodapé da Seção 11 da Dei
Verbum, que faz referência a Agostinho, Tomás de Aquino, ao Concílio de Trento, à encíclica
Providentissimus Deus, de Leão XIII, e à encíclica Divino Afflante Spiritus, de Pio XII, para confirmar sua
interpretação, uma vez que esses autores, concílio e encíclicas defendiam a inerrância da Escritura. Para
uma discussão desse debate, veja, do cardeal Alois Grillmeier, “The divine inspiration and the interpretation
of Sacred Scripture”, in: Herbert Vorgrimler, org., Commentary on the Documents of Vatican II (New York:
Crossroad, 1989), vol. 3, p. 199-246.
67
A discussão que se segue encontra-se em Gregg R. Allison, The protestant doctrine of the perspicuity
of Scripture: an evangelical reformulation (dissertação de doutorado, Trinity Evangelical Divinity School,
1995).
68
É importante observar que em momento algum dessa discussão usei as palavras “óbvio” ou “fácil” no
tocante à interpretação da Escritura. Esse equívoco é frequentemente impingido à doutrina, conforme deixa
claro mais uma vez a réplica de Frank Beckwith a mim em meu “Response to Catholicism”, in: Plummer,
Journeys of faith, p. 131. Conforme disse Pedro em relação aos escritos do apóstolo Paulo, “há pontos
difíceis de entender, que os ignorantes e inconstantes distorcem, como fazem também com as demais
Escrituras, para sua própria destruição” (2Pe 3.16). Embora devamos agradecer a Pedro por sua
honestidade, é importante observar que seu comentário é bastante circunscrito. Ele não diz que todas as
coisas ou muitas coisas nos escritos de Paulo têm essas mesmas características; “há pontos”, diz Pedro. É
importante observar também que Pedro não lamenta as muitas coisas impossíveis de compreender; “difíceis
de entender”, diz o apóstolo. Portanto, a admissão franca de Pedro de que os escritos do apóstolo Paulo
apresentam coisas difíceis de compreender não pode de modo algum ser entendida como se toda a Escritura
fosse obscura ou que os leigos deveriam ser impedidos de ler e de estudar a Bíblia. Portanto, clareza da
Escritura não quer dizer que ela seja fácil de interpretar, não se deve cometer esse equívoco. Na verdade,
minha argumentação não segue nessa linha. Fora isso, se para Beckwith a posição católica se opõe à clareza
da Escritura, disso se segue que esse modo de revelação divina é obscuro também para a Igreja Católica,
incluindo-se aí todas as passagens (e.g., Mt 16.13-20) às quais a igreja apela para dar fundamentação às
suas doutrinas de justificação, tradição, transubstanciação, purgatório, Maria etc. — e também à sua
doutrina da infalibilidade papal no que diz respeito à revelação divina. Vitórias aparentes podem resultar em
vitórias de Pirro para os que as alcançaram.
69
A conhecida dificuldade de Martinho Lutero com quatro livros do Novo Testamento — Hebreus,
Tiago, Judas e Apocalipse — e sua inserção no final de sua tradução da Bíblia em alemão depois dos outros
23 “livros verdadeiros e confiáveis do Novo Testamento” — foi evidentemente uma anomalia e não
representa um desafio sério ao cânon do Novo Testamento (Martin Luther, Prefaces to the New Testament
[LW 35:394-399]). Para uma discussão mais ampla do assunto, veja Allison, HT, p. 53-4n66.
70
Josephus [Josefo], Against Apion 1.37. No cômputo posterior dos judeus aparecem listados 24 livros.
Em seguida vem o cânon do Talmude: a Lei (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio); os
Profetas (Josué, Juízes, Samuel, Reis, Jeremias, Ezequiel, Isaías, os Doze Profetas Menores); os Escritos
(Rute, Salmos, Jó, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Lamentações, Daniel, Ester, Esdras-
Neemias e Crônicas) (Baba Bathra 14b-15a).
71
Esse escrito não canônico complementar foi por fim acrescentado ao final de Baruque (outro escrito
apócrifo) e incluído no cânon católico romano.
72
Ele também listou dois escritos complementares não canônicos do Novo Testamento: a Didaquê, ou,
Ensino dos Doze, e O pastor de Hermas (Athanasius, Thirty-ninth Easter letters [367] 7 [NPNF2 4:552]).
73
Cyril of Jerusalem, Catechetical Lectures 4.35 (NPNF2 7:27). A redação do texto foi revisada para
torná-la mais clara.
74
Jerome, Preface to the books of Samuel and Kings (NPNF2 6:490).
75
Ibidem.
76
Jerome, Preface to the books of Proverbs, Ecclesiastes, and Song of Songs (NPNF2 6:492).
77
Sabendo certamente da existência desses defensores históricos de um cânon menor para o Antigo
Testamento, a Igreja Católica não se colocou ao lado deles. Mas por que não? A Catholic encyclopedia dá
um exemplo dessa rejeição: “Obviamente, o ranking inferior a que os escritos apócrifos foram relegados
por autoridades como Orígenes, Atanásio e Jerônimo se deveu a uma concepção rígida demais de
canonicidade, do tipo que exige de um livro, para que seja digno dessa dignidade suprema, que seja
acolhido por todos, aprovado pela antiguidade judaica e seja, sobretudo, próprio não apenas para a
edificação, mas também para a ‘confirmação da doutrina da igreja’, para tomar emprestada a expressão de
Jerônimo” (Catholic encyclopedia, “Canon of the Old Testament”; disponível em:
http://www.newadvent.org/cathen/03267a.htm). A pergunta que se faz é a seguinte: em um estudo histórico
como o do desenvolvimento da consciência canônica da igreja primitiva, baseado em que se pode julgar
esses que contribuem para essa consciência de “concepção de canonicidade rígida demais”? A abordagem
anacrônica da Enciclopédia e a avaliação que ela faz é evidente e equivocada.
78
Augustine, The city of God 18:43-44 (NPNF1 2:386-387) [edição em português: Agostinho, A cidade
de Deus, tradução de Oscar Paes Leme (Petrópolis: Vozes de Bolso, 2012), 2 vols.].
79
Jesus, um judeu da Palestina, sabia bem o hebraico e usava a Bíblia hebraica, conforme mostra a
leitura que fez do rolo de Isaías na sinagoga de Nazaré (Lc 4.16-20). É também o caso dos autores do Novo
Testamento citados na Septuaginta, portanto eles estavam evidentemente familiarizados com a tradução da
Bíblia hebraica. É importante frisar, porém, que nenhum autor do Novo Testamento cita os escritos
apócrifos.
80
Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 4.ª sessão (8 de abril de 1546), Decreto sobre as Escrituras
Canônicas (Schaff, 2:80). A redação do texto foi revisada para torná-la mais clara.
81
Kreeft, p. 20.
82
Foi só quando o Concílio de Trento proclamou o cânon do Antigo Testamento e nele incluiu os
escritos apócrifos que um concílio ecumênico da Igreja Católica determinou oficialmente esse cânon
(Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 4.ª sessão [8 de abril de 1546]; Decreto sobre as Escrituras
Canônicas [Schaff, 2:80]).
83
John Webster, Holy Scripture: a dogmatic approach, Current Issues in Theology (Cambridge:
Cambridge University Press, 2003), p. 46; cf. Michael Horton, People and place: a covenant ecclesiology
(Louisville: Westminster John Knox, 2008), p. 72-98.
84
E.g., Ezequiel 36.25-27; Joel 2.28-32; retomado por João Batista (Lc 3.15-17) e Jesus (Lc 24.44-49;
At 1.4,5).
85
Atos 2.1-4 explicado como realização da profecia de Joel (At 2.16-21).
86
Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 4.ª sessão (8 de abril de 1546); Decreto sobre as Escrituras
Canônicas (Schaff, 2:82).
87
Martin Luther [Martinho Lutero], Answers to the hyperchristian, hyperspiritual, hyperlearned book by
Goat Emser in Leipzig (LW 39:181).
88
Ibidem (LW 39:178).
89
Martin Luther, Lectures on Genesis: chapters 45–50 (LW 8:146).
90
John Calvin, Commentaries on Galatians and Ephesians, tradução para o inglês de William Pringle
(reimp., Grand Rapids: Baker, 2005), p. 136.
91
Calvin, Institutes 4.11.1 (LCC 21:1212).
92
Essa ênfase se deveu ao fato de que a Carta aos Romanos é uma clara articulação entre o evangelho e a
obra poderosa de justificação pela graça divina por meio da fé em Jesus Cristo.
93
CCC 150.
94
CCC 153.
95
CCC 155.
96
CCC 156-159
97
CCC 160.
98
CCC 161.
99
CCC 162; as citações bíblicas são Gálatas 5.6 e Romanos 15.13.
100
CCC 163.
101
CCC 170.
102
CCC 168.
103
Ibidem. A pergunta e a resposta fazem parte do ritual romano, rito do batismo de adultos.
104
CCC 169; a citação é de Faustus de Riez, On the Holy Spirit 1, 2.
105
CCC 153; a citação é de Mateus 16.17.
106
Ibidem.
107
CCC 162.
108
Um possível paralelo é a disciplina divina administrada à igreja de Corinto pelos abusos cometidos na
ceia do Senhor, em que alguns se achavam enfermos e outros até morriam prematuramente (1Co 11.17-34).
109
Para uma discussão mais ampla, veja Gregg R. Allison, “Eternal security”, in: A. Scott Moreau, org.,
Evangelical dictionary of world missions, Baker Reference Library (Grand Rapids: Baker, 2000), p. 318-9.
110
CCC 168-169.
111
Cipriano, Treatise, “On the unity of the church”, 1.6 (ANF 5:423).
112
Martin Luther, Large catechism, segunda parte, o Credo, art. 3 [edição em português: Catecismo
maior do dr. Martinho Lutero, tradução de Walter O. Schlupp (São Leopoldo/Porto Alegre:
Sinodal/Concórdia, 2012)].
113
Calvin, Institutes 4.1.1 (LCC 21:1012).
114
Ibidem, 4.1.4 (LCC 21:1016).
3
A PROFISSÃO DA FÉ
(primeira parte, seção 2, capítulo 1, artigo 1
– capítulo 3, artigo 8)
As doutrinas de Deus, dos anjos, da humanidade e do pecado; as
doutrinas da Pessoa de Jesus Cristo; a encarnação e a imaculada
concepção de Maria; a doutrina da obra de Jesus Cristo; as
doutrinas da ressurreição, da ascensão e da segunda vinda de
Cristo; a doutrina do Espírito Santo

Depois de tratar das doutrinas da revelação e da fé, o Catechism of the Catholic


Church se volta a seguir para as doze doutrinas que decorrem dos credos da
1

igreja, especificamente do Credo dos Apóstolos conforme complementado pelo


Credo Niceno-Constantinopolitano (daqui por diante, Credo Niceno).

As doutrinas de Deus, dos anjos, da humanidade e do


pecado: “Creio em Deus Pai todo-poderoso, criador
do céu e da terra” (seção 2, capítulo 1, artigo 1)
Existe apenas um Deus cujo nome é “Eu sou quem eu sou” e que é verdade e
amor. Esse Deus único e vivo é trino, existindo eternamente como Pai, Filho e
Espírito Santo. Cada uma das três Pessoas é eterna e plenamente Deus e se
distingue por sua relação eterna com os outros dois (que juntos são conhecidos
como Trindade ontológica: “É o Deus Pai que gera, o Filho que é gerado e o
Espírito Santo que procede”) e por sua obra pessoal, que é, não obstante, obra
2

comum dos três (conhecida como Trindade econômica). Além disso, Deus é
3

todo-poderoso, e ele criou o Universo e tudo o que nele há ex nihilo (do nada); o 4

Catechism condena explicitamente o panteísmo, o dualismo (maniqueísmo), o


deísmo, o materialismo e evita qualquer discussão explícita da evolução. Além 5
de criar tudo o que há, Deus preserva e sustenta a criação existente e realiza seu
eterno propósito por meio da obra da providência. O problema do mal deve ser
tratado no contexto da fé cristã em geral — Criação, Queda, redenção e
consumação — e a defesa do livre-arbítrio parece ser a estratégia preferida para
o problema.
A confissão do Credo dos Apóstolos de que Deus é “Criador do céu e da
terra” (Credo Niceno: “de todas as coisas, visíveis e invisíveis”) leva a uma
breve discussão sobre os anjos, que são seres espirituais, incorpóreos,
pertencentes a Cristo e que o assistem em sua missão de salvação. Dá-se alguma
atenção ao papel dos anjos na liturgia da igreja — sua assistência é invocada
especificamente na adoração a Deus — e à proteção dos anjos da guarda.
No que diz respeito à criação do universo visível, Deus criou os seres
humanos como criaturas que carregam sua imagem, o que significa que somente
o ser humano é “capaz de conhecer e de amar seu Criador”, é “a única criatura
na terra que Deus quis por si mesmo” e é chamado a partilhar da vida de Deus. 6

Em face dessa dignidade de ser pessoal, o indivíduo humano é “capaz do


autoconhecimento, do autocontrole, de se dar livremente e manter comunhão
com outras pessoas”. Como todos os seres humanos são portadores da imagem
7

de Deus, e por ele criados, a unidade da raça humana estimula a solidariedade e


o amor entre as pessoas por toda parte.
Especificamente, ser criado à imagem de Deus significa que a pessoa é um ser
complexo formado por um aspecto material e outro imaterial. Esse último
elemento, a alma, “se refere ao aspecto mais íntimo do homem, aquele que é de
maior valor para ele, aquele pelo qual a imagem de Deus que traz consigo ganha
maior especificidade”. Contudo, essa ênfase não tem como objetivo
8

menosprezar ou minimizar o aspecto físico do ser humano, uma vez que “o


corpo humano partilha da dignidade da ‘imagem de Deus’: ele é um corpo
humano precisamente porque é animado por uma alma espiritual”. Esses 9

elementos imaterial e material se acham de tal modo unidos íntima e


intricadamente que “se torna necessário entender a alma como ‘forma’ do
corpo”, de tal modo que, num ser humano, ambos “não são duas naturezas
unidas; antes, sua união forma uma única natureza”. Teologicamente, portanto,
10

a antropologia católica sustenta (1)a dicotomia, e não a tricotomia, isto é, a


constituição humana é formada de dois aspectos (corpo e alma), e não de três
(corpo, alma e espírito); (2) o criacionismo, e não o traducianismo, isto é, a
11

alma é criada imediatamente por Deus, portanto não é transmitida dos pais para
os filhos; e (3) a imortalidade da alma, isto é, “ela não perece quando se separa
do corpo na morte”. 12

Os seres humanos foram criados por Deus com identidade de gênero, o que
significa que homem e mulher são “iguais em sua condição de pessoa”, feitos à
imagem de Deus, mas são também diferentes entre si para serem “‘auxiliares’
um do outro”. Juntos, portanto, homens e mulheres, como servos de Deus,
13

participam da vocação de governar o mundo criado.


Adão e Eva, as primeiras criaturas humanas criadas por Deus, “foram feitos
originalmente em um ‘estado de santidade e justiça’”. Santidade original
14

significa que compartilhavam da vida de Deus, sem medo do sofrimento ou da


morte. Justiça original significa que: (1) individualmente, Adão e Eva
experimentaram harmonia interna em seu íntimo; (2) em seu relacionamento, os
dois experimentaram mútua harmonia; e (3) no tocante ao meio ambiente,
viviam em harmonia com o mundo criado à sua volta. Especificamente, no que
se refere ao primeiro ponto, as faculdades espirituais da alma de Adão (o mesmo
se aplica a Eva) controlavam seu corpo e suas paixões, de modo que “ele estava
livre da tríplice concupiscência que o subjugava aos prazeres dos sentidos
[lascívia], à cobiça de bens terrenos [ganância] e à autoafirmação [orgulho]
contra os imperativos da razão”. Colocados no jardim do Éden, Adão e Eva
15

colaboravam um com o outro e com Deus no desenvolvimento da ordem criada.


Nesse estado harmonioso, introduziu-se outra realidade em algum momento
da origem da humanidade. Embora haja quem interprete essa interrupção “como
mera falha de desenvolvimento, uma debilidade psicológica, um erro ou a
consequência necessária de uma estrutura social inadequada etc.”, a revelação
divina a apresenta como Queda, “um acontecimento fundamental, um feito que
ocorreu no início da história humana”. Antes mesmo dessa derrocada, houve a
16

queda de uma parte dos anjos, que foram originalmente criados como seres bons.
Eles abusaram do livre-arbítrio que tinham para se rebelar, rejeitaram a Deus e
ao seu reino e assim cometeram um pecado imperdoável. Satanás e seus
asseclas, os demônios, ao mesmo tempo que levam a destruição à raça humana,
são providencialmente confinados por Deus e só podem agir em conformidade
com a vontade dele. Foi esse Satanás ou Diabo que levou a cabo uma “sedução
enganadora que induziu o homem a desobedecer a Deus”. 17

Em meio a essa tentação satânica, Adão e Eva lutavam com a ordem divina
que não lhes permitia comer da árvore do conhecimento do bem e do mal que,
“simbolicamente, evoca os limites intransponíveis que o homem, sendo uma
criatura, deve livremente reconhecer e, confiante, respeitar”. Eles não
18

obedeceram a Deus: “O homem, tentado pelo Diabo, deixou que sua confiança
no Criador morresse em seu coração e, abusando da liberdade que tinha,
desobedeceu à ordem de Deus. Esse foi o primeiro pecado do homem [...]. Ao
cometer esse pecado, o homem preferiu a si mesmo a Deus e, por esse ato,
zombou dele. Ele escolheu a si mesmo em detrimento de Deus, insurgindo-se
contra as exigências de sua condição de criatura e, portanto, contra seu próprio
bem”. Essa rebeldia teve consequências devastadoras. Em primeiro lugar, a
19

perda da santidade original: Adão e Eva imediatamente tiveram medo de Deus,


e a morte — o castigo que os ameaçava por desobedecerem à proibição divina
— entrou na raça humana. Em segundo lugar, a perda da justiça original : as
faculdades espirituais da alma já não dominavam mais seus corpos com suas
paixões; a harmonia que havia entre os dois fica arruinada e seu relacionamento
agora se caracteriza por tensões, lascívia e dominação; a harmonia que tinham
com a ordem criada é destruída, e o trabalho se torna penoso e árduo.
Contudo, as consequências da Queda se espalham e afetam não apenas Adão e
Eva; pelo contrário, o pecado se dissemina universalmente e atinge a todos os
seres humanos, já que todos estão implicados no pecado de Adão. O pecado
original, ou “a morte da alma”, passou de Adão para todos os seres humanos, e
20

é o pecado com que nascemos. O Catechism explica essa transferência sobretudo


sob seu aspecto de realismo (“a raça humana inteira está em Adão ‘como um só
corpo de um único homem’”); isto é, todos os seres humanos estavam presentes
21

em Adão e, portanto, todos pecaram quando ele pecou. Essa explicação, porém,
tem igualmente um elemento de representação : “Adão havia recebido uma
santidade e uma justiça originais não apenas para si, mas para toda a natureza
humana”. A transmissão do pecado original ocorre por propagação; a natureza
22

humana decaída, destituída de santidade original e de justiça original, é


transmitida a toda a raça humana. Este não é, especificamente, um pecado
pessoal; o pecado original é um estado que se contraiu, e não um ato pecaminoso
que se cometeu. Além disso, o pecado original não resulta em total depravação e
total inabilidade: a natureza humana “se acha ferida nos poderes naturais que lhe
são próprios; está sujeita à ignorância, ao sofrimento e ao domínio da morte;
inclina-se ao pecado — uma inclinação ao mal denominada de
‘concupiscência’”. A solução da Igreja Católica para o problema do pecado
23

original é o sacramento do batismo, de modo especial o batismo infantil, que


perdoa o pecado original e remove a corrupção pela regeneração, ou pela
concessão de uma nova natureza espiritual.

Avaliação evangélica
A doutrina de Deus conforme afirmada pelo Catechism é totalmente bíblica,
consistente com a fé histórica da igreja ao longo de sua existência e defendida
por todos os católicos, protestantes e também pelos ortodoxos. A única diferença
se dá com a Trindade ontológica, especificamente com a eterna processão do
Espírito Santo. O Catechism, que representa a tradição da igreja ocidental —
católica e protestante/evangélica — afirma que “o Espírito Santo procede do Pai
e do Filho” e explica por que a adição da cláusula filioque (“e do Filho”) era
adequada. A tradição ortodoxa confessa a processão do Espírito Santo do Pai e
24

nega o filioque. 25

Há forte respaldo bíblico para essa dupla processão. Entre outras coisas: o
Espírito Santo é descrito (Rm 8.9) como Espírito Santo de Deus (i.e., do Pai) e
Espírito de Cristo (i.e., do Filho); tanto o Pai quanto o Filho enviam o Espírito
no dia de Pentecostes (Jo 14.16,26; 15.26; 16.7), dando a entender com isso que
ele procede de ambos; Cristo soprou seu Espírito nos discípulos, dando a
entender com isso que, juntamente com o Pai, o Filho comunica o Espírito Santo
(At 2.33). Além disso, a objeção ortodoxa (de que a teologia ocidental cria uma
situação em que há dois princípios ou fontes do Espírito Santo) foi bem
respondida por teólogos como Agostinho. Ele disse que o Espírito procede de
uma ação conjunta do Pai e do Filho. A teologia católica e a teologia evangélica
26

acerca da processão do Espírito não apresentam discordância.


Entre as teologias católica e evangélica da Criação, há conflitos intramuros
sobre o evolucionismo teísta, o antigo criacionismo, criacionismo da Terra
jovem e outros pontos de vista. Com relação à doutrina da providência e seu
corolário, o problema do mal, o catolicismo propõe a defesa do livre-arbítrio, 27

uma perspectiva que é também sustentada por alguns defensores da teologia


evangélica.
A teologia católica dos anjos está em sintonia com a angelologia evangélica,
exceto por duas coisas. Em primeiro lugar, a ênfase litúrgica da igreja no que diz
respeito à união com os anjos na adoração a Deus, acarretando com isso a
invocação da sua assistência, não tem base bíblica e parece contradizer a
Escritura. Certamente os anjos adoram a Deus. Além disso, a igreja —
incluindo-se aí os cristãos que morreram e estão agora com o Senhor no céu na
condição de membros da igreja celestial, e os cristãos que, pela fé, caminham
como membros da igreja terrena — junta-se à hoste angélica em sua adoração a
Deus (Hb 12.18-24). Contudo, quanto à perspectiva de que esses anjos que
adoram a Deus assistam a igreja em sua adoração, a Escritura enfatiza que os
“anjos anseiam por ver” as coisas que dizem respeito à salvação (das quais
somente os seres humanos podem desfrutar; 1Pe 1.12) e que os anjos tomam
conhecimento da “multiforme sabedoria divina” por meio da igreja (Ef 3.10),
porém a ideia de que assistem a igreja em sua adoração não tem apoio bíblico.
Em segundo lugar, a declaração do Catechism de que “cada fiel tem a seu lado
um anjo como guardião e pastor para o conduzir na vida” deve ser afirmada
28

com cautela, se é que deve ser afirmada. De acordo com o livro de Daniel
(10.13,20; 12.1), parece que esses anjos em especial têm uma missão específica
nas nações da terra, e Jesus diz que as crianças têm a proteção de anjos especiais
(Mt 18.10). O respaldo mais convincente desse ponto de vista se encontra em
Atos (12.15), que narra a história um tanto cômica da libertação de Pedro do
cárcere e de como ele aparece na porta da igreja que havia se reunido para orar
pela sua soltura. Quando alguém disse que o apóstolo estava na porta da igreja
pedindo para entrar, os discípulos, chocados, disseram: “É o seu anjo!”.
Contudo, concluir dessas passagens que todos têm um anjo da guarda específico
é pura especulação. Além disso, essa perspectiva parece negligenciar a ênfase
bíblica de que Deus providencia um exército de anjos para defender e ajudar seu
povo (e.g., 2Rs 6.17; Lc 16.22). Nesse sentido, Calvino talvez tenha ido mais
direto ao ponto: “Há um fato que é preciso acatar, que o cuidado com cada um
de nós não é tarefa de um anjo apenas, senão de todos, que, unânimes, zelam por
nossa salvação”. 29

Com relação à doutrina da humanidade, a teologia católica e a evangélica têm


muita coisa em comum, mas têm também áreas de divergência. Há consenso nas
seguintes afirmações: em primeiro lugar, somente o ser humano foi criado à
imagem de Deus, que é a fonte de sua dignidade, razão e de sua capacidade sem
igual de desfrutar de uma relação pessoal com Deus, além de ser o fundamento
da solidariedade da raça humana. Em segundo lugar, o ser humano é um ser
complexo que consiste em um aspecto material (o corpo) e (pelo menos um)
aspecto imaterial. Com relação a esse último elemento, a maioria dos
evangélicos defende a existência de uma dicotomia (dois aspectos constitutivos
da natureza humana — o corpo e a alma, que é também chamada de espírito),
em consonância com a teologia católica. Contudo, alguns evangélicos sustentam
a existência de uma tricotomia (três aspectos constitutivos do ser humano: um
elemento material [o corpo] e dois elementos imateriais [a alma e o espírito]). 30

Tanto a dicotomia quanto a tricotomia se opõem ao monismo, visão segundo a


qual a natureza humana é simples, composta de um aspecto material apenas. Tal 31

posição está fora dos limites da fé cristã ortodoxa, uma vez que contradiz a
exposição bíblica do estado intermediário (2Co 5.1-9) e investe contra a posição
32

histórica do cristianismo. Além disso, a teologia evangélica se encontra dividida


em relação ao problema da origem do elemento imaterial da natureza humana.
Há os que defendem o criacionismo, crendo que Deus cria a alma do nada e a
une à realidade material na concepção; posição que está de acordo com a
33

teologia católica. Outros evangélicos sustentam o traducianismo, perspectiva


34

segundo a qual a alma é passada dos pais para os filhos. Há ainda outros
35

indecisos nessa questão ou que propõem uma explicação mais holística — por
exemplo, o dualismo emergente de William Hasker ou o personalismo emergente
—, que é provavelmente melhor. Em terceiro lugar, a teologia católica e a
36

evangélica concordam que a existência humana não termina na morte, mas que
continua eternidade afora. 37

Em quarto lugar, a teologia católica e a evangélica concordam com o fato de


que tanto homens quanto mulheres foram feitos à imagem de Deus. Isso
significa que são iguais em sua personalidade humana e que, juntos, são
administradores da ordem criada. O desprezo histórico e contemporâneo por um
ou por outro sexo não tem respaldo na Escritura e é contrariado pela criação à
imagem divina. De fato, a igreja deveria liderar homens e mulheres encorajando-
os a honrar, amar e respeitar uns aos outros como portadores que são da imagem
divina. Ao mesmo tempo, a teologia católica e a protestante afirmam as
diferenças divinamente concebidas entre homem e mulher, porém muitos
evangélicos não concordam que o propósito dessa diferença de criação era que
ambos fossem “ajudadores” um do outro. Que homem e mulher complementam
38

um ao outro ao cumprirem o mandato cultural — “Frutificai e multiplicai-vos;


enchei a terra e sujeitai-a; dominai” (Gn 1.28) — é certamente verdadeiro: o
propósito divino é que a maior parte dos homens e das mulheres se case e tenha
filhos, e que tanto uns quanto outros contribuam para a construção da
civilização. Contudo, a narrativa bíblica da criação da primeira mulher (2.18-25)
com o propósito de fazer dela “uma ajudante idônea” para o primeiro homem (v.
18) diz respeito ao plano de Deus de moldar Eva para que fosse a esposa de
Adão; a ideia de reciprocidade — isto é, ambos são auxiliadores um do outro —
não está presente na história. De fato, essa narrativa se torna a base para a
instrução bíblica posterior sobre a liderança amorosa do marido e a submissão da
mulher (1Co 11.2-16; cf. Ef 5.22,23). Certamente, a interdependência homem-
mulher é afirmada pela Escritura. Por exemplo, Eva foi tirada de Adão e, desde
esse fato, todo homem que já viveu nasceu de uma mulher (1Co 11.11,12).
Contudo, a mutualidade e a interdependência que tipificam a relação entre
homens e mulheres em certas áreas da vida não se aplicam à relação entre
marido e mulher.
A primeira grande área de discordância na doutrina da humanidade diz
respeito ao conceito católico do estado original de Adão e Eva. A teologia
evangélica compartilha com a visão católica a ideia de que o primeiro homem e
a primeira mulher foram criados em estado de integridade com (1) harmonia
interior individual, sem a natureza do pecado que pudesse produzir uma
tendência para o mal; (2) com um relacionamento harmônico entre ambos, sem
embaraço e sem vergonha de provocar uma separação entre os dois; e (3) com
harmonia externa em relação à ordem criada, sem transtornos no meio ambiente
que resistam ao seu exercício de domínio. Contudo, o ponto de discórdia vem
com a ideia católica de que a alma de Adão (assim como a de Eva) —
especificamente, sua racionalidade — governava suas paixões e seu corpo. A
primeira objeção levantada é a aparente identificação da imagem de Deus com a
razão ou o intelecto, elevando assim um aspecto da natureza humana sobre os
demais. Embora a teologia católica tenha antecedentes históricos nesse sentido
— por exemplo, Ireneu e Tomás de Aquino enfatizaram o intelecto em sua
teologia da imagem de Deus —, as narrativas bíblicas da criação humana à
39

imagem divina não sustentam tal ideia; na verdade, elas não apresentam indício
algum de que alguma possível luta interior tenha sido vencida pela razão, que
teria passado a controlar as paixões do corpo. Pelo contrário, a Escritura
apresenta a criação divina do ser humano de maneira holística — “E Deus criou
o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou”
(Gn 1.27) — seguida por uma ênfase na forma que esse ser humano criado
holisticamente deve operar: como administrador que procria e cuja vocação é
estabelecer e erigir uma civilização humana que prospere na terra (v. 28). Além40

disso, a ênfase católica na alma humana — razão, intelecto — como sede da


imagem de Deus parece revelar um apego maior à filosofia gnóstica/platônica do
que à Escritura.
A segunda discordância principal introduz o próximo tópico e, portanto,
merece apenas uma breve menção aqui: a teologia católica acredita que a queda
de Adão e Eva resultou na subversão do controle da alma sobre as paixões e o
corpo. Portanto, houve uma grande reversão quando o pecado entrou na raça
humana, em que o ser humano experimentou a perda de sua integridade
deixando-se dominar por seus elementos mais baixos. Conforme explicaremos
posteriormente, a teologia evangélica diz que essa crença católica falseia o
impacto da Queda sobre todos os aspectos da natureza, da razão e do intelecto
humano.
Em relação à doutrina do pecado, observa-se ampla concordância entre a
teologia católica e a evangélica. Mais do que uma interrupção, e certamente não
um mito, a Queda foi um fato no espaço e no tempo que devastou tudo o que
Deus havia planejado. Ela foi precedida pela subversão no reino dos anjos, que
introduziu um ser espiritual maléfico, Satanás, cujo objetivo era matar — isto é,
roubar a vida dada por Deus (Jo 8.44) — os primeiros seres humanos,
seduzindo-os pela mentira. Criando uma atmosfera de ardis, Satanás, disfarçado
de serpente, tentou Eva para que ela duvidasse da Palavra de Deus, questionasse
a bondade divina e desobedecesse à autoridade de Deus (Gn 3.1-7). Adão,
embora não se deixasse enganar pelas maquinações do Maligno, pecou de olhos
bem abertos (1Tm 2.14). Desobediência, infidelidade, desconfiança, rebelião,
transgressão, violação, abuso da liberdade humana, desrespeito pela limitação
humana divinamente imposta, usurpação do lugar do Criador por suas criaturas
— todas essas expressões captam algum aspecto do acontecimento catastrófico
da queda no pecado, a respeito do qual há amplo acordo nas teologias católica e
evangélica.
Há outros pontos de concordância: Adão e Eva tiveram imediatamente receio
de Deus, e a ameaça de morte se tornou realidade. Num duplo sentido, essa
morte foi primeiramente uma realidade espiritual: Adão e Eva morreram porque
estavam separados de Deus, cortados da relação aberta, face a face, que
desfrutavam com ele até o momento em que caíram. Mais tarde, morreriam
fisicamente, voltando ao pó da terra de onde haviam sido tomados (Gn 2.7;
3.19). Além disso, a mútua harmonia que havia entre os dois fora rompida, seu
relacionamento seria caracterizado pela competição, lascívia, rebelião e por uma
severa dominação (3.16), bem como pela vergonha (2.25; 3.7). O rompimento da
antiga harmonia prosseguiria na criação em que Adão e Eva viviam, já que a
fertilidade do mundo puro e original seria atenuada, obrigando-os a trabalhar
pelo resto da vida (3.17-19). Por fim, essas consequências devastadoras da
Queda reverberaram muito além do seu impacto sobre os primeiros seres
humanos, espalhando-se a partir deles para muito longe, arruinando os demais
seres humanos.
Antes de lidar com a doutrina do pecado original, é preciso lidar com uma
questão importante já mencionada. Trata-se de uma discordância relativa à queda
de Adão e Eva que teria como consequência a subversão do controle da alma
sobre as paixões e o corpo. Essa perspectiva eleva o elemento imaterial humano
— especificamente, a razão humana ou intelecto — sobre os elementos
emocionais e físicos. Conforme discutimos anteriormente, essa compreensão da
imagem de Deus no ser humano é extremamente reducionista, cheia de
dificuldades e deveria ser abandonada. Além disso, a posição católica minimiza
o efeito devastador do pecado sobre a razão ou o intelecto humano. Essa
perspectiva é coerente com o primeiro axioma do sistema teológico católico — a
interdependência natureza-graça — que coloca o pecado no reino da natureza,
suavizando com isso seu impacto sobre a natureza ou, nesse caso, sobre a
natureza humana governada pela razão. Uma teologia evangélica que tenha uma
visão holística da imagem de Deus — o ser humano em toda a sua inteireza é
criado à imagem de Deus — não permitirá um papel dominante para a razão
humana ou o domínio do intelecto sobre as paixões e o corpo. Tal visão introduz
uma instabilidade original no ser humano conforme criado, em vez de ver Adão
e Eva como seres existentes em um estado original de integridade.
Consequentemente, sua queda no pecado não resulta em perda de controle por
parte de sua natureza mais elevada, de modo que sua natureza inferior se torna
dominante, mas produz, em vez disso, um estado de corrupção, cuja extensão e
intensidade é total e que é passada como pecado original a todo ser humano
desde então. Por fim, a crítica evangélica da interdependência natureza-graça,
com seu efeito atenuado do pecado sobre a natureza humana, já foi feita (cap. 1).
É com essa doutrina do pecado original que surgem outras diferenças
importantes entre a teologia católica e a evangélica. Embora ambas concordem
que o pecado original é o estado ou a condição em que nasce todo ser humano
como consequência do pecado oriundo de Adão (Rm 5.12-21; 1Co 15.21,22), a
teologia evangélica tem vários pontos de discordância com o entendimento da
teologia católica a esse respeito. Em primeiro lugar, os evangélicos não estão de
acordo entre si em relação ao modo que o pecado original é transmitido. Alguns
evangélicos — por exemplo, os de perspectiva luterana — concordam com a
teologia católica do realismo segundo o qual o pecado original é passado dos
pais para os filhos. Outros evangélicos — por exemplo, de perspectiva
reformada — sustentam a visão da representação; isto é, como Adão foi
constituído por Deus como cabeça da raça humana, quando ele pecou, pecou
como representante de toda a humanidade. Assim como Adão, o restante da
humanidade pecou e com isso todos herdaram o pecado original. Outros
evangélicos ainda combinam realismo e representação. Eles afirmam que todos
os seres humanos estavam presentes de forma seminal em Adão quando ele
pecou (realismo); portanto, o pecado original é transmitido dos pais para os
filhos. Como o realismo tem dificuldade em explicar por que somente o primeiro
pecado de Adão, e não todos os seus pecados, foi transmitido para a raça
humana, essa perspectiva combinada também sustenta que Adão foi o cabeça de
toda a raça humana (representação). Quando ele pecou quebrando a aliança com
Deus, esse seu pecado afetou todos os seres humanos, a quem ele representava.
Por conseguinte, todos herdaram o pecado original da cabeça que os
representava. 41

Em segundo lugar, embora a teologia católica afirme que a natureza humana


foi fragilizada pelo pecado original, ela não defende a total depravação e a total
incapacidade do homem, como fazem algumas versões da teologia evangélica. A
total depravação é a perspectiva segundo a qual o pecado original afeta a
natureza humana sob todos os aspectos. Isso não significa que o ser humano seja
tão mau quanto possível, ou que lhe falte um desejo ou uma atitude moral. Pelo
contrário, a total depravação diz respeito à extensão do pecado original.
Significa que todos os elementos da natureza humana — intelecto/razão,
sentimentos/opiniões, desejo/volição, corpo, motivações, propósitos — estão
infectados pelo pecado. Nenhum elemento — por exemplo, a razão, o intelecto,
a vontade — escapa da influência corruptora do pecado original. A total
inabilidade é a posição segundo a qual o pecado original torna o ser humano
incapaz de fazer o que quer que seja para ganhar ou merecer o favor divino; a
intensidade da influência corruptora do pecado original é de tal ordem que o
torna intransponível. Especificamente, a liberdade que o ser humano pecador
tem jamais é exercida para a prática do bem, pelo menos do bem que agrada a
Deus. O livre-arbítrio humano se acha escravizado pelo pecado, portanto o ser
humano peca porque é algo que lhe é natural.
Por isso, a teologia evangélica junta-se à teologia católica na condenação ao
pelagianismo, segundo o qual o pecado de Adão não afetava de modo algum o
ser humano. Contudo, algumas correntes da teologia evangélica se afastaram da
negação por parte da teologia católica da total depravação e da total inabilidade.
Elas discordam da visão católica segundo a qual, de certa forma, a razão/vontade
humana é livre de tal maneira que, quando movida pela graça de Deus, é capaz
de cooperar com ela. Elas discordam da ideia católica de que o pecado original
não traz consigo a concupiscência, a inclinação para o mal que é intransponível.
De acordo com o Concílio de Trento, “essa concupiscência, que o apóstolo às
vezes chama de pecado, o santo Sínodo declara que a Igreja Católica jamais
entendeu que devesse ser chamado de pecado, como se fosse real e efetivamente
pecado naqueles nascidos de novo, mas porque é do pecado e inclina-se para o
pecado”. Essas versões da teologia evangélica estão em desacordo com essa
42

posição, e insistem que a natureza humana decaída, que produz a tendência para
pecar (concupiscência), é um aspecto do pecado original e, portanto, incorre na
ira de Deus (Ef 2.1-3). Em suma, para essas variedades da teologia evangélica,
dada à penetração do pecado original (que infecta todos os elementos da
natureza humana e nada deixa que não seja por ele afetado), e em razão de sua
perversidade (o pecado original torna o ser humano incapaz de fazer qualquer
coisa que possa agradar fundamentalmente a Deus), todos os seres humanos se
acham em uma situação extremamente difícil perante Deus e são merecedores do
juízo, da condenação e da ira.
A solução desse grave problema do pecado original, para a teologia católica, é
o batismo, sobretudo o batismo infantil. Por meio desse sacramento, o pecado
original é removido e a criança é regenerada, trazendo a salvação desse pesadelo
infernal. Como o tratamento pleno desse sacramento vem mais tarde no
Catechism, a avaliação evangélica do batismo será adiada.

A doutrina da Pessoa de Jesus Cristo “... e em Jesus


Cristo, seu único Filho, nosso Senhor” (seção 2,
capítulo 2, artigo 2)
O evangelho, ou as boas-novas, diz respeito ao ato de graça de Deus Pai que
enviou seu Filho com o propósito de resgatar aqueles que trazem a imagem de
Deus e que pecaram. Assim como o evangelho exalta o Deus de Deus, o Senhor
Jesus Cristo, assim também o faz o Catechism. No tratamento franco que dá a
essa doutrina, ele observa que o nome “Jesus” significa “Deus salva”; a palavra
“Cristo” é a tradução grega do hebraico “Messias” e significa “ungido”; o título
“Filho de Deus” se refere à relação única e eterna da segunda Pessoa da Trindade
com Deus Pai; e o título “Senhor” indica soberania divina.

Avaliação evangélica
A doutrina da pessoa de Cristo é plenamente acolhida pela teologia evangélica;
na verdade, essa teologia tradicional serve de fundamento histórico para o
desenvolvimento da cristologia evangélica.

A doutrina da encarnação e a doutrina da imaculada


concepção: “ele foi concebido pelo poder do Espírito
Santo, nasceu da Virgem Maria” (seção 2, capítulo 2,
artigo 3)
A segunda Pessoa da Trindade, a Palavra de Deus preexistente, o Filho eterno de
Deus, se encarnou (lit., veio “em carne”) cerca de dois mil anos atrás como Jesus
de Nazaré. A encarnação teve quatro propósitos: realizar a salvação do ser
humano caído (1Jo 4.10,14; 3.5); mostrar o amor de Deus (Rm 5.8; 1Jo 4.9); ser
modelo de santidade para o povo redimido (Mt 11.29; Jo 14.6; 15.12); e fazer
dos cristãos participantes da natureza divina (2Pe 1.4). A garantia bíblica da
doutrina da encarnação ocorre, entre outros lugares, em Filipenses 2.5-8 e
Hebreus 10.5-7; a fé na encarnação é o “sinal distintivo da fé cristã”, de acordo
com 1João 4.2.
Essa fé acarreta o compromisso com a plena divindade e plena humanidade do
Deus-homem. O Catechism condena explicitamente as seguintes heresias
históricas:

docetismo gnóstico: negação da verdadeira humanidade do Filho
encarnado;
arianismo: negação da verdadeira divindade do Filho de Deus; combatida
pelo Concílio de Niceia (325) e, mais tarde, pelo Primeiro Concílio de
Constantinopla (381), que insistia que o Filho é homoousios — de mesma
substância ou natureza do Pai;
nestorianismo: crença segundo a qual a pessoa divina do Filho de Deus
uniu-se à pessoa de Jesus de Nazaré; combatida (431) pela confissão do
Concílio de Éfeso segundo a qual as duas naturezas estavam unidas em uma
só pessoa;
monofisismo/eutiquianismo: segundo essa visão, a natureza divina absorvia
de tal modo a natureza humana que a última não persistiu na encarnação,
ou, em outras palavras, as duas naturezas se fundiram formando uma
entidade híbrida, um tipo de natureza “d i v i n a ”, combatida (451) pela
h u m a n a

afirmação do Concílio de Calcedônia de que cada uma das naturezas


preservou suas propriedades específicas, não tendo mudado, tampouco se
fundido à outra natureza;
apolinarismo: mutilação da humanidade de Cristo em que o Logos, ou
Verbo divino, substitui o aspecto imaterial do Deus-homem de tal modo que
o único elemento da natureza humana por ele assumido foi seu corpo;
refutada pela afirmação do Concílio de Éfeso (e também, posteriormente,
pelo Concílio de Calcedônia) de que o Filho assumiu uma alma racional
(i.e., humana).

A cristologia da igreja também é permeada pelo Segundo Concílio de


Constantinopla (553), segundo o qual a pessoa que foi crucificada era uma e a
mesma com a segunda Pessoa da Trindade; o Terceiro Concílio de
Constantinopla (681), que condenou o monotelitismo, visão segundo a qual
Cristo teria apenas uma vontade; e o Segundo Concílio de Niceia (787), que
permitiu a representação do corpo de Cristo em imagens santas.
Consequentemente, a igreja afirma que, na encarnação, o Filho eterno de Deus
assumiu uma natureza humana completa, ou dela se revestiu, consistindo ela em
um aspecto material (um corpo) e outro imaterial (uma alma, com intelecto e
vontade). Ela confessa que o Deus-homem tem duas naturezas — uma natureza
plenamente divina e outra plenamente humana — em uma pessoa, Jesus Cristo.
Associada à encarnação, há um aspecto importante da teologia católica, que é
a porção referente à sua doutrina de Maria. Jesus Cristo “foi concebido pelo
poder do Espírito Santo”, isto é, o Espírito foi “enviado para santificar o ventre
da Virgem Maria e fecundá-lo divinamente [i.e., torná-lo fértil], fazendo-a
conceber o Filho eterno do Pai em uma humanidade originada da sua”. O 43

respaldo bíblico para essa obra poderosa do Espírito Santo encontra-se em Lucas
1.34,35 (cf. Mt 1.18-25). Esse foi o lado divino da encarnação.
Com relação ao lado humano da encarnação, o Catechism afirma vários
pontos importantes em sua doutrina de Maria, a começar por sua predestinação:
Maria se tornaria a mãe de Jesus porque isso havia sido ordenado eternamente.
De fato, “desde toda a eternidade, Deus escolheu, para ser a mãe do seu Filho,
‘uma virgem que era noiva de um homem da casa de Davi, chamado José. O
nome da virgem era Maria’ [Lc 1.26,27]”. É importante notar que Deus “quis
44

que a aceitação, por parte da que ele predestinara para mãe, precedesse a
encarnação, para que, assim como uma mulher contribuiu para a morte [Eva],
também outra mulher contribuísse para a vida [Maria]”. 45

A participação de Maria na parte que lhe coube foi preparada por sua
concepção imaculada. Essa doutrina, que foi proclamada pelo papa Pio IX em
sua encíclica Ineffabilis Deus (8 de dezembro de 1854), diz: “Por uma graça e
favor singular de Deus onipotente e em previsão dos méritos de Jesus Cristo,
salvador do gênero humano, a bem-aventurada Virgem Maria foi preservada
intacta de toda a mancha do pecado original no primeiro instante da sua
concepção”. Além disso, Maria foi “remida de um modo mais sublime, em
46

atenção aos méritos de seu Filho” e foi abençoada por Deus mais do que
47

qualquer outro ser humano. Ademais, por meio dessa mesma graça divina,
“Maria manteve-se pura de todo o pecado pessoal ao longo de toda a vida”. 48

Graças a essa realidade singular, Maria estava bem preparada para se tornar a
mãe do Salvador, e as palavras do anjo Gabriel na anunciação ecoaram com
justiça: ele a saúda como “cheia de graça”. A resposta de Maria, um livre
assentimento ao anúncio angélico, foi a obediência de fé: “Aqui está a serva do
Senhor; cumpra-se em mim a tua palavra” (Lc 1.28-38). “Aceitando de todo o
coração, sem que nenhum pecado a retivesse, a vontade divina da salvação,
entregou-se totalmente à pessoa e à obra do seu Filho.” É forte o contraste entre
49

a obediência de fé de Maria e a resposta de Eva quando tentada, conforme


salientaram vários pais da igreja primitiva: “O nó da desobediência de Eva foi
desatado pela obediência de Maria; e aquilo que a virgem Eva atou, com a sua
incredulidade, desatou-o a Virgem Maria com a sua fé [...]. A morte veio por
Eva, a vida veio por Maria”. 50

De sua imaculada concepção e obediência de fé ao se unir ao plano divino da


salvação decorre a maternidade divina de Maria: ela é theotokos, literalmente
“aquela que carrega [aquele que é] Deus”, ou, resumidamente, “a Mãe de
51

Deus”. Consequentemente, o Filho de Deus foi concebido em seu ventre pelo


52

Espírito Santo, e não por meio de relações sexuais com José (ou com outro
homem qualquer); ela concebeu virgem. Além disso, Maria permaneceu virgem
durante o parto; sua integridade física não foi comprometida pelo processo de
nascimento. E mais, ela permaneceu virgem por toda a vida. Maria é chamada
53

de “Aeiparthenos, a sempre Virgem”. Isso significa que Maria, mesmo depois


54

do nascimento de Jesus, jamais teve relações sexuais com José (ou qualquer
outro homem). As aparentes referências bíblicas aos irmãos e irmãs de Jesus
(Mc 3.31-35; 6.3; 1Co 9.5; Gl 1.19; Mt 13.55; 28.1) dizem respeito a pessoas
que são parentes próximos, e não a membros de fato de sua família nuclear. Essa
integridade da virgindade perpétua é “sinal da sua fé, ‘sem a mais leve sombra
de dúvida’” e manifesta a ausência de pecado em Maria por toda a sua vida. Ela
55

é também “a figura e a mais perfeita realização da Igreja”, e esta se torna mãe


56

ao dar a seus membros o novo nascimento por meio da pregação e do batismo


enquanto se conserva virgem, fiel e obediente a seu esposo, Jesus Cristo.
Concebido pelo Espírito Santo e nascido da virgem Maria, o Filho de Deus se
encarnou, nasceu de maneira normal e experimentou o desenvolvimento de um
ser humano totalmente normal. O Catechism percorre o início de sua vida e os
três anos de ministério na rubrica “Os mistérios da vida de Cristo”. Fazem parte
57

desse tópico a revelação (ele revela Deus Pai), a redenção (incluindo sua
obediência passiva e ativa na vida e na morte) e a recapitulação (ele resumiu a
história humana, ao mesmo tempo que reverteu a desobediência de Adão),
realizando por seus atos a substituição do ser humano que veio salvar servindo
de modelo a ser seguido por seus discípulos. A união com ele torna as pessoas
participantes em seus mistérios. Os eventos específicos de sua vida são
detalhados no Catechism: a promessa da vinda de Cristo no Antigo Testamento;
a preparação para sua vinda por intermédio de João Batista; o nascimento de
Jesus; sua infância e o período desconhecido dos seus primeiros anos de vida (a
única luz aqui é o episódio em que Jesus fica para trás, no templo, quando tinha
doze anos de idade); seu batismo marcando o início do seu ministério público
seguido imediatamente de suas tentações no deserto; seu anúncio do reino de
Deus por meio da proclamação, sinais messiânicos (milagres e exorcismos) e a
convocação dos doze discípulos, a quem (com Pedro à frente) Jesus entregou as
chaves do reino; sua transfiguração, subida e entrada em Jerusalém.

Avaliação evangélica
A doutrina da encarnação de Jesus Cristo, a condenação feita pelo Catechism das
heresias cristológicas ao longo da história e sua ênfase na plena divindade e
plena humanidade de Cristo estão em total acordo com a teologia evangélica. Na
verdade, essas formulações e censuras tradicionais proporcionam a infraestrutura
histórica para a doutrina evangélica da encarnação. Além disso, a afirmação do
Catechism de que Jesus Cristo “foi concebido pelo poder do Espírito Santo”, no
sentido de que o Espírito cobriu milagrosamente Maria para que a jovem
acolhesse em seu ventre o Filho de Deus (o qual, no momento de sua concepção,
assumiu plenamente a natureza humana) também é uma afirmação aceita pelos
evangélicos. Esse lado divino da encarnação encontra respaldo inquestionável na
Escritura (Mt 1.18-25; Lc 1.34,35).
Há, entretanto, uma profunda divisão entre a teologia católica e a evangélica
no ponto seguinte, isto é, no que diz respeito ao lado humano da encarnação.
Praticamente todos os ensinos do Catechism sobre Maria são contestados e
rejeitados pelos evangélicos. Contudo, há três pontos em comum partilhados por
católicos e evangélicos. Em primeiro lugar, há o reconhecimento e a gratidão
pelo papel singular desempenhado por Maria na encarnação do Filho de Deus.
Especificamente, o reconhecimento de sua condição de theotokos (lit.,
“portadora de Deus” ), de acordo com a perspectiva histórica de que aquele a
58

quem Maria deu à luz era plenamente Deus, une católicos e evangélicos. Em
59 60

segundo lugar, há o exemplo por excelência de fé e obediência de Maria,


conforme demonstrado em sua resposta à anunciação (Lc 1.26-38) e seu
sofrimento pessoal associado à vida e ao sofrimento do seu filho (Lc 2.35; Jo
19.25-27). Em terceiro lugar, outro ponto em comum consiste em chamá-la de
“bem-aventurada” (Lc 1.48) em razão da obra poderosa que Deus fez a seu favor
e, por meio dela, a favor de todos os seres humanos em cumprimento à promessa
de salvação (Lc 1.46-55).
Quanto às demais doutrinas marianas, a teologia católica e a teologia
evangélica nada têm em comum. São quatro as discordâncias que separam as
duas posições. Em primeiro lugar, a ênfase do Catechism sobre a predestinação
de Maria, que é em seguida atrelada à sua “livre cooperação” e a um suposto
desígnio divino segundo o qual haveria uma mulher que seria paralela a Eva e
desfaria sua desobediência, é a um só tempo exagerada e não tem fundamento
adequado. Que Deus predestina indivíduos para a salvação (e.g., Ef 1.4,11) e
para um serviço específico (e.g., Jr 1.5; Gl 1.15,16) é algo claramente bíblico,
portanto em certo sentido não há nada de notável na predestinação de Maria à
maternidade de Jesus Cristo. Consequentemente, é um exagero a elevação de
Maria pela teologia católica (que a descreve como a “exaltada Filha de Sião”,
acrescentando que “depois de um longo período de espera, os tempos se
cumprem nela [...] configurando-se o novo plano de salvação”). Na verdade, a
61

Escritura associa o cumprimento do longo tempo de espera não a Maria, mas a


Jesus: “Vindo, porém, a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de
mulher, nascido debaixo da lei, para resgatar os que estavam debaixo da lei, a
fim de que recebêssemos a adoção de filhos” (Gl 4.4,5, grifo do autor). Essa
62

correção não tem como objetivo negar a singularidade da predestinação de Maria


para o papel que lhe foi destinado. Afinal de contas, conforme afirma o Concílio
Vaticano II, ela “já é profeticamente anunciada com antecedência na vitória
sobre a serpente dada a nossos primeiros pais depois que caíram em pecado (cf.
Gn 3.15). De igual modo, ela é a virgem que conceberá e dará à luz um filho,
cujo nome será Emanuel (cf. Is 7.14; Mq 5.2,3; Mt 1.22,23)”. O Filho único e
63

incomparável do Pai se encarnou como o único Deus-homem, e somente uma


mulher — Maria — foi escolhida para concebê-lo. Contudo, a teologia católica
parece enfatizar logo de imediato a condição de Maria com sua predestinação.
Juntamente com o enfoque dado à predestinação de Maria vem a afirmação de
que “para lhe formar um corpo [i.e., o corpo de Jesus], quis a livre cooperação
de uma criatura”. Ouvem-se prontamente nessa afirmação ecos da
64

interdependência natureza-graça. De acordo com o sistema católico, a natureza é


capaz de receber graça; na verdade, ela deve cooperar com a graça para que esta
seja ativada. Essa interdependência natureza-graça já foi analisada criticamente.
Apresentaremos agora a crítica específica de sua manifestação na doutrina de
Maria: conforme a teologia católica da liberdade, o ser humano é dotado de um
livre-arbítrio libertário, ou do “poder de contrariar”, o que significa que, em suas
palavras e ações, ele é capaz, pela graça de Deus, de assentir ao seu desígnio ou,
recusando-se a cooperar com a graça divina, desobedecer a seu propósito.
Aplicando isso à resposta de Maria ao anúncio feito pelo anjo de que ela se
tornaria mãe do Filho de Deus, Maria, como um ser humano comum, poderia ter
concordado ou se recusado a cumprir a vontade divina. Como era impossível que
a última opção se concretizasse, Maria teve de ser preparada para se pronunciar
com certeza, dando uma resposta positiva. Essa preparação será tratada na
segunda discordância abaixo — a imaculada concepção.
Além disso, sua predestinação está atrelada a um suposto plano divino em que
ela seria uma figura paralela a Eva e, por sua obediência, reverteria a
desobediência daquela. Não há respaldo bíblico para tal ideia, porém uma
tradição antiga com origem em Justino Mártir, Ireneu e Tertuliano traça o
65 66 67

seguinte paralelismo:

O respaldo bíblico para o primeiro paralelo vem da discussão de Paulo em


Romanos 5.12-21 (cf. 1Co 15.45-49); por meio da sua obediência, Jesus, o
segundo Adão, sem dúvida alguma anula a desobediência do primeiro Adão.
Contudo, não há paralelo bíblico para a relação entre Maria e Eva.
Consequentemente, os evangélicos rejeitam a exposição feita pela teologia
católica da predestinação e do consentimento de Maria que fizeram dela o
paralelo de Eva pela vontade de Deus.
Conforme dissemos acima, o consentimento de Maria à predestinação divina a
fez cooperar livremente com o plano divino. Contudo, para que Maria
concedesse sua aprovação, ela tinha de ser preparada: “Efetivamente, para poder
dar o assentimento livre da sua fé ao anúncio da sua vocação, era necessário que
ela fosse totalmente movida pela graça de Deus”. Um elemento fundamental
68

nessa preparação graciosa ao seu consentimento foi a concepção imaculada de


Maria, e esta é a segunda discordância entre a teologia católica e a teologia
evangélica.
Recapitulando, esta é a doutrina: “Por uma graça e favor singular de Deus
onipotente e em previsão dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero
humano, a bem-aventurada Virgem Maria foi preservada intacta de toda a
mancha do pecado original no primeiro instante da sua concepção”. Ao mesmo 69

tempo, a teologia católica sustenta que Maria foi “remida de um modo mais
sublime, em atenção aos méritos de seu Filho”. Tal obra graciosa se estendeu
70

por toda a sua vida, e “Maria manteve-se pura de todo o pecado pessoal ao longo
de toda a vida”. Bem-aventurada como ninguém mais, mais do que qualquer
71

outro ser humano, pela graça divina, ela foi preparada para ser a mãe do Filho de
Deus. Pode-se ver claramente esse preparo quando o anjo Gabriel se aproxima
dela e a saúda chamando-a de “cheia de graça” (Lc 1.28). A resposta de Maria
— livre e graciosamente preparada — foi a obediência da fé: “Aqui está a serva
do Senhor, cumpra-se em mim a tua palavra” (Lc 1.38). Concebida sem a
natureza do pecado, nascida sem o pecado original, e preservada livre de todo
pecado, recebeu a capacitação para dar seu consentimento sincero ao plano
divino para que se tornasse mãe de Jesus Cristo. 72

As objeções evangélicas a essa doutrina mariana se concentram na


interpretação equivocada do catolicismo de seu suposto fundamento bíblico. 73

Especificamente, em Lucas 1.26-38, a narrativa da anunciação se detém em


Deus e sua poderosa salvação, e não em Maria. Beverly Gaventa narra a história:
Lucas se refere a Maria com uma descrição muito sucinta, especialmente quando se leva em conta o
papel que ela deverá desempenhar em breve. Ele a apresenta por meio de um relato em que Gabriel é
enviado por Deus a Nazaré, na Galileia, a uma “virgem comprometida a casar-se com um homem
chamado José, da descendência de Davi; o nome da virgem era Maria” (Lc 1.26,27). Em flagrante
contraste com a apresentação de Isabel e Zacarias, Lucas não diz uma palavra sequer sobre a retidão
de Maria, sua fidelidade à Lei ou sua família de origem (1.5-25). Nada na apresentação de Maria a
qualifica para esse papel especial concedido a ela pelo favor divino [...]. Como disse Joel Green,
Maria “não é apresentada de modo algum que pudesse nos ser recomendada como particularmente
digna de receber honra. À luz da atenção dispensada a outros personagens apresentados e retratados
como homens e mulheres de prestígio em Lucas 1 e 2, isso é tanto mais digno de nota”.74

Essas observações requerem que sejamos cautelosos na hora de atribuir um


papel exagerado a Maria na narrativa.
Além disso, em sua anunciação, o anjo faz três afirmações diferentes: usando
uma linguagem elevada e terminologia do Antigo Testamento, ele descreve
quem será Jesus, o Filho de Maria; o anjo explica que o poder do Espírito Santo
produzirá a encarnação; e ilustra com a gravidez miraculosa de Isabel que “para
Deus nada é impossível” (Lc 1.37). Desse modo, a resposta de Maria ao
75

anúncio de Gabriel — “Cumpra-se em mim” (γένοιτό μοι; genoito moi) — tem


caráter optativo, e não imperativo, conforme quer a teologia católica. Maria não
está expressando seu fiat (i.e., seu decreto a Gabriel/Deus por parte de alguém
76

que tem autoridade); pelo contrário, ela expressa seu desejo de se submeter à
vontade de Deus, que lhe foi comunicada pelas palavras finais de Gabriel, “para
Deus nada é impossível” (v. 37). Esse texto não é sobre Maria e seu preparo
especial; é sobre o poder de Deus para efetuar a encarnação de seu Filho.
O fundamental aqui é que Maria responde com fé à palavra do anjo sobre a
identidade do seu Filho, Jesus, a presença da sombra do Espírito Santo que cobre
Maria e a impossibilidade de Deus achar impossível essa concepção virginal.
Maria responde corretamente ao anúncio de Gabriel, e, por causa de sua
resposta, os evangélicos a veem como exemplo por excelência de fé e obediência
— mas não porque ela tenha um lugar “totalmente especial e excepcional” no
plano divino, não por causa “da grandeza e da beleza extraordinárias de todo o
seu ser”, e não por causa da “perfeita cooperação com ‘a graça de Deus que a
precede e assiste’”. Essa é a ideia de perfeição excepcional, mas que está
77

ausente no relato bíblico; na verdade, tal ideia peca porque não percebe o sentido
exato da passagem. O que deverá acontecer no ventre de Maria é inconcebível
para ela em sua condição humana. Por mais que ela acrescente ao fato sua
obediência de fé, sua cooperação, ou outra coisa qualquer, nada disso transforma
o impossível em possível; nada que Maria seja ou faça é “decisivo no plano
humano” para contribuir com esse milagre. Certamente a obediência de Maria é
78

uma grande bênção para ela e para toda a humanidade, mas ela creu que “se
cumprirão as coisas que lhe foram faladas da parte do Senhor” (Lc 1.45); isto é,
ela creu que o próprio Deus cumpriria a palavra prometida.
Além disso, o tratamento concedido por Gabriel a ela — “Salve, cheia de
graça, o Senhor está contigo” (Lc 1.28) — é mal compreendido pela teologia
79

católica. “Cheia de graça” certamente não é seu nome novo e verdadeiro. 80

Tampouco o adjetivo “cheia” significa que Maria seja mais abençoada do que
qualquer outro ser humano jamais foi. Essa ideia trai uma compreensão
deficiente da graça como se fosse algum tipo de substância ou matéria-prima que
é injetada nas pessoas e que tem a capacidade de aumentar ou diminuir (esse
tópico será discutido posteriormente). Esse equívoco contribui ainda mais para a
ideia enganosa da cooperação excepcional e perfeita de Maria. Conforme explica
Nancy Duff:
Diferentemente disso, para a teologia evangélica essa ênfase na perfeição contradiz a doutrina da
encarnação resumida na proclamação de Gabriel de que “o Senhor está contigo”. Que Maria era
cheia de graça não significa que ela foi criada sem pecado para que fosse digna de dar à luz o Filho
de Deus, porque Deus entra em um mundo que é indigno da presença de Deus, um mundo que é
pecaminoso e está arruinado. Se Maria tivesse de ser perfeita para carregar o Senhor, a mensagem
estaria perdida [...]. A perfeição de Maria [...] apresenta um campo de santidade capaz de acolher
Deus, e não o mundo pecaminoso e indigno em que Deus escolhe estar presente.81

Novamente, o axioma da interdependência natureza-graça leva o sistema


católico a entender mal Maria e seu papel excepcional (reino da natureza) como
alguém capaz de receber a graça divina.
Portanto, os evangélicos devem acolher Maria e seu exemplo de fé e
obediência sem elevá-la sobre o restante da humanidade favorecida pela graça de
Deus, colocando-a em uma categoria isolada e assinalando seu exemplo como
algo inatingível para o restante da humanidade. Duff faz uma retificação muito
importante:
Apesar de rejeitarem a perfeição de Maria, os evangélicos têm permitido, porém, que ela seja, por
vezes, compreendida como a mulher ideal. Sua aceitação passiva do anúncio de Gabriel, sua
obediência e a falta de resistência e de rebelião [...] têm, por vezes, sido interpretadas como o modelo
ideal de fé a seguir. A ideia de Maria como uma mulher ideal ou mesmo a discípula ideal, porém, não
é coerente com a teologia evangélica. Deus não vê Maria ou qualquer um de nós como seres ideais,
tampouco ele nos transforma em ideais. Somos como Maria, seres humanos reais de carne e espírito,
corpo e alma, necessitados do poder de Deus enquanto buscamos dar glória Àquele que nos salva e
nos sustenta na graça. Maria, como todos nós, foi chamada não para a perfeição, mas para o
discipulado.82

Em terceiro lugar, a teologia evangélica discorda da insistência da teologia


católica de que “Maria permaneceu virgem de forma real e perpétua”, remetendo
novamente essa ideia errada à falta de lastro bíblico ou a uma interpretação
equivocada da Escritura. Que Maria era virgem quando concebeu o Filho de
Deus em seu ventre é categoricamente verdadeiro; tanto o Evangelho de Mateus
(1.18,25) quanto o Evangelho de Lucas (1.27,34) assinalam que Maria jamais
teve relações sexuais com José (ou com qualquer outro homem) daí resultando
na concepção de Jesus. Na verdade, a concepção no ventre de Maria, uma
83

virgem, foi um milagre. Mateus 1.25 observa ainda que Maria não teve relações
durante a gravidez. Mas a ideia de que, depois do parto, a virgindade de Maria
foi preservada intacta não é afirmada na Escritura. O fato é que tal ideia é
contraditada no relato simples e objetivo do evento: “E ela teve seu filho
primogênito; envolveu-o em panos e o colocou em uma manjedoura, pois não
havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 2.7). Não há indício algum de uma
intervenção miraculosa que preservasse a virgindade de Maria depois do
nascimento de Jesus. Além disso, depois que Jesus nasceu, Maria teve
efetivamente relações sexuais com José, conforme se lê em Mateus: “E recebeu
sua mulher, mas não a conheceu na intimidade até ela dar à luz um filho”
(1.24,25). A palavra “até” (ἓως; heōs), usada como conjunção, indica o ponto
final de um estado de coisas em processo. Em outras palavras, José não teve
84

relações sexuais com Maria durante o tempo todo do seu noivado (que
correspondeu aos nove meses de gravidez), mas tiveram relações depois do
nascimento de Jesus. Esse fato é confirmado por referências a Jesus como o
“primogênito” de Maria (Lc 2.7) e a seus irmãos e irmãs (Mt 12.46 [par. Mc
3.31; Lc 8.19]; 13.55,56; At 1.14). O Catechism identifica equivocadamente
esses irmãos e irmãs como “filhos de uma Maria discípula de Cristo designada
significativamente como ‘a outra Maria’, o que faz deles parentes próximos de
Jesus, segundo uma expressão conhecida do Antigo Testamento”. A defesa da
85

virgindade de Maria pela teologia católica depois do nascimento de Jesus não


tem base na Escritura. 86

Uma quarta e última objeção evangélica a essa doutrina mariana passa da


interação com as interpretações bíblicas equivocadas do catolicismo que eleva a
Tradição da igreja acima da Escritura no tocante a Maria. Como a crítica da
fórmula Tradição + Escritura já foi feita, não tornaremos a fazê-la. Pelo
87

contrário, bastará contrastar aqui as principais afirmações da Bíblia pertinentes à


nossa discussão — todos os seres humanos são concebidos com uma natureza
pecaminosa e praticam o pecado a vida toda — com a Tradição da igreja no
tocante a Maria: ela foi concebida sem a natureza do pecado, nascida sem
pecado original e preservada livre de todo pecado a vida toda. A Tradição
88

contradiz categoricamente a Escritura; portanto, a teologia católica de Maria se


baseia em uma tradição corrompida. Conforme disseram os participantes
evangélicos do movimento Evangélicos e Católicos Juntos, “a doutrina da
imaculada concepção é incoerente com a Sagrada Escritura porque isenta Maria
do pecado original e declara que ela é salva por Jesus de uma maneira
especial”.89

Em suma, embora haja três pontos em comum — Maria como theotokos,


exemplo por excelência para os cristãos e bem-aventurada — partilhados pela
teologia católica e pela teologia evangélica, há mais desacordo do que consenso.
Essas falsas afirmações sobre Maria — sua predestinação, de modo que
cooperasse com o plano divino e fosse tomada como figura paralela à primeira
Eva, sua preparação por meio de sua imaculada concepção, sua virgindade
perpétua — se devem a uma interpretação precária da Escritura ou à elevação de
uma Tradição corrompida acima da Escritura. 90

Os demais ensinamentos do Catechism sobre a vida de Cristo se acham


firmemente alicerçados na Bíblia e são apresentados tradicionalmente com
pouca ou nenhuma objeção por parte dos evangélicos. Outros pontos de
discordância: a apresentação da circuncisão de Jesus como prefiguração
“daquela ‘circuncisão de Cristo’ que é o batismo”; certa especulação sobre a
91

fase não revelada dos primeiros anos de vida de Jesus e sua aplicação às pessoas
hoje; ênfase no batismo como assimilação do cristão a Jesus; e a elaboração do
92 93

“colégio dos Doze” que teria estabelecido o papado com sede em Roma. Essas 94

objeções serão tratadas em outras seções que lidarão com o sacramento do


batismo e da hierarquia da igreja.

A doutrina da obra de Jesus Cristo: “Jesus Cristo


padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e
sepultado” (seção 2, capítulo 2, artigo 4)
A vida de Jesus culmina na cruz e na ressurreição, e o Catechism dedica as duas
seções seguintes a esses episódios críticos que estão no âmago do evangelho. As
circunstâncias que levaram à cruz foram, entre outras, os desafios lançados por
Jesus ao povo judeu do seu tempo, particularmente os líderes religiosos, no que
diz respeito a três instituições essenciais: a Lei, o Templo e a fé. Embora Jesus
não tenha abolido a Lei (da antiga aliança), ele a cumpriu (Mt 5.17-19), e assim
deu sua interpretação autorizada à luz da graça da nova aliança que seria
instituída por ele. Além disso, Jesus redimiu os seres humanos da maldição da
Lei, pois todos a transgrediram. Embora fosse um judeu praticante que
participava do templo e de suas celebrações, Jesus também anunciou sua
destruição e denunciou o uso vergonhoso a que tinha sido submetido. Com seu
corpo, o novo templo, Jesus transferiu a adoração genuína de um lugar para uma
identidade (“adorar em espírito e em verdade”; Jo 4.21-24). Jesus também
desafiou a fé das pessoas em Deus ao chamar a atenção para si mesmo como
aquele que perdoa pecados. Ao perdoar pecados, Jesus mostrou que era o Deus
Salvador, e mesmo assim ele foi julgado por alguns judeus e acusado de
blasfêmia. Em suma, ao se opor a essas três instituições de Israel, Jesus se
colocou em oposição ao povo judeu e aos seus líderes, deflagrando fatos que
culminariam em sua morte. 95

A crucificação de Jesus “não foi resultado do acaso em meio a uma


coincidência infeliz de circunstâncias, mas é algo que faz parte do mistério do
plano divino” e que a Escritura previra (e.g., Is 53.7,8). Por causa do homem
96
caído, Deus fez de Cristo pecado (2Co 5.21), e Cristo veio “para dar a vida em
resgate de muitos” (Mt 20.28), não muitos no sentido limitado, mas em muitos
que são todos. Na verdade, o Catechism enfatiza a expiação ilimitada, ou a
posição segundo a qual Cristo morreu para pagar a penalidade dos pecados de
todos os seres humanos. Cristo se ofereceu a si mesmo ao Pai para realizar seu
97

desejo, e tornou-se “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1.29).
Na Última Ceia, Jesus antecipou a livre oferta de sua vida, e no jardim do
Getsêmani lutou com a escolha entre a autopreservação (sua vontade humana) e
a crucificação (a vontade do Pai), à qual ele de forma voluntária e obediente
acolheu. Sua morte foi única e definitiva, “tanto o sacrifício pascal, que realiza a
redenção divina do homem [...] quanto o sacrifício da nova aliança, que restaura
o homem à comunhão com Deus ao reconciliá-lo com Deus”. Na verdade, sua
98

morte é expiação para os pecados e satisfação para os pecados perante Deus,


tendo Cristo realizado a “ação substitutiva do Servo Sofredor, que ‘faz de si
mesmo oferta pelo pecado’, quando ‘tomou o pecado de muitos’, e ‘justificando
a muitos’”. Seu sacrifício obteve a justificação dos seres humanos caídos, todos
99

os quais participam do sacrifício de Cristo “porque em sua pessoa divina


encarnada ele, de algum modo, se uniu a todo homem”; portanto, a todos é
oferecida “a possibilidade de ser participante, de um modo conhecido por Deus,
do mistério pascal”. 100

Tendo sido crucificado, Jesus “conheceu o estado de morte, o estado de


separação entre a alma e o corpo, durante o tempo compreendido entre o
momento em que expirou na cruz e o momento em que ressuscitou”. Seu corpo 101

foi colocado em uma sepultura, e ali seus aspectos material e imaterial ficaram
desconectados durante três dias. Ao mesmo tempo, “a pessoa divina do Filho de
Deus necessariamente continuou a assumir a alma e o corpo, separados um do
outro pela morte”. 102

Avaliação evangélica
As doutrinas católica e evangélica da obra de Cristo coincidem em quase todos
os aspectos de sua morte na cruz, que é o objeto de atenção do Catechism nesta
seção. Seu sofrimento, resultado sobretudo dos desafios que lançou aos líderes
judeus e às suas instituições e tradições sacras; sua crucificação, não como obra
acidental, e sim espontânea, ele a suportou para que se cumprisse o desejo do
Pai; sua morte expiatória pelo pecado humano e seu sepultamento são elementos
fundamentais da obra de Cristo. Há dois pontos de desacordo em questões
tangenciais — tangenciais aqui no sentido de que não são o foco principal da
presente discussão doutrinária, mas que deverão aparecer posteriormente como
questões importantes —; são eles: a defesa pelo Catechism da expiação ilimitada
e sua vaga noção de uma participação universal no sacrifício de Cristo. Com
relação ao primeiro ponto, a teologia evangélica sustenta três posições principais
no que diz respeito à expiação: expiação limitada, visão segundo a qual Cristo
morreu para expiar os pecados e garantir a salvação somente dos eleitos;
expiação ilimitada, visão semelhante à defendida pela teologia católica segundo
a qual Cristo morreu para expiar os pecados de todos os seres humanos (com a
consequência de que a graça preveniente, uma bênção divina universal, capacita
todo ser humano a responder adequadamente ao evangelho e satisfazer os
requisitos para a salvação); e a teoria das múltiplas intenções na morte de Cristo,
incluindo a intenção de garantir a salvação dos eleitos, a intenção de
proporcionar expiação para os pecados de todos, a intenção de criar outra base
para a condenação eterna do impenitente etc. Por conseguinte, alguns
103

evangélicos concordam com a posição da teologia católica de expiação ilimitada,


ao passo que outros, não.
Com relação ao segundo ponto, sobre a noção ambígua de participação no
sacrifício de Cristo, o Concílio Vaticano II, em sua Constituição Pastoral
Gaudium et spes, dá mais alguns detalhes. Depois de apresentar a obra de Cristo
e seus muitos benefícios, a Constituição conclui: “Isso vale não somente para os
cristãos, mas também para todos os homens de boa vontade em cujo coração a
graça opera de modo invisível. Com efeito, tendo Cristo morrido por todos e
sendo uma só a vocação última do homem, isto é, divina, devemos admitir que o
Espírito Santo oferece a todos a possibilidade de se associarem, de modo
conhecido por Deus, a esse mistério pascal”. Se, por meio desse vago conceito,
104

a teologia católica quer dizer que foi feita uma provisão universal para o perdão
dos pecados de todos os seres humanos por meio do sacrifício de Cristo, e que
mediante o anúncio universal referente à forma em que essa obra expiatória pode
ser apropriada, o evangelho é comunicado a todos os seres humanos, trazendo
com isso a possibilidade de salvação para todos, os evangélicos que defendem a
expiação ilimitada ou a teoria de múltiplas intenções da expiação concordarão
(os proponentes da expiação limitada não concordarão, porque negam a provisão
universal da expiação para todos os seres humanos). Contudo, se a teologia
católica defende algum tipo de salvação universal trazida aos cristãos por meio
do evangelho e (secretamente, misteriosamente) comunicada aos não cristãos de
algum modo — até (supostamente) envolvendo o Espírito Santo — sem o
evangelho, os evangélicos de todas as tendências, no que diz respeito à extensão
da expiação, discordarão veementemente. 105

A doutrina da ressurreição: “desceu à mansão dos


mortos, ressuscitou ao terceiro dia” (seção 2, capítulo
2, artigo 5)
A doutrina da ressurreição pressupõe um estado de existência de Jesus Cristo
entre a crucificação e a ressurreição, e o Credo dos Apóstolos, partindo de
1Pedro 3.18,19, afirma que ele desceu ao inferno. De acordo com o Catechism,
em sua alma humana unida à sua pessoa divina, o Salvador desceu ao reino dos
mortos, ou inferno, não “para de lá libertar os condenados, nem para abolir o
inferno da condenação, mas para libertar os justos que o tinham precedido” por 106

intermédio da proclamação do evangelho (1Pe 4.6).


A morte e a descida ao inferno não tiveram a última palavra, porque ao
terceiro dia Cristo ressuscitou dos mortos, “um acontecimento real, com
manifestações atestadas pela história” (e.g., 1Co 15.3,4). O primeiro evento
107

desse drama pascal foi o túmulo vazio. Embora não seja uma prova direta da
ressurreição — há outras explicações possíveis —, ela, não obstante, suscitou a
esperança da ressurreição nos que viram as vestes fúnebres esvaziadas do corpo
de Jesus. Os episódios seguintes foram as aparições de Jesus — primeiro a Maria
Madalena e a outras mulheres, depois a Pedro, aos Doze, e até mesmo a mais de
quinhentas pessoas ao mesmo tempo —, gerando testemunhas da sua
ressurreição, que constituiriam o fundamento da comunidade cristã. O
Catechism condena explicitamente explicações distorcidas para a ressurreição —
por exemplo, que ela foi produto da exaltação mística, ou um mito decorrente da
fé dos apóstolos — insistindo que “é impossível não reconhecer a ressurreição
como um fato histórico”. 108

Quanto à natureza do corpo ressuscitado de Cristo, o Catechism afirma a


continuidade de seu corpo anterior à ressurreição (e.g., ele ainda traz as marcas
da sua crucificação) e também sua descontinuidade: seu corpo ressurreto não
está limitado ao espaço e ao tempo. É importante notar também que sua
ressurreição “não foi um retorno à vida terrena, como foi o caso da ressurreição
dos mortos que ele realizara antes da Páscoa: a filha de Jairo, o jovem de Naim e
Lázaro”. Ressuscitados dos mortos pelo poder de Cristo, essas pessoas
109

voltaram à vida terrena e acabaram por morrer novamente. Contudo, na


ressurreição de Cristo, “ele passa do estado de morte a uma outra vida, para além
do tempo e do espaço”. De fato, sua ressurreição foi obra do Deus trino, assim
110

como o Pai ressuscitou Jesus, revelando-se desse modo como Filho de Deus (Rm
1.3,4); o Filho exerceu o poder que possuía ao entregar sua vida e retomá-la (Jo
10.17,18); e o Espírito Santo deu vida ao corpo mortal do Filho e o ressuscitou
(Rm 8.11).
A ressurreição de Cristo é importante por vários motivos: ela confirma todas
as obras e ensinamentos de Cristo; é o cumprimento das profecias do Antigo
Testamento e das promessas de Jesus; ela legitima Jesus Cristo como Filho
divino de Deus; realiza a justificação de seres humanos pecadores; e é garantia
da ressurreição futura dos cristãos.

Avaliação evangélica
A teologia católica e a teologia evangélica estão de pleno acordo em torno da
doutrina da ressurreição, até mesmo no que diz respeito à sua realidade no
espaço e no tempo, a rejeição das explicações naturalistas dadas a ela, a natureza
do corpo ressuscitado de Cristo, sua dimensão trinitária e sua importância por
vários motivos. Com relação à descida de Cristo ao inferno entre sua morte e
ressurreição, há evangélicos que concordam com essa ideia; outros, não. Os que
concordam com ela aceitam a oração descritiva — “desceu ao inferno”
(descendit ad inferna) — do Credo Apostólico, na maior parte dos casos
justificando sua aceitação com base em 1Pedro 3.18,19 (recorre-se também a
Atos 2.27; Romanos 10.6,7; Efésios 4.8,9 e 1Pedro 4.6). Os evangélicos que
discordam da afirmação chamam a atenção para a existência de problemas com o
desenvolvimento histórico da expressão, observando especificamente que (1) as
versões mais antigas do Credo não trazem a expressão; (2) não há confirmação
evidente da sua presença até o final do quarto século no comentário de Rufino
sobre o Credo de Aquileia; (3) ao mesmo tempo, a expressão não é encontrada
111

no Antigo Credo Romano de Rufino, para quem a expressão se referia ao


sepultamento de Cristo (“desceu à sepultura”); e (4) o próximo registro explícito
da expressão só será encontrado em meados do sétimo século no
Sacramentarium gallicanum (c. 650). Portanto, seja o que for que se diga em
relação ao título “Apóstolos”, o Credo não tem ascendência apostólica sólida, e a
expressão “desceu ao inferno” é um acréscimo posterior a ele. Além disso, esses
evangélicos apontam para a falta de justificativa bíblica explícita para a
afirmação. Por exemplo, 1Pedro 3.18,19 é um texto bastante problemático, já
que não ensina que Cristo desceu ao inferno “para libertar os justos que o
haviam antecipado”. Pelo contrário, o que Pedro quer dizer nada diz respeito
112

aos justos, já que ele particulariza “[os] espíritos em prisão, os quais, noutro
tempo, foram rebeldes, quando a paciência de Deus esperava enquanto a arca era
construída nos dias de Noé” (1Pe 3.19,20). Embora esteja fora do propósito
desta discussão demonstrar o significado desse texto bíblico, a proposta de
113

Agostinho talvez possa servir de orientação: “O Cristo preexistente proclamou a


salvação por meio de Noé às pessoas que viveram antes do dilúvio”. 114

A doutrina da ascensão: “subiu ao céu e está sentado à


mão direita do Pai” (seção 2, capítulo 2, artigo 6)
Durante quarenta dias depois da ressurreição, Jesus apareceu aos seus discípulos
inúmeras vezes. Sua “aparição final termina com a entrada irreversível da sua
humanidade na glória divina”, que é o “acontecimento histórico e transcendente
da ascensão”. Assim como o Filho de Deus descera do céu, assim também ele
115

voltara para lá (Jo 3.13; Ef 4.8-10). Sentado fisicamente à mão direita do Pai (At
2.33; Ef 1.20; Hb 1.3; 1Pe 3.22), ele foi exaltado e agora partilha “do poder e da
autoridade de Deus” como Filho encarnado cujo “corpo foi glorificado”. Como 116

tal, ele é o Sumo Sacerdote da nova e eterna aliança, que intercede por seus
seguidores e que reina sobre o reino messiânico.

Avaliação evangélica
Há pleno acordo entre a teologia católica e a evangélica em quase todos os
aspectos da doutrina da ascensão, até mesmo no que diz respeito às aparições de
Cristo depois de ressuscitado que a precederam, sua realidade no espaço e no
tempo e sua importância para o Cristo exaltado e seu ministério de intercessão
na glória. O axioma do sistema católico da interconexão Cristo-Igreja — a ideia
de que a Igreja Católica é o prolongamento da encarnação do Cristo ascendido,
do Cristo total (totus Christus) — é um sério equívoco no que diz respeito ao
entendimento do que foi a ascensão; isso já foi avaliado e constatamos que se
trata de um erro. Diremos mais a esse respeito posteriormente.

A doutrina da segunda vinda e o juízo divino: “de


onde virá a julgar os vivos e os mortos” (seção 2,
capítulo 2, artigo 7)
Esse reino presente de Jesus Cristo já foi inaugurado e ainda está por vir. Como
Senhor cósmico de todas as coisas criadas, ele é a cabeça do seu corpo, a igreja
(Ef 1.22,23); consequentemente, ele “habita na terra em sua igreja”, e já exerce
autoridade sobre ela por meio da redenção, embora tal obra santificadora “seja
real, porém imperfeita”. Além disso, seu reino está sob ataque dos poderes
117

derrotados do mal. Sua supremacia completa, portanto, ainda está por vir, e se
dará quando o Rei voltar à terra e destruir definitivamente tudo o que lhe fizer
oposição e estabelecer o novo céu e a nova terra.
A segunda vinda de Cristo é iminente desde sua ascensão, embora o momento
desse acontecimento seja desconhecido e impossível de conhecer pelos seres
humanos. Ele se acha associado ao reconhecimento do Messias “por ‘todo o
Israel’, pois ‘veio um endurecimento sobre parte de Israel’ na sua ‘descrença’ em
Jesus”. Por fim, “a ‘inclusão plena’ dos judeus na salvação do Messias, na
118

esteira da ‘totalidade dos gentios’”, significará a completude do povo de Deus


119

na “plenitude de Cristo” (Ef 4.13). Antes de Jesus retornar, a igreja terá de passar
por um último julgamento durante o qual o “mistério da iniquidade” (2Ts 2.7), as
maquinações do Anticristo, será revelada “sob a forma de farsa religiosa que
oferecerá ao homem uma aparente solução para os seus problemas ao preço da
apostasia da verdade”. 120

Com o retorno de Jesus Cristo será instaurado o juízo final. Nesse último dia,
a descrença culpável será exposta, e “a aceitação ou recusa da graça e do amor
divino” será revelada por meio de atitudes para com o próximo (Mt 25.40). 121

Cristo tem autoridade que lhe foi delegada pelo Pai para proceder ao juízo
definitivo (Jo 5.22,27). Ao mesmo tempo, o Catechism introduz a ideia de um
autojulgamento e de uma autocondenação mediante a rejeição ao amor. 122

Avaliação evangélica
Há muitos pontos em comum entre a teologia católica e a evangélica no que se
refere à segunda vinda de Cristo e seu juízo final, como, por exemplo, a natureza
inicial do governo de Cristo (que os evangélicos chamam de realidade “já, mas
ainda não” do seu reino), que progride em direção à sua realização plena no seu
retorno; o tempo iminente e desconhecido (e impossível de conhecer) da sua
segunda vinda; a grande tribulação, em que se dará a ofensiva do Anticristo
precedendo tal evento; o juízo final diante de Cristo, Juiz, ao qual estarão
presentes todos os seres humanos que já viveram; e a esperança futura do novo
céu e da nova terra.
Os pontos de discordância são, em primeiro lugar, a natureza da habitação de
Cristo na terra com a igreja. Como já fizemos a crítica do axioma da
interconexão Cristo-Igreja, bastará oferecer uma crítica específica da sua
implicação: a teologia evangélica se pergunta como, à luz da teologia católica,
pode-se dizer em qualquer sentido significativo que Cristo, que subiu ao céu e,
portanto, não está aqui (fisicamente) na terra, retornará (fisicamente) à terra em
sua segunda vinda. Se o Cristo que subiu ao céu com todo o seu ser — a cabeça,
incluindo-se aí sua natureza divina e humana, e o corpo — continua a estar
encarnado na Igreja Católica, não nos parece então que ele esteja ausente deste
mundo em nenhum sentido efetivamente importante; tampouco nos parece
possível que o retorno daquele que jamais partiu possa ser igualmente
significativo.
Um segundo ponto de discordância diz respeito ao juízo final. Embora o
Catechism afirme que Cristo “julgará definitivamente” (um direito que ele
“adquiriu” com sua morte) nesse acontecimento apoteótico, ele atenua essa
afirmação com outra contrastante: “Contudo, o Filho não veio para julgar, mas
para salvar”, recorrendo a passagens bíblicas tais como João 3.17 e 5.26. O
Catechism parece lidar com essa tensão fixando-se no juízo pessoal e na
condenação pessoal: “É pela recusa da graça nesta vida que cada qual se julga já
a si próprio, recebe segundo as suas obras e pode, mesmo, condenar-se para a
eternidade, recusando o Espírito de amor”. Existe entre os evangélicos o receio
123

de que outras passagens bíblicas tenham sido negligenciadas ou mal


compreendidas nessa discussão: “Quem nele crê não é condenado; mas quem
não crê, já está condenado, pois não crê no nome do Filho unigênito de Deus
[...]. Quem crê no Filho tem a vida eterna; quem, porém, mantém-se em
desobediência ao Filho não verá a vida, mas sobre ele permanece a ira de Deus”
(Jo 3.18,36). Certamente, o propósito básico do sacrifício expiatório de Cristo
124

era realizar a redenção do ser humano caído. Ninguém coloca em dúvida a


missão salvífica do Filho. No entanto, a apropriação dessa provisão divina é
responsabilidade de todo aquele que ouve o evangelho (“Ora, seu mandamento é
este: que creiamos no nome de seu Filho Jesus Cristo e amemos uns aos outros,
assim como ele nos ordenou”; 1Jo 3.23), e essa ordem é seguida por alguns,
levando-os à vida eterna, e desobedecida por outros, que são condenados à morte
eterna. Essa última condenação, embora seja certamente o resultado de uma
decisão pessoal, é muito mais do que juízo pessoal; na verdade, é condenação
divina, uma vez que a ira de Deus habita aquele que não obedece ao seu
mandamento.
Há um terceiro ponto de discordância entre certas variedades de teologia
evangélica. O Catechism associa a segunda vinda de Jesus ao pleno
reconhecimento, pelo povo judeu, de que ele é o Messias, apelando a Paulo (Rm
11.20-26) e a Jesus (Mt 23.39). Um ramo da teologia evangélica — a teologia
reformada — discorda, em geral, desse ponto de vista escatológico, embora
alguns ali conservem essa esperança em relação a Israel. Os evangélicos que
creem no dispensacionalismo certamente concordarão com o Catechism, mas
discordarão do quarto ponto, isto é, que a igreja passará pela grande tribulação
incitada pelo Anticristo e que precederá o retorno de Cristo. De acordo com essa
perspectiva, a igreja, que tem a promessa de isenção da ira divina, será tirada da
terra — o termo técnico para isso é “arrebatamento” — pouco antes do início da
tribulação, durante a qual a terrível ira divina será derramada castigando os
descrentes da terra.

A doutrina do Espírito Santo: “Creio no Espírito


Santo” (seção 2, capítulo 3, artigo 8)
A doutrina do Espírito Santo diz respeito tanto à pessoa divina quanto as muitas
obras ou ministérios do Espírito Santo. Antes de começar a tratar essas questões
de fé, porém, o Catechism mostra que o cristão que professa a fé já conhece e
experimenta o poder do Espírito Santo na sua vida. Por exemplo, a capacidade
de afirmar que “Jesus é Senhor” vem por meio do Espírito Santo (1Co 12.3);
“para estar em contato com Cristo, é preciso primeiro ter sido tocado pelo
Espírito Santo”. É ele quem concede a graça da regeneração, ou do novo
125

nascimento, despertando a fé nas pessoas, e é ele quem completará sua salvação.


De fato, “crer no Espírito é, portanto, professar que o Espírito Santo é uma das
Pessoas da Santíssima Trindade, consubstancial [de mesma natureza divina] ao
Pai e ao Filho”, juntamente com quem “ele é adorado e glorificado”. Além
126

disso, a igreja conhece o Espírito Santo na Escritura que ele inspirou, em sua
Tradição e em seu Magistério, por ele assistido; na liturgia sacramental; na
oração, em que o Espírito intercede etc. 127

Com relação à doutrina do Espírito Santo, o Catechism afirma que ele é da


mesma natureza divina que o Pai e o Filho e a um só tempo inseparável deles e
pessoa distinta de ambos. A missão conjunta do Filho e do Espírito consiste em
que “quando o Pai envia seu Verbo, envia sempre seu Espírito”; esse trabalho
128

de parceria é observado especialmente “nos filhos adotados pelo Pai no corpo do


seu Filho” por meio “da missão do Espírito de adoção”. Seu nome correto é
129

“Espírito Santo”, e seus títulos são “Paráclito” — “literalmente, ‘aquele que é


chamado para estar ao lado’, ad-vocatus” ou consolador (Jo 14.16,26; 15.26;
130

16.7); “o Espírito da verdade” (Jo 16.13); “o Espírito da promessa” (Gl 3.14; Ef


1.13); “o Espírito da adoção” (Rm 8.15; Gl 4.6); “o Espírito do Senhor” (2Co
3.17); “o Espírito de Deus” (Rm 8.9); e “o Espírito da glória” (1Pe 4.14). São
símbolos do Espírito: água, unção, fogo, nuvem e luz, selo, mão, dedo e
pomba. 131

Antes da encarnação, o Espírito Santo estava ativo de várias maneiras (e.g., na


Criação), mas de grande importância é o desenvolvimento de duas linhas
proféticas no Antigo Testamento, “uma que leva à expectativa do Messias, e
outra que aponta para o anúncio de um Espírito novo”. Passagens proféticas
132

como Isaías 11.1,2, Ezequiel 36.25-28 e Joel 2.28-32 apontavam para um


derramamento novo e sem precedentes do Espírito. No início de seu ministério
messiânico, Jesus de Nazaré disse: “O Espírito do Senhor está sobre mim,
porque me ungiu” (Lc 4.18,19; cf. Is 61.1,2), e Pedro anunciou o início da
realização das profecias sobre o Espírito em seu sermão do Pentecostes (At 2.17-
21; cf. Jl 2.28-32).
Antes da encarnação, o Espírito Santo esteve poderosamente em ação em João
Batista, um homem “cheio do Espírito Santo desde o ventre materno” (Lc
1.15,41). O Espírito também preparou Maria para a encarnação: “Ela foi, por
pura graça, concebida sem pecado, como a mais humilde das criaturas, a mais
capaz de acolher o dom inefável do Onipotente”; consequentemente, “o Pai
encontra a morada na qual o seu Filho e o seu Espírito podem habitar entre os
homens”. Foi pelo Espírito Santo que Maria sempre virgem concebeu e deu à
133

luz o Filho de Deus, tornando-o visível para o mundo. De fato, no momento em


que Maria tornou seu Filho conhecido aos pobres e humildes (pastores, magos,
Simeão e Ana, o casal nas bodas de Caná e os doze discípulos), por meio dela o
Espírito principiou a introduzir o ser humano “na comunhão com Cristo”. Por 134

fim, como “a mãe do ‘Cristo total’”, Maria estava presente no Cenáculo com os
doze discípulos no momento em que o Espírito Santo estava prestes a inaugurar
sua obra (At 1.14). 135

A encarnação, portanto, é um milagre operado pelo Espírito Santo; mais do


que isso, “a obra integral de Cristo é, na verdade, uma missão conjunta do Filho
e do Espírito Santo”. Cristo aludiu ao Espírito e à sua futura obra nova, sem
136

precedentes, em suas conversas com Nicodemos (Jo 3.5-8), com a samaritana


(4.10,14,23,24) e com os convivas da Festa dos Tabernáculos (7.37-39). De 137

forma mais direta, Jesus falou a seus doze discípulos sobre o papel do Espírito
na oração (Lc 11.13) e no testemunho (Mt 10.19,20). Contudo, Jesus reservou
sua promessa da vinda do Espírito Santo para sua última hora, quando explicou
que ele (i.e., o Filho) oraria ao Pai para que enviasse o Filho; o Pai enviaria o
Espírito em seu nome (i.e., em nome de Jesus); ele (i.e., o Filho) enviaria o
Espírito da parte de Deus; e o Espírito procede do Pai. Esse Espírito prometido e
enviado estaria para sempre com os discípulos de Cristo, ensinando-os todas as
coisas, trazendo-lhes à mente o que Cristo disse, testemunhando de Cristo,
levando seus discípulos a toda a verdade, glorificando Cristo, convencendo o
mundo do pecado, da justiça e do juízo (Jo 14.16,17,26; 15.26; 16.5-15; 17.26). 138

A promessa de Jesus foi cumprida no dia de Pentecostes quando ele derramou


o Espírito Santo de um modo novo e sem precedentes. Por fim, o Deus trino é
plenamente revelado e concede um novo dom: o do amor (Rm 5.5), cujo efeito é
o perdão dos pecados, ou a restauração daquilo que antes havia se perdido por
causa do pecado. Outros dons: o Espírito como “penhor” ou “primícias” de uma
herança futura (1Jo 4.11,12; Rm 8.23; 2Co 1.21,22); amor como fonte da nova
vida em Cristo por meio do poder do Espírito (At 1.8; 1Co 13); e o fruto do
Espírito (Gl 5.22,23), à medida que o cristão “vive/caminha no Espírito” (Gl
5.25).139

“A missão de Cristo e do Espírito Santo completa-se na igreja, corpo de Cristo


e templo do Espírito Santo.” O papel do Espírito consiste especificamente em
140

preparar as pessoas com a graça divina aproximando-as de Cristo; manifestar o


Senhor ressurreto a elas abrindo-lhes à mente ao evangelho da sua morte e
ressurreição; tornar presente o mistério de Cristo, especialmente na eucaristia; e
levá-las à comunhão com Deus. Consequentemente, a missão da igreja é o
sacramento da missão de Cristo e do Espírito Santo: ela anuncia, dá testemunho
do mistério, torna-o presente e estende o mistério da comunhão do Deus trino. O
dom do Espírito concedido por Cristo está particularmente associado aos
sacramentos da igreja. 141

Avaliação evangélica
De modo geral, a doutrina do Espírito Santo na teologia evangélica está de
acordo com a teologia católica porque depende em grande medida da elaboração
desta a partir da Escritura. O Espírito é divino, igual em essência e atributos ao
Pai e ao Filho e é pessoa distinta, ainda que inseparável, dos dois na unidade da
Trindade. Essa crença é afirmada na Escritura e foi defendida pela igreja
primitiva em oposição às ideias heréticas. São bem atestadas na Escritura as
obras do Espírito na Criação, encarnação (profecias da vinda do Messias; na
concepção miraculosa do Filho de Deus no ventre da virgem Maria; na unção de
Jesus para seu ministério messiânico), na salvação (incluindo a convicção de
pecado, no aproximar-se de Cristo, na iluminação do evangelho, na regeneração,
no despertar da fé, na adoção e na intercessão), bem como na consumação
(ressurreição do corpo). Além disso, o Espírito previu seu ministério vindouro na
nova aliança (um novo derramamento futuro sem precedentes do Espírito sobre
todas as pessoas), uma palavra profética cuja continuação veio e foi fortalecida
tanto por João Batista quanto por Jesus. De fato, Jesus prometeu enviar o
Espírito Santo para estar para sempre com os discípulos, para ensiná-los e para
142

conduzi-los à verdade, para lhes trazer à mente tudo o que ele disse e fez, para
dar testemunho de Cristo e glorificá-lo. Essas profecias e promessas começaram
a ser cumpridas no dia de Pentecostes, quando o Espírito Santo foi derramado
sobre seu novo ministério de aliança e deu à luz a igreja. Agora, vivendo dentro
de todos os cristãos, o Espírito lhes dá amor, promove a santificação, a
semelhança com Cristo, reveste de poder para o serviço, suscita a fidelidade e a
obediência à medida que os cristãos se enchem do Espírito e caminham com ele,
e muito mais.
Apesar desse amplo acordo, há várias diferenças importantes no que diz
respeito à doutrina do Espírito Santo. Em primeiro lugar, a teologia evangélica
vê com suspeita o desprezo da teologia católica pelo Espírito Santo como “um
outro paráclito” (ajudador/consolador; Jo 14.16). Embora o Catechism deixe
claro que Jesus é “o primeiro consolador” (com base em 1Jo 2.1), ele não
143

destaca o ponto bíblico importante de que o Espírito Santo é “um outro” ou “o


segundo” consolador. Biblicamente falando, Jesus atribui grande importância ao
Espírito que enviará futuramente nessa capacidade porque isso significa que o
Espírito, na condição de outro Paráclito, tomará o lugar de Jesus, que partirá:
“Todavia, digo-vos a verdade; é para o vosso benefício que eu vou. Se eu não
for, o Consolador não virá a vós; mas, se eu for, eu o enviarei” (Jo 16.7). A
teologia evangélica questiona se a razão para essa negligência se deveria ao
axioma do sistema católico de interconexão Cristo-Igreja, isto é, o Cristo total
está plenamente presente na Igreja Católica. Esse axioma parece contradizer a
afirmação de Jesus de que ele está deixando o mundo, de modo que ele (Jesus)
não está aqui — o que será uma vantagem para a igreja —, mas ele enviará
outro Paráclito para tomar seu lugar neste mundo, portanto o Espírito Santo está
aqui. Sem dúvida, a teologia católica enfatiza a presente operação do Espírito
Santo no mundo e na igreja, mas não explica como a presença do Espírito se
relaciona com a presença de Cristo, especialmente à luz das afirmações de Jesus
de que ele está partindo e o Espírito está tomando seu lugar. A teologia
evangélica propõe uma ideia simples: Jesus Cristo, que deixou este mundo e
subiu ao céu, está presente no mundo e em sua igreja por meio da pessoa e da
obra do Espírito Santo, a quem enviou para ser o Paráclito em seu lugar.
Embora ambas as perspectivas teológicas estejam de acordo no que diz
respeito à obra de inspiração da Escritura pelo Espírito, a teologia evangélica
discorda da teologia católica quando ela associa a obra do Espírito à Tradição e
ao Magistério da igreja. Conforme exposto anteriormente no Catechism, essa 144

obra do Espírito significa que (1) a Tradição é um modo oficial de revelação


divina: (juntamente com a Escritura); (2) o Magistério tem autoridade final sobre
a interpretação da Escritura e da Tradição; e (3) esse ofício de ensino torna
infalíveis os pronunciamentos do dogma católico oficial quando o papa fala ex
cathedra. Conforme explicamos anteriormente, a teologia evangélica rejeita essa
autoridade suprema alimentada pela afirmação da teologia católica de que o
Espírito Santo opera na Tradição e por meio dela, assim como opera pelo
Magistério e por seu intermédio. Além disso, a teologia evangélica discorda da
alegação da teologia católica de que o Espírito operava em Maria de algum
modo exaltado com a finalidade de introduzir os seres humanos à vida
juntamente com Cristo. E mais, embora concorde que Deus dá o dom do Espírito
como pagamento à vista ou garantia de herança futura dos genuínos seguidores
de Cristo, a teologia evangélica questiona a razão pela qual a teologia católica
não inclui como parte desse dom divino a certeza da salvação, conforme
assinalou o apóstolo Paulo: “O próprio Espírito dá testemunho ao nosso espírito
de que somos filhos de Deus” (Rm 8.16). Tragicamente, a teologia católica nega
que o fiel possa ter tal certeza porque diz que sua salvação pode ser perdida e, de
fato, ele a perde quando comete um pecado mortal. Contudo, essa posição não
está de acordo com a Escritura, que garante aos crentes genuínos que o Espírito
Santo os sela para o dia da redenção — uma obra objetiva — e lhes dá a certeza
de que pertencem a Deus em Cristo para sempre — uma confiança subjetiva.
Uma área que não se acha desenvolvida no Catechism é a ênfase renovada da
igreja na pessoa e na obra do Espírito Santo, conforme se vê especialmente no
movimento carismático católico. Alicerçado no reavivamento pentecostal
deflagrado na primeira parte do século 20, o movimento carismático foi
alimentado pela crença fundamental da teologia pentecostal no chamado batismo
do/com o Espírito. Para os carismáticos, essa “segunda bênção” é obra
145

poderosa do Espírito subsequente à conversão e que renova os cristãos e os dota


de zelo evangelístico, de amor sobrenatural a Deus e ao próximo, de devoção a
Cristo e à igreja, de poder para o serviço e até de ministérios miraculosos de
cura, profecia, línguas etc. A teologia do batismo do Espírito Santo, embora
tenha penetrado em muitas denominações e teologias — luterana, metodista,
presbiteriana, batista e anglicana —, também teve um impacto imenso na Igreja
Católica. De fato, milhões de fiéis foram influenciados pelo movimento
carismático católico. Inúmeros evangélicos se sentem agradecidos a essa
renovação carismática da Igreja Católica, percebendo que, em muitos casos, o
encontro com o Espírito Santo trouxe uma experiência profundamente enraizada
de salvação evidenciada pela oração e pelo louvor, pela alegria e devoção a
Cristo e ao seu evangelho.
1
Edição em português: Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Loyola, 1999).
2
CCC 254; a citação é do Quarto Concílio de Latrão (1215). As três tradições da cristandade (católicos
romanos, protestantes e ortodoxos orientais) discordam em relação à processão eterna do Espírito Santo, o
que discutiremos mais adiante.
3
O Deus trino, por exemplo, criou todo o Universo e tudo o que ele contém; essa foi uma operação
indissociável das três Pessoas. Contudo, o Pai trouxe o Universo e seus elementos à existência pela palavra
(e.g., Gn 1.3), o Filho foi o agente divino por meio do qual o mundo foi criado (Jo 1.3; Cl 1.15,16), e o
Espírito Santo preparou e protegeu o mundo original criado (Gn 1.2) em antecipação à preparação divina
que o tornou habitável aos seres humanos.
4
Com relação à criação divina e às teorias modernas da evolução, o Catechism remete “aos inúmeros
estudos científicos que enriqueceram esplendidamente nosso conhecimento no tocante à idade e às
dimensões do cosmos, ao desenvolvimento das formas de vida e ao aparecimento do homem. Tais
descobertas nos convidam a admirar ainda mais a grandeza do Criador, levando-nos a dar graças a ele por
todas as suas obras e pelo entendimento e sabedoria que ele dá aos estudiosos e pesquisadores” (CCC 283).
No que diz respeito ao relato bíblico da Criação, o Catechism diz: “A Escritura apresenta a obra do Criador
simbolicamente como uma sucessão de seis dias de ‘trabalho’ divino concluído com o ‘descanso’ no sétimo
dia. Com relação à criação, o texto sagrado ensina as verdades reveladas por Deus para nossa salvação,
permitindo-nos ‘reconhecer a natureza íntima, o valor e o ordenamento de toda a criação para o louvor de
Deus’” (CCC 337); a citação é do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 36.2. O papa João Paulo II levantou
a questão da ciência e da criação em sua alocução de 22 de outubro de 1996 perante a Academia Pontifícia
de Ciências dizendo que “novas descobertas nos levam ao reconhecimento de que evolução é mais do que
uma hipótese”. (O texto é o da edição inglesa do L’Ossevatore Romano e segue as edições em outras
línguas da mensagem original do papa em francês. Não é o texto da tradução original do inglês em francês.)
Para ler o texto da mensagem papal, acesse http://www.ewtn.com/library/papaldoc/jp961022.htm [em
inglês].
5
Panteísmo é o conceito segundo o qual tudo é Deus, tornando-o idêntico à criação e, portanto,
dependente dela. Dualismo ou maniqueísmo é a posição segundo a qual dois poderes iguais e eternos —
por exemplo, Deus e o mal — coexistem e travam um combate. O maniqueísmo era um movimento dualista
que prosperou na igreja primitiva e que cativou Agostinho antes de se tornar cristão. O deísmo é a
perspectiva de que Deus criou o Universo inicial dotado de matéria física e de leis físicas e estabeleceu seu
curso, mas não intervém no mundo nem pode fazê-lo (e.g., mediante atividades miraculosas). Uma metáfora
comum para essa posição é a do relojoeiro que monta as engrenagens do instrumento de tempo, dá corda
nele e deixa-o por sua conta, jamais interferindo nele outra vez. O materialismo é a filosofia segundo a qual
tudo o que existe pode ser explicado, em última análise, pelas realidades e processos materiais; coisas
imateriais como Deus e alma humana não existem.
6
CCC 356; as citações são do Concílio Vaticano II, Gaudium et spes 12.3; 24.3.
7
CCC 357.
8
CCC 363.
9
CCC 364.
10
CCC 365.
11
O Catechism assinala por vezes, é verdade, que a alma e o espírito são distintos (e.g., 1Ts 5.23),
concluindo que “essa distinção não introduz uma dualidade na alma”, mas proporciona simplesmente duas
maneiras de analisar o aspecto imaterial do ser humano (CCC 367).
12
CCC 366.
13
CCC 372. O Catechism interpreta o relato de Gênesis 2.18-25 de maneira genérica aplicando-o ao ser
humano, homem e mulher, e depois, de maneira específica, ao marido e à esposa no casamento.
14
CCC 375; a citação é dos Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 5.a sessão (17 de junho de 1546),
Decreto sobre o Pecado Original 1 (Schaff, 2:88).
15
CCC 377. Para uma discussão mais ampla, veja Kreeft, p. 62.
16
CCC 387, 390 (grifo removido).
17
CCC 394.
18
CCC 396.
19
CCC 397-398.
20
CCC 403; citação dos Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 5.ª sessão (17 de junho de 1546),
Decreto sobre o Pecado Original 2 (Schaff, 2:85).
21
CCC 404; a citação é de Tomás de Aquino, On evil 4, 1.
22
CCC 404.
23
CCC 405. O Catechism condena explicitamente o pelagianismo, visão segundo a qual o pecado de
Adão de modo algum afeta a raça humana depois dele. Também nega explicitamente a doutrina reformada
da total depravação, visão segundo a qual “o pecado original perverteu radicalmente o homem e destruiu
sua liberdade”, bem como a doutrina reformada da total incapacidade, visão que identifica o pecado original
com a concupiscência, a tendência para o mal que é “intransponível” (CCC 406).
24
O Credo Niceno, conforme redigido originalmente, declarava: “O Espírito Santo procede do Pai”. No
Terceiro Concílio de Toledo (Espanha), em 589, a cláusula filioque foi acrescentada ao Credo resultando na
afirmação “O Espírito Santo procede do Pai e do Filho”.
25
CCC 243-248.
26
Especificamente, ao gerar ou conceber o Filho, o Pai determinou que o Espírito procederia deles: “Ele
[o Pai] então o gerou [o Filho] de tal modo que o Dom comum [o Espírito Santo] procederia também dele, e
o Espírito Santo seria o Espírito de ambos” (Augustine, On the Trinity, 15.17/29 [NPNF1 3.216] [em
português: Agostinho, A Trindade (São Paulo: Paulus, 1995)]).
27
Uma versão comum da defesa do livre-arbítrio sustenta que, ao criar o Universo, Deus teve de
escolher entre criar um mundo em que não haveria nenhum pecado e nenhum mal e criar um mundo em que
o ser humano teria livre-arbítrio. Neste último caso, o pecado e o mal de fato existiriam, porque para que o
arbítrio do homem fosse efetivamente livre, ele teria de ser livre para se rebelar contra Deus, abusando
assim de sua liberdade e introduzindo desse modo o pecado e o mal no mundo. Se Deus tivesse escolhido a
primeira opção, o mundo daí resultante seria uma boa criação. Contudo, ao escolher a segunda opção, Deus
fez uma coisa no mínimo tão boa, senão melhor, do que a primeira opção. Ao criar o homem com livre-
arbítrio, um livre-arbítrio que se rebelaria e, de fato, se rebelou contra ele introduzindo assim o pecado e o
mal em uma criação boa, Deus não fez nada de errado. Ele está justificado em sua escolha.
28
CCC 336.
29
Calvin, Institutes 1.14.7 (LCC 20:167) [edições em português: João Calvino, As institutas, tradução de
Waldyr Carvalho Luz (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), 4 vols.; e A instituição da religião cristã, tradução
de Carlos Eduardo Oliveira; José Carlos Estêvão (São Paulo: Ed. Unesp, 2008)].
30
A opinião hesitante de Agostinho em torno da dicotomia e da tricotomia aparece em On faith and the
creed 10.23 (NPNF1 3:331); cf. On the soul and its origin 4.3 (NPNF1 5:355).
31
Só muito raramente alguém defendeu o monismo como elemento imaterial. A filosofia de George
Berkeley operava com esse conceito de monismo, assim como o idealismo alemão.
32
Se a natureza humana for monista, consistindo apenas em um aspecto material, disso se segue que,
após a morte do corpo, a pessoa não pode continuar a existir como ser imaterial, no estado intermediário, na
presença de Cristo.
33
A teologia evangélica reformada atribui essa visão a Leonard Riissen; Francisci Turretini,
Compendium theologiae (Amsterdam, 1659), 7.52.2, in: Heppe, p. 227-8; Amandus Polan, Syntagma
theologiae christianae (Hanover, 1624-1625), 5.23, in: Heppe, p. 229; Gisbert Voetius, Selectarum
disputationum theologicarum (Utrecht, 1648-1669), 1.798, in: Heppe, p. 229-30.
34
Agostinho disse ignorar a origem da alma (Augustine, On the soul and its origin, 4.6[5] [NPNF1
5:356]); tendo se retratado posteriormente em Augustine, Retractions, livro 2, cap. 56 (NPNF1 5.310). Por
fim, não achou defesa bíblica convincente em nenhum dos dois casos e disse que Deus não revelara a
verdade sobre a questão (Augustine, On the soul and its origin, 1.17, 21-29 [NPNF1 5:324-328]); ibidem,
4.5 (NPNF1 5:355-356).
35
A teologia evangélica atribui essa perspectiva a Martinho Lutero, Table talk recorded by John
Mathesius (LW 54:401); John Quenstedt, Theologia didactico-polemica 1.519 (Schmid, p. 166-7); Leonard
Hutter, Compendium locorum theologicorum 319 (Schmid, p. 249). Embora um teólogo reformado, William
G. T. Shedd, tenha defendido com veemência o traducianismo em sua Dogmatic theology, organização de
Alan W. Gomes (Philipsburg: P & R, 2003), p. 429-93.
36
William Hasker, The emergent self (Ithaca/London: Cornell University Press, 1999); cf. John Cooper,
Body, soul, and life everlasting: biblical anthropology and the monism-dualism debate (Grand Rapids:
Eerdmans/Leicester: Apollos, 1989, 2000).
37
Há certo debate em torno da expressão “a imortalidade da alma” usada para descrever a posição
católica, uma vez que a expressão parece ser um reflexo mais da filosofia grega do que do ensinamento
bíblico. Contudo, a substância da crença é defendida pela teologia católica e pela teologia evangélica.
38
Nesse sentido, os evangélicos estão divididos entre complementaristas e igualitários. A primeira
posição está bem representada pelo Concílio Bíblico de Masculinidade e de Feminilidade; já a segunda está
igualmente bem representada pela organização Cristãos pela Igualdade Bíblica. Uma divisão semelhante
está presente na Igreja Católica.
39
Irenaeus [Ireneu], Against heresies 4.4.3 (ANF 1:466); Thomas Aquinas [Tomás de Aquino], Summa
theologica, pt.1, q. 93.
40
De fato, a erudição bíblica do século passado, ou por volta dessa época, graças ao estudo da literatura
da criação do antigo Oriente Médio, contribuiu para mudar a discussão da imagem de Deus de questões
substantivas (a imagem consiste na racionalidade, na moralidade, no livre-arbítrio e em outros atributos)
para questões funcionais: o ser humano como portador da imagem divina tem como objetivo um propósito
funcional — o domínio.
41
Para uma breve discussão dessas posições, veja John Murray, The imputation of Adam’s sin (Grand
Rapids: Eerdmans, 1959); Henri Blocher, Original sin: illuminating the riddle, New Studies in Biblical
Theology (Grand Rapids: Eerdmans, 1999).
42
Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 5.ª sessão (17 de junho de 1546), Decreto sobre o Pecado
Original 5 (Schaff, 2:88). As referências a “o apóstolo” se referem às declarações de Paulo em Romanos
6.12 e 7.8.
43
CCC 485.
44
CCC 488.
45
Ibidem; a citação é do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 56; cf. 61.
46
CCC 491. A encíclica está disponível em: http://www.papalencyclicals.net/Pius09/p9ineff.htm.
47
CCC 492; a citação é do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 53, 56.
48
CCC 493.
49
CCC 494.
50
Ibidem; as citações são de Irenaeus, Against heresies, 3.22.4 (ANF 1455); Epiphanius, Heresies, 78.
51
Jaroslav Pelikan, Mary through the centuries (Cambridge: Yale University Press, 1998), p. 55.
52
Cf. afirmação feita originalmente pelo Concílio de Éfeso (431), o termo é uma combinação de duas
palavras gregas, θεός (theos), Deus; e τόκος (tokos), parto.
53
De acordo com Ludwig Ott, “Maria deu à luz de forma miraculosa sem a abertura do ventre e sem o
rompimento do hímen, portanto, sem dor” (Ludwig Ott, Fundamentals of catholic dogma, organização de
James Canon Bastible; tradução para o inglês de Patrick Lynch [Rockford: Tan, 1960], p. 205). Aquino
tentou encontrar razões para que a condição intacta de Maria fosse adequada para o nascimento de Jesus
(Thomas Aquinas, Summa theologica, pt. 3, q. 28, art. 2).
54
CCC 499; a citação é do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 52.
55
CCC 506 (grifo removido); a citação é do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 63; cf. 1Coríntios
7.34,35.
56
CCC 507.
57
CCC 512-560.
58
Cf., Jaroslav Pelikan traduz por “a que dá à luz aquele que é Deus” (Pelikan, Mary through the
centuries, p. 55).
59
Esse sentido estava presente no âmago da afirmação do Concílio de Éfeso (431), que se opôs à
cristologia herética de Nestório.
60
Contudo, a teologia evangélica nega ao theotokos a expressão de alguma condição exaltada para
Maria, que é um equívoco comum do seu significado histórico.
61
CCC 489; a citação é do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 55.
62
As duas expressões “nascido de mulher” e “nascido debaixo da lei” são orações subordinadas e não
devem ser interpretadas erroneamente como se na declaração devem ser enfatizadas, conforme o Catechism
parece fazer. É interessante observar que o Catechism comece a discussão com a citação “Deus enviou seu
Filho”, que é a oração principal de Gálatas 4.4, mas se torne rapidamente uma discussão sobre a
predestinação de Maria.
63
Concílio Vaticano II, Lumen gentium 55 (VC II-1, 415).
64
CCC 488.
65
Justin Martyr [Justino Mártir], Dialogue with Trypho the Jew 100 (ANF 1:249).
66
Irenaeus, Against heresies 3.22.4 (ANF 1:455); 5.19.1 (ANF 1:547).
67
Tertullian [Tertuliano], On the flesh of Christ 17 (ANF 3:536).
68
CCC 490.
69
CCC 491. Essa encíclica está disponível em: http://www.papalencyclicals.net/Pius09/p9ineff.htm.
70
CCC 492; a citação é do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 53, 56. De acordo com o papa João
Paulo II, essa redenção diz respeito à “participação na graça salvífica e santificadora e naquele amor que
tem seu começo no ‘Amado’, o Filho do Pai Eterno” (papa João Paulo II, Redemptoris Mater [28 de março
de 1978], p. 10).
71
CCC 493.
72
CCC 494.
73
Nos seguintes comentários, interajo com a Redemptoris Mater, que é a teologia bíblica de Maria
(disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/encyclicals/documents/hf_jp-
ii_enc_25031987_redemptoris-mater_en.html) [em português, disponível em:
http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_25031987_redemptoris-
mater.html].
74
Beverly Gaventa, “Nothing will be impossible with God”, in: Carl E. Braaten; Robert W. Jenson,
orgs., Mary: mother of God (Grand Rapids: Eerdmans, 2004), p. 23-5. Como acrescenta Joel Green em
outro lugar: “Sua insignificância para ser o significado principal na narrativa lucana” (Joel Green, “Blessed
is she who believed”, in: Beverly Roberts Gaventa; Cynthia L. Rigby, orgs., Blessed one: protestant
perspectives on Mary [Louisville: Westminster John Knox, 2002], p. 14).
75
A declaração final de Gabriel tem sólido suporte nas ilustrações e afirmações do Antigo Testamento;
por exemplo: Gênesis 18.10-15; Jó 42.2,3; Isaías 50.2; 59.1; Jeremias 32.17; Zacarias 8.6. Há eco dessa
declaração no Evangelho de Lucas (18.24-27).
76
Papa João Paulo II, Redemptoris Mater, p. 13.
77
Ibidem, p. 8, 9, 11, 13.
78
Ibidem, p. 13.
79
Ibidem, p. 8.
80
Ibidem.
81
Nancy Duff, “Mary, servant of the Lord”, in: Gaventa; Rigby, orgs., Blessed one, p. 64.
82
Ibidem, p. 65.
83
Afirmação ou negação do nascimento virginal foi um dos pontos principais da divisão entre a teologia
evangélica (afirmação) e a teologia protestante liberal (negação) na primeira parte do século 20.
84
É verdade que “até” pode ter a conotação de um estado de coisas em processo e que continua depois
do tempo especificado, que é indicado dada a sua importância específica, e não como ponto final. Se digo,
por exemplo, “Serei fã dos Chicago Cubs até ganharem a Série Mundial!”, não estou dizendo com isso que
logo que os Cubs forem campeões deixarei de ser fã do clube. Contudo, em suas 25 ocorrências no
Evangelho de Mateus, não há registro desse sentido de “até”; portanto, é bastante improvável que seja esse
o sentido de Mateus 1.24,25.
85
CCC 500. No caso de Tiago e José — chamados de “irmãos de Jesus” (Mt 13.55) —, o Catechism
recorre a Mateus 28.1 (cf. Mt 27.56) para dizer que se trata de “outra Maria”; no entanto, nenhum desses
dois versículos dá pista alguma de que a outra Maria fosse a mãe de Tiago e José. No tocante à expressão do
Antigo Testamento, o Catechism recorre a Gênesis 13.8; 14.6; 29.15 etc.
86
A teologia católica apela efetivamente aos tipos veterotestamentários que prefiguraram a virgindade de
Maria, incluindo sua virgindade perpétua. Um deles é a Arca da Aliança e o Templo, sobre os quais o
Espírito Santo desceu com glória, e que são supostamente tipos do Espírito que desceu sobre o ventre de
Maria. Um segundo tipo, a ordem divina segundo a qual a porta do Templo deveria ser fechada (Ez 44.1-3),
é um suposto tipo de virgindade perpétua de Maria. Um terceiro é a descrição da mulher em Cântico dos
Cânticos: “Jardim fechado é minha irmã, minha noiva; sim, jardim fechado e fonte selada” (4.12). Tais
apelos têm efetivamente apoio na igreja primitiva, mas são claramente fantasiosos e exagerados, e a falta de
suporte para eles na apresentação que o Novo Testamento faz de Maria afasta os protestantes dessa tipologia
extravagante.
87
Capítulo 2.
88
Infelizmente, a interpretação equivocada que o catolicismo faz dessas passagens — João 2.1-11; Lucas
11.27,28; Marcos 3.20-35 (esp. dos v. 20,21 e 31-35) — cf. expostos na Redemptoris Mater, obscurece o
distanciamento de Jesus em relação à sua mãe apoiados por esses textos. Essa compreensão errônea da
Escritura perpetua a ideia (errada) da vida sem pecados de Maria.
89
Evangelicals and Catholics Together, “Do whatever he tells you: the blessed Virgin Mary in Christian
faith and life” (November 2009), seção intitulada, “An evangelical word to catholics”, p. 3, disponível em:
http://www.firstthings.com/article/2009/11/do-whatever-he-tells-you-the-blessed-virgin-mary-in-christian-
faith-and-life.
90
Discutiremos mais sobre a doutrina de Maria posteriormente no capítulo 4 ao tratarmos do tópico da
doutrina da igreja. Para uma obra sobre a doutrina de Maria da perspectiva católica e anglicana, veja Tim
Perry; Daniel Kendall, The blessed Virgin Mary (Grand Rapids: Eerdmans, 2013). Cf. Tim Perry, Mary for
evangelicals: toward an understanding of the Mother of our Lord (Downers Grove: IVP Academic, 2006).
91
CCC 527.
92
CCC 531-533.
93
CCC 537.
94
CCC 551-553. O Catechism explica, por exemplo, o poder das chaves de ligar e desligar (Mt 16.19):
“O poder de ‘ligar e desligar’ significa a autoridade para absolver os pecados, pronunciar juízos doutrinais e
tomar decisões disciplinares na Igreja. Jesus confiou essa autoridade à Igreja pelo ministério dos apóstolos e
particularmente pelo de Pedro, o único a quem confiou explicitamente as chaves do reino” (CCC 553).
95
O Catechism se empenha em ressaltar que “os judeus não são responsáveis coletivamente pela morte
de Jesus”, revertendo assim a longa tradição dominante de colocar o fardo da sua morte sobre os judeus
(CCC 597). Essa tendência de reversão começou com o Concílio Vaticano II (e.g., Nostra Aetate 4) e
prosseguiu desde então graças ao apoio dado a ela pelos papas pós-conciliares. Veja, e.g., papa Bento XVI,
Jesus of Nazareth: Holy Week: from the entrance into Jerusalem to the resurrection (San Francisco:
Ignatius, 2011).
96
CCC 599.
97
CCC 605.
98
CCC 613 (grifo removido).
99
CCC 615; as citações são de Isaías 53.10-12.
100
CCC 618; a citação é do Concílio Vaticano II, Gaudium et spes 22.
101
CCC 624.
102
CCC 626.
103
Para uma visão abrangente dessas posições, veja Bruce Demarest, The cross and salvation: the
doctrine of salvation, foundations of evangelical theology (Wheaton: Crossway, 1997, 2006), p. 189-93.
104
Concílio Vaticano II, Gaudium et spes 22 (VC II-1, 924). Para a ideia de graça invisível, toma-se
como referência o Concílio Vaticano II, Lumen gentium 16. A base bíblica para a morte de Cristo por todos
é tomada de Romanos 8.32.
105
Discutiremos e analisaremos mais detalhadamente o assunto no capítulo 4.
106
CCC 633.
107
CCC 639.
108
CCC 643-644.
109
CCC 646. “Naim” (Lc 7.11).
110
CCC 646.
111
Rufinus, A commentary on the Apostles’ Creed (NPNF2 3:541-563).
112
CCC 633.
113
Para uma discussão mais ampla, veja Wayne Grudem, The First Epistle of Peter, Tyndale New
Testament Commentaries (Grand Rapids: Eerdmans, 1999), p. 157-62, 203-39; ibidem, “He did not descend
into hell: a plea for following Scripture instead of the Apostles’ Creed”, Journal of the Evangelical
Theological Society 34/1 (March 1991): 103-13.
114
Augustine, Letter 164 (NPNF1 1:515-521). A confirmação da obra do Cristo preexistente “no
Espírito” e sua proclamação encontra-se em 1Pedro 1.11. Noé pregava a justiça quando construía a arca,
conforme 2Pedro 2.5. Consequentemente, a pregação de Noé àqueles de sua época foi um caso de pregação
pré-encarnada de Cristo “no Espírito” àqueles que, por sua desobediência ao se recusarem a acolher a
mensagem de Cristo, morreram no dilúvio. Embora o corpo deles tenha perecido desse modo, o espírito
(i.e., seu ser imaterial) foi aprisionado e continua preso, isto é, no inferno, aguardando o juízo final.
115
CCC 659-660.
116
CCC 668, 663.
117
CCC 669-670; a citação desse último parágrafo é do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 48.
118
CCC 674; as citações são de Romanos 11.20-26 e Mateus 23.39.
119
CCC 674; as citações são de Romanos 11.12,25; cf. Lucas 21.24.
120
CCC 675-676. O apoio bíblico para essa convicção encontra-se em 2Tessalonicenses 2.4-12;
1Tessalonicenses 5.2,3; 2João 7; 1João 2.18,22. O Catechism condena o “milenarismo” — especificamente
o de variedade secular — que se diz capaz de inaugurar a esperança messiânica por meio dos movimentos
históricos, inclusive “um triunfo histórico da igreja por intermédio de uma ascendência progressiva” (CCC
677).
121
CCC 678.
122
CCC 679.
123
Ibidem. A base bíblica apresentada é João 3.18; 12.48; Mateus 12.32; 1Coríntios 3.12-15; Hebreus
6.4-6; 10.26-31.
124
O Catechism cita efetivamente o primeiro versículo (Jo 3.18) em sua discussão, mas a principal
afirmação do versículo — “mas quem não crê, já está condenado” — se refere não à autocondenação, mas à
condenação divina (tomando-se a construção passiva “não está condenado” como passiva divina, i.e., Deus
condena), segundo fica confirmado pelo versículo 36. Apela-se também para João 12.48 (ou melhor, para os
v. 47,48), que enfatiza o que já foi observado: a missão do Filho era trazer a salvação, e não juízo. Esse
ponto, porém, não pode ser mal interpretado dando-lhe o sentido de que Jesus não julga os que o rejeitam e
à salvação que ele provê. Na verdade, a passagem indica que o juízo no caso dos descrentes, embora não
diretamente dispensado por Cristo, é realizado por sua palavra: “A palavra que tenho pregado, essa o julgará
no último dia” (v. 48). Entender essa passagem como se indicasse a autocondenação é perder seu
significado de vista. Além disso, Mateus 12.32 lida com uma rejeição específica da obra do Espírito Santo
que testemunha de Cristo — ele se refere a ela como “blasfêmia contra o Espírito” (v. 31) e explica que se
trata de um pecado imperdoável — e que não pode ser generalizado de tal modo que inclua todos os tipos
de rejeição da graça divina. A passagem também não dá respaldo à ideia de que tal pecado traga a
autocondenação; uma vez mais, a expressão passiva “não será perdoado” é um passivo divino, cujo
significado é mais propriamente o de que Deus não perdoará esse pecado odioso. Por fim, não fica evidente
como 1Coríntios 3.12-15 e as passagens de Hebreus (6.4-6; 10.26-31) respaldam o argumento do
Catechism.
125
CCC 683.
126
CCC 685; a citação é do Credo de Niceia.
127
CCC 688.
128
CCC 689.
129
CCC 690.
130
CCC 692.
131
CCC 694-701.
132
CCC 711.
133
CCC 722, 721 (grifo removido).
134
CCC 725 (grifo removido).
135
CCC 726.
136
CCC 727.
137
CCC 728.
138
CCC 729.
139
CCC 732-736.
140
CCC 737.
141
CCC 738-739.
142
Cf. discutimos anteriormente a respeito da doutrina da Trindade que as promessas de Jesus de enviar
o Espírito, e de enviá-lo do Pai, que, por sua vez, enviaria o Espírito em nome de Jesus, constituem a base
para a crença católica e protestante da dupla processão do Espírito: ele procede do Pai e do Filho.
143
CCC 692.
144
Veja a discussão no capítulo 2.
145
Veja Gregg R. Allison, “Baptism of and filling with the Holy Spirit”, Southern Baptist Journal of
Theology (Winter 2012): 4-20.
4
A PROFISSÃO DA FÉ
(primeira parte, seção 2, capítulo 3, artigo
9)
A doutrina da igreja

A doutrina da igreja: “Creio na santa Igreja Católica”


(seção 2, capítulo 3, artigo 9, parágrafos 1-3)
Seguindo a discussão das doutrinas de Cristo e do Espírito Santo, e à luz dessas
doutrinas e delas dependente, o Catechism of the Catholic Church trata em
1

seguida da doutrina da igreja. Crer efetivamente que a igreja é una, santa,


católica e apostólica “é algo indissociável da fé em Deus — o Pai, o Filho e o
Espírito Santo”. Além disso, o cristão professa “a Igreja”, mas não crê na Igreja,
2

“para que não se confunda Deus com suas obras”. Na primeira parte deste
3

capítulo, discutiremos e avaliaremos os três primeiros parágrafos da doutrina da


igreja exposta no Catechism. Na metade final do capítulo, apresentaremos e
avaliaremos os três parágrafos seguintes da eclesiologia do Catechism.
A palavra “igreja” vem do latim ecclesia, que, por sua vez, deriva do grego
ἐκκαλειν (ekkalein) e significa “chamar para fora”; portanto, o termo se refere a
uma assembleia e, nesse caso, uma assembleia para fins religiosos. No Antigo
Testamento grego, “igreja” se referia ao ajuntamento do povo de Israel diante de
Deus, especialmente no monte Sinai, para o recebimento da Lei. A primeira
comunidade cristã, ao chamar a si mesma de “igreja”, identificava-se
prontamente como herdeira daquela assembleia, mas que agora consistia em
pessoas do mundo todo “reunidas” por Deus. Em seu contexto cristão, há três
significados inseparáveis de “igreja”: a assembleia litúrgica (cristãos
efetivamente reunidos para adoração), a comunidade local (uma igreja local
composta de seus membros) e toda a comunidade universal dos crentes. A igreja
universal se manifesta nas igrejas locais e “se torna realidade como assembleia
litúrgica, sobretudo eucarística”. São inúmeros os símbolos da igreja. Eles se
4

concentram na imagem do corpo de Cristo. São eles, entre outros,


ovelhas/rebanho (e.g., Jo 10.1-10), um campo cultivado ou uma vinha (1Co 3.9;
Rm 11.13-26), uma construção divina (1Co 3.9,11; 1Pe 2.7), uma família (1Tm
3.15), o templo (1Co 3.16,17; Ap 21.3; 1Pe 2.5), “Jerusalém que desce do céu”
(Ap 21.1,2) e “nossa mãe”. 5

O Catechism faz diversas afirmações a respeito da igreja: ela está


fundamentada no Deus trino e é por ele constituída; de modo concreto, foi ela
predeterminada por Deus Pai de acordo com seu plano eterno. A igreja começou
como um ajuntamento do povo de Deus no momento em que o pecado arruinou
sua comunhão com Deus; mais precisamente, sua preparação remota começou
com a vocação de Abraão e a eleição de Israel para que fosse o povo da aliança
(mas que, tragicamente, rompeu a aliança que tinha com ele). A igreja foi
instituída por Cristo, que inaugurou o reino de Deus, a igreja como reino
inaugurado por Cristo na terra. Hierarquicamente, ela se acha estruturada por
Cristo em torno da “escolha dos Doze, tendo Pedro como chefe”. “A Igreja
6

nasceu em primeiro lugar da entrega total de Cristo pela nossa salvação,


antecipada na instituição da eucaristia e concretizada na cruz.” Ela é revelada
7

pelo Espírito Santo e é missional em sua constituição — foi criada para fazer
discípulos de todas as nações — por obra de Cristo e do Espírito. Por fim, a
igreja será um dia aperfeiçoada na glória quando Cristo retornar.
Misteriosamente, a igreja é a um só tempo visível e espiritual, humana e
divina; visível e humana em sua hierarquia e em sua sociedade terrena; espiritual
e divina em sua natureza de corpo místico de Cristo e comunidade espiritual a
quem foram concedidas riquezas celestiais. Essas características pertencem não
apenas às igrejas locais, mas também à igreja universal. Além disso, a igreja é o
sacramento universal da salvação: “A Igreja, em Cristo, é como um sacramento
— sinal e instrumento, a saber, de comunhão com Deus e de unidade entre todos
os homens”. Cristo usa o sacramento da igreja como instrumento de salvação
8

universal, unindo o ser humano a Deus, unindo todos os seres humanos a Deus e,
como consequência disso, todos os seres humanos uns com os outros.
O Catechism apresenta três elementos descritivos principais da igreja: em
primeiro lugar, a igreja é o povo de Deus, um povo sacerdotal, profético e real.
Em segundo lugar, a igreja é o corpo de Cristo, está unida a ele que é a cabeça de
um corpo de grande diversidade, composto por muitos membros. Na verdade,
“Cristo e sua Igreja formam juntos o ‘Cristo total’ (Christus totus)”. Além disso,
9

a igreja é a noiva de Cristo. Em terceiro lugar, a igreja é o templo do Espírito


Santo, estimulando o batismo, os sacramentos, a graça, as virtudes e as graças ou
dons especiais de serviço, os chamados “carismas”, para a edificação da igreja. 10
Em sintonia mais próxima com a profissão de fé detalhada do Credo de
Niceia, o Catechism discute a identidade da igreja sob a ótica de seus quatro
atributos históricos ou clássicos: unicidade, santidade, catolicidade e
apostolicidade. A igreja é una por causa de sua (1) fonte, que é o Deus trino, três
Pessoas em perfeita unidade; de seu (2) fundador, o Filho de Deus, que se fez
carne e que reconciliou todos com Deus por meio de sua morte sacrifical e,
portanto, une todos em seu corpo; e sua (3) “alma”, que é o Espírito Santo que
habita em todos os crentes e, desse modo, une todos. Por esses motivos, “a
unidade é a essência da Igreja”. Contudo, essa unidade não é uniformidade ou
11

igualdade, porque a igreja una também é caracterizada por uma grande


diversidade em razão da variedade dos dons divinos, à diversidade das pessoas
do mundo todo que os recebem e à variedade de igrejas locais que conservam
suas próprias tradições. De modo concreto, os laços que unem a igreja são a
“profissão de uma só fé recebida dos apóstolos; a celebração comum da
adoração divina, especialmente dos sacramentos; e a sucessão apostólica
mediante o sacramento da ordem”. O Credo, a liturgia e a sucessão apostólica
12

fazem parte “da Igreja única de Cristo que nosso Salvador [...] confiou aos
cuidados pastorais de Pedro, ordenando-lhe, e aos outros apóstolos, que a
propagassem e governassem [...]. Essa Igreja [...] subsiste em (subsistit in) na
Igreja Católica, que é governada pelo sucessor de Pedro e por seus bispos em
comunhão com ele”. Como apenas a Igreja Católica possui esses três elementos
13

de unidade, é somente por meio dessa igreja que a “a ajuda universal para a
salvação [...] a plenitude dos meios de salvação pode ser obtida”. 14

O Catechism lamenta as inúmeras “feridas à unidade” que destruíram a união


da igreja una, admitindo que pessoas de ambos os lados das divisões pecaram e
por isso são culpadas. Tal divisão histórica não significa que os membros das
igrejas atuais alheios à Igreja Católica sejam culpados do pecado da separação;
pelo contrário, eles são aceitos como irmãos: “Justificados pela fé recebida no
batismo, incorporados em Cristo, é a justo título que se honram com o nome de
cristãos e os filhos da Igreja Católica reconhecem-nos legitimamente como
irmãos no Senhor”. Além disso, “há inúmeros elementos de santificação e de
15

verdade fora dos limites da Igreja Católica”: Escritura; graça; fé, esperança e
16

amor; os dons do Espírito; os elementos visíveis. Na verdade, “da plenitude da


17

graça e da verdade que Cristo confiou à Igreja Católica”, essas outras igrejas e
comunidades eclesiais derivam seu poder para que se tornem meios de salvação,
sendo ao mesmo tempo chamadas à “unidade católica”. Graças à grande
18

importância do atributo de unicidade da igreja, o Catechism ressalta o dom de


recuperação da unidade por meio de Cristo e o apelo do Espírito nesse sentido, e
lista elementos (e.g., a renovação, conversão do coração, a oração comunitária, o
diálogo ecumênico) para a concretização dessa restauração desejada. 19

O segundo atributo da igreja é a santidade. A igreja é santa porque “já é


dotada de uma santidade real, porém imperfeita”. No âmago dessa confissão
20

encontramos a Parábola do Trigo e do Joio aplicada aos membros da igreja: “Em


todos eles, o joio do pecado encontra-se ainda misturado com a boa semente do
evangelho até o fim dos tempos”. Composta por pecadores que continuam a
21

pecar e estão em necessidade constante de arrependimento e de renovação, a


igreja só é santa em parte. Ao mesmo tempo, alguns de seus membros, movidos
“pelo poder do Espírito da santidade” [...] “praticaram a virtude heroica e
viveram uma vida fiel à graça divina” e, portanto, são reconhecidos pela igreja
(o termo técnico é “canonizado”) como santos. A igreja os coloca como
“modelos e intercessores” e os vê como agentes de renovação. O maior 22

exemplo de todos é o de Maria, a quem os fiéis voltam os olhos porque “na


pessoa da Santíssima Virgem, a Igreja alcançou já aquela perfeição, sem mancha
nem ruga, que lhe é própria”. 23

O terceiro atributo da igreja é a catolicidade, termo oriundo de “católico”, que


significa “universal”. A igreja é católica por causa da (1) presença de Cristo nela
e à (2) comissão universal que lhe foi dada por Cristo. Com referência ao
primeiro motivo, Inácio diz: “Onde está Jesus Cristo, aí está a Igreja Católica”. 24

Como totus Christus, o Cristo total como cabeça unida à plenitude do seu corpo,
a igreja possui a plenitude dos meios de salvação, concretamente o Credo, a
liturgia com seus sacramentos e a sucessão apostólica. Com relação ao segundo
motivo, Cristo comissionou seus discípulos com a seguinte ordem: “Portanto,
ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, do Filho e
do Espírito Santo” (Mt 28.19). O alcance da Grande Comissão é universal. Essa
catolicidade é parte não apenas da igreja em geral. Toda igreja em particular (ou
diocese) — “uma comunidade de fiéis cristãos em comunhão sacramental e de fé
com seu bispo ordenado de acordo com a sucessão apostólica” — é plenamente
católica por meio de sua comunhão com a igreja de Roma. 25

O Catechism faz uma pergunta importante: “Quem pertence à Igreja


Católica?”. Para que se tenha uma ideia da resposta, pense em círculos
concêntricos com o fiel católico no centro, outros que creem em Cristo —
cristãos ortodoxos, protestantes, evangélicos — nos círculos mais distantes do
centro e mais o restante da humanidade, “chamados por Deus para a graça da
salvação”, nos círculos mais remotos. 26

A começar dos círculos mais internos constituídos pelos católicos, o


Catechism afirma:
Estão plenamente incorporados na sociedade que é a Igreja aqueles que, tendo o Espírito de Cristo,
aceitam toda a sua organização e todos os meios de salvação nela instituídos, e que, além disso, pelos
laços da profissão de fé, dos sacramentos, do governo eclesiástico e da comunhão, estão unidos no
todo visível da Igreja, com Cristo que a dirige por meio do Sumo Pontífice [i.e., o papa] e dos bispos.
Mas a incorporação não garante a salvação àquele que, por não perseverar na caridade, está no seio
da Igreja “de corpo”, mas não “de coração”.27

Portanto, o fiel católico ocupa o círculo mais interno.


Nos círculos mais distantes encontramos os “que tendo sido batizados, têm o
belo nome de cristãos, embora não professem integralmente a fé ou não guardem
a unidade de comunhão com o sucessor de Pedro [i.e., o papa]”. Esses crentes 28

que foram devidamente batizados — isto é, em nome do Deus trino na água —


“encontram-se em certa comunhão, embora imperfeita, com a Igreja Católica”. 29

Embora protestantes e evangélicos estejam nessa categoria, a descrição se refere


especialmente aos membros das igrejas ortodoxas.
Nos círculos ainda mais distantes se acham os judeus, muçulmanos e adeptos
de outras religiões não cristãs, pessoas “que ainda não receberam o evangelho”,
porém “se acham relacionadas com o povo de Deus sob vários aspectos”. Em 30

relação aos judeus, a igreja tem em comum com eles a fé na revelação de Deus
na antiga aliança, a Lei, os patriarcas e o Cristo (Rm 9.4,5); de fato, tanto judeus
quanto a igreja esperam “a vinda (o retorno) do Messias”, embora, no que diz
respeito aos judeus, “a espera se dê acompanhada do drama de não conhecer ou
de compreender mal a Cristo Jesus”. Em relação aos muçulmanos, o Catechism
31

afirma que “o desígnio de salvação envolve igualmente os que reconhecem o


Criador, entre os quais, em primeiro lugar, os muçulmanos, que, declarando
guardar a fé de Abraão, conosco [a Igreja Católica] adoram o Deus único e
misericordioso que há de julgar os homens no último dia”. Com relação aos
32

adeptos das religiões não cristãs — por exemplo, hindus, budistas, siques,
bahahístas, zoroastrianos, xintoístas, animistas —, “a Igreja reconhece nas
33

outras religiões a busca, ‘ainda nas sombras e sob imagens’, do Deus


desconhecido, mas próximo, pois é ele quem a todos dá vida, respiração e todas
as coisas e quer que todos os homens se salvem. Assim, a Igreja considera tudo
quanto nas outras religiões pode encontrar-se de bom e verdadeiro ‘como uma
preparação evangélica e um dom daquele que ilumina todo homem, para que,
finalmente, tenha a vida’”. Ao mesmo tempo, o Catechism reconhece e censura
34

o engano satanicamente induzido que leva a idolatria e o desespero ao


comportamento religioso desses não cristãos. Já advertia o Concílio Vaticano II:
“Muitas vezes os homens, enganados pelo Maligno, se desvaneceram em seus
pensamentos e mudaram a verdade de Deus em mentira, servindo à criatura mais
que ao Criador (Rm 1.21,25) ou, vivendo e morrendo sem Deus neste mundo, se
expõem à condenação eterna”. Desse modo, embora o catolicismo abrace um
35

caminho de salvação para seus adeptos, ele também reconhece que na jornada
por eles empreendida não faltam sérias dificuldades.
Uma vez que essas outras igrejas, comunidades eclesiais e religiões não cristãs
se acham em maior ou menor grau distantes da plenitude da salvação que há no
centro do círculo, “o Pai quis reunir toda a humanidade na Igreja do seu Filho. A
Igreja é o lugar onde a humanidade deve reencontrar sua unidade e salvação. Ela
é ‘o mundo reconciliado’”. O Catechism suscita outra indagação importante:
36

como a afirmação tradicional “fora da Igreja não há salvação” deve ser


37

entendida atualmente? “Reformulada de maneira positiva, ela significa que toda


a salvação vem de Cristo, a Cabeça, por meio da Igreja que é seu corpo”; de fato,
a Igreja é “necessária à salvação” porque Cristo “afirmou a necessidade da fé e
do batismo e, desse modo, confirmou ao mesmo tempo a necessidade da
Igreja”. O Catechism acrescenta: “É por isso que não se podem salvar aqueles
38

que, não ignorando que Deus, por Jesus Cristo, fundou a Igreja Católica como
necessária, se recusam a entrar nela ou a nela perseverar”. O Catechism faz
39

então uma advertência: “Esta afirmação não visa àqueles que, sem culpa da sua
parte, ignoram Cristo e sua Igreja”. Na verdade, “também podem conseguir a
40

salvação eterna aqueles que, ignorando sem culpa o evangelho de Cristo e a sua
Igreja, no entanto procuram Deus com um coração sincero e se esforçam, sob o
influxo da graça, por cumprir a sua vontade conhecida por meio do que a
consciência lhes dita”. O que Deus realiza misteriosamente nesses casos não
41

tira, nem deve tirar, a obrigação da igreja de alcançar todas as pessoas com o
evangelho.
Consequentemente, sua catolicidade exige que a igreja seja missional. A ela
foi concedida a Grande Comissão (Mt 28.19,20), um mandato missionário que
tem em sua origem o amor pelo Deus trino e que tem como propósito o
estabelecimento da comunhão de amor entre Deus e o ser humano. Movida pelo
amor de Cristo (2Co 5.14), motivada pela consciência de que Deus deseja que
todos se salvem (1Tm 2.4), e conduzida pelo Espírito, a igreja participa de
esforços missionários cujo propósito é levar a verdade da salvação aos que já
desejam a verdade. 42

O quarto atributo da igreja é a apostolicidade. A igreja é apostólica, ou


fundada sobre os apóstolos, de três maneiras: (1) seu pilar era e é “o fundamento
dos apóstolos” (Ef 2.20; cf. Ap 21.14), os quais foram devidamente designados
por Cristo; (2) ela preserva e comunica o “bom depósito” (“bom tesouro”, 2Tm
1.13,14, A21) ou as palavras/ensinamentos sadios que aprendeu com os
apóstolos; e (3) “continua a ser ensinada, santificada e guiada pelos apóstolos até
o retorno de Cristo por meio de seus sucessores no ofício pastoral: o colégio dos
bispos, ‘assistida pelos sacerdotes, em união com o sucessor de Pedro, o pastor
supremo da Igreja’”. De acordo com a Escritura, Jesus Cristo escolheu doze
43
discípulos e deu a eles o nome de apóstolos, ou emissários (embaixadores,
missionários), nos quais ele continua sua missão: “Assim como o Pai me enviou,
também eu vos envio” (Jo 20.21). “O ministério dos apóstolos é a continuação
da sua missão; Jesus disse aos Doze: ‘Quem vos recebe, recebe a mim’” (Mt
10.40; cf. Lc 10.16). O ofício do apostolado tem um aspecto que não pode ser
44

transmitido e outro aspecto que pode ser transmitido. O primeiro aspecto,


intransferível, é o de ser testemunha ocular da ressurreição de Cristo e, portanto,
pedra fundamental da igreja. Somente os apóstolos originais exerceram esse
aspecto do ofício apostólico. O segundo aspecto, também permanente, baseado
na promessa de Cristo de estar com seus discípulos sempre, consiste na
indicação dos sucessores dos apóstolos, isto é, na sucessão apostólica. Esses
sucessores são os bispos da igreja; os apóstolos “confiaram, por sua vontade e
testamento, por assim dizer, a seus colaboradores imediatos o dever de completar
e consolidar a obra por eles começada [...]. Assim, instituíram homens nessas
condições e tudo dispuseram para que, após a sua morte, outros homens
provados tomassem conta do seu ministério”. Esse ofício episcopal de
45

apascentar ou pastorear a igreja é de caráter permanente, traz consigo a


aprovação divina e exige obediência.
Além da sucessão apostólica, por meio do ofício do bispo, a igreja toda é
apostólica, uma vez que todos os seus membros participam do apostolado, ou da
missão ao mundo. Eles realizam esse apostolado de várias maneiras: há os que
tomam a ordem de ministros (padres, bispos, cardeais) e outros que nela servem
como leigos.
Em suma, a igreja é una, santa, católica e apostólica. Esses atributos
constituem sua identificação principal, e a plenitude e o esplendor da unidade,
santidade, universalidade e apostolicidade da igreja serão por fim revelados
quando Cristo voltar em sua glória.

Avaliação evangélica
Embora o Catechism prossiga em sua longa discussão da doutrina da igreja, vale
a pena fazer uma avaliação do que ele afirma até este ponto (parágrafos 1-3).
Conforme ficará evidente, uma das doutrinas que mais separa a teologia católica
da teologia evangélica é a doutrina da igreja. Antes de apresentar as muitas áreas
de conflito, porém, é importante salientar as várias áreas de concordância.

Avaliação geral
Em linhas gerais, a teologia católica e a evangélica concordam que a noção
básica em relação à igreja é a de que se trata de uma assembleia. Ambas
46

identificam dois tipos de assembleia: a reunião de cristãos para, juntos, adorar a


Deus; e os membros de uma igreja local. Conforme veremos, há discordância em
relação ao terceiro tipo de assembleia, isto é, a igreja universal. Há também
concordância no que diz respeito ao entendimento da natureza da igreja no que
tange às metáforas bíblicas (e.g., edificação, família) usadas para apresentá-la.
Além disso, a teologia evangélica abraça a natureza trinitária da igreja, sua
identidade missional e sua orientação escatológica. Os três elementos descritivos
da igreja — povo de Deus, corpo de Cristo, templo do Espírito Santo — e a
forma em que a teologia católica os compreende estão, de certa forma, em
sintonia com a teologia evangélica. 47

Com relação à origem da igreja, as duas posições teológicas são bastante


coincidentes. De acordo com a perspectiva da continuidade, a igreja começou
com Adão e Eva e, depois da queda no pecado, houve a necessidade de salvação
para resgatar o ser humano caído. Consequentemente, há um povo de Deus — a
igreja — formado por todos os fiéis a partir de Adão e Eva, incluindo os
patriarcas, estendendo-se ao povo de Israel sob a antiga aliança até os cristãos
sob a nova aliança. Em outros termos, há continuidade entre o povo judeu fiel
antes de Jesus Cristo e o povo cristão fiel depois dele: juntos, formam um único
povo de Deus. A teologia católica abraça essa posição de continuidade, bem
como muitas variedades da teologia evangélica, entre elas a reformada e a
luterana.
De acordo com a perspectiva da descontinuidade, a igreja começou no
Pentecostes, conforme já disse em outro lugar: “a igreja é o povo de Deus salvo
pelo arrependimento e pela fé em Jesus Cristo que foi incorporado ao seu corpo
por meio do batismo com o Espírito Santo”. A igreja é caracterizada por certas
48

realidades: fé, concretamente na morte, no sepultamento e na ressurreição de


Jesus Cristo; incorporação ao seu corpo por meio do batismo com o Espírito;
habitação permanente do Espírito em seu novo ministério de aliança; dons
espirituais distribuídos pelo Espírito; judeus e gentios em uma nova instituição;
batismo e a ceia do Senhor como sinais da nova aliança. Como essas realidades
não podiam ser aplicadas ao povo de Israel antes da vinda de Cristo, a igreja não
podia, nem poderia, existir antes dessa época. Consequentemente, como há
descontinuidade entre o povo de Israel antes da vinda de Cristo e os cristãos da
nova aliança, a igreja não existia antes de Cristo, tendo começado no dia de
Pentecostes. A teologia católica não subscreve a perspectiva da
49

descontinuidade, que é, entretanto, aceita por muitos tipos de teologia


evangélica, com frequência no âmbito do termo “dispensacionalismo”.
Um dos principais pontos de conflito em relação à doutrina da igreja é a ideia
de igreja universal. Para a teologia católica, trata-se de um dos três tipos de
assembleia (juntamente com o ajuntamento para adoração e a igreja local); a
teologia evangélica está de acordo, mas com um entendimento muito diferente
de igreja universal. Para a teologia católica, a igreja universal é a Igreja Católica
como realidade concreta e real, além de ser uma realidade espiritual e mística.
Como igreja visível e humana, a igreja universal ou católica professa uma fé
comum, participa da adoração a Deus com uma liturgia comum, é alimentada
por meio de sacramentos comuns e é ensinada, regida e santificada por uma
hierarquia comum por meio da sucessão apostólica. A teologia evangélica
concebe a igreja universal como a comunhão de todos os fiéis, incorporando
todos os crentes mortos que se acham atualmente no céu e os crentes vivos do
mundo todo. O primeiro aspecto dessa igreja universal consiste na igreja
“celestial” (Hb 12.23). Embora “o segundo aspecto de igreja não seja do tipo que
se reúne, não possua estrutura ou organização, não tenha líderes humanos nem
disponha de endereço no espaço-tempo”, essas características intangíveis não a
50

tornam menos real, já que a igreja universal se manifesta nas igrejas locais.
Consequentemente, há uma ampla divisão entre a ideia de igreja universal da
teologia católica e da teologia evangélica. Uma implicação dessa divergência
consiste no fato de que a teologia evangélica discorda da alegação da teologia
católica de ser sacramento universal de salvação. Sem dúvida, as igrejas locais
são divinamente designadas para serem instrumentos de salvação, à medida que
seus pastores e membros proclamam o evangelho, discipulam, adoram, batizam,
celebram a ceia do Senhor, oram, educam, proporcionam comunhão, cuidados,
exercitam os dons espirituais etc. Contudo, tal instrumentalidade pertence às
igrejas locais, mas não se estende o bastante para incluir uma igreja universal
que seja uma assembleia concreta e real — a Igreja Católica.
No âmago da discordância da teologia evangélica, deparamos com o duplo
axioma do sistema católico. A interdependência natureza-graça requer que a
graça divina se manifeste concretamente na natureza. Desse modo, a igreja como
corpo de Jesus Cristo não pode ser uma entidade invisível, espiritual e
intangível. Pelo contrário, ela deve ser uma realidade visível, material e concreta
— a Igreja Católica. A interconexão Cristo-Igreja significa que a Igreja Católica
é a extensão da encarnação do Cristo que subiu ao céu. Concretamente, a Igreja
Católica faz a mediação da graça divina para a natureza (humana), de modo que
seja o meio único e universal de salvação. Como esses dois axiomas (que estão
no âmago do sistema teológico católico) já foram avaliados (cap. 1), nos
ocuparemos aqui da crítica específica da eclesiologia católica, particularmente
da sua apresentação dos quatro atributos históricos ou clássicos da igreja.
É importante ressaltar que os reformadores protestantes criticaram a Igreja
Católica e dela se separaram por esta se autoproclamar a “única, santa, católica e
apostólica”. Essa separação não se deu porque os reformadores achavam esses
atributos históricos antibíblicos e, portanto, infiéis à igreja, e sim porque a igreja
do século 16 dizia serem essas suas características, mas desvirtuava sua
fidelidade a elas e à realidade que comportavam em virtude do estado de
decadência a que havia sucumbido. Consequentemente, embora afirmassem que
a igreja era “única, santa, católica e apostólica”, os reformadores tinham de
distinguir as verdadeiras igrejas — as que haviam sido inauguradas por Martinho
Lutero, Ulrico Zuínglio, João Calvino e outros — da falsa Igreja Católica. A
situação fez os reformadores assinalarem as características da verdadeira igreja,
que eram duas. Conforme diz a Confissão de Augsburgo (de teologia luterana):
“A igreja é a congregação dos santos em que o evangelho é ensinado
corretamente e os sacramentos [batismo e ceia do Senhor] são administrados
corretamente”. Calvino (de teologia reformada) estava de acordo: “Onde quer
51

que vejamos a Palavra de Deus pregada e ouvida com pureza, e os sacramentos


ministrados em consonância com a forma em que foram por Cristo instituídos, aí
haverá uma igreja de Deus”. Algumas igrejas protestantes posteriores
52

acrescentaram uma terceira marca: disciplina da igreja. 53

Unicidade/unidade
Consequentemente, embora a teologia católica acentue esses três elos — o
Credo, a liturgia e a sucessão apostólica — de unicidade da igreja, a teologia
54

evangélica sustenta que “para que haja unidade verdadeira da igreja, basta que
haja concordância no tocante ao evangelho e à administração dos sacramentos”. 55

Além disso, para a teologia evangélica a unidade se dá de três maneiras: por sua
posição, a unidade é a realidade da igreja; isto é, ela já está unida porque recebeu
o dom da unicidade pelo Espírito Santo (Ef 4.3). Por seu propósito, a igreja tem
como objetivo “[chegar] à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de
Deus, ao estado de homem feito, à medida da estatura da plenitude de Cristo” (v.
13). Essa conquista da unidade como objetivo acarreta um processo. Do ponto de
vista instrumental, a unidade entre seus membros estimula o crescimento na
unidade. Por esse motivo, a igreja se emprenha sobremaneira para preservar a
unidade de que foi dotada (v. 3). “Portanto, afirmar a unidade da igreja significa
afirmar que a igreja, que é dotada de unicidade, busque o objetivo da unidade
perfeita trabalhando diligentemente para preservar sua unidade.” 56

Em relação aos três elos concretos de unidade sustentados pela teologia


católica, porque somente a Igreja Católica os possui, é somente por meio da
igreja, como “auxílio universal para salvação [...] [que] se podem obter os meios
de salvação”. É evidente que a teologia evangélica discorda dessa posição,
57

juntamente com seu corolário segundo o qual “a Igreja única de Cristo [...]
subsiste na (subsistit in) Igreja Católica, que é governada pelo sucessor de Pedro
e pelos bispos em comunhão com ele”. Embora a teologia católica não se
58

abstenha de chamar os evangélicos de “cristãos” e até admire sua dedicação à


Escritura, à graça divina etc., ela se recusa a chamar de igrejas suas assembleias;
elas são, em vez disso, “comunidades eclesiais”. Além disso, a teologia católica
59

insiste que a salvação oferecida às pessoas por meio das comunidades eclesiais
decorre, na verdade, “da plenitude da graça e verdade que Cristo confiou à Igreja
Católica”. Além disso, para que se possa recuperar um dia a unidade entre as
60

comunidades eclesiais evangélicas e as demais igrejas, as assembleias


evangélicas devem se unir à Igreja Católica.
Além da crítica aos dois axiomas sobre os quais se acha fundamentada a
eclesiologia católica, fazem-se necessárias várias críticas específicas.
Certamente, a teologia evangélica vê com apreço a clareza da teologia católica
nesse ponto. Na esteira do Concílio Vaticano II, um grau elevado de
ambiguidade sobre a relação das igrejas evangélicas com a Igreja Católica
obscureceu essa relação e, portanto, tornou-a inútil. Além disso, a teologia
evangélica acolhe todas as doutrinas em comum que partilha com a teologia
católica, conforme exposto neste livro, e se alegra com os católicos que,
mediante o arrependimento do pecado e da fé somente na obra redentora de
Jesus Cristo, conforme a proclamação do evangelho, abraçaram a salvação.
Contudo, a teologia evangélica destaca que, por causa do posicionamento da
teologia católica, a caminhada de alguns evangélicos em direção à Igreja
Católica — e o estímulo dos católicos para que o façam — em resposta ao
anseio pela unidade de todas as igrejas e a superação das divisões históricas e
atuais entre elas, não pode chegar a bom termo. A posição do catolicismo de que
as comunidades eclesiais evangélicas não são nem sequer igrejas não contribui
para que se supere o problema da falta de união. Além disso, a visão utópica de
que outras igrejas e comunidades eclesiais finalmente se unirão ao se juntarem à
Igreja Católica não se concretizará, nem sequer se deve buscar tal coisa. Esse
sonho exigiria que a teologia evangélica e as igrejas estivessem de acordo com
os axiomas da interdependência natureza-graça e com a interconexão Cristo-
Igreja, rendendo-se às doutrinas que as separam da teologia católica (conforme
exposto neste livro), abandonando desse modo os princípios protestantes do sola
Scriptura e a justificação unicamente pela graça por intermédio unicamente da
fé. Essas atitudes são inadmissíveis.
Santidade
Com relação ao atributo da santidade, a teologia evangélica e a católica
concordam que a pureza com que a igreja se acha dotada é um dom real, ainda
que imperfeito. A teologia evangélica afirma que há três meios pelos quais a
igreja é santa. No que diz respeito à sua posição, a igreja já é santa, ou separada
do pecado e do mundo, para ser usada de modo especial por Deus (1Co 1.1,2).
No que se refere ao seu propósito, o objetivo da igreja é a pureza perfeita em
resposta à visão bíblica do seu futuro “santa e sem mancha” (Ef 5.27). No plano
instrumental, a igreja promove uma pureza cada vez maior ao buscar a santidade
de seus membros (2Co 6.14—7.1).
O principal ponto de desacordo nesse atributo da igreja diz respeito à extensão
da santidade possível durante esta peregrinação na terra. Segundo a teologia
católica, alguns “fiéis praticaram heroicamente as virtudes e viveram na
fidelidade à graça de Deus” e, portanto, devem ser canonizados. Com relação
61

ao axioma da interdependência natureza-graça, essa visão de santidade se baseia


na graça elevando completamente a natureza (humana) de modo que se torne
perfeita. O axioma é falho, conforme explicamos na crítica anterior ao sistema
católico. Contudo, apresentaremos agora algumas críticas específicas a ele. Uma
das principais é que essa posição de conquista da santidade completa —
estimulada pela graça divina e por ela produzida, conforme insiste com
veemência a teologia católica — é contrariada pela Escritura. Até mesmo
quando a Bíblia apresenta seus “heróis” como pessoas justas e sem culpa,
tementes a Deus e que caminham na presença dele — por exemplo, Noé (Gn
6.9), Jó (Jó 1.1,8), Zacarias e Isabel (Lc 1.6) —, ela não deixa de apontar suas
falhas. Além desses exemplos, o apóstolo João adverte os cristãos de que “se
dissermos que não temos pecado algum, enganamos a nós mesmos, e a verdade
não está em nós. Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos
perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça. Se dissermos que não temos
cometido pecado, nós o tornamos mentiroso, e sua palavra não está em nós” (1Jo
1.8-10). Em face do padrão de justiça que caracterizava Jesus — “Sede, pois,
perfeitos, assim como perfeito é o vosso Pai celestial” (Mt 5.48) —, não é de
espantar que ele tenha também ordenado aos discípulos que confessassem
diariamente seus pecados (Mt 6.12). A concretização da obediência e da
fidelidade absolutas a Deus e à sua vontade não é algo que tenha sido concedido
ao cristão em sua vida terrena; portanto, a teologia católica está errada quando
diz que alguns dos fiéis atingiram essa santidade inatingível. 62

Além de ir de encontro à Escritura, esse posicionamento está errado por outros


motivos. Em primeiro lugar, ele representa o que a teologia evangélica chama de
“escatologia super-realizada”. A expressão se refere a realidades que estão
reservadas para o futuro, depois que Jesus Cristo voltar, sendo prematuramente
transportadas e concretizadas no presente. Por exemplo, há quem insista que os
seres humanos, que no “mundo vindouro” (Lc 24.35, A21) não se casarão,
devem abrir mão hoje do casamento. Uma realidade futura é transportada para o
presente e nele concretizada. Para a teologia evangélica, a doutrina da santidade
da teologia católica padece de tal escatologia super-realizada: trata-se de uma
realidade que é prometida como bênção futura, mas é prematuramente
transportada para a era presente e nela concretizada. Um segundo problema
questiona a ajuda efetiva que seres humanos totalmente santificados
proporcionam às pessoas que lutam com o pecado e o sofrimento. Uma coisa é o
cristão, quando tentado e provado, buscar acolhimento em seu Sumo Sacerdote,
que foi tentado e sofreu como ele de todas as formas, mas sem pecar. Em seu
caso, Jesus, o Deus-homem, não apenas se solidariza com ele, mas também lhe
dá graça, misericórdia e o ajuda em seus momentos de dificuldades (Hb 2.14-18;
4.16-18). Contudo, a ideia de seres humanos como modelos de santidade não
encoraja de fato os que são fracos e passam por lutas; pelo contrário, as pessoas
perfeitas são como fardos da lei para os pecadores: o que há de errado com esses
fracassados abjetos que os impede de ser como os santos? Além disso, esses
santos não podem lhes oferecer graça e misericórdia, senão um padrão
inatingível que funciona como uma lei que implica uma condenação ainda maior,
já que não pode ser alcançado. Uma terceira dificuldade, já tratada e que será
novamente discutida posteriormente, é a doutrina da incorruptibilidade de Maria.
Catolicidade
De acordo com a teologia católica, o atributo da catolicidade, ou universalidade,
está a um só tempo em consonância e em oposição à compreensão da teologia
evangélica sobre esse atributo. As duas sustentam que a Grande Comissão (Mt
28.18-20) é o fundamento da universalidade da igreja: como aquele que dá a
ordem, Jesus Cristo não permitirá que sua igreja tenha interesses limitados; pelo
contrário, cabe a ela levar o evangelho a todas as partes do mundo e fazer
discípulos. Portanto, sua catolicidade requer que a igreja seja missional. Outros
elementos básicos desse atributo em relação aos quais as duas teologias estão de
acordo são o amor de Cristo, que impele a igreja para que seja ativa em seu
ministério de reconciliação (2Co 5.14-21); a afirmação bíblica de que Deus não
deseja que ninguém se perca de Cristo, mas quer que todos sejam salvos (2Pe
3.9; 1Tm 2.4); e o revestimento de poder que o Espírito Santo concede à igreja
em seus esforços missionais no mundo todo (At 1.8). Alguns setores da teologia
evangélica — por exemplo, a teologia reformada — acrescentariam outro
elemento básico aos que já foram mencionados: a proclamação do evangelho aos
escolhidos por Deus. Conforme disse o apóstolo Paulo, “suporto todas as coisas
por amor dos eleitos, para que também eles alcancem a salvação que há em
Cristo Jesus com glória eterna” (2Tm 2.10). Consequentemente, a igreja
missional se desloca pelo mundo todo no intuito de alcançar os que foram
escolhidos por Deus para acolher as boas-novas. Dessa perspectiva, de fato, a
igreja não busca anunciar a verdade da salvação às pessoas que já desejam a
verdade (conforme sustenta a teologia católica), mas proclama a verdade do
evangelho, revestida pelo poder do Espírito, o que desperta naqueles a quem
Deus escolheu e chamou um anseio pela verdade e fé (Rm 10.17; cf. 8.29,30;
2Ts 2.13,14).
Apesar desses pontos de concordância, a teologia católica e a evangélica estão
em grande medida em posições opostas no que diz respeito ao atributo da
catolicidade da igreja. A principal fonte de conflito é o axioma da interconexão
Cristo-Igreja do sistema católico. Se a igreja é o prolongamento da encarnação
de Jesus Cristo de tal modo que o Cristo total subsiste na Igreja Católica, e se o
Cristo total está presente em toda parte, segue-se logicamente que a Igreja
Católica também é universal. Além disso, só ela possui “a plenitude dos meios
de salvação”. Esse axioma já foi criticado.
63

Em relação às críticas específicas, a teologia evangélica se mostra


profundamente preocupada com a resposta da teologia católica a uma pergunta
importante: “Quem pertence à Igreja Católica?”. Não é de surpreender que a
primeira parte da resposta afirme que o fiel católico se acha situado no âmago da
igreja, no círculo mais íntimo dos círculos concêntricos; a ele pertence a
plenitude da salvação, que só é encontrada por aquele em plena unidade ou
comunhão com a Igreja Católica. É esse axioma que permite à teologia
evangélica compreender a posição secundária que a Igreja Católica confere a
outras partes da cristandade, mesmo discordando delas. O que mais preocupa,
porém, é o restante da discussão.
Nas extremidades mais remotas dos círculos internos situam-se os membros
de religiões não cristãs que não ouviram o evangelho — concretamente, judeus e
muçulmanos. O que distingue esse círculo dos que se acham ainda mais distantes
do centro é que seu conhecimento de Deus se baseia na revelação bíblica: no
caso dos judeus, o Antigo Testamento, incluindo a promessa do Messias; no caso
dos muçulmanos, a fé de Abraão e o conhecimento de Deus Criador e Juiz
misericordioso. Há salvação para judeus e muçulmanos. Mais distantes ainda do
círculo central se encontram os adeptos das religiões não cristãs — hindus e
budistas, entre outros — que “pesquisam, entre sombras e imagens” o Deus
desconhecido que os criou e deseja que sejam salvos. Outros não cristãos que,
64

pela graça divina, acreditam em Deus, se acham situados no penúltimo círculo


concêntrico. Para eles, a salvação eterna também é possível, contanto que
“busquem a Deus de coração sincero e, movidos pela graça, procurem por meio
de suas ações fazer a vontade de Deus conforme a conhecem pelo que lhes dita a
consciência”. Mais distantes ainda se acham os que se encontram situados no
65
círculo concêntrico mais externo. Essas pessoas vivem sem o conhecimento
explícito de Deus, contudo a salvação está disponível àqueles que, por meio da
graça divina, se esforçam para levar uma vida reta. Essa salvação lhes é dirigida
66

porque Deus deseja que todos se salvem; ela opera neles por causa da graça de
Deus e os une à Igreja Católica em virtude do fato de que ela é “sacramento
67

universal da salvação”. Não fica claro, porém, exatamente de que modo a igreja
68

pode exercer papel instrumental na salvação dos não cristãos que não têm nem
conhecimento de Cristo nem estão familiarizados com sua igreja. Além disso, 69

para a igreja “todo bem ou verdade que se encontra entre os [não cristãos] [...]
consiste em preparação para o evangelho” dado por Deus como luz para eles. 70

Consequentemente, quando a igreja passa a evangelizar esses não cristãos, o


efeito de seu esforço missional consiste no fato de que “todo bem encontrado na
mente e no coração desses homens ou em seus ritos ou costumes, estes são não
apenas preservados da destruição, mas também purificados, elevados e
aperfeiçoados para a glória de Deus, para a confusão do Diabo e para a
felicidade do homem”. Portanto, para a teologia católica as religiões não cristãs
71

têm papel importante na preparação de seus adeptos para a salvação.


A teologia evangélica condena esse conceito de universalidade da igreja que
abraça o inclusivismo, a visão segundo a qual embora (1) a salvação tenha sido
realizada de forma objetiva por meio da morte e ressurreição de Jesus Cristo, (2)
o conhecimento explícito do evangelho de Cristo e da fé nele não são
necessários para que as pessoas acolham a salvação subjetivamente. A teologia 72

evangélica faz objeção ao inclusivismo porque seu segundo princípio não tem
sustentação bíblica. Na verdade, a Escritura contradiz a ideia de que a fé em
Cristo por meio do evangelho não é necessária à salvação (e.g., Rm 10.13-17).
Além disso, ao longo da história, a igreja jamais creu nisso. O fato é que,
inicialmente, a Igreja Católica não trabalhava com a ideia de que não cristãos
poderiam ser salvos sem se tornarem cristãos até o seguinte pronunciamento do
papa Pio IX em 1863:
E aqui, queridos filhos e veneráveis irmãos, é mister recordar e censurar novamente o gravíssimo
erro no qual lastimavelmente se encontram alguns católicos ao opinarem que homens que vivem no
erro e apartados da verdadeira fé e da unidade católica podem obter a salvação eterna. O que
certamente é oposto em sumo grau à doutrina católica. Notório é a nós e a vós que aqueles que
sofrem de ignorância intransponível acerca de nossa santíssima religião, e que sinceramente guardam
a lei natural e seus preceitos esculpidos por Deus no coração de todos que estão dispostos a obedecer
a Deus, e vivem uma vida honesta e reta, podem conseguir a vida eterna pelo poder da operação da
luz divina e da graça, pois Deus, que conhece, busca e compreende claramente a mente, o coração, o
pensamento e a natureza de todos, não permitirá de modo algum que alguém seja castigado com
eternos tormentos, se não é réu de culpa voluntária.73

Até então, o Concílio Vaticano I (1870) não considerava essa ideia, que
efetivamente não veio à tona até a publicação da encíclica de 1943 do papa Pio
XII, O corpo místico de Cristo. Depois de um prolongado desenvolvimento, a
74

Lumen gentium, formulada durante o Concílio Vaticano II, articulava o


inclusivismo conforme descrito, ao mesmo tempo que criava terreno novo ao
afirmar a bondade das religiões não cristãs. Vários outros documentos
conciliares — Nostra aetate, Ad gentes e Gaudium et spes — ecoam ideias
semelhantes. Contudo, a questão persiste: o inclusivismo como teologia católica
75

da salvação de não cristãos é crença nova e, portanto, trai a longa tradição


católica.
A teologia evangélica faz objeção ao inclusivismo com base também em
muitos outros aspectos. O inclusivismo tem uma perspectiva inadequada da
pecaminosidade do homem e de seu impacto sobre a resposta humana à
revelação geral de Deus. De acordo com a Escritura, (1) a resposta dos não
cristãos ao testemunho de Deus na ordem criada é idolatria e os deixa sem
desculpas diante dele (Rm 1.18-25); (2) sua adesão ao que diz sua consciência é,
na melhor das hipóteses, parcial e não os deixa em melhor situação do que os
judeus que têm a lei e a desobedecem (Rm 2.13-16); (3) sua reação ao cuidado
providencial de Deus é superstição e idolatria (At 14.8-18); e (4) a comoção que
sentem no coração na busca de Deus (de quem têm uma percepção inata) resulta
na adoração ignorante que é culpável perante o juiz divino, que exige seu
arrependimento (At 17.22-31). Em outras palavras, o retrato bíblico da condição
do não cristão não é muito bonito. Pelo contrário, ela o apresenta em situação
terrível perante Deus. Essa situação funesta é também realçada pelo Concílio
Vaticano II, cuja Lumen gentium (16), supracitada, conclui sua apresentação do
inclusivismo com palavras fortes de advertência sobre a facilidade com que o
não cristão poderá percorrer a trajetória da salvação desassistido da assistência
missional da igreja. 76

Além disso, o inclusivismo católico parte do princípio de que a adoração, a


oração, a espiritualidade, as boas obras e outras atividades “religiosas” ou
“positivas” das quais o não cristão participa são evidências da graça divina, e
não respostas distorcidas de corações pecaminosos intratáveis. A teologia
evangélica concorda que todo “bem” que o ser humano faça é resultado de sua
criação à imagem de Deus e do fato de ser ele recipiente da graça “comum” (ou,
para outros proponentes da teologia evangélica, da graça preveniente). Contudo,
para a teologia evangélica essa graça não é de modo algum salvadora, isto é, não
produz salvação sem que haja uma resposta de fé do evangelho de Jesus Cristo.
A teologia evangélica discorda da ideia de que qualquer “boa” atividade alcança
o favor divino. Além disso, o desenvolvimento posterior desse inclusivismo pela
teologia católica atribui essas atividades positivas à obra do Espírito que, assim
como o vento, “sopra onde quer” (Jo 3.8). Essa ideia é contraditada pelo próprio
77

Jesus, que associa a atividade do Espírito Santo (semelhante ao vento) à


regeneração (Jo 3.1-8) e promete aos apóstolos o dom do Espírito, “o qual o
78

mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece; mas vós o conheceis”
(Jo 14.17). Se o dom do Espírito Santo está prometido aos cristãos, mas é
negado aos que são de fora, como podem essas versões do inclusivismo católico
alegar um papel para o Espírito nas religiões e atividades dos não cristãos? Para
o inclusivismo católico, também a fé é suscitada por uma atividade divina
independente do conhecimento do evangelho, embora a teologia católica atribua
isso a um mistério que, consequentemente, não foi revelado por Deus. Conforme
se lê no Ad gentes do Concílio Vaticano II: “Deus pode por caminhos dele
conhecidos levar à fé os homens que sem culpa própria ignoram o evangelho.
Pois sem a fé é impossível agradar-lhe”. Se tais caminhos são “conhecidos de
79

Deus”, a implicação parece ser a de que não são conhecidos das pessoas;
portanto, se tal atividade divina não é questão de revelação divina, como pode a
teologia católica afirmar alguma coisa a seu respeito? Assim o inclusivismo
parece ser, no máximo, especulação.
Como objeção final ao inclusivismo católico, a teologia evangélica chama a
atenção para a sua visão de possibilidade de salvação de judeus e muçulmanos. É
importante observar que, embora o Catechism chame especialmente a atenção
para o fato de que a espera dos judeus pelo Messias “seja acompanhada do
drama de não conhecer ou compreender mal Cristo Jesus”, ele não faz menção 80

alguma dos princípios fundamentais do islã que negam a Trindade (sura 4.171) e
criticam a ideia de que Deus tenha um Filho (e.g., suras 4.171; 6.101; 9.30).
Contudo, no caso do judaísmo e do islamismo, a falta de reconhecimento, ou a
negação objetiva, da Trindade e da divindade de Jesus Cristo coloca-os fora do
âmbito da salvação, conforme explica Jesus:
E disse-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo que o Filho nada pode fazer por si mesmo,
senão o que vir o Pai fazer; porque tudo quanto ele faz, o Filho faz também. Porque o Pai ama o
Filho e mostra-lhe tudo o que ele mesmo faz; e lhe mostrará obras maiores que estas, para que vos
admireis. Pois, assim como o Pai ressuscita os mortos e concede-lhes vida, assim também o Filho
concede vida a quem ele quer. Porque o Pai não julga ninguém, mas entregou ao Filho todo o
julgamento, para que todos honrem o Filho, assim como honram o Pai. Quem não honra o Filho não
honra o Pai que o enviou. Em verdade, em verdade vos digo que quem ouve a minha palavra e crê
naquele que me enviou tem a vida eterna e não vai a julgamento, mas já passou da morte para a vida
(Jo 5.19-24).

A obra do Pai e do Filho (a obra do Espírito, embora não esteja sendo discutida
neste momento, poderia ser acrescentada aqui) realizou a salvação eterna, e Deus
não pode ser honrado se o Filho não for honrado. Além disso, a vida eterna é
apropriada pela fé no evangelho de Cristo. Tendo em vista os princípios
fundamentais de suas religiões, os adeptos do judaísmo e do islã estão excluídos
da salvação eterna. A posição da teologia evangélica é de exclusivismo, em
contradição com o inclusivismo sustentado pela teologia católica.
Em suma, o atributo da catolicidade da igreja cria uma profunda divisão entre
a teologia católica e a teologia evangélica.
Apostolicidade
Com relação ao atributo da apostolicidade, o acordo entre as duas posições está
na ênfase dada ao papel fundacional dos apóstolos na igreja (Ef 2.20) e no Novo
Testamento como escrito dos apóstolos. As diferenças são inúmeras desse ponto
em diante. A teologia evangélica discorda especialmente da doutrina da sucessão
apostólica da teologia católica. Certamente, Jesus Cristo escolheu doze
discípulos para o ministério (Mt 10) e, depois de sua morte e ressurreição, ele os
incumbiu de cumprir a Grande Comissão (Mt 28.18-20). De modo concreto, a
missão com a qual o Pai comissionara o Filho se tornou a missão com a qual o
Filho comissionou a igreja: “Assim como o Pai me enviou, também eu vos
envio” (Jo 20.21). Essa missão era evangelística em sua natureza, proclamando o
evangelho do perdão de pecados por meio de Jesus Cristo (Lc 24.44-48; Jo
20.23), e se propunha a fazer discípulos no mundo inteiro (Mt 28.18-20). O
início do cumprimento da missionalidade da igreja é narrado em Atos. O que
surpreende é a preocupação dos apóstolos de anunciar as boas-novas; chamando
as pessoas para que se arrependessem dos seus pecados e confiassem em Jesus
Cristo pela fé; prometendo o perdão dos pecados e o dom do Espírito àqueles
que clamassem pelo Senhor; batizando esses discípulos e incorporando-os à
igreja, onde o ensino apostólico, a ceia do Senhor, a adoração, oração,
comunhão, generosidade sacrifical, sinais e maravilhas e a multiplicação tinham
lugar (e.g., At 2.38-47). Essa narrativa não apresenta o desenvolvimento de
hierarquia que se autoperpetuava, e também não propõe o modelo de uma linha
de sucessão dos apóstolos. Na verdade, muitos personagens não apostólicos
aparecem na história: Estêvão, o primeiro mártir cristão (At 7); Filipe, o
evangelista dos samaritanos e do eunuco etíope (At 8); “homens de Chipre e
Cirene” que evangelizam os gregos (At 11.19-22) e instituem a primeira igreja
gentia, liderada por Barnabé, em Antioquia (v. 22-26); e outros. Sem dúvida, os
apóstolos escolheram líderes nas igrejas que haviam plantado (e.g., 14.23), mas
essas indicações não transferiam nenhum tipo de autoridade apostólica aos
indicados.
A forma episcopal de governo da igreja, que levou eventualmente à estrutura
hierárquica da Igreja Católica com o papado à frente, foi obra de
desenvolvimento histórico e não lhe faltaram problemas. Seu triplo modelo de
liderança — episcopado (ou ofício do bispo); presbiterado/sacerdócio/pastorado;
e diaconato — contradiz o modelo duplo de liderança estabelecido pela
Escritura: o Novo Testamento apresenta um ofício de ensino e de supervisão que
é exercido por líderes chamados de presbíteros, bispos, supervisores ou pastores
(os termos são usados de forma intercambiável no Novo Testamento), e um
81

segundo ofício de ministério ou serviço exercido por diáconos e diaconisas.


Outro problema é que o desenvolvimento histórico desse ministério de três
níveis era uma solução pragmática para fatores contextuais, concretamente a
ascensão da heresia e a fragmentação das igrejas que se dividiam. A forma
monoepiscopal de governo alçava a uma posição especial um bispo (do gr. mono
= um; epíscopos = bispo) em torno de quem a igreja se congregava, na esperança
de que ele evitasse a divisão e mantivesse a unidade da igreja. Embora houvesse
respaldo bíblico para essa política — por exemplo, o papel de Tiago no Concílio
de Jerusalém é semelhante à função de um bispo; a indicação feita por Paulo de
enviados apostólicos (Timóteo, Tito), os quais, por sua vez, designavam outros,
aproxima-se da autoridade de um bispo —, tal respaldo é apenas uma semente
que aguarda o desabrochar completo do conceito na igreja primitiva. Esse ponto
introduz outro problema: o episcopalismo que levou ao papado se afasta da
suficiência da Escritura porque depende de acontecimentos dos séculos seguintes
para sua justificativa. Seja como for, o desenvolvimento dessa estratégia é
apenas parte da história, já que algum tipo de forma congregacional de governo
da igreja estava presente ao mesmo tempo na igreja primitiva. 82

Parte desse desenvolvimento se ateve à promessa de Jesus a Pedro, que


confessou a identidade do seu amigo dizendo se tratar do “Cristo, o Filho do
Deus vivo” (Mt 16.16): “E digo-te ainda que tu és Pedro, e sobre esta pedra
edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu
te darei as chaves do reino do céu; o que ligares na terra terá sido ligado no céu,
e o que desligares na terra terá sido desligado no céu” (v. 18,19). Há vários
pontos a considerar aqui: enquanto alguns teólogos evangélicos interpretam
“esta pedra” como referência a Pedro, e outros como referência à sua confissão,
uma compreensão mais plausível é que a rocha é Pedro em virtude de sua
confissão. Portanto, Jesus promete que está perto de “instituir uma nova
assembleia do seu povo reunida sob ele — ‘minha igreja’, diz ele — em
referência aos Doze e construída sobre Pedro e sua palavra revestida de
autoridade — a confissão de fé na identidade de Jesus de Nazaré”. As “chaves
83

do reino” prometidas serão o ponto crítico da edificação da igreja por Cristo.


Uma vez mais, a forma de interpretarmos os apóstolos usando esses dons é
fundamental para nossa compreensão da promessa de Jesus. “As chaves se
referem ao evangelho e à resposta das pessoas a ele: os que se arrependem do
pecado e acolhem Jesus Cristo pela fé são ‘desligados’ do seu pecado, da morte e
condenação, da dominação pelo mundo e da escravização pelo Maligno.
Diferentemente disso, os que se recusam a ouvir as boas-novas se acham
‘ligados’ a um pesadelo infernal persistente”. Consequentemente, essa
84

passagem não dá respaldo à hierarquia episcopal da Igreja Católica com o papa à


frente e uma igreja dependente da sucessão apostólica que lhe confira
autoridade.” 85

No âmago da rejeição por parte da teologia evangélica da sucessão apostólica,


encontramos a base da doutrina na interconexão Cristo-Igreja com suas
implicações de que, de algum modo, Cristo transferiu sua autoridade e atividade
ministeriais aos apóstolos, os quais, por sua vez, as transferiram a seus
sucessores, os bispos, que dão continuidade a elas na Igreja Católica, que é a
encarnação contínua de Cristo. Para seu crédito, o Catechism afirma um aspecto
do apostolado que não poder ser e não foi transmitido: o testemunho ocular da
ressurreição e, como tal, ser fundamento da igreja. O Catechism erra em sua
insistência que outro aspecto do ofício apostólico pode ser e foi transmitido: a
indicação dos sucessores dos apóstolos; portanto, a sucessão apostólica. John
Webster representa bem a crítica concreta da teologia evangélica a esse conceito:
Em primeiro lugar, os atos ministeriais de Jesus Cristo no Espírito, por meio dos quais ele reúne,
protege e preserva a igreja, são, na verdade, incomunicáveis [não transferíveis]. Em outras palavras,
se por “comunicação” ou “representação” queremos nos referir à realização da obra própria de Cristo
por agentes que não ele mesmo, não podemos usar tais conceitos em uma teologia do ministério
estruturada cristológica e pneumatologicamente. As premissas dogmáticas de uma eclesiologia
evangélica — segundo a qual, como Senhor ressurreto que subiu ao céu, Jesus Cristo está presente e
ativo — não permite tal transferência de agência. Cristo distribui seus benefícios pessoais pelo
Espírito, isto é, por sua própria mão; eles não devem ser entendidos como se fossem algum tesouro
conferido à igreja para que ela os dispense.86

A teologia evangélica discorda da ideia da teologia católica de que Cristo


transferiu sua autoridade e atividade por meio dos sucessores dos apóstolos
mediante uma linha de sucessão apostólica.
A teologia evangélica entende de forma positiva o apostolado como algo que
se refere à atenção dada pela igreja à pregação e audição dos ensinos dos
apóstolos registrados por escrito nos livros canônicos do Novo Testamento, bem
como à crença neles e à obediência a eles. Os apóstolos receberam a promessa
de direção do Espírito para a tarefa que tinham de cumprir. O Espírito reavivou-
lhes a memória quando escreviam, tornando-os, e aos seus escritos, testemunhas
confiáveis de Jesus Cristo (Jo 14.26). É importante salientar que o apóstolo
Pedro ressalta a maneira pela qual procurou garantir que os ensinos que recebeu
de Cristo seriam transmitidos à igreja depois da sua morte (“partida”): “Por essa
razão, estarei sempre pronto para vos lembrar essas coisas, mesmo que já tenhais
conhecimento delas e estejais firmados na verdade que já está convosco.
Considero justo despertar-vos com certas lembranças, enquanto ainda estou
neste tabernáculo, sabendo que em breve deixarei este meu tabernáculo, como
nosso Senhor Jesus Cristo assim já me declarou. Mas procurarei esforçar-me
para que, depois da minha partida, também tenhais lembrança dessas coisas em
toda ocasião” (2Pe 1.12-15). Partindo desse ponto, Pedro explica que, como
testemunha ocular da glória de Jesus Cristo no monte da Transfiguração, ele
ouviu a voz de Deus Pai glorificando seu Filho (v. 16-18). Surpreendentemente,
87

porém, Pedro professa que “temos ainda mais firme a palavra profética” e
discorre sobre a Palavra de Deus escrita, produto de autores bíblicos movidos
pelo Espírito Santo (v. 19-21). Se ele, o principal dos apóstolos, considerava a
Escritura instrução divina e confiável para a igreja na era pós-apostólica, é difícil
compreender o que a sucessão apostólica teria a acrescentar a esse fundamento já
garantido. Consequentemente, a teologia evangélica acolhe a apostolicidade
como logocentricidade, ou centralidade da Palavra, da igreja cuja atenção está
voltada para os escritos dos apóstolos.
Com isso, concluímos a avaliação evangélica da primeira seção do Catechism
sobre a doutrina da igreja. Segue-se agora a apresentação da segunda parte, que
também será avaliada.

A doutrina da igreja: “Creio na santa Igreja Católica”


(seção 2, capítulo 3, artigo 9, parágrafos 4-6)
O Catechism trata agora da discussão específica do povo da igreja: “os fiéis”,
como são comumente chamados, e que consiste na hierarquia, leigos, monges e
freiras dedicados à vida consagrada. Conforme explicamos anteriormente, o fiel
partilha do triplo ofício de Cristo — sacerdotal, profético e real — de várias
maneiras no momento em que interage missionalmente com o mundo.
A igreja é hierárquica porque Cristo a fez assim. Pregar o evangelho, falar à
comunidade, conceder graça — estas não são atividades que se iniciam por si
mesmas e que alguém aplica a si próprio; pelo contrário, esses ministérios de
graça pressupõem “ministros da graça, autorizados e revestidos de poder por
Cristo. Dele recebem a missão e a faculdade (‘o poder sagrado’) de agir in
persona Christi Capitis (‘na pessoa de Cristo Cabeça’]”. Esse ministério é
88

conferido pelo sacramento da ordem. Como ministério eclesiástico, caracteriza-


se pelo (1) serviço da parte de ministros que livremente se tornam servos de
Cristo para se tornarem servos de outros; (2) colegialidade, ou colaboração
harmoniosa entre bispos dentro do colégio episcopal em comunhão com seu
chefe, o bispo de Roma, e entre sacerdotes “no âmbito do presbyterium da
diocese sob a direção do seu bispo”; e (3) responsabilidade pessoal para
responder ao seu chamado e exercer seu ministério. 89

O colégio episcopal e seu chefe, o papa, têm origem na instituição dos Doze
por Cristo: “Ele os constituiu sob a forma de um colégio ou assembleia
permanente à frente do qual colocou Pedro, escolhido entre eles”. O 90

paralelismo é o seguinte: tal como Pedro e os outros onze apóstolos constituíam


um único colégio apostólico, assim também o papa, sucessor de Pedro, e os
bispos, sucessores dos apóstolos, formam um único colégio episcopal. O
respaldo bíblico para essa estrutura encontra-se em Mateus 16.18,19 (cf. Jo
21.15-17) interpretado da seguinte forma: “Foi só de Simão, a quem deu o nome
de Pedro, que o Senhor fez a ‘pedra’ da sua Igreja. Confiou-lhe as chaves desta e
instituiu-o pastor de todo o rebanho. ‘Mas a tarefa de ligar e desligar, que foi
dada a Pedro, também foi dada, sem dúvida alguma, ao colégio dos Apóstolos
unidos ao seu chefe’”. Consequentemente, o papado e o colégio eclesial não é
91

apenas uma conveniência administrativa ou um arranjo pragmático; ele


“pertence ao próprio fundamento da Igreja” de um modo essencial. Deve-se
92

salientar que o fato de que o papa — também chamado de “pontífice romano” —


é o bispo de Roma e sucessor de Pedro, como vigário (i. e., representante visível)
de Cristo e pastor de toda a Igreja Católica, ele tem “poder pleno, supremo e
universal sobre toda a Igreja, um poder que ele pode sempre exercer de forma
desimpedida”. 93

Unido ao papa, o colégio dos bispos, reunido em um concílio ecumênico, tem


“autoridade suprema e plena sobre a Igreja universal; mas esse poder não pode
ser exercido sem o consentimento do pontífice romano”. Os bispos têm
94

responsabilidades locais e universais: no plano local, o bispo é o centro da


unidade para sua igreja ou diocese específica, exercendo seu ministério sobre os
fiéis a ele atribuídos, assistido por sacerdotes e diáconos. No plano universal, na
condição de membro do colégio episcopal, ele se preocupa com todas as igrejas.
As reuniões regionais de bispos são chamadas de sínodos ou concílios
provinciais; as reuniões nacionais são chamadas de conferências episcopais (e.g.,
a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).
Os bispos da igreja atuam em três ministérios específicos: ensino, santificação
e governo. O ofício de ensino se preocupa com a pregação do evangelho; e, para
preservar a fé apostólica na igreja, esse ofício é caracterizado pela infalibilidade.
No nível mais geral, os membros da igreja “adere[em] de modo indefectível à
fé”, sob a conduta do Magistério. Mas é o Magistério que desfruta
95

particularmente desse “carisma [i. e., dom] de infalibilidade em questões de fé e


de moral”, cujo exercício assume várias formas: com relação ao papa, de acordo
96

com a doutrina da infalibilidade papal promulgada pelo Concílio Vaticano I, 97


“dessa infalibilidade desfruta o pontífice romano, chefe do colégio episcopal, por
força do seu ofício, quando, na qualidade de pastor e doutor supremo de todos os
fiéis, e encarregado de confirmar na fé os seus irmãos, proclama, por um ato
definitivo, um ponto de doutrina respeitante à fé ou aos costumes”. Com relação98

ao colégio episcopal, “a infalibilidade prometida à Igreja também está presente


no corpo dos bispos quando, juntamente com o sucessor de Pedro, exercem o
supremo Magistério”, especialmente quando reunidos em concílio ecumênico.
99

Todas as definições infalíveis promulgadas pelo Magistério têm caráter


imperativo para todos os católicos (cabe a eles “aderir a elas com a obediência
da fé”), e “essa infalibilidade se estende até o depósito da própria revelação
100

divina”. Em um plano secundário, quando os bispos em comunhão com o papa


101

“sem chegarem a uma definição infalível e sem se pronunciar de ‘modo


definitivo’ [...] propõem uma doutrina que leva a uma melhor inteligência da
Revelação em matéria de fé e de costumes”, opera também a assistência divina.
Nesse caso, o fiel, embora não deva obediência da fé, deve “prestar o
assentimento religioso”, que é uma extensão da obediência da fé. 102

O ofício santificador gira em torno da administração dos sacramentos,


especialmente da celebração da eucaristia. Outras atividades desse ofício são a
oração, o trabalho, a ministração da Palavra e um estilo de vida exemplar.
O ofício de governo diz respeito às igrejas específicas atribuídas aos bispos e
é exercido “mediante os seus [dos bispos] conselhos, incentivos e exemplos [...]
naquele espírito de serviço que é próprio do seu Mestre”. Conforme dissemos
103

anteriormente, a autoridade dos bispos deve ser exercida em sintonia com o papa
e é controlada em última análise por ele. Ao mesmo tempo, a autoridade do
bispo é pessoal, ordinária e imediata porque é exercida em nome de Cristo, o
Bom Pastor, que é modelo do ofício pastoral do bispo.
O segundo segmento de fiéis consiste nos leigos da igreja; incorporados que
foram em Cristo pelo batismo, participam de seu triplo ministério ao executar a
missão da igreja. Os leigos diferem da hierarquia porque não foram ordenados
pelo sacramento da ordem, e diferem dos monges e freiras da vida religiosa
porque não fizeram os três votos evangélicos de castidade, pobreza e
obediência. Sua vocação os leva a participar de questões temporais —
104

educação, negócios, governo, ciência, artes, agricultura, construção —, as quais


procuram conduzir de acordo com a vontade de Deus e para a glória de Cristo,
tendo por dever a salvação de todas as pessoas.
Os leigos participam do ofício sacerdotal de Cristo por meio de sacrifícios
inspirados pelo Espírito que os induzem ao trabalho, à oração, ao cuidado com a
família e à vida conjugal, ao lazer etc. Sua participação no ofício profético de
Cristo se dá como testemunhas e mestres: eles participam da evangelização por
intermédio da proclamação de Cristo e do testemunho da sua vida e ajudam na
catequese ou na comunicação da fé. A participação no ofício real de Cristo
ocorre de duas maneiras: no plano pessoal, os leigos governam a si mesmos,
exercendo poder real de tal modo que sua alma/razão governa seu corpo/suas
paixões, impedindo desse modo que sejam aprisionados pelo pecado e pelo mal.
Publicamente, os leigos “remedeiam as instituições e condições do mundo
quando este induz ao pecado, para que se conformem às normas da justiça,
favorecendo, e não tolhendo, a prática da virtude”. Além disso, colaboram com
105

os membros da hierarquia para o crescimento da igreja servindo nos concílios


paroquiais, sínodos diocesanos, comissões financeiras etc. 106

O terceiro setor de fiéis é constituído de homens e mulheres que se dedicam à


vida consagrada por meio da profissão dos três ofícios. Sob determinado
aspecto, Cristo chama seus fiéis para esses ofícios, para que sejam aperfeiçoados
na caridade. Para aqueles homens e mulheres chamados para a vida consagrada,
esse chamado acarreta “a obrigação de praticar a castidade no celibato por amor
do reino, a pobreza e a obediência”. A vida nesse estado religioso implica uma
107

consagração “mais íntima” a Deus, um seguimento de Cristo “mais próximo”, e 108

o seguimento da igreja. Há dois tipos de vida religiosa na igreja: uma vida em


solidão e outra em comunidade. O primeiro tipo, a vida eremítica, traz consigo a
devoção “ao louvor de Deus e à salvação do mundo por meio de um afastamento
mais severo do mundo, do silêncio na solidão, da oração assídua e da
penitência”; as ordens cartusianas e dos camaldulenses são exemplos disso. A
109

vida religiosa na comunidade é representada por ordens como a dos franciscanos


e dominicanos, cujos membros vivem uma vida em comum e colaboram com os
bispos diocesanos em seu trabalho pastoral. Virgens consagradas são mulheres
que se dedicaram a uma vida em estado de virgindade mediante um rito solene
— o Consecratio virginum —, o que as torna “esposas místicas de Cristo” para o
serviço da igreja. Alguns religiosos servem em instituições seculares buscando
110

a santificação do mundo de dentro do próprio mundo. Outros ainda, embora não


façam todos os votos religiosos, servem em sociedades de vida apostólica. O que
todos esses religiosos têm em comum é uma consagração especial a Deus que se
manifesta em uma vida totalmente dedicada a ele e à participação nos esforços
missionários.
Uma vez que se aproxima o término da discussão sobre a doutrina da igreja, o
Catechism retorna ao Credo dos Apóstolos e à sua confissão de fé na “santa
Igreja Católica”, que é seguida imediatamente pela confissão de fé na
“comunhão dos santos”. Consequentemente, “a comunhão dos santos é a
Igreja”. Esse princípio de fé se baseia na ideia de que “as riquezas de Cristo são
111
comunicadas a todos os membros através dos sacramentos”, de tal modo que
todos os bens que a igreja recebeu “se tornam, necessariamente, um fundo
comum”. Fazem parte dessa comunhão de bens espirituais a comunhão na fé,
112

os sacramentos, os carismas (dons), posses (em todos os aspectos da palavra) e a


caridade. O partilhamento desses bens não está limitado à igreja que se vê,
porque a igreja existe, na verdade, em três estados: a igreja terrena, que consiste
em residentes temporários deste mundo; a igreja purgatorial, que consiste nas
almas dos que são purificados no purgatório; e a igreja celestial, que consiste
nos cristãos aperfeiçoados na glória. Comunhão dos santos significa que a
comunhão dos membros dessas “igrejas” é ininterrupta, de modo que há uma
troca de bens espirituais. Tal troca é entendida como intercessão: o fiel na igreja
celestial ora sem cessar pelo fiel na igreja terrena e purgatorial. Em relação a
essa última intercessão, fazem-se orações pelos mortos “para que sejam libertos
de seus pecados” e, desse modo, transferidos para a igreja celestial. A troca é
113

entendida posteriormente como uma experiência de comunhão mais íntima com


os santos no céu.
Tendo tratado do papel da virgem Maria nas doutrinas de Cristo e do Espírito
Santo, o Catechism se volta para a discussão do lugar de Maria na doutrina da
igreja. Consequentemente, Maria deve ser considerada mãe de Cristo e mãe da
igreja.
Maria esteve unida a seu Filho por toda a sua vida, da sua concepção virginal
até a morte dele, mas especialmente durante seu sofrimento na cruz: “A Bem-
aventurada Virgem [...] manteve fielmente a sua união com o Filho até a cruz,
junto da qual esteve de pé, não sem um desígnio divino; padeceu acerbamente
com o seu Filho único e associou-se com coração de mãe ao seu sacrifício,
consentindo amorosamente na imolação da vítima que dela nascera; e, por fim,
foi dada por mãe ao discípulo pelo próprio Jesus Cristo, agonizante na cruz, com
estas palavras: ‘Mulher, eis aí o teu filho’”. Além disso, depois da ascensão,
114

“Maria ‘assistiu com suas orações aos começos da Igreja’ [...] implorando [...] o
dom [do] Espírito, que já na anunciação a cobrira com a sua sombra”. Por fim, 115

Maria foi unida a seu Filho em sua assunção. O dogma da assunção corporal de
Maria, promulgado pelo papa Pio XII, significa que “a Virgem Imaculada,
preservada imune de toda a mancha da culpa original, terminado o curso da vida
terrena, foi elevada ao céu em corpo e alma e exaltada pelo Senhor como rainha,
para assim se conformar mais plenamente com o seu Filho, Senhor dos senhores
e vencedor do pecado e da morte”. Consequentemente, Maria participou de
116

maneira singular da ressurreição do seu Filho, de tal forma que ela é a única
crente no céu que tem corpo. Além disso, sua assunção é “uma antecipação da
ressurreição dos demais cristãos”. 117
“O papel de Maria na Igreja é inseparável de sua união com Cristo e decorre
diretamente dela.” De modo concreto, “a Virgem Maria é o modelo de fé e
118

caridade da Igreja. Portanto, ela é ‘membro eminente e inteiramente singular da


Igreja’ e constitui mesmo ‘a realização exemplar’ (o typus) da Igreja”. À luz da
119

sua obediência, fé, esperança e amor por meio dos quais ela cooperou com a
obra de salvação de Cristo, Maria é mãe da Igreja na ordem da graça. Sua graça
salvadora não cessou com sua ascensão física, mas continua desimpedidamente
mediante sua intercessão. “Por isso, a Virgem é invocada na Igreja com os títulos
de advogada, auxiliadora, socorro e medianeira.” O Catechism nega
120

explicitamente que o papel maternal de Maria na Igreja deprecie ou minimize


seu papel especial de medianeira de Cristo. 121

Em razão da pessoa e obra singulares de Maria, reconhecidas desde muito


cedo na Igreja que lhe deu o título de theotokos, ou “Mãe de Deus”, a Igreja tem
uma devoção especial por ela. Essa devoção especial não é latria (do gr. latreia,
adoração), porque adoração é exclusivamente dada a Deus; tampouco é
simplesmente dulia (do gr. doulia, serviço), porque veneração é algo dado a
todos os santos; contudo, trata-se de hyperdulia, ou superveneração, que é
reservada a ela.
O Catechism conclui sua doutrina da igreja atribuindo a Maria a condição de
ícone escatológico, imagem futura da Igreja: “[Nela contemplamos] o que a
Igreja já é no seu mistério, na sua ‘peregrinação da fé’, e o que será na pátria ao
terminar a sua caminhada”. 122

Avaliação evangélica
A primeira parte (parágrafos 1-3) da longa discussão do Catechism a respeito da
doutrina da Igreja já foi avaliada; a segunda parte (parágrafos 4-6) será avaliada
agora. Conforme já foi observado, e se tornará ainda mais evidente, essa
doutrina separa significativamente a teologia católica da teologia evangélica.
Assim como anteriormente, as áreas de concordância serão apresentadas antes da
discussão das muitas áreas de conflito.

Clero e hierarquia católicos


Na conclusão da primeira parte da avaliação evangélica, dissemos que Jesus
Cristo não transferiu sua autoridade e atividade por meio dos seus apóstolos para
seus sucessores mediante uma linha de sucessão apostólica. O desafio que a
teologia evangélica lança ao conceito de apostolicidade da teologia católica não
significa, porém, que Cristo tenha eliminado o ministério humano na igreja, que
é ordenado por ele mesmo. Conforme explica John Webster, “porque todos os
atos de Cristo são incomunicáveis, não representáveis, Cristo mesmo escolhe
livremente se representar por meio do ministério humano [...]. Ele não é entregue
nas mãos dos seus servos, que permanecem totalmente à sua disposição.
Contudo, em sua liberdade senhorial, ele decide que juntamente com sua
manifestação pessoal há também lugar para o serviço humano na igreja”. 123

Assim sendo, a teologia evangélica acolhe o ministério humano dedicado à


Palavra de Deus e revestido de poder pelo Espírito de Deus, mas de um modo
significativamente diferente do que o faz a teologia católica.
No entanto, há pontos de concordância em ambas as posições. A natureza
hierárquica da igreja é um deles, com ressalvas: enquanto a Igreja Católica está
estruturada de acordo com um sistema hierárquico episcopal, as igrejas
evangélicas, em sintonia com o amplo espectro da teologia evangélica, estão
organizadas de acordo com várias formas diferentes de governo. Algumas são
episcopais, portanto partilham algumas semelhanças com a organização da Igreja
Católica: a autoridade emana do bispo (do gr. episkopos). Outras igrejas
evangélicas adotam o formato presbiteriano de governo, em que presbíteros (do
gr. presbyteroi) representam a igreja, os quais ensinam e lideram as igrejas locais
reunidos em um concílio, além de governar uma série de organizações com
diferentes gruas de poder — presbitério, sínodo, assembleia geral — que estão
acima do nível da igreja. Outras igrejas evangélicas são de tipo congregacional,
em que os membros da congregação exercem autoridade em sua esfera de
responsabilidade; o pastor ou conselho de presbíteros têm autoridade em sua
esfera de responsabilidade, e ninguém, nenhuma organização, tem jurisdição
sobre a igreja local. Consequentemente, as igrejas evangélicas, mesmo aquelas
de organização episcopal, são governadas de formas significativamente distintas
da forma de governo da Igreja Católica.
A teologia evangélica rejeita a estrutura episcopal católica tendo o papa como
chefe por vários motivos. O mais importante deles se deve à falta de respaldo
bíblico, tendo em vista que a teologia evangélica não acredita que a promessa de
Jesus de edificar sua igreja sobre Pedro e sua confissão, bem como a entrega das
chaves a Pedro e aos apóstolos (Mt 16.18,19), possa suportar o peso da
interpretação (errônea) da Igreja Católica. Além disso, enquanto o papa
124

(sucessor de Pedro) e os bispos, sucessores dos apóstolos, constituem um colégio


episcopal único do qual resulta a Igreja Católica hoje, a teologia católica procura
em vão uma estrutura paralela durante o ministério de Cristo e depois dele na era
apostólica, em que Pedro e os apóstolos teriam constituído um colégio apostólico
liderando a igreja em seus dias. Pelo contrário, Jesus convocou seus discípulos
para que proclamassem o evangelho, curassem e exorcizassem demônios em seu
ministério itinerante (Mt 10). Ele não os estruturou em uma hierarquia de
comando; na verdade, a única autoridade com função de governo que Jesus
prometeu a eles estava reservada para a era futura: “Vós sois os que têm
permanecido comigo nas minhas provações; e assim como meu Pai me conferiu
um reino, eu o confiro a vós; para que comais e bebais à minha mesa no meu
reino e vos senteis sobre tronos para julgar as doze tribos de Israel” (Lc 22.28-
30). Esse reino prometido em que os apóstolos reinariam não corresponde à
igreja terrena, conforme fica evidenciado na promessa anterior de Jesus, quando
ele instituiu a ceia do Senhor e disse que não celebraria essa festa “até que
[viesse] o reino de Deus” (Lc 22.18) — isto é, no seu retorno em glória.
Tomando aqui certa liberdade criativa, o colégio apostólico que Jesus instituiu é
um corpo de governo futuro no reino de Deus que virá. Além disso, só por força
da imaginação pode o Concílio de Jerusalém (At 15) servir de prova desse
colégio, com Pedro à frente. Por fim, a instituição de fato do colégio episcopal
125

católico e o papado tem um histórico de um longo debate e intensa luta na igreja


primitiva (e. g., o debate conflituoso entre Estêvão, bispo de Roma, e Cipriano,
bispo de Cartago [no norte da África] em relação à interpretação adequada de
Mateus 16.18,19), um acontecimento que foi alimentado por inúmeros fatores
126

políticos, econômicos e também sociais e religiosos. 127

No topo do colégio episcopal da Igreja Católica está o papa, e aqui a teologia


evangélica se junta a outras teologias cristãs não católicas (e. g., a das igrejas
ortodoxas) ao rejeitar a ideia católica do papado. Afirmar que o papa atual,
mediante uma linha ininterrupta de sucessão apostólica, é o herdeiro de Pedro
nos obriga a fechar os olhos para a verdadeira história dos papas, muitos dos
quais nada mais foram do que príncipes mundanos, os quais reinaram sobre
imensas extensões de terra exercendo sobre elas poder político, econômico e
militar. Além disso, o “cativeiro babilônico da igreja”, período de setenta anos
128

em que o papado foi sequestrado e transferido para Avignon, na França, quando


os papas nada mais eram do que marionetes do governo francês, e também o
Grande Cisma, uma época em que dois e por vezes três homens reivindicavam
para si o título de papa, marcaram a natureza turbulenta e até anticristã desse
ofício. Se o papa é o vigário de Cristo, seu representante visível na terra, então a
Igreja Católica deveria admitir francamente o fato de que durante épocas
extensas da história o vigário esteve ausente ou não esteve representado.
Outra coisa ainda mais importante é que toda a estrutura da Igreja Católica,
juntamente com a ideia do vigário de Cristo atrelada ao papado, se baseia em
dois axiomas equivocados que se encontram no âmago do sistema católico. A
interdependência natureza-graça respalda a estrutura hierárquica da Igreja
Católica porque a hierarquia existe da natureza (na parte inferior) para a graça
(na parte superior). Essa hierarquia natureza-graça deve estar refletida na Igreja
Católica e se manifesta, de fato, na organização dos leigos (a parte inferior) e do
clero (parte superior). Esse continuum natureza-graça exige também que a graça
se manifeste de modo concreto na natureza. A essa exigência, a interconexão
Cristo-Igreja remete à Igreja Católica como prolongamento da encarnação de
Jesus Cristo e realiza a mediação necessária entre natureza e graça. Além disso,
esse axioma serve de base para a ideia de que o papa é o vigário — o
representante concreto, tangível e visível — de Cristo. Já fizemos a crítica desses
dois axiomas.
Contudo, resta fazer ainda uma crítica evangélica concreta. Jesus Cristo,
sentado à mão direita do Pai, governa seu corpo, a igreja, do céu, e o vigário que
ele prometeu e de fato enviou para representá-lo na terra é o outro Paráclito, o
Espírito Santo, que age como tal na igreja. Conforme disse João Calvino:
Ele [Cristo] usa o ministério dos homens para declarar abertamente sua vontade para nós por meio da
boca, numa espécie de trabalho delegado, e não pela transferência a eles do seu direito e honra, de
modo que pela boca deles ele faça a obra que é sua — assim como o operário usa uma ferramenta
para fazer seu trabalho [...]. Através dos ministros a quem ele confiou esse ofício e a graça de
executá-lo, ele concede e distribui seus dons à igreja; e se mostra como se estivesse presente pela
manifestação do poder do seu Espírito nessa sua instituição, porque seu poder não será vão nem
ocioso.129

A associação do papa, vigário de Cristo, à doutrina da infalibilidade papal é


outra grande discordância entre a teologia católica e a teologia evangélica da
igreja. O apoio para essa doutrina é encontrado na Escritura e na Tradição. Entre
suas bases bíblicas, temos a promessa de Jesus a Pedro, chefe da igreja, de que
“os portões do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16.18), bem como sua
promessa aos discípulos de que o Espírito Santo os guiaria a toda a verdade (Jo
16.13). A teologia evangélica questiona essa suposta base bíblica. Em primeiro
lugar, há uma enorme diferença entre a promessa que Cristo fez de proteger a
igreja contra a derrota total e sua promessa de aperfeiçoar seu conhecimento; em
relação à primeira promessa, que é certamente a natureza de uma garantia dada
por Jesus, ela não implica necessariamente a segunda. Com relação à promessa
de guiar os discípulos por meio do Espírito, a manifestação do seu cumprimento
se vê justificadamente na doutrina da inerrância da Escritura. O Espírito Santo
supervisionou os autores bíblicos de modo que aquilo que escreveram — os
Evangelhos, Atos, as Epístolas, Apocalipse — foi exatamente o que Deus queria
que escrevessem: a palavra verdadeira de Deus.
Foi certamente essa a perspectiva que os líderes da igreja primitiva adotaram,
uma vez que honraram a veracidade da Escritura que tinham como autoridade. 130

Essa perspectiva dá conta mais satisfatoriamente do fato de que, apesar da


afirmação da Igreja Católica de que o bispo de Roma sempre defendeu a
ortodoxia e refutou a heresia, o bispo de Roma teve papel secundário em alguns
dos primeiros concílios ecumênicos (e. g., o Concílio de Niceia [325]), e há 131
exemplos contraditórios que maculam essa reputação impecável (e. g., Vigílio
[537-555] e Honório I [625-638]). Não há dúvida de que a cristandade toda
132

está em dívida com bispos romanos como Leão I e sua articulação da doutrina
ortodoxa de Cristo que abriu caminho para o Credo de Calcedônia. Contudo,
133 134

a defesa sistemática da ortodoxia pelo bispo de Roma e a afirmação da


infalibilidade papal são duas questões distintas. Além disso, a referida defesa
pode ser empiricamente atestada, ao passo que a infalibilidade pode ser
empiricamente refutada.
É possível fazer outra crítica da doutrina da infalibilidade papal. Embora se
possa dizer que antes da promulgação do Concílio Vaticano I a Igreja Católica
afirmasse a infalibilidade, para muitos, entretanto, não foi senão em meados do
século 19 que ela foi proclamada oficialmente. Muitos fatores não religiosos
convergiram para influenciar essa decisão: a Igreja Católica estava sob intenso
ataque político e social por estar do lado errado do fervor nacionalista italiano,
sobretudo quando o papa Pio IX (1846-1878) se indispôs com o povo italiano ao
se recusar a participar de uma guerra contra as forças austríacas e desse modo
liberar os estados papais, permitindo que fizessem parte da confederação
italiana. Não bastasse isso, a Igreja Católica ainda se recuperava da derrocada da
Igreja Constitucional durante o Império Napoleônico na França no início daquele
século, e o espectro das ideologias modernas — panteísmo, naturalismo,
racionalismo, indiferentismo e o latitudinarismo (tipos de pluralismo
soteriológico), socialismo, comunismo, liberalismo etc. — levou a Igreja
Católica a assumir uma forte postura defensiva. Além disso, concordatas
135

recentes — acordos políticos entre o papa e os soberanos de outras nações —


haviam reduzido a um número cada vez menor as possessões temporais do
papado. Portanto, no dia seguinte à proclamação da infalibilidade papal pelo
Concílio Vaticano I, estourou a Guerra Franco-Prussiana e, passados dois meses,
o papado havia perdido uma quantidade enorme de terras. Sobrou para o papa o
Vaticano, a Basílica de São João de Latrão (em Roma) e Castel Gandolfo
(residência de verão do papa fora de Roma). Em outras palavras, a convergência
maciça de inúmeros fatores não religiosos estimulou a promulgação da doutrina
da infalibilidade que, por sua vez, incitou uma reação de defesa a esses fatores.
Uma última crítica da teologia evangélica à infalibilidade papal é que ela
resulta em proclamações dogmáticas — por exemplo, a assunção corporal de
Maria — que se tornam coercitivas, impondo-se à consciência dos fiéis (elas
“obrigam à adesão pela obediência à fé”). Mesmo que se argumente que tais
136

dogmas não contradizem a Escritura, o fato é que eles vão além dela e, portanto,
contradizem sua suficiência.
Leigos católicos
Em relação à exposição que a teologia católica faz da laicidade da Igreja, a
teologia evangélica aplaude várias de suas afirmações. Uma delas diz respeito à
posição elevada conferida aos leigos, resultado do estímulo encorajador posto
em prática pelo Vaticano II. A participação dos leigos na missão da igreja
encontra amplo respaldo na teologia evangélica, que, em suas muitas variedades,
conclama os leigos a executar o triplo ofício — sacerdotal, profético e real — de
Cristo. Consequentemente, todos os cristãos são chamados a pregar o evangelho
uns aos outros e a orar uns pelos outros, exercendo o sacerdócio de todos os
crentes. Além disso, eles são chamados para ser embaixadores de Cristo para
evangelizar os não crentes pela participação no ministério da reconciliação (2Co
5.14-21). Embora a teologia evangélica não veja na participação no ofício real de
Cristo um exercício de autodomínio — já criticamos a ideia da teologia católica
de que a razão/intelecto humano deve reinar sobre as paixões do corpo —, ela
certamente afirma que a função real requer de todos os cristãos
responsabilidades vocacionais. Esses cristãos, também, em caso de males
pessoais e sistêmicos, são chamados a se opor à injustiça e a defender a causa
dos marginalizados, dos pobres, órfãos e viúvas etc. Por fim, a exemplo de sua
congênere católica, a teologia evangélica incentiva a colaboração dos leigos com
o clero para o progresso da igreja.
Religiosos católicos
Com relação à estratégia da teologia católica para a vida de consagração dos que
entraram para as ordens religiosas, a teologia evangélica concorda em parte e
discorda também em parte. Em primeiro lugar, a concordância se justifica pelo
fato de que Cristo chama todos os seus fiéis para que vivam uma vida de total
devoção consciente a ele. Tudo o que separa o cristão de sua santidade ou
espiritualidade alija-o da discussão e da realidade. Não importa qual seja a
distinção (e os exemplos a seguir são encontrados no evangelicalismo): cristãos
batizados no Espírito e cristãos comuns (como se vê na teologia
pentecostal/carismática), cristãos espirituais e cristãos carnais (como na teologia
de Keswick), discípulos e crentes (conforme a Grace Evangelical Society), ou
um outro tipo de combinação, a perspectiva bíblica da santidade a repudia. 137

Por conseguinte, a teologia evangélica discorda da tríplice divisão que a


teologia católica faz do fiel classificando-o em santo, religioso e cristão comum.
A necessidade de tal estrutura hierárquica alicerçada no axioma da
interdependência natureza-graça já foi criticada aqui, assim como a escatologia
super-realizada da doutrina católica da santidade. Portanto, nos restringiremos
aqui à sua visão do estado religioso e dos conselhos evangélicos relativos à
castidade, à pobreza e à obediência. A principal objeção da teologia evangélica
diz respeito à ideia de que esse estado leva a uma vida de consagração “mais
íntima” a Deus e ao seguimento “mais próximo” de Cristo. A começar por
138

Marinho Lutero e, de modo especial, seu Treatise on good works [Tratado sobre
as boas obras], de 1520, a teologia evangélica se recusa a elevar a atividade
“religiosa” acima de outras obras humanas no que diz respeito ao que é mais
agradável a Deus e ao que contribui mais efetivamente para a santificação
pessoal. Em razão do chamado divino para a busca da santidade e a capacitação
para tal (e.g., 2Pe 1.3,4), essa busca se estende a todos os cristãos, não importa
sua vocação. Eles podem ser profissionais da religião — por exemplo, padres e
religiosos no caso da teologia católica, pastores/presbíteros e missionários no
caso da teologia evangélica —, mas isso não significa que estejam em posição
mais favorável diante de Deus, tampouco em posição mais vantajosa para
agradá-lo.
Tomando os conselhos evangélicos um por um, a teologia evangélica afirma
que o celibato é uma escolha que o crente poderá fazer contanto que receba de
Deus o dom para o celibato (1Co 7.7). Um sinal de que a pessoa tem esse dom é
a alegria por não ser casado e a capacidade dada por Deus de controlar o desejo
sexual de maneiras que honrem a Deus (v. 8,9,36-38). Além disso, a teologia
evangélica diz que o celibato temporário é concedido, porém não ordenado, aos
casados, nas seguintes condições: quando há um acordo temporário comum e
com um propósito espiritual que chega ao fim com a retomada das relações
sexuais (v. 5,6). Além disso, a teologia evangélica reconhece que o celibato
cristão fica livre de “dificuldades na vida terrena” e de ansiedades próprias da
vida conjugal e familiar, preocupando-se o indivíduo apenas com as “coisas do
Senhor” (v. 32-35). Consequentemente, o celibato e a vida de solteiro são um
dom maravilhoso para a igreja.
Contudo, a teologia evangélica discorda quando o celibato se torna um
requisito para determinado tipo de serviço na igreja. Embora seja
conceitualmente possível que o dom do celibato corresponda ao grupo de
homens e mulheres não casados em estado consagrado (poderíamos acrescentar
também o grupo de sacerdotes que recebeu o sacramento da ordem), a realidade
da imoralidade sexual, tanto no que diz respeito ao pecado heterossexual quanto
homossexual, entre os que fizeram o voto de celibato é evidência contrária a ele.
De fato, a teologia evangélica questiona se a compreensão errônea do celibato
não seria um fator que contribuiu para o fracasso nessa área. Afinal de contas,
quando Paulo diz que “quem não se casa faz melhor” (v. 38), ele está se
referindo aos que estão prontos para se casar, mas se abstêm de fazê-lo “por
causa da dificuldade do momento” (v. 26; provavelmente uma referência à
intensa perseguição da igreja) e porque são capazes de controlar seus desejos
sexuais (v. 36-38). Essa instrução não é um manifesto a favor do celibato para
todos em todas as épocas.
Com relação ao conselho evangélico da pobreza, a teologia evangélica
enfatiza a compaixão de Jesus pelos pobres e marginalizados da sociedade (e. g.,
Mc 14.7; Lc 4.18) e a missão da igreja em favor dos pobres (At 4.32-35; Gl 2.10;
1Tm 5.3-16; Tg 1.27; 2.15,16). A teologia evangélica não concorda, porém,
139

com a ideia de que a pobreza contribua para aumentar a santificação. São várias
as disciplinas espirituais bíblicas: oração, leitura e meditação na Escritura, jejum,
prestação de contas, tempo a sós com Deus etc. Até mesmo dar é uma disciplina
imposta a todos os cristãos (2Co 8 e 9). E, embora exemplos de grande
generosidade estejam presentes na Escritura (Zaqueu, e. g., prometeu dar metade
da sua riqueza aos pobres; Lc 19.1-10), eles se fixam em uma pessoa específica
(e.g., a recusa de um homem importante em se desfazer do seu dinheiro expôs
sua idolatria; Lc 18.18-30) ou em atos concretos de generosidade (e.g., os
cristãos que dispunham de meios financeiros e físicos na igreja de Jerusalém
contribuíam com espírito de sacrifício, At 2.44,45; 4.32-35; Barnabé vendeu um
campo, At 4.36,37). Contudo, o ato de dar na Escritura nunca é apresentado
como obrigação de se livrar de tudo o que se possui. Ananias e Safira, por
exemplo, pecaram não porque retiveram parte do lucro da venda de sua
propriedade, mas porque deram a entender que haviam dado tudo o que haviam
apurado com a venda (At 5.1-11). Dar é uma disciplina, mas a pobreza, não.
Além disso, o apóstolo Paulo encoraja os que são ricos a “que pratiquem o bem e
se enriqueçam com boas obras, sejam solidários e generosos” (1Tm 6.17-19). É
importante também observar que Paulo se dirige à situação financeira dos
presbíteros da igreja: “Os presbíteros que governam bem devem ser dignos de
honra em dobro [respeito e remuneração], principalmente os que trabalham na
pregação e no ensino. Porque a Escritura diz: Não amarres a boca do boi quando
ele estiver debulhando; e: O trabalhador é digno do seu salário” (5.17,18). Não
há recomendação para que os que servem na igreja sejam pobres.
O conselho evangélico da obediência encontra respaldo da teologia evangélica
no fato de que a submissão a Deus, a conformidade a todos os seus
mandamentos — e todas as proibições — da Escritura e o acolhimento de todas
as diretrizes boas e lícitas dos que detêm autoridade (autoridades do governo,
pais, empregadores, líderes de igreja) são adequadas ao cristão. Contudo, se a
obediência é o curso normal da vida cristã, como pode ser mais ainda do que é
para os que vivem a vida consagrada, a menos que signifique submissão a regras
e regulamentos que vão além da Escritura e que as autoridades legalmente
constituídas prescrevem de forma legítima? Neste último caso, a questão não é
de obediência, mas de adições não bíblicas e de autoridades ilegítimas ou de
prescrições ilegítimas de autoridades legítimas.
Portanto, a teologia evangélica tem sérias preocupações com os conselhos
evangélicos de castidade, pobreza e obediência adotados por homens e mulheres
que procuram viver a vida consagrada.
Uma última questão em que há acordos e discordâncias: a teologia evangélica
concorda com a vida comunitária, que é um tipo de vida religiosa na Igreja
Católica. Mas discorda de outro tipo de vida, a vida do eremita, que exige
solidão pelo distanciamento do mundo. Uma questão fundamental desse
desacordo é que essa retirada planejada contradiz a essência daquilo pelo que
Jesus orou ao Pai pensando em seus discípulos:
Eu lhes dei a tua palavra; o mundo os odiou, pois não são do mundo, assim como eu também não
sou. Não rogo que os tires do mundo, mas que os guardes do Maligno. Eles não são do mundo, assim
como eu também não sou. Santifica-os na verdade, a tua palavra é a verdade. Assim como tu me
enviaste ao mundo, eu também os enviei ao mundo. E por eles me santifico, para que também eles
sejam santificados na verdade (Jo 17.14-19).

Retirar-se do mundo, que por meio de suas filosofias carnais e sistemas ímpios
se coloca contra a igreja e procura poluí-la e sabotá-la, não é uma opção para o
cristão, e também não foi para Jesus: assim como Jesus estava no mundo, mas
não pertencia a ele, a igreja deve estar no mundo, embora não pertença a ele. De
fato, assim como o Pai enviou o Filho ao mundo para concretizar a salvação,
assim também o Filho envia a igreja ao mundo para anunciar como essa salvação
conquistada deverá ser apropriada (cf. Jo 20.21). A consagração que Jesus faz de
si mesmo por amor à igreja, bem como a Palavra de Deus que ele traz, é
suficiente para que a igreja esteja no mundo e não seja do mundo, participando
de seus esforços missionais e sendo fiel e obediente a Deus.

A comunhão dos santos


A teologia católica e a evangélica também concordam e discordam em parte no
que diz respeito à comunhão dos santos. O ponto de acordo consiste na
afirmação de que a igreja existe em dois estados, como a igreja terrena, da qual
fazem parte todos os cristãos vivos deste mundo, e a igreja celestial, que
consiste nos cristãos aperfeiçoados na glória. A discordância se dá em torno do
terceiro estado da igreja, a purgatorial. Conforme observamos anteriormente, e
conforme será discutido posteriormente, a doutrina do purgatório da teologia
católica depende do axioma errôneo da interdependência natureza-graça, carece
de suporte bíblico e contradiz a doutrina da justificação. Além disso, a ideia de
que a comunhão dos santos implica a troca de bens espirituais entre os vários
estados da igreja não tem respaldo bíblico. Consequentemente, crer que os
membros da igreja celestial estejam em constante intercessão pelos membros da
igreja terrena (e também pelos membros da igreja purgatorial) é, no máximo,
especulação. O que a Bíblia diz, e não há consolo maior e mais sólido do que
este para o cristão que hoje vive, é que o Espírito Santo e Jesus Cristo
intercedem por ele (Rm 8.26,27,34). A suficiência da Escritura traz à
140

lembrança do cristão que aquilo que Deus proporcionou a ele, a dupla


intercessão da Segunda e da Terceira Pessoas da Trindade, é recurso suficiente
no qual ele pode confiar.
Maria como mãe da igreja
Uma vez mais, o Catechism retorna a uma discussão do papel de Maria não em
relação a Cristo e ao Espírito Santo, conforme fez anteriormente, mas agora em
relação à igreja. Aqui, a ênfase recai sobre Maria, a mãe da igreja. A teologia
católica associa intimamente os sofrimentos de Cristo na cruz e os sofrimentos
de Maria no momento da crucificação do seu Filho, tendo ela se unido a ele em
seu sacrifício e consentido em sua execução como vítima entregue em sacrifício.
A teologia evangélica contesta esse retrato do papel de Maria. Ela certamente
deve ter ficado horrorizada com o espetáculo do seu Filho sofrendo a execução
pela crucificação, e deve ter sofrido uma dor excruciante por causa de sua perda.
Contudo, além dessas emoções humanas esperadas, e que são possíveis de
imaginar pela simples afirmação do texto da Escritura — “Em pé, junto à cruz
de Jesus, estavam sua mãe, a irmã de sua mãe, a mulher de Clopas, chamada
Maria, e Maria Madalena” (Jo 19.25) —, tudo o mais não passa de especulação.
Mas não é só isso. A narrativa prossegue: “Vendo ali sua mãe, e ao lado dela o
discípulo a quem ele amava, Jesus disse à sua mãe: Mulher, aí está o teu filho.
Então disse ao discípulo: Aí está tua mãe. E, a partir daquele momento, o
discípulo manteve-a sob seus cuidados” (Jo 19.26,27). A teologia católica
interpreta erroneamente essa passagem e cria um papel exagerado para Maria —
a de mãe de toda a humanidade: “A mãe de Cristo, que está bem no centro desse
mistério [...] é dada como mãe de todos e de toda a humanidade. O homem ao pé
da cruz é João [...]. Mas não só ele”. João representa, de forma concreta, a
141

descendência de Adão e da igreja. Para seu crédito, a teologia católica reconhece


que “encontramos ali a expressão da solicitude própria do Filho por sua Mãe, a
quem está deixando em meio a tão grande sofrimento”. Contudo, a teologia
142

católica prossegue: “E, no entanto, o ‘testamento da cruz de Cristo’ diz mais”. 143

Na verdade, essa interpretação encontra mais coisas na passagem do que ali


existe e tende “não tanto a ver Maria entregue aos cuidados do discípulo amado,
e sim o contrário”: João passa a seus cuidados. Mediante uma reviravolta
144

simbólica, essa interpretação considera João o modelo de todo discípulo


verdadeiro, abrindo assim caminho para que Maria seja mãe da humanidade e
mãe da Igreja. No entanto, o que diz na verdade o texto? O discípulo levou
Maria para a casa dele. Em um de seus atos finais antes de morrer, Jesus
manifestou de maneira adequada e amorosa sua preocupação com sua mãe no
instante em que ela testemunhava a crucificação horrenda e trágica do seu Filho.
A oração temporal (“e a partir daquele momento”) chama novamente a atenção
para a morte de Jesus Cristo. De fato, os três versículos seguintes recontam os
últimos momentos lancinantes de vida: suas palavras “tenho sede”; a oferta de
vinagre para lhe matar a sede; e sua afirmação final “está consumado” quando
“inclinou a cabeça e entregou o espírito” (Jo 19.28-30). A narrativa é toda sobre
Jesus e sua obra que foi concluída na cruz e não há nenhuma indicação de
qualquer papel que Maria possa ter desempenhado na condição de mãe da
humanidade e da Igreja.
Tampouco sua maternidade é confirmada na observação de Lucas segundo a
qual, depois da ascensão de Jesus, os onze apóstolos se reuniram no aposento
superior e estavam orando “juntamente com as mulheres, com Maria, mãe de
Jesus, e com os irmãos dele” (At 1.12-14). Enquanto a Igreja Católica exalta a
presença de Maria por causa do nascimento da igreja e de certo tipo de
apostolado, isso não aparece na narrativa de Lucas. Em vez disso, ele enfatiza a
145

anormalidade de apenas onze apóstolos — a ausência de Judas entre os Doze é


notória e serve de fio condutor para a narrativa subsequente de Lucas (v. 15-26)
— e a presença contínua das principais mulheres no ministério de Jesus e dos
discípulos, conforme Lucas havia enfatizado previamente (Lc 8.1-3). Atos 1.14
introduz dois itens novos: “Maria, mãe de Jesus, com seus irmãos” também
estavam reunidos com os apóstolos em oração. Aprendemos com isso que Maria,
sua mãe, continuava a seguir Jesus. Embora essa informação fique em dúvida no
Evangelho de Lucas (Lc 8.19-21), felizmente ficamos sabendo que Maria
continuava a ser discípula. A ela somam-se seus filhos, os irmãos de Jesus.
Embora não tivessem crido nele quando estava vivo (Jo 7.5), tornaram-se
discípulos de Jesus depois de sua morte e ressurreição. Lucas não permite que
imaginemos um papel com algum destaque para Maria (e para nenhuma outra
mulher e os irmãos de Jesus) além desse. Ela não é um tipo de apóstolo,
tampouco ajuda na criação da igreja.
A teologia evangélica vê com preocupação ainda maior o dogma da assunção
corporal de Maria. A doutrina se baseia em sua condição destituída de pecado:
destituída do pecado original e de quaisquer pecados, Maria não passou pela
corrupção que é consequência do pecado; seu corpo foi elevado ao céu. A
teologia evangélica se opõe principalmente à condição de ausência de pecados
em Maria; removida essa condição, não há razão para crer que seu corpo não
tenha se degradado na morte e, em seguida, se deteriorado na sepultura onde foi
enterrada. Uma segunda objeção é que o céu não é lugar para o corpo dos
falecidos, e sim para a alma deles, conforme diz o apóstolo Paulo (2Co 5.1-9).
No estado intermediário — o período entre a morte e o retorno de Jesus Cristo,
que será acompanhado pela ressurreição do corpo —, o cristão sem corpo físico
desfruta da presença do Senhor. Trata-se de um tipo de existência própria do céu.
Somente depois que Cristo voltar e estabelecer seu reino é que o cristão terá
outra vez um corpo, porém glorificado (1Co 15.42-44,49); a vida no corpo é o
tipo de existência próprio desse estado. Portanto, a teologia católica erra em sua
doutrina da assunção corporal.
Consequentemente, as doutrinas marianas da imaculada concepção, ausência
de pecado, obediência perfeita à fé, cooperação na obra redentora do seu Filho,
auxílio no nascimento da igreja e maternidade de toda a humanidade e da igreja
são coisas que se baseiam na interpretação deficiente da Escritura e na Tradição
corrompida que contraria a Escritura. Além disso, essas doutrinas marianas são
implicações fundamentais dos dois axiomas do sistema teológico católico que,
conforme observamos, deixam a desejar. Com profunda perplexidade e grande
temor, a teologia evangélica lamenta e rejeita a invocação de Maria pela Igreja
Católica “com os títulos de advogada, auxiliadora, socorro e medianeira”. 146

Embora a teologia católica negue que o papel maternal de Maria deprecie e


minimize o papel mediador singular de Cristo, a teologia evangélica insiste que é
o contrário o que se passa. Pela concepção imaculada do Filho de Deus, sua
ausência de pecado, obediência perfeita à fé, paixão, morte, sepultamento,
ressurreição, ascensão, envio do Espírito Santo para dar à luz a igreja, batismo
do cristão com o Espírito para sua inclusão no corpo de Cristo e união com ele,
Jesus Cristo realizou plenamente a salvação. Nada mais se pode ou se deve
acrescentar ao que ele fez para salvar de forma perfeita o ser humano decaído, e
Deus não planejou a salvação, que só por meio do seu Filho seria possível, para
que nela fosse incluída também a mãe de seu Filho. Sim, Maria é theotokos, mãe
daquele que é Deus. Não, Maria não é theotokos, Mãe de Deus e da igreja, o que
implica a hiperdulia — superveneração — de Maria na condição de advogada,
auxiliadora, socorro e medianeira. Seu papel de mediação é errado, pois é
desnecessário, conforme afirma o autor de Hebreus:
Portanto, tendo um grande sumo sacerdote, Jesus, o Filho de Deus, que entrou no céu, mantenhamos
com firmeza nossa declaração pública de fé. Porque não temos um sumo sacerdote que não possa
compadecer-se das nossas fraquezas, mas alguém que, à nossa semelhança, foi tentado em todas as
coisas, porém sem pecado. Portanto, aproximemo-nos com confiança do trono da graça, para que
recebamos misericórdia e encontremos graça, a fim de sermos socorridos no momento oportuno (Hb
4.14-16).
Com Jesus na condição do Deus-homem, que é o perfeito advogado, auxiliador,
socorro e mediador, não há necessidade que Maria exerça esses papéis a ela
atribuídos pela teologia católica.
1
Edição em português: Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Loyola, 1999).
2
CCC 750.
3
Ibidem.
4
CCC 752.
5
CCC 753-757. Em parte alguma da Escritura a igreja é chamada de “nossa mãe”, e o Catechism (757),
em várias passagens, apresenta passagens que respaldam a descrição bíblica da igreja “como esposa sem
mancha do Cordeiro imaculado”.
6
CCC 765; a referência é a Marcos 3.14,15.
7
CCC 766.
8
CCC 775. O termo grego μυστήριον (mystērion), usado inúmeras vezes no Novo Testamento, foi
traduzido em latim por duas palavras: mysterium e sacramentum. Este último termo foi definido por
Agostinho como “sinal visível de uma graça invisível”, que é a realidade oculta da salvação a que se refere
o termo anterior. Os sete sacramentos da igreja são, de modo concreto, os sinais e os meios pelos quais o
Espírito Santo comunica a graça de Cristo por meio do seu corpo, a igreja. “Dessa forma, a Igreja possui e
comunica a graça invisível da qual ela (a igreja) é o principal exemplo. É nesse sentido analógico que a
Igreja é chamada de ‘sacramento’” (CCC 774).
9
CCC 795.
10
CCC 799-801 apresenta uma breve discussão desses carismas, os quais são comumente conhecidos
entre os evangélicos como dons espirituais.
11
CCC 813.
12
CCC 815.
13
CCC 816; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 8.2.
14
CCC 816; citação do Concílio Vaticano II, Unitatis redintegratio 3.5.
15
CCC 818; citação do Concílio Vaticano II, Unitatis redintegratio 3.1
16
CCC 819; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 8.2.
17
CCC 819; citação do Concílio Vaticano II, Unitatis redintegratio 3.2; cf. Lumen gentium 15.
18
CCC 819.
19
CCC 820-821.
20
CCC 825; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 48.3.
21
CCC 827; referência a Mateus 13.24-30.
22
CCC 828.
23
CCC 829; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 65.
24
CCC 830; citação de Inácio, Letter to the Smyrneans 8 (versão abreviada; ANF 1:90).
25
CCC 833-834.
26
CCC 836; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 13.
27
CCC 837; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 14.
28
CCC 838; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 15.
29
CCC 838; citação do Concílio Vaticano II, Unitatis redintegratio 3.
30
CCC 839; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 16.
31
CCC 840.
32
CCC 841; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 16; cf. Nosta aetate 3. O Catechism
também se refere a Evangelii nuntiandi 53 do papa Paulo VI, disponível em:
http://www.vatican.va/holy_father/paul_vi/apost_exhortations/documents/hf_p-
vi_exh_19751208_evangelii-nuntiandi_en.html.
33
Embora o Catechism não apresente uma lista das religiões não cristãs de que trata em sua discussão,
são elas as religiões representadas no primeiro Dia Mundial de Oração pela Paz em 27 de outubro de 1986,
em Assis (e novamente em 24 de janeiro de 2002).
34
CCC 843; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 16; cf. Nosta aetate 2.
35
Lumen gentium 16 (VC II-1, 368).
36
CCC 845; citação de Agostinho, Sermon 96.7, 9.
37
O primeiro a fazer tal afirmação foi Cipriano em sua Epistle 73.21 (Letter 72.21 em ANF 5:384); ele
desenvolveu posteriormente a ideia em seu Treatise 1: on the unity of the church 1.6 (ANF 5:423).
38
CCC 846; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 14, tomando por base Marcos 16.16 e João
3.5.
39
Ibidem.
40
CCC 847.
41
Ibidem; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 16.
42
Na realização desses esforços, o Catechism estimula “um diálogo respeitoso” entre a igreja e os que
ainda não aceitam o evangelho e observa que os crentes podem ganhar com essa interação um melhor
entendimento daqueles “elementos de verdade e graça encontrados entre os povos e que são, por assim
dizer, uma presença secreta de Deus”. De fato, o evangelho funciona de tal modo a “consolidar, completar e
elevar a verdade e o bem que Deus espalhou entre os homens e os povos, e para os purificar do erro e do
mal, ‘para glória de Deus, confusão do demônio e felicidade do homem’” (CCC 856); citações do Concílio
Vaticano II, Ad gentes 9.
43
CCC 857; citação do Concílio Vaticano II, Ad gentes 5.
44
CCC 858.
45
CCC 861; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 20. A base bíblica apresentada é Atos
20.28, e o testemunho da igreja primitiva é dado por Clemente de Roma, Letter to the Corinthians 42, 44
(ANF 1:16-17).
46
Para que se faça um pequeno ajuste à discussão do Catechism da palavra “igreja”, é importante
observar que o latim ecclesia vem do grego ἐκκλησία (ekklēsia), que é empregada regularmente para se
referir a uma assembleia. Embora esse último termo seja derivado do grego ἐκκαλειν (ekkalein), é preciso
cuidado para não cometer a falácia da raiz da palavra e dar importância exagerada ao fato de que ἐκκαλειν
significa “evocar”.
47
Entre as diferenças se encontram a rejeição da teologia evangélica do totus Christus e sua redefinição
dos sacramentos conforme concedidos e dotados de poder pela Palavra de Deus e pelo Espírito Santo, e
não pela igreja.
48
Allison, SS, p. 29.
49
Para uma discussão mais detalhada, veja ibidem, p. 61-89.
50
Ibidem, p. 31.
51
Confissão de Augsburgo 7 (Schaff, 3:11-12).
52
Calvin, Institutes 4.1.8 (LCC 21:1022) [edições em português: João Calvino, As institutas, tradução de
Waldyr Carvalho Luz (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), 4 vols.; e A instituição da religião cristã, tradução
de Carlos Eduardo Oliveira; José Carlos Estêvão (São Paulo: Ed. Unesp, 2008)].
53
Trinta e Nove Artigos (anglicana), 19 (Schaff, 3:486); Confissão Belga (reformada), 29 (Schaff,
3:383); Confissão de Fé Escocesa (reformada), 18 (Schaff 3:461-462).
54
Todas as missas celebradas pela Igreja Católica no mundo todo seguem a mesma liturgia, as mesmas
orações, leituras da Escritura, eucaristia etc.
55
Confissão de Augsburgo 7 (Schaff 3:11-12).
56
Allison, SS, p. 168.
57
CCC 816; citação do Concílio Vaticano II, Unitatis redintegratio 3.5.
58
CCC 816; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 8.2.
59
Este ponto foi ressaltado e esclarecido pelo motu proprio do papa Bento XVI, “Respostas a algumas
questões referentes a certos aspectos da doutrina da Igreja” (10 de julho de 2007) disponível em:
http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20070629_responsa-
quaestiones_en.html.
60
CCC 819.
61
CCC 828.
62
Esta discussão está também associada ao conceito da teologia católica de salvação como esforço
sinergístico entre a graça divina e a cooperação humana, na expectativa de que a salvação se estenda
àqueles que façam o que está ao seu alcance (facere quod in se est) — portanto, a salvação não é, conforme
sustentam os evangélicos, concedida aos que são perfeitamente justos (não porque o tenham alcançado
mediante uma justiça própria, mas porque Jesus Cristo lhes imputa a justiça perfeita). A crítica dessa ideia
será feita posteriormente neste livro.
63
CCC 830; citação de Unitatis redintegratio 3; Ad gentes divinitus 6.
64
CCC 843.
65
CCC 847; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 16.
66
Para um resumo do desenvolvimento histórico do inclusivismo na Igreja Católica, veja Francis A.
Sullivan, “Vatican II on the salvation of other religions”, in: James L. Heft, org., After Vatican II:
trajectories and hermeneutics (Grand Rapids: Eerdmans, 2012), p. 68-95.
67
No caso de não cristãos com algum conhecimento de Deus, sua graça os leva a buscá-lo e a reforçar
suas tentativas de fazer sua vontade obedecendo à sua consciência; no caso dos não cristãos que não têm
conhecimento de Deus, sua graça suscita neles um esforço para viver uma boa vida.
68
Concílio Vaticano II, Lumen gentium 48 (VC II-1, 407).
69
Sullivan propõe uma conjectura que associa o papel instrumental da igreja na salvação dos não cristãos
com a oferta de Cristo na igreja no sacramento da eucaristia, que é universalmente eficaz como sacrifício:
“O fato de que somente a igreja pode oferecer esse sacrifício justifica que seja descrita como sinal eficaz da
salvação dos não cristãos mesmo quando ela não pode desempenhar um papel mais diretamente
instrumental pela pregação do evangelho a eles” (Sullivan, “Vatican II on the salvation of other religions”,
p. 76).
70
Concílio Vaticano II, Lumen gentium 16 (VC II-1, 368); cf. CCC 843.
71
Concílio Vaticano II, Lumen gentium 17 (VC II-1, 368-369).
72
Embora várias combinações de inclusivismo possam ser encontradas hoje em dia, o inclusivismo
descrito corresponde àquele promovido pela teologia católica, conforme se vê em um documento do
Concílio Pontifício para Diálogo Inter-Religioso: “Todos os homens e todas as mulheres que são salvos
partilham, ainda que de diferentes maneiras, do mesmo mistério da salvação em Jesus Cristo por meio do
seu Espírito. O cristão sabe disso pela fé, ao passo que outros continuam na ignorância de que Jesus Cristo é
a fonte de sua salvação [...]. De forma concreta, será pela prática sincera do que é bom em suas tradições
religiosas e pelo seguimento do que lhes dita a consciência que os membros de outras religiões responderão
positivamente ao convite de Deus e receberão a salvação em Jesus Cristo, embora não o reconheçam como
Salvador e não admitam tal fato” (Pontifical Council for Interreligious Dialogue, “Dialogue and
Proclamation”, 29, disponível em:
http://www.vatican.va/roman_curia/pontifIcal_councils/interelg/documents/rc_pc_interelg_doc_19051991_dialogue-
and-proclamatio_en.html).
73
Papa Pio IX, Quanto conficiamur moerore (10 de agosto de 1863), parágrafo 7, disponível em:
http://www.papalencyclicals.net/Pius09/p9quanto.htm).
74
Papa Pio XII, Mystici corporis Christi (29 de junho de 1943), disponível em:
http://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_29061943_mystici-
corporis-christi_en.html.
75
Sullivan chama a atenção para essas contribuições ao tópico e aponta para vários outros documentos
pós-conciliares — o Evangelii nuntiandi de Paulo VI; de João Paulo II, Redemptor hominis, Dominum et
vivificantem; Redemptoris missio, Ecclesia in Asia — cujo desenvolvimento prosseguiu na teologia católica
(Sullivan, “Vatican II on the salvation of other religions”, p. 77-88).
76
Esse fato é muito importante e é discutido e defendido em Ralph Martin, Will many be saved? What
Vatican II actually teaches and its implications for the new evangelization (Grand Rapids: Eerdmans, 2012).
77
Conforme diz Sullivan, essa ênfase sobre o sopro não regulado do Espírito Santo — isto é, sua obra
fora da Igreja Católica — foi um dos temas prediletos do papa João Paulo II (e.g., Dominum et vivificantem)
(Sullivan, “Vatican II on the salvation of other religions”, p. 82).
78
Se essa atividade do Espírito estiver associada à regeneração, e se a Igreja Católica insiste que tal
regeneração se dá pelo batismo, como as pessoas podem então experimentar essa atividade semelhante ao
vento, ou regeneração, do Espírito sem o sacramento? Discutiremos mais sobre o assunto posteriormente
neste livro.
79
Concílio Vaticano II, Ad gentes 7 (VC II-1, 821, grifo do autor).
80
CCC 840.
81
Para respaldo a essa afirmação, veja Allison, SS, p. 211-2.
82
Veja, e.g., Clement of Rome, Letter to the Corinthians 44 (ANF 1:16); Didache 15 (ANF 7:381).
83
Allison, SS, p. 94. Essa interpretação não deve ser entendida como se minimizasse o privilégio
histórico-salvífico entre os apóstolos; afinal de contas, Pedro é o primeiro a anunciar o evangelho aos
judeus (At 2.14-41), confirmar (juntamente com João) a inclusão dos samaritanos na igreja (At 8.14-25),
além de ser o apóstolo instrumental na conversão dos primeiros gentios (At 10 e 11). Contudo, Mateus
16.13-20 deve ser situado no contexto do Evangelho inteiro de Mateus: “Os discípulos [todos eles] foram
chamados para ser pescadores de homens (4.19), sal (5.13), luz (5.14-16), pregar as boas-novas do reino
(10.6-42) e, depois da ressurreição, discipular as nações e ensinar-lhes tudo o que Jesus ordenou (28.18-
20)” (D. A. Carson, “Matthew”, in: Frank E. Gaebelein, org., Expositor’s Bible Commentary [Grand
Rapids: Zondervan, 1984], 12 vols., 8:370-2). Aos discípulos de Cristo (a todos eles, com destaque para
Pedro) é dada a responsabilidade do exercício das chaves e, mais tarde no Evangelho, essa responsabilidade
é dada a toda a igreja (Mt 18.15-20; cf. 1Co 5.1-13; 2Co 13.10; Tt 2.15; 3.10,11).
84
Allison, ibidem.
85
Para o desenvolvimento histórico do uso de Mateus 16 como respaldo para o papado, veja Michael A.
G. Haykin, “The development and consolidation of the papacy”; Gregg R. Allison, “The papacy from Leo I
to Vatican II”, in: Thomas Schreiner; Benjamin Merkle, orgs., Shepherding God’s flock (Grand Rapids:
Kregel, 2014).
86
John Webster, Word and church: essays in Christian dogmatics (Edinburgh/New York: T&T Clark,
2001), p. 199-200.
87
Mateus 17.1-9 e paralelos narram o evento da transfiguração.
88
CCC 875.
89
CCC 876-878.
90
CCC 880; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 19.
91
CCC 881; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 22.2.
92
CCC 881.
93
CCC 882; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 22.
94
CCC 883; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 22.
95
CCC 889; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 12; cf. Dei Verbum 10.
96
CCC 890.
97
Concílio Vaticano I (1870), First dogmatic constitution on the church of Christ, sessão 4, disponível
em: http://www.papalencyclicals.net/Councils/ecum20.htm#papal infallibility defined.
98
CCC 891; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 25; cf. Concílio Vaticano I.
99
CCC 891.
100
Ibidem; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 25.2.
101
CCC 891.
102
CCC 892; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 25.
103
CCC 894; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 27; cf. Lucas 22.26,27.
104
O adjetivo “evangélico” nessa expressão significa “relacionado ao evangelho” (no gr., euaggelion).
105
CCC 909; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 36.3.
106
CCC 910.
107
CCC 915.
108
CCC 916.
109
CCC 920; citação do Código de Lei Canônica 603.1. O Código de Lei Canônica é um sistema
centenário de leis e de princípios legais que governam a Igreja Católica Romana. Sua última revisão é de
1983.
110
CCC 923; citação do Código de Lei Canônica 604.1. Esse rito solene de consagração é um
sacramental, e não um sacramento. Os sacramentais são “sinais santos que guardam semelhança com os
sacramentos” e que dispõem os fiéis “a receber os efeitos principais dos sacramentos” (CCC 1667; citação
do Concílio Vaticano II, Sacrosanctum concilium 60).
111
CCC 946.
112
CCC 947; as citações são de Tomás de Aquino, On the Apostles’ Creed 10, e Roman Catechism 1.10,
24. Roman Catechism, ou Catechism of the Council of Trent, foi publicado em 1566, disponível em:
http://www.cin.org/users/james/ebooks/master/trent/tindex.htm.
113
CCC 958; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 50, que toma por base o escrito apócrifo de
2Macabeus 12.45.
114
CCC 964; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 58; citação bíblica de João 19.26,27.
115
CCC 965; as citações são do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 69, 59; alusão bíblica a Atos 1.14.
116
CCC 966; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 59; para a proclamação do dogma, veja Pio
XII, Munificentissimus Deus (1.o de novembro de 1950), disponível em:
http://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/apost_constitutions/documents/hf_p-
xii_apc_19501101_munificentissimus-deus_en.html.
117
CCC 966.
118
CCC 964.
119
CCC 967; as citações são do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 53; 63.
120
CCC 969; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 62.
121
CCC 970.
122
CCC 972.
123
Webster, Word and church, p. 200.
124
Veja novamente a seção sobre “apostolicidade” no início deste capítulo.
125
Para uma discussão mais extensa, veja Allison, SS, p. 261, 298-301.
126
Cipriano, Treatise 1.4, “On the unity of the church” (ANF 5:422); Letter 51.21 (ANF 5:332); Letter
71.3 (ANF 5:379); Letter 70.3 (ANF 5:377).
127
Veja Haykin, “Development and consolidation of the papacy”; e Allison, “Papacy from Leo I to
Vatican II”, in: Schreiner; Merkle, org., Shepherding God’s flock.
128
A afirmação de que o papa tem “poder pleno, supremo e universal sobre toda a Igreja, um poder que
ele só pode exercer de forma desimpedida” (CCC 882) deve ser justaposta às afirmativas papais,
mencionadas na igreja primitiva e durante a ascensão particularmente do período medieval, não apenas de
reinar sobre a Igreja, mas de estender esse poder de modo que seu reino se estenda sobre o mundo inteiro.
Por exemplo, Gelásio, To the Emperor Anastasius, in: Eric G. Jay, org., The church: its changing image
through twenty centuries, vol. 1: The first seventeen centuries (London: SPCK, 1977), p. 98. Tais
afirmações foram baseadas em interpretações evidentemente ridículas de passagens bíblicas (e.g., papa
Inocêncio VIII, “O Sol e a Lua”, baseado em Gênesis 1.16-18; papa Bonifácio VIII, “As duas espadas”,
baseado em Lucas 22.38) e eram indefensáveis. Veja Allison, HT, p. 599.
129
Calvin, Institutes 4.3.1, 2 (LCC 21:1053, 1055).
130
E.g., Allison, HT, caps. 4 e 5.
131
Consequentemente, a afirmação de Gelásio, bispo de Roma de 492-496, de que os concílios
ecumênicos da igreja — já haviam sido celebrados quatro concílios àquela altura (Niceia, Constantinopla I,
Éfeso e Calcedônia) — derivavam sua autoridade do bispo de Roma, era historicamente imprecisa (embora
tivesse contribuído muito para o desenvolvimento do papado em Roma).
132
Vigílio sucumbiu aos encantos da princesa Teodora ao se comprometer com o Credo de Calcedônia.
Seu comprometimento ficou manifesto pelo Segundo Concílio de Constantinopla (553). Honório sustentava
o monotelismo, visão segundo a qual na encarnação o Deus-homem tinha apenas uma vontade. O Terceiro
Concílio de Constantinopla (680-681) condenou Honório por heresia. O papa Leão II (682-683) também
condenou Honório, criando uma situação embaraçosa em que um papa denunciava outro. Infelizmente, o
papa Gregório VII (1073-1085), dizendo em seu Memorandum (Dictatus papae; 1075) que o papa jamais
havia errado e não erra, negligenciou o caso de Honório.
133
Leo I, “The tome of Leo”, in: Henry Bettenson; Chris Maunder, orgs., Documents of the Christian
church, 3. ed. (Oxford/New York: Oxford University Press, 1999), p. 54-5 [edição em português:
Documentos da igreja cristã, tradução de Helmuth Alfredo Simon (São Paulo: Aste, 1967)].
134
“The definition of Chalcedon”, in: Bettenson, Documents of the Christian church, p. 56.
135
Todos esses movimentos e ideologias foram condenados pelo papa Pio IX, Quanta cura (8 de
dezembro de 1864), com o Syllabus of Errors, disponível em:
http://www.archive.org/stream/QuantaCuraTheSyllabusOfErrors_247/pius_ix_pope_quanta_cura_and_the_syllabus_of_error
136
CCC 891. Além disso (com base em CCC 891-892), qual a diferença concreta, além da semântica,
entre um pronunciamento papal infalível ao qual se deve “obediência de fé” e um ensino magisterial
subinfalível ao qual se deve “assentimento religioso”, e que “não obstante, é uma extensão da obediência da
fé” (CCC 892)?
137
Para uma discussão mais ampla, veja Grudem, ST, p. 775-6 [edição em português: Wayne Grudem,
Teologia sistemática (São Paulo: Vida Nova, 2011)].
138
CCC 916.
139
Para um exemplo de afirmação evangélica de ajuda aos pobres e marginalizados, veja The Gospel
Coalition’s, “Theological Vision for Ministry”, vol. 5, disponível em:
http://thegospelcoalition.org/about/foundation-documents/vision/.
140
Conforme afirmação dos participantes evangélicos do Evangélicos e Católicos Juntos: “A Bíblia nada
diz se Maria e outros crentes que partiram com o Senhor podem ouvir as palavras dirigidas a eles nesta vida
e responder a elas. Os evangélicos creem que pela obra consumada de Cristo na cruz, e pelo poder do
Espírito que intercede por nós, podemos chegar diretamente e ‘com confiança ao trono da graça’ (Hb 4.16).
Embora a igreja triunfante [a igreja celestial] e a igreja militante [a igreja terrena] se unam em comum
adoração por meio do Espírito (Ap 5.6-14), não há menção de orações a Maria ou aos santos no testemunho
do Novo Testamento e dos dois primeiros séculos da igreja” (“Do whatever he tells you: the blessed Virgin
Mary in Christian faith and life” [November 2009], seção intitulada “An evangelical word to catholics”, p.
4), disponível em: http://www.firstthings.com/article/2009/11/do-whatever-he-tells-you-the-blessed-virgin-
mary-in-christian-faith-and-life.
141
Papa João Paulo II, Redemptoris Mater, p. 23.
142
Ibidem.
143
Ibidem.
144
D. A. Carson, The Gospel according to John (Leicester/Grand Rapids: Inter-Varsity Press/Eerdmans,
1991), p. 617.
145
Papa João Paulo II, Redemptoris Mater, p. 24, 26.
146
CCC 969.
5
A PROFISSÃO DA FÉ
(primeira parte, seção 2, capítulo 3, artigos
10-12)
As doutrinas da salvação, da ressurreição futura e da vida eterna

A doutrina da salvação: “Creio no perdão dos


pecados” (seção 2, capítulo 3, artigo 10)
Seguindo a estrutura do Credo — “Creio no Espírito Santo, na santa Igreja
Católica, na comunhão dos santos” —, o Catechism of the Catholic Church 1

observa que o Credo “associa a fé no perdão dos pecados não apenas com a fé no
Espírito Santo, mas também com a fé na Igreja e na comunhão dos santos”. O 2

Catechism aponta para Cristo, que concede o Espírito Santo, juntamente com
“divino poder para perdoar pecados”, por intermédio dos apóstolos, como base
bíblica para esse princípio de fé. No dia da ressurreição, Jesus disse a seus
discípulos: “Recebei o Espírito Santo. Se perdoardes os pecados de alguém,
serão perdoados; se os retiverdes, serão retidos” (Jo 20.22,23). Além disso,
3

Cristo associou o perdão dos pecados à fé e ao batismo; a Grande Comissão de


Jesus, conforme narrada no Evangelho de Marcos, é a base bíblica para essa
associação: “E disse-lhes: Ide por todo o mundo, e pregai o evangelho a toda
criatura. Quem crer e for batizado será salvo” (Mc 16.15,16). Mais adiante
veremos em detalhes que a purificação pelo batismo apaga completamente o
pecado original das crianças batizadas, bem como apaga completamente o
pecado original de todos os atos pessoais pecaminosos dos jovens e adultos
batizados; consequentemente, não há mais “absolutamente nada por apagar”. O 4

batismo é um dos usos possíveis das chaves do reino conferidas por Cristo à sua
Igreja (Mt 16.13-20).
Ao mesmo tempo, “a graça do batismo não isenta ninguém de nenhuma das
enfermidades da natureza. Pelo contrário, resta-nos ainda combater os
movimentos da concupiscência, que não cessam de nos arrastar para o mal”. 5

Para vencer essa inclinação que seduz a pecar e que culmina com o pecado, o
fiel precisa de outro remédio além do batismo. Portanto, a Igreja recorre
novamente às chaves do reino e nelas encontra o sacramento da penitência, que
lhe dá poder para “perdoar as faltas a todos os penitentes”. A penitência,
6

tradicionalmente descrita como “‘batismo laborioso’ [...] é necessária para a


salvação dos que caíram depois do batismo”. Por meio desse sacramento, os
7

pecados cometidos depois do batismo (mais adiante especificaremos que os


pecados visados pelos sacramentos são os mortais, e não os veniais) são
perdoados pela Igreja, e os penitentes são restaurados à comunhão com Deus
pela graça da justificação.

Avaliação evangélica
Como a doutrina do perdão dos pecados se acha intimamente associada ao
batismo e à penitência, sua avaliação completa só ocorrerá no momento que o
Catechism fizer a exposição dos sacramentos. Contudo, conforme observamos
anteriormente, a associação íntima da teologia católica do perdão aos apóstolos
— e, portanto, aos seus sucessores, os bispos da Igreja Católica — é motivo de
dificuldades porque se acha baseada em dois axiomas do sistema católico: a
interdependência natureza-graça se manifesta na necessidade de graça a ser
conferida de uma maneira tangível; portanto, ela deve ser conferida
concretamente, primeiro pelos apóstolos e, depois de sua morte, pelos bispos da
Igreja Católica. A interconexão Cristo-Igreja se expressa por meio da exigência
de mediação entre os dois reinos, isto é, natureza e graça. Portanto, a Igreja
Católica deve comunicar graça à natureza. Esses dois axiomas já foram
analisados (cap. 1).
Pode-se fazer igualmente uma crítica específica desse ponto. Sem dúvida, a
teologia evangélica reconhece o dom e a comissão confiados por Cristo a seus
discípulos: “E havendo dito isso, soprou sobre eles e disse-lhes: Recebei o
Espírito Santo. Se perdoardes os pecados de alguém, serão perdoados; se os
retiverdes, serão retidos” (Jo 20.22,23). A pergunta que se coloca é a seguinte:
como a Escritura apresenta a iniciativa apostólica para o cumprimento dessa
tarefa missional? Seguindo o Evangelho de João pela ordem canônica, o livro de
Atos narra o período de espera e de oração em antecipação à vinda do Espírito
Santo (At 1.12-14) e sua descida no dia de Pentecostes para dar início a seu novo
ministério de aliança e inaugurar a igreja (At 2). Os discípulos de Jesus — e não
apenas os Doze por ele instituídos (At 1.15-26), e sim 120 no total (v. 15) —
foram batizados, ou cheios do Espírito Santo, recebendo desse modo o dom do
Espírito prometido por Cristo (v. 4,5; 2.4). Tendo recebido poder do alto com o
recurso divino necessário (1.8), esses discípulos foram lançados em sua missão
evangélica, que é narrada em todo o livro de Atos. Os aspectos desse esforço
missionário consistiram no anúncio da obra de Jesus de Nazaré a favor dos seres
humanos decaídos; instrução de arrependimento do pecado e fé em Jesus Cristo;
promessa de perdão e o dom do Espírito; batismo; afiliação à igreja (2.22-47). A
participação na Grande Comissão não era restrita aos apóstolos; Estêvão (At 7),
Filipe (At 8) e os homens de Chipre e Cirene (At 11.19-26) são mencionados
especificamente como arautos não apostólicos do evangelho. Consequentemente,
o perdão de pecados não é uma prerrogativa de uma casta especial de homens,
tampouco algo que pertence exclusivamente ao seu ministério. Sejam quais
forem as realidades institucionais e hierárquicas introduzidas posteriormente na
história para que a remissão de pecados fosse restrita aos sacerdotes/bispos da
Igreja Católica, eles não podem alterar o que a Escritura ordena a todos os
seguidores de Cristo que receberam poder pelo Espírito de Deus. Quando uma
mãe cristã partilha o evangelho de Jesus Cristo e seu filho perdido se arrepende e
crê, a declaração dessa mãe — “Seus pecados estão perdoados” — expressa a
verdade de pecados já desligados no céu por causa do sacrifício de Cristo (Mt
16.19,21), e é motivo de “alegria perante os anjos de Deus” por causa do filho
pródigo que voltou ao lar e foi encontrado (Lc 15.10,11-32).
A conexão específica desse perdão de pecado com os sacramentos do batismo
e da penitência da Igreja Católica será analisada e avaliada posteriormente.

A doutrina da ressurreição futura: “Creio na


ressurreição do corpo” (seção 2, capítulo 3, artigo 11)
A obra de salvação realizada por Jesus Cristo por meio da sua morte e
ressurreição e a concretização dessa salvação na vida dos seres humanos
decaídos não estarão completas durante a presente era, mas aguardam o
eschaton, ou a era por vir, do qual a ressurreição física dos cristãos e sua
experiência de vida eterna são elementos essenciais.
A doutrina da ressurreição do corpo, um princípio de fé sustentado pela igreja
desde o início, significa que a obra de salvação de Deus se aplica não apenas à
alma (o aspecto imaterial do ser humano que continuará a viver após a morte),
mas também ao corpo (o aspecto material, descartado na morte, voltará
novamente à vida). Biblicamente, essa é uma doutrina revelada aos poucos, mas 8

que encontra sua expressão mais clara e completa na associação que Jesus faz da
“fé na ressurreição à sua pessoa: ‘Eu sou a ressurreição e a vida’. É Jesus quem,
no dia final, levantará aqueles que creram nele, que comeram seu corpo e
beberam seu sangue”. Desde o início, a fé na ressurreição enfrentou forte
9
resistência: “Não há ponto em que a fé cristã encontre mais contradição do que o
da ressurreição da carne”. 10

Para explicar a ressurreição, o Catechism discute primeiramente a morte: “Na


morte, separação da alma e do corpo, o corpo do homem cai na corrupção,
enquanto sua alma vai ao encontro de Deus, embora ficando à espera de se
reunir ao seu corpo glorificado”. Consequentemente, a existência de crentes no
11

céu com Cristo se dá em forma incorpórea (com exceção de Maria, cujo corpo
subiu ao céu no fim de sua vida). Quando Cristo voltar, todos os crentes
destituídos de corpo ressurgirão e receberão um corpo novo e glorioso; eles terão
novamente um corpo pelo poder de Cristo e do Espírito Santo (1Co 15.35-53; Fp
3.21; Rm 8.11).
Embora tal esperança seja futura, certo aperitivo da ressurreição é concedido
durante esta vida terrena. A participação no sacramento do corpo e do sangue de
Cristo significa que “nossos corpos, que participam da eucaristia, não são mais
corruptíveis, mas possuem a esperança da ressurreição”. A participação no
12

sacramento do batismo significa que os fiéis já foram identificados com a


ressurreição de Cristo; na verdade, eles “já participam realmente na vida celeste
do Cristo ressuscitado” de um modo oculto. Entre as implicações da esperança
13

da ressurreição, há o respeito pelo próprio corpo e pelo corpo de outras pessoas


(1Co 6.13-15,19,20).
É claro que para ressuscitar com Cristo é preciso morrer com ele, e o
Catechism volta então a discutir a morte. Em certo sentido, a morte terrena é
natural — é comum a todas as pessoas; contudo, em outro sentido, não é natural,
já que é a penalidade do pecado (Rm 6.23; cf. Gn 2.17). A morte é: (1) o fim da
vida terrena; (2) a consequência do pecado; e (3) a transformação efetuada por
Cristo. Concretamente, para o cristão, a morte tem um significado novo e
positivo: ele ganha a presença de Cristo quando vive com ele (Fp 1.21; 2Tm
2.11), e seu morrer com Cristo, que começou no batismo, se torna completo. A
morte também marca o fim das oportunidades de autoavaliação da graça divina
para salvação; depois da morte, não há mais chance de salvação (Hb 9.27). Em
preparação para a morte, o fiel ora: “Duma morte repentina e imprevista, livrai-
nos, Senhor” e pede a Maria que interceda por ele “na hora da nossa morte”; e se
confia a “São José, padroeiro da boa morte”. 14

Avaliação evangélica
Com poucas exceções, a teologia católica e a teologia evangélica estão de acordo
em relação à doutrina da ressurreição. A esperança derradeira do cristão não é
morrer e ir para o céu em alma sem corpo; pelo contrário, a expectativa correta é
a que espera a ressurreição do corpo. Somente quando o crente for revestido
novamente de um corpo imperecível, glorioso, forte e espiritual (i.e., totalmente
controlado e dominado pelo Espírito Santo; veja 1Co 15.42-44,49) é que ele
experimentará a plenitude da salvação. Todos os que estão unidos a Cristo —
identificados com sua morte, sepultamento e ressurreição vividamente expressos
no batismo — têm essa esperança. A condição do cristão já é o de ressuscitado
com Cristo, e a realidade da sua cidadania celestial deve motivar e guiar sua
cidadania terrena (Fp 3.20; Cl 2.12; 3.1-4). Por fim, a ressurreição será obra
milagrosa do Espírito Santo (Rm 8.11), que reunirá a alma do crente ao seu novo
corpo glorificado.
O ponto fundamental de discordância diz respeito à fonte do antegozo do
corpo ressurreto durante a vida terrena do crente. A teologia evangélica não crê
que o sacramento da eucaristia confira incorruptibilidade ao corpo, o resultado
da transformação interior por meio da graça de Deus infundida no crente,
conforme afirma a teologia católica. Ouvem-se aí ecos da interdependência
15

natureza-graça: a graça opera no intuito de elevar e, por fim, aperfeiçoar a


natureza (humana). A teologia evangélica, pelo contrário, aponta para a
ressurreição de Cristo como prenúncio da ressurreição de seus seguidores (1Co
6.13,14). Esse princípio de fé também é aceito pela teologia católica, mas a
teologia evangélica insiste que a ressurreição de Cristo é o único prenúncio da
ressurreição. O batismo, pelo qual o cristão se identifica com a ressurreição de
Cristo, manifesta essa esperança de forma concreta.
A doutrina da ressurreição ganha destaque contra o pano de fundo de uma
teologia da morte, e aqui ambas as teologias partilham muita coisa em comum. A
morte é a cessação do funcionamento do aspecto material da natureza humana,
bem como o “desvestir” desse elemento material do elemento imaterial.
Portanto, o corpo morre e é descartado, ao passo que a alma, ou espírito,
continua a existir, agora separada temporariamente do corpo. Consequentemente,
a morte é o fim da vida terrena, mas não de toda a existência. Além disso,
embora natural no sentido de ser comum a todos, a morte não é natural, sendo
ela o castigo decorrente do pecado, e não parte da ordem original criada. O
cristão não enfrenta a morte com medo (Hb 2.14-18), mas com alegria (2Co 5.8;
Fp 1.21-23), não porque a morte em si mesma seja algo bom (pelo contrário, ela
é uma inimiga a ser vencida; 1Co 15.26,54-56), mas porque ela é a porta de
saída, ou ponto de partida, desta existência terrena em direção a uma vida com
Cristo no céu (2Tm 4.6; 2Pe 1.15).
A teologia evangélica segue por um caminho diferente de sua congênere
católica em relação à teologia da morte no momento em que a teologia católica
encoraja o fiel a recorrer ao auxílio da intercessão de Maria na hora da morte e a
se confiar a São José, padroeiro da boa morte. A teologia evangélica dispensa
consolos desse tipo e insiste que a verdadeira fonte de consolo é uma fé robusta
no poder de Deus, o Bom Pastor, que sustenta o cristão e caminha com seu povo
em meio às suas dificuldades pelo vale da sombra e da morte (Sl 23) e na
segurança da salvação conforme prometida no evangelho (e.g., Rm 8.1). O
consolo oferecido pela família, amigos e companheiros que partilham da mesma
fé — os que se acham vivos na terra — é também fonte importante de ajuda
diante da morte.

A doutrina da vida eterna: “Creio na vida eterna”


(seção 2, capítulo 3, artigo 12)
Outro elemento essencial para completar a salvação no eschaton, ou o porvir, é a
vida eterna. Essa esperança está selada para o fiel mediante a administração do
sacramento dos últimos ritos, do qual faz parte o viaticum, um aspecto do
16

sacramento da eucaristia. Por esse meio, a Igreja Católica prepara seus membros
fiéis para a morte.
Quando a morte põe fim à vida terrena do homem, segue-se o julgamento
divino: todos “serão recompensados imediatamente depois da morte de acordo
com suas obras e fé”. O veredito dado no julgamento determinará o destino da
17

pessoa. Há duas possibilidades: “Entrar na felicidade do céu — por meio da


purificação ou imediatamente — ou na condenação imediata para sempre”. 18

Em relação ao primeiro destino possível, o céu é a recompensa do fiel “que


morre na graça e na amizade de Deus e é perfeitamente purificado”. Ele19

experimenta de modo concreto a visão beatífica, isto é, ele “vê a divina essência
com uma visão intuitiva, e até face a face, sem a mediação de criatura alguma”. 20

Além disso, “o céu é o fim último e a realização das aspirações mais profundas
do homem, o estado de felicidade suprema e definitiva” e “consiste na posse em
plenitude dos frutos da redenção operada por Cristo”. 21

O céu é o destino derradeiro não apenas dos fiéis perfeitamente purificados,


mas também, por fim, dos fiéis cuja purificação não se completar em existência
terrena: “Os que morrem na graça e na amizade de Deus, mas não de todo
purificados, embora seguros da sua salvação eterna, sofrem depois da morte uma
purificação, a fim de obterem a santidade necessária para entrar na alegria do
céu”. O purgatório é a “purificação final dos eleitos, que é absolutamente
22

distinta do castigo dos condenados”. O respaldo bíblico para o purgatório


23

consiste em passagens como a da purificação pelo fogo (1Co 3.15; 1Pe 1.7), bem
como a advertência severa de Jesus de aquele que cometer blasfêmia contra o
Espírito Santo “não lhe será perdoado, nem neste mundo, nem no vindouro” (Mt
12.32). Sua ameaça significa que “certas ofensas podem ser perdoadas [...] no
mundo vindouro”. O Catechism também apela à prática de orar pelos mortos,
24

conforme se lê no apócrifo 2Macabeus: “Eis por que mandou oferecer aquele


sacrifício pelos mortos, para que ficassem livres do pecado” (2Mc 12.46). Com 25

esse respaldo, a Igreja Católica formulou sua doutrina do purgatório,


especialmente nos Concílios de Florença e de Trento. Consequentemente, ela
incentiva várias práticas a favor dos mortos e em sua honra: orações, sacrifícios
eucarísticos, esmolas, compra ou recebimento de indulgências e participação em
obras de penitência.
O outro destino eterno possível é o inferno, que é “o estado de autoexclusão
definitiva da comunhão com Deus e com os bem-aventurados”, para onde são
enviados todos os que “morrem em estado de pecado mortal e não se
arrependeram, tendo rejeitado o amor misericordioso de Deus” por sua livre
escolha. Deixar de “atender às graves necessidades dos pobres e dos
26

pequeninos”, que são nossos irmãos e irmãs, manifesta expressamente nossa


rejeição a Deus. O próprio Jesus falou da “geena” e do “fogo que não se apaga”
27

(e.g., Mt 5.22,29; 10.28; 13.42,50; Mc 9.43-48). Portanto, a Igreja Católica


afirma que “as almas dos que morrem em estado de pecado mortal descem
imediatamente, após a morte, ao inferno, onde sofrem as penas do inferno, ‘o
fogo eterno’. A principal pena do inferno consiste na separação eterna de
Deus”. À luz do que foi dito acima, o Catechism preconiza duas considerações:
28

cabe a cada um responder de forma responsável e livre ao chamado da


conversão, e “Deus não predestina ninguém para o inferno. Para ter semelhante
destino, é preciso haver uma aversão voluntária a Deus (pecado mortal) e
persistir nela até o fim”. 29

Além da recompensa imediata depois da morte que sobrevém à pessoa, o juízo


final ocorrerá quando da segunda vinda de Cristo, ocasião que foi determinada
por Deus, mas que não pode ser conhecida pelo ser humano (Mc 13.32). Todos
os mortos, tanto justos quanto injustos, serão ressuscitados, e Cristo os separará
em dois grupos. Os justos entrarão na vida eterna; os ímpios irão para o castigo
eterno (Mt 25.31-46). Ao ir além da avaliação individual por ocasião da morte,
“o juízo final revelará até as suas últimas consequências o que cada um tiver
feito ou deixado de fazer de bem durante a sua vida terrena”. Tal como antes,
30

essa ameaça de juízo deve suscitar uma resposta positiva ao apelo divino à
conversão.
Depois do juízo final, “no fim dos tempos, o reino de Deus chegará à sua
plenitude [...] os justos reinarão para sempre com Cristo, glorificados em corpo e
alma”. Além disso, o Universo inteiro, cujo destino se acha intimamente
31

associado ao da humanidade, será totalmente renovado: de acordo com o plano


eterno de Deus, o estado final será o de “novo céu e nova terra” (2Pe 3.13), sob o
cabeça que é um só, Jesus Cristo (Ef 1.10). Essa consumação terá consequências
imensas para a humanidade de modo especial e para o cosmos em geral: “Para o
homem, essa consumação será a realização final da unidade do gênero humano,
querida por Deus desde a Criação e da qual a igreja peregrina era ‘como que o
sacramento’. Os que estiverem unidos a Cristo formarão a comunidade dos
resgatados, a ‘Cidade santa de Deus’, a ‘Esposa do Cordeiro’”. Não haverá
32

mais pecado e egoísmo que destruam a humanidade, e a visão beatífica será


fonte de alegria e de comunhão. O cosmos está intimamente associado a esse
destino final do homem (Rm 8.19-23), “assim, pois, também o universo visível
está destinado a ser transformado, a fim de que o próprio mundo, restaurado no
seu estado primitivo, esteja sem mais nenhum obstáculo ao serviço dos justos,
participando na sua glorificação em Jesus Cristo ressuscitado”. Essa esperança
33

de transformação do Universo não deve diminuir o interesse da Igreja pela terra


atual. Embora o progresso terreno deva ser diferenciado da expansão do reino de
Deus, o avanço de ambos é bem-vindo; o progresso terreno, de modo especial,
“pode contribuir para a melhor organização da sociedade humana”. 34

Avaliação evangélica
Prosseguindo com a discussão sobre escatologia, ou a doutrina das últimas
coisas, o Catechism trata da escatologia pessoal no tópico do juízo depois da
morte, e da escatologia nos tópicos sobre o retorno de Cristo, o juízo final, o
milênio e o novo céu e a nova terra. Avaliaremos cada um desses elementos.
Em relação à escatologia pessoal, a morte põe fim à vida terrena, sendo
seguida pelo juízo divino; há dois destinos eternos para o ser humano. De acordo
com a teologia católica, um desses destinos futuros é o céu, que é o destino
eterno imediato dos que morrem na graça e na amizade de Deus e são
perfeitamente puros. Embora a teologia evangélica concorde que o céu é um dos
destinos possíveis que aguardam as pessoas, ela discorda do fundamento a que a
Igreja Católica recorre para fazer tal afirmação. De acordo com o sistema
católico, que é baseado na interdependência natureza-graça, a graça opera no
sentido de elevar a natureza, e o céu é a recompensa do fiel cuja natureza
(humana) foi aperfeiçoada pela graça. Como esse axioma, já avaliado, está
errado, isso significa que o fundamento da teologia católica para que o fiel entre
no céu está equivocado.
Em relação à crítica concreta da teologia evangélica à doutrina católica do céu
(e conforme discutiremos em detalhes posteriormente), a salvação — e, portanto,
a vida com Cristo no céu depois da morte — baseia-se no juízo manifesto de
Deus, e não em alguma purificação (inatingível) nesta vida. A doutrina
evangélica da justificação, que é completamente distinta da ideia proposta pela
teologia católica, sustenta que um dos atos poderosos de Deus na salvação do ser
humano caído é sua declaração de que o homem não é culpado, e sim justificado,
porque Deus, o Juiz, credita a justiça perfeita de Jesus Cristo na sua conta,
tornando-o assim totalmente justo perante ele. Essa justificação está baseada
unicamente na graça divina — conquistada pela morte, pelo sepultamento e pela
ressurreição de Jesus Cristo — e é apropriada somente pela fé, isto é, pela
confiança na obra consumada de Cristo, sem a interferência de boas obras,
esforço humano, envolvimento da igreja, participação nos sacramentos, e/ou
qualquer coisa adicionada à fé salvadora. Portanto, todos os que são justificados
pela graça por meio da fé aguardam seu destino eterno: o céu.
Essa crítica evangélica ao axioma católico da interdependência natureza-
graça, juntamente com a doutrina evangélica da justificação, significa também
que a ideia de purgatório na escatologia católica está errada. De acordo com o
catolicismo, o céu é o destino final não apenas do fiel que foi perfeitamente
purificado, mas também, no fim das contas, daqueles cuja purificação não se
completou em sua existência terrena. Com a morte desses fiéis, a alma deles vai
imediatamente para o purgatório, seu destino temporário e estado de sofrimento
em que eles “[passam por] uma purificação, a fim de obterem a santidade
necessária para entrar na alegria do céu”. Enquanto nesse estado, sua alma pode
35

ser ajudada com orações do fiel no céu e na terra, com a compra de indulgências
para atenuar o tempo necessário à purificação, com a encomenda de missas em
seu favor e outros meios.
Para a teologia católica, o purgatório é necessário porque, para ela, a salvação
— e, por conseguinte, a vida com Cristo no céu depois da morte — se baseia
“não apenas na remissão dos pecados, mas também na santificação e renovação
do homem interior”. Se tal renovação e elevação da natureza humana pela graça
36

de Deus não chega à perfeição nesta vida, é preciso algo mais para a salvação.
Portanto, há necessidade de “um estado de punição temporária para os que, ao
partir desta vida na graça de Deus, não estão inteiramente livres dos pecados
veniais ou não pagaram totalmente ainda a satisfação devida por suas
transgressões”. Essa doutrina católica está incorreta teologicamente porque se
37

baseia em uma compreensão equivocada da justificação e numa visão errônea da


interdependência natureza-graça.
Biblicamente, a teologia católica encontra respaldo para essa doutrina no livro
apócrifo de 2Macabeus:
Quando havia reunido seu exército, Judas alcançou a cidade de Odolão e, chegando o sétimo dia da
semana, purificaram-se segundo o costume e celebraram ali o sábado. No dia seguinte, Judas e seus
companheiros foram tirar os corpos dos mortos, como era necessário, para depô-los na sepultura ao
lado de seus pais. Ora, sob a túnica de cada um encontraram objetos consagrados aos ídolos de Jânia,
proibidos aos judeus pela lei. Todos, pois, reconheceram que fora esta a causa de sua morte.
Bendisseram, pois, a mão do justo juiz, o Senhor, que faz aparecer as coisas ocultas, e puseram-se em
oração, para implorar-lhe o perdão completo do pecado cometido. O nobre Judas falou à multidão,
exortando-a a evitar qualquer transgressão, ao ver diante dos olhos o mal que havia sucedido aos que
foram mortos por causa dos pecados. Em seguida, fez uma coleta, enviando a Jerusalém cerca de
duas mil dracmas, para que se oferecesse um sacrifício pelos pecados: belo e santo modo de agir,
decorrente de sua crença na ressurreição, porque, se ele não julgasse que os mortos ressuscitariam,
teria sido vão e supérfluo rezar por eles. Mas, se ele acreditava que uma bela recompensa aguarda os
que morrem piedosamente, era esse um bom e religioso pensamento; eis por que ele pediu um
sacrifício expiatório para que os mortos fossem livres de suas faltas (2Mc 12.38-45, grifo do autor).

Essa passagem de 2Macabeus narra a consequência de uma batalha (c. 180-160


a.C.) entre conspiradores judeus, liderados por Judas Macabeu, e um exército
pagão. A descoberta de amuletos no corpo dos soldados judeus mortos revelou a
razão pela qual esses homens em especial haviam morrido: eles eram adoradores
de ídolos, um grave pecado proibido pela lei judaica. Além disso, essa
descoberta induziu à ação: orou-se para que a idolatria desses homens mortos
fosse perdoada, e o montante de dinheiro para comprar uma oferta pelo pecado a
seu favor. A esperança expressa por essa ação era de que a expiação oferecida
pelos soldados mortos resultasse na libertação do seu pecado e na sua
ressurreição futura. A teologia católica considera 2Macabeus parte da Escritura
canônica e, portanto, o livro tem autoridade para formular a doutrina do
purgatório. A teologia evangélica rejeita a canonicidade de 2Macabeus e, por
conseguinte, não o considera Escritura. Portanto, esse texto não pode servir de
base bíblica para o purgatório.
No entanto, a teologia católica aponta para várias passagens do Novo
Testamento em busca de justificativa bíblica, e cabe à teologia evangélica julgá-
las. Na primeira passagem, o apóstolo Paulo descreve o julgamento de algumas
pessoas: “Se a obra de alguém se queimar, este sofrerá prejuízo, mas será salvo,
como alguém que passa pelo fogo” (1Co 3.15). A teologia católica encontra aqui
a ideia de fogo do purgatório que queima os dejetos do pecado em preparação
para a salvação derradeira das almas que ali se encontram. Contudo, a teologia
evangélica chama a atenção para o contexto dessa passagem (1Co 3.10-14) e
observa que Paulo está descrevendo não os sofrimentos de quem está no
purgatório, mas a avaliação das obras dos seres humanos, principalmente dos
líderes da igreja, que constroem sobre seu fundamento único, Jesus Cristo. Com
obras boas (ouro, prata, pedras preciosas) ou obras más (madeira, feno, palha).
No dia do juízo (portanto, essa avaliação não será feita imediatamente depois da
morte), a obra de cada um será avaliada pelo fogo. O primeiro cenário é
promissor: “Se a obra que alguém construiu permanecer, este receberá
recompensa” (v. 14). Esse cristão não apenas desfruta da salvação eterna, mas é
também recompensado por suas boas obras por amor a Cristo. O segundo
cenário é a um só tempo consolador e trágico: “Se a obra de alguém se queimar,
este sofrerá prejuízo, mas será salvo, como alguém que passa pelo fogo” (v. 15).
Embora esse cristão, a exemplo do que aparece no primeiro cenário, desfrute da
salvação eterna, suas obras precárias pela causa de Cristo resultam na perda de
(possíveis) recompensas. Essa avaliação das obras do cristão que tem como
propósito conceder — ou não — recompensas no dia do juízo não pode ser
compreendida no sentido de um julgamento pessoal imediatamente depois da
morte levando ao isolamento no purgatório com o propósito de purificar o
cristão da impureza do pecado em preparação para a redenção final.
Uma segunda passagem do Novo Testamento usada em apoio à ideia de
purgatório remete às instruções de Jesus a respeito da blasfêmia contra o Espírito
Santo: “Se alguém disser alguma palavra contra o Filho do homem, isso lhe será
perdoado; mas se alguém falar contra o Espírito Santo, não lhe será perdoado,
nem neste mundo, nem no vindouro” (Mt 12.32). A teologia católica se detém na
implicação da última frase em conformidade com o seguinte raciocínio: se há um
pecado — blasfêmia contra o Espírito Santo — que não pode ser perdoado nesta
era nem na vindoura, pode haver então pecados que, se não forem perdoados na
presente era, poderão ser perdoados na era por vir — isto é, no purgatório. A
teologia evangélica objeta e diz que essa implicação está longe do que Jesus quis
dizer, enfatizando desse modo o caráter hediondo de um pecado em particular
contra o Espírito Santo: ele é imperdoável aqui e na eternidade. O fato de que o
perdão de tal blasfêmia é impossível depois da morte não torna o perdão de
outros pecados possível nem mesmo depois da morte, no purgatório.
Além da falta de base bíblica para essa doutrina católica, a doutrina
evangélica da justificação torna o purgatório inútil. O cristão não foi declarado
inocente, e sim completamente justificado porque a justiça perfeita de Jesus
Cristo lhe foi atribuída — foi creditada em sua conta. Como consequência, ele se
acha revestido da justiça de Cristo perante Deus e a salvação — e, portanto, a
entrada no céu para o desfrute da vida eterna com Cristo depois da morte — lhe
é concedida. Essa posição diante de Deus se baseia na declaração que ele faz
quando julga, na justificação que concede, e não em alguma perfeição
(inatingível) nesta vida ou no purgatório. Por esse motivo, a teologia evangélica
afirma e se regozija na certeza da salvação, que é o privilégio de todo ser
humano pecador que abraça a graça de Deus na obra de Cristo unicamente pela
fé. A teologia evangélica, portanto, discorda da interpretação equivocada que a
teologia católica faz da justificação e do purgatório e do seu corolário, segundo o
qual o fiel não pode achar conforto e força na certeza da salvação.
Tendo completado a avaliação de um dos dois destinos eternos das pessoas
depois da morte — o céu — e a avaliação do destino temporário, o purgatório, o
segundo dos dois destinos eternos será avaliado agora. De acordo com a teologia
católica, esse outro futuro é o inferno, o destino eterno imediato de todos os que
“morrem em pecado mortal sem se arrepender e sem aceitar o amor
misericordioso de Deus” por sua livre escolha. O ímpio impenitente padece
38

castigos eternos no inferno, o principal dos quais é a separação eterna da


presença de Deus.
Embora a teologia evangélica esteja de acordo que o inferno é um dos dois
destinos eternos que aguarda as pessoas, ela hesita em afirmar certos aspectos
dessa doutrina católica. Um ponto de hesitação diz respeito à base a que se
recorre para confiar as pessoas a esse destino. Como a teologia evangélica não
aceita a distinção que faz a teologia católica entre pecados mortais e pecados
veniais, ela afirma que todo aquele que comete pecado — mortal ou venial, de
modo insolente ou não intencional, pecados por deliberação ou omissão — é
culpado diante de Deus e, portanto, condenado ao inferno. Além disso, ao
rejeitar o inclusivismo da teologia católica (discutido anteriormente), a teologia
evangélica destaca que é somente por meio da apropriação consciente do
evangelho de Jesus Cristo que o pecador escapa do destino merecido do inferno.
Uma segunda hesitação é expressa por muitos proponentes da teologia
evangélica, mas não por todos. Esse ponto diz respeito à predestinação e como
ela se relaciona com o presente tópico. A predestinação diz respeito ao decreto
de Deus, de modo especial sua decisão eterna relativa ao destino final de todas
as pessoas. Existe uma teologia que nega a predestinação divina: Deus não toma
decisão alguma a respeito do destino das pessoas, porém todos, individualmente,
tomam a decisão de seguir a Cristo para se salvarem, ou não tomam essa
decisão, e assim são condenadas. Outra teologia diz respeito à eleição divina:
isto é, num passado eterno, Deus escolheu algumas pessoas, os eleitos, para que
fossem salvas pelo arrependimento do pecado e fé em Cristo. Outra teologia
sustenta a “dupla” predestinação, isto é, a eleição (conforme definida acima) e a
reprovação, a decisão divina de preterir algumas pessoas, e o pesar por não
decidir salvá-las. A teologia católica parece se enquadrar no segundo grupo: ao
mesmo tempo que reconhece algum tipo de eleição daqueles que serão salvos,
ela sustenta também que Deus não predestina ninguém ao inferno; esse destino é
questão de escolha pessoal. Quem persiste no pecado mortal e se recusa a
acolher o perdão que lhe é dado exclui a si mesmo do céu; Deus não condena
ninguém ao futuro terrível do inferno. Essa perspectiva encontra sustentação em
algumas vertentes de teologia evangélica; mais concretamente, é princípio de fé
da teologia arminiana. Diferentemente disso, a teologia reformada segue a
terceira posição, a da dupla predestinação, subscrevendo não apenas a eleição,
mas também a reprovação. Ao mesmo tempo, a teologia reformada está em
sintonia com a teologia católica no tocante à escolha pessoal: a decisão eterna de
preterir algumas pessoas — reprovação — pertence a Deus, porém sua graça
divina é perfeitamente compatível com o princípio de fé de que aqueles que, por
sua própria vontade, derem as costas a Deus e persistirem obstinadamente nesse
estado de impenitência e de descrença, disso resultará sua condenação ao
inferno.
Um último ponto de concordância em relação à doutrina do inferno: assim
como a teologia católica ressalta o dever que tem toda pessoa de responder de
forma responsável ao evangelho, assim também o faz a teologia evangélica. Na
verdade, a ameaça da punição eterna consciente à espera do ímpio no inferno é
um fator primordial de motivação dos esforços missionários da igreja.
Essa avaliação individual e pessoal na hora da morte com o propósito de
conferir à pessoa seu destino eterno no céu ou no inferno antecipa um aspecto da
escatologia cósmica, e nossa avaliação evangélica passa agora a se ocupar desse
tópico. Como os “últimos tempos” se referem ao período todo que compreende o
primeiro e o segundo adventos de Jesus Cristo, o próximo grande evento pelo
qual a igreja espera é o seu glorioso retorno. A teologia católica ressalta
corretamente que, embora se trate de um evento definitivo estabelecido por
Deus, ele não revelou quando isso se dará (Mc 13.32), portanto a igreja não sabe
quando Cristo virá novamente. Esse acontecimento será acompanhado da
ressurreição do justo e do injusto e de seu comparecimento diante de Cristo no
juízo final (Mt 25.31-46), que o apóstolo Paulo descreve da seguinte forma:
“Pois é necessário que todos sejamos apresentados diante do tribunal de Cristo,
para que cada um receba retribuição pelo que fez por meio do corpo, de acordo
com o que praticou, seja o bem, seja o mal” (2Co 5.10). O destino eterno já
atribuído no julgamento individual por ocasião da morte será agora manifesto
publicamente para que o mundo todo o contemple. A justiça divina será feita, e
ficará demonstrado que Deus é santo e verdadeiro em todos os seus caminhos,
assim como sua “justiça triunfa sobre todas as injustiças perpetradas”. De modo
39

geral, a teologia católica e a teologia evangélica estão de acordo no que diz


respeito ao retorno de Cristo e ao juízo final. A teologia evangélica reforça,
porém, a ideia de que a avaliação a ser feita no juízo final dirá respeito à
apropriação, ou não, pela pessoa, do evangelho, uma decisão que pode mudar a
vida do indivíduo e da qual flui toda obra boa, ou má. A teologia evangélica
acrescentaria ainda que aqueles que não ouviram falar de Jesus Cristo não serão
julgados com base em sua aceitação ou rejeição do evangelho, mas com base na
resposta que deram à luz da revelação geral recebida de Deus.
Para a teologia católica, a volta de Jesus Cristo e o juízo final assinalam o fim
da presente era e iniciam o eschaton, ou era vindoura, em que o reino de Deus
será estabelecido em toda a sua plenitude. Alguns proponentes da teologia
evangélica concordam com essa proposição, ao passo que outros discordam. A
doutrina que trata desse aspecto da escatologia cósmica é chamada de
milenarismo, porque se baseia em Apocalipse 20.1-6 — sobretudo na expressão
recorrente “mil anos” (do lat. mille = mil; annus = ano) — em relação à presente
era da nossa existência e ao retorno de Cristo. O amilenarismo diz que mil anos
40

não é um período literal de tempo, mas corresponde à era da igreja entre a


primeira e a segunda vindas de Cristo; portanto, não há um período futuro de mil
anos. Na conclusão do período da igreja, ou milênio, Cristo voltará e
estabelecerá o reino de Deus, ou o novo céu e a nova terra. Agostinho, no quinto
século, desenvolveu o amilenarismo e, daí por diante, ele se tornou a doutrina
milenarista tradicional da igreja. É a perspectiva milenarista da teologia católica,
bem como de muitos tipos de teologia evangélica (e.g., a teologia reformada). O
pós-milenarismo diz que, por meio da pregação do evangelho e da
41

cristianização do mundo, a era da igreja paulatinamente dará lugar ao milênio,


uma era de ouro (não necessariamente mil anos) de paz e de prosperidade depois
da qual Cristo voltará. Embora jamais tenha desfrutado de aceitação
generalizada, o pós-milenarismo foi defendido por algumas pessoas notáveis
(e.g., Jonathan Edwards) e ainda é uma perspectiva minoritária no âmbito da
teologia evangélica. O pré-milenarismo sustenta que Jesus Cristo voltará antes
42

do milênio e estabelecerá um reino sob sua autoridade na terra durante


precisamente mil anos. Essa posição milenarista foi difundida na igreja primitiva
até a época de Agostinho. Consequentemente, ela é conhecida muitas vezes
como o pré-milenarismo histórico ou clássico. Uma versão dele — chamada de
pré-milenarismo pré-tribulacionista — foi introduzida no século 19. Ela é
43

diferente da posição clássica no que diz respeito à relação da igreja com a


tribulação, o período de sete anos de sofrimento intenso, a investida de Satanás,
o mal humano e a ira divina descrita na Escritura (e.g., Dn 12.7; Ap 7.14).
Embora o pré-milenarismo clássico sustente que a igreja passará pelo período da
tribulação, o pré-milenarismo pré-tribulacionista acredita que a igreja será tirada
do mundo — o termo técnico para esse evento é arrebatamento da igreja —
antes do início da tribulação. Ambas as versões de pré-milenarismo são
encontradas fartamente na teologia evangélica. Consequentemente, algumas
partes da teologia evangélica estão de acordo com o milenarismo católico, ao
passo que com outras, não.
Apesar das muitas perspectivas da doutrina do milênio, a teologia católica e a
teologia evangélica estão de pleno acordo que o estágio final da escatologia
cósmica é o novo céu e a nova terra. Depois do retorno de Jesus Cristo, da
ressurreição dos mortos e do juízo final (aqui o pré-milenarismo acrescentaria o
reino de mil anos de Cristo na terra), terá início o estado eterno. Toda a
existência será resumida em Cristo (Ef 1.10). A igreja — “a Noiva, a esposa do
Cordeiro” (Ap 21.9) — cederá seu lugar à Nova Jerusalém como habitação
esplêndida de Deus entre os seres humanos (v. 2-4,10-21), todos os quais terão
sido completamente conformados à imagem de Cristo e unidos para sempre (Ap
21.5; Rm 8.29). O Universo inteiro será refeito ou renovado (Rm 8.18-23; 2Pe
3.10-13; Ap 21.1) de tal modo que o desígnio original de Deus será restaurado
para sempre.

Conclusão
A primeira parte do Catechism, “A profissão da fé”, chega ao fim, tendo tratado
das doutrinas da revelação e da fé e das doze doutrinas que decorrem dos credos
da igreja, concretamente do Credo dos Apóstolos conforme complementado pelo
Credo de Niceia. Avaliamos teologicamente a teologia católica, sob a
perspectiva evangélica e à luz da Escritura e do evangelho, em toda essa
primeira parte, seção por seção, cientes do duplo axioma do sistema católico, do
que resultaram pontos de acordo e críticas. A segunda parte do Catechism, “A
celebração do mistério cristão”, com atenção especial à economia sacramental da
Igreja Católica e aos seus sete sacramentos, será nosso próximo tópico de
discussão.
1
Edição em português: Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Loyola, 1999).
2
CCC 976.
3
Ibidem.
4
CCC 978; a citação é do Roman catechism 1.11, 3.
5
Ibidem.
6
CCC 979; a citação é do Roman catechism 1.11, 4.
7
CCC 980; a citação é dos Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 14.a sessão (25 de novembro de
1551), Dos Santíssimos Sacramentos da Penitência e da Extrema-Unção, cap. 2 (Schaff, 2:143). O concílio
cita Gregory of Nazianzus [Gregório de Nazianzo], Oration 39.17 (NPNF2 7:358), e John of Damascus
[João Damasceno], The orthodox faith 4.9 (NPNF2 9:77-79, segundo conjunto de números de páginas).
8
CCC 992. O Catechism faz referência a Daniel 12.1-13 juntamente com o escrito apócrifo de
2Macabeus 7.9,14,29.
9
CCC 994; a citação é de João 11.25. A afirmação sobre o corpo e o sangue de Cristo é de João 5.24,25;
6.40,54.
10
CCC 996; a citação é de Augustine [Agostinho], Expositions on the Psalms, salmo 88(89), 32 (NPNF1
8:437).
11
CCC 997.
12
CCC 1000; a citação é de Irenaeus [Ireneu], Against heresies 4.18.5 (ANF 1:486).
13
CCC 1002-1003; a base bíblica para essas afirmações é Colossenses 2.12; 3.1,3; cf. Filipenses 3.20.
14
CCC 1014; as citações são do Roman missal, “Litany of the Saints” e “Hail Mary”.
15
CCC 1000.
16
Conforme já dissemos, viaticum se refere à preparação para uma jornada (do lat. via). Esse aspecto de
sacramento da eucaristia será discutido em detalhes mais adiante.
17
CCC 1021. A base bíblica para esse juízo abrange, entre outros textos, a Parábola de Lázaro e o
Homem Rico (Lc 16.19-31), as palavras do Cristo prestes a morrer ao bom ladrão (Lc 23.39-43), e outras
passagens do Novo Testamento (2Co 5.8-10; Hb 9.27; 12.23).
18
CCC 1022.
19
CCC 1023.
20
Ibidem; a citação é do papa Bento XII, Benedictus Deus (1336), disponível em:
http://www.papalencyclicals.net/Ben12/B12bdeus.html. Cf. CCC 1028.
21
CCC 1024, 1026.
22
CCC 1030.
23
CCC 1031.
24
Ibidem (grifo do autor); a citação é de Gregory the Great [Gregório, o Grande], Dialogue 4.39,
disponível em: http://www.tertullian.org/fathers/gregory_04_dialogues_book4.htm#C39.
25
De acordo com o Catechism, essa passagem aparece como versículo 46; na RSV, é o versículo 45.
26
CCC 1033.
27
Ibidem; a alusão bíblica é a Mateus 25.31-46.
28
CCC 1035.
29
CCC 1037. A última afirmação é reforçada pelos apelos do Concílio de Orange II (529) e pelo
Concílio de Trento (1547), bem como pela afirmação bíblica do desejo de Deus que todos cheguem ao
arrependimento (2Pe 3.9).
30
CCC 1039.
31
CCC 1042.
32
CCC 1045; a citação é do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 1; referência bíblica: Apocalipse
21.2,9.
33
CCC 1047; a citação é de Irenaeus, Against heresies 5.32.1 (ANF 1:561).
34
CCC 1049; a citação é do Concílio Vaticano II, Gaudium et spes 39.2.
35
CCC 1030.
36
CCC 1989. Essa é a definição de justificação da teologia católica, que retomaremos mais à frente.
37
Joseph Pohle, Eschatology; or the catholic doctrine of the last things: a dogmatic treatise, reimpr. do
texto de 1923 (Ulan Press, 2012), p. 77.
38
CCC 1033.
39
CCC 1040.
40
Amilenarismo vem do prefixo a (alfa privativo do grego) e expressa negação; e milenar ou reino de
mil anos. Portanto, “amilenarismo” significa “não mil anos”, ou, para ser mais preciso, “nenhum futuro de
mil anos”.
41
Pós-milenarismo deriva do prefixo post (= depois) e milenar ou reino de mil anos. Portanto, “pós-
milenarismo” significa “depois de mil anos”.
42
Pré-milenarismo vem do prefixo pre (= antes) e milenar ou reino de mil anos. Portanto, “pré-
milenarismo” significa “antes de mil anos”.
43
Pré-tribulacionista vem do prefixo pre (= antes) e tribulacionista ou relativo a sofrimento. Portanto,
“pré-tribulacionista” significa “antes do período de sofrimento”.
II
A teologia católica de acordo com o Catecismo
da Igreja Católica

SEGUNDA PARTE: A CELEBRAÇÃO


DO MISTÉRIO CRISTÃO
6
A CELEBRAÇÃO DO MISTÉRIO
CRISTÃO
(segunda parte, seção 1)
A liturgia e a economia sacramental

Introdução: Por que liturgia?


Seguindo a apresentação das doutrinas da igreja no tópico “A profissão da fé”, o
Catechism of the Catholic Church se volta então para uma discussão ampliada
1

da liturgia da igreja intitulada “A celebração do mistério cristão”, com especial


atenção dedicada a duas áreas: a economia sacramental da igreja e a teologia e
prática dos seus sete sacramentos. A palavra “mistério” é usada de maneiras
específicas: primeiro, “mistério” se refere à economia da salvação, a obra que
Deus fez em Cristo para realizar a redenção dos seres humanos decaídos. Essa
obra salvífica se centrou especificamente no mistério pascal de Cristo
2

constituído por sua paixão [seu sofrimento], sua morte, seu sepultamento, sua
ressurreição e ascensão. A partir desse ato sacrifical de Cristo na cruz, “surgiu ‘o
maravilhoso sacramento de toda a igreja’”. Em segundo lugar, e como
3

consequência disso, “mistério” se refere à proclamação do evangelho pela igreja


e sua celebração do mistério pascal de Cristo — sua obra de salvação, o primeiro
sentido de “mistério” — em sua liturgia: “A liturgia, com efeito, pela qual,
sobretudo no sacrifício eucarístico, ‘se atua a obra da nossa redenção’, contribui
em sumo grau para que os fiéis exprimam na vida e manifestem aos outros o
mistério de Cristo e a autêntica natureza da verdadeira igreja”. 4

Na verdade, a liturgia é “a participação do povo de Deus na ‘obra divina’. Por


meio da liturgia, Cristo, nosso redentor e sumo sacerdote, continua a obra da
nossa redenção na sua igreja, com ela e através dela”. A liturgia não está restrita
5

ao culto de adoração; ela se refere também à comunicação do evangelho e às


obras de caridade. No âmago de todas essas atividades está a ideia de culto a
Deus e de serviço a outros. É importante frisar que a ideia católica de liturgia (do
gr. λειτουργία, leitourgia, “ministério”, Hb 8.6) está associada ao “ministro” (do
gr. λειτουργὸς, leitourgos; Hb 8.2), Jesus Cristo:
Com razão se considera a liturgia como o exercício da função sacerdotal de Jesus Cristo. Nela,
mediante sinais sensíveis e no modo próprio de cada qual, significa-se e realiza-se a santificação dos
homens e é exercido o culto público integral pelo corpo místico de Jesus Cristo, isto é, pela cabeça e
pelos membros. Portanto, qualquer celebração litúrgica, enquanto obra de Cristo Sacerdote e do seu
corpo que é a igreja, é ação sagrada por excelência, e nenhuma outra ação da igreja a iguala em
eficácia com o mesmo título e no mesmo grau.6

Por conseguinte, a liturgia é caracterizada pela dupla atuação: do lado divino, ela
é obra de Cristo; do lado humano, é obra da igreja, tornando a igreja presente e
revelando-a “como sinal visível da comunhão em Cristo entre Deus e os
homens”. Além disso, a liturgia não é apenas obra da igreja; “ela deve ser
7

precedida pela evangelização, pela fé e pela conversão”. Para o fiel da igreja, a8

liturgia é o “lugar privilegiado” para a catequese, já que ela procede “do visível
para o invisível, do sinal para a coisa significada, dos ‘sacramentos’ para os
‘mistérios’”. 9

Avaliação evangélica
Um conceito pouco familiar para os evangélicos, “liturgia” pode simplesmente
se referir a um rito, uma estrutura ordenada, de adoração pública. A maior parte
dos cultos das igrejas evangélicas segue um ritmo específico, começando por um
chamado à adoração, seguido do cântico de hinos e/ou cânticos de louvor e de
ação de graças, passando a seguir para orações coletivas e/ou individuais que
incluem a confissão de pecados e a certeza de perdão; depois vêm a leitura e a
pregação da Palavra de Deus. Muitas vezes celebram-se também as duas
ordenanças ou os dois sacramentos do batismo e da ceia do Senhor. Conclui-se
com mais hinos de louvor a Deus e com uma bênção. Portanto, as igrejas
evangélicas, embora não estejam acostumadas a se referir a tal estrutura como
“liturgia”, realizam efetivamente cultos de adoração litúrgicos.
O conceito católico de liturgia é, contudo, muito mais elevado porque se acha
associado ao mistério.
Em relação à ideia de mistério da teologia católica, a teologia evangélica
concorda que isso está relacionado com a proclamação do evangelho pela igreja.
Concretamente, no Novo Testamento, “mistério” diz respeito à verdade
conhecida originalmente e apenas por Deus em tempos passados, mas que agora
foi revelada, principalmente por meio do anúncio das boas-novas de Jesus
Cristo, para que fossem acolhidas pelo homem. Contudo, nem todos foram
destinatários dessa revelação (ela foi dada, e. g., somente aos discípulos, e não
aos de fora, era o segredo [mistério] do reino de Deus verbalizado em parábolas,
explicado; Mt 13.11). Mistérios específicos revelados em Cristo constituem o
objetivo maior de Deus, que é o de fazer convergir todas as coisas em Cristo (Ef
1.10); a participação dos gentios em Cristo e sua inclusão juntamente com os
judeus em seu corpo, a igreja (Ef 3.6); e Cristo no crente como sua esperança da
glória (Cl 1.27; 2.3). De modo especial, os líderes da igreja, como servos de
Cristo, são administradores desses mistérios (1Co 4.1) no sentido do “mistério
da fé” (1Tm 3.9) ou do “mistério da divindade”, que é a fé verdadeira, ou sã
doutrina, acerca de Cristo (1Tm 3.16,17).
Como a Escritura apresenta o mistério por esses meios, a teologia evangélica
não aceita o sentido distinto e básico que a ele atribui a teologia católica: a
economia, ou obra, de salvação. Certamente, a paixão, a morte, o sepultamento,
a ressurreição e a ascensão de Jesus Cristo constituem o fundamento de tudo o
que a igreja é, crê e faz. Contudo, por que a teologia católica vê nisso um
mistério? Além disso, com a ênfase do Novo Testamento na proclamação desse
mistério, a teologia evangélica indaga por que a teologia católica amplia a ideia e
inclui nela a celebração desse mistério pela igreja. A resposta à perplexidade da
teologia evangélica nos remete ao duplo axioma do sistema católico. A
interdependência natureza-graça acentua a capacidade da natureza — água, óleo,
pão e vinho — para comunicar a graça de Deus, que deve ser expressa de
maneira tangível. O resultado é a capacidade dos sacramentos — batismo,
confirmação, eucaristia — de se tornarem instrumentos da graça que opera
concretamente por esses meios visíveis. Além disso, a interconexão Cristo-Igreja
deixa claro que, quando a Igreja Católica celebra a liturgia, ela é o corpo místico
de Cristo — o Cristo por inteiro, cabeça e corpo — como continuação da
encarnação de Cristo que realiza a liturgia. Na verdade, é o próprio Cristo,
agindo no sacerdote e por meio dele, que a celebra. Portanto, a Igreja Católica
como sacramento é reveladora da graça divina encoberta, que ela desvela e
medeia por meio de sua administração dos sete sacramentos. Na liturgia, esses
dois princípios fundamentais do sistema católico se combinam e se manifestam
claramente. Como esses axiomas são rejeitados pela teologia evangélica — e
com justiça, porque são equivocados, conforme análise já feita aqui
anteriormente —, a liturgia católica se torna extremamente difícil de
compreender para o evangélico.
Sem dúvida, é verdade que a salvação realizada em Cristo, revelada por meio
do evangelho, é e deve ser aplicada de forma contínua, mas a teologia evangélica
contesta a ideia católica de uma nova revelação da Palavra de Cristo e de uma
realização contínua da salvação por intermédio da liturgia da igreja. Na teologia
católica, essa realidade é chamada de “economia sacramental”, assunto para o
qual se volta agora o Catechism.

A economia sacramental (seção 1)


A economia sacramental da igreja pode ser representada pelo diagrama a seguir.
Como redentor e sumo sacerdote, Jesus Cristo realizou a salvação do ser humano
decaído por meio do seu mistério pascal — paixão, morte, sepultamento,
ressurreição e ascensão — ocorrido na história e que deu à luz o sacramento da
igreja. Como redentor e sumo sacerdote, Jesus Cristo continua a realizar a
salvação dos seres humanos decaídos por meio da sua igreja, em referência
especial aos apóstolos e seus sucessores — isto é, o papa e o colégio de bispos
— que ensinam, governam e santificam a igreja por meio do evangelho, das
obras de caridade e, sobretudo, dos sete sacramentos. Consequentemente, as
vantagens da obra salvadora de Cristo, ou o mistério pascal, são comunicadas ou
dispensadas por meio da liturgia da igreja no mundo.
A liturgia — obra da Santíssima Trindade (seção 1,
capítulo 1, artigo 1)
O Catechism trata dessa dispensação sacramental, ou “mistério pascal na era da
igreja”, detendo-se nos vários agentes e instrumentos em operação na liturgia.
De modo concreto, essa é a obra do Deus trino.
A obra de Deus Pai, como fonte da liturgia, consiste em dispensar uma
bênção. Além disso, ele é reconhecido e adorado como objetivo da liturgia, na
verdade “como fim de todas as bênçãos da criação e da salvação”. 10

A obra de Deus Filho é sua atividade “através dos sacramentos que ele
instituiu para comunicar sua graça”; pela ação de Cristo e pelo poder do Espírito
Santo, os sacramentos “realizam eficazmente a graça que significam”. Mais 11

concretamente, o Filho significa e torna presente sua obra de salvação como


evento único ao qual se aplica um atributo divino:
Seu mistério pascal é um acontecimento real, ocorrido na nossa história, mas único: todos os outros
acontecimentos da história acontecem uma vez e passam, devorados pelo passado. Pelo contrário, o
mistério pascal de Cristo não pode ficar somente no passado, já que, pela sua morte, ele destruiu a
morte; e tudo o que Cristo é, tudo o que fez e sofreu por todos os homens, participa da eternidade
divina, e assim transcende todos os tempos e em todos se torna presente. O acontecimento da cruz e
da ressurreição permanece e atrai tudo para a vida.12

Jesus Cristo morreu e ressurgiu dos mortos somente uma vez, há cerca de dois
mil anos; ele realizou a salvação dos seres humanos decaídos de uma vez por
todas. Contudo, sua obra na cruz e sua ressurreição não podem continuar
confinadas ao passado, fechadas no espaço e no tempo como os demais eventos
históricos. Pelo contrário, esse mistério pascal é presentificado, ou
reapresentado, em todas as épocas (conforme veremos, isso tem implicação
especial para a celebração do sacramento da eucaristia) porque esse evento
ocorrido uma vez e para sempre compartilha do atributo divino da eternidade, ou
atemporalidade (observe, uma vez mais, as linhas inferiores do diagrama
anterior). A existência de Deus não é temporal, com começo e fim, e uma
sucessão de eventos, e ele mesmo não é e não pode ser limitado pelo tempo;
antes, Deus existe fora do tempo e, por conseguinte, está presente por toda parte
e em todas as épocas. Como a obra de salvação de Cristo participa do seu
atributo divino, também ela não é e não pode ser limitada no tempo, existindo
fora dele e, portanto, é reapresentada, ou presentificada, nas celebrações
eucarísticas da igreja.
Essa reapresentação está associada à igreja: Cristo, pelo poder do Espírito
Santo, realiza esta obra de representificação por intermédio de seus apóstolos e
daqueles a quem os apóstolos, pelo poder do mesmo Espírito, transferiram seu
poder por meio da sucessão apostólica — os bispos da igreja. Portanto, Cristo
está presente na liturgia da igreja de dois modos concretos: no sacerdote e na
eucaristia. Cristo está presente “na pessoa do seu ministro, ‘o mesmo que agora
oferece, pelo ministério dos sacerdotes, que anteriormente ofereceu a si mesmo
na cruz’”. Cristo também está presente “sobretudo na espécie eucarística”, isto
13

é, nos dois elementos do pão e do vinho (misturado à água). É crucial para essa
14

realidade a convicção de que Cristo “associa sempre a igreja a ele mesmo nessa
grande obra em que Deus é perfeitamente glorificado, e o homem, santificado”. 15

A obra de Deus Espírito Santo na liturgia da igreja é variada. Ele é “mestre da


fé do povo de Deus e artesão das ‘obras-primas de Deus’, os sacramentos”. 16

Como aquele que instiga a fé, o Espírito vai ao encontro do fiel da igreja em
resposta à fé, estimula desse modo a cooperação sinergística e suscita a
colaboração entre o divino e o humano na liturgia da igreja. Além disso, o
Espírito Santo “prepara a igreja para seu encontro com o Senhor; ele traz a
lembrança de Cristo e o torna manifesto à fé da assembleia [...] ele torna o
mistério do Cristo presente aqui e agora [...] e une a igreja à vida e à missão de
Cristo”. A obra preparatória do Espírito é acompanhada da preparação do
17

próprio fiel e do trabalho dos ministros da igreja para o encontro dos crentes com
Cristo. A graça do Espírito Santo estimula a fé, a conversão e o
comprometimento com a vontade Deus, disposições que são precondições para o
acolhimento de outras graças acessíveis por meio da liturgia. 18

De modo concreto, a obra do Espírito Santo na liturgia quer trazer à tona


novamente o mistério de Cristo. Como a teologia “é o memorial do mistério da
salvação”, o Espírito “é a memória viva da igreja”. Essa obra diz respeito
19

principalmente à Palavra de Deus: “O Espírito Santo lembra à assembleia


litúrgica, em primeiro lugar, o sentido do acontecimento salvífico, dando vida à
Palavra de Deus, que é anunciada para ser recebida e vivida”. Esse papel da
20

Escritura diz respeito não apenas a partes dela que são lidas durante a liturgia e
sobre a qual a homília, ou sermão, se baseia. A Escritura, pelo contrário, está no
âmago dos cânticos, das orações, coletas (em suma, nas orações estruturadas),
bem como nas ações litúrgicas. Além disso, o Espírito ilumina a Palavra de
Deus, conferindo uma “compreensão espiritual” a seus ouvintes/leitores “de
acordo com a disposição do seu coração”. Além disso, a Palavra de Deus
21

“suscita a resposta de fé como consentimento e compromisso”. Nutrir desse


modo a fé faz a igreja crescer. Concretamente, na liturgia da Palavra (primeira
22

parte da celebração litúrgica da igreja, sendo a liturgia da eucaristia a segunda


parte), o Espírito “lembra” à igreja a obra de Cristo para sua salvação. Essa
lembrança, ou despertamento da memória da igreja, é chamada de anamnese.
Desse modo, “a celebração ‘faz memória’ das maravilhas de Deus numa
anamnese”. 23

Conforme dissemos acima, porém, a liturgia não implica uma simples


memória de eventos da obra salvífica de Cristo, mas ela “os atualiza, torna-os
presentes. O mistério pascal de Cristo celebra-se, e não se repete; as celebrações
é que se repetem. Mas em cada uma delas sobrevém a efusão do Espírito Santo,
que atualiza o único mistério”. Essa obra do Espírito está associada
24

particularmente ao elemento litúrgico conhecido como epiclese: “A epiclese


(invocação sobre) é a intercessão mediante a qual o sacerdote suplica ao Pai que
envie o Espírito santificador para que as oferendas se tornem o corpo e o sangue
de Cristo e para que, recebendo-as, os fiéis se tornem eles próprios uma oferenda
viva para Deus”. Esses dois elementos, a anamnese e a epiclese, estão no
25
âmago da celebração litúrgica, especialmente do sacramento da eucaristia. Com
o Espírito Santo e por meio dele, a igreja se acha intimamente unida com Cristo
e toma a forma do seu corpo, tornando-se seus membros “um sacrífico vivo a
Deus por sua transformação espiritual à imagem de Cristo”, unidos por seu
entrelaçamento e equipados para a “missão da igreja através do testemunho e do
serviço da caridade”. 26

Avaliação evangélica
A teologia evangélica praticamente não tem nada em comum com o conceito e a
prática da teologia católica no que se refere à economia sacramental, exceto pelo
mesmo objeto de adoração (o Deus trino), os mesmos participantes (os líderes da
liturgia e a congregação) e os mesmos ritos ou atividades externos de adoração
(e. g., oração, leitura e pregação da Palavra de Deus, cânticos, celebração da ceia
do Senhor). Além dessas semelhanças formais, porém, a economia sacramental
da teologia católica e a doutrina da adoração da teologia evangélica estão muito
longe uma da outra.
A teologia evangélica rejeita o ponto central da economia sacramental
segundo o qual a salvação em Jesus Cristo ocorreria continuamente, e que é
particularmente associada à Igreja Católica, à sua hierarquia e aos seus
sacramentos. Não há dúvida de que Jesus Cristo, como Sumo Sacerdote, morreu
uma vez na cruz, e somente uma vez. Na verdade, a teologia evangélica insiste
com seus membros para que não entendam mal a teologia católica nesse ponto: a
teologia católica não ensina que Cristo é sacrificado novamente todas as vezes
que o sacramento da eucaristia é celebrado. Hoje, na missa católica, Jesus não
está sendo morto pela milésima milionésima vez. Ele morreu uma única vez, e
tanto a teologia evangélica quanto a teologia católica ensinam essa verdade.
A diferença entre uma e outra diz respeito à ideia de representificação do
sacrifício feito uma única vez e para sempre toda vez que o sacramento da
eucaristia é ministrado. A ideia católica de que a obra de Cristo na cruz participa
do atributo divino da eternidade (i.e., que nunca deixa de existir), ou de sua
atemporalidade (sem limitação de tempo; observe novamente o diagrama supra),
não tem garantia alguma. Consequentemente, o sacrifício de Cristo há dois mil
anos, a exemplo dos demais eventos históricos, ocorreu uma única vez no
passado e não transcende os séculos de modo que continue ainda hoje (ou, a
propósito, em qualquer época depois que ocorreu). A ideia de atemporalidade
pode ser invocada na tentativa de explicar de que maneira o corpo e o sangue de
Cristo estão presentes na eucaristia, mas tudo isso se deve à interpretação
equivocada das palavras de Cristo quando se referiu ao pão na hora em que
instituiu a ceia do Senhor: “Isto é o meu corpo” (Mt 26.26). Assim como não era
seu corpo físico quando os discípulos comeram o pão na ceia — como poderia
sê-lo, uma vez que ele ainda não fora crucificado? —, tampouco se trata de seu
corpo físico agora, quando o fiel ingere a hóstia durante a celebração eucarística.
Além disso, a interpretação sacramental do discurso de Jesus, o “Pão da Vida”,
em João 6, do qual depende a teologia católica para seu conceito de economia
sacramental em geral, e da eucaristia em particular, não é muito plausível.
Trataremos desses pontos mais diante.
O ponto de vista da teologia católica da representificação de Cristo,
associando-a à igreja por meio de sua hierarquia, padece especialmente de sua
fundamentação na interconexão Cristo-Igreja, um axioma já analisado (cap. 1).
Cristo não está presente agora na igreja como cabeça e corpo. Ele não está aqui
na terra na plenitude de todo o seu ser; pelo contrário, em sua natureza humana,
o Senhor exaltado está sentado à mão direita do trono divino no céu. Dessa
implicação seguem-se duas verdades, que contradizem a teologia católica nesse
assunto: Cristo não está e não pode estar presente no sacerdote quando este
conduz a liturgia. E Cristo não está e não pode estar presente no pão e no cálice
do sacramento da eucaristia. Nesse ponto, a teologia evangélica não afirma que
Cristo está ausente da sua igreja, da sua adoração, da sua celebração da ceia do
Senhor etc. Pelo contrário, como Filho pleno de Deus, ele está onipresente —
presente em toda parte. Além disso, ele manifesta sua presença espiritual de
modos específicos e em épocas específicas — por exemplo, para revestir de
poder a mobilização missional da igreja (Mt 28.18-20), para dar respaldo ao
exercício de disciplina da igreja (Mt 18.15-20) e para abençoar a ministração
conveniente ou julgar a observação indigna da ceia do Senhor (1Co 10.14-22;
11.17-33). Consequentemente, ele não está ausente da sua igreja; pelo contrário,
está presente nela quando ela evangeliza, adora, ensina etc. Contudo, essa
presença espiritual é mediada pela ação do Espírito Santo, a quem Cristo enviou
na condição de “outro Auxiliador” (Jo 14.16) para tomar seu lugar na terra
durante sua ausência entre sua ascensão e seu retorno. Além disso, a presença
espiritual de Cristo é mediada pela instrumentalidade do registro escrito da
Escritura, a qual ele deu mediante o Espírito pelo ministério de autores humanos
para que fosse sua Palavra inspirada, verdadeira, revestida de autoridade,
suficiente, necessária, clara e cheia de poder. Não bastasse isso, ela é mediada
pelas ordenanças da nova aliança, do batismo e da ceia do Senhor, que Cristo
ordenou à igreja que ministrasse até seu retorno. Contudo, a presença da qual
esses elementos são intermediários não é a da plenitude do Cristo total,
incluindo-se sua natureza humana, corpo e sangue, mas tão somente sua
presença espiritual. 27

Com relação de modo concreto à ação do Espírito Santo na liturgia, a teologia


evangélica concorda em parte com sua congênere católica de que o Espírito
suscita a fé, é intermediário da presença de Cristo na igreja e no mundo, ensina a
fé ao povo de Deus e ilumina a Escritura. Ela não concorda, porém, que o
Espírito, qual artesão, confeccione os sacramentos; torne o sacrifício de Cristo
presente aqui e agora na igreja, sobretudo por meio dos seus sacramentos; que
ele estimule certas disposições que predisponham as pessoas a receber a graça
divina por meio da liturgia; e que funcione como memória viva da igreja do
mistério da salvação. Uma ação litúrgica especialmente preocupante é a epiclese,
a invocação a Deus Pai feita pelo sacerdote para que ele envie o Espírito Santo e
transubstancie o pão e o cálice no corpo e sangue de Cristo durante a celebração
da eucaristia. A teologia evangélica também hesita em concordar com a ideia da
teologia católica de uma sinergia estimulada pelo Espírito entre Deus e seu povo
na liturgia. Embora a teologia evangélica afirme a dupla dimensionalidade
presente na adoração da igreja — segundo a conveniência de sua ação divina,
Deus é ativo; e segundo maneiras próprias de sua ação humana, o clero e os
leigos são ativos —, ela atribui um papel muito diferente ao clero do que o faz a
teologia católica.
Com relação à instrumentalidade da Escritura na liturgia, a teologia evangélica
concorda com a teologia católica que a Palavra e o Espírito de Deus se acham
intimamente associados nesse aspecto. De modo concreto, isso significa que o
Espírito reveste de poder a proclamação da Palavra, ele a ilumina, de modo que
seja entendida e posta em prática e alimente a resposta de fé a ela. Além disso,
essa proclamação não está limitada a passagens específicas lidas e pregadas
durante a liturgia, porém a Escritura reforça os cânticos, as orações, as respostas
e outras ações litúrgicas. A teologia evangélica, porém, se mostra cautelosa
quando a teologia católica fala do Espírito e como ele concede compreensão
espiritual ao leitor/ouvinte da Palavra de Deus. A hesitação se deve à
possibilidade de que essa compreensão espiritual se torne um código para
interpretações equivocadas que vão além do sentido gramatical-
histórico(salvífico)-tipológico da Escritura. Outra dúvida diz respeito à ideia de
que o Espírito dá vida à Palavra de Deus, que descreve a si mesma como “viva e
eficaz” (Hb 4.12) em si mesma.
Em suma, embora haja semelhanças formais entre a teologia católica e a
teologia evangélica, na maior parte das vezes o conceito católico da economia
sacramental da igreja está muito distante do conceito evangélico de adoração. A
divergência se torna ainda mais pronunciada quando se trata dos sacramentos.

O mistério pascal nos sacramentos da igreja (seção 1,


capítulo 1, artigo 2)
Conforme dissemos acima, os sete sacramentos constituem o coração da
economia sacramental da Igreja Católica, e o Catechism apresenta uma
discussão generalizada desses sacramentos antes de passar a uma exposição mais
detalhada deles. Essa discussão geral se refere aos pontos em comum dos
28

sacramentos tanto do ponto de vista doutrinário quanto no que diz respeito à


celebração; a exposição detalhada acentua seus elementos característicos.
De acordo com a definição clássica de Agostinho, um sacramento é um sinal
tangível ou visível de uma graça invisível. O batismo, por exemplo, requer a
imersão na água ou só um pouco dela, de tal modo que a ação praticada com a
água é um sinal concreto. Ao mesmo tempo, esse não é um sinal vazio, uma vez
que o sacramento efetua de fato aquilo que simboliza: a graça batismal limpa o
pecado original (e todos os pecados de fato, no caso dos adultos) e leva à
regeneração. Para a Igreja Católica, são sete os sacramentos de Cristo: “batismo,
confirmação ou crisma, eucaristia, penitência, unção dos enfermos, ordem e
matrimônio”. Diferentemente das igrejas protestantes, segundo as quais Jesus
29

Cristo ordenou apenas duas ordenanças ou sacramentos — batismo e ceia do


Senhor —, a Igreja Católica professa que foram sete os sacramentos “instituídos
por Jesus Cristo”. Outros termos usados para descrever esses sete sacramentos
30

de Cristo são “‘poderes que emanam’ do corpo de Cristo”, “ações do Espírito


Santo” em operação na igreja e “as obras-primas de Deus”. 31

Esses sacramentos de Cristo também são sacramentos da igreja em duplo


sentido: eles são “por ela” e “para ela”. Eles são “por ela” no sentido de que a
igreja é o “sacramento da ação de Cristo que nela opera, graças à missão do
Espírito Santo”. E são “para ela”, pois são esses “sacramentos que fazem a
igreja” ao apresentar o mistério da comunhão com o Deus trino e amoroso por
meio de ações sacerdotais. Esse sacerdócio traz consigo um duplo aspecto: o
32

“sacerdócio batismal” consiste em todos os fiéis que foram batizados e


confirmados e, portanto, foram preparados como povo sacerdotal para celebrar a
liturgia. O “sacerdócio ministerial” consiste em todos os homens ordenados que
estão “a serviço do sacerdócio batismal” e que, quando ministram os
sacramentos, asseguram que “de fato, é Cristo que age nos sacramentos por meio
do Espírito Santo para a igreja”. Portanto, há um “laço sacramental” a partir de
Cristo, que prossegue com os apóstolos e continua com os que são ordenados, e
que “une a ação litúrgica” àquilo que o sacerdócio ministerial realiza para
“Cristo, fonte e fundamento dos sacramentos”. 33

Há três sacramentos especiais no que diz respeito à marca indelével que


apresentam: “Batismo, confirmação e ordem conferem, além de graça, um
caráter ou ‘selo’ sacramental por meio do qual o cristão partilha do sacerdócio
de Cristo e se torna membro da igreja segundo estados e funções diversos”. 34

Dada sua qualidade indelével, esses três sacramentos jamais podem ser
repetidos.
Os sacramentos também são sacramentos de fé. Tomando como referência a
Grande Comissão (Mt 28.19), o Catechism explica: “A missão de batizar,
portanto a missão sacramental, está implicada na missão de evangelizar; porque
o sacramento é preparado pela Palavra de Deus e pela fé, que é assentimento à
dita Palavra”. De fato, o ministério da Palavra de Deus é necessário para a
35

ministração dos sacramentos porque estes encontram sua fonte na Palavra e dela
obtêm sustento. Por conseguinte, são sacramentos de fé num duplo sentido: eles
pressupõem a fé e também “a nutrem, fortalecem e a expressam”. Além disso, 36

“a fé da igreja precede a fé do crente que é convidado a aderir a ela”, e, à


37

medida que ela celebra a liturgia, a igreja crê.


Além de serem sacramentos de Cristo, os sacramentos da igreja, e os
sacramentos da fé, os sacramentos são também sacramentos de salvação; isto é,
“celebrados dignamente na fé, os sacramentos conferem a graça que significam.
Eles são eficazes, porque neles é o próprio Cristo que opera: é ele que batiza, é
ele que age nos sacramentos para comunicar a graça que o sacramento
significa”. A expressão que se usa para essa realidade é ex opere operato : o
38

sacramento é eficaz, literalmente, “pelo próprio fato de a ação ser executada”,


quer dizer, “em virtude da obra salvífica de Cristo, realizada uma vez por
todas”. A validade e a eficácia dos sacramentos não dependem de quem os
39

ministra — isto é, do padre que batiza ou celebra a eucaristia — assim como não
depende de quem os recebe —, isto é, da criança que é batizada ou do fiel que
recebe a hóstia e toma do cálice (ou seja, a pessoa que comunga). Sua
legitimidade e seu benefício dependem unicamente do poder de Cristo e do seu
Espírito Santo que age por meio dos sacramentos “independentemente da
santidade pessoal do ministro. No entanto, os frutos dos sacramentos dependem
também das disposições de quem os recebe”. Como meio pelo qual a graça
40

sacramental é conferida por Cristo e por seu Espírito por meio da igreja, os
sacramentos são necessários para a salvação. Por fim, eles prefiguram a glória
futura, a vida eterna que ainda está por vir à igreja quando Cristo voltar.
Em suma, essa discussão geral dos sacramentos priorizou seus pontos em
comum da perspectiva da doutrina. A próxima discussão geral tratará dos pontos
em comum dos sacramentos no que diz respeito à sua celebração na igreja e pela
igreja. Antes de tratar da celebração litúrgica dos sacramentos, vale a pena fazer
uma avaliação da ideia geral da teologia católica dos sacramentos.
Avaliação evangélica
Como herdeira da Reforma protestante, a teologia evangélica discorda
amplamente da teologia católica dos sacramentos. Há quatro grandes
divergências: a terminologia usada para esses ritos, o número de sacramentos, os
sacramentos como meios de graça e a base de sua validade e eficácia.
Antes de lidar com a questão terminológica, é importante que se levem em
conta os antecedentes do termo “sacramento” e como ele veio a ser associado à
ministração desses ritos pela igreja. Conforme observamos anteriormente, o
Novo Testamento usa a palavra μυστήριον (mustērion = mistério) para se referir
a um segredo há tempos guardado e que agora foi revelado pela proclamação do
evangelho, bem como pela sã doutrina a que a igreja está obrigada. Ao longo da
história, o termo foi aplicado às celebrações do batismo e da ceia do Senhor pela
igreja primitiva no contesto das religiões de mistério, em que havia cerimônias
secretas que canalizavam bens espirituais e poder para seus participantes. O
entendimento que a igreja tem de “mistério” no contexto das religiões de
mistério produziu o seguinte resultado: o batismo e a ceia do Senhor revelam um
mistério da graça divina, conferindo bens espirituais e poder a quem os recebe.
Além disso, à medida que o grego, língua universal, cedia lugar à nova língua
internacional, o latim, o grego μυστήριον (mustērion) recebeu em latim a
tradução de sacramentum. Essa palavra podia se referir a um objeto ou rito
sagrado ou a um juramento de lealdade. O uso que a teologia católica fazia de
sacramentum dependia em grande medida de Agostinho, que definiu
“sacramento” como “sinal externo e visível de uma graça interna e invisível”;
além disso, trata-se de um sinal sagrado divinamente escolhido para indicar uma
realidade divina, o que inclui essa realidade em si mesma. Portanto, o batismo e
a ceia do Senhor, na condição de ritos sagrados, eram considerados sinais e
meios da graça divina.
Quando a Reforma protestante rompeu com a Igreja Católica, ela pôs em
movimento efeitos que se propagaram e que, por fim, resultaram em mudanças
em praticamente tudo o que estava associado à teologia e à prática católicas. Um
desses desafios foi a terminologia mais adequada aos ritos da liturgia. Ainda que
um largo segmento da teologia protestante continuasse a usar o termo
“sacramento” (embora com um entendimento diferente do seu significado), outro
grande segmento descartou o termo em virtude de sua vinculação com o
catolicismo e optou pelo termo “ordenança”. Esse termo foi escolhido porque
aponta para ritos que foram instituídos, ou ordenados, por Cristo e, por
conseguinte, impostos à observância da igreja. 41

Essa questão dos ritos ordenados por Cristo introduz o assunto seguinte
referente ao número apropriado dos sacramentos. Enquanto a teologia católica
reconhece sete sacramentos — batismo, confirmação, eucaristia, penitência e
reconciliação, unção dos enfermos, ordem e matrimônio —, a teologia
evangélica reconhece apenas dois: batismo e ceia do Senhor. A razão para essa
redução no número de sacramentos de sete para dois se deve ao fato de que
somente o batismo e a ceia do Senhor foram ordenados por Cristo e vêm
acompanhados de sinais tangíveis. Como parte de sua Grande Comissão, Jesus
ordenou à igreja “[fazer] discípulos de todas as nações, batizando-os em nome
do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28.19). O batismo foi ordenado por
Cristo, e o sinal que o acompanha é a água; portanto, trata-se de um rito a ser
observado pela igreja. Além disso, na ceia do Senhor, a última que fez com seus
discípulos, Jesus instituiu sua observância: “Enquanto comiam, Jesus tomou o
pão e, abençoando-o, partiu-o e o deu aos discípulos, dizendo: Tomai e comei;
isto é o meu corpo. E, tomando um cálice, rendeu graças e o deu a eles, dizendo:
Bebei dele todos; pois isto é o meu sangue, o sangue da aliança derramado em
favor de muitos para perdão dos pecados. Mas digo-vos que desde agora não
mais beberei deste fruto da videira até aquele dia em que beberei o vinho novo
convosco, no reino de meu Pai” (Mt 26.26-29). A ceia do Senhor foi ordenada
por Cristo, e os sinais que a acompanham são o pão e o cálice com fruto da vinha
(vinho ou suco de uva); portanto, é um rito a ser observado pela igreja.
Os outros cinco sacramentos católicos foram descartados um a um pelos
reformadores pelos seguintes motivos: a confirmação não aparece na Escritura e
não tem nenhum sinal tangível associado a ela. O sacramento da penitência e
reconciliação baseia-se em um equívoco da ordem de Jesus: “Arrependei-vos,
porque o reino de Deus está próximo” (Mt 4.17). Jesus não instituiu uma ação
sacramental que envolvesse a contrição, a confissão de pecados a um sacerdote,
a absolvição e o cumprimento de uma penitência que satisfizesse o malfeito.
Pelo contrário, ele fez um apelo de mudança de mente e de vida, de rompimento
com o pecado e com o eu, acompanhado da decisão de buscar a Deus. A unção
dos enfermos tem respaldo em Tiago 5.13-17 e é acompanhada de óleo, mas
Jesus não ordenou essa prática. A ordem, o rito pelo qual homens são
consagrados ao sacerdócio, não tem fundamento bíblico. O matrimônio, embora
tenha sido ordenado pela Escritura (Gn 1.28; 2.24) e endossado por Jesus (Mt
19.1-9), é uma ordenação da Criação, estabelecida por Deus no início da criação
da raça humana (Gn 1.28). Não se trata de rito tipicamente cristão, e Jesus
mesmo não o instituiu. Consequentemente, como esses cinco sacramentos
católicos não foram ordenados por Cristo e/ou lhes faltam os sinais que os
acompanham para sua observação, a teologia evangélica não os considera ritos
impostos à observância da igreja.
Os dois itens seguintes — sacramentos como meios de graça e as bases de sua
validade e eficácia — caminham juntos e serão discutidos juntamente. A
Reforma protestante rompeu não só com o número dos sacramentos católicos,
mas também com a teologia sacramental católica. A teologia católica afirma que
os sacramentos são meios de graça que, de fato, comunicam benefícios divinos
dos quais são sinais. Além disso, a graça comunicada mediante os sacramentos é
infundida nos que os recebem, transformando assim sua natureza e tornando-os
merecedores da vida eterna. Embora um grande segmento da teologia protestante
continuasse a acolher os sacramentos como meios de graça, outro grande
segmento optou por um entendimento que se distancia drasticamente de qualquer
ideia de meios de graça. A teologia evangélica, portanto, compreende essas duas
posições.
Em relação à primeira delas, Charles Hodge resumiu a teologia reformada dos
sacramentos dizendo se tratar de “meios reais de graça, isto é, meios indicados e
empregados por Cristo para comunicar os benefícios da sua redenção a seu
povo”. Diferentemente da teologia sacramental, essa perspectiva reformada os
considera meios, porém não exclusivos, de graça. E não os considera meios de
infusão da graça da salvação. Pelo contrário, quando os sacramentos são
ministrados, “faz-se uma promessa aos que, com razão, recebem os sacramentos
que eles, por meio dos sacramentos, e neles, se tornam participantes das bênçãos
das quais os sacramentos são sinais e selos por Deus indicados”. Em relação às
42

crianças que são batizadas, para a teologia reformada seu batismo é sinal de sua
inclusão na comunidade da nova aliança, a igreja, e de promessa de
arrependimento e fé no futuro. No caso da ceia do Senhor, a teologia reformada
vê nos elementos do pão e do vinho sinais do favor divino por meio da
participação no corpo e no sangue de Cristo (que está espiritualmente presente
na celebração da ceia) e também meios de sustento espiritual que mantêm e
aumentam a fé. Portanto, a água do batismo e o pão e o vinho da ceia do Senhor
são sinais, mas não são sinais vazios, uma vez que são meios de graça que
conferem a bênção e a misericórdia divinas aos que deles participam.
Essa teologia reformada dos sacramentos pode parecer semelhante à teologia
sacramental católica, mas não é. A grande distância entre as duas se explica pela
validade ou eficácia dos sacramentos. Para a teologia católica, os sacramentos
são meios de graça ex opere operato (lit., “pela obra operada”), ou simplesmente
por sua ministração. Sua validade está inteiramente associada ao seu sinal, que é
virtuoso ou poderoso em si mesmo e por si mesmo. Por exemplo, quando um
padre batiza uma criança de acordo com o rito católico do sacramento do
batismo, sua ação de ministrar a água da maneira cristã adequada cancela o
pecado original e a faz nascer de novo e ser incluída na Igreja Católica. A
eficácia do sacramento não depende de modo algum da situação do padre que
ministra o batismo (i. e., ele poderá ser um santo ou alguém em estado de pecado
mortal), e certamente não tem ligação alguma com a fé da criança ou com sua
disposição para o batismo. A teologia reformada dos sacramentos faz objeção à
sua validade ex opere operato. Diferentemente disso, ela sustenta que sua
eficácia depende unicamente de Deus que promete abençoar, da obra do Espírito
nos que recebem os sacramentos e da Palavra de Deus sobre a qual a instituição
dos sacramentos se baseia. Portanto, “há em todo sacramento uma relação
espiritual, ou união sacramental, entre o sinal e a coisa significada; de tal modo
que os nomes e efeitos de um são atribuídos a outro”. Nada disso nos permite
43

entender que os sacramentos sejam salvíficos. Esse não é o propósito nem o


efeito do batismo ou da ceia do Senhor. Embora não seja eficaz para a salvação,
eles outorgam a bênção e a misericórdia de Deus em quem os recebe.
A segunda posição evangélica enfatiza que esses ritos funcionam
especialmente como lembretes concretos do que Deus, em Cristo, fez para os
cristãos, além de servir de testemunho de fé e de obediência por parte do cristão
que deles participa. Essa posição está bem representada pelo artigo sobre as
ordenanças na Fé e Mensagem Batista da Convenção Batista do Sul:
O batismo cristão é a imersão de um crente em água em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. É
um ato de obediência que simboliza a fé do crente no Salvador crucificado, sepultado e ressurreto, a
morte do crente para o pecado, o sepultamento da velha vida e a ressurreição para que se ande em
novidade de vida em Cristo Jesus. É um testemunho da sua fé na ressurreição final dos mortos. Sendo
uma ordenança da igreja, é um pré-requisito dos privilégios de ser membro da igreja e de participar
da ceia do Senhor.
A ceia do Senhor é um ato simbólico de obediência pela qual os membros da igreja, através da
participação do pão e do fruto da videira, recordam como memorial a morte do Redentor e aguardam
sua segunda vinda.44

De acordo com essa segunda perspectiva, esses ritos simbolizam a fé e a


obediência dos cristãos batizados e que participam da ceia do Senhor. Eles não
concedem graça divina e, por esse motivo, sua validade ex opere operato é
irrelevante. O que importa é a disposição daqueles a quem essas ordenanças são
ministradas: para os que são batizados, a fé na obra salvadora de Cristo a seu
favor e a obediência à ordem do batismo; para os que participam da ceia do
Senhor, a obediência à ordem de se lembrar do que Cristo fez na cruz e ter fé em
seu retorno. Alguns que defendem essa posição também afirmam que vários
benefícios — santificação, comunhão com Cristo — são creditados aos que
participam das ordenanças. Essa posição se estabeleceu em oposição à teologia
sacramental católica e até mesmo em oposição a algumas perspectivas
protestantes dos sacramentos, caracterizando-se pela forte suspeita de que os
meios de graça seriam mecânicos, impessoais e eficazes sem a fé e a obediência.
Apesar das divergências no âmbito da teologia evangélica, ambas as posições
se alinham em oposição ao conceito de que os sacramentos/ordenanças do
batismo e da ceia do Senhor são meios de uma graça que é ex opere operato,
conforme sustenta a teologia católica dos sacramentos.

A celebração sacramental do mistério pascal (seção 1,


capítulo 2)
Tendo chegado a discussão do Catechism sobre a doutrina da economia
sacramental (e à luz dela) cujo centro é o mistério pascal de Cristo, o Catechism
trata da questão de como a igreja deve celebrar esse mistério pascal,
particularmente no que diz respeito à sua ministração dos sete sacramentos. Há
perguntas importantes que devem ser respondidas: Quem celebra a liturgia? De
que maneira ela é celebrada? Quando a liturgia é celebrada? Onde ela é
celebrada?

Celebrando a liturgia da igreja (seção 1, capítulo 2,


artigo 1) e diversidade litúrgica e unidade do mistério
(seção 1, capítulo 2, artigo 2)
Em relação a quem celebra a liturgia, trata-se de “‘uma ação’ do Cristo total
(Christus totus)”, isto é, tanto a cabeça quanto seu corpo, a igreja, da qual
45

fazem parte os celebrantes celestiais que participam da liturgia eterna e os


celebrantes terrenos da liturgia sacramental. Estão no primeiro grupo (de acordo
com Ap 4 e 5; 7.1-8; 14.1; cf. Is 6.2,3) “os poderes celestiais, toda a criação (os
quatro seres viventes), os servos da Antiga e da Nova Alianças (os 24 anciãos), o
novo povo de Deus (os 144 mil), especialmente os mártires ‘mortos por causa da
Palavra de Deus’ e a santíssima Mãe de Deus (a Mulher), a Noiva do Cordeiro
[Ap 6.9-11; 21.9; cf. Ap 12] e, por fim, ‘uma grande multidão, que ninguém
podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas’” [Ap 7.9]. A igreja
46

participa dessa “liturgia eterna” quando celebra sua liturgia sacramental. Nesse
último caso, a igreja que celebra consiste na comunidade dos batizados (o
sacerdócio batismal ou comum), em seus ministros ordenados (o sacerdócio
hierárquico ou ministerial), e outros ministros (não ordenados) em particular,
ministros como “acólitos, leitores, comentadores e membros do coro”, todos os
quais “exercem um ministério litúrgico genuíno”. 47

Como se celebra a liturgia? Há vários modos: sinais e símbolos, palavras e


ações, cânticos e música e imagens santas. “Uma celebração sacramental é tecida
de sinais e símbolos”, que são partes essenciais da existência humana. Como
48
criaturas complexas que são, os seres humanos são constituídos por um aspecto
material e outro imaterial — corpo e espírito/alma — e desse modo expressam e
percebem “as realidades espirituais através de sinais e símbolos físicos”. Assim 49

como precisam de sinais e símbolos para se comunicar com outros, os seres


humanos precisam também de símbolos e de sinais para se comunicarem com
Deus em uma relação pessoal. De fato, Deus se revela a essas criaturas humanas
por meio da criação visível (Rm 1.19); consequentemente, as realidades
tangíveis — isto é, “abluções e unções, o partilhar do pão e do cálice” — que são
perceptíveis pelos sentidos “podem se tornar meios de expressão da ação de
Deus que santifica o homem, e a ação do homem que oferece adoração a Deus”. 50

Esses sinais e símbolos recebem seu significado quando são associados a uma
aliança. Por exemplo, “circuncisão, unção e consagração de reis e sacerdotes,
imposição de mãos, sacrifícios e, sobretudo, na Páscoa” são os sinais e símbolos
que marcam a vida litúrgica da antiga aliança e prefiguram os sacramentos da
nova aliança. 51

Além disso, a celebração sacramental toma a forma de diálogo com “ações e


palavras” entre Deus e seus filhos. Aqui, a liturgia da Palavra, a primeira parte
52

da celebração litúrgica, ganha destaque. Esse movimento litúrgico é seguido de


sinais que acompanham a Palavra de Deus: “O livro da Palavra (lecionário ou
evangeliário), a sua veneração (procissão, incenso, luz), o lugar da sua
proclamação (ambão), a sua leitura audível e inteligível, a homília do ministro
que prolonga a sua proclamação, as respostas da assembleia (aclamações, salmos
de meditação, litanias, confissão de fé)”. A liturgia da eucaristia, que segue a
53

liturgia da Palavra, “torna presentes as ‘maravilhas’ de Deus que ela [a Palavra]


proclama”. Além disso, há em uma celebração sacramental cânticos e música,
54

conforme preconiza a Escritura para a igreja (Ef 5.19).


Por fim, uma celebração sacramental também se faz acompanhar de imagens
santas que representam Cristo. O Catechism apresenta uma nota de advertência a
respeito de uma imagem sagrada: “Ela não pode representar o Deus invisível e
incompreensível”, mas, como o Filho se encarnou, pode-se recorrer à imagem do
Deus-homem. É importante observar que “a iconografia cristã expressa em
55

imagens a mesma mensagem evangélica que a Escritura comunica por meio de


palavras”. Entre os temas próprios para a produção de imagens incluem-se o
56

Filho encarnado, sua cruz, sua mãe Maria, os anjos e os santos; entre os meios
artísticos apropriados incluem-se pinturas, mosaicos e outros materiais
adequados; fazem parte da exibição apropriada de tais imagens e pinturas os
prédios das igrejas, recipientes sagrados como o sacrário (receptáculo onde são
postas as hóstias que sobraram da celebração da eucaristia), as vestimentas
sacerdotais, os lares e objetos de uso externo. 57
Dirigindo nossa atenção à questão de quando a liturgia é celebrada, “alguns
dias ao longo do ano” devem ser reservados para essas observações. São eles: (1)
uma vez a cada semana no domingo, ou no dia do Senhor, em lembrança da
ressurreição de Cristo; (2) uma vez por ano na Sexta-Feira Santa/Páscoa, em
lembrança da paixão, morte e ressurreição de Cristo; e (3) nas celebrações anuais
especiais do ano litúrgico. Esse último ponto decorre do princípio de fé da
58

igreja de que “a economia da salvação realiza-se no quadro do tempo”. 59

Especificamente, a Anunciação, o Natal e a Epifania (a Páscoa já foi discutida)


são celebrados como eventos formadores do mistério pascal de Cristo: o anúncio
de sua concepção miraculosa de Maria, seu nascimento e sua revelação aos
magos. Como Maria se acha intimamente ligada ao mistério do seu Filho, certos
dias do ano são também dedicados a ela, como a festa da Imaculada Conceição
(todo 8 de dezembro). Além disso, “a igreja guarda a memória dos mártires e
santos durante o ciclo anual” como celebrações do mistério pascal no fiel “que
sofreu e foi glorificado com Cristo”. 60

Embora chame a atenção para a importância dessas celebrações regulares


semanais e anuais da liturgia, o Catechism também explica que o mistério pascal
de Cristo “permeia e transfigura o tempo de cada dia pela celebração da liturgia
das horas, ‘o ofício divino’”. Essas orações oficiais diárias, criadas para serem
61

recitadas ao longo do dia em horas específicas, são oito no total: Matinas,


Laudes, Prima, Terça, Sexta, Nona, Vésperas e Completas. Elas ampliam a
oração da eucaristia e a complementam.
Onde a liturgia é celebrada? De acordo com a afirmação de Jesus segundo a
qual a adoração genuína sob a nova aliança é adoração “em espírito e em
verdade” (Jo 4.24), o Catechism explica que a adoração não “está atrelada
exclusivamente a um único lugar [...]. O que importa, acima de tudo, é que,
quando os fiéis se reúnem no mesmo lugar, eles são ‘pedras vivas’ reunidas para
serem ‘edificadas em casa espiritual’ [...] [consistindo no] ‘templo do Deus
vivo’”. Quando os fiéis são livres para se reunir e “construir edifícios para a
62

adoração divina”, essas estruturas “significam e manifestam a igreja” naquele


lugar e, consequentemente, “devem ser belas e aptas para a oração e para as
celebrações sagradas”. De modo concreto, o edifício da igreja deve conter os
63

seguintes elementos típicos para uma celebração litúrgica adequada: no centro da


estrutura está o altar, sobre o qual “o sacrífico da cruz é tornado presente sob os
sinais sacramentais” por meio da liturgia da eucaristia, da qual o fiel participa. 64

Como receptáculo dos elementos restantes da eucaristia não consumidos durante


a missa, o sacrário fica localizado em local de honra acessível aos fiéis para
adoração do Senhor que está realmente presente no sacramento da eucaristia. Em
outro lugar seguro fica o santo crisma (mirão), o óleo usado para unção dos
catecúmenos e dos enfermos “como sinal sacramental do selo do dom do
Espírito Santo”. A cadeira (cátedra) simboliza a autoridade do bispo/padre, que
65

preside e dirige. Por causa da dignidade da Palavra de Deus, o ambão (leitoril)


tem papel central na proclamação da Palavra e em atrair a atenção do fiel durante
a liturgia da Palavra. Como lugar de celebração do sacramento do batismo e
66

para “favorecer a lembrança das promessas batismais”, o batistério e a fonte de


água benta ficam localizados na entrada do edifício, simbolizando o batismo que
dá acesso à vida da igreja. O confessionário é o lugar dos penitentes que buscam
o sacramento da penitência. Toda a estrutura foi projetada para propiciar “o
recolhimento e a oração silenciosa, que prolongue e interiorize a grande oração
da eucaristia”. Em vista de sua importância escatológica, o edifício tem um
67

limiar que o fiel cruza para entrar na casa de Deus simbolizando “a passagem do
mundo ferido pelo pecado para o mundo da nova vida para a qual todos são
chamados”. 68

O Catechism conclui sua discussão da celebração da liturgia destacando que,


embora o mistério pascal de Cristo que é celebrado seja um, “as formas de
celebração são variadas”. Essa realidade decorre do cumprimento contínuo da
69

missão de Cristo, que é levar “Cristo, luz e salvação de todos os povos [...] ao
povo e à cultura em particular aos quais a igreja é enviada e em que se radicou”. 70

Os ritos específicos legalmente reconhecidos na igreja são o latino


(principalmente o rito romano, mas incluindo alguns outros), o bizantino, o
alexandrino (copta), o siríaco, o armênio, o maronita e o caldeu. O Catechism
salienta a importância da contextualização da igreja, uma vez que “é com e pela
sua cultura humana própria, assumida e transfigurada por Cristo, que a multidão
dos filhos de Deus tem acesso ao Pai, para o glorificar num só Espírito”. A
71

contextualização da liturgia em geral e dos sacramentos em particular consiste


em dois polos: uma parte imutável, “que é divinamente instituída e da qual a
igreja é guardiã”, e uma parte mutável, que é adaptada “para as culturas de povos
recentemente evangelizados”, ao mesmo tempo que desaprova elementos
72

culturais incompatíveis com a fé católica. Não é uma contextualização fácil, e


não faltam dificuldades a ela, conforme reconhece o Catechism, que conclui a
discussão com um apelo à unidade em meio à diversidade.

Avaliação evangélica
Seguindo a ordem de discussão do Catechism, já avaliamos aqui os pontos
doutrinários em comum dos sacramentos. Avaliaremos agora os pontos em
73

comum dos sacramentos no que diz respeito à celebração na igreja e por meio
dela. Aqui a teologia católica e a teologia evangélica compartilham alguns
pontos em comum, mas há também discordâncias.
No que diz respeito a quem celebra a liturgia, a teologia católica e a teologia
evangélica estão de acordo que são dois os tipos que participam da adoração: de
um lado, as multidões celestiais já participam de forma ininterrupta da adoração
em torno do trono de Deus, conforme as imagens das cenas de adoração no céu
(e.g., Ap 4 e 5). Essa multidão celestial não se limita aos cristãos da igreja
universal que morreram e agora estão vivos no céu como seres incorpóreos à
espera do retorno de Cristo e da ressurreição do corpo (“a igreja dos
primogênitos registrados nos céus”; Hb 12.23). Fazem parte dessa multidão de
adoradores “incontável número de anjos em reunião festiva” e santos da antiga
aliança (“os espíritos dos justos aperfeiçoados”; v. 22,23), para não falar dos
quatro seres viventes com olhos e asas (Ap 4.6-9) e os 24 anciãos (v. 10,11). Por
outro lado, os cristãos na terra se reúnem regularmente para adorar a Deus nas
igrejas locais. De certa forma, essas assembleias locais de adoração se unem à
sua análoga celestial na adoração a Deus; assim no céu como na terra, ainda que
a plenitude da adoração não seja e não possa ser, por enquanto, experimentada
por sua análoga na terra.
Esse acordo deve ser abrandado por dois pontos de discordância. Como a
teologia evangélica discorda da interconexão proposta pelo axioma Cristo-Igreja,
ela não radica sua assembleia de adoração celestial-terrenal na ideia de que as
igrejas evangélicas sejam extensões da encarnação do Cristo que subiu ao céu.
Além disso, como ela discorda da ideia católica da comunhão dos santos — o
intercâmbio de bens espirituais entre a igreja no céu e a igreja na terra (a teologia
católica acrescentaria ainda a igreja no purgatório) —, a teologia evangélica não
interpreta esse duplo ajuntamento de adoradores da mesma maneira.
Como a liturgia é celebrada? Em certo sentido, as missas católicas e os cultos
de adoração evangélicos têm muitas semelhanças formais, entre elas a oração, o
cântico, a leitura da Escritura, a pregação, a celebração da eucaristia/ceia do
Senhor etc. Por trás dessas semelhanças, porém, há duas diferenças importantes.
Uma diferença, o que para muitos evangélicos também é facilmente
perceptível, é a natureza meticulosamente estruturada ou ritualística da missa
católica. Os evangélicos, como estão habituados a um estilo de adoração menos
meticulosamente estruturado e, não raro, mais livre em seus cultos, percebem
imediatamente o que chamam comumente de diferença entre a liturgia da “igreja
alta” e a da “igreja baixa”. A primeira, exemplificada pela missa católica, segue
74

um roteiro totalmente fixo, de modo que todas as orações, a participação


congregacional, a liturgia da eucaristia etc. são prescritos — até mesmo palavra
por palavra. A segunda — exemplificada por alguns cultos evangélicos — não é
tão sistematizada e pode até mesmo agregar atividades espontâneas (e.g.,
orações, partilhamento congregacional, testemunhos). É importante ter em mente
o fato de que, exceto nas igrejas evangélicas de liturgia intencionalmente não
estruturada, os cultos de adoração seguem algum tipo de procedimento ou
ordem. Na verdade, muitas igrejas evangélicas (e. g., as igrejas presbiterianas)
seguem uma ordem rígida de adoração e poderiam ser consideradas do tipo
“igreja alta”. Consequentemente, embora a teologia evangélica não se refira com
frequência à liturgia, os cultos de adoração evangélicos, assim como a missa
católica, são litúrgicos.
Uma segunda diferença diz respeito à razão pela qual os vários elementos
litúrgicos entram para o culto de adoração. Impulsionadas pela insistência bíblica
de que a igreja deve adorar a Deus de acordo com modos que ele considera
aceitáveis, duas posições diferentes surgiram no decorrer da história em relação
ao que se considera uma adoração aceitável. O princípio regulador “ensina que,
no tocante à adoração, tudo o que é ordenado na Escritura é imprescindível, e o
que ela não ordena é proibido”. O princípio normativo permite que a igreja
75

agregue quaisquer elementos à adoração, a menos que sejam proibidos pela


Escritura. Ao longo da história, uma das críticas da Reforma protestante à Igreja
Católica foi que a missa havia introduzido muitos elementos não bíblicos. De
fato, a Confissão de Fé de Westminster tratou dos inúmeros acréscimos católicos
ao culto de adoração: “O modo aceitável de adorar o verdadeiro Deus é
instituído por ele mesmo e tão limitado por sua vontade revelada que não deve
ser adorado segundo as imaginações e invenções dos homens ou das sugestões
de Satanás, nem sob qualquer representação visível ou de qualquer outro modo
não prescrito nas Santas Escrituras”. No âmago da rejeição protestante a esses
76

elementos não bíblicos estava a doutrina da suficiência da Escritura (a substância


da adoração divina deve ser ordenada unicamente pela instrução implícita da
Palavra de Deus) e o princípio da liberdade de consciência (a igreja não deve
impor nenhuma atividade que seja exclusivamente invenção humana, porque
fazê-lo seria impor uma obrigação à consciência dos adoradores). 77

Embora as igrejas evangélicas não sigam necessariamente de forma


consciente o princípio regulador, os elementos do seu culto de adoração se
limitam, em geral, a componentes afiançados pela Escritura: o cântico de louvor
e de adoração a Deus, a oração, as ofertas, a pregação, o batismo, a ceia do
Senhor etc. Por comparação, a missa católica consiste nesses elementos
justificados pela Bíblia, mas também de muitas outras partes prescritas [pela
igreja] — por exemplo, persignar-se com água benta, ajoelhar-se em certos
momentos da missa e repetir orações específicas antes de participar da eucaristia.
No âmago da incorporação pela teologia católica desses elementos adicionais,
deparamos com o sistema católico do axioma da interdependência natureza-
graça, concretamente que a natureza tem uma capacidade para a graça, e a graça
deve estar incorporada à natureza. Consequentemente, os elementos físicos
podem se tornar canais de realidades espirituais, o que deve ser concretamente
comunicado por meio de elementos físicos. Conforme já observamos, essa
perspectiva é parte essencial da teologia católica dos sacramentos: eles são sinais
visíveis de uma graça invisível, porém real. Já fizemos a crítica da teologia
evangélica a essa interdependência natureza-graça, juntamente com sua crítica à
doutrina dos sacramentos da teologia católica.
Contudo, a teologia católica estende esse conceito para além dos sacramentos
com o objetivo de incluir outros elementos. A teologia evangélica concorda que
Deus se revela por meio da criação visível (Rm 1.19); portanto, a ideia da
teologia católica de que as realidades tangíveis “podem se tornar meios de
expressão da ação de Deus” em benefício de suas criaturas humanas é correta,
mas há ressalvas. Sem dúvida, o arco-íris no céu, a circuncisão ao oitavo dia
78

dos meninos judeus, a imposição de mãos, os sacrifícios de touros e bodes e


outras ações concretas ganham um novo significado — a promessa de jamais
destruir o mundo com um dilúvio, participação na comunidade da antiga aliança,
consagração ao serviço de Deus, misericórdia em lugar de juízo — quando
associadas a uma aliança entre Deus e seu povo. Contudo, até onde se pode
estender esse princípio se torna um ponto de disputa. A teologia evangélica
limita esses sinais concretos ao que está prescrito nas Escrituras, o que explica
sua ênfase no batismo e na ceia do Senhor como sinais da nova aliança. Ela
discorda da inclusão que a teologia católica faz de outros elementos que
considera necessários à liturgia. E, mais importante, a teologia evangélica
diverge da interpretação que a teologia católica faz daquilo que esses símbolos
comunicam e realizam. Por exemplo, a refeição da Páscoa conforme celebrada
pelos judeus (Êx 12.1-28) não era uma infusão da graça divina para torná-los
ainda mais santos em seu caráter. O cordeiro escolhido era uma vítima sem
mancha cuja vida era sacrificada pelo povo de Israel, e eles eram poupados do
juízo justo e irado de Deus pela imposição do sangue nos umbrais e vergas das
portas das casas dos judeus. Tal ação isentava de maneira judicial, ou legal, o
povo culpado de Israel: Deus não os destruiu; ele passou sobre eles, embora
merecessem o mesmo destino dos egípcios. Consequentemente, a teologia
evangélica não diverge da incorporação de sinais no culto de adoração, mas
restringe esses elementos aos que são prescritos pela Escritura e interpreta o que
os sinais comunicam e realizam de forma diferente da que lhes dá a interpretação
católica.
Por fim, com relação ao uso de imagens sagradas, a teologia evangélica
concorda com a teologia católica de que não se pode fazer imagem alguma do
Deus invisível e incompreensível, e concorda cautelosamente com a ideia de que
uma imagem que represente Cristo possa confirmar a realidade da encarnação.
Contudo, ela se afasta da teologia católica porque não crê que as imagens sejam
capazes de expressar “a mesma mensagem do evangelho que a Escritura
comunica por meio de palavras”. Nesse caso, o aforismo comum segundo o
79

qual “uma imagem vale mais do que mil palavras” está incorreto. A revelação
soprada por Deus não é pictórica por natureza, e sim verbal, e nada é equivalente
à Palavra de Deus escrita/falada em matéria de veracidade, autoridade e clareza.
Além disso, a suficiência dessa Palavra significa que seu relato, por exemplo,
das instruções de Jesus à sua mãe, Maria, e a João, quando ele estava na cruz (Jo
19.25-27) traz tudo o que a igreja precisa saber sobre esse momento tocante em
que um filho se preocupa em suprir as necessidades de sua mãe, uma vez que “a
partir daquele momento, o discípulo manteve-a sob seus cuidados” (v. 27).
Nenhuma pintura ou estátua pode representar fielmente, e de modo adequado,
essa troca registrada na Escritura, a tal ponto que a imagem exagera o papel de
Maria, fazendo dela a nova mãe constituída sobre todos os fiéis, o que não
reflete o evangelho; em vez disso, transforma-se num obstáculo a ele.
Certamente é verdade que histórias registradas por escrito como essa, e pinturas
e estátuas dessa cena, requerem interpretação. Contudo, a narrativa bíblica tem
pistas contextuais e restrições que faltam às imagens, de tal modo que uma
pintura ou estátua poderá suscitar uma imaginação sem freios, que não leva à
compreensão verdadeira do que Jesus fez, mas a mera especulação, talvez até ao
erro. Outro problema referente às imagens da perspectiva evangélica é que elas
são necessariamente limitadas na forma de se apresentarem. Portanto, se uma
imagem não é complementada por outras, disso resulta uma mensagem truncada.
Por exemplo, o crucifixo católico — Jesus pendurado na cruz — talvez capture
um aspecto importante da obra de Cristo a favor do ser humano pecador. Ao
mesmo tempo, o crucifixo aparece isolado em sua representação das realizações
de Cristo, porque ele não comunica — na verdade, não pode comunicar — que
Jesus não permaneceu morto, mas ressuscitou ao terceiro dia. Nesse caso, surge
outra dificuldade porque o crucifixo é um instrumento útil para trazer à
lembrança a representificação de Cristo na cruz durante a missa, uma ideia que a
teologia evangélica corretamente rejeita. Além disso, a teologia evangélica
rejeita as imagens de Maria e dos santos.
Em relação à questão de quando a liturgia é celebrada, a teologia católica e a
teologia evangélica concordam que a adoração semanal no domingo, dia da
ressurreição, é adequado. Embora a Escritura aponte só minimamente nessa
direção (e.g., 1Co 16.2; ilustrado em At 20.7), a literatura da igreja primitiva
respalda esse padrão semanal tendo se fixado amplamente na igreja. Alguns
80

segmentos da teologia evangélica concordam também em seguir o ano litúrgico


para celebrar eventos importantes na vida e no ministério de Cristo e da igreja —
por exemplo, Natal, Sexta-Feira Santa, Páscoa e Pentecostes. Outras variedades
de teologia evangélica não aceitam essas observâncias específicas porque
rejeitam o raciocínio católico por trás delas (“a economia da salvação está em
ação na estrutura do tempo”). Embora tal princípio seja efetivamente verdadeiro
81

em certo sentido — Deus está em ação para salvar o ser humano decaído em sua
realidade concreta —, ele não é verdadeiro, assim acreditam, no sentido de uma
repetição cíclica desses pontos importantes da salvação, isto é, eles não devem
predominar no ano da igreja. Além disso, a teologia evangélica não acrescenta
nenhuma celebração em honra a Maria e aos santos por motivos óbvios. Por fim,
embora a teologia evangélica não siga a liturgia católica das horas, ela acolhe o
conceito e a importância da oração diária (bem como, ela acrescentaria, a leitura
e o estudo da Escritura), embora não prescreva horas específicas para sua
prática.
Onde a liturgia é celebrada? Em conformidade com a teologia católica, a
teologia evangélica insiste que a localização da adoração não é fundamental, à
luz da instrução de Jesus segundo a qual a adoração genuína não está confinada
ao monte Gerizim e tampouco ao Templo de Jerusalém (Jo 4.20,21), mas deve
ser exercida “em espírito e em verdade” (Jo 4.24). A adoração genuína requer
crentes genuínos, aqueles que, por meio do Espírito Santo, foram transportados
do reino da “carne” para o reino do “espírito” (Jo 3.5,6) — o reino de Deus
(“Deus é espírito”; 4.24) — e que acolheram a verdade de Jesus, que é “o
caminho, a verdade e a vida” (14.6). Reunidos para louvar e honrar o Deus trino
de acordo com as formas que ele fixou para sua própria adoração, esses
adoradores genuínos compõem as “pedras vivas” do templo do Deus vivo (1Pe
2.4,5; cf. 2Co 6.16).
Além disso, a teologia católica e a teologia evangélica concordam que,
quando fatores culturais e contextuais permitem ao fiel ter um prédio para cultos
regulares de adoração, a reflexão teológica sobre a natureza, o design, a
arquitetura e a mobília do edifício, não há por que não o ter. Enquanto os
edifícios da Igreja Católica têm numerosos elementos específicos — altar,
sacrário, santo crisma (mirão, ou óleo), cadeira (cathedra), ambão (leitoril),
batistério, a fonte de água consagrada, confessionário e limiar —, só algumas
igrejas evangélicas são assim tão elaboradas, e certamente nenhuma delas tem
todos esses itens. Por um lado, muitos prédios da igreja evangélica são
intencionalmente simples em reação à ornamentação suntuosa do prédio de
qualquer Igreja Católica. No âmago dessa rejeição está o sentimento evangélico
de que tal exibição pomposa diminui, em vez de elevar, a adoração a Deus, e que
a grande quantidade de dinheiro gasta em tal arquitetura elaborada e em sua
decoração poderia ter sido mais bem empregada em campanhas missionais,
ministérios, pessoal, assistência aos pobres e outras prioridades. Por outro lado,
alguns edifícios de igrejas evangélicas são bastante suntuosos, mas por outros
motivos. Uma motivação trágica para isso se deve a homenagens feitas a um
pastor em particular, erigindo em memória dele um legado físico notável que
durará pelas próximas décadas. Outro motivo ainda mais decepcionante é que
alguns pastores se envolvem em campanhas sofisticadas de construção para com
isso ampliar sua reputação e garantir sua memória. De uma perspectiva positiva,
a natureza mais elaborada de alguns prédios de igrejas evangélicas é sinal de
uma reflexão teológica cuidadosa e de uma visão de impacto significativo para
acomodar o crescimento dado por Deus. Como o ser humano é uma criatura que
tem corpo, o impacto de seu contexto físico sobre a adoração a Deus é
significativo, mesmo que a ideia seja negligenciada ou mesmo descartada. Uma
reflexão teológica cuidadosa sobre o edifício que abrigará a igreja tem seu lugar,
contanto que não se desvie na direção da Igreja Católica, mas que nem por isso
deixe de ser expressivo. 82

O tópico final de que nos ocuparemos tratará da contextualização da


celebração da liturgia. Para a teologia católica e também para a teologia
evangélica, essa necessidade de adaptação surge no momento em que a igreja
passa a receber novos grupos de pessoas de culturas, visão de mundo e
influência religiosa específicas etc. É interessante observar que ritos legalmente
reconhecidos da Igreja Católica — latino (essencialmente romano), bizantino,
alexandrino (copta), siríaco, armênio, maronita e caldeu — são liturgias antigas,
o que leva a teologia evangélica a se perguntar sobre os esforços de
contextualização da igreja nos últimos quinhentos anos, durante os quais ela se
estabeleceu em regiões da América Central e da América do Sul, além de outras
drasticamente distintas das regiões representadas por esses ritos antigos. Apesar
dessa indagação, a teologia evangélica concorda que a contextualização é
necessária, mas a prática de adaptação da igreja está longe de ser fácil. Para a
teologia católica, a contextualização se dá entre dois polos: um deles é imutável;
o outro, mutável. Esse último polo é onde os elementos culturais de povos
recém-alcançados (nunca, porém, contrários ao catolicismo) podem ser
incorporados à liturgia da igreja. Em princípio, a teologia evangélica está de
acordo, tendo desenvolvido vários modelos de contextualização que podem ser
encontrados em diferentes igrejas do mundo. 83

1
Edição em português: Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Loyola, 1999).
2
A palavra “pascal” tem origem no hebraico e no grego e significa “passar por cima”, como na Páscoa
judaica, e foi transformada na Sexta-Feira da Paixão e no Domingo de Páscoa.
3
CCC 1067; citação do Concílio Vaticano II, Sacrosanctum concilium 5.2.
4
CCC 1068; citação do Concílio Vaticano II, Sacrosanctum concilium 2.
5
CCC 1069. A expressão “obra divina” alude à declaração de Cristo em João 17.4.
6
CCC 1070; a citação é do Concílio Vaticano II, Sacrosanctum concilium 7.2-3.
7
CCC 1071.
8
CCC 1072.
9
CCC 1074-1075.
10
CCC 1082.
11
CCC 1084.
12
CCC 1085.
13
CCC 1088; citação do Concílio Vaticano II, Sacrosanctum concilium 7.
14
Ibidem.
15
CCC 1089.
16
CCC 1091.
17
CCC 1092.
18
CCC 1098.
19
CCC 1099.
20
CCC 1100.
21
CCC 1101.
22
CCC 1102.
23
CCC 1103.
24
CCC 1104.
25
CCC 1105.
26
CCC 1109.
27
Quem contestar essa posição e disser que ela separa a natureza divina da natureza humana de Cristo (a
heresia nestoriana) terá de confrontar a seguinte questão: não é possível afirmar de forma significativa que
Cristo, o Deus-homem, subiu ao céu quarenta dias depois da sua ressurreição, está sentado atualmente à
mão direita do trono de Deus no céu e voltará à terra em seu segundo advento sem dizer ao mesmo tempo
que isso se aplica somente à sua natureza humana, e não à sua natureza divina (que é onipresente). Minha
posição está firmemente alicerçada na afirmação precedente (com a qual concordo), portanto não está aberta
à acusação de nestorianismo.
28
Essas apresentações detalhadas serão discutidas e avaliadas nos capítulos 7—10.
29
CCC 1113.
30
CCC 1114; citação dos Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 7.a sessão (3 de março de 1547),
Decreto sobre os Sacramentos, cânone 1 (Schaff, 2:119).
31
CCC 1116; a base bíblica para esse primeiro elemento de descrição é Lucas 5.17; 6.19; 8.46,
passagens que descrevem o poder que emanava de Jesus Cristo durante seu ministério terreno.
32
CCC 1118; a segunda citação é de Augustine, The city of God 22.17 [edição em português: Agostinho,
A cidade de Deus, tradução de Oscar Paes Leme (Petrópolis: Vozes de Bolso, 2012), 2 vols.].
33
CCC 1120.
34
CCC 1121.
35
CCC 1122 (grifo do autor).
36
CCC 1123; citação do Concílio Vaticano II, Sacrosanctum concilium 59.
37
CCC 1124.
38
CCC 1127.
39
CCC 1128.
40
Ibidem.
41
Alguns protestantes evitaram também esse último termo para não associar o batismo e a ceia do
Senhor à teologia e prática desses sacramentos pela Igreja Católica.
42
Charles Hodge, Systematic theology (Grand Rapids: Eerdmans, 1946), vol. 3, p. 499.
43
Confissão de Fé de Westminster, “Dos sacramentos”, 27.2.
44
Fé e Mensagem Batista, art. 7 “Batismo e ceia do Senhor” (grifo do autor). Essa declaração de fé
representa as convicções geralmente sustentadas pelas igrejas da Convenção Batista do Sul.
45
CCC 1136.
46
CCC 1138.
47
CCC 1143.
48
CCC 1145.
49
CCC 1146.
50
CCC 1148.
51
CCC 1150.
52
CCC 1153.
53
CCC 1154. O lecionário é um livro com leituras da Escritura para o ano litúrgico. O ambão é o pódio
ou leitoril de onde a Escritura é lida. As litanias são orações que consistem em pedidos ou invocações
expressas pelo ministro ou líder seguidas das respostas dadas pela congregação.
54
CCC 1155.
55
CCC 1159.
56
CCC 1160. Na verdade, o Catechism salienta que uma imagem sagrada “confirma que a encarnação do
Verbo de Deus foi real, e não imaginária”.
57
Conforme estabelecido pelo Concílio de Niceia II.
58
CCC 1163.
59
CCC 1168.
60
CCC 1173.
61
CCC 1174.
62
CCC 1179; referências bíblicas: 1Pedro 2.4,5 e 2Coríntios 6.16.
63
CCC 1180-1181; citação de Presbyterorum ordinis 5; cf. Sacrasanctum concilium 122-127.
64
CCC 1182.
65
CCC 1183.
66
CCC 1184.
67
CCC 1185.
68
CCC 1186.
69
CCC 1200.
70
CCC 1202.
71
CCC 1204.
72
CCC 1205.
73
Veja acima no subtítulo “O mistério pascal nos sacramentos da igreja” (seção 1, capítulo 1, artigo 2).
74
Esses termos não estão sendo usados para diferenciar os tipos de igreja anglicana, conforme são
normalmente usados.
75
Frank L. Smith, “What is worship?”, in: Frank L. Smith; David C. Lachman, orgs., Worship in the
presence of God (Greenville: Greenville Seminary Press, 1992), p. 16-7.
76
Confissão de Fé de Westminster, 21.1.
77
Veja, e.g., Confissão de Fé de Westminster, 20.
78
CCC 1148.
79
CCC 1160.
80
E.g., Justin Martyr [Justino Mártir], First apology 67 (ANF 1:186).
81
CCC 1168.
82
Para uma breve discussão, veja Allison, SS, p. 148-52.
83
Veja, e.g., A. Scott Moreau, Contextualization in world missions: mapping and assessing evangelical
models (Grand Rapids: Kregel, 2012).
7
A CELEBRAÇÃO DO MISTÉRIO
CRISTÃO
(segunda parte, seção 2, capítulo 1, artigos
1-2)
Os sete sacramentos; os sacramentos da iniciação cristã: batismo
e confirmação

Os sete sacramentos da igreja (seção 2)


Depois de tratar dos pontos comuns dos sacramentos tanto de uma perspectiva
doutrinária quanto da forma em que são celebrados, o Catechism of the Catholic
Church passa a fazer uma exposição detalhada salientando os elementos
1

específicos dos sete ritos. A discussão é subdividida em três tópicos ou tipos em


que os sacramentos são apresentados de acordo com seu tipo apropriado: os três
sacramentos da iniciação cristã (batismo, confirmação, eucaristia), os dois
sacramentos de cura (penitência e reconciliação, unção dos enfermos) e os dois
sacramentos ao serviço da comunhão (ordem, matrimônio). Em geral, a
discussão de cada sacramento ocorre de acordo com o seguinte procedimento:
introdução, nome do sacramento, base bíblica (no Antigo Testamento e no Novo
Testamento), modo de celebração e questões específicas.

Os sacramentos da iniciação cristã (seção 2, capítulo


1)
Os três sacramentos da iniciação cristã estabelecem o fundamento da vida cristã
de cada pessoa. “Nascidos para uma vida nova pelo batismo, os fiéis são
fortalecidos pelo sacramento da confirmação e recebem na eucaristia o alimento
da vida eterna”, acolhendo desse modo a vida divina em medida sempre maior
“[avançando] para a perfeição da caridade”. 2
O sacramento do batismo (seção 2, capítulo 1, artigo
1)
Em seus comentários introdutórios a respeito do primeiro sacramento, o
Catechism afirma: “O santo batismo é o fundamento de toda a vida cristã, o
pórtico da vida no Espírito [...] e a porta que dá acesso aos outros sacramentos.
Pelo batismo somos libertos do pecado e regenerados como filhos de Deus;
tornamo-nos membros de Cristo e somos incorporados na igreja e tornados
participantes na sua missão [...]. O batismo pode definir-se como o sacramento
da regeneração pela água e pela palavra”. 3

O termo “batismo” vem do modo pelo qual o sacramento é ministrado: o


grego βαπτίζειν (baptizein) “significa ‘mergulhar’ ou ‘imergir’”, e a ação de
4

submergir um catecúmeno na água mostra de forma contundente sua


identificação com a morte, o sepultamento e a ressurreição de Cristo, fazendo
dele uma “nova criatura” (2Co 5.17). Esse sacramento também é chamado de
lavagem pela regeneração e renovação do Espírito Santo, conforme Tito 3.5 e
aplicado ao sacramento, “sem o qual ‘ninguém pode entrar no reino de Deus [Jo
3.5]’”. O sacramento recebe ainda o nome de iluminação, porque os
5

catecúmenos foram instruídos na fé cristã e, portanto, iluminados em seu


entendimento a respeito dela antes de participar do rito. Além disso, eles
recebem “no batismo a Palavra, ‘a verdadeira luz que ilumina a todo homem’ [Jo
1.9]”, e com isso se tornam “iluminados” (Hb 10.32), “filhos da luz” (1Ts 5.5) e
6

“luz” eles mesmos (Ef 5.8). 7

A base bíblica para esse sacramento começa com a prefiguração do batismo


no Antigo Testamento. Na Criação, a água era “fonte da vida e da fecundidade”,
já que era “‘incubada’ pelo Espírito de Deus [Gn 1.2]”. A arca de Noé foi
8

prefiguração da salvação pelo batismo, uma vez que “poucas pessoas, isto é,
oito, salvaram-se nela por meio da água” (1Pe 3.20). As águas do grande dilúvio
são “um símbolo da morte. Por isso é que podia prefigurar o mistério da cruz. E,
por esse simbolismo, o batismo significa a comunhão com a morte de Cristo”. A 9

prefiguração mais evidente é a travessia do mar Vermelho: a libertação do povo


de Israel da escravidão no Egito prenuncia a libertação realizada pelo batismo. O
prenúncio final é a travessia do rio Jordão. O povo de Israel atravessou a água
para entrar na Terra Prometida, pressagiando desse modo a água do batismo que
leva à vida eterna.
O batismo nos Evangelhos começa com Jesus de Nazaré sendo batizado por
João Batista no rio Jordão (Mt 3.13) e termina com o Cristo ressurreto
ordenando a seus apóstolos que batizem discípulos de todas as nações (Mt
28.19,20; cf. Mc 16.15,16). O batismo de Jesus teve como propósito “cumprir
toda a justiça” (Mt 3.15) e manifestou seu autoesvaziamento (Fp 2.7); além
disso, ele falou de sua morte iminente como um “batismo” com o qual ele teria
de ser batizado (Mc 10.38; cf. Lc 12.50). De fato, “o sangue e a água que
manaram do lado aberto de Jesus crucificado são tipos do batismo e da
eucaristia, sacramentos da vida nova. Desde então, é possível ‘nascer da água e
do Espírito’ para entrar no reino de Deus”. 10

Desde seu início, a igreja celebrou e ministrou o batismo. No dia de


Pentecostes, em resposta à pergunta da multidão sobre o procedimento adequado
a seguir à luz do evangelho que pregara, Pedro diz: “Arrependei-vos, e cada um
de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo, para o perdão de vossos pecados;
e recebereis o dom do Espírito Santo” (At 2.38). O batismo é ministrado
imediatamente ao público judeu (v. 41) e, na sequência: aos samaritanos
(8.12,13); a um eunuco etíope (v. 38); a gentios tementes a Deus, como, por
exemplo, Cornélio (10.48) e Lídia (16.15); e ao carcereiro de Filipos juntamente
com sua família (v. 31-33). O apóstolo Paulo destaca a identificação suscitada
pelo batismo com a morte, o sepultamento e a ressurreição de Cristo (Rm 6.3,4;
cf. Cl 2.12). Ele afirma que o batizado “[se revestiu] de Cristo” (Gl 3.27). “Pelo
Espírito Santo, o batismo é um banho que purifica, santifica e justifica.” A água
11

batismal está intimamente associada à Palavra de Deus: “O batismo é, pois, um


banho de água, no qual ‘a semente incorruptível’ da Palavra de Deus produz o
seu efeito vivificador. Santo Agostinho dirá do batismo: [...] ‘Junta-se a Palavra
ao elemento material e faz-se o sacramento’”. 12

O Catechism apresenta o modo de administração desse sacramento retomando


primeiramente sua celebração no decorrer da história, relatando em seguida
como o batismo é ministrado atualmente. A breve seção histórica mostra a
presença de certos elementos em sua celebração: “O anúncio da Palavra, o
acolhimento do evangelho que implica a conversão, a profissão de fé, o batismo,
a efusão do Espírito Santo, o acesso à comunhão eucarística”. Embora não falte
13

referência bíblica, o Catechism depende claramente da narrativa de Atos 2.22-


47: Pedro prega o evangelho (v. 22-36), que é aceito pelas pessoas por meio do
arrependimento (v. 37-40) e da fé (elas são chamados de “crentes” no v. 44), e
três mil são batizados (v. 41), recebem o Espírito (conforme prometido no v. 38)
e celebram “o partir do pão” em comunidade (v. 42,46,47). Esse padrão comum
abriu caminho para uma grande variação nos séculos que se seguiram. O
Catechism destaca dois eventos importantes: um longo período chamado de
catecumenato, ou a comunicação da fé e a formação nessa fé como preparativo
para participação no batismo e outros sacramentos de iniciação, e o batismo
14

infantil como forma usual de ministração do sacramento, “ato único, que integra,
de um modo muito abreviado, as etapas preliminares da iniciação cristã”. Com 15
relação à catequese de crianças que foram batizadas, o Catechism diz: “Pela sua
própria natureza, o batismo das crianças exige um catecumenato pós-batismal.
Não se trata apenas da necessidade de uma instrução posterior ao batismo, mas
do desenvolvimento necessário da graça batismal no crescimento da pessoa”. 16

Com relação ao batismo de adultos, o Catechism se refere aos ritos do


catecumenato conforme o Rito da Iniciação Cristã de Adultos (RCIA),
cerimônias que vinculam de forma muito próxima o catecumenato aos três
sacramentos da iniciação, os quais constituem uma celebração única do batismo,
da confirmação e da eucaristia. 17

No que se refere à celebração contemporânea do batismo, há vários elementos


envolvidos. Antes do batismo propriamente dito, os ritos são: o sinal da cruz,
marcando os catecúmenos e representando a salvação de Cristo na cruz; a
proclamação da Palavra de Deus; a iluminação dos catecúmenos e a produção da
fé; exorcismos, porque “batismo significa a libertação do pecado e do Diabo,
18

seu instigador”, dos quais fazem parte a unção com óleo (ou a imposição de
mãos) e a renúncia a Satanás; bem como a consagração da água por meio de
19

uma oração de epiclese por meio da qual “a igreja pede a Deus que, pelo seu
Filho, o poder do Espírito Santo desça a essa água, para que os que nela forem
batizados ‘nasçam da água e do Espírito’”. No que se refere ao ato
20

propriamente dito, o batismo é expresso mais vividamente pela tripla imersão


(mergulho triplo) na água consagrada, embora a prática de derramar a água três
vezes sobre a cabeça seja comum desde a era da igreja primitiva; há também a
unção com óleo santo consagrado (crisma) que representa o dom do Espírito
Santo e retrata o cristão como alguém “ungido” como Cristo (“o ungido”). O
sacramento se propõe a representar e a tornar efetivamente real “a morte para o
pecado e a entrada na vida da Santíssima Trindade pela conformação ao mistério
pascal de Cristo”. No decorrer da cerimônia, os trajes brancos indicam que os
21

catecúmenos foram “revestidos de Cristo” (Gl 3.27) e ressuscitaram com ele; a


vela “significa que Cristo iluminou” esses novos cristãos. No caso dos adultos,
22

o batismo é seguido de outro sacramento: eles participam de sua primeira santa


comunhão. Já as crianças batizadas são “conduzidas ao altar para a Oração do
Pai-Nosso” [a Oração do Senhor]. A celebração é concluída com uma bênção
23

solene.
A participação nesse sacramento é aberta a “todo ser humano ainda não
batizado, e só ele é capaz de receber o batismo”. Nos lugares “em que a
24

proclamação do evangelho ainda é recente”, os adultos são batizados depois de


um período de catecumenato em que “sua conversão e fé” chegam à
“maturidade” e os três sacramentos da iniciação são ministrados conjuntamente. 25

As crianças são batizadas por causa do pecado original: “Nascidas com uma
natureza humana decaída e manchada pelo pecado original, as crianças também
têm necessidade do novo nascimento no batismo para serem libertas do poder
das trevas e transferidas para o domínio da liberdade dos filhos de Deus, a que
todos os homens são chamados. A pura gratuidade da graça da salvação é
particularmente manifesta no batismo das crianças. Por isso, a igreja e os pais
privariam a criança da graça inestimável de se tornar filho de Deus se não lhe
conferissem o batismo pouco depois do seu nascimento”. O Catechism apela ao
26

precedente histórico para a prática do batismo infantil dizendo se tratar de “uma


tradição imemorial da igreja” para o qual há testemunho explícito “do segundo
século em diante”. O Catechism encontra “possível” suporte bíblico nas
27

referências do Novo Testamento aos batismos de casas inteiras (At 16.15,33;


18.8; 1Co 1.16), durante os quais “é possível que as crianças também tenham
sido batizadas”. 28

O Catechism se ocupa a seguir da questão da fé e do batismo. Trata-se de um


assunto que não diz respeito apenas ao batismo infantil, porque mesmo no caso
do batismo de adultos a fé expressa não é a fé do catecúmeno, e sim da igreja:
“O batismo é o sacramento da fé. Mas a fé tem necessidade da comunidade dos
crentes. Só na fé da igreja é que cada um dos fiéis pode crer. A fé que se requer
para o batismo não é uma fé perfeita e amadurecida, mas um princípio chamado
a desenvolver-se. Ao catecúmeno ou ao seu padrinho pergunta-se: ‘Que pedis à
Igreja de Deus?’ E ele responde: ‘A fé!’”. Em outras palavras, a fé de um adulto
29

que se batiza é o dom da fé dada a ele pela igreja, e no caso de uma criança, que
não pode crer de modo pessoal, sua fé é a fé da igreja conforme recebida
vicariamente por seus pais e padrinhos. Além disso, a fé do adulto e da criança
que foram batizados “deve crescer depois do batismo”, assim como a nova vida
em Cristo, iniciada no batismo, deve ser nutrida. Uma ajuda fundamental para o
30

desenvolvimento da fé vem dos pais e dos padrinhos, “pessoas de fé sólida,


capazes e preparadas para ajudar o recém-batizado, criança ou adulto, no seu
caminho de vida cristã”. Além disso, a comunidade toda é responsável e deve
31

ajudar no crescimento e na proteção da graça batismal.


Normalmente, bispos, padres ou diáconos da igreja ministram o batismo.
Contudo, “em caso de necessidade, qualquer pessoa, mesmo não batizada, desde
que tenha a intenção requerida, pode batizar utilizando a fórmula batismal
trinitária. A intenção requerida é a de querer fazer o que faz a igreja quando
batiza. A igreja vê a razão desta possibilidade na vontade salvífica universal de
Deus e na necessidade do batismo para a salvação”. Suponhamos, por exemplo,
32

que durante uma batalha campal um soldado se arrependa de seus pecados e


creia em Jesus Cristo para sua salvação. Compreendendo a necessidade do
batismo e supondo que ele saia vivo do conflito, o soldado explica as linhas
gerais do sacramento do batismo a seu colega não batizado e pede que o
companheiro de batalha aspirja água três vezes sobre sua cabeça em nome do
Deus trino. Esse batismo de emergência é válido.
Essa prática, conforme dissemos acima, baseia-se na necessidade do batismo,
princípio de fé que encontra respaldo nas palavras de Jesus: “Em verdade, em
verdade te digo que, se alguém não nascer da água e do Espírito, não pode entrar
no reino de Deus” (Jo 3.5). Além disso, Jesus ordenou a seus discípulos que
anunciavam o evangelho que fizessem discípulos por toda parte e os batizassem
(Mt 28.19,20). Consequentemente, “o batismo é necessário para a salvação de
todos aqueles a quem o evangelho foi anunciado e que tiveram a possibilidade
de pedir esse sacramento. A Igreja não conhece outro meio senão o batismo para
garantir a entrada na bem-aventurança eterna”. Esse princípio impele a igreja
33

em sua missão.
Ao mesmo tempo, o Catechism afirma: “Deus ligou a salvação ao sacramento
do batismo; mas ele próprio não está prisioneiro dos seus sacramentos”. 34

Seguem-se quatro exemplos: os mártires, os catecúmenos que morrem


prematuramente, os não evangelizados e crianças não batizadas. Em primeiro
lugar, os mártires passam por um “batismo de sangue”: “Aqueles que sofrem a
morte por causa da fé, sem terem recebido o batismo, são batizados pela sua
morte por Cristo e com Cristo”. No segundo caso, o “desejo do batismo” é
35

válido: “Para os catecúmenos que morrem antes do batismo, o seu desejo


explícito de o receber, unido ao arrependimento dos seus pecados e à caridade,
garante-lhes a salvação, que não puderam receber pelo sacramento”. No terceiro
36

exemplo, apela-se à expiação ilimitada de Jesus Cristo, ao chamado universal à


bênção divina, ao mistério de Deus, com a seguinte conclusão: “Devemos
manter que o Espírito Santo a todos dá a possibilidade de se associarem a esse
mistério pascal, por um modo só de Deus conhecido”. Portanto, no caso dos
37

não evangelizados, o Catechism afirma: “Todo homem que, na ignorância do


evangelho de Cristo e da sua igreja, procura a verdade e faz a vontade de Deus
conforme o conhecimento que dela tem, pode salvar-se”. Mas o que dizer do
batismo nessas circunstâncias? “Podemos supor que tais pessoas teriam desejado
explicitamente o batismo se dele tivessem conhecido a necessidade.” No quarto38

caso, “[das] crianças que morrem sem batismo, a igreja não pode senão confiá-
las à misericórdia de Deus”. Animada pelo desejo divino de que todos se
39

salvem (1Tm 2.4) e da compaixão de Jesus pelas crianças (Mc 10.14), a igreja
tem esperança em sua salvação e se vê impelida a se empenhar por seu batismo
com esforço redobrado.
Os dois principais efeitos do batismo, conforme simbolizados pelos elementos
do sacramento — imersão na água — são a purificação dos pecados e a
regeneração no Espírito Santo. Com relação ao primeiro efeito, “todos os
40

pecados são perdoados, o pecado original e os pecados pessoais, assim como


todo castigo pelo pecado”; portanto, a entrada no reino de Deus se acha
totalmente desimpedida. Contudo, “algumas consequências temporais do
41

pecado persistem”, entre elas o sofrimento, as enfermidades, a morte, as


debilidades de caráter e a concupiscência, ou a inclinação ao mal, com a qual o
batizado tem de lidar resistindo-lhe por meio da graça divina. O segundo efeito
42

do batismo — a regeneração, ou novo nascimento — faz do recém-batizado


“uma nova criatura” (2Co 5.17) e “participante da natureza divina” (2Pe 1.4),
bem como filho adotivo de Deus, membro de Cristo e coerdeiro dele, e também
“templo do Espírito Santo” (1Co 6.19). “A Santíssima Trindade confere ao
batizado a graça santificante, a graça da justificação” acompanhada de três
resultados: capacitação para crer em Deus, esperar nele e amá-lo por meio das
virtudes teologais; poder para viver por meio do impulso e dos dons do Espírito
Santo; e crescimento na bondade por meio das virtudes morais. Outros efeitos
43

do batismo são a inclusão na igreja (Ef 4.25); participação nos ofícios sacerdotal,
profético e real de Cristo, bem como no sacerdócio comum de todos os crentes;
responsabilidades para com a igreja e privilégios por ser parte dela; participação
na missão da igreja; e “vínculo sacramental da unidade” com todos os cristãos,
“mesmo com aqueles que ainda não estão em plena comunhão com a Igreja
Católica”. 44

Na conclusão de sua apresentação detalhada do batismo, o Catechism destaca


a qualidade indelével desse sacramento: “O batismo marca o cristão com um
selo espiritual indelével (character) do seu pertencimento a Cristo. Essa marca
não é apagada por nenhum pecado, embora o pecado impeça o batismo de
produzir frutos de salvação. Ministrado uma vez por todas, o batismo não pode
ser repetido”. Essa regra de não repetição se aplica aos protestantes que se
45

convertem à fé católica. Contanto que seu batismo tenha sido realizado “por
46

imersão, efusão ou aspersão, juntamente com a fórmula trinitária”, ele é “por si


mesmo válido”. De fato, “se quiserem livremente abraçar a fé católica, não há
47

necessidade de absolvê-los da excomunhão”. Ao manter fielmente esse “selo de


48

vida eterna” e ao atender às suas exigências até a morte, o cristão “partirá desta
vida ‘marcado com o sinal da fé’, com sua fé batismal, na esperança da visão
beatífica de Deus — a consumação da fé — e na esperança da ressurreição”. 49

Avaliação evangélica
Questões preliminares
Como o batismo é um sacramento muito importante para a teologia católica,
conforme ficou evidenciado na ampla discussão do tema na seção precedente,
sua avaliação será mais meticulosa. Em parte, a teologia evangélica em suas
várias vertentes subscreve o tratamento dado pela teologia católica ao batismo e
também discorda dele, o que confere à tarefa de avaliação um caráter objetivo.
Contudo, a questão se complica em outras partes por causa da variedade
evidente de teologias evangélicas do batismo, o que torna a tarefa mais
desafiadora.
Há concordância em relação ao nome desse rito. Batismo é a transliteração de
um termo grego corriqueiro, βαπτίζειν (baptizein), cujo significado é
“mergulhar” ou “imergir”. Além disso, tanto para a teologia evangélica quanto
50

para a teologia católica o batismo é o rito iniciatório da fé cristã. Com poucas


exceções, ambas insistem que as pessoas sejam batizadas em algum ponto
inicial, quer se trate de adultos no momento inicial de sua profissão consciente
da fé cristã (credobatistas protestantes) quer no caso das crianças, pouco depois
do seu nascimento (pedobatistas protestantes). A natureza iniciatória desse rito
encontra respaldo em várias considerações: no padrão de batismo dos novos
crentes pouco depois da sua conversão, conforme narrado no livro de Atos; na
suposição do Novo Testamento de que todos os seguidores de Cristo foram
batizados; e na insistência da igreja primitiva de que antes de participar da ceia
51

do Senhor/eucaristia, as pessoas fossem batizadas. A teologia evangélica


52

concorda também com a ênfase da teologia católica nesse sacramento respaldada


pelo fato de que o ministério de Jesus começou com seu batismo (Mt 3.13-17 e
paralelos) e terminou com a ordem dada aos discípulos para que batizassem
discípulos de todas as nações (28.18-20). Além disso, a discussão da teologia
católica de outros elementos associados ao batismo cristão — por exemplo, a
comunicação do evangelho, o acolhimento da mensagem por meio do
arrependimento e da fé, o dom do Espírito Santo e a participação na ceia do
Senhor/eucaristia — ecoa na apresentação da teologia evangélica dessa
ordenança, uma vez que as narrativas batismais do livro de Atos chamam a
atenção para a presença desses outros elementos (e.g., At 2.22-47).
Esses pontos de acordo ficam grandemente obscurecidos em razão das
inúmeras divergências entre a teologia católica e a teologia evangélica do
batismo. Os conflitos dizem respeito, normalmente, a questões de base bíblica
para a interpretação do sacramento e/ou sua interpretação propriamente dita,
além da importância do seu desenvolvimento histórico para a teologia e prática
católicas do batismo.
Base bíblica
Uma das divergências mais importantes é o recurso da teologia católica a João
3.5 como base para a necessidade do batismo para a salvação. Em resposta à
compreensão equivocada de Nicodemos à declaração de “se alguém não nascer
de novo não pode ver o reino de Deus” (v. 3), “Jesus respondeu: Em verdade, em
verdade te digo que, se alguém não nascer da água e do Espírito, não pode entrar
no reino de Deus” (v. 5). Para a teologia católica, a água diz respeito ao batismo
53

e conclui a partir do ultimato de Jesus que o sacramento é necessário à salvação.


Embora vários segmentos da teologia evangélica interpretem a água de modo
semelhante — ainda que minimizem com frequência o aspecto da necessidade
do batismo que parece ser indispensável a essa compreensão —, parte
significativa desses segmentos considera a interpretação católica descabida. O 54

argumento contrário a essa interpretação pode ser sintetizado nos pontos que se
seguem: Em primeiro lugar, essa é uma interpretação anacrônica da passagem,
55

isto é, lê-se nela o sacramento do batismo cristão conforme foi desenvolvido


posteriormente. Consequentemente, “as palavras de João podem não ter tido
importância alguma para o Nicodemos histórico. Pelo menos essa parte do relato
se torna uma ficção narrativa com o propósito de instruir a igreja no tocante à
importância do batismo”. Desse modo, a visão segundo a qual a “água” no
56

versículo 5 se refere ao batismo significaria que Jesus teria feito uma censura a
Nicodemos (v. 10) por não compreender algo que ele certamente não estava em
condições de compreender. Em segundo lugar, se a água se refere ao batismo,
que se torna então necessária à salvação, “é de surpreender que o restante da
discussão jamais a mencione novamente: a atenção toda está voltada para a obra
do Espírito (v. 8), a obra do Filho (v. 14,15), a obra do próprio Deus (v. 16,17) e
o lugar da fé (v. 15,16)”. Em terceiro lugar, se a água for uma referência ao
57

batismo, um rito ministrado e controlado pela igreja, fica difícil compreender a


analogia entre o vento que “sopra onde quer” e o movimento soberano do
Espírito Santo na produção do novo nascimento (v. 8). Em quarto e último lugar,
em parte alguma da apresentação que Jesus faz do Espírito Santo no Evangelho
de João o Espírito aparece associado ao batismo, o que torna o referente da água
ao batismo em João 3 algo extremamente duvidoso.
Se a água não se refere ao batismo, então o que Jesus está exigindo para que
se entre/veja o reino de Deus? Uma vez mais, há inúmeros pontos que são
fundamentais para a interpretação adequada de João 3.5. Em primeiro lugar, a
insistência de Jesus no novo nascimento (v. 3) encontra paralelo em sua
insistência em nascer da água e do Espírito (v. 5). Conceitualmente, eles se
referem à mesma experiência, “portanto há um único nascimento em vista
aqui”. Em segundo lugar, há uma questão gramatical a considerar: uma
58

preposição, “de”, rege os dois substantivos “água” e “Espírito” (“nascido da


água e do Espírito”). Isso significa que os dois itens se acham ligados
conceitualmente: “Há uma fonte de água-espírito [...] na origem dessa
regeneração”. Em terceiro lugar, as passagens do Antigo Testamento que
59

associam fortemente a água com a obra do Espírito proporcionam o pano de


fundo para o espanto de Jesus diante da ignorância de Nicodemos em relação ao
que Jesus estava dizendo. Como mestre em Israel, Nicodemos devia saber que
sua Bíblia hebraica vinculava água e Espírito, tal como Jesus estava fazendo na
conversa que mantinha com ele. O Espírito de Deus, que unia os profetas, juízes
e reis de Israel, fora prometido como aquele que traria uma unção ainda maior
no futuro (e.g., Jl 2.28-32). A água quase sempre passa uma imagem de
purificação do pecado e renovação do povo de Deus. Uma passagem que une a
água como imagem de purificação com o Espírito como aquele que concede
renovação se destaca em particular: “Então aspergirei água pura sobre vós, e
ficareis purificados; eu vos purificarei de todas as vossas impurezas e de todos
os vossos ídolos. Também vos darei um coração novo e porei um espírito novo
dentro de vós; tirarei de vós o coração de pedra e vos darei um coração de carne.
Também porei o meu Espírito dentro de vós e farei com que andeis nos meus
estatutos; e obedecereis aos meus mandamentos e os praticareis” (Ez 36.25-27,
grifo do autor). Consequentemente, Jesus instrui Nicodemos com a verdade da
Escritura que o mestre de Israel deveria saber. Além disso, Jesus insiste com esse
“homem entre os fariseus” (Jo 3.1) que o havia procurado secretamente e
demonstrado curiosidade por ele (v. 2) que “nascesse de novo” ou “nascesse da
água e do Espírito”, isto é, que se purificasse do seu pecado e renovasse seu ser
interior por intermédio da obra miraculosa e regeneradora do Deus Espírito.
Como homem de carne nascido da carne — isto é, como pessoa que havia
nascido de forma natural apenas —, Nicodemos precisava da regeneração do
Espírito para se tornar espírito — uma pessoa nascida do Espírito, espiritual (v.
6) — e, portanto, participante do reino de Deus, que existe no reino do espírito
(4.24).
Essa interpretação, que é plausível e evita as dificuldades associadas à
interpretação da “água associada ao batismo”, é um dos fundamentos a que a
teologia evangélica recorre para rejeitar a insistência da teologia católica, com
base em João 3.5, na necessidade do batismo para salvação. 60

Contudo, outras divergências entre as duas teologias são igualmente


importantes e decorrem também do questionamento que a teologia evangélica
faz da base bíblica usada para a teologia católica do batismo. A teologia
evangélica não se refere a esse rito como “iluminação”, porque não há base
bíblica para esse nome. Sem dúvida, a Escritura emprega com frequência a
metáfora da luz em associação com Cristo e sua obra. Por exemplo, o Verbo
encarnado era “a verdadeira luz, que ilumina a todo homem” (Jo 1.9), disso
resultando que o cristão é “iluminado” (Hb 10.32) e “luz” (Ef 5.8; 1Ts 5.5). Mas
nenhuma dessas passagens bíblicas, às quais a teologia católica apela para
chamar de “iluminação”, tem qualquer associação com a imersão de uma pessoa
na água. Parece que a teologia batismal católica toma como exemplo os autores
da igreja primitiva que se referiam a esse rito como iluminação, com referência
61

em particular aos catecúmenos que eram instruídos na fé e, com isso, iluminados


antes de serem batizados. Essa, porém, é uma tradição indigna de confiança.
A alusão da teologia católica a várias prefigurações do batismo no Antigo
Testamento também é alvo de suspeita pela teologia evangélica. A criação
original, cercada de trevas e água, era “sem forma e vazia” (Gn 1.2), e não uma
fonte latente de luz e fertilidade. A luz e a ordem criada que sucederam esse
estado original do mundo foram trazidos à existência pela palavra falada externa,
do próprio Deus (v. 3-31). Portanto, essa água criacional não foi prefiguração do
batismo cristão. Também não o foi a travessia do rio Jordão, que a Escritura
jamais emprega como imagem do batismo. Como o Novo Testamento aponta
para o grande Dilúvio, e para como Noé escapou do juízo divino pela água (1Pe
3.20), símbolo do batismo, a teologia católica com justiça encontra a
prefiguração do batismo nesse evento. Muitos defensores da teologia evangélica
também concordam que a travessia do mar Vermelho é um tipo de batismo, com
respaldo bíblico em 1Coríntios 10.1,2.
Em relação ao respaldo do Novo Testamento para o batismo, já chamamos a
atenção aqui para os pontos de concordância. As discordâncias mais drásticas
vêm à tona quando a teologia batismal da Igreja Católica encontra um prenúncio
dos sacramentos do batismo e da eucaristia no sangue e na água que fluem do
corpo perfurado de Jesus crucificado (Jo 19.34). A teologia evangélica não
detecta nenhum significado místico na realidade fisiológica quando Jesus foi
perfurado com a lança dando passagem ao fluido que se acumulara em seus
pulmões e costelas (e que teria se separado em um líquido mais claro na parte
superior e de cor vermelha na parte inferior). Jesus estava morto. É isso o que
João quer ressaltar ao relatar a saída do que parecia ser sangue e água do lado de
Jesus. Portanto, não se trata de prefiguração alguma do batismo (tampouco da
eucaristia).
Outro desacordo diz respeito à declaração da teologia católica segundo a qual
o “batismo é uma lavagem que purifica, justifica e santifica”, apelando a várias
passagens bíblicas. Ao juntar Romanos 6.3,4 e Gálatas 3.27, a teologia
62

evangélica certamente concorda que o apóstolo Paulo apresenta o batismo como


representação poderosa da identificação do cristão com a morte, o sepultamento
e a ressurreição de Cristo (Rm 6.3,4), de tal forma que dos batizados se diz que
foram “revestidos de Cristo” (Gl 3.27). Contudo, a primeira dessas afirmações é
usada por Paulo para, na verdade, demonstrar a incongruência de continuar no
pecado e de estar morto para ele como pessoas que agora vivem em novidade de
vida (Rm 6.4). Essa é uma verdade posicional que encoraja o indivíduo a admitir
que está “morto para o pecado e vivo para Deus em Cristo Jesus” (Rm 6.11), o
que não está relacionado com purificação nem com justificação, tampouco se
trata de santificação conforme a perspectiva da Igreja Católica. Portanto, não há
garantia para a associação da teologia católica do batismo com os atos poderosos
de purificação, justificação e santificação divinos respaldados por essas
passagens. A segunda afirmação segundo a qual os batizados foram “revestidos
de Cristo” (Gl 3.27) é empregada por Paulo em apoio à sua argumentação de que
“todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus” (v. 26). Consequentemente, o
argumento de Paulo em relação ao batismo não é que ele purifica, justifica e
santifica, mas, sim, que ele caracteriza a adoção na família de Deus, tornando,
desse modo, irrelevantes as diferenças nacionais, de classe e de sexo, “todos vós
sois um em Cristo Jesus” (v. 27,28). Unidade e adoção pela comunidade são as
ênfases de Paulo nessa passagem, e o batismo comum de todos os cristãos
simboliza sua adoção na família única de Deus e sua subsequente unidade. Não
se deve desprezar nessa passagem a constante ênfase que o apóstolo confere à fé
(v. 22-26), cuja conexão com o batismo será tratada posteriormente.
As duas passagens seguintes (1Co 6.11 e 12.13) às quais a teologia católica
apela em busca de apoio para sua teologia batismal no Novo Testamento, e que
são as palavras tranquilizadoras de Paulo aos coríntios — “Alguns de vós éreis
assim. Mas fostes lavados, santificados e justificados em nome do Senhor Jesus
Cristo e no Espírito do nosso Deus” (1Co 6.11) —, contrastam drasticamente
com sua advertência sóbria de que “os injustos não herdarão o reino de Deus” (v.
9,10). É importante frisar que o apóstolo diferencia os três atos divinos de poder
— purificação, santificação e justificação — sem indicar que nenhum deles
individualmente, ou os três coletivamente, é/são dependentes do batismo. No
máximo, pode-se associar o “lavar” com batismo — Tito 3.5 faz isso —, mas a
passagem não permite tornar o batismo fonte de santificação e de justificação. A
segunda passagem também não dá apoio para o sacramento: “Pois todos fomos
batizados por um só Espírito para ser um só corpo, quer judeus, quer gregos,
quer escravos, quer livres; e a todos nós foi dado beber de um só Espírito” (1Co
12.13). Paulo não está se referindo ao batismo com água, mas ao batismo com o
Espírito. Um dos atos de poder de Deus ao salvar seu povo é que Jesus Cristo o
batiza com o Espírito e os introduz no corpo de Cristo, a igreja. A relação exata
entre esse ato divino que diz respeito a Cristo e ao Espírito, e o ato eclesial de
batizar com água, não aparece expresso na Escritura, e ainda que certamente
esteja relacionado com a purificação, justificação e santificação, o batismo com
o Espírito é um ato distinto. Por isso, essa passagem não respalda o que a
teologia católica afirma que ela faz.
Em relação à associação íntima que a teologia católica faz entre batismo e
Escritura, o Catechism propõe que o “batismo é, pois, um banho de água, no
qual ‘a semente incorruptível’ da Palavra de Deus produz o seu efeito
vivificador. Santo Agostinho dirá do batismo: ‘Junta-se a palavra ao elemento
material e faz-se o sacramento’”. Em apoio a essa perspectiva, o Catechism cita
63

1Pedro 1.23, que assegura aos cristãos: “Fostes regenerados não de semente
perecível, mas imperecível, pela Palavra de Deus, que vive e permanece”. A
teologia evangélica chama a atenção para o contexto da afirmação de Pedro para
a regeneração por meio da Palavra. Ele apela ao profeta Isaías (40.6,8) para
justificar sua argumentação: “Uma voz diz: Clama. Eu digo: O que clamarei?
Toda pessoa é como a relva, e toda a sua glória, como a flor do campo. Seca a
relva e cai a sua flor [...] mas a palavra de nosso Deus permanece para sempre”.
O apóstolo concluiu: “E essa é a palavra que vos foi evangelizada” (1Pe 1.23-
25). Em nenhum momento Pedro junta a Palavra de Deus, que é a proclamação
da mensagem do evangelho, ao batismo. Sua ênfase está na instrumentalidade da
palavra pregada para efetuar a regeneração, e não há qualquer associação ao
batismo na exposição de Pedro.
Com isso, resta outra passagem, juntamente com a citação de Agostinho, para
dar respaldo à associação entre o batismo e a Palavra de Deus. Conforme diz
Paulo: “Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela, a fim de santificá-
la, tendo-a purificado com o lavar da água, pela palavra, para apresentá-la a si
mesmo como igreja gloriosa, sem mancha, nem ruga, nem qualquer coisa
semelhante, mas santa e irrepreensível” (Ef 5.25-27). Se o “lavar da água” se
referir ao batismo, e se a “palavra” se referir à Palavra de Deus, então esse
versículo é o único que liga explicitamente o batismo à Palavra de Deus. Só isso
já basta que se faça com cautela a interpretação desse versículo dessa forma.
Conforme diz Markus Barth, pode-se entender esse versículo de forma
metafórica. Segundo esse entendimento, a frase “tendo-a purificado com o lavar
da água, pela Palavra” de modo figurado e, portanto, sucinto, comunica tudo o
que Jesus Cristo fez para efetuar a salvação pelos seres humanos pecadores.
Com sua morte sacrifical e amorosa na cruz, ele se entregou pela igreja para
santificá-la, ou separá-la, para os propósitos divinos, os quais têm uma
orientação futura que compreende a santidade plena no dia do retorno de Cristo.
Essas verdades foram tematizadas no início da carta (Ef 1.13,14): em primeiro
lugar, Paulo destaca a obra de Cristo: “Nele temos a redenção, o perdão dos
nossos pecados pelo seu sangue” (v. 7); são os seguintes os demais atos
concretos de poder por meio dos quais o ser humano decaído é resgatado e
abençoado: eleição, adoção, revelação do desígnio eterno de Deus, herança,
predestinação e o selo do Espírito Santo. Em segundo lugar, o apóstolo assinala
que Deus tinha como objetivo concretizar essa salvação: “Em amor nos
predestinou para si mesmo, segundo a boa determinação de sua vontade, para
sermos filhos adotivos por meio de Jesus Cristo, para o louvor da sua glória” (v.
5,6; cf. v. 9,12,14). Em terceiro lugar, Paulo enfatiza o desígnio da santificação:
“como também nos elegeu nele [Cristo], antes da fundação do mundo, para
sermos santos e irrepreensíveis diante dele” (v. 4). É importante notar que a obra
e o desígnio divinos são ativados quando as pessoas “ouviram a palavra da
verdade, o evangelho da salvação e creram nele [Cristo]” (v. 13). Sobre o “lavar
com água”, a expressão talvez lembre a profecia de Ezequiel que usa a ideia de
aspersão com água como metáfora para a purificação ou perdão dos pecados,
associada à ideia de que é Deus quem dá um novo coração/um coração de carne,
um novo espírito, e ao Espírito Santo, que concretiza a obediência à aliança (Ez
36.25-27). Portanto, o que Paulo defende em sua argumentação é “um louvor da
nova vida dada em comum a todos os membros da igreja por meio da morte de
Cristo e do Espírito de Deus” conforme anunciado pela palavra do evangelho. 64

Dessa forma, Efésios 5.26 não sustenta a ideia sacramental de que a Palavra de
Deus provoca uma mudança na água comum, de modo que ela se torne capaz de
transmitir graça. Tal interpretação reflete a teologia agostiniana (próximo
tópico), mas é certamente uma compreensão anacrônica da intenção de Paulo ao
escrever.
A respeito do pensamento de Agostinho de que a Palavra de Deus, quando
unida à água, faz desta o sacramento do batismo, trata-se de uma ideia que
reflete o axioma do sistema católico de interdependência natureza-graça. Como a
natureza — nesse caso, a água — tem capacidade para a graça, e como a graça
deve ser comunicada concretamente pela natureza, a água se torna um canal ou
meio de graça: o sacramento do batismo. Como esse axioma já foi avaliado e
concluímos que é deficiente, nada mais diremos aqui.
Desenvolvimento histórico
Há ainda outras divergências relativas ao batismo que decorrem do
questionamento que a teologia evangélica faz do impacto do desenvolvimento
histórico desse rito na atual compreensão e prática que tem dele a teologia
católica. Conforme observa corretamente o Catechism, numerosos elementos
foram acrescentados à ministração desse rito, e tais acréscimos influenciaram
profundamente a teologia batismal da igreja primitiva. Uma vez que faltam a
esses elementos respaldo bíblico objetivo, a teologia evangélica deve confrontar
novamente a tradição indigna de confiança do catolicismo. Analisaremos um a
um esses elementos.
Embora o padrão bíblico prescrevesse claramente o batismo imediato aos que
haviam ouvido o evangelho, estavam arrependidos dos seus pecados e criam em
Jesus Cristo, essa prática comum deu lugar a um período de catequese inserido
entre a comunicação da mensagem de salvação e o batismo. Na catequese, os
catequistas ensinavam a Escritura e as doutrinas da fé cristã, e os que
participavam dessa aprendizagem eram chamados de catecúmenos. Eles estavam
sendo preparados para o rito cristão da iniciação. Uma razão fundamental para
esse desenvolvimento pode ser encontrada na legalização do cristianismo como
religião do Império Romano. À medida que um grande contingente de novos
adeptos entrava para a igreja — e nem sempre pelas razões certas —, a
genuinidade e a seriedade do seu compromisso tinham de ser avaliados, e que
melhor maneira de fazê-lo senão tornar a entrada na igreja um processo longo e
exigente? Portanto, o batismo era adiado à espera de que o candidato terminasse
com sucesso o período de catequese.
Uma parte significativa da teologia evangélica avalia como negativa essa
demora. Embora seja compreensível que se queira avaliar de forma pragmática a
autenticidade do comprometimento do cristão e talvez seja mais compreensível
ainda que isso se dê sob certas circunstâncias, há três questões que merecem
reflexão: por que razão questões pragmáticas teriam permissão para romper com
um padrão bíblico de conversão seguido rapidamente pelo batismo? Por que a
igreja primitiva não se antecipou melhor e se preparou para as consequências
negativas do seu relacionamento crescente com o Estado? Se o Senhor da igreja
enfatizou que seu reino não é deste mundo, por que essa igreja se identificaria
com um reino mundano? Os resultados deixam claro o equívoco da relação entre
Estado e igreja: os imperadores seculares participaram dos debates teológicos
sagrados; a igreja, antes perseguida, se tornou perseguidora; as Cruzadas
tentaram retomar a Terra Santa (ou a Constantinopla da cristandade) pela força,
ao mesmo tempo que guerreavam contra as forças islâmicas; o papado reinava
como reino único ou como uma monarquia entre outras onde não faltavam as
mesmas intrigas políticas, condutas financeiras impróprias, imoralidade e
subterfúgios militares como qualquer outra potência terrena; acordos com
déspotas internacionais como Napoleão, Mussolini e Hitler. Esses resultados não
se deveram à demora do batismo; a questão não é essa. Pelo contrário, o
adiamento do batismo para preparar os candidatos para o rito representava uma
capitulação às questões pragmáticas, o rompimento de um padrão bíblico claro,
uma confusão em torno do que significava fazer novos discípulos (sendo o
batismo parte dessa responsabilidade) e, pelo batismo, acolher os membros
maduros da igreja; além de transportar à água do batismo um peso jamais
intencionado. Esse último ponto leva à discussão do batismo infantil.
A maior mudança introduzida no rito do batismo na igreja primitiva foi o
batismo infantil. Embora a Escritura apresente consistentemente os que
receberão o batismo como pessoas que já ouviram o evangelho e dele se
apropriaram pelo arrependimento e fé, na última parte do segundo século, a
igreja também passou a considerar as crianças aptas para o batismo, tendo a
prática se estabelecido firmemente no quinto século. É importante lembrar que
esse desenvolvimento histórico contava com apoiadores e detratores. Às vezes,
esse fato é negligenciado. Por exemplo, o Catechism apela ao respaldo com que
o batismo infantil contava no segundo século para justificar a prática, mas nada
diz sobre o fato de que o relato existente então sobre o batismo infantil consiste
na objeção de Tertuliano a essa nova prática, queixando-se de que “infantes
inocentes” não têm por que “se apressar pelo perdão de pecados”. Pelo contrário,
disse Tertuliano: “Que se tornem cristãos quando forem efetivamente capazes de
conhecer a Cristo” e sejam então batizados. De igual modo, quando em meados
65

do terceiro século Orígenes afirmou: “A igreja recebeu dos apóstolos a tradição


de batizar até mesmo os pequeninos”, ele também objetou a essa prática
66

argumentando que os inocentes — isto é, crianças que ainda não cometeram


pecados pessoais — não precisam de perdão.
Portanto, como foi que surgiu o batismo infantil? Orígenes chamou a atenção
para o ponto principal do seu desenvolvimento: “Ninguém é puro ou imundo,
nem mesmo se sua vida na terra começou há um dia apenas [...]. Isso porque a
imundície do nascimento é removida pelo sacramento do batismo, e por esse
motivo as crianças também são batizadas”. Em outras palavras, a prática do
67

batismo infantil surgiu marcada por uma forte ligação entre o batismo e a
remoção do pecado original. Portanto, é preciso lidar com o pecado original — a
doutrina segundo a qual Adão transmitiu sua culpa e corrupção a todos os seres
humanos, de modo que todos nasceram neste mundo culpados perante Deus e
manchados por uma natureza corrupta e pecaminosa —, caso contrário o
resultado será o juízo que leva à condenação. Como o batismo era considerado o
efeito do perdão de pecados, e como as crianças nascem com a culpa e a
corrupção adâmicas (pecado original), elas precisam ser batizadas para que
sejam salvas. Com essa teologia firmemente estabelecida no início do quinto
século, o batismo infantil se tornou a prática oficial da igreja.
A teologia evangélica contesta com veemência a teologia e prática do batismo
infantil. Para ser preciso, embora alguns setores da teologia evangélica
pratiquem o batismo infantil — portanto, há uma semelhança familiar entre essas
igrejas e a Igreja Católica no que se refere à ministração do batismo a crianças
—, a teologia que justifica a prática evangélica é completamente distinta de sua
congênere católica. Conforme observamos, a teologia batismal católica gira em
torno do pecado original e do seu perdão por meio do batismo infantil. A
teologia batismal evangélica, com suas inúmeras variedades, tem um foco
bastante diferente. Por exemplo, a teologia reformada fundamenta sua prática do
batismo infantil no pertencimento à aliança: os filhos de pais crentes devem ser
batizados, pois, a exemplo de seus pais, eles fazem parte da comunidade da
aliança (a igreja), tendo o direito ao sinal da filiação à aliança, que é o batismo.
Ao longo da história, Ulrico Zuínglio chamou a atenção para a analogia entre a
prática da antiga aliança da circuncisão e a prática da nova aliança do batismo
infantil. Assim como a circuncisão era feita no oitavo dia depois do nascimento
de um menino, da mesma forma o batismo deveria ser ministrado às crianças,
meninos e meninas. João Calvino também enfatizou essa analogia, salientando
os benefícios dessa prática tanto para os crentes quanto para seus filhos. Os pais
são incentivados a ver a aliança de misericórdia divina estendida à sua prole
quando seus filhos recebem esse benefício: “Ao serem enxertados no corpo da
igreja, eles são, de algum modo, entregues mais confiadamente aos outros
membros. Dessa maneira, ao crescerem, são vivamente incentivados a
cultivarem um zelo sincero pela adoração a Deus, por meio de quem foram
recebidos como filhos por meio de um símbolo solene de adoção antes que
tivessem idade suficiente pra reconhecê-lo como Pai”. Note-se que a teologia da
68

Reforma não apela à necessidade de remover o pecado original e à necessidade


da regeneração batismal como fundamento do batismo infantil. Na verdade, a
teologia batismal reformada se distancia da teologia batismal católica porque
discorda que o batismo purifique a criança do seu pecado original e a regenera.
Embora o batismo infantil seja prática de parte significativa dos evangélicos,
outros batizam apenas aqueles que possam oferecer uma profissão crível de fé
em Jesus Cristo. O desenvolvimento histórico desse conceito começou com os
anabatistas, cuja teologia batismal se erigiu sobre diversos argumentos. Em
primeiro lugar, apresentou-se um caso negativo para desqualificar a prática do
batismo de crianças: os anabatistas não encontraram nenhuma justificativa
bíblica para ele e observaram que nenhum dos relatos de batismo do Novo
Testamento mencionam que crianças tivessem participado do rito. Em seguida,
apresentou-se o argumento positivo para o batismo dos crentes: no caso do
batismo no Novo Testamento, a fé precedia o batismo com água;
consequentemente, a teologia anabatista concluiu que as pessoas devem
experimentar a intervenção salvífica de Deus e ter fé antes que possam ser
adequadamente batizadas. Acrescente-se a isso o fato de que, em sua Grande
Comissão, o próprio Jesus ordenou o batismo dos que haviam sido feito
discípulos (Mt 28.18-20). Os batistas criaram uma teologia batismal parecida,
desacreditando a legitimidade de todo tipo de batismo infantil, seja ele o rito
católico fundamentado na purificação do pecado original e na regeneração, seja
no pedobatismo protestante baseado na analogia entre as alianças antiga e nova e
no acolhimento das crianças de pais crentes na igreja. Em vez disso, os batistas
insistiam em seguir uma profissão de fé crível em Cristo.
Para os defensores evangélicos do batismo do crente, o apelo da teologia
católica ao precedente histórico e à Escritura para dar respaldo à prática do
batismo infantil é insuficiente. Se tomarmos primeiramente os casos de batismo
infantil, os exemplos de batismo que ocorrem com frequência nas páginas do
Novo Testamento dão respaldo ao batismo do crente, e não ao batismo infantil.
No dia de Pentecostes, em resposta à proclamação de Pedro e à sua ordem:
“Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo, para
o perdão de vossos pecados; e recebereis o dom do Espírito Santo” (At 2.38), “os
que acolheram a sua palavra foram batizados; e naquele dia juntaram-se a eles
quase três mil pessoas” (v. 41). O batismo foi precedido pelo ouvir e pela
resposta ao evangelho por meio do arrependimento do pecado e fé em Jesus
Cristo (no v. 44, essas pessoas são chamadas de “todos os que creram”). Esse
mesmo padrão é repetido no livro de Atos: entre os que creram e foram
batizados há samaritanos (8.12); um eunuco etíope (8.36,38); Saulo, perseguidor
da igreja (9.18; 22.16); gentios (10.47,48; 11.16,17); uma mulher de negócios e
sua família (16.15); um carcereiro e sua família (16.33); um grande número de
coríntios (18.8); e uma dúzia de discípulos de João Batista (19.3-7). Estendendo-
se para além desse período inicial, o batismo de crentes continuou a ser a prática,
conforme evidenciado pela Didaquê (meados do segundo século), que dá
instruções para o rito; orientações que não se aplicam a crianças. 69

Apesar desse claro padrão bíblico, a teologia católica aponta para casos de
batismos de famílias como “possíveis” respaldos para o batismo infantil.
Analisaremos uma a uma as quatro passagens: o batismo de Lídia e de sua
família (At 16.15) nos dá informações sobre como sua família era constituída. O
pressuposto de que alguns dos batizados eram crianças é tão sem fundamento
quanto o de que não havia criança alguma. O que fica claro é que essa mulher
ouviu o evangelho e, por causa disso, foi batizada. O carcereiro de Filipos,
depois de indagar sobre o que teria de fazer para se salvar, recebeu a seguinte
ordem de Paulo e Silas: “Crê no Senhor Jesus, e tu e tua casa sereis salvos. Então
pregaram a Palavra de Deus a ele e a todos os que eram de sua casa. E [...] logo
foi batizado, ele e todos os seus” (At 16.25-33). Neste caso de batismo familiar
há informações suficientes sobre os que foram batizados: todos eles
primeiramente ouviram o evangelho e depois foram todos batizados. O caso dos
coríntios é parecido. Enquanto Paulo “dedicava-se inteiramente à palavra,
testemunhando aos judeus que Jesus era o Cristo” (At 18.5), o resultado foi
surpreendente: “Crispo, chefe da sinagoga, creu no Senhor com toda a sua casa.
Também muitos coríntios, quando o ouviam, criam e eram batizados” (v. 8).
Uma vez mais, há um padrão comum em ação: Paulo anunciou o evangelho, e
Crispo e toda a sua família, a exemplo de muitos outros coríntios, creram e
foram batizados. A quarta passagem está na primeira carta de Paulo à igreja de
Corinto, em que ele lembra: “É verdade que batizei também a família de
Estéfanas” (1Co 1.16). Embora não haja informações suficientes sobre a
composição dessa família, seria um equívoco trabalhar com a possibilidade de
que havia crianças nela e que foram então batizadas, tomando por base mais
informações em outra parte. Em suas instruções finais na carta, o apóstolo diz
que “a família de Estéfanas são os primeiros frutos da Acaia; eles têm se
dedicado ao serviço dos santos” (1Co 16.15). É claro que a família de Estéfanas
era composta por pessoas que haviam abraçado o evangelho e participavam de
um ministério frutífero, o que excluía a presença de crianças.
Portanto, o padrão bíblico, que persistiu como prática comum na igreja
primitiva, consistia no batismo que era consequência de ouvir e de acolher o
evangelho em arrependimento e fé. Portanto, os evangélicos que propõem o
batismo de crentes têm sólido respaldo bíblico para sua teologia e prática
batismais e chamam justificadamente a atenção para a fragilidade da
argumentação do pedobatismo.
Embora admita que o apoio bíblico para o batismo infantil é somente
“provável”, a teologia batismal católica apela em segundo lugar ao precedente
histórico para dar sustentação a essa prática. Conforme observamos acima, a
evidência para esse desenvolvimento, pelo menos em suas fases iniciais, é
heterogêneo: alguns na igreja apoiavam o batismo infantil, enquanto outros o
lamentavam. Contudo, no início do quinto século, a prática oficial era o batismo
infantil. De que maneira a teologia católica avalia essa evolução?
Para os credobatistas evangélicos, esse desenvolvimento contradiz o padrão
inequívoco do batismo do crente conforme estabelecido pela Escritura e está
fundamentado num mal-entendido a respeito do batismo — a purificação do
pecado original e a regeneração dos que o recebem. Consequentemente, para a
teologia evangélica, que assim crê, o batismo de crianças é um acréscimo
injustificado, e até mesmo trágico, da teologia e prática batismais da igreja
primitiva que remonta à sua origem no dia de Pentecostes. De igual modo, os
pedobatistas evangélicos discordam dessa avaliação porque, embora sua prática
guarde semelhança próxima com o batismo infantil católico, eles rejeitam as
bases católicas do pedobatismo. O batismo infantil evangélico não está baseado
na necessidade de purificação do pecado original e na necessidade de
regeneração batismal; pelo contrário, ele aponta para a analogia entre o rito da
antiga aliança da circuncisão e o rito da nova aliança do batismo e,
consequentemente, aplica esse sinal de pertencimento à aliança às crianças dos
pais crentes. Portanto, tanto o credobatismo evangélico quanto o pedobatismo
não subscrevem esse precedente histórico e seu uso em apoio ao pedobatismo
católico.
A teologia evangélica também lamenta que outros acréscimos ao rito do
batismo tenham sido feitos pela igreja primitiva. Por exemplo, a celebração
desse rito é precedida por um exorcismo e pela renúncia a Satanás. Certamente,
a Escritura descreve o ser humano pecador como alguém que se comportava
“segundo o príncipe do poderio do ar, do espírito que agora age nos filhos da
desobediência” (Ef 2.2) e como “filhos do Diabo” (1Jo 3.8,10; cf. Jo 8.44) que
estão sob o “poder de Satanás” (At 26.18). A teologia católica associa essa
dominação satânica ao pecado original e aos pecados de fato como uma de suas
consequências. O Diabo é o instigador do pecado e, portanto, domina aqueles
que estão sob o controle do pecado. A libertação do pecado e de sua jurisdição
demoníaca é um dos efeitos da regeneração. Como ela é efetuada pelo batismo, o
exorcismo e a renúncia a Satanás se tornaram um elemento do rito batismal da
igreja primitiva. A teologia evangélica critica esse acréscimo em razão da falta
de suporte bíblico para ele e lamenta o fato de outra tradição equivocada na
teologia e prática católicas. 70

Outros exemplos deploráveis de acréscimos à ministração do batismo


consistem no uso de água consagrada e em ungir com óleo os que foram
batizados. Com relação a essas duas adições, a consagração da água é tida como
necessária porque os que serão batizados com ela devem ser “nascidos da água e
do Espírito” (Jo 3.5). Conforme dissemos anteriormente, essa teologia se baseia
em um mal-entendido da afirmação de Jesus que passa a se referir à regeneração
batismal e à necessidade dela. A consagração da água depende também do
axioma da interdependência natureza-graça do sistema católico. O elemento
natural da água, que tem capacidade para a graça, deve ser consagrado para que
a graça seja comunicada concretamente por meio dele no sacramento do
batismo. Essa interdependência natureza-graça está intimamente associada à
ideia da teologia católica dos sacramentos como algo que é válido ex opere
operato. Como a graça divina é comunicada pelo ato do batismo, o poder para
efetuar o perdão do pecado original (e, no caso dos adultos, também de seus
pecados concretos) e realizar o novo nascimento necessariamente passa pela
água, à qual Deus, por meio do seu Filho, concedeu o poder do Espírito Santo no
ato da sua consagração. As objeções evangélicas ao axioma natureza-graça e à
validade ex opere operato dos sacramentos já foram feitas aqui. A teologia
evangélica faz objeção à unção com óleo do recém-batizado, significando com
isso o dom do Espírito, e a apresentação desses novos cristãos como “ungidos” a
exemplo de Cristo (que significa, lit., “o ungido”). Deus deu o batismo à igreja
da nova aliança, e esse sinal de aliança é um elemento concreto e visível: água.
A introdução de outros elementos nesse rito não contribui com a ministração do
batismo; antes, deprecia seus significados objetivos.
De fato, o batismo retrata com veemência os vários significados ou efeitos do
batismo conforme apresentado no Novo Testamento: associação com o Deus
trino, que é eternamente Pai, Filho e Espírito Santo (Mt 28.19); identificação
com a morte, o sepultamento e a ressurreição de Jesus Cristo (Rm 6.3-5; cf. Gl
3.26-28); purificação do pecado (At 22.16; 2.38); escape do juízo divino (1Pe
3.20,21); ato de obediência da parte dos que se arrependeram e creram em
71

Cristo (At 2.38); e sinal de entrada e de acolhimento na nova comunidade da


aliança, a igreja (v. 42-47). A teologia evangélica abraça, em maior ou menor
grau de ênfase, dependendo da variedade, esses significados do batismo. Outros
sentidos ou efeitos são rejeitados por carecerem de respaldo bíblico ou porque se
sustentam sobre base teológica equivocada. Por exemplo, a infusão da graça
resultando no aumento da vida divina que leva à perfeição no amor —
considerada um efeito do batismo pela teologia católica — depende da
interdependência natureza-graça, sobretudo a ênfase de que a graça deve elevar
e, por fim, aperfeiçoar a natureza. Consequentemente, há um mal-entendido aí
no tocante à obra da graça divina, que não é infundida em quem a recebe, e sim
imputada a ele, assunto que discutiremos posteriormente com mais detalhes.
Fé e batismo
Como o Catechism trata a seguir da questão da fé e do batismo, faremos então a
avaliação evangélica desse tópico. Tanto a teologia católica quanto a teologia
evangélica associam a fé ao batismo, portanto há acordo em relação a esse
ponto. Contudo, a discordância aparece na relação entre fé e batismo. É
especialmente importante a ênfase da teologia católica na fé da igreja como
fundamento da fé pessoal; conforme explica o Catechism: “É tão somente com a
fé da igreja que cada fiel crê”. No caso do batismo infantil, portanto, a fé com
72

que a criança crê é a fé da igreja conforme recebida vicariamente por meio de


seus pais e padrinhos. No caso do batismo de um adulto, sua fé é o dom de fé
dado a ele pela igreja. É evidente que no âmago dessa ênfase há a necessidade da
igreja e do seu sacramento do batismo para a salvação.
Por mais que a teologia evangélica queira salientar a importância da igreja, ela
não concorda com o sentido exageradamente eclesial dado pela teologia católica
conforme evidenciado na fundamentação da fé pessoal na fé da igreja. No âmago
dessa discordância está a interconexão Cristo-Igreja, um axioma da Igreja
Católica: a Igreja Católica é a extensão da encarnação de Cristo; como tal, a
Igreja, e somente ela, é a mediadora entre a natureza e a graça, comunicando a
salvação por meio do sacramento do batismo e, além disso, a própria fé
envolvida na salvação. Esse princípio abrangente já foi criticado (cap. 1).
Contudo, é possível fazer mais algumas críticas específicas. Outro motivo de
discordância é a falta de base bíblica para esse papel da igreja na fé. Em todos os
casos de batismo no Novo Testamento, a pessoa sendo batizada expressou sua fé
individualmente em Cristo. Certamente, é verdade que outros “agentes” estavam
ativos nesses dramas de salvação: Pedro fez a primeira proclamação do
evangelho no dia de Pentecostes levando três mil pessoas à fé, seguida do
batismo (At 2.22-41), e ele estava no meio do seu discurso sobre Cristo quando
os primeiros gentios se converteram e foram batizados (10.34-38). Filipe, o
evangelista, anunciou Jesus Cristo aos samaritanos (8.5-24) e ao eunuco etíope
(v. 26-40). Esses exemplos poderiam ser multiplicados. Contudo, biblicamente
falando, Pedro, Filipe e outros são servos responsáveis, e não representantes de
uma igreja que confere fé aos que ouvem o evangelho. De fato, Paulo rejeitou
todo papel exagerado para si e para Apolo como líderes da igreja de Corinto:
“Quem é Apolo? E quem é Paulo? São apenas servos por meio de quem crestes,
conforme o Senhor concedeu a cada um. Eu plantei; Apolo regou; mas foi Deus
quem deu o crescimento. De modo que, nem o que planta nem o que rega são
alguma coisa, mas, sim, Deus, que dá o crescimento” (1Co 3.5-7, grifo do autor;
cf. 4.1-5). Ser o servo dos que viriam a crer em Cristo como Senhor é muito
diferente de ser repositório de fé que é então concedida como fundamento da fé
de outros. O primeiro é instrumento de fé; o segundo, o fundamento da fé.
Além disso, a apresentação da fé no Novo Testamento privilegia a
responsabilidade individual de crer em Cristo para a salvação. Por exemplo,
pegando uma passagem fundamental para a regeneração batismal da teologia
católica, Jesus disse a Nicodemos: “ninguém pode ver o reino de Deus se não
nascer de novo” (Jo 3.3, grifo do autor). Essa instrução lembra a afirmação
vívida do prólogo de João sobre o Verbo de Deus: “Ele veio para o que era seu,
mas os seus não o receberam. Mas a todos que o receberam, aos que creem no
seu nome, deu-lhes a prerrogativa de se tornarem filhos de Deus; os quais não
nasceram de linhagem humana, nem do desejo da carne, nem da vontade do
homem, mas de Deus” (1.11-13, grifo do autor). Nascer de novo e nascer de
Deus significam a mesma coisa, e como este último nascimento, divinamente
engendrado, está intimamente associado ao acolhimento do Verbo de Deus e à fé
em seu nome, o primeiro novo nascimento deve participar de igual modo disso.
É importante observar aqui a responsabilidade individual pela recepção/fé. Isto
está muito longe da ideia de fé encontrada na teologia batismal católica em que a
fé da igreja, e não a fé do indivíduo, toma a frente.
Além disso, a ideia da teologia católica de que a igreja é que concede o dom
da fé ao fiel entra em conflito com a ênfase da Escritura segundo a qual a fé que
conduz à salvação é dom de Deus (Ef 2.8,9), e que uma profissão genuína de fé é
suscitada pelo Espírito Santo (“ninguém pode dizer: Jesus é Senhor! a não ser
pelo Espírito Santo”; 1Co 12.3). Mais uma vez, essa resposta não tem como
objetivo negar o papel instrumental da igreja na proclamação do evangelho,
insistindo no arrependimento e na fé, orando pela conversão dos não crentes etc.
Pelo contrário, ela nega o papel fundacional da igreja para a fé do fiel. De acordo
com o apóstolo Paulo: “Mas o que diz [a justiça que vem da fé; Rm 10.6]? ‘A
palavra está perto de ti, na tua boca e no teu coração’ (i.e., a palavra da fé que
pregamos). Porque, se com a tua boca confessares Jesus como Senhor, e em teu
coração creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo” (v. 8-10).
Transpondo as palavras do Catechism, então, quando se pergunta ao
catecúmeno: “Que pedis da igreja de Deus?”, a resposta adequada não é “Fé!”, e
sim “a palavra de fé que [a igreja proclama]”, porque “a fé vem pelo ouvir, e o
ouvir pela palavra de Cristo” (v. 17). Positivamente, então, a igreja é serva e
instrumento de fé por meio de sua proclamação da Palavra de Deus, que inflama
a fé e leva à salvação, que é toda ela dom de Deus. Negativamente, a fé da igreja
não é o fundamento, ou dispensadora, da fé.
Cenários extraordinários
Com tudo o que já afirmamos a respeito da teologia católica relativamente à
necessidade do batismo para a salvação e ao papel fundacional da igreja para a fé
associado ao batismo, não é de surpreender que os ministros ordinários desse rito
sejam líderes — bispos, padres e diáconos — da igreja. Isso suscita uma
pergunta importante sobre o que fazer caso a igreja, na pessoa de um de seus
líderes, não esteja presente para batizar as pessoas, ou no caso em que as pessoas
morrem antes de serem batizadas. A necessidade do batismo para a salvação e o
papel da igreja em sua ministração significam a condenação dos que não
puderam ser batizados pelo clero?
A teologia batismal católica trata de vários cenários extraordinários, os quais
serão seguidos por uma respectiva avaliação da teologia evangélica. Um dos
cenários diz respeito a um caso em que o clero católico não pode ministrar o rito;
a teologia católica permite que alguém realize o batismo, contanto que haja a
intenção requerida. Nesse caso, o batismo de emergência é válido. Na maior
parte das vezes, a teologia evangélica, que não considera o batismo necessário
tal como o faz a teologia católica, não vê na falta do batismo um impedimento
para a salvação. O ladrão na cruz que não foi batizado pode servir como paralelo
de um caso excepcional. Outro cenário diz respeito a quatro casos em que a
pessoa morre antes de ser batizada. O primeiro caso extraordinário é o dos
mártires. A teologia evangélica pode recorrer ao mesmo caso do ladrão na cruz,
concluindo que os mártires que morrem antes de serem batizados não estão
impedidos de se salvarem. Ela não inventa — na verdade, condena — um
“batismo de sangue” em substituição ao batismo com água. O segundo caso, dos
catecúmenos que morrem antes de serem batizados, suscita uma objeção mais
fundamental: seu batismo não deveria ter sido adiado, portanto a igreja está em
falta por proibi-los de serem obedientemente batizados de acordo com o modelo
bíblico. A teologia evangélica não inventa — na verdade, lamenta — o “desejo
de batismo” para compensar a falta do batismo com água.
O terceiro caso é ainda mais perturbador, o destino dos não evangelizados que
evidentemente não foram batizados. Ao apelar à expiação ilimitada de Cristo, ao
chamado universal à bênção divina e ao mistério de Deus, a teologia católica
conclui que “devemos acreditar que o Espírito Santo a todos dá a possibilidade
de se associarem a este mistério pascal, por um modo só de Deus conhecido”. A 73

teologia evangélica já avaliou e condenou esse inclusivismo católico, insistindo


em vez disso que (1) a expiação de Cristo é a única base objetiva para a salvação
do ser humano pecador (a teologia católica concorda com esse primeiro ponto) e
(2) a fé é a apropriação subjetiva ou pessoal necessária desse sacrifício
expiatório, cujo conhecimento vem por meio do evangelho e conduz à salvação.
A teologia católica discorda desse segundo ponto e para isso inventa outra
maneira possível para que os não evangelizados se salvem — pela procura da
verdade em religiões não cristãs, seguindo os ditames da consciência ou de
alguma outra maneira. Em tais circunstâncias, a teologia católica supõe que “tais
pessoas teriam desejado o batismo explicitamente se tivessem conhecido a
necessidade dele”. 74

A teologia evangélica objeta: tal teoria é completamente especulativa, não está


baseada em nenhuma revelação divina, conforme admite a própria teologia
católica, e vai contra cerca de oitocentos anos de tradição católica. Embora
defenda a possibilidade de salvação “por um modo só de Deus conhecido”, e 75

embora possa imaginar que “Deus associou a salvação ao sacramento do


batismo, conquanto ele mesmo não se ache limitado por seus sacramentos”, a 76

teologia católica não oferece suporte algum para tais alegações. O inclusivismo
77

católico ignora ainda a ênfase bíblica explícita que junta a expiação de Cristo
(ponto 1) e seu anúncio por meio do evangelho e a resposta de fé (ponto 2), sem
a qual não pode haver salvação. Por fim, ela não leva em conta a
pecaminosidade intratável das pessoas — cristãos, bem como não cristãos —, o
que esvazia a suposição de que, se um não evangelizado tivesse pelo menos
ouvido falar da necessidade do batismo, ele o teria desejado explicitamente. 78

O quarto caso extraordinário diz respeito às crianças não batizadas. Ao longo


da história, “o ensino tradicional da igreja sobre esse tópico se restringiu à teoria
do limbo, entendido como um estado em que estão as almas das crianças que
morreram sujeitas ao pecado original e sem batismo e que, portanto, não
merecem a visão beatífica, tampouco estão sujeitas ainda a qualquer castigo,
porque não são culpadas de nenhum pecado pessoal”. Contudo, a teologia
79

católica observa que essa teoria não se baseia em nenhum ensino explícito da
revelação divina e jamais foi definida dogmaticamente pelo Magistério;
portanto, trata-se apenas de uma hipótese. Consequentemente, a atenção atual da
teologia católica está voltada para a entrega das crianças não batizadas à
misericórdia divina. Enquanto algumas variedades de teologia evangélica vão
além dessa posição — algumas afirmam que as crianças que morrem estão
salvas; outras dizem que os filhos dos crentes estão salvos; outras, ainda, que as
crianças que morrem estão condenadas ao inferno por causa da culpa adâmica
decorrente do pecado original —, a análise cuidadosa dessa questão pela teologia
católica deve servir de advertência contra tais posicionamentos definitivos. Por
esse motivo, outras variedades de teologia evangélica nada dizem a respeito do
destino das crianças mortas. 80

A discussão precedente e a avaliação evangélica de casos extraordinários e de


sua relação com o batismo podem dar margem a mal-entendidos. Portanto, para
evitar tal confusão, é preciso dizer alguma coisa sobre essa ordenança e a
necessidade dela para a salvação. Muitos tipos de teologia evangélica fazem
distinção entre batismo como fundamento, ou causa eficiente, de salvação, e
batismo como meio, ou causa instrumental, de salvação. No primeiro sentido, a
teologia evangélica nega que o batismo seja fundamento, ou causa eficiente, de
salvação; pelo contrário, o fundamento da salvação — sua realização — é a obra
redentora de Deus por intermédio da morte, do sepultamento e da ressurreição de
Jesus Cristo exclusivamente. Assim, o batismo não é necessário à salvação nesse
primeiro sentido. No segundo sentido, muitas variedades de teologia evangélica
abraçam o batismo como um dos meios, ou causa instrumental, de salvação.
Juntamente com o arrependimento do pecado e a fé em Jesus Cristo (At 2.38-
44), o batismo é um meio divinamente apontado para a apropriação da salvação;
o batismo é necessário para a salvação nesse segundo sentido. O fato de que
possa haver, e de fato há, casos extraordinários em que o cristão não pode ser
batizado (e. g., martírio, morte prematura, o ladrão na cruz) não significa que
essas pessoas não se salvaram, mas isso também não diminui a importância do
batismo como meio instrumental de se apropriar da salvação. Muitas igrejas
evangélicas, obedecendo à ordenança da Grande Comissão para que batizem os
discípulos (Mt 28.18-20) e seguindo claros exemplos bíblicos (At 2.38), ensinam
as pessoas a se batizarem e insistem nisso. Embora não seja necessário à
salvação (no primeiro sentido), o batismo é um ato de obediência de apropriação
da salvação (no segundo sentido). 81

Uma última questão: a teologia católica propõe o batismo para quem quer que
não seja ainda batizado, e não permite o batismo de pessoas que já foram
batizadas em razão do caráter indelével do sacramento. Dada a natureza
permanente do sacramento, a teologia católica nega que os protestantes que
tenham sido batizados com o batismo cristão, e que queiram se converter ao
catolicismo, possam ser rebatizados. A teologia evangélica trata esse assunto de
diferentes maneiras. Em relação a quem pode receber o batismo, os pedobatistas
evangélicos geralmente restringem o batismo de alguma forma — por exemplo,
às crianças de pais crentes —, ao passo que os credobatistas evangélicos
limitam-no àqueles que possam apresentar uma profissão de fé crível. Sobre o
rebatismo, muitos tipos de teologia evangélica exigem das pessoas que foram
batizadas na Igreja Católica que sejam batizadas novamente para se tornarem
membros de uma igreja evangélica. Essa posição se deve ao fato de que (1) o
pedobatismo católico se equivoca ao acreditar que remove o pecado original e
produz a regeneração (portanto, é inválido), ou (2) todo tipo de pedobatismo
(católico, ortodoxo ou protestante) não é batismo verdadeiro. Nesse último caso,
as pessoas não são batizadas novamente porque o batismo infantil a que foram
submetidas não é considerado um batismo válido.
Em suma, a teologia e prática batismais católica e evangélica, embora tenham
alguns pontos em comum, são basicamente distintas dadas as diferentes
interpretações das passagens bíblicas que narram ou apresentam o batismo,
diferentes avaliações de precedentes históricos do batismo, diferentes
entendimentos dos significados e efeitos do batismo e muito mais.

O sacramento da confirmação (seção 2, capítulo 1,


artigo 2)
O segundo sacramento da iniciação cristã é a confirmação, também conhecida
nas igrejas do Oriente como “crismação, unção com o crisma, ou mirão, que
significa ‘crisma’”. Depois do batismo, “a recepção do sacramento da
82

confirmação é necessária para a plenitude da graça batismal. Com efeito, os


batizados ‘pelo sacramento da confirmação são mais perfeitamente vinculados à
igreja, enriquecidos com uma força especial do Espírito Santo’”, culminando
com uma obrigação missional maior. Na verdade, esse sacramento ratifica e
83
fortalece a graça batismal.
A base bíblica desse sacramento começa com as profecias do Antigo
Testamento sobre o Espírito Santo ungindo o Messias para sua obra de salvação
(e.g., Is 11.2; 61.1; cumprida em Lc 4.16-22). Jesus de Nazaré, concebido pelo
Espírito Santo, foi manifestado como Messias em seu batismo pela descida do
Espírito. De fato, Jesus viveu sua vida toda e se incumbiu de sua missão na
dependência do Espírito Santo, a quem o Pai lhe deu “sem medida” (Jo 3.34).
Além disso, durante seu ministério, Jesus prometeu um derramamento novo,
inédito e sem precedentes do Espírito (e.g., Lc 12.12; Jo 3.5-8; 7.37-39; 16.7-15;
At 1.4,5,8), uma promessa que “ele cumpriu primeiramente no Domingo de
Páscoa e depois de forma mais surpreendente no Pentecostes” (Jo 20.22; At 2.1-
4), quando a plenitude do Espírito foi derramada sobre “todo o povo
messiânico”. “A partir de então, os apóstolos, para cumprirem a vontade de
84

Cristo, comunicaram aos neófitos, pela imposição das mãos, o dom do Espírito
para completar a graça do batismo. [...] A imposição das mãos é justificadamente
reconhecida, pela tradição católica, como a origem do sacramento da
confirmação que, de certo modo, perpetua na igreja a graça do Pentecostes.” 85

A igreja primitiva expressou esse dom do Espírito por meio da confirmação


acrescentando a unção com óleo perfumado (crisma) à imposição de mãos. O
sinal da unção expressa e imprime uma marca espiritual, “o selo do Espírito
Santo. Um selo é um símbolo de uma pessoa, um sinal de autoridade pessoal ou
de propriedade de um objeto”. Cristo mesmo marca seus seguidores com o selo
86

do Espírito Santo, que é a garantia do seu pertencimento a Cristo, envolvimento


em seu serviço e a promessa de proteção divina (e.g., 2Co 1.21,22; cf. Ef 1.13;
4.30; Ap 7.2,3; 9.4).
Esse sacramento é celebrado com os seguintes ritos: antes da celebração da
confirmação, o óleo é consagrado pelo bispo como parte da Missa de Crisma da
Quinta-Feira Santa. A celebração em si “começa com a renovação das promessas
batismais e com a profissão de fé pelos confirmandos [i. e., os que serão
confirmados]”. No caso dos que foram batizados na infância, muitos anos
87

separam a ministração do batismo e da confirmação, mas no caso dos adultos


não há separação; eles são batizados e “recebem imediatamente a confirmação e
participam da eucaristia”. O bispo expressa a outorga do Espírito Santo
88

“impondo as mãos sobre todo o grupo de confirmandos” enquanto pronuncia


uma fórmula da qual faz parte a invocação “envia teu Santo Espírito sobre
eles”. O rito prossegue em sua essência: “O sacramento da confirmação é
89

conferido pela unção do santo crisma sobre a fronte, feita com a imposição da
mão, e por estas palavras: accipe signaculum doni Spiritus Sancti [recebe por
este sinal o Espírito Santo, o dom de Deus]”. A celebração termina com um
90
sinal de paz, que expressa e manifesta a plena comunhão com o bispo e com
91

outros fiéis.
O efeito do sacramento, claramente expresso e concretizado, “é o pleno
derramamento do Espírito Santo conforme um dia concedido aos apóstolos no
dia de Pentecostes”. Esse derramamento resulta em “um aumento e
92

aprofundamento da graça batismal”: um aprofundamento da filiação divina, uma


união mais firme com Cristo, um aumento dos dons do Espírito, um
fortalecimento do elo com a igreja, e o poder do Espírito para a missão
93

“publicamente e como um encargo oficial”. A exemplo do sacramento do


94

batismo, esse sacramento confere uma marca espiritual indelével e não pode ser
repetido.
Em relação aos beneficiários e ministros do sacramento, a confirmação pode e
deve ser concedida a todos os que foram batizados. De fato, como os três
sacramentos da iniciação cristã formam uma unidade, todos os batizados são
obrigados a participar da confirmação. Para os que foram batizados na infância,
a hora adequada é a da “idade da discrição”, ou entre os sete e os dezesseis anos
95

de idade. No caso dos adultos, esse sacramento acompanha o batismo e a


96

eucaristia. Sem a confirmação, “o batismo é certamente válido e eficaz, mas a


iniciação cristã continua incompleta”. A recepção do sacramento é precedida
97

pela preparação da catequese e do sacramento da penitência, que restaura os


confirmandos a um estado de graça e os deixa prontos para a recepção do
Espírito Santo. Um patrocinador da confirmação, preferencialmente um dos
padrinhos de batismo, proporciona ajuda espiritual para o confirmando. O
sacramento é ministrado normalmente pelo bispo, embora haja concessões em
que a celebração é feita por padres em situações de emergência (e.g., se um
confirmando estiver em situação de risco de morte).

Avaliação evangélica
Embora inúmeras variedades de teologia evangélica acolham a confirmação
como parte da preparação das pessoas para a conversão ou para o crescimento na
fé cristã, para nenhuma delas a confirmação é um sacramento. Conforme
dissemos acima, a razão para essa rejeição é que Jesus não a ordenou como rito a
ser ministrado pela igreja.
No âmago da teologia católica da confirmação encontra-se a interconexão
natureza-graça. Esse axioma enfatiza a concessão da graça por meio da natureza
(nesse caso, o óleo), que tem a capacidade de comunicar a graça, uma
capacidade que é concretizada pela consagração do óleo pela igreja. Essa graça,
infundida nos confirmandos, eleva ainda mais sua natureza (humana) para além
dos efeitos da graça concedida a ela por seu batismo. Com base nesse
entendimento, a graça batismal inicia o processo, remove o pecado original e faz
os batizados (na maior parte dos casos, crianças) adquirirem uma nova natureza
pela regeneração efetuada pelo Espírito. A graça batismal também os introduz na
igreja e os lança em missão por Cristo. Quando as crianças batizadas atingem a
idade da discrição, entre sete e dezesseis anos, uma infusão maior de graça é
necessária, e esse aumento de graça vem pelo sacramento da confirmação. Na
verdade, os termos usados pela teologia católica para descrever esse sacramento
enfatizam o aumento que ele confere aos que o recebem: ele
aumenta/aprofunda/aperfeiçoa a graça batismal, une os batizados mais
perfeitamente à igreja, enriquece-os com uma força especial por meio do pleno
derramamento do Espírito Santo, intensifica sua obrigação missional, ao mesmo
tempo que amplifica os dons do Espírito, aprofunda as raízes da filiação, une
mais firmemente a Cristo. A natureza quantitativa da graça e sua elevação da
natureza (humana) mediante a confirmação é evidente. 98

Essa interdependência natureza-graça já foi criticada aqui; portanto, não há


fundamento para esse sacramento. Outra crítica específica diz respeito à ideia de
que a graça é infundida nos batizados e nos confirmandos, mudando com isso a
natureza da sua jornada rumo à perfeição em amor. A graça, pelo contrário, é
imputada às pessoas, creditada em sua conta, de tal modo que elas se apresentam
perfeitas, revestidas da justiça de Jesus Cristo perante Deus. Consequentemente,
os termos que descrevem o sacramento que aumenta a substância divina ou o
poder divino não fazem sentido. Se os fiéis estão unidos a Cristo — identificados
com sua morte, seu sepultamento e sua ressurreição (Rm 6.3-5) —, como podem
eles estar mais unidos a Cristo? Se o fiel foi adotado como filho na família de
Deus, como pode ser mais adotado? Se ele se tornou membro do corpo de
Cristo, como pode se tornar mais membro? Se o fiel foi batizado por Jesus com o
dom do Espírito Santo (Jo 1.33; 1Co 12.13), como pode ele ter mais desse dom
com Cristo? Essas perguntas estão no âmago do questionamento da teologia
evangélica: a graça vista como substância divina ou poder infundido no fiel para
elevar sua natureza é um conceito bastante problemático.
A teologia evangélica detecta outros problemas com esse sacramento católico,
o mais importante dos quais é sua base bíblica frágil. Certamente, a unção do
99

Messias, Jesus de Nazaré, pelo Espírito Santo é bem atestada pela Escritura. De
igual modo a profecia de Cristo do derramamento do Espírito sobre os discípulos
de Cristo de uma maneira inédita, nova e sem precedentes, uma promessa que
foi cumprida no dia de Pentecostes. Contudo, a Escritura ressalta que o dom do
Espírito Santo é recebido na conversão, conferido pelo próprio Jesus. São as
seguintes as evidências disso: João Batista explicou que o Messias batizaria as
pessoas com o Espírito Santo (Lc 3.15-17); de fato, João identificou Jesus como
“aquele que batiza com o Espírito Santo” (Jo 1.33). No dia de Pentecostes,
juntamente com o Pai, Cristo derramou o Espírito sobre seus seguidores (At 2.1-
4,33), e esse mesmo dom foi recebido pelas três mil pessoas que ouviram a
mensagem de Pedro (v. 38). O apóstolo Paulo explica ainda que esse batismo
com o Espírito — que se aplica a todos os cristãos, uma vez que se trata de uma
experiência inicial que acompanha os outros atos de poder de Deus para a
salvação das pessoas — as introduz no corpo de Cristo, a igreja (1Co 12.13).
Consequentemente, todos os cristãos foram batizados com o Espírito como parte
de sua conversão. O fato de que enchimentos sucessivos e múltiplos do Espírito
(e.g., At 4.8,31; 13.9) ocorram e devam ser desejados para que haja revestimento
de poder no ministério não deve esvaziar a realidade de que todos os seguidores
de Cristo foram galardoados com o Espírito desde o início de sua jornada cristã.
E o fato de que ao cristão é ordenado que seja cheio do Espírito, guiado e
dominado por ele como modo de vida (Ef 5.18) não deve diminuir o fato de que
o dom do Espírito Santo foi concedido quando ele abraçou o evangelho de Jesus
Cristo.
Portanto, a teologia evangélica questiona a base bíblica para a afirmação da
teologia católica de que, depois do derramamento do Espírito Santo em
Pentecostes, “os apóstolos comunicaram aos neófitos, pela imposição das mãos,
o dom do Espírito para completar a graça do batismo”. Essa ideia depende da
100

interconexão Cristo-Igreja que coloca a Igreja Católica no papel de mediadora.


Já criticamos aqui esse importante axioma (cap. 1). A respeito de outras críticas
que podem ser feitas a esse respeito, a ideia de que os apóstolos comunicaram o
Espírito Santo pela imposição das mãos se baseia em dois eventos incomuns
narrados em Atos e que, de algum modo (e equivocadamente), se tornaram
paradigmáticos para a Igreja Católica. O primeiro caso foi depois da conversão
dos samaritanos: “Em Jerusalém, os apóstolos souberam que o povo de Samaria
havia recebido a Palavra de Deus e enviaram-lhes Pedro e João; os quais, tendo
descido, oraram por eles, para que recebessem o Espírito Santo, pois ele ainda
não havia descido sobre nenhum deles, mas haviam sido apenas batizados em
nome do Senhor Jesus. Então lhes impuseram as mãos, e eles receberam o
Espírito Santo” (At 8.14-17, grifo do autor). A teologia que se desenvolveu
101

dessa passagem é, infelizmente, o resultado de uma interpretação precária. O


versículo 16 é fundamental porque explica (a primeira palavra é “pois” ou
“porque”) a demora da recepção do Espírito Santo pelos samaritanos.
Explicações são necessárias somente em casos de eventos incomuns. Portanto,
quando Lucas apresenta uma razão para a imposição de mãos sobre os
samaritanos por Pedro e João, ele está enfatizando não um evento normal, mas
uma ocorrência anormal. A comunicação do Espírito Santo por meio da
imposição de mãos sobre os cristãos batizados recebe destaque porque é uma
experiência incomum, e não frequente. Por isso, não pode servir de paradigma
para a igreja hoje.
O segundo caso ocorreu quando Paulo encontrou alguns discípulos de João
Batista:
Perguntou-lhes: Recebestes o Espírito Santo quando crestes? Eles lhe responderam: Não. Nem sequer
ouvimos dizer que há Espírito Santo. Então ele lhes perguntou: Em que batismo fostes batizados,
então? E eles disseram: No batismo de João. Mas Paulo respondeu: João realizou o batismo do
arrependimento, dizendo ao povo que cresse naquele que viria depois dele, isto é, em Jesus. Quando
ouviram isso, foram batizados em nome do Senhor Jesus. Quando Paulo lhes impôs as mãos, o
Espírito Santo veio sobre eles, e eles começaram a falar em línguas e a profetizar. Eram uns doze
homens ao todo (At 19.2-7, grifo do autor).

É fundamental para a interpretação adequada dessa passagem a pergunta inicial


de Paulo (v. 2) que surgiu daquilo que o apóstolo detectou como falta ou
deficiência nesses discípulos de João Batista: “Recebestes o Espírito Santo
quando crestes?”. Sua resposta negativa chamou a atenção para o fato de que
esses homens não eram nem sequer cristãos, portanto como poderiam ter
recebido o Espírito? Consequentemente, a pergunta de Paulo representa a
experiência do cristão normal: quando alguém crê em Jesus Cristo, recebe o
Espírito Santo, um padrão que é confirmado nos exemplos precedentes de
conversão no livro de Atos. Portanto, esse episódio recebe destaque porque se
trata de um evento incomum, e não comum; não pode servir de paradigma para a
igreja de hoje.
Em relação à imposição de mãos pelos apóstolos para o recebimento do
Espírito (e, para ser mais exato, depois do batismo), embora em ambas as
passagens acima tenha sido esse o caso, esses são os dois únicos relatos em que
esse modelo se acha fundamentado. Isso significa que não se pode estabelecer
nenhum padrão definitivo com base nas narrativas de Atos. De fato, uma história
contraria claramente a ideia de um padrão estabelecido — a conversão de
Cornélio, sua família e seus amigos:
Enquanto Pedro dizia essas coisas [detalhes do evangelho; At 10.34-43], o Espírito Santo desceu
sobre todos os que ouviam a palavra. Os crentes que eram da circuncisão, todos os que tinham vindo
com Pedro, admiraram-se de que o dom do Espírito Santo também fosse derramado sobre os gentios;
porque os ouviam falar em línguas e engrandecer a Deus. Então Pedro disse: Será que alguém lhes
pode recusar a água para que não sejam batizados, estes que, como nós, também receberam o Espírito
Santo? E ordenou que fossem batizados em nome de Jesus Cristo. Então lhe suplicaram que ficasse
com eles durante alguns dias (At 10.44-48).

Nessa história de conversão, o Espírito Santo cai sobre os gentios enquanto


ouviam Pedro anunciar o evangelho, portanto não houve aqui imposição de mãos
para recebimento do Espírito. A vinda do Espírito sobre os gentios foi precedida
pelo seu batismo com água.
Para resumir, as narrativas de imposição de mãos pelos apóstolos em Atos
para a comunicação do dom do Espírito Santo sobre novos crentes depois do seu
batismo demonstram que não há nenhum padrão estabelecido de tal modo que
esses eventos constituíssem uma fórmula para o processo normal de iniciação
cristã. Contudo, o sacramento católico da confirmação apela ao livro de Atos em
busca de respaldo para o padrão normal de recebimento do Espírito Santo por
meio da imposição de mãos pela igreja algum tempo depois do batismo.
O desenvolvimento desse sacramento, em que a unção com óleo consagrado
foi acrescentada à imposição de mãos, também não tem base bíblica. Certamente
Jesus batiza o cristão com o Espírito Santo, que é descrito na Escritura como
selo da sua redenção (Ef 1.13,14; 4.30), marcando-os como pertencentes a Deus
com o Espírito como primícias (Rm 8.23) ou pagamento à vista (2Co 1.22; 5.5),
garantia de que eles um dia experimentarão a plenitude da salvação quando
Cristo voltar (1Pe 1.5). Além disso, a Escritura normalmente emprega “óleo”
para retratar a consagração a Deus e a seu serviço/misericórdia (e.g., Lv 8.12;
1Sm 16.13; Tg 5.14). Contudo, embora na Escritura haja diversas metáforas
tangíveis para o Espírito Santo — vento, água, fogo, pomba —, sua presença ou
ministério jamais são representados pelo óleo. Além disso, as diversas
102

teologias evangélicas que afirmam a perseverança do cristão genuíno na


salvação deparam com uma desconexão entre, por um lado, a afirmação da
teologia católica de que esse sacramento comunica uma marca indelével no fiel
e, por outro lado, sua negação de que o fiel persistirá necessariamente na
salvação o tempo todo até sua consumação. De forma bastante contundente, que
vantagem há numa marca indelével — sinal do Espírito que promete a plenitude
da salvação — se a garantia pode ser rompida?
Em suma, a teologia evangélica não considera a confirmação um sacramento.
Até mesmo as denominações evangélicas que ministram o rito da confirmação
concordam que não se trata de sacramento no sentido de conferir graça. Pelo
contrário, a confirmação é uma profissão pública da fé na qual os confirmandos
foram introduzidos por ocasião do batismo. Eles reconhecem perante a igreja a
obra da divina graça, que eles agora aceitam intencionalmente pela fé.
1
Edição em português: Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Loyola, 1999).
2
CCC 1212; a citação é de Paulo VI, constituição apostólica, Divinae consortium naturae (15 de agosto
de 1971), parágrafo 1. Os textos latinos estão disponíveis em:
http://www.vatican.va/holy_father/paul_vi/apost_constitutions/documents/hf_p-vi_apc_19710815_divina-
consortium_lt.html.
3
CCC 1213. Esse parágrafo se baseia em afirmações do Concílio de Florença (1314) e no Catecismo
Romano 2.2, 5.
4
CCC 1214.
5
CCC 1215.
6
CCC 1216.
7
Outros nomes associados a esse sacramento: graça, unção, revestimento, lavagem e selo, cf. Gregory of
Nazianzus [Gregório de Nazianzo], Oration 40.3-4 (NPNF2 7:360); CCC 1216.
8
CCC 1218.
9
CCC 1220.
10
CCC 1225; referências bíblicas de apoio: João 19.34; 1João 5.6-8; João 3.5.
11
CCC 1227; referências bíblicas de apoio: 1Coríntios 6.11; 12.13.
12
CCC 1228; referências bíblicas de apoio: 1Pedro 1.23 (cf. Ef 5.26); citação de Augustine [Agostinho],
Homilies on the Gospel of John 80.3 (NPNF2 7:344).
13
CCC 1229.
14
CCC 1230.
15
CCC 1231.
16
Ibidem.
17
CCC 1232.
18
Cf. discutiremos mais detalhadamente em breve, o Catechism destaca que “o batismo é ‘o sacramento
da fé’ de um modo concreto, uma vez que é a entrada sacramental à vida de fé” (CCC 1236).
19
CCC 1237.
20
CCC 1238.
21
CCC 1239.
22
CCC 1243.
23
CCC 1244.
24
CCC 1246; citação do cânon 864 do Código de Direito Canônico.
25
CCC 1247-1248. Esse período de formação prepara os catecúmenos — os que “já estão unidos à
igreja” e “já vivem com frequência uma vida de fé, esperança e caridade” — para o batismo, a confirmação
e a eucaristia (CCC 1249; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 14.3).
26
CCC 1250.
27
CCC 1252.
28
Ibidem.
29
CCC 1253.
30
CCC 1254.
31
CCC 1255.
32
CCC 1256.
33
CCC 1257.
34
CCC 1257 (grifo removido).
35
CCC 1258.
36
CCC 1259.
37
CCC 1260; citação do Concílio Vaticano II, Gaudium et spes 22.5; cf. Lumen gentium 16; Ad gentes 7.
Veja a discussão anterior dessa teologia do inclusivismo nas páginas 176 e 181.
38
CCC 1260.
39
CCC 1261.
40
CCC 1262.
41
CCC 1263 (grifo do autor).
42
CCC 1264.
43
CCC 1266.
44
CCC 1271.
45
CCC 1272.
46
“Nunca é lícito repeti-lo se tiver sido celebrado de forma válida, até mesmo por nossos irmãos cristãos
separados” (Per initiationis Christianae [24 de junho de 1973], 4 [VC II-2, 23]).
47
Ad totam ecclesiam (14 de maio de 1967), 13 (a) (VC II-1, 488).
48
Ibidem, 19 (VC II-1, 490).
49
CCC 1274; a citação é do Missal Romano, Oração Eucarística 1 (Cânon Romano), 97.
50
CCC 1214.
51
Parece faltar ao Novo Testamento uma classificação para os cristãos não batizados. Ele apresenta, em
vez disso, uma imagem segundo a qual todos os que creram em Cristo foram batizados (e.g., Gl 3.23-29).
Essa imagem só será um retrato preciso da universalidade do batismo se o rito for iniciatório.
52
E.g., Didache 9.5 (ANF 7:380).
53
Como o grego não empregava letras maiúsculas, há dúvidas se a frase deveria ser traduzida por
“nascido da água e do espírito”, em referência à realidade espiritual comunicada por Deus, que é espírito (Jo
4.24), ou “nascido da água e do Espírito”, em referência ao Espírito Santo. Não é uma questão crucial,
porque a obra do Espírito responsável por essa nova realidade espiritual se acha assinalada em 3.8.
54
Discutir outras interpretações comuns da água — em referência ao líquido amniótico no útero, ou
como metáfora de sêmen, no sentido de que a pessoa precisa nascer de novo física e espiritualmente —
levaria a discussão longe demais. Parece que nenhuma dessas interpretações encontra respaldo suficiente no
texto bíblico.
55
Os pontos apresentados foram adaptados de D. A. Carson, The Gospel according to John
(Leicester/Grand Rapids: Inter-Varsity Press/Eerdmans, 1991), p. 185-203.
56
Ibidem, p. 192.
57
Ibidem.
58
Ibidem, p. 194.
59
Ibidem.
60
Essa ausência de necessidade do batismo, porém, não o torna menos importante, conforme veremos.
61
Justin Martyr [Justino Mártir], First apology 61 (ANF 1:183); Augustine, On the forgiveness of sin,
and baptism 39[26] (NPNF1 5:30).
62
CCC 1227.
63
CCC 1228; referência bíblica: 1Pedro 1.23 (cf. Ef 5.26); citação de Augustine, Homilies on the Gospel
of John 80.3 (NPNF2 7:344).
64
Markus Barth, Ephesians 4–6: a new translation with introduction and commentary, The Anchor
Bible (Garden City: Doubleday, 1960), vol. 34A, p. 699.
65
Tertulian [Tertuliano], On baptism 18 (ANF 3:678).
66
Origen [Orígenes], Commentary on Romans 5.9.3, in: The Fathers of the Church: a new translation,
tradução para o inglês de Thomas P. Scheck (Washington: Catholic University of America Press, 2001), 2
vols., vol. 1: Origen, Commentary on the Epistle to the Romans, p. 367.
67
Origen, Homilies on the Gospel of Luke 14:5; citado em Jaroslav Pelikan, The christian tradition: a
history of the development of doctrine (Chicago/London: University of Chicago Press, 1971-1991), 5 vols.,
vol. 1, p. 291.
68
Calvin, Institutes 4.16.9 (LCC 21:1332) [edições em português: João Calvino, As institutas, tradução
de Waldyr Carvalho Luz (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), 4 vols.; e A instituição da religião cristã,
tradução de Carlos Eduardo Oliveira; José Carlos Estêvão (São Paulo: Ed. Unesp, 2008)].
69
A Didaquê (São Paulo: Paulus, 2014) prescreve que tanto o que batiza quanto o batizado jejuem antes
do batismo e proíbe a participação na ceia do Senhor dos que ainda não foram batizados (Didache 7 [ANF
7:379]; 9:5 [ANF 7:380]).
70
De fato, na Escritura os exorcismos são realizados em pessoas possuídas pelo demônio, e não naqueles
que estavam simplesmente sujeitos à influência demoníaca. A teologia católica promove o exorcismo em
associação com o batismo não porque julgue que os catecúmenos sejam possuídos pelo demônio antes de
serem batizados, mas porque, dizem, eles sucumbiram ao poder do demônio por causa dos seus pecados. A
teologia evangélica contesta a utilização do exorcismo nesses casos de menor importância.
71
É importante frisar que, de acordo com Pedro, não é o rito externo do batismo em si que salva
mediante um ato externo de purificação. Antes, o batismo associado a uma transação entre Deus e os que
são batizados — um apelo da parte deles em prol de uma boa consciência, ou em decorrência de uma boa
consciência — é o que os salva do juízo divino.
72
CCC 1253.
73
CCC 1260.
74
Ibidem.
75
Ibidem.
76
CCC 1257 (grifo removido).
77
De fato, se a teologia católica está errada em sua primeira afirmação — segundo a qual Deus vinculou
a salvação ao batismo —, que confiança isso instila no tocante à segunda afirmação — de que Deus não
está vinculado aos sacramentos?
78
Cf. dissemos anteriormente, embora a teologia católica reconheça as barreiras que Satanás, o pecado e
o mundo representam para o não evangelizado alcançar a salvação (Lumen gentium 16), ela não considera
esses obstáculos tão obstinadamente intransponíveis que, de algum modo, não possam ser vencidos por
alguns descrentes.
79
International Theological Commission, The hope of salvation for infants who die without being
baptized (19 de janeiro de 2007), parágrafos iniciais, disponível em:
http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/cti_documents/rc_con_cfaith_doc_20070419_un-
baptised-infants_en.html.
80
Essa incerteza analisada não deixa seus proponentes destituídos de palavras para dizer aos pais que
perderam um filho para a morte. O consolo por excelência dos sobreviventes de tais tragédias é o próprio
Deus (2Co 1.3-7), que se aflige quando seu povo é afligido (Is 63.9) porque conhece bem tais casos, e que é
também grande e poderoso o suficiente para suscitar esperança do sofrimento.
81
Para uma discussão mais ampla, veja Allison, SS, p. 357-60.
82
CCC 1289.
83
CCC 1285; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 11; cf. Ordo confirmationis, Introdução 2.
84
CCC 1287 (grifo removido).
85
CCC 1288; citação do papa Paulo VI, Divinae consortium naturae, 2, disponível em:
https://archive.org/stream/paulvisapostolic00cath/paulvisapostolic00cath_djvu.txt. Referências bíblicas
listadas são: Atos 8.15-17; 19.5,6; Hebreus 6.2.
86
CCC 1295 (grifo removido).
87
CCC 1298.
88
Ibidem.
89
CCC 1299. A oração de invocação provém da Ordo confirmationis 25.
90
CCC 1300; citação do papa Paulo VI, Divinae consortium naturae, 5, disponível em:
https://archive.org/stream/paulvisapostolic00cath/paulvisapostolic00cath_djvu.txt.
91
Um aperto de mão acompanhado da expressão “A paz do Senhor esteja sempre convosco”.
92
CCC 1302.
93
CCC 1303.
94
CCC 1305; citação de Thomas Aquinas, Summa theologica, pt. 3, q. 72, art. 5, resposta 2 [edição em
português: Tomás de Aquino, Suma teológica (São Paulo: Loyola, 2001), 9 vols.].
95
CCC 1307; citação do Código de Direito Canônico 891.
96
Cf. estabelecido pela Conferência dos Bispos Católicos dos EUA, 15 de novembro de 2000, de acordo
com o cânon 891 do Código de Direito Canônico, disponível em: http://www.usccb.org/beliefs-and-
teachings/what-we-believe/canon-law/complementary-norms/canon-891-age-for-confirmation.cfm.
97
CCC 1306.
98
CCC 1285, 1294, 1302, 1303, 1316 (grifo do autor).
99
Para uma discussão mais ampliada, veja Gregg R. Allison, “Baptism of and filling with the Holy
Spirit”, Southern Baptist Journal of Theology (Winter 2012): 4-20.
100
CCC 1288.
101
Em alguns círculos recebe o nome de doutrina da subsequência: o Espírito Santo batiza o cristão em
algum momento subsequente à sua conversão.
102
A única passagem bíblica em que a unção com óleo aparece associada ao Espírito Santo é 1Samuel
16.12,13, mas nesse caso o ato de ungir simboliza o reinado de Davi (de acordo com 1Sm 9.16; 10.1;
16.1,3; cf. 1Rs 1.39; 2Rs 9.1,3,6), e não a comunicação do Espírito.
8
A CELEBRAÇÃO DO MISTÉRIO
CRISTÃO
(segunda parte, seção 2, capítulo 1, artigo
3)
A eucaristia

O sacramento da eucaristia (seção 2, capítulo 1, artigo


3)
O terceiro sacramento da iniciação cristã, o que completa o ingresso na fé, é a
eucaristia. Sua descrição não economiza nos superlativos: a eucaristia é “fonte e
cume de toda a vida cristã”, para a qual convergem os outros seis sacramentos,
para não falar de todo o ministério e da missão da igreja. “Todo o tesouro
1

espiritual da igreja, isto é, o próprio Cristo”, está contido na eucaristia, que é


2

também “sinal eficaz e causa sublime da comunhão na vida divina e daquela


unidade do povo de Deus por meio da qual a igreja conserva sua existência”. 3

Por meio desse sacramento se chega à culminação da obra divina de salvação e


da obra humana de adoração ao Deus trino, uma liturgia terrena que se acha
unida à liturgia celestial por sua celebração em antecipação à vida eterna.
Esse sacramento é conhecido por vários nomes, o que reflete seus vários
aspectos. Ele é chamado de eucaristia, do grego εὐχαριστειν (eucharistein; Lc
22.19; 1Co 11.24), e εὐλογειν (eulogein; Mt 26.26; Mc 14.22), usado para narrar
a ação de graças de Jesus ao Pai por ocasião da Última Ceia. As palavras
também trazem à lembrança as obras divinas da Criação, salvação e santificação.
Ela é chamada de ceia do Senhor por causa da sua associação com a Última Ceia
de Jesus (1Co 11.20) e por ser a antecipação da festa das Bodas do Cordeiro na
Nova Jerusalém (Ap 19.9). Outro nome é partir o pão, em virtude da ação de
Jesus com os pães com que alimentou os cinco mil (Mt 14.19) e os quatro mil
(Mt 15.36), sua ação com os pães ázimos durante a Última Ceia (Mt 26.26; 1Co
11.24) e sua ação durante a aparição depois da ressurreição pela qual se deu a
conhecer a dois discípulos (Lc 24.30,31). A expressão foi também usada pelos
primeiros cristãos “para designar suas assembleias eucarísticas” (At 2.42,46;
20.7,11). O partir do pão “significava que todos os que comiam o pão partido,
4

Cristo, entravam em comunhão com ele e formavam com ele um corpo” (1Co
10.16,17). 5

O sacramento também é chamado de assembleia eucarística (synaxis) porque


é celebrado durante o ajuntamento dos fiéis. É um memorial da morte e
ressurreição de Cristo. Além disso, “como ele presentifica o sacrifício único de
Cristo, o Salvador, e inclui a oferta da igreja”, é chamado de santo sacrifício;
outros termos semelhantes — “santo sacrifício da missa, ‘sacrifício de louvor’,
sacrifício espiritual, sacrifício puro e santo” — enfatizam que ele “completa e
supera todos os sacrifícios da antiga aliança”. Os nomes santa e divina liturgia e
6

santos mistérios ressaltam seu papel central e poderoso na adoração da igreja; o


santíssimo sacramento — nome usado especialmente para a espécie preservada
no sacrário — chama a atenção para o fato de que se trata do sacramento dos
sacramentos. Ele é chamado de santa comunhão porque une o fiel a Cristo, de
7

cujo corpo e sangue eles compartilham para formar um corpo só (1Co 10.16,17).
Outros nomes: coisas santas, pão dos anjos, pão do céu, remédio da
imortalidade e viático. Por fim, o sacramento é chamado de santa missa, porque
8

o último elemento da liturgia é o momento em que os fiéis são despedidos ou


enviados (missio). 9

O Catechism of the Catholic Church explora os precursores da eucaristia


10

privilegiando os sinais do sacramento — o pão e o vinho: “No centro da


celebração da eucaristia temos o pão e o vinho que, pelas palavras de Cristo e
pela invocação do Espírito Santo, se tornam o corpo e o sangue do mesmo
Cristo”. Na Última Ceia, quando ele instituiu a ceia do Senhor, Jesus mesmo
11

tomou o pão e o cálice de vinho. Esses elementos “[se tornam] misteriosamente


o corpo e o sangue de Cristo, os sinais do pão e do vinho continuam a significar
também a bondade da criação”. Por causa desse simbolismo, durante o ofertório
12

— o momento litúrgico em que o pão e o vinho são apresentados a Deus antes da


sua consagração, acompanhado de orações e cânticos — são dadas graças a
Deus, que é o criador do pão e do vinho, “fruto da ‘obra de mãos humanas’, mas
acima de tudo ‘fruto da terra’ e ‘da videira’”. A oferta da igreja é prefigurada no
13

Antigo Testamento pela ação de Melquisedeque, que “trouxe pão e vinho” (Gn
14.18). Outras prefigurações veterotestamentárias: os pães ázimos do Êxodo, o
maná do deserto e o cálice da bênção na conclusão da Páscoa judaica.
Quanto às prefigurações do Novo Testamento, a multiplicação dos pães e os
cinco mil que foram alimentados (Mt 14.19), bem como os quatro mil (Mt
15.36), e o milagre da transformação da água em vinho nas bodas de Caná (Jo
2.11) foram precursores dos elementos eucarísticos. O discurso do “Pão da Vida”
de Jesus no Evangelho de João (6.25-71) é considerado o “primeiro anúncio
eucarístico”, com essa importante explicação: assim como o anúncio da
eucaristia por Jesus dividiu os discípulos, assim também o anúncio de sua paixão
iminente os escandalizou. Consequentemente, “a eucaristia e a cruz são pedras
de tropeço. É o mesmo mistério, e ele jamais cessa de ser motivo para divisão”. 14

Além disso, “receber em fé o dom da eucaristia é receber o Senhor mesmo”. 15

Conforme narrado nos Evangelhos Sinóticos e na Primeira Carta de Paulo aos


Coríntios, Jesus inaugurou a eucaristia durante a Última Ceia com seus
discípulos, uma festa de Páscoa que eles, judeus, celebravam anualmente. É
importante observar que ele “instituiu a eucaristia como memorial de sua morte e
ressurreição e ordenou a seus discípulos que a celebrassem até sua volta; ‘eles os
constituiu, desse modo, sacerdotes do Novo Testamento’”. Sua ordem “fazei-o
16

em memória de mim” não se refere apenas à lembrança dele e do seu nome:


“[essa ordenança] tem em vista a celebração litúrgica, pelos apóstolos e seus
sucessores, do memorial de Cristo, da sua vida, morte, ressurreição e da sua
intercessão junto do Pai”. Consequentemente, não se trata de uma experiência
17

subjetiva apenas — a memória de Cristo —, e sim de uma celebração objetiva


— o memorial de Cristo, conforme observado pela igreja desde o início (At
2.42,46). Os relatos históricos da celebração da eucaristia pela igreja primitiva
começam com a First apology [Primeira apologia] (c. 155), de Justino Mártir,
em que ele esboça os contornos básicos da celebração eucarística: leituras da
Palavra de Deus, pregação, orações, o sinal de paz, ofertas de ações de graças a
Deus pelo “pão e pelo cálice de água e vinho misturados”, a comunidade que
aclama “amém” e a distribuição do “pão ‘eucarístico’, do vinho e da água” pelos
ministros da eucaristia a todos os presentes e aos que estão ausentes. 18

* * *

Excurso: A celebração contemporânea do sacramento


da eucaristia
Hoje, o sacramento da eucaristia está estruturado em “duas grandes partes que
formam uma unidade fundamental [...] ‘um ato único de adoração’”: a liturgia 19

da Palavra e a liturgia da eucaristia. Portanto, “a mesa eucarística posta para nós


é a mesa da Palavra de Deus e do corpo do Senhor”. Essas duas partes
20

principais, e seus elementos correspondentes, são apresentadas em detalhes nos


parágrafos a seguir.
Antes do início da celebração, os fiéis se reúnem na assembleia eucarística.
Jesus Cristo é sua cabeça, seu sumo sacerdote e celebrante. Na pessoa de Cristo
Cabeça (in persona Christi Capitis) o bispo preside a cerimônia, ou seu
representante delegado, um padre, que também apresenta a homília depois das
leituras, recebe as ofertas do pão e do vinho e faz a oração eucarística. Outros
participantes, os quais têm papel crucial, são os leitores, os que se encarregam
das ofertas, os que servem a comunhão e os fiéis que participam com seu
“amém”.
A liturgia da Palavra consiste em três leituras: uma do Antigo Testamento,
uma do Novo Testamento (exceto os Evangelhos) e uma dos Evangelhos. Essas
leituras são seguidas de uma homília, que é uma exortação para que os fiéis
aceitem e vivam a Palavra de Deus, além de intercessõespor todas as pessoas
(conforme 1Tm 2.1,2).
A liturgia da eucaristia começa com o ofertório, ou a procissão em direção
21

ao altar e a apresentação do pão e do vinho. Esses elementos serão


posteriormente consagrados para o sacrifício eucarístico. As ofertas que serão
compartilhadas com aqueles que passam necessidades, a coleta, acompanham
essa oferta do pão e do vinho (1Co 16.1; 2Co 8.9). O “coração e ápice da
celebração” chega com a anáfora. O prefácio consiste na ação de graças a Deus
22

pela sua obra da criação, redenção e santificação. “Na epiclese, a igreja pede ao
Pai que envie o Espírito Santo” para transformar o pão e o vinho para que se
tornem o corpo e o sangue de Cristo. O sacerdote pede então especificamente:
23

“Ó Deus, dignai-vos, nós vos pedimos, de abençoar, reconhecer e aprovar esta


oferta em todos os aspectos; tornai-a espiritual e aceitável, para que se torne para
nós o corpo e o sangue do vosso amado Filho, nosso Senhor Jesus Cristo”. Em 24

seguida vem a recitação da narrativa da instituição, as palavras de Jesus durante


a Última Ceia quando ele instituiu a ceia do Senhor (Mt 26.26-29; Mc 14.22-25;
Lc 22.19,20). Pelo poder dessas palavras, a ação de Cristo e o poder do Espírito
Santo, o corpo e o sangue de Cristo se tornam “sacramentalmente presentes nas
espécies do pão e do vinho”. Quando o sacerdote diz: “Na noite em que ia ser
25

entregue”, ele eleva o pão sobre o altar e prossegue, “ele tomou o pão em suas
mãos [o sacerdote eleva os olhos], elevou os olhos a vós, ó Pai, deu graças, o
partiu e o deu a seus discípulos, dizendo [o sacerdote se curva discretamente]:
‘Tomai, todos, e comei: isto é o meu corpo, que será entregue por vós’”.
Expondo a hóstia consagrada aos fiéis, o sacerdote a deposita na patena (disco de
ouro ou de metal dourado, que serve para cobrir o cálice e receber a hóstia) e se
ajoelha em adoração. Em seguida, anuncia: “Do mesmo modo, ao fim da ceia”,
26

o sacerdote eleva o cálice sobre o altar e prossegue, “ele tomou o cálice em suas
mãos, deu graças novamente e o deu a seus discípulos, dizendo [o sacerdote se
curva discretamente]: ‘Tomai, todos, e bebei: este é o cálice do meu sangue, o
sangue da nova e eterna aliança, que será derramado por vós e por todos para
remissão dos pecados. Fazei isto em memória de mim’”. Expondo o cálice aos
fiéis, o sacerdote o deposita em seguida sobre o corporal (tecido de linho que
recobre o altar), ajoelhando-se em adoração. Em seguida, ele diz: “Eis o
27

mistério da fé”. 28

A anáfora [oração eucarística] reproduzida acima é seguida da anamnese e 29

do ofertório, em que a “igreja faz memória da paixão, ressurreição e regresso


glorioso de Cristo Jesus: e apresenta ao Pai a oferenda do seu Filho, que nos
reconcilia com ele”. O sacerdote diz: “Celebrando, pois, a memória da paixão
30

do vosso Filho, da sua ressurreição dentre os mortos e gloriosa ascensão aos


céus, nós, vossos servos, e também vosso povo santo, vos oferecemos, ó Pai,
dentre os bens que nos destes, o sacrifício perfeito e santo, o pão da vida eterna e
cálice da salvação”. As intercessões que se seguem ressaltam que “a eucaristia é
31

celebrada em comunhão com a igreja toda no céu e na terra”. O sacerdote


32

conduz os fiéis na recitação do Pai-Nosso, depois do que eles dão a paz uns aos
outros. O sacerdote então pega a hóstia, parte-a e coloca uma pequena parte dela
no cálice, dizendo: “Que a comunhão do corpo e sangue de nosso Senhor Jesus
Cristo nos conduza à vida eterna a nós que a recebemos”. A congregação diz:
33

“Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós.


Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós. Cordeiro
de Deus, que tirais o pecado do mundo, dai-nos a paz”. Ajoelhando-se, o
34

sacerdote expõe a hóstia elevando-a discretamente sobre a patena (ou sobre o


cálice) e diz: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. Felizes os
convidados para a ceia do Senhor”. O sacerdote e os fiéis oram juntos: “Senhor,
não sou digno de que entreis em minha morada, mas dizei uma só palavra e serei
salvo”. Diante do altar o sacerdote diz: “Que o corpo e o sangue de Cristo nos
35

guardem para a vida eterna”, comungando em seguida do corpo de Cristo. De


igual modo, ele toma o cálice e ora: “Que o sangue de Cristo nos conduza à vida
eterna” e o bebe. Ele oferece então a hóstia aos fiéis, dizendo “o corpo de
36

Cristo” antes de lhes servir. O cálice também é oferecido precedido pelas


palavras “o sangue de Cristo”. 37

Para concluir a liturgia, o sacerdote diz: “Ide em paz, o Senhor vos


acompanhe” (do lat. Ite, missa est). Conforme dissemos anteriormente, a palavra
“missa” é a razão pela qual a liturgia é chamada de missa, já que está implícita aí
uma “missão” (do lat., missio). O fiel, alimentado pela Palavra de Deus e pelo
corpo e sangue de Cristo durante a celebração da missa, é enviado em sua
missão neste mundo.
* * *
Vários temas fundamentais passam pela celebração da eucaristia: memorial,
sacrifício, ofertório e presença. De fato, esse sacramento celebra o “memorial do
seu [de Cristo] sacrifício”, em que os participantes oferecem ao Pai seus dons
criacionais do pão e do vinho que, “pelo poder do Espírito Santo e pelas palavras
de Cristo, se tornaram o corpo e o sangue de Cristo. Cristo se torna, de forma
real e misteriosa, presente”. Nessa estrutura trinitária, a eucaristia deve ser
38

tomada como trina realidade: ações de graças (ao Pai), sacrifício (do Filho) e
presença (pela Palavra e pelo Espírito). Em relação à primeira realidade, e em
39

sintonia com o sentido do termo grego, “a eucaristia é um sacrifício de ações de


graças e de louvor ao Pai [...] por tudo o que ele fez através da criação, redenção
e santificação”. 40

Sobre a segunda realidade, e em sintonia com o sentido da palavra


“anamnese”, “A eucaristia é o memorial da Páscoa de Cristo, a atualização e a
oferenda sacramental do seu único sacrifício”. Conforme ressaltamos
41

anteriormente, essa realidade não é apenas uma “lembrança” subjetiva “de


eventos passados” ou memória de Cristo; antes, trata-se de um memorial
objetivo de Cristo e de seu sacrifício, que é “atualizado: o sacrifício de Cristo
oferecido de uma vez para sempre por todos na cruz continua presente” por meio
do partilhamento da atemporalidade ou da eternidade da sua natureza divina. 42

Como a celebração eucarística é um memorial, a morte de Cristo não deve ser


simplesmente lembrada, e sim tornada presente na liturgia. Consequentemente,
trata-se de um memorial do seu sacrifício; portanto, a eucaristia em si mesma é
um sacrifício. Essa ideia é confirmada pelas palavras de Jesus quando a instituiu,
entendidas literalmente: “Isto é o meu corpo, que vai ser entregue por vós” e
“este cálice é a nova aliança no meu sangue, que vai ser derramado por vós”. 43

De fato, “Cristo dá aquele mesmo corpo que entregou por nós na cruz, aquele
mesmo sangue que ‘derramou por muitos em remissão dos pecados’”. Trata-se 44

concretamente de “um sacrifício porque reapresenta (torna presente) o sacrifício


da cruz, porque é dele o memorial e porque aplica o seu fruto”. Nessa 45

explicação, não há sinal algum de repetição da morte de Cristo na cruz infinitas


vezes. Pelo contrário,
O sacrifício de Cristo e o sacrifício da eucaristia são um único sacrifício: “É uma só e mesma vítima,
e aquele que agora se oferece pelo ministério dos sacerdotes é o mesmo que outrora se ofereceu a si
mesmo na cruz; só a maneira de oferecer é que é diferente”. E porque “neste divino sacrifício, que se
realiza na missa, aquele mesmo Cristo, que a si mesmo se ofereceu outrora de modo cruento sobre o
altar da cruz, agora está contido e é imolado de modo incruento...”.46

O sacrifício expiatório de Cristo realizado uma vez por todas na cruz do Calvário
há dois mil anos não está limitado no tempo àquele momento, mas é
reapresentado, ou presentificado, quando o sacerdote celebra a liturgia da
eucaristia.
Essa realidade sacrifical da eucaristia não se limita à obra sacrifical de Cristo,
mas inclui também o sacrifício da igreja quando ela participa da oferta de Cristo:
“Com ele, ela própria é oferecida integralmente. Ela une-se à sua intercessão
junto do Pai em favor de todos os homens. Na eucaristia, o sacrifício de Cristo
torna-se também o sacrifício dos membros do seu corpo”. De fato, a cada
47

celebração eucarística a ela se acham associados o papa, o bispo local, o


sacerdote que preside no lugar do bispo, os diáconos, todos os fiéis vivos, bem
como a virgem Maria e todos os santos que estão no céu. Esse ponto fica bem
evidente durante a celebração no momento em que o sacerdote oferece a
eucaristia “em nome de toda a igreja de modo incruento e sacramental”. “O
48

sacrifício eucarístico é também oferecido pelos fiéis defuntos, ‘que morreram em


Cristo e não estão ainda de todo purificados’, para que possam entrar na luz e na
paz de Cristo”. 49

Além de ações de graças e sacrifício, a terceira realidade eucarística consiste


na “presença de Cristo pelo poder da sua Palavra e do seu Espírito”. Ao
50

reconhecer que Cristo “está presente de diversas maneiras para sua igreja” —
por exemplo, na Palavra de Deus e quando ela ora —, o Catechism enfatiza que
“ele está presente [...] sobretudo na espécie eucarística” do pão e do cálice
consagrados. Isso acontece porque a maneira da presença de Cristo nesse
51

sacramento é única: “No santíssimo sacramento da eucaristia estão contidos,


verdadeira, real e substancialmente, o corpo e o sangue, conjuntamente com a
alma e a divindade de nosso Senhor Jesus Cristo”. Os advérbios usados nessa
52

afirmação são significativos: “Esta presença chama-se ‘real’ [...] porque é


substancial e porque por ela se torna presente Cristo completo, Deus e homem”. 53

Essa presença eucarística única de Cristo ocorre por meio da


transubstanciação. O termo tem origem em duas palavras em latim: trans
(mudança) e substantia (substância ou natureza; aquilo que torna alguma coisa
no que é). Transubstanciação é a mudança de substância do pão consagrado no
corpo de Cristo, e a mudança da substância do vinho consagrado no sangue de
Cristo. “É pela conversão do pão e do vinho no corpo e no sangue de Cristo que
Cristo se torna presente nesse sacramento.” O Catechism observa que tanto a
54

Tradição — por exemplo, João Crisóstomo e Ambrósio — quanto a Escritura


55

afirmam a transubstanciação. É significativo que o Concílio de Trento, apelando


às palavras da instituição da eucaristia ditas por Cristo, “resuma a fé católica, ao
declarar”:
Porque Cristo, nosso Redentor, disse que o que ele oferecia sob a espécie do pão era verdadeiramente
o seu corpo, e sempre se teve essa convicção na igreja de Deus [...] pela consagração do pão e do
vinho opera-se a conversão de toda a substância do pão na substância do corpo de Cristo nosso
Senhor, e de toda a substância do vinho na substância do seu sangue; a esta mudança, a Igreja
Católica chama, de modo conveniente e apropriado, transubstanciação.56

O Catechism faz três observações importantes em referência à


transubstanciação. A primeira delas diz respeito ao tempo e à natureza dessa
mudança: “A presença eucarística de Cristo começa no momento da consagração
e dura enquanto as espécies eucarísticas subsistirem”. Conforme explicamos
57

anteriormente, essa mudança ocorre quando o sacerdote faz a epiclese e recita a


narrativa da instituição do sacramento por Cristo, e a presença de Cristo
produzida por essa mudança é contínua, e não momentânea. Além disso, 58

“Cristo está presente todo em cada uma das espécies e todo em cada uma das
suas partes, de maneira que a fração do pão não divide Cristo”. Em outras 59

palavras, Cristo, o Deus-homem, não está presente apenas em sua natureza


divina, tampouco apenas em sua natureza humana, mas na totalidade de suas
naturezas divina e humana. Além disso, na totalidade dessas duas naturezas,
Cristo está presente no pão e em todos os seus grãos, bem como na totalidade de
sua natureza divina e humana, ele está presente no vinho e em todas as suas
gotas. Consequentemente, o fiel que participa da eucaristia não recebe nem mais
nem menos de Cristo se tomar a comunhão “em uma espécie” — isto é, se
receber a hóstia consagrada apenas, e não o vinho — ou se tomar a comunhão
nas duas espécies — isto é, se receber a hóstia consagrada e o vinho. Ao
participar da celebração eucarística, ele recebe o Cristo por inteiro. Por fim, se
restar alguma espécie consagrada depois que o sacramento tiver sido distribuído,
Cristo continua presente.
Essa presença contínua de Cristo nos elementos restantes suscita a adoração
contínua, que é o segundo ponto importante do Catechism no que diz respeito à
transubstanciação: “A Igreja Católica sempre prestou e continua a prestar este
culto de adoração que é devido ao sacramento da eucaristia não só durante a
missa, mas também fora da sua celebração: conservando com o maior cuidado as
hóstias consagradas, apresentando-as aos fiéis para que solenemente as venerem
e levando-as em procissão”. Na prática, portanto, toda hóstia consagrada que
60

sobra depois da distribuição do sacramento durante a missa é guardada no


sacrário — um recipiente sagrado dedicado a conservar os elementos
eucarísticos “localizado num local especialmente digno da igreja” —, ficando
reservada para dois propósitos: distribuição aos doentes (viático) e adoração
silenciosa pelo fiel diante do tabernáculo [ou sacrário]. 61

A terceira observação referente à transubstanciação diz respeito à sua


compreensão. Recorrendo a Tomás de Aquino, o Catechism afirma “que a
presença do verdadeiro corpo e do verdadeiro sangue de Cristo neste
sacramento, ‘não a apreendemos pelos sentidos, diz São Tomás, mas só pela fé,
que se apoia na autoridade de Deus’”. 62

Em suma, para a teologia católica a presença de Jesus Cristo no sacramento da


eucaristia se dá pela transubstanciação, uma doutrina rejeitada pela teologia
evangélica.
Em relação aos participantes no sacramento da eucaristia, o Catechism afirma
que todos os fiéis são convidados a ela — pelo próprio Cristo: “Em verdade, em
verdade vos digo: Se não comerdes a carne do Filho do homem, e não beberdes
o seu sangue, não tereis vida em vós mesmos” (Jo 6.53). Os que respondem ao
chamado de Cristo devem se preparar para a celebração, isto é, “aquele que tiver
consciência de um pecado grave deve receber o sacramento da reconciliação
antes de se aproximar da comunhão”. Por meio desse sacramento (a ser
63

discutido posteriormente), o fiel que tiver cometido pecado mortal e, portanto,


tiver perdido a graça divina, deverá se confessar a um padre, que o absolverá do
seu pecado, capacitando-o a participar mais uma vez do sacramento da
eucaristia. Os fiéis que estiverem em estado apropriado de graça, esses são
instados a participar da missa. De fato, o Catechism considera uma obrigação:
“A igreja impõe aos fiéis a obrigação de ‘participar na divina liturgia nos
domingos e dias de festa’ e de receber a eucaristia ao menos uma vez em cada
ano, se possível no tempo pascal, preparados pelo sacramento da
reconciliação”. Incentiva-se o fiel a participar diariamente da eucaristia.
64 65

A participação nesse sacramento proporciona inúmeros benefícios ao fiel. Ele


aprofunda a união com Cristo: concretamente, tal união “preserva, aprofunda e
renova a vida de graça recebida no batismo. Esse crescimento na vida cristã
precisa do alimento que lhe é dado na comunhão eucarística”. O sacramento
66

também separa o fiel do pecado por meio de dois valores específicos: ele
purifica dos pecados passados e preserva de pecados futuros. Em relação ao
primeiro valor, “a eucaristia não está ordenada ao perdão dos pecados mortais.
Isso é próprio do sacramento da reconciliação. O que é próprio da eucaristia é
ser o sacramento daqueles que estão na plena comunhão da igreja”. Assim, “tal
67

como o alimento corporal serve para restaurar as forças perdidas, assim também
a eucaristia fortifica a caridade que, na vida cotidiana, tende a enfraquecer-se; e
essa caridade vivificada apaga os pecados veniais [pecados menos graves que
ferem a graça, embora não a extingam]”. Em referência ao segundo valor, “pela
68

mesma caridade que acende em nós, a eucaristia preserva-nos dos pecados


mortais futuros”. Outro benefício é que “a eucaristia faz a igreja”, porque por
69

ela o fiel fica mais unido a Cristo e, portanto, unido em um corpo. Como
70
benefício final, o sacramento compromete a igreja com o pobre, porque
reconhece Cristo nele. É importante salientar que o volume de bons resultados
71

para o fiel depende da vida e da atitude dos participantes: “Assim como a paixão
de Cristo, esse sacrifício, embora oferecido a todos, ‘não tem efeito algum,
exceto nos que se acham unidos à paixão de Cristo pela fé e pela caridade [...]. A
essas coisas ele traz um benefício maior ou menor na proporção da sua
devoção’”. 72

O Catechism conclui sua apresentação do sacramento da eucaristia com uma


reflexão sombria do estado atual da sua celebração e expressão de esperança no
tocante à sua celebração na era por vir. No que diz respeito à sua reflexão, o
Catechism lamenta o estado atual das “divisões na igreja que rompem a comum
participação na mesa do Senhor”. Tal tristeza é expressa em relação às igrejas
73

ortodoxas “que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica”; no


entanto, possuem o verdadeiro sacramento eucarístico e o celebram com amor. 74

Um sentimento de tristeza maior aparece em relação às comunidades eclesiais


protestantes. Estas “não conservaram a genuína e íntegra substância do mistério
eucarístico, sobretudo por causa da falta do sacramento da ordem”, que é
necessária à sucessão apostólica e à administração adequada dos sacramentos,
entre eles a eucaristia. Consequentemente, “a intercomunhão eucarística com
essas comunidades não é possível para a Igreja Católica”. Essa prescrição
75

significa que os protestantes/evangélicos estão proibidos de participar dos


elementos da eucaristia na missa católica. 76

Em relação àquilo que espera, o Catechism saúda a eucaristia como


“antecipação da glória celestial” da qual a igreja participará quando Cristo
retornar e celebrar o sacramento no reino do Pai que ele (Cristo) estabelecerá
(Mt 26.29; cf. Lc 22.18; Mc 14.25). Em seguida, e só então, o Senhor que “agora
vem pela eucaristia”, que está no meio da igreja, estará presente não mais de
maneira “velada”, mas em glória plena, para que o fiel o veja face a face. Nesse
ínterim, a igreja celebra a eucaristia em esperança, orando “Maranata!” (“Vem,
Senhor Jesus!”), ao mesmo tempo que alimenta o fiel “com o alimento que nos
faz viver para sempre em Jesus Cristo”. 77

Avaliação evangélica
O fato de a Igreja Católica proibir os protestantes/evangélicos de participarem do
sacramento da eucaristia chama a atenção para a grande brecha entre a teologia
católica e a teologia evangélica em relação a esse tema. De fato, talvez não seja
exagero dizer que esse sacramento constitui uma das duas divergências mais
importantes entre as duas teologias. Consequentemente, mesmo que haja alguma
semelhança entre o sacramento católico da eucaristia e os vários tipos de
celebrações evangélicas dessa ordenança, essas semelhanças — por exemplo, os
elementos do pão e do vinho, a recitação da narrativa da instituição da ceia, a
solenidade e a regularidade da observação, as ações de graças no momento da
celebração — são, na melhor das hipóteses, semelhanças familiares externas.
A crítica da teologia evangélica a esse sacramento se concentra nos seguintes
tópicos: a interpretação sacramental do discurso do “Pão da Vida” de Jesus (Jo
6); as prefigurações da eucaristia no Antigo e no Novo Testamentos; o dogma da
transubstanciação; a ideia de tornar presente o sacrifício de Cristo por meio do
partilhamento na eternidade ou da atemporalidade de Deus daquele evento; a
participação da igreja na oferta de Cristo; a infusão de graça por meio do
sacramento; a adoração contínua de Cristo presente nas hóstias consagradas e
não consumidas guardadas no sacrário; e a relação desse sacramento com o
sacramento da penitência.
Interpretação sacramental do discurso do “Pão da Vida”
O entendimento sacramental do discurso do “Pão da Vida” de Jesus em João
6.22-58, uma interpretação que é crucial para a doutrina da teologia católica da
presença real de Cristo no sacramento da eucaristia, é extremamente improvável.
Na primeira parte do seu discurso (v. 22-48), Jesus enfatiza a necessidade de fé
nele para que haja salvação:

A obra de Deus é esta: Crede naquele [o Filho] que ele [o Pai] enviou (v.
29).
Porque esta é a vontade de meu Pai: que todo aquele que vê o Filho e nele
crê tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia (v. 40).
Em verdade, em verdade vos digo: Quem crê tem a vida eterna (v. 47).

Na segunda parte do discurso (6.49-58), Jesus passa a empregar uma metáfora


em que se vale de expressões como “comer sua carne” e “beber seu sangue”:

Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém comer deste pão, viverá
para sempre (v. 50).
Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém comer deste pão, viverá
para sempre; e o pão que eu darei pela vida do mundo é a minha carne (v.
51).
Em verdade, em verdade vos digo: Se não comerdes a carne do Filho do
homem, e não beberdes o seu sangue, não tereis vida em vós mesmos (v.
53).
Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna; e eu o
ressuscitarei no último dia (v. 54).
Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu
nele (v. 56).
Assim como o Pai, que vive, me enviou, e eu vivo por causa do Pai, assim
quem de mim se alimenta também viverá por minha causa (v. 57).
Este é o pão que desceu do céu; não é como o caso de vossos pais, que
comeram o maná e morreram; quem comer este pão viverá para sempre (v.
58). (Todos os grifos são do autor.)

Uma interpretação evangélica corriqueira do discurso de Jesus em que ele se


apresenta como “Pão da Vida” seria mais ou menos assim: na primeira parte,
Jesus chama a atenção para a necessidade de fé nele mesmo — o que foi enviado
pelo Pai, aquele que se sacrificará pelo mundo — para se alcançar a vida eterna.
Na segunda parte, Jesus “emprega uma metáfora contundente que torna o ensino
dos primeiros versículos mais vívidos, mas que dificilmente podem ser usados
para introduzir um sentido fundamentalmente novo (e ‘sacramental’)”. Há 78

várias razões para isso: conforme ele fez na primeira parte do seu discurso (“Eu
sou o pão da vida”; v. 35,48), Jesus se apresenta na segunda parte como “pão
vivo” (v. 50,51). Ele explica posteriormente o que quis dizer com a metáfora do
pão: “E o pão que eu darei pela vida do mundo é a minha carne” (v. 51). Embora
essa expressão lembre suas palavras de instituição da ceia (“Isto é o meu corpo”;
Mt 26.26), Jesus usa a palavra “carne” (do gr., σαρξ; sarx), e não a palavra
“corpo” (do gr., σωμα, soma), conforme se lê na narrativa institucional.
Contudo, uma melhor associação é a que se encontra no prólogo do
Evangelho de João: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1.14). O
Verbo de Deus (Jo 1.1,2), o Filho que existe desde toda a eternidade, se
encarnou, assumiu a carne humana (toda a natureza humana, e não apenas o
corpo); como Deus-homem encarnado, “Jesus pode oferecer sua ‘carne’ pela
vida do mundo”. Este é o sacrifício de Jesus: não seu corpo presente no pão da
79

eucaristia, mas seu eu encarnado na cruz. Contudo, ele insiste muito,


negativamente, que sem comer sua carne, ninguém tem a vida eterna (6.53), e,
positivamente, que todo aquele que a comer, tem a vida eterna (v. 54). Além
disso, Jesus diz ainda que é preciso beber seu sangue (v. 53,54). Não é essa,
portanto, uma terminologia sacrifical que aponta para o pão e o cálice da
eucaristia?
É preciso cautela pelos seguintes motivos: em primeiro lugar, o paralelismo
entre a afirmação de Jesus “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem
a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia” (v. 54) e sua afirmação anterior
“Todo aquele que vê o Filho e nele crê [tem] a vida eterna; e eu o ressuscitarei
no último dia” (v. 40) salienta o fato de que a estratégia adequada de
interpretação consiste em compreender que “o primeiro é maneira metafórica de
se referir ao último”. Portanto, na primeira parte do discurso, Jesus fala
80

diretamente sobre crer nele para a vida eterna, culminando com a ressurreição no
último dia. Na segunda parte, ele repete metaforicamente a primeira ideia, agora
se referindo à sua carne, que deve ser comida, e ao seu sangue, que deve ser
bebido, culminando com a ressurreição. Tomar essa expressão metafórica como
referência ao pão e ao cálice da eucaristia torna o sacramento necessário à
salvação, contradizendo assim a ênfase de Jesus na fé mencionada na parte
anterior do seu discurso. Em segundo lugar, quando Jesus diz que, no último dia,
ele ressuscitará pessoas que o tiverem consumido, “prova que ele não acredita
que comer sua carne e beber seu sangue confiram imediatamente ressurreição/
imortalidade”. Contudo, é isso precisamente o que a teologia católica da
81

eucaristia sustenta. De fato, um dos nomes da eucaristia é “remédio da


imortalidade”. Em terceiro lugar, o comentário posterior de Jesus ao seu
82

discurso — “O Espírito é o que dá vida, a carne não serve para nada; as palavras
que eu vos tenho falado são espírito e vida” (v. 63) — adverte contra uma
interpretação sacramental do discurso. Claramente, “carne” nessa passagem não
se refere à encarnação de Jesus, que vale efetivamente para tudo no que diz
respeito à vida eterna. Pelo contrário, “é impossível não ver em ‘carne’ uma
referência direta à discussão anterior e, portanto, uma rejeição a toda
interpretação essencialmente sacramental. Contudo, se a carne não dá vida, o que
dá?”. Jesus diz que o Espírito Santo é quem dá vida. Tal afirmação vai ao
83

encontro da apresentação do Espírito e de sua obra no Antigo Testamento (e.g.,


Gn 1.2), reflete a explicação anterior de Jesus a Nicodemos de que o Espírito é
responsável pelo novo nascimento (Jo 3.1-15) e será repetida posteriormente
quando Jesus convidar os que têm sede para que bebam de “rios de água viva”,
uma referência ao Espírito Santo que viria para dar vida depois da morte,
ressurreição e ascensão de Jesus (7.37-39). Embora esse acontecimento ainda
fosse futuro, Jesus afirma agora que suas palavras são “espírito” (“elas são o
produto do Espírito que dá vida”) e “vida” (as palavras de “Jesus, corretamente
compreendidas e absorvidas, geram vida”). 84

Por consequência, a teologia evangélica não abraça a interpretação católica do


discurso de Jesus sobre o “Pão da Vida” como base para o sacramento da
eucaristia.
Prefigurações da eucaristia
Em relação às prefigurações desse sacramento na Escritura, o único tipo
veterotestamentário que parece oferecer algum prenúncio da eucaristia é a oferta
de Melquisedeque a Abraão (Gn 14.18). Essa prefiguração sozinha tem
elementos do pão e do vinho. Contudo, o fato de que o Novo Testamento não
recorre à ação de Melquisedeque como antecipação da eucaristia nos serve de
advertência para que não atribuamos importância demais à sua oferta de
alimentos simples e comuns. Em relação a outras prefigurações do Antigo
Testamento, os pães ázimos do Êxodo são usados explicitamente na Escritura
para simbolizar a necessidade de um rompimento definitivo do povo de Israel
com o pecado (Êx 12.14-20), tanto quanto a necessidade de um rompimento
semelhante por parte da igreja (1Co 5.6-8), mas não há ligação alguma com um
sacrifício pelo pecado (representado pelo cordeiro pascal; Êx 12.1-13). Em vez
de prenúncio de alguma coisa por vir, o maná do céu foi dado ao povo de Israel
para que Deus pudesse “[prová-lo e ver] se anda ou não conforme a minha lei”
(Êx 16.4). E quando o público que tinha diante de si fez referência ao maná,
Jesus pareceu enfatizar a descontinuidade entre o maná e o pão que ele
ofereceria — isto é, ele mesmo (Jo 6.31-35,48-51). Por fim, o cálice da bênção
da Festa da Páscoa não era um elemento daquela celebração no Antigo
Testamento, e sim um desdobramento posterior do judaísmo.
Quanto às prefigurações do Novo Testamento, a multiplicação dos pães por
Jesus quando ele alimentou cinco mil pessoas (Mt 14.19) e outras quatro mil
(15.36) parece estranhamente associada ao sacramento, uma vez que ambos os
atos de manifestação de poder tiveram como elementos pães e peixes, e não pão
e vinho. Na verdade, os principais itens antecipatórios para os quais o Catechism
chama a atenção consistem na ação de graças e no partir do pão por Jesus (14.19;
15.36). Contudo, a bênção que ele ofereceu certamente fazia parte da tradição
judaica antes das refeições, e o pão por ele partido era uma necessidade não para
simbolizar seu corpo partido (conforme quer o pão eucarístico), mas para dividir
os poucos pedaços que lhe haviam sido dados, de modo que ele pudesse
distribuir o pão às multidões famintas. A importância tipológica dessas ações
parece bastante forçada. Além disso, não fica claro de que maneira o milagre da
transformação da água em vinho nas bodas de Caná (Jo 2.11) seria um prenúncio
da eucaristia.
Em suma, parece que a ênfase dada pela teologia católica a essas
prefigurações frágeis da celebração da eucaristia é uma função da estratégia
interpretativa católica que busca encontrar múltiplos e misteriosos significados
ocultos nas passagens bíblicas, em vez de preferir uma sólida base escriturística
para esse sacramento. Para a teologia evangélica, o fato de que Jesus instituiu a
eucaristia como um dos dois ritos da nova aliança entre Deus e seu povo, a
igreja, e o fato de que a Escritura apresenta essa instituição do Senhor (e.g., Mt
26.26-29) e dá instruções sobre como celebrar essa ordenança (1Co 10.14-22;
11.17-34), constituem respaldo bíblico suficiente.
O dogma da transubstanciação
Implícita nessa crítica à interpretação que a teologia católica faz do discurso de
Jesus em que ele se apresenta como “Pão da Vida” e a dívida dessa teologia para
com prefigurações frágeis que respaldem biblicamente o sacramento da
eucaristia, vamos encontrar a crítica da teologia evangélica à transubstanciação
como explicação para a presença de Jesus Cristo quando a igreja celebra esse
sacramento. Em relação à crítica que a teologia evangélica faz de modo geral à
transubstanciação, ela nos remete à crítica anterior que fizemos da interconexão
Cristo-Igreja: o Cristo total — tanto a cabeça quanto o corpo, a Igreja Católica
como extensão da encarnação de Cristo — está presente aqui e agora. Para a
teologia católica da eucaristia, Cristo, o Deus-homem, não está presente em sua
natureza divina apenas, tampouco em sua natureza humana apenas, mas na
totalidade de sua natureza divina e humana. A teologia católica afirma tal
presença eucarística de Cristo porque o sistema católico está fundamentado no
axioma da interconexão Cristo-Igreja. Conforme a crítica que já fizemos
anteriormente, esse conceito tem uma visão equivocada da ascensão (Cristo, em
sua natureza humana, deixou a terra e foi para o céu; At 1.9-11), da sessão de
Cristo (em relação à sua natureza humana, Cristo se sentou e continua
85

assentado à mão direita do Pai; e.g., Rm 8.34), de sua ausência da terra (no
tocante à sua natureza humana, Cristo não está presente aqui e agora, mas enviou
seu Espírito Santo para tomar seu lugar; e.g., Jo 14.26; 16.7) e do seu futuro
retorno (que sentido pode ter essa volta de Cristo à terra se ele já está presente
aqui na plena forma do seu ser, inclusive em sua natureza humana?). A crítica da
teologia evangélica a esse axioma da interconexão Cristo-Igreja como
fundamento da presença eucarística de Cristo — “No santíssimo sacramento da
eucaristia estão contidos, verdadeira, real e substancialmente, o corpo e o
sangue, conjuntamente com a alma e a divindade de nosso Senhor Jesus Cristo e,
por conseguinte, Cristo completo” — significa que a transubstanciação também
86

é criticada.
Há outras razões específicas para a rejeição da transubstanciação por parte da
teologia evangélica. Se fizermos um ligeiro apanhado histórico (o que o
Catechism não faz), veremos que a transubstanciação foi proclamada posição
oficial da Igreja Católica no Quarto Concílio de Latrão (1215), tendo Tomás de
Aquino (1225-1274) providenciado os sustentáculos filosóficos da doutrina.
Aquino recorreu à filosofia de Aristóteles, concretamente à distinção entre
substância — essência ou natureza que existe por si mesma (e não em outra
coisa) — e acidente — características ou atributos que não se acham em seu
âmago e que, portanto, podem ser perdidas sem que se perca a coisa em si.
Alguns desses acidentes podem ser percebidos pelos sentidos. Mantendo-se essa
distinção, Aquino propôs o seguinte: no caso do pão e do vinho eucarísticos,
embora os acidentes continuem os mesmos — o pão e o vinho ainda se parecem,
têm aroma e sabor de pão e vinho —, a substância do pão é transformada no
corpo de Cristo e a substância do vinho é transformada no sangue de Cristo. Essa
mudança de substância é chamada de transubstanciação. Em última análise,
Aquino apelou ao poder divino para explicar esse milagre:
Ora, Deus é o ato infinito. Por isso, sua ação se estende a toda a natureza do ser. Portanto, ele não só
pode realizar a conversão formal de modo que as diversas formas se sucedam num mesmo sujeito,
mas também a conversão de todo o ser, de modo que toda a substância de um ser se converta em toda
a substância de um outro. E isso se realiza, portanto, neste sacramento pelo poder divino. Com efeito,
toda a substância do pão se converte em toda a substância do corpo de Cristo, e toda a substância do
vinho, em toda a substância do sangue de Cristo. Por isso, esta conversão não é formal, mas
substancial. Não se classifica entre as diversas espécies de movimento natural, mas pode-se chamar
com o nome apropriado de “transubstanciação”.87

Aquino foi determinante para o desenvolvimento e a explicação histórica desse


dogma.
A teologia evangélica apresenta quatro críticas a esse desenvolvimento e
explica: em primeiro lugar, o dogma da transubstanciação é de origem tardia;
conforme se queixou Martinho Lutero, a igreja tinha caminhado bem por cerca
de 1.200 anos sem ele, o que levantava suspeitas em torno da transubstanciação
e a tornava desnecessária. Em segundo lugar, a doutrina tem fundamentos
88

filosóficos, e não bíblicos, e por isso ela não pode se impor à consciência do fiel.
Conforme Lutero objetou: “O que é afirmado sem as Escrituras ou revelação
provada pode ser considerado uma opinião, mas não deve ser crido”. Em 89

terceiro lugar, e em sintonia com a segunda crítica, a distinção entre substância e


acidentes, e o que ocorre a ambas as realidades durante a eucaristia, não parece
encontrar respaldo na filosofia aristotélica. Quanto à quarta crítica, sem um
90

respaldo bíblico claro e substancial do suposto poder de Deus para realizar esse
milagre, a teologia evangélica se recusa a abraçar a transubstanciação.
Contudo, embora se coloque de maneira uniforme contra a ideia católica da
eucaristia, a teologia evangélica não tem apenas uma única visão que lhe sirva de
alternativa, mas várias. Embora a teologia católica critique asperamente as
91

visões evangélicas desse sacramento, a ideia de transubstanciação que ela


apresenta não é uma alternativa viável (pelas razões apresentadas acima). A
exemplo de sua congênere católica, a teologia evangélica lamenta a divisão em
torno da ceia do Senhor e recomenda um estudo e um diálogo mais
aprofundados entre as posições conflitantes. A realidade, porém, é que tal
discordância persistirá até a volta de Cristo, e a teologia evangélica não vê na
teologia católica uma solução com lastro bíblico para a divisão existente.
Presentificação do sacrifício de Cristo
A doutrina da transubstanciação da teologia católica se acha intimamente
associada à ideia de presentificação [tornar presente] do sacrifício de Jesus
Cristo quando se celebra o sacramento da eucaristia. O Cristo total, tanto sua
natureza divina quanto humana, está presente na eucaristia, e o sacrifício
expiatório definitivo do Deus-homem na cruz do Calvário há dois mil anos é
presentificado de tal modo que o sacramento é verdadeiramente propiciatório,
expiando o pecado e aplacando, consequentemente, a ira de Deus. A explicação
desse fenômeno pela teologia católica é que a obra de Cristo na cruz participa do
atributo divino da eternidade (Deus sempre existe), ou atemporalidade (Deus não
tem limitações temporais). Como resultado dessa participação, o sacrifício
expiatório único de Cristo não é limitado pelo tempo àquele momento, mas é
reapresentado, ou presentificado, quando a liturgia da eucaristia é celebrada.
A teologia evangélica rejeita essa explicação porque lhe falta lastro bíblico.
Na verdade, ela se baseia em uma interpretação equivocada da Escritura, de
modo especial na instituição da ceia por Jesus por meio das palavras “Isto é o
meu corpo [...]. Isto é o meu sangue da aliança” (Mt 26.26,28). Ao interpretar
literalmente essas frases, a teologia católica afirma que Jesus Cristo, como
vítima sacrifical, está sempre presente no momento da ministração da eucaristia.
Contudo, essa é uma interpretação errônea.
Em primeiro lugar, é preciso notar que não é o pão que está em destaque na
instituição da ceia por Jesus, mas o pão que ele partiu. Essa ação constitui um
símbolo poderoso que aponta para além de si mesma em direção ao corpo
partido de Cristo na cruz. Em segundo lugar, não é o vinho o centro da atenção
na instituição feita por Jesus, e sim o cálice de vinho que é “derramado” (“Este
cálice [...] derramado em favor de vós”; Lc 22.20). Essa ação é um símbolo
poderoso que aponta para além do derramamento do sangue de Cristo na cruz
pelo perdão dos pecados (Mt 26.28) e o estabelecimento da nova aliança (Lc
22.20; 1Co 11.25). Em terceiro lugar, a distribuição do pão e do vinho entre os
discípulos, com instruções para que peguem e comam o pão e bebam o vinho do
cálice, encontra uma resposta no ato de comer e beber por parte dos discípulos.
Essas ações constituem um símbolo poderoso da realização da graça vindoura de
Cristo da salvação e da resposta de fé de seus seguidores à sua obra na cruz. Em
quarto lugar, essas ações simbólicas chamam a atenção para o fato de que as
palavras de Jesus não podem ser tomadas literalmente. O pão não poderia ter
sido o corpo físico de Jesus quando ele instituiu a ceia. Como poderia sê-lo, uma
vez que o corpo ainda não fora partido na cruz? O vinho não poderia ter sido o
sangue físico de Jesus quando ele instituiu a ceia. Como poderia ter sido, uma
vez que esse sangue ainda não havia sido derramado na cruz? Quando Jesus deu
o pão e o cálice a seus discípulos com instruções ao instituir a ceia, o pão e o
vinho não poderiam ter sido seu corpo e seu sangue. Como poderiam ter sido,
uma vez que ele não havia realizado ainda o perdão de pecados na cruz e
inaugurado a nova aliança em seu sangue? Quando os discípulos de Jesus
pegaram e comeram o pão e beberam do cálice quando ele instituiu a ceia, esses
elementos não poderiam ter sido seu corpo e seu sangue. Como poderiam ter
sido, dado que os discípulos ainda não haviam se apropriado da obra de Jesus na
cruz? Uma interpretação literal das palavras de instituição de Jesus não é
plausível. Portanto, é desnecessário invocar a eternidade divina ou a
atemporalidade divina para explicar a reapresentação da obra da cruz de Cristo.
Se tal explicação não é necessária para a celebração original da eucaristia,
tampouco é necessária para as celebrações eucarísticas que se seguiram e que
são realizadas atualmente.
Além disso, para a teologia evangélica a discussão de Paulo a respeito da ceia
do Senhor não dá respaldo à presença transubstanciada de Jesus Cristo e à
reapresentação do seu sacrifício nesse sacramento. Duas passagens do apóstolo
92

são fundamentais. A primeira delas consiste em duas questões retóricas que


Paulo faz à igreja de Corinto: “Acaso o cálice da bênção que abençoamos não é
a comunhão do sangue de Cristo? Acaso o pão que partimos não é a comunhão
do corpo de Cristo?” (1Co 10.16). O cálice abençoado não é o sangue de Cristo;
o pão partido não é o corpo de Cristo. Antes, a participação em seu sangue e em
seu corpo é o que interessa ao apóstolo. Não há sinal algum de transubstanciação
ou de reapresentação atemporal. O que Paulo enfatiza é a participação, e não o
sacrifício.
A segunda passagem adverte quanto ao abuso da ceia do Senhor pela igreja de
Corinto. Imediatamente depois de narrar a tradição da ceia do Senhor conforme
ele a havia recebido (1Co 11.23-25), Paulo explica: “Porque todas as vezes que
comerdes deste pão e beberdes do cálice proclamais a morte do Senhor, até que
ele venha. Por essa razão, quem comer do pão ou beber do cálice do Senhor de
maneira indigna será culpado de pecar contra o corpo e o sangue do Senhor.
Examine, pois, o homem a si mesmo, e dessa forma coma do pão e beba do
cálice. Pois quem come e bebe sem ter consciência do corpo do Senhor, come e
bebe para sua própria condenação. Por causa disso há entre vós muitos fracos e
doentes, e muitos que já morreram” (1Co 11.26-30). Vários pontos aqui
merecem consideração. O primeiro deles é que Paulo chamou a atenção para a
proclamação da ceia do Senhor: ao celebrá-la, a igreja proclamou a morte de
Cristo. Paulo não faz referência a um anúncio verbal do evangelho, mas à sua
concretização por meio da ceia do Senhor. O simbolismo poderoso dessa
celebração — o pão partido simbolizando o corpo alquebrado de Cristo; o cálice
de vinho retratando o sangue derramado de Cristo; os elementos comidos e
bebidos pelos cristãos, retratando sua participação no corpo e no sangue de
Cristo — mostraram vividamente o evangelho da morte de Cristo pelos seres
humanos pecaminosos. Contudo, a proclamação não é transubstanciação e
tampouco reapresentação. O segundo ponto a ser destacado diz respeito à
tragédia exposta e denunciada pelo apóstolo, isto é, o desrespeito demonstrado
pelos membros ricos da igreja para com seus membros mais pobres. Na festa do
amor, durante a qual a ceia do Senhor seria ministrada, os cristãos ricos não
esperavam pelos pobres e comiam toda a comida e bebiam todo o vinho, numa
atitude de glutonaria e de embriaguez que humilhava os demais (v. 20-22,33,34).
Os cristãos ricos não “discerniam o corpo” (v. 29); isto é, não compreendiam a
interdependência dos membros da igreja e sua consequente responsabilidade em
se submeter e honrar os membros mais pobres. Como consequência do juízo
divino, alguns dos coríntios estavam enfermos, enquanto outros haviam morrido
prematuramente. Consequentemente, o problema com a celebração da ceia do
Senhor na igreja de Corinto não foi uma interpretação inadequada da presença
transubstanciada de Cristo e/ou da reapresentação do seu sacrifício.
Contudo, o apóstolo adverte que todo aquele que “comer do pão ou beber do
cálice do Senhor de maneira indigna será culpado de pecar contra o corpo e o
sangue do Senhor” (v. 27). Tal advertência destaca a seriedade com que se deve
observar a ceia do Senhor e parece apontar, juntamente com 1Coríntios 10.16,
para a presença de Cristo no momento de sua celebração. Algumas variedades de
teologia evangélica estão de acordo com esse entendimento do rito: Cristo e
todos os seus benefícios salvíficos estão de fato presentes na ministração da ceia
do Senhor. Essa ideia se baseia em duas verdades teológicas: na onipresença
divina (Deus está presente em todo o seu ser em todos os pontos do espaço) e na
presença espiritual ou moral (Deus manifesta sua presença de diferentes formas
em épocas distintas). Aplicando essas duas verdades à discussão da ceia do
Senhor, essas versões da teologia evangélica afirmam a presença ontológica de
Cristo e a manifestação particular da sua presença em decorrência da aliança
para (1) abençoar as celebrações justas dessa nova ordenança da aliança ou (2)
julgar as celebrações impróprias dela (conforme se vê na igreja de Corinto; 1Co
11.29-31). Ao longo da história, João Calvino abraçou essa visão do
93

sacramento, conhecida como perspectiva da presença espiritual, e a teologia


94

reformada que seguiu seus passos continua a afirmar a presença real de Cristo no
rito. Deve-se salientar, porém, o fato de que essa perspectiva não é a da
transubstanciação, e que ela não acolhe a reapresentação do sacrifício de Cristo
na cruz, por várias das diversas razões apresentadas acima.
A participação da igreja na oferta de Cristo
Outra crítica à teologia católica diz respeito à sua ideia de que, durante a missa,
as pessoas — representadas pelos leigos, e não pelo clero — depositam perante o
altar os sacrifícios necessários: “Fruto da terra e a obra das mãos humanas” (o
pão oferecido a Deus) e o “fruto da videira e obra das mãos humanas” (o vinho
oferecido a Deus). Esses sacrifícios são recebidos pelo sacerdote, que
95

posteriormente os oferece a Deus durante a liturgia da eucaristia. Ele o faz em


sua própria causa e em favor das pessoas, orando primeiramente a Deus: “Seja o
nosso sacrifício de tal modo oferecido que vos agrade, Senhor, nosso Deus”, 96

dirigindo-se em seguida ao povo: “Orai, irmãos e irmãs, para que o nosso


sacrifício seja aceito por Deus Pai todo-poderoso”. 97

A teologia evangélica discorda que os elementos desse sacramento constituam


oferendas dadas a Deus. A crítica a essa ideia aponta para o equívoco da
interdependência natureza-graça: a ideia de que a natureza — nesse caso, o pão e
o vinho — tenha a capacidade de comunicar a graça, que deve ser comunicada
de forma tangível por meio da natureza. Consequentemente, nesse sacramento,
os elementos naturais do pão e do vinho podem ser oferecidos a Deus de modo
que sejam transubstanciados em uma graça encarnada, o corpo e o sangue de
Jesus Cristo. Esse axioma da interdependência natureza-graça já foi criticado no
capítulo 1.
Em relação à críticas específicas da ideia católica de que o pão e o vinho desse
sacramento são oferendas apresentadas a Deus, a teologia evangélica chama a
atenção para a discussão bíblica do sacrifício: os sacrifícios exigidos pela nova
aliança são o sacrifício definitivo de Jesus Cristo (Hb 9.26; 10.12); o
oferecimento dos cristãos de todo o seu ser a Deus (Rm 12.1,2); “ofereçamos
sempre a Deus um sacrifício de louvor, que é fruto dos lábios que declaram
publicamente o seu nome” (Hb 13.15); fazer o bem e partilhar com outros (Hb
13.16); apoiar o ministério de outros (Fp 4.18); e o oferecimento de sacrifícios
espirituais aceitáveis a Deus por meio de Jesus Cristo (1Pe 2.5), que não são
detalhados, mas que podem ser a proclamação das “grandezas daquele que vos
chamou das trevas para sua maravilhosa luz” (v. 9). Não há nenhum fundamento
bíblico para a ideia de que o pão e o vinho do sacramento da eucaristia sejam
sacrifícios oferecidos por leigos, por meio do seu sacerdote, a Deus na
reapresentação do sacrifício de Cristo.

Infusão da graça
Uma consequência da crítica evangélica à interdependência natureza-graça é sua
discordância com a ideia da teologia católica de que a graça é infundida no fiel
por meio da eucaristia. De acordo com esse axioma, não apenas a natureza é
capaz de comunicar graça, mas também a graça precisa se manifestar de forma
concreta. Portanto, a graça opera pela natureza no intuito de elevá-la e
aperfeiçoá-la. Sobre a eucaristia, a graça do Cristo reapresentado no sacramento
produz uma mudança na natureza (humana) do fiel que a recebe. Como se trata
de um axioma equivocado, a ideia de graça infundida baseada no axioma
também está errada. Essa crítica evangélica específica da graça infundida será
feita posteriormente durante a discussão da justificação e da retidão que nos é
imputada por Cristo.
Adoração contínua a Cristo
O outro axioma do sistema católico, a interconexão Cristo-Igreja, dá respaldo à
prática católica de adoração contínua a Cristo que está presente na hóstia
consagrada não consumida depositada no sacrário. O raciocínio é preciso: a
Igreja Católica é a continuação da encarnação do Cristo que subiu ao céu. Por
meio da mediação da Igreja Católica, o Cristo total se torna presente nos
elementos do sacramento da eucaristia. Portanto, quando sobram hóstias da
celebração da liturgia da eucaristia, o Cristo total continua presente nessas
hóstias e, portanto, deve-se adorá-las. Esse raciocínio faz sentido no sistema
católico. A teologia evangélica, que discorda da interconexão Cristo-Igreja,
rejeita a adoração contínua do Cristo nas hóstias não consumidas e sustenta que
essa ideia está fundamentada em um axioma equivocado que resulta no
desmoronamento de todo o sistema católico.

Relação entre eucaristia e penitência


Um aspecto final desta avaliação da teologia católica da eucaristia pela teologia
evangélica tratará da relação desse sacramento com outro: o sacramento da
penitência e reconciliação. De acordo com a teologia católica, os participantes
são obrigados a se preparar para a celebração da eucaristia. Isso significa que
“quem tiver consciência de um pecado grave deve receber o sacramento da
reconciliação antes de participar da comunhão”. O fruto desse sacramento
98

permite aos participantes tomar parte do sacramento da eucaristia.


Uma crítica evangélica observa que essa ideia de preparação para a graça
decorre do axioma da interdependência natureza-graça: a natureza tem a
capacidade de receber a graça, porém a natureza deve estar preparada ou se
tornar digna dela. A teologia evangélica aponta o erro desse axioma e critica seu
corolário segundo o qual o fiel deve se preparar para receber a graça oferecida
pela eucaristia. Com relação a outras críticas mais específicas, a teologia
evangélica suspeita que essa ideia se baseia na compreensão equivocada da
advertência de Paulo a respeito de quem deve participar da ceia do Senhor. De
acordo com 1Coríntios 11.27-30, os apóstolos não proíbem os participantes
indignos (e. g., pessoas que tenham cometido pecado mortal) de tomarem parte
do sacramento; pelo contrário, ele adverte da participação indigna — pessoas
que participam da celebração e não dão a devida atenção a outros membros da
igreja, nem mantêm com eles um bom relacionamento. Precisamente por isso, a 99

teologia evangélica enfatiza o evangelho: o cristão não pode, e jamais poderá,


ser um participante digno das bênçãos de Deus. Por mais que tente, jamais será
participante da graça divina caso se preparare para recebê-la. Pelo contrário, por
causa do evangelho — obra de Deus por meio de Cristo — o cristão se torna
plenamente justo por meio da justiça de Jesus que lhe é imputada. E pela obra de
Cristo ele se torna um participante digno, é bem-vindo para participar de
maneira digna — com amor e respeito por parte das pessoas junto com as quais
comunga.
Em suma, uma das áreas mais significativas de divergência entre a teologia
evangélica e a teologia católica consiste nas diferenças em suas perspectivas do
sacramento da eucaristia.
1
CCC 1324; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 11
2
CCC 1324; citação do Concílio Vaticano II, Presbyterorum ordinis 5; cf. Eucharisticum mysterium 6
(VCII-1, 106).
3
CCC 1325; citação da Sagrada Congregação dos Ritos, instrução sobre a adoração da eucaristia,
Eucharisticum mysterium 6 (VC II-1, 106, que tem a seguinte redação: “A eucaristia significa perfeitamente
as duas coisas e efetua de forma maravilhosa esse partilhamento na vida de Deus e na unidade do povo de
Deus através da qual a igreja existe”).
4
CCC 1329.
5
Ibidem.
6
CCC 1330.
7
Ibidem.
8
CCC 1331. A expressão “remédio da imortalidade” remete a Inácio em sua Letter to the Ephesians 20
(ANF 1:57)
9
CCC 1332.
10
Edição em português: Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Loyola, 1999).
11
CCC 1333.
12
Ibidem.
13
Ibidem.
14
CCC 1336.
15
Ibidem.
16
CCC 1337; citação dos Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 22.ª sessão (17 de setembro de
1562), Decreto Referente ao Santíssimo Sacrifício da Missa 1 (Schaff, 2:177).
17
CCC 1341 (grifo do autor).
18
CCC 1345; citações de Justin Martyr [Justino Mártir], First apology 65–67 (ANF 1:185).
19
CCC 1346; citação do Concílio Vaticano II, Sacrosanctum concilium 56.
20
CCC 1346.
21
A discussão que se segue é uma adaptação do capítulo de minha autoria “The Theology of the
Eucharist according to the Catholic Church”, in: Thomas R. Schreiner; Matthew R. Crawford, orgs., The
Lord’s Supper: remembering and proclaiming Christ until he comes, NAC Studies in Bible and Theology
(Nashville: B & H Academic, 2010), p. 152-5.
22
CCC 1352. Anáfora significa, literalmente, “transportar”; portanto, nessa parte da celebração, consiste
em uma oferta a Deus.
23
CCC 1353. Epiclese significa, literalmente, “invocar”; portanto, essa parte da celebração é uma
invocação a Deus.
24
Missal Romano, Oração Eucarística 1 (Cânone Romano) (Comissão Internacional de Inglês na
Liturgia [doravante, ICEL], 88). Essa comissão, formada por bispos de países em que a missa (de acordo
com o rito romano) é celebrada em inglês, prepara as traduções em língua inglesa dos livros e textos
litúrgicos em latim. Para uma discussão mais ampla, veja http://www.icelweb.org/.
25
CCC 1353.
26
Missal Romano, Oração Eucarística 1 (Cânon Romano) (ICEL, 89).
27
Ibidem, 90.
28
Ibidem, 91.
29
Anamnese significa, literalmente, “lembrança”; portanto, essa parte da celebração é a lembrança do
sofrimento, da morte, ressurreição e ascensão de Cristo.
30
CCC 1354.
31
Missal Romano, Oração Eucarística 1 (Cânon Romano) (ICEL, 92).
32
CCC 1354.
33
Missal Romano, Oração Eucarística 1 (Cânon Romano) (ICEL, 129).
34
Ibidem, 130. A referência a Jesus como Cordeiro de Deus lembra as palavras de João Batista (Jo 1.29;
cf. v. 36).
35
Ibidem, 132. A declaração de indignidade ecoa a humildade do centurião diante de Jesus (Mt 8.8).
36
Ibidem, 133.
37
Ibidem, 134.
38
CCC 1357 (grifo do original).
39
Boa parte da discussão que se segue foi adaptada do meu capítulo (citado acima, nota 21), “The
Theology of the Eucharist according to the Catholic Church”, p. 158-64.
40
CCC 1360.
41
CCC 1362.
42
CCC 1363, 1364.
43
CCC 1365; citações de Lucas 22.19,20.
44
CCC 1365; citação de Mateus 26.28.
45
CCC 1366.
46
CCC 1367 (grifo do autor); citações dos Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 22.ª sessão (17 de
setembro de 1562), Decreto Referente ao Santíssimo Sacrifício da Missa 2 (Schaff, 2:179); cf. Hebreus
9.14,27.
47
CCC 1368.
48
CCC 1369; citação do Concílio Vaticano II, Presbyterorum ordinis 2.4.
49
CCC 1371; citação dos Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 22.ª sessão (17 de setembro de
1562), Doutrina do Sacrifício da Missa 2 (Schaff, 2:180).
50
CCC 1358.
51
CCC 1373; citação do Concílio Vaticano II, Sacrosanctum concilium 7.
52
CCC 1374 (grifo removido); citação dos Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 13.ª sessão (11 de
outubro de 1551), Decreto Referente ao Santíssimo Sacramento da Eucaristia 1 (Schaff, 2:126).
53
CCC 1374; citação do papa Paulo VI, Mysterium fidei (3 de setembro de 1965), 39, disponível em:
http://www.vatican.va/holy_father/paul_vi/encyclicals/documents/hf_p-
vi_enc_03091965_mysterium_en.html.
54
CCC 1375.
55
CCC 1376. John Chrysostom [João Crisóstomo], De Prod. Jud. 1:6; Ambrose, On the mysteries 9.50,
52 (NPNF2 10:324).
56
CCC 1376; citação dos Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 13.ª sessão (11 de outubro de
1551), Decreto Referente ao Santíssimo Sacramento da Eucaristia 4 (Schaff, 2:130).
57
CCC 1377.
58
Porque no sacrifício da missa nosso Senhor é imolado [sacrificado] quando “ele começa a estar
presente sacramentalmente como alimento espiritual dos fiéis sob a aparência do pão e do vinho” (papa
Paulo VI, Eucharisticum mysterium, 3b [VC II-1, 102-103]); citação do papa Paulo VI, Mysterium fidei 34.
59
CCC 1377.
60
CCC 1378; citação do papa Paulo VI, Mysterium fidei 56.
61
CCC 1379. No fim, as hóstias armazenadas são consumidas.
62
CCC 1381; citação de Thomas Aquinas, Summa theologica, pt. 3, q. 75, art. 1 [edição em português:
Tomás de Aquino, Suma teológica (São Paulo: Loyola, 2001), 9 vols.].
63
CCC 1385. A base bíblica é dada nas instruções de Paulo para que se evite comer o pão ou beber do
cálice “de maneira indigna” (1Co 11.27-29).
64
CCC 1389; citação do Concílio Vaticano II, Orientalium ecclesiarum 15, e cânon 920 do Código de
Lei Canônica.
65
CCC 1389.
66
CCC 1392.
67
CCC 1395.
68
CCC 1394 (grifo removido).
69
CCC 1395 (grifo removido).
70
CCC 1396.
71
CCC 1397.
72
Papa Paulo VI, Eucharisticum mysterium 12 (VC II-1, 111); citação de Thomas Aquinas, Summa
theologica, pt. 3, q. 79, art. 7.
73
CCC 1398.
74
CCC 1399.
75
CCC 1400; citação do Concílio Vaticano II, Unitatis redintegratio 22.3.
76
Há uma cláusula de exceção: em uma situação de grave necessidade — e.g., perigo iminente ou morte
—, os ministros católicos podem ministrar os sacramentos da eucaristia, penitência e unção dos enfermos a
cristãos que não estejam em plena comunhão com a Igreja Católica, mas com várias ressalvas: esses cristãos
deverão requerer espontaneamente os sacramentos, deverão mostrar evidências de que aceitam a teologia
católica desses sacramentos e deverão ter uma vida e atitude condizentes com os sacramentos para recebê-
los (CCC 1401).
77
CCC 1402-1405.
78
D. A. Carson, The Gospel according to John (Leicester/Grand Rapids: Inter-Varsity Press/Eerdmans,
1991), p. 277.
79
Ibidem, p. 295. A citação de Carson é de Francis J. Moloney, The Gospel of John (Collegeville:
Liturgical Press, 1998), p. 115.
80
Carson, Gospel according to John, p. 297.
81
Ibidem.
82
CCC 1331.
83
Carson, Gospel according to John, p. 301.
84
Ibidem, p. 301-2.
85
Doutrina cristã também chamada de sessão celeste, que afirma que Jesus está assentado à direita de
Deus Pai no céu — a palavra sessão é derivada do latim sessio, que significa “sentar” ou “sentado”. (N. do
E.)
86
CCC 1374; a citação é dos Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 13.ª sessão (11 de outubro de
1551), Decreto Referente ao Santíssimo Sacramento da Eucaristia 1 (Schaff, 2:126).
87
Thomas Aquinas, Summa theologica, pt. 3, q. 75, art. 4.
88
Martin Luther, The Babylonian captivity of the church (LW 36:31) [edição em português: “Cativeiro
babilônico da igreja”, in: Martinho Lutero: obras selecionadas, 3. ed. atualizada, Série: O programa da
Reforma / escritos de 1520 (São Leopoldo: Sinodal, 2000), vol. 2].
89
Ibidem, 36:29.
90
Mais uma vez, Lutero criticou Aquino por ter construído “uma superestrutura infeliz [filosófica, e não
bíblica, para dar respaldo à transubstanciação] sobre uma fundação infeliz [uma interpretação equivocada
da filosofia de Aristóteles]” (ibidem). A transubstanciação também suscita a questão do que acontece às
substâncias do pão e do vinho no momento da consagração: elas são aniquiladas ou dissolvidas em sua
matéria original? A atmosfera se torna a substância dos acidentes do pão e do vinho? Aquino lidou com
algumas dessas indagações (Thomas Aquinas, Summa theologica, pt. 3, q. 75, art. 3 e pt. 3, q. 77, art. 1).
91
A teologia evangélica luterana, seguindo Martinho Lutero, abraça a consubstanciação (ou união
sacramental). Ao mesmo tempo que rejeita categoricamente a transubstanciação (a ideia de que o pão e o
vinho se transformam no corpo e no sangue de Cristo), essa perspectiva acredita que o corpo e o sangue
físicos de Cristo estão presentes “em, com e sob” os elementos eucarísticos. Seguindo Ulrico Zuínglio, a
teologia evangélica conforme se desenvolveu entre os anabatistas e batistas (assim como em muitas outras
denominações) acolhe uma visão memorial em relação à ceia do Senhor. Com essa teologia, a ênfase recai
na lembrança do que Cristo fez em favor do ser humano pecador. Os sinais do pão e do vinho servem de
memória simbólica do corpo partido e do sangue derramado de Cristo, suscitando a igreja a se lembrar da
sua obra na cruz. A teologia reformada evangélica, seguindo João Calvino, vê na ceia do Senhor uma
presença espiritual: embora Jesus não esteja fisicamente presente no pão e no vinho (portanto, em
desacordo com a transubstanciação e com a consubstanciação), ele está espiritualmente presente quando a
igreja celebra a ceia do Senhor. Assim, a teologia evangélica reformada vai além da perspectiva da
lembrança. Ela concorda que o pão e o vinho são sinais, mas defende que não são sinais vazios. Pelo
contrário, elas proporcionam aquilo que expressam. Cristo está espiritualmente presente, de tal modo que a
igreja, ao ministrar a ceia do Senhor, partilha dele e de todos os seus benefícios salvíficos: “Acaso o cálice
da bênção que abençoamos não é a comunhão do sangue de Cristo? Acaso o pão que partimos não é a
comunhão do corpo de Cristo?” (1Co 10.16, grifo do autor). Para uma discussão mais abrangente dessas
perspectivas evangélicas, veja Allison, SS, p. 375-86; ibidem, HT, p. 635-58.
92
Veja Allison, SS, p. 395-8.
93
Para uma discussão mais ampla, veja Allison, SS, p. 395ss.
94
Calvin, Institutes 4.17 (LCC 21:1359-1428) [edições em português: João Calvino, As institutas,
tradução de Waldyr Carvalho Luz (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), 4 vols.; e A instituição da religião
cristã, tradução de Carlos Eduardo Oliveira; José Carlos Estêvão (São Paulo: Ed. Unesp, 2008)].
95
Missal Romano, Ordem da Missa, 23, 25. Outras oferendas como doações aos pobres também podem
ser apresentadas. Além disso, durante a celebração da missa, quando o sacramento do matrimônio é
administrado, o homem e a mulher que vão se casar agregam a oblação da sua vida, que dão um ao outro, à
oferenda de Cristo por sua igreja na eucaristia (CCC 1621).
96
Ibidem, 27.
97
Ibidem, 29.
98
CCC 1385. A base bíblica consiste nas instruções de Paulo para que se evite comer o pão e beber o
vinho “de maneira indigna” (1Co 11.27-29).
99
Para outras explicações, veja Allison, SS, p. 406-7.
9
A CELEBRAÇÃO DO MISTÉRIO
CRISTÃO
(segunda parte, seção 2, capítulo 2, artigos
4-5)
Os sacramentos de cura: penitência e reconciliação; unção dos
enfermos

Os sacramentos de cura (seção 2, capítulo 2)


Tendo apresentado os três sacramentos da iniciação cristã pelos quais as pessoas
são apresentadas à nova vida em Cristo e alimentadas nela, o Catechism of
Catholic Church se volta a seguir para a discussão dos dois sacramentos de cura.
1

O sacramento da penitência e reconciliação e o sacramento da unção dos


enfermos são celebrados sempre que essa nova vida é despertada ou perdida pelo
pecado, ou é ameaçada de chegar ao fim pela enfermidade e pela morte. Por
meio desses sacramentos a igreja prossegue, pelo poder do Espírito, a “obra de
cura e de salvação [de Cristo] até mesmo entre seus próprios membros”. 2

O sacramento da penitência e reconciliação (seção 2,


capítulo 2, artigo 4)
O primeiro sacramento de cura atende o fiel que cometeu pecados contra Deus
depois do seu batismo, uma vez que proporciona “perdão pela misericórdia de
Deus” e reconcilia os ofensores “com a Igreja a qual feriram com seus pecados e
que, pela caridade, pelo exemplo e pela oração opera para sua conversão”. O 3

sacramento recebe diversos nomes, e cada um deles reflete um elemento do rito:


É chamado sacramento da conversão, porque realiza sacramentalmente o apelo de Jesus à conversão
e ao esforço de regressar à casa do Pai da qual o pecador se afastou pelo pecado. É chamado
sacramento da penitência, porque consagra uma caminhada pessoal e eclesial de conversão, de
arrependimento e de satisfação por parte do cristão pecador. É chamado sacramento da confissão,
porque o reconhecimento, a confissão dos pecados perante o sacerdote é um elemento essencial desse
sacramento. [...] É chamado também de sacramento do perdão, uma vez que a absolvição
sacramental do sacerdote confere ao penitente “perdão e paz”. É chamado de sacramento da
reconciliação porque confere ao pecador o amor de Deus que reconcilia: “Reconciliai-vos com
Deus” [2Co 5.20].4

O Catechism suscita uma questão importante e responde a ela: Por que esse
sacramento pós-batismal é necessário? Certamente, a obra da graça de Deus é
generosa e diversa — ela envolve a purificação, a santificação e a justificação
(1Co 6.11) — nos sacramentos da iniciação cristã, uma generosidade que realça
“até que ponto o pecado é algo inadmissível” para o fiel. Ao mesmo tempo, a 5

realidade do seu pecado persistente é inegável (1Jo 1.8). Além disso, Jesus
mesmo enfatizou que a oração do fiel — “Perdoai nossas ofensas” (Lc 11.4; Mt
6.12) — está associada ao perdão que este concede ao pecado alheio.
Consequentemente, a nova vida recebida pela conversão a Cristo e os
sacramentos da iniciação “não aboliram a fragilidade e a debilidade da natureza
humana, tampouco a inclinação ao pecado” — a concupiscência. Dada essa 6

realidade frágil e imperfeita, a vida cristã laboriosa, “a luta pela conversão”, a


que Cristo chama o fiel é uma vida para a qual ele dispensa sua graça. 7

O chamado de Cristo à conversão consiste em dois momentos. A primeira


conversão diz respeito à pregação do evangelho pela igreja aos não
evangelizados. O sacramento do batismo está intimamente associado a essa
proclamação, que é a base da “primeira e fundamental conversão”, que requer fé
e arrependimento, resultando em “salvação, isto é, no perdão de todos os
pecados e no dom da nova vida”. A segunda conversão é uma resposta contínua
8

ao chamado de Cristo que “continua a ressoar na vida dos cristãos”. Como tal,
ela exige “uma tarefa ininterrupta por parte de toda a Igreja”, juntamente com “o
caminho da penitência e da renovação”, além de trazer consigo um esforço de
cooperação entre a obra humana e a graça divina: “É o movimento de um
‘coração contrito’ atraído e movido pela graça em resposta ao amor
misericordioso de Deus que nos amou primeiro”. Essa segunda conversão é
9

exemplificada pela conversão de Pedro depois de negar a Cristo três vezes e de


ser por Cristo posteriormente restaurado (Lc 22.61; Jo 21.15-17). 10

A conversão é principalmente fruto da graça divina que desperta o coração


humano, o qual, por sua vez, é “abalado pelo horror e pelo peso do pecado e
começa a sentir que ofende a Deus pelo pecado e por estar separado dele”. Esse 11

despertar é “a conversão do coração, a conversão interior ”, que é o primeiro


objetivo do chamado de Cristo. Essa conversão consiste em “uma reorientação
12

radical de toda a nossa vida”, incluindo ódio aos pecados cometidos


“acompanhados de um sofrimento e de uma tristeza salutares”. 13
Ao mesmo tempo, “a conversão interior requer a expressão por meio de sinais,
gestos e obras de arrependimento visíveis”. Essas manifestações tangíveis são
14

principalmente de três tipos: “oração, jejum e esmolas, que expressam a


conversão em relação a si mesmo, a Deus e ao próximo”. São também
15

expressões: a reconciliação com o próximo, lágrimas de arrependimento,


preocupação com a salvação de outros, orações aos santos, amor, cuidado com o
pobre, justiça social, responsabilidade com os demais, vida em meio ao
sofrimento e à perseguição, além de tomar a cruz diariamente e de seguir a
Jesus. Além disso, a conversão contínua e o arrependimento são alimentados
16

pela participação na eucaristia, que é um “remédio para nos libertar das nossas
falhas diárias e nos preservar dos pecados mortais”. Outros elementos que
17

estimulam a conversão e o arrependimento contínuos são a leitura da Escritura, a


oração, a observação das estações e dos dias de penitência (Quaresma; todas as
sextas-feiras) etc.18

Conforme dissemos acima, o pecado tem dois lados: antes de tudo, ele é uma
ofensa a Deus, mas também prejudica a comunhão com a igreja. “É por isso que
a conversão traz consigo, ao mesmo tempo, o perdão de Deus e a reconciliação
com a Igreja, o que é expresso e realizado liturgicamente pelo sacramento da
penitência e reconciliação.” Em relação à primeira realidade, o Catechism
19

destaca que somente Deus perdoa pecados (Mc 2.5,10; Lc 7.48). Contudo, além
disso, por sua autoridade divina, Cristo “dá esse poder aos homens para que o
exerçam em seu nome”. De modo concreto, “ele confiou o exercício do poder
20

de absolvição ao ministério apostólico. É este que está encarregado do


‘ministério da reconciliação’. O apóstolo é enviado ‘em nome de Cristo’ e ‘é o
próprio Deus’ que, através dele, exorta e suplica: ‘Deixai-vos reconciliar com
Deus’”. Sobre a segunda realidade, o Catechism afirma: “Ao tornar os
21

Apóstolos participantes do seu próprio poder de perdoar os pecados, o Senhor


dá-lhes também autoridade para reconciliar os pecadores com a Igreja”. Essa
22

reconciliação eclesial foi exemplificada pela reintegração dos pecadores por


meio de Jesus ao povo de Deus, de quem haviam se afastado por causa do
pecado, o que se vê especialmente na refeição que ele fez com pecadores à mesa
(e.g., Lc 15; 19.9). Essa dimensão eclesial do seu ministério exprime-se,
nomeadamente, na palavra solene de Cristo a Pedro: “Eu te darei as chaves do
reino do céu; o que ligares na terra terá sido ligado no céu, e o que desligares na
terra terá sido desligado no céu”. O Catechism assinala que “este mesmo
23

encargo de ligar e desligar, conferido a Pedro, foi também atribuído ao colégio


dos Apóstolos unidos à sua cabeça”. Quanto ao que Jesus prometeu quando
24

usou os termos “ligar” e “desligar”, o Catechism explica: “Aquele que vós


excluirdes da vossa comunhão, ficará também excluído da comunhão com Deus;
aquele que de novo receberdes na vossa comunhão, também Deus o acolherá na
sua. A reconciliação com a igreja é inseparável da reconciliação com Deus”. 25

O sacramento foi concebido “para todos os membros pecadores da sua Igreja,


sobretudo para aqueles que, depois do batismo, caíram em pecado grave e assim
perderam a graça batismal e feriram a comunhão eclesial”. Conforme disse
26

Tertuliano, a penitência “é a segunda tábua de salvação depois do naufrágio que


é a perda da graça”, porque oferece aos que naufragaram “uma nova
possibilidade de se converter e de recuperar a graça da justificação”. O 27

sacramento consiste em “dois elementos igualmente essenciais: por um lado, os


atos do homem que se converte [...] por outro, a ação de Deus pela intervenção
da Igreja”. 28

Em relação aos atos do penitente, são três os que dele se exigem: contrição,
confissão de pecados e satisfação. Em primeiro lugar, está a contrição, que é
“uma dor da alma e uma detestação do pecado cometido, com o propósito de não
mais pecar no futuro”. Há dois tipos de contrição: (1) contrição perfeita
29

(também chamada de contrição de caridade), “procedente do amor de Deus,


amado sobre todas as coisas”; (2) contrição imperfeita (também chamada de
atrição e contrição por temor), que “nasce da consideração da fealdade do
pecado ou do temor da condenação eterna”. O fruto da contrição perene é a
30

remissão dos pecados veniais, bem como “o perdão dos pecados mortais se
houver a firme resolução de se buscar a confissão sacramental tão logo quanto
possível”. O fruto da contrição imperfeita é a disposição de iniciar o processo
31

que conduz à absolvição; todavia, por si mesma, tal contrição “não obtém o
perdão dos pecados graves”. 32

O segundo ato do penitente é a confissão de pecados, que implica o


reconhecimento dos próprios pecados, assumir a responsabilidade por eles e se
abrir a Deus e à igreja. Há mais. “A confissão ao sacerdote constitui uma parte
essencial do sacramento da penitência: ‘Os penitentes devem, na confissão,
enumerar todos os pecados mortais de que têm consciência, após se terem
seriamente examinado’.” Esses pecados compreendem os pecados manifestos e
33

os secretos. O penitente diz: “Perdoa-me (ou abençoa-me), padre, pois eu


pequei. Faz _____[três meses, por exemplo] desde minha última confissão. São
estes os meus pecados: ________” (os pecados são confessados). Depois da
orientação do padre, o penitente faz um ato de contrição, por exemplo: “Ó meu
Deus, arrependo-me de coração de te haver ofendido. Abomino todos os meus
pecados por causa do teu castigo, mas, sobretudo, porque te ofendi, meu Deus,
que és todo bondade e merecedor de todo o meu amor. Estou firmemente
decidido, com a ajuda da tua graça, a não pecar mais e a evitar toda ocasião
propícia ao pecado”. Deve-se participar pelo menos uma vez por ano do
34
sacramento da penitência. É vedado o acesso ao sacramento da eucaristia no
35

caso de pecado mortal não confessado, mesmo que a pessoa “se sinta
profundamente contrita”, mas não teve ainda seu pecado absolvido por meio do
sacramento da penitência. As crianças devem participar desse sacramento antes
36

de sua primeira comunhão. Quanto aos pecados veniais, a confissão diária é


“enfaticamente recomendada pela Igreja”, ainda que não seja “estritamente
necessária”. 37

Depois da contrição e da confissão, o terceiro ato penitencial é a satisfação,


que é a reparação do mal causado a outros pelo nosso pecado. Há atos
específicos para os casos de propriedade roubada, restauração da reputação de
terceiros que tenham sido caluniados e compensação financeira por injúrias
lançadas por outros. “A absolvição tira o pecado, mas não remedeia todas as
desordens causadas pelo pecado. Aliviado do pecado, o pecador deve ainda
recuperar a perfeita saúde espiritual. Ele deve, pois, fazer mais alguma coisa para
reparar os seus pecados: ‘satisfazer’ de modo apropriado ou ‘expiar’ os seus
pecados. A esta satisfação também se chama ‘penitência’”. O sacerdote que
38

ouve a confissão (chamado de “confessor”) impõe a satisfação ou penitência


apropriada “levando em conta a situação pessoal do penitente” tendo em vista
“seu bem espiritual. Deve corresponder, quanto possível, à gravidade e natureza
dos pecados cometidos. Pode consistir na oração, num donativo, nas obras de
misericórdia, no serviço ao próximo, em privações voluntárias, sacrifícios e,
sobretudo, na aceitação paciente da cruz que temos de levar”. O Catechism
39

oferece o argumento para esses atos de satisfação: eles “nos ajudam a configurar-
nos com Cristo, que, por si só, expiou os nossos pecados uma vez por todas.
Essas penitências fazem que nos tornemos coerdeiros de Cristo ressuscitado,
‘uma vez que também sofremos com ele’ [Rm 8.17; 3.25; 1Jo 2.1,2]”. 40

Consequentemente, a satisfação é propiciada por meio de Jesus Cristo e tem nele


sua eficácia, e é ele quem fortalece os penitentes para que a ofereçam.
Em suma, o sacramento da penitência e reconciliação consiste em três atos da
parte do penitente: contrição, confissão de pecados e satisfação.
Em relação aos atos de Deus por meio da intervenção da igreja, os ministros
desse sacramento são os bispos e seus assistentes, os padres, sobre os quais foi
conferido o poder de perdoar pecados em virtude do sacramento da ordem. A
penitência é ministrada comumente no confessionário, para assegurar sua
privacidade. O padre primeiramente saúda e abençoa o penitente; em seguida, lê
uma parte da Escritura “para iluminar e suscitar a contrição”; por fim, exorta o
penitente ao arrependimento. O penitente verbaliza seu pecado ou seus pecados,
41

para os quais o sacerdote impõe uma penitência, a qual, por sua vez, é aceita
pelo penitente. O sacerdote então absolve o penitente do seu pecado ou dos seus
pecados, oferece uma oração de ação de graças e de louvor e despede o penitente
com uma bênção. Esse sacramento requer uma rigorosa confidencialidade. De
fato, “a Igreja declara que todo sacerdote que ouve confissões está obrigado a
guardar segredo absoluto sobre os pecados que os seus penitentes lhe
confessaram, sob penas severíssimas. Tampouco pode servir-se dos
conhecimentos que a confissão lhe proporciona sobre a vida dos penitentes. Esse
segredo, que não admite exceções, é chamado ‘sigilo sacramental’, porque
aquilo que o penitente manifestou ao sacerdote fica ‘selado’ pelo sacramento”. 42

Ao mesmo tempo, “certos pecados particularmente graves são punidos pela


excomunhão”, uma penalidade eclesiástica que impede a pessoa de participar
dos sacramentos da igreja e para a qual não há absolvição, “segundo o direito da
Igreja, [exceto se for concedida pelo] papa, pelo bispo do lugar ou por sacerdotes
por eles autorizados”. 43

São dois os efeitos desse sacramento: restauração à graça de Deus, que reúne
os penitentes junto de si em íntima amizade, e reconciliação com a igreja, que
revitaliza a vida da comunidade. Além disso, o resultado é geralmente de “paz e
a tranquilidade da consciência, acompanhadas de uma grande consolação
espiritual [...] e dignidade e [...] bens próprios da vida dos filhos de Deus”. 44

Além disso, nesse sacramento, o fiel antecipa, de certo modo, o juízo final que
virá com sua morte, escolhendo a vida, para que ‘não seja julgado’ [Jo 5.24]”. 45

Intimamente relacionado ao sacramento da penitência e reconciliação temos a


doutrina e a prática das indulgências, das quais o Catechism trata brevemente.
“A indulgência é a remissão, perante Deus, da pena temporal devida aos pecados
cuja culpa já foi apagada; remissão que o fiel devidamente disposto obtém em
certas e determinadas condições, pela ação da Igreja, a qual, enquanto
dispensadora da redenção, distribui e aplica por sua autoridade o tesouro das
satisfações de Cristo e dos santos.” Há dois tipos de indulgências: indulgências
46

plenárias, que redimem todo castigo temporal decorrente do pecado, e


indulgências parciais, que redimem parte desse castigo.
Para ajudar a compreender as indulgências, o Catechism oferece várias
explicações. A primeira delas se detém na dupla consequência do pecado. O
pecado grave ou mortal interrompe a comunhão com Deus e leva à punição
eterna no inferno. O pecado venial, embora não destrua a relação com Deus e
não culmine com a condenação, ainda assim mancha e macula, o que requer que
a pessoa seja purificada em sua vida terrena ou, depois da morte, no purgatório.
“Esta purificação liberta do que se chama de ‘pena temporal’ do pecado.” 47

Embora o sacramento da penitência redima o castigo eterno do pecado, o castigo


temporal permanece. Consequentemente, os pecados dos penitentes são
perdoados e eles são restaurados à comunhão com Deus, porém a mácula do
pecado mortal perdoado e a mancha do pecado venial ainda persistem. Nesta
vida terrena, é preciso que haja esforços — por exemplo, suportar pacientemente
o sofrimento, fazer obras de misericórdia e de caridade, orar, praticar atos de
penitência — para romper com a vida antiga e caminhar na nova vida de Cristo.
Se o fiel não for plenamente obediente durante sua peregrinação terrestre, sua
alma irá ao purgatório para terminar sua purificação.
A segunda explicação para as indulgências se detém na comunhão dos santos
para ajuda dos que se acham no purgatório. Conforme dissemos, essa comunhão
une misticamente os santos no céu, as almas que expiam seus pecados no
purgatório e os féis na terra. Como parte dessa comunhão, há uma troca de bens
espirituais: “Nesta admirável permuta, a santidade de um aproveita aos demais,
[...]. Assim, o recurso à comunhão dos santos permite ao pecador contrito ser
purificado mais depressa e mais eficazmente das penas do pecado”. Esses bens48

espirituais da comunhão são o tesouro da Igreja, que consiste nos méritos


infinitamente preciosos de Cristo, “[nas] boas obras da bem-aventurada Virgem
Maria e de todos os santos”. 49

A terceira explicação trata da obtenção das indulgências : elas são obtidas por
intermédio da igreja, que “em virtude do poder de ligar e desligar que lhe foi
concedido por Jesus Cristo, intervém a favor do cristão e lhe abre o tesouro dos
méritos de Cristo e dos santos, para obter do Pai das misericórdias o perdão das
penas temporais devidas pelos seus pecados”. É importante notar que é possível
50

obter indulgências para as almas do purgatório.


Em suma, as indulgências podem ajudar o fiel a obter a remissão do castigo
temporal devido ao pecado para si mesmo e para as almas no purgatório. Essa
ajuda é possível por causa do tesouro da igreja e do partilhamento dos méritos de
Cristo, da virgem Maria e dos santos em favor do fiel na terra e dos que se
acham no purgatório.

Avaliação evangélica
A penitência não é um sacramento
Dos quatro sacramentos católicos apresentados até agora, esse sacramento,
juntamente com o da confirmação, não é considerado como tal pela teologia
evangélica. Como já discutimos, a razão para essa rejeição se deve ao fato de
que Jesus não o ordenou para que fosse um rito a ser administrado pela sua
igreja. Apelar às palavras de Jesus “fazei penitência, porque o reino de Deus está
próximo” (Mt 4.17) e usá-las como argumento de que ele instituiu efetivamente
a penitência como sacramento se equivoca porque essa citação, baseada na
Vulgata Latina, é uma tradução errônea do mandamento conforme se acha
expresso no grego do Novo Testamento. A ordem foi a seguinte: “Arrependei-
vos, porque o reino de Deus está próximo”. Jesus nunca ordenou ao seu povo
51

que fizesse atos penitenciais de jejum, oração, esmolas e coisas parecidas como
se fossem prescritas por um rito penitencial eclesiástico, e sim para que dessem
meia-volta, reorientassem sua vida, mudassem de mente e coração. Martinho
Lutero excluiu a penitência da lista dos sacramentos, embora inicialmente ele a
tivesse incluído, uma vez que não há nenhum sinal tangível associado a ela. A 52

teologia evangélica, herdeira desse legado, rejeita o sacramento da penitência.


Apesar disso, a teologia evangélica concorda com a teologia católica que a
confissão do pecado, o arrependimento e, no caso de algum mal que tenha sido
causado a terceiros pelo pecado, há necessidade de restituição ou restauração.
Ela discorda, porém, da estruturação que a teologia católica confere a essas
ações como se fossem parte de um sacramento, além de objetar à maioria dos
elementos desse rito. Essas discordâncias serão objeto da avaliação a seguir.
Pecados anteriores e posteriores ao batismo
Uma área espinhosa, do ponto de vista da teologia evangélica, é a divisão que a
teologia católica faz dos pecados em duas categorias distintas: anteriores e
posteriores ao batismo, em que o sacramento do batismo se ocupa dos pecados
anteriores a ele e o sacramento da penitência, dos pecados posteriores. Embora
essa divisão tenha surgido na igreja primitiva, ela não tem base bíblica e,
portanto, é mais um caso de Tradição indigna de confiança. Além disso, no
âmago dessa divisão deparamos com a interdependência natureza-graça, um
axioma do sistema católico que já foi criticado (cap. 1) e que demonstramos se
tratar de um erro. Esse axioma se manifesta no conceito católico de graça como
substância divina ou poder que é infundido nas pessoas por meio dos
sacramentos da igreja, elevando desse modo a potencialidade de
aperfeiçoamento da natureza (humana). Consequentemente, o batismo é o
remédio para os pecados pré-batismais, propiciando a infusão de graça que
cancela o pecado original e conferindo uma nova natureza, no caso das crianças;
no caso dos adultos, cancela o pecado original e os pecados de fato cometidos
até o momento do batismo — concedendo-lhes uma nova natureza. Quando se
perde a graça batismal ou justificadora em decorrência de um pecado mortal
cometido, mergulhando o pecador em uma situação terrível de perda da salvação
e de condenação divina iminente ao inferno, há necessidade de outro meio de
infusão da graça. O sacramento da penitência é esse meio, uma vez que a graça
por ele conferida retifica todos os pecados pós-batismais, particularmente os
pecados mortais, e reinstitui o processo de elevação da natureza (humana),
restaurando o penitente à situação de amizade com Deus e de comunhão com a
igreja. Contudo, se a salvação não depende do progresso da transformação do
caráter tornando o fiel cada vez mais perfeito no amor, e se a graça não lhe for
infundida para que opere essa transformação, e se a divisão dos pecados em
categorias anteriores e posteriores ao batismo não tiver fundamento, o
sacramento cai por terra. Essa é a avaliação da teologia evangélica.
Dois momentos da conversão
Outra distinção inventada no caso do sacramento da penitência e que representa
um problema para a teologia evangélica é consequência da atribuição de dois
momentos para a conversão. A teologia evangélica acolhe o que se chama de
“primeira conversão” e que diz respeito à proclamação do evangelho aos não
crentes e ao apelo correspondente para que se arrependam e creiam em Cristo. O
batismo como parte da apropriação da salvação também é princípio de fé para
muitas teologias evangélicas, embora sem os elementos que o acompanham na
teologia católica, conforme já discutido. Como Deus opera poderosamente para
convencer o não crente do seu pecado, chamando-o para que abrace a salvação,
regenerando-o etc., a resposta humana deve ser a rejeição ao pecado, confiança
em Cristo, obediência ao mandamento e o batismo etc. Isso é conversão ou
“primeira conversão”.
É com o segundo momento da conversão — a “segunda conversão” — que a
teologia evangélica tem dificuldade. Essa resposta contínua ao chamado de
Cristo também não é um conceito estranho à teologia evangélica, que não o
rejeita. Conforme disse Wayne Grudem, “embora seja verdade que a fé salvadora
inicial e o arrependimento inicial ocorram uma única vez em nossa vida, e
quando ocorrem constituem a verdadeira conversão, não obstante isso, a atitude
de arrependimento e fé do coração começa apenas na conversão. Tais atitudes
devem prosseguir ao longo da existência da nossa vida cristã”. Ao mesmo
53

tempo, no que se refere à Bíblia, esse processo contínuo deve ser mais
apropriadamente chamado de santificação, e não de conversão. Essa precisão
ajuda a evitar dois problemas com a apresentação da conversão contínua pela
teologia católica. Primeiro, a Escritura diz que a santificação, e não a conversão,
é um esforço contínuo e cooperativo entre a graça divina e o agir humano. Deus,
agindo adequadamente de acordo com sua ação divina, concede graça e guia,
disciplina, confere poder, corrige e abençoa seu povo, que, agindo
adequadamente de acordo com sua ação humana, lê e memoriza a Escritura, ora,
jejua, tem comunhão com outros cristãos, evita o pecado e muito mais. Chamar
essa segunda conversão de “santificação” produz certo grau de precisão e uma
conformidade maior com a Escritura. Evita também a dificuldade da frágil base
bíblica para a “segunda conversão” conforme proposta pela teologia católica. A
“conversão” de Pedro depois de negar três vezes a Cristo, que depois o
restaurou, parece estar mais relacionada com sua restauração ao ministério do
que a um modo pelo qual o fiel deverá se converter continuamente. Contudo, o
processo sinergético constante de santificação tem amparo bíblico muito maior
(e.g., Fp 2.12,13; 1Ts 5.23; Hb 13.20,21).
Todas as vertentes da teologia evangélica elogiam a ênfase da teologia católica
na conversão como resultado mais importante da graça divina para a
conscientização da existência do pecado, para induzir ao arrependimento,
suscitar a fé etc. Nesse sentido, duas convicções teológicas procuram discernir a
ordem real dos acontecimentos que ocorrem na salvação. O debate se restringe
particularmente à relação entre regeneração e conversão. Segundo a teologia
arminiana, em primeiro lugar, em resposta à graça preveniente, as pessoas que
ouvem o evangelho se arrependem e expressam fé em Cristo (conversão) e
depois Deus lhes dá uma nova natureza (regeneração). A teologia reformada
argumenta que Deus primeiramente regenera a pessoa, que, em seguida, se
converte por meio do arrependimento e da fé. É importante atentar para o fato
54

de que ambas as teologias ressaltam a prioridade da graça divina para a salvação.


Embora a doutrina da salvação seja objeto de discussão posterior, a teologia
católica tem posição semelhante à da teologia arminiana, que é também a
teologia de grande parte dos evangélicos. A outra parte da teologia evangélica
defende o ponto de vista reformado e se opõe, portanto, à ordem católica da
salvação.
Atos de penitência
Com a prioridade dada à graça firmemente estabelecida, a teologia católica se
volta para a discussão do lado humano da conversão, principalmente sua
“expressão em sinais, gestos e obras concretas de penitência”. Novamente, a
55

teologia evangélica está plenamente de acordo que a conversão genuína dará


frutos — na verdade, deve mesmo fazê-lo — que se refletirão em boas obras
evidentes aos demais. Conforme assinalou Tiago: “a fé sem obras é morta” (Tg
2.26). O que se questiona é a razão pela qual a teologia católica classifica os atos
de penitência em três categorias: jejum, orações e esmolas (que são expressões
da conversão em relação, respectivamente, a si mesmo, a Deus e ao próximo).
Certamente, a Escritura associa o jejum e a oração ao arrependimento (e.g., Ne
1.4); outra associação frequente é a que se estabelece com o choro e o lamento, o
vestir-se com panos de saco e o cobrir-se de cinzas (e.g., Et 4.3; Dn 9.3; Jn 3.6-
10). As esmolas — ajuda material dada para assistência dos pobres e
necessitados — também estão associadas à conversão (e.g., Zaqueu; Lc 19.1-
10). As esmolas têm papel de destaque em alguns escritos apócrifos. Por
exemplo, o Eclesiástico exorta: “Encerra tua esmola em teus celeiros; ela te
livrará de todo mal: melhor do que forte escudo, melhor que pesada lança,
combaterá por ti ante o inimigo” (29.12,13). Tobias ordena: “Dá esmola do que
tens. Nunca afastes de algum pobre a tua face, e assim nunca se afastará de ti a
face de Deus” (4.7).
É importante observar, porém, que a Escritura não parece elevar esses três atos
acima de numerosos outros atos como se fossem eles o fruto principal de quem
se volta para Deus. Por exemplo, João Batista claramente incentivou que se
dessem esmolas em suas ordens aos penitentes que lhe vinham pedir o batismo:
“Quem tem duas túnicas, reparta com o que não tem nenhuma, e quem tem
alimento, faça o mesmo” (Lc 3.11). Contudo, suas instruções a respeito dos atos
de arrependimento genuíno também eram bastante específicas e, portanto,
variavam, conforme as pessoas que o questionavam: “Vieram também alguns
coletores de impostos para ser batizados e perguntaram-lhe: Mestre, que
devemos fazer? Ele lhes respondeu: Não cobreis mais do que o prescrito. E
também alguns soldados perguntaram: E nós, que devemos fazer? Ele lhes disse:
De ninguém tomeis nada à força, nem façais denúncia falsa; e contentai-vos com
o vosso salário” (Lc 3.12-14). Além disso, o apóstolo João apresenta quatro
realidades que fluem daquele que nasceu de Deus. Uma delas é o rompimento
com o pecado habitual, que já não pode mais dominar (1Jo 3.9). O amor ao
próximo é um segundo fruto (4.7). Um terceiro ponto consiste em resistir às
seduções e tentações do mundo e obedecer aos mandamentos de Deus, os quais
não são deveres onerosos, por meio de uma fé persistente (5.3,4). Essa fé sem
ruptura se deve à proteção divina contra Satanás, um quarto resultado concreto
(v. 18).
Para a teologia evangélica, esses exemplos bíblicos requerem cautela em
relação a jejuns, orações e esmolas como frutos principais da conversão. Não se
deve negligenciar nesta crítica a ênfase católica em outras expressões de
conversão, algumas delas apresentadas acima. Contudo, a teologia evangélica
objeta à elevação do jejum, das orações e das esmolas à categoria que lhes
confere a teologia católica porque essa seletividade carece de base na Escritura,
que apresenta os frutos do arrependimento e da fé de modo mais amplo. Além
disso, a teologia evangélica, herdeira como é da Reforma protestante, também
rejeita o modelo histórico da teologia católica que enfatiza as boas obras
“espirituais” em detrimento de outros tipos de obras — a arrecadação justa de
impostos, a recusa em extorquir dinheiro, estar contente com o salário com que
se é pago etc. (Lc 3.12-14). 56

A dupla natureza do pecado


Outra dualidade enfatizada pela teologia católica em sua discussão da conversão
é a dupla natureza do pecado e as implicações dessa realidade complexa para a
conversão. De acordo com a teologia católica, o pecado ofende a Deus e
prejudica a comunhão com a igreja, por isso há necessidade do perdão divino e
de reconciliação com a igreja. Essa dupla natureza do pecado é objeto de atenção
desse sacramento mediante seus dois nomes mais comuns: penitência (esforço
para obtenção do perdão divino) e reconciliação (estímulo à reparação com a
igreja).
A respeito da primeira realidade, a teologia evangélica subscreve a insistência
da teologia católica de que somente Deus perdoa pecados. Esse ponto é
comumente mal entendido pela teologia evangélica em virtude da afirmação
adicional posterior de sua contraparte católica: Cristo confia o poder de
absolvição de pecados ao ministério apostólico — os apóstolos e seus
sucessores, os bispos — da Igreja Católica, de modo que seu clero ordenado tem
a autoridade de perdoar em nome de Cristo. A base bíblica para essa ideia se
acha na descrição que Paulo faz do ministério apostólico, isto é, do seu caráter
divinamente comissionado, em que Deus apela por meio de Paulo, apóstolo, para
que exorte às pessoas a se reconciliarem com Deus (2Co 5.18-20), a primeira
realidade. Essa mesma autoridade para conceder perdão é exercida pelo clero
para reconciliar os pecadores com a igreja, a segunda realidade. O principal
respaldo bíblico nesse caso são as chaves que Jesus entrega a Pedro e, por meio
dele, ao colégio apostólico, o qual, por sua vez, transfere sua autoridade para seu
sucessor, o colégio de bispos. O poder das chaves é o de ligar e desligar:
exclusão da comunhão com a igreja por causa do pecado entranhado e a recusa
de se arrepender e de ser restaurado; ou a admissão à comunhão da igreja por ela
e juntamente com ela valendo-se do perdão que o clero concede.
Tomando juntas essas duas realidades, a teologia evangélica nega a delegação
de poder divino para perdoar pecados ao clero da Igreja Católica. Já fizemos
uma crítica abrangente dessa posição no momento em que a teologia evangélica
rejeita a interconexão Cristo-Igreja sobre a qual foi erguido o sistema católico. A
teologia evangélica não subscreve o axioma segundo o qual a Igreja Católica é o
prolongamento da encarnação de Jesus Cristo, o que torna a igreja — nesse caso,
o clero com seu poder de absolver o fiel de seus pecados — o mediador entre a
graça e a natureza. Em matéria de crítica concreta, o que Cristo confiou à igreja
não foi uma estrutura de sucessão apostólica cujos membros possuem e usam
uma autoridade delegada para conceder a absolvição. Pelo contrário, ele ordenou
a seus apóstolos que fizessem discípulos de todos os povos, cujo cumprimento,
no seu entender, era a proclamação da mensagem de salvação realizada pela
morte de Jesus Cristo (veja Atos). Esse fato é confirmado em todas as passagens
invocada pela teologia católica em apoio à sua posição (2Co 5.18-20). O
apóstolo Paulo recebeu de fato o ministério da reconciliação. Contudo, em igual
grau de intensidade, ele descreve a natureza dessa reconciliação: “Deus estava
em Cristo reconciliando consigo mesmo o mundo, não levando em conta as
transgressões dos homens; e nos encarregou da mensagem [do gr. λόγος (logos),
lit. da palavra] da reconciliação” (v. 19, grifo do autor). Por meio da mensagem
do evangelho, Deus opera a restauração da nossa comunhão com ele. Como já
abordado, os mensageiros a quem Deus emprega para proclamar essa mensagem
são apenas servos dela, servos a quem o evangelho é anunciado e crido; eles não
possuem nenhuma autoridade delegada para que o perdão ocorra.
Além disso, a compreensão da teologia católica acerca das chaves que ligam e
desligam está culturalmente invertida. Jesus não prometeu fazer o que o
Catechism explica: “Aquele que vós excluirdes da vossa comunhão, ficará
também excluído da comunhão com Deus; aquele que de novo receberdes na
vossa comunhão, também Deus o acolherá na sua”. Pelo contrário, Jesus
57

prometeu: “todo aquele que excluirdes de vossa comunhão, já foi excluído da


comunhão com Deus; todo aquele que receberdes novamente em vossa
comunhão, Deus já o recebeu de volta à sua”. A ação divina não é subsequente
58

à ação da igreja, assim refletindo-a ou dela dependendo. Pelo contrário, a ação


divina é anterior à ação da igreja, que, como consequência, a reflete e dela
depende. Essa compreensão equivocada do poder das chaves é uma razão
concreta para a rejeição, por parte da teologia evangélica, da ideia católica de
delegação divina do poder de perdoar pecados à hierarquia da igreja. O
mensageiro do evangelho proclama: “Daquele que não tinha pecado Deus fez
um sacrifício pelo pecado em nosso favor, para que nele fôssemos feitos justiça
de Deus” (2Co 5.21). Quando essa mensagem for acolhida, o mensageiro
assegura aos que a recebem que eles não estão mais presos a seus pecados, e sim
libertos deles para que se relacionem com Deus. Ao rejeitar a palavra, o
mensageiro adverte seus detratores de que eles continuam presos a seus pecados,
o juízo divino e a condenação os aguardam se não acolherem a Cristo.
Pecados mortais e veniais
Em relação a quem deve participar do sacramento da penitência e reconciliação,
introduz-se outra dualidade: o pecado mortal e o pecado venial. Embora esse
tópico seja objeto de discussão mais adiante, basta saber que o pecado mortal é
uma transgressão grave, deliberadamente cometida, com plena consciência de
violação da lei divina. Ele resulta na perda da graça batismal ou justificadora, e,
como se perde o direito à graça, quem comete pecado mortal está destinado ao
inferno, a não ser que receba nova infusão de graça. O pecado venial diz respeito
a questões menos sérias do que o pecado mortal: não se trata de violação grave
da lei divina, ou, se assim for, trata-se de algo menos grave do que o pleno
conhecimento e/ou consentimento deliberado. Não resulta na perda da graça
divina. Essa distinção é de grande importância para o sacramento da penitência:
exige-se a penitência em todos os casos de pecado mortal, mas não no caso do
pecado venial. O sacramento concede nova graça justificadora àqueles que, por
causa do pecado mortal, perderam-na. Além disso, como o pecado venial não
resulta em perda da graça, o sacramento não é necessário para restaurar o que se
perdeu.
Faremos a avaliação mais abrangente desse tópico posteriormente; por
enquanto será suficiente dizer que a teologia evangélica rejeita a distinção entre
pecados mortais e veniais. De acordo com a Escritura (e.g., Tg 2.10,11; Gl 3.10),
não importa se o pecado é grave ou não, ele resulta em culpa diante de Deus;
portanto, quem comete tal pecado precisa da graça divina para obter perdão.
Consequentemente, se a teologia evangélica subscrevesse um sacramento de
penitência para os pecados pós-batismais, seria necessária a participação no
sacramento para todo e qualquer pecado, grande ou pequeno. Contudo, com a
rejeição da distinção por trás de pecados mortais e veniais, bem como do próprio
sacramento, a teologia evangélica insiste na confissão de todos os pecados, no
arrependimento por todos eles e na restituição em todos os casos que exigirem
restauração da honra, da propriedade, do relacionamento etc.
Ação humana e divina
A teologia católica destaca a existência de outra dualidade no âmago do
sacramento da penitência: a ação humana da conversão e a ação divina do
perdão por meio da intervenção da igreja. Em relação aos elementos humanos,
exigem-se do penitente três coisas: contrição, confissão de pecados e satisfação.
O primeiro desses, contrição, se sobrepõe de certa forma ao conceito de
arrependimento da teologia evangélica, o que requer o reconhecimento de que o
pecado é errado, tristeza e ódio pelo pecado cometido, renúncia ao pecado e a
resolução de romper com ele. A teologia evangélica discorda da proposta de que
a contrição é de dois tipos — perfeita e imperfeita. É certo que a Escritura faz
distinção entre a tristeza piedosa e a tristeza do mundo: “Pois a tristeza segundo
a vontade de Deus produz o arrependimento que conduz à salvação, o qual não
traz remorso; mas a tristeza do mundo traz a morte” (2Co 7.10). A tristeza do
mundo a respeito da qual Paulo escreve era o pesar que sua carta severa aos
coríntios havia suscitado; ela se manifestava em arrependimento, ânsia de fazer o
que era certo, indignação com o pecado etc. (v. 9,11). Embora o apóstolo não
explique o que ele quer dizer com pesar do mundo, pode-se depreender que esse
pesar consista na tristeza de ter sido pego em pecado, de sofrer pelo pecado
exposto etc. Se for essa a distinção entre contrição perfeita e imperfeita o que
pretende a teologia católica, então há aí algum terreno comum. Contudo, quando
a teologia católica atribui a remissão dos pecados veniais, bem como o perdão
dos pecados mortais (se em tal ato existe a decisão de se beneficiar rapidamente
do sacramento) em busca da contrição perfeita, a teologia evangélica terá de
discordar.
O segundo ato penitencial é a confissão de pecados, e mais uma vez há certa
sobreposição com a ideia da teologia evangélica de confissão como o
reconhecimento dos pecados pessoais, de concordar com Deus que eles estão
errados e admitir responsabilidade por eles. Parte da perspectiva teológica
evangélica, porém, confia também na promessa divina segundo a qual “se
confessarmos os nossos pecados, ele [Deus] é fiel e justo para nos perdoar os
pecados e nos purificar de toda injustiça” (1Jo 1.9). A confissão de pecados,
portanto, requer a fé de que eles são perdoados e que a pessoa que os confessa
está agora purificada de sua imundície. Não se trata de autossugestão ou de
autoilusão, tampouco é algo a que se dê pouca importância ou que se faça de
modo frívolo. Pelo contrário, é um ato de fé em Deus que, por intermédio de
Cristo, realizou a salvação do pecado e que promete o perdão do pecado ao seu
povo. Tal confissão não requer que se recorra a um padre em busca de
absolvição, que é parte essencial do sacramento católico. Tal confissão é
obrigatória não só no caso de pecado mortal; pelo contrário, todo pecado que
seja trazido à consciência pela Palavra de Deus (e.g., Hb 4.12) e pelo Espírito de
Deus (e.g., Jo 16.8-11) deve ser confessado. A frequência dessa confissão não é
regulada pela igreja, e a orientação é que seja feita uma vez por ano. De fato,
uma vez que todo pecado suscita culpa perante Deus, resultando na interrupção
do relacionamento com ele, os pecados não devem ser “armazenados” à espera
de um ato eclesial de penitência; antes, devem ser prontamente confessados a
Deus. Todo acúmulo de pecados só pode resultar desastroso na vida diária com
Deus. Se esse modelo perene de confissão é o que a teologia católica requer no
caso dos pecados veniais, observa-se então nesse caso certa sobreposição com a
teologia evangélica. Por fim, a recusa em ministrar o sacramento da eucaristia
aos católicos que cometeram pecado mortal e não se beneficiaram da absolvição
por meio do sacramento da penitência já foi objeto de discussão (cap. 8).
O terceiro ato penitencial é a satisfação, que se ocupa da reparação do mal
operado pelo pecado na reputação, na honra, na propriedade, no caráter, no bem-
estar e na família alheias, entre outras coisas. A teologia evangélica concorda
plenamente com esse conceito de satisfação. O perdão ou absolvição lida com o
pecado em si, mas, quando o pecado tiver provocado danos na vida de outros, há
necessidade de restituição ou restauração. Contudo, a concordância não vai além
desse ponto, uma vez que a teologia evangélica discorda enfaticamente de outros
aspectos da explicação dada pela teologia católica à satisfação.
A discordância principal diz respeito à ideia de que aqueles que pecam devem
“fazer penitência”, isto é, devem fazer reparos ou expiar seus pecados. Essa ideia
de satisfação tem raízes no modelo de expiação do século XI (aquilo que a morte
de Cristo realizou na cruz) proposto por Anselmo. Esse importante teólogo-
59

filósofo desenvolveu sua teoria em meio à cultura medieval do feudalismo.


Nesse sistema, os senhores feudais protegiam seus servos, os quais, por sua vez,
trabalhavam para eles produzindo alimentos e serviços. É importante observar
que a restituição da honra mediante a satisfação era uma ideia extremamente
importante. Se um servo desonrasse seu senhor roubando dele dez galinhas, por
exemplo, a satisfação exigida não se limitava apenas à restituição do que fora
roubado (dez galinhas); pelo contrário, o servo tinha de satisfazer o senhor
fazendo alguma coisa a mais para restaurar a honra dele — em vez de dez
galinhas, ele deveria restituir quinze. Para Anselmo, o que Cristo fez na cruz foi
uma resposta ao pecado do homem que roubou a honra de Deus. Exigia-se como
restauração da honra divina, por parte do ser humano pecador, que lhe
proporcionasse satisfação; no entanto, nada mais podia fazer senão oferecer o
que já devia a Deus — um coração humilde ou obediente, por exemplo. Além
disso, o ser humano pecador nada podia fazer para ajudar outros seres humanos
pecadores. Consequentemente, somente Jesus Cristo, o Deus-homem, poderia
salvar a humanidade, e ele o fez oferecendo a si mesmo para morrer em seu
lugar. Esse ato de satisfação foi além do que o Salvador sem pecado devia a
Deus, restaurando desse modo a honra de Deus. Recompensado por Deus por
sua obediência que foi além do chamado do dever, Jesus Cristo concede essa
recompensa ao ser humano decaído para satisfação de seus pecados.
Embora não fosse intenção de Anselmo, seu modelo de expiação foi aplicado
à necessidade do ser humano pecador de proporcionar uma satisfação por seus
pecados, isto é, de fazer alguma coisa a mais para reparar ou expiar seus pecados
mediante o sacramento da penitência. A teologia evangélica, herdeira da
Reforma protestante, subscreve um modelo diferente de expiação que, embora
semelhante sob alguns aspectos à teoria da satisfação de Anselmo, tem a
seguinte diferença fundamental: em vez de alicerçar a expiação na honra de
Deus — que foi roubada de Deus pelo pecado da humanidade —, a teoria da
substituição penal a alicerça na justiça de Deus. Como Deus é santo, ele odeia o
pecado com ira indignada; consequentemente, o ser humano pecador tem uma
punição eterna a pagar. Como ele não pode expiar seus próprios pecados, Jesus
Cristo o fez: como substituto da humanidade, ele morreu em atitude de sacrifício
para pagar a penalidade pelo pecado, sofreu a ira divina contra o pecado e
removeu para sempre sua condenação. Tendo em seu núcleo o modelo
substitutivo penal, a teologia evangélica rejeita o sacramento da penitência,
porque seres humanos pecaminosos não podem fazer nada além do que aquilo
que lhes pedem que façam, não podem fazer reparação alguma para expiar seus
pecados e não podem satisfazer Deus — de fato, eles não apenas não podem
fazer essas coisas; eles não precisam fazê-lo, porque Jesus Cristo proporcionou
satisfação plena a Deus por meio de sua morte em substituição à humanidade
pecadora.
Em decorrência da rejeição desse sacramento, a teologia evangélica também
contesta a necessidade de um padre confessor introduzido pela teologia católica
para que imponha a satisfação apropriada aos penitentes. Qualquer que seja a
penitência — uma oração (uma prescrição comum consiste em pedir ao
penitente que reze cinco vezes uma “ave-maria” e cinco vezes o “pai-nosso”),
faça uma oferta, pratique boas ações etc. — nenhuma delas pode oferecer,
tampouco proporcionar, aquilo que a teologia católica tem em vista para a
penitência. Além disso, a penitência não pode ajudar a “configurar” (conformar)
os penitentes a Cristo ou permite que se tornem coerdeiros dele pelo sofrimento.
Por fim, a insistência da teologia católica de que a satisfação se dá por meio de
Cristo e nele encontra sua eficácia não altera o fato de que a penitência não é
necessária, nem pode sê-lo, em razão da morte supremamente suficiente e
satisfatória de Jesus Cristo, pela qual ele pagou a penalidade do pecado, como
substituto do ser humano pecador.
O duplo efeito da penitência
Em sua última dualidade, a teologia católica analisa o duplo efeito do
sacramento da penitência: restauração à graça de Deus e reconciliação com a
igreja. O pecado mortal confesso e absolvido é retirado, e os penitentes recebem
nova infusão da graça justificadora, para que seu relacionamento com Deus seja
restaurado. Além disso, a comunhão com o fiel é revitalizada. A teologia
evangélica está de acordo que o fruto da confissão, do arrependimento e, quando
necessário, a restituição da honra ou da propriedade ou a restauração de uma
amizade cristã rompida é, sem dúvida alguma, valioso. Tal fruto não inclui a
justificação, uma vez que o veredito de “não culpado”, e sim, “em vez disso,
justo”, já foi pronunciado e é, por conseguinte, verdadeiro no caso dos
penitentes. Tampouco tal fruto da penitência requer uma nova infusão da graça
divina. Pelo contrário, os efeitos se dão mais na ordem dos resultados adicionais
do sacramento detalhados pela teologia católica: paz, uma consciência limpa,
consolo, intimidade na relação com Deus e outros etc. É preciso dizer um pouco
mais a respeito desse aspecto da confissão.
Estou perfeitamente a par dos testemunhos católicos de como a declaração do
sacerdote ao absolver os penitentes dos seus pecados na ministração do
sacramento infunde nos crentes segurança e consolo decorrentes da obra
graciosa do perdão de Deus. O mesmo se aplica a amigos e discípulos
evangélicos que me chamaram à parte e confessaram seus pecados, o que me
levou a repetir 1João 1.9 para eles: “Se confessarmos os nossos pecados, ele é
fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça”. De
fato, na Escritura a igreja aparece como um lugar cheio de graça em que os
cristãos confessam regularmente seus pecados uns aos outros (Tg 5.16).
Contudo, a questão é que, de acordo com a teologia evangélica, a articulação
humana do perdão, quer seja ele pronunciado por um sacerdote, quer por um
amigo cristão, é a declaração do que é verdade, e não uma declaração do que a
torna verdade. Um exemplo claro disso vem do próprio Jesus quando ele
explicou o uso, pelos apóstolos, das chaves do reino: “O que ligares na terra terá
sido ligado no céu, e o que desligares na terra terá sido desligado no céu” (Mt
16.19; 18.18). A declaração apostólica de que uma pessoa não arrependida
continua presa a seus pecados reflete uma declaração divina segundo a qual ela
continua presa a seus pecados, e a declaração apostólica de que uma pessoa
arrependida agora está liberta dos seus pecados reflete uma declaração divina de
que ela foi desligada ou perdoada de seus pecados. Em ambos os casos, a
declaração humana repercute um estado de coisas — ligado ao pecado;
desligado do pecado — que já é verdadeiro; ele não o torna verdadeiro.
Consequentemente, quando um sacerdote ou um amigo cristão ouve uma
confissão e assegura ao penitente que seu pecado confessado está perdoado com
base no perdão fiel e justo de Deus e a purificação por ele operada no cristão de
todos os seus pecados, o que se tem é a declaração da verdade do perdão, e não
sua realização.
Essa teologia evangélica do perdão encoraja duas coisas. Em primeiro lugar,
ela encoraja o cristão durante a rotina do seu dia a confessar seus pecados
rapidamente a Deus e, de acordo com a promessa da Escritura, crer que seus
pecados são de fato perdoados. A confissão de pecados e a apropriação do
perdão se tornam uma questão de confiança. Portanto, não é fundamental que o
cristão se sinta consolado e certo de que os pecados confessados foram
perdoados. Pelo contrário, a promessa de Deus em sua Palavra e a confiança do
crente de que aquilo que Deus diz é verdade porque ele o tornou verdadeiro é o
que importa de fato. Não se apropriar do perdão de pecados pela confissão não é
resultado da falta de um intermediário humano que pronuncie a verdade de que
Deus perdoou a pessoa, e sim falta de fé na promessa da Palavra de Deus. Se a
promessa bíblica do perdão é um ato de fala divino, então a enunciação de Deus
60

em 1João 1.9 é mais do que uma mera declaração de palavras; pelo contrário, é
uma declaração que torna o perdão um fato.
Em segundo lugar, a teologia evangélica do perdão encoraja o cristão a
confessar seus pecados a outro cristão. Conforme dissemos acima, alguma coisa
muito poderosa acontece na confissão coletiva. Às vezes, é preciso trazer à luz
pecados ocultos que até então isolaram e sobrecarregaram aquele que agora os
confessa. Às vezes, requer que se lembre a uma pessoa esquecida, distraída ou
deprimida a divina promessa do perdão. Embora muitas igrejas — igrejas
evangélicas, bem como a Igreja Católica — incentivem as pessoas a exibir uma
fachada de piedade cristã, desestimulando a transparência em torno da maneira
que as coisas são de fato, as igrejas deveriam ser portos seguros que tomam a
frente da confissão de pecados e de arrependimento entre seus membros, lugares
cheios de graça que não se sintam chocados com a imoralidade, as fraudes, o
orgulho, a preguiça, os relacionamentos rompidos, a ira e outros pecados, mas
que migrem rapidamente para um ambiente de consolo, repreensão, correção e
perdão. Essa teologia evangélica de confissão de pecado não depende do
sacramento da penitência para sua realidade ou para que dê frutos.
Indulgências
Um último tópico relacionado com o sacramento da penitência é a doutrina e a
prática de indulgências. A relação se dá da seguinte forma: por meio do
sacramento, o castigo eterno do pecado é perdoado; contudo, a penitência não
remove a mancha do pecado mortal perdoado, e a mancha do pecado venial
persiste. Se o fiel não for totalmente obediente nesta vida, sua alma vai para o
purgatório, onde ele terá de passar por uma purificação adicional por causa da
corrupção que persiste.
A teologia evangélica, seguindo as pegadas de reformadores como Martinho
Lutero e João Calvino, condena esse aspecto da doutrina católica. São os
seguintes os principais pontos de discordância: criadas com o propósito de
cancelar o castigo temporal pelos pecados perdoados, as indulgências são
supérfluas porque Jesus Cristo, por meio de seu sacrifício supremamente
suficiente em favor do ser humano pecador, já cancelou todo o castigo resultante
do pecado. Ele pagou totalmente o que era devido; portanto, não resta culpa
alguma e não há castigo temporal algum que paire sobre o pecador. Além disso,
a salvação não depende da purificação completa da natureza pecaminosa do ser
humano nesta vida; antes, é uma questão de justificação, que é a declaração
forense de Deus de que o pecador arrependido não é culpado, e sim justo, porque
a justiça perfeita de Cristo é creditada em sua conta. Embora a justificação não
seja a única obra de poder de Deus em favor da salvação do ser humano decaído,
é sobre ela que repousam promessas como: “Portanto, agora já não há
condenação alguma para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8.1). Nenhuma
condenação significa nenhuma culpa, e, se não há culpa alguma, não há castigo
temporal pelo qual pagar no purgatório, de onde se sai com a ajuda das
indulgências.
Além disso, o conceito de tesouro dos santos, por meio do qual uma troca de
bens espirituais aplica os méritos de Cristo, juntamente com as orações e as boas
obras de Maria e dos santos, às almas dos fiéis no purgatório, não tem base
bíblica alguma e é ilógico. Se os méritos de Cristo são efetivamente indefinidos,
conforme assevera a teologia católica, então que possível benefício poderia ser
sobreposto ao que já é infinito pelas obras e orações de Maria e dos santos? E
que juros seriam acrescentados ao tesouro pela remissão total ou parcial do
pecado obtida ou comprada pelos fiéis vivos? No âmago dessas indagações
reside a crítica da teologia evangélica à interconexão Cristo-Igreja, para a qual a
Igreja Católica é a extensão da encarnação de Cristo, tornando necessária a
mediação do perdão pela igreja, além de outros bens espirituais imprescindíveis.
A teologia evangélica se recusa a aceitar a doutrina e prática das indulgências.
Em suma, o sacramento da penitência e reconciliação, que proporciona o
perdão dos pecados mortais, mas não remove a mácula dos pecados perdoados,
tampouco a dos pecados veniais, não é considerado um sacramento pela teologia
evangélica. Embora ela saúde aspectos como a afirmação de que Deus somente
perdoa pecados, o chamado aos cristãos para que confessem seus pecados, a
insistência de que a genuína conversão leva a resultados concretos, e alguns
outros pontos, esse sacramento apresenta muitas áreas de discordância
significativa com a teologia evangélica.

O sacramento da unção dos enfermos (seção 2,


capítulo 2, artigo 5)
O segundo sacramento de cura é o da unção dos enfermos, por meio do qual
“toda a Igreja encomenda os doentes ao Senhor, sofredor e glorificado, para que
os alivie e os salve”. Ele é também conhecido como extrema-unção, porque
61

com ele se unge o doente próximo da morte (esse era o uso praticamente
exclusivo desse sacramento antes do Concílio Vaticano II) e ainda sacramento
dos que partem (sacramentum exeuntium).
A base bíblica desse sacramento começa com a experiência comum da
enfermidade e do sofrimento humanos, que podem levar ao desespero e até
mesmo à revolta contra Deus, ou pode resultar em amadurecimento e até na
busca por Deus. No Antigo Testamento, a doença se acha intimamente associada
ao pecado e ao mal, juntamente com a esperança de que Deus cura toda
enfermidade, se não durante a vida terrena da pessoa, certamente em um tempo
futuro. Quando Jesus anunciou a inauguração desse tempo em sua mensagem de
que o reino de Deus estava próximo (Mc 1.15), ele juntou à sua proclamação a
compaixão pelos enfermos e curas de vários tipos (Mc 1.21—2.12). Com
frequência, ele pedia aos doentes que cressem (Mc 5.34,36; 9.23), tendo
recorrido a sinais (e.g., saliva, Mc 7.32-37; barro e abluções, Jo 9.6,7), bem
como imposição de mãos (Mc 8.22-25). Em outras ocasiões os doentes tentavam
tocá-lo, “porque dele saía poder que curava a todos” (Lc 6.19; cf. Mc 1.41; 3.10;
6.56). O Evangelho de Mateus apresenta a cura de um enfermo por Jesus como
cumprimento da profecia de Isaías: “Ele tomou sobre si as nossas enfermidades e
carregou as nossas doenças” (Mt 8.17; Is 53.4). No entanto, Jesus não curou a
todos, uma vez que suas curas eram sinais da chegada do reino e apontavam para
além de si mesmas, em direção a “uma cura mais radical: a vitória sobre o
pecado e a morte”. Com sua morte na cruz, “Cristo tomou sobre si todo o fardo
62

do mal e tirou o ‘pecado do mundo’ [Jo 1.29; cf. Is 53.4-6], do qual a doença é
apenas uma consequência”. O sacramento da unção é um meio pelo qual Jesus
63

continua a tocar o fiel para curá-lo e uni-lo ao seu sofrimento redentor.


Além disso, Cristo convidou seus discípulos a tomar a cruz e segui-lo (Mt
10.38) e, uma vez que eles se associavam à sua pobreza e ao seu serviço, ele os
enviou a curar: “Expulsavam muitos demônios, ungiam muitos doentes com óleo
e os curavam” (Mc 6.13). A alguns era concedido um dom especial de cura (Mc
16.17,18), entretanto a recuperação não ocorria o tempo todo;
consequentemente, o apóstolo aprendeu que a graça divina é suficiente mesmo
quando a cura não ocorre (2Co 12.9) e que o sofrimento significa que “completo
no meu corpo o que resta do sofrimento de Cristo, por amor do seu corpo, que é
a igreja” (Cl 1.24).
Por conseguinte, esse sacramento é necessário porque a igreja recebeu a
ordem do Senhor: “Curai os enfermos!” (Mt 10.8). Além disso, Tiago confirma o
rito: “Algum de vós está doente? Chame os presbíteros da igreja, para que estes
orem sobre ele, ungindo-o com óleo em nome do Senhor; e a oração da fé
salvará o doente, e o Senhor o levantará; e, se houver cometido pecados, será
perdoado” (Tg 5.14,15). 64

Até o Concílio Vaticano II, a ministração do sacramento da unção dos


enfermos era quase exclusivamente para os que estavam próximos da morte;
depois do concílio, o novo rito “não é sacramento só dos que estão prestes a
morrer. Por isso, o tempo oportuno para o receber é certamente quando o fiel
começa, por doença ou por velhice, a estar em perigo de morte”. Além disso, o
65
sacramento é repetível, tanto no caso da enfermidade grave, para a qual a unção
era ministrada, seguida pela recuperação e por nova enfermidade grave, bem
como no caso de uma condição de maior deterioração durante a mesma
enfermidade grave. Também é adequada a ministração do sacramento antes de
uma operação delicada em caso de fragilidade crescente do idoso.
Os ministradores apropriados da unção dos enfermos são os sacerdotes (ou
bispos), aos quais o fiel apela para que lhe ministrem o sacramento. Os
sacerdotes não o ministram aos que já morreram. O rito é administrado da
seguinte forma (seja numa casa, seja em um hospital ou em uma igreja, seja
dispensado a uma pessoa ou grupo de fiéis): o ideal é que a ministração seja
precedida pelo sacramento da penitência e seguido pelo sacramento da
eucaristia, que “deveria ser sempre o último sacramento da peregrinação
terrestre, o ‘viático’, da ‘passagem’ para a vida eterna”. A celebração começa
66

concretamente com um ato de arrependimento seguido pela Liturgia da Palavra.


Os sacerdotes silenciosamente “impõem em silêncio as mãos sobre os enfermos;
rezam por eles na fé da Igreja; é a epiclese própria desse sacramento; então,
conferem a unção com óleo, benzido, se possível, pelo bispo”. 67

A graça específica concedida por esse sacramento produz vários efeitos: como
dom especial do Espírito Santo, o efeito consiste na renovação da confiança em
Deus que fortalece a decisão do fiel de não cair nas tentações de Satanás de
desânimo e angústia ao se aproximarem da morte. Esse revestimento do Espírito
opera na alma e a cura e, se for da vontade de Deus, cura também o corpo. Além
disso, o enfermo experimenta a união com a paixão de Cristo: “Ele é, de certo
modo, consagrado para produzir frutos pela configuração com a paixão
redentora do Salvador [...]. O sofrimento [...] recebe um sentido novo:
transforma-se em participação na obra salvífica de Jesus”. Além disso, quem
68

recebe esse sacramento “contribui para o bem do povo de Deus” ao acrescentar


seu sofrimento ao sofrimento da igreja e a oferta dele mesmo a Deus. Por fim, o
69

sacramento completa a conformidade do fiel à morte e ressurreição de Cristo,


“tal como o batismo a iniciou”. Em outras palavras, toda a vida do cristão é
marcada por três “unções santas”. A primeira delas é a do batismo, o selo da vida
nova; a segunda é a confirmação, a força para os embates da vida; e, por último,
a unção dos enfermos, a fortificação no final desta vida em antecipação à vida
que virá. Conforme dissemos anteriormente, essa última unção se faz
70

acompanhar da eucaristia, o viático, “o sacramento da passagem da morte para a


vida, deste mundo para o Pai”. 71

Avaliação evangélica
A teologia evangélica concorda com boa parte do que afirma a teologia católica
sobre a cura. Há pontos específicos de acordo como a conexão entre o pecado e a
doença; a compaixão que Jesus manifestou pelos enfermos; a cura de alguns,
mas não de todos, os aflitos; seu ministério de restauração física como sinal do
advento do reino de Deus (que aponta por si mesmo para uma intervenção mais
radical de conquista do pecado e da morte); a cura como parte indissociável da
comissão dada por Jesus a seus discípulos; bem como as instruções de Tiago
sobre a maneira pela qual a igreja deve participar do ministério da oração de cura
atualmente. Como essas últimas instruções não limitam esse ministério à oração
e à unção somente no caso de cristãos que estejam às portas da morte, a teologia
evangélica concorda com a mudança introduzida pelo Concílio Vaticano II,
abrindo esse ministério a todo aquele que esteja em perigo de morte, com a
saúde precária em razão de alguma enfermidade ou idade avançada, próximo de
fazer uma operação séria etc.
A unção dos enfermos não é um sacramento
O ponto central de discordância é a determinação da teologia católica de que
esse ministério de cura é um sacramento. Para a teologia evangélica, o rito
atende efetivamente a um requisito necessário a um sacramento ou ordenança: a
unção com óleo é seu sinal tangível. Falta-lhe, porém, a instituição como tal por
Cristo. Certamente, ele curou os doentes e, por vezes, seu ato de restauração foi
acompanhado de um sinal físico — por exemplo, saliva, imposição de mãos,
barro e abluções. Contudo, a variedade desses símbolos tangíveis, os quais Jesus
por vezes empregou e, por vezes não, serve de advertência para que não se veja
esse ministério como se tivesse sido ordenado por Cristo com um sinal
específico. Sem dúvida, Jesus ordenou aos discípulos que curassem os enfermos,
mas, como esse ministério de cura era apenas um aspecto de um ministério mais
amplo que Cristo lhes deu (e que também incluía exorcismos e pregação do
evangelho), não se deve isolá-lo desses outros aspectos e, em seguida, elevá-lo à
condição de sacramento. A teologia católica também aponta a expressão “em
nome do Senhor” como parte da instrução de Tiago para esse rito (Tg 5.14) e a
toma como respaldo para a ordem de Cristo de que seja ministrado como
sacramento. A expressão, porém, não indica a origem em Jesus desse ministério,
e sim a autoridade divina com a qual é executado. Um exemplo que serve de
apoio à natureza revestida de autoridade do nome de Jesus é o caso do homem
coxo de nascença, a quem Pedro e João curaram “em nome de Jesus Cristo de
Nazaré” (At 3.1-16, esp. v. 6,16). Quando, mais tarde, ao ser indagado pelo
Sinédrio: “Com que poder ou em nome de quem fizestes isso?”, Pedro explicou:
“se hoje somos questionados acerca do benefício feito a um doente, e pelo modo
em que foi curado, seja do conhecimento de todos vós e de todo o povo de Israel
que, em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, aquele a quem crucificastes e a quem
Deus ressuscitou dentre os mortos, sim, por meio desse nome, este homem está
aqui com boa saúde diante de vós” (4.7-10). Consequentemente, no momento
72

em que os presbíteros da igreja oram por um doente e o ungem com óleo “em
nome do Senhor”, eles exercitam seu ministério debaixo da autoridade soberana
de Jesus Cristo, sem que essa expressão indique que ele ordenou que tal
ministério seja um sacramento para a igreja.
Outras discordâncias
Outros pontos de discordância aparecem na ministração ideal desse sacramento
pela teologia católica em conjunto com a penitência (que o precede) e com a
eucaristia (que a segue). Tendo já tratado do sacramento da eucaristia ministrado
como viático e do sacramento da penitência como poder para os pecados
mortais, basta aqui repetir que uma infusão final de graça por meio desses
sacramentos não é necessária para quem está deixando esta vida e entrando na
salvação da vida por vir. Além disso, a teologia evangélica questiona o
argumento da teologia católica segundo o qual, pela comunicação da graça nesse
sacramento de unção dos enfermos, o Espírito Santo cura a alma de quem o
recebe e, se for da vontade de Deus, cura também seu corpo. Em lugar nenhum a
Escritura indica que a cura interior é o resultado pretendido da oração pela cura
física; pelo contrário, a ênfase da Bíblia — no ministério de cura de Jesus, ao
comissionar os discípulos para que participem da cura, e nas instruções de Tiago
acerca desse ministério — é sempre na cura física. Em resposta a isso, a teologia
católica talvez aponte para a promessa que o acompanha: “e, se houver cometido
pecados, será perdoado” (Tg 5.15); dessa expressão, a teologia católica conclui
que a cura da alma é consequência do sacramento. Contudo, esse efeito a mais
está associado não à unção com óleo, mas à confissão desses pecados: “Portanto,
confessai vossos pecados uns aos outros e orai uns pelos outros para serdes
curados” (v. 16).
Além disso, a proposta da teologia católica de que o sofrimento do fiel o une
mais intimamente à paixão de Jesus Cristo, de modo que seu sofrimento seja
uma participação em sua obra salvadora, está longe do que diz a Escritura. Os
sofrimentos de Jesus são redentores, e não os do fiel. O fato de Cristo prometer
sofrimentos a seus seguidores (Fp 1.29), de lhes deixar um exemplo de como
sofrer piamente (1Pe 2.21-25), de convocá-los para que os suportem (1Pe 1.6-9)
e de proporcionar todos os recursos necessários para que resistam em meio às
provações e ao sofrimento (2Co 12.10) encontra sem dúvida respaldo na
Escritura. Mas não se apresentam os sofrimentos do fiel como algo que participa
com Cristo de sua obra redentora, tampouco os que recebem esse sacramento
somam os seus sofrimentos ao sofrimento da igreja. Essa visão se baseia na
interconexão Cristo-Igreja: a Igreja Católica é a continuação da encarnação do
Cristo total, é tanto a cabeça quanto seu corpo unidos e presentes na igreja.
Portanto, os sofrimentos do corpo (os fiéis) se unem aos da cabeça (Jesus
Cristo). Já demonstramos que tal axioma é fundamentalmente equivocado.
Mais concretamente, essa posição parece se basear em uma interpretação
equivocada da afirmação de Paulo de que “Agora me alegro nos meus
sofrimentos por vós e completo no meu corpo o que resta do sofrimento de
Cristo, por amor do seu corpo, que é a igreja, da qual me tornei ministro
segundo o chamado de Deus, que me foi concedido para convosco, a fim de
tornar plenamente conhecida a Palavra de Deus” (Cl 1.24,25, grifo do autor). O
apóstolo, por meio do seu sofrimento, não está compensando nenhuma
deficiência do sacrifício de Jesus Cristo. Pelo contrário, ele preenche o que falta
à igreja de Colossos tornando-se seu servo, “para que a Palavra de Deus seja
plenamente conhecida” concretamente por meio do seu ministério pioneiro aos
gentios, pelo que ele combate vigorosamente por meio do poder de Deus (v. 26-
29). As narrativas das viagens missionárias do apóstolo no Novo Testamento
destacam a perseguição feroz que ele enfrentou ao apresentar o evangelho de
Cristo em regiões até então não evangelizadas. Consequentemente, com
referência aos colossenses, Paulo explica:
que está indo à frente da igreja em território desconhecido para tornar conhecido pela primeira vez o
evangelho. Ao fazê-lo, ele suporta o antagonismo do mundo em relação a Deus e à sua Palavra.
Como servo da igreja, ele se adianta a ela para receber os primeiros golpes da espada que virá atingi-
la. Paulo pode dizer que esse sofrimento semelhante ao de Cristo está em “falta” no que diz respeito à
igreja porque é obra inevitável da experiência da igreja baseada no evangelho. Como a Palavra
seguirá inevitavelmente adiante, e o mundo odeia a Palavra, a perseguição implacável também é
inevitável. Paulo se adianta espontaneamente e com alegria à igreja para sofrer uma perseguição mais
pública e extrema.73

Desse modo, os sofrimentos suportados pelo apóstolo Paulo não foram


sofrimentos e aflições genéricos de quem viveu a vida neste mundo caído; pelo
contrário, foram perseguições com que deparou ao proclamar o evangelho em
territórios hostis. Generalizar as experiências de Paulo de tal modo que os
sofrimentos dos que recebem o sacramento da unção dos enfermos participam da
obra salvadora de Cristo e contribuem com os méritos do tesouro dos santos
carece de fundamento.
Em suma, a teologia evangélica subscreve aspectos da teologia católica da
unção dos enfermos, mas discorda de outros, especificamente por não considerar
essa atividade de cura um sacramento.
1
Edição em português: Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Loyola, 1999).
2
CCC 1421.
3
CCC 1422; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 11.2.
4
CCC 1423-1424; citação do Ordo paenitentiae (Vatican City: Vatican Polyglot, 1974), p. 46; fórmula
de absolvição.
5
CCC 1425.
6
CCC 1426.
7
Ibidem (grifo removido).
8
CCC 1427.
9
CCC 1428; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 8.3; referência bíblica: Salmo 51.17; cf.
João 6.44; 12.32; 1João 4.10.
10
CCC 1429. O Catechism se refere ainda ao comentário de Ambrósio sobre as duas conversões na
igreja: “Há água e lágrimas: a água do batismo e as lágrimas do arrependimento” (Ambrose, Epistle 41.12
[NPNF2 10:447]).
11
CCC 1432.
12
CCC 1430 (grifo do autor).
13
CCC 1431.
14
CCC 1430.
15
CCC 1434 (grifo do original).
16
CCC 1434-1435.
17
CCC 1436; citação dos Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 13.ª sessão (11 de outubro de
1551), Decreto Referente ao Santíssimo Sacramento da Eucaristia 2 (Schaff, 2:128).
18
CCC 1437.
19
CCC 1440.
20
CCC 1441.
21
CCC 1442; referência bíblica: 2Coríntios 5.18,20.
22
CCC 1444.
23
Ibidem; referência bíblica: Mateus 16.19; cf. 18.18; 28.16-20.
24
CCC 1444; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 22.2.
25
CCC 1445 (grifo do autor).
26
CCC 1446.
27
Ibidem; a citação é de Tertuliano, On penance 4, 7 (ANF 3:659-660, 662-663). O Catechism trata
brevemente do desenvolvimento histórico do sacramento destacando sua estrutura pública, extensa e não
repetível na igreja primitiva, e sua configuração drasticamente modificada — privada (i. e., em segredo
entre o penitente e o sacerdote), relativamente breve e repetível — a partir do monasticismo irlandês no
sétimo século em diante até sua trajetória atual (CCC 1447).
28
CCC 1448.
29
CCC 1451; citação dos Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 14.ª sessão (25 de novembro de
1551), Dos Santíssimos Sacramentos da Penitência e da Extrema-Unção, cap. 4 (Schaff, 2:144).
30
CCC 1452-1453.
31
CCC 1453. A distinção entre pecados veniais e graves (ou mortais) será explicada pouco à frente.
32
Ibidem.
33
CCC 1456; citação dos Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 14.ª sessão (25 de novembro de
1551), Dos Santíssimos Sacramentos da Penitência e da Extrema-Unção, cap. 5 (Schaff, 2:147).
34
Extraído de Catholic Online, disponível em: http://www.catholic.org/prayers/prayer.php?p=421.
35
Conforme estipulado pelo cânone 989 do Código de Direito Canônico e Cânones e Decretos do
Concílio de Trento, 14.ª sessão (25 de novembro de 1551), Cânones referentes aos Santíssimos Sacramentos
da Penitência e da Extrema-Unção, cânone 8 (Schaff, 2:166). Essa estipulação foi feita pela primeira vez
pelo Quarto Concílio de Latrão (1215).
36
CCC 1457.
37
CCC 1458.
38
CCC 1459. Cf. Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 14.ª sessão (25 de novembro de 1551), Dos
Santíssimos Sacramentos da Penitência e da Extrema-Unção, cap. 8 (Schaff, 2:155-158).
39
CCC 1460.
40
Ibidem.
41
CCC 1480.
42
CCC 1467.
43
CCC 1463. A absolvição da excomunhão é objeto dos cânones 1331 e 1354-1357 do Código de
Direito Canônico.
44
CCC 1468.
45
CCC 1470.
46
CCC 1471; a citação é de Paulo VI, constituição apostólica, Indulgentiarum doctrina, norm 1,
disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/paul_vi/apost_constitutions/documents/hf_p-
vi_apc_19670101_indulgentiarum-doctrina_en.html.
47
CCC 1472.
48
CCC 1475.
49
CCC 1476-1477.
50
CCC 1478. Exemplos específicos para obtenção de indulgências consistem em certas atividades
associadas ao Ano da Fé (11 de outubro de 2012 a 24 de novembro de 2013) e à participação na 28.ª
Jornada Anual da Juventude (Rio de Janeiro, 22-29 de julho de 2013). A respeito do Ano de Fé, veja:
http://www.vatican.va/roman_curia/tribunals/apost_penit/documents/rc_trib_appen_doc_20120914_annus-
fdei_en.html. Para a Jornada Mundial da Juventude, veja:
http://www.vatican.va/roman_curia/tribunals/apost_penit/documents/rc_trib_appen_doc_20130709_decreto-
indulgenze-gmg_en.html.
51
Enquanto a Vulgata Latina, a Bíblia da Igreja Católica, apresentava Jesus exortando o povo, dizendo-
lhe: “Pœnitentiam agite” (Fazei [atos de] penitência”), a versão grega apresentava Jesus dizendo:
Μετανοεῖτε” (Metanoeite; “Arrependei-vos”).
52
Lutero expressou sua convicção no final de sua obra de 1520, On the Babylonian captivity of the
church: “Parece que se denominam de sacramentos propriamente aqueles que foram prometidos com sinais
anexos. Os demais que não estão unidos a sinais são meras promessas. Disso resulta que, se queremos falar
a rigor, temos somente dois sacramentos: o batismo e o pão. Vemos que somente neles foi instituído
divinamente o sinal e prometido o perdão dos pecados. O sacramento da penitência, que acrescentei a esses
dois, carece de sinal visível e divinamente instituído. Afirmei que não é outra coisa que o caminho e o
regresso ao batismo. Mas nem sequer os escolásticos podem asseverar que sua definição possa corresponder
à penitência. Eles próprios conferem um sinal visível ao sacramento, que dá forma ao sentido daquela coisa
que obra invisivelmente. Mas a penitência ou absolvição não mostra tal sinal. Por isso, eles próprios, por
sua própria definição, veem-se forçados a negar que a penitência é sacramento e a diminuir, assim, o
número dos sacramentos ou a dar-lhes outra definição” (LW 36:243-244) [edição em português: Martinho
Lutero, Do cativeiro babilônico da igreja (São Leopoldo: Sinodal, 1982)].
53
Grudem, ST, p. 717 (grifo do original) [edição em português: Wayne Grudem, Teologia sistemática
(São Paulo: Vida Nova, 2011)].
54
Sem prejulgamentos aqui a favor de uma ou outra posição, parece que a passagem bíblica mais clara a
vincular regeneração e conversão coloca esses dois eventos nessa ordem: “Todo aquele que crê que Jesus é
o Cristo é nascido de Deus; e todo aquele que ama o que o gerou, ama também o que dele é nascido” (1Jo
5.1). A fé em Cristo (conversão) se baseia no novo nascimento (regeneração), ou é fruto dele.
55
CCC 1430.
56
Martinho Lutero se posicionou com veemência contra essa tendência católica em seu Sermon on good
works.
57
CCC 1445 (grifo do autor).
58
Grifo do autor. Para uma discussão técnica da construção grega dos futuros perfeitos perifrásticos que
dão esse sentido, veja D. A. Carson, “Matthew”, in: Frank E. Gaebelein, org., Expositor’s Bible
Commentary (Grand Rapids: Zondervan, 1984), 12 vols., vol. 8, p. 370-2.
59
Anselm [Anselmo], Why God became man.
60
O “ato de fala” é uma declaração que produz alguma coisa. Por exemplo, quando um pastor conclui
uma cerimônia de casamento dizendo ao homem e à mulher à sua frente: “Eu agora os declaro marido e
mulher”, sua declaração efetua a união daquelas duas pessoas no casamento. A teoria do ato de fala é hoje
muito utilizada entre teólogos e filósofos evangélicos.
61
CCC 1499; a citação é do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 11.
62
CCC 1505.
63
Ibidem.
64
CCC 1509-1510.
65
CCC 1514; citação do Concílio Vaticano II, Sacrosanctum concilium 73; cf. cânones 1004.1; 1005;
1007 do Código de Direito Canônico.
66
CCC 1517. O termo latino viaticum se refere a provisões para uma jornada.
67
CCC 1519.
68
CCC 1521.
69
CCC 1522; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 11.2.
70
CCC 1523.
71
CCC 1524.
72
Outro exemplo é a oração dos discípulos de que Deus lhes daria ousadia na evangelização enquanto
“estendes a mão para curar e para realizar sinais e feitos extraordinários pelo nome de teu santo Servo
Jesus” (At 4.30). Os paralelos bíblicos de cura em nome de Jesus são a expulsão de demônios em seu nome
(e.g., Mt 7.22; 8.16; 10.1; 12.27,28; At 16.18; 19.13), novamente com ênfase na autoridade com a qual
esses exorcismos são feitos.
73
Robert L. Plummer, Paul’s understanding of the church’s mission: did the apostle Paul expect the
early Christian communities to evangelize? Paternoster Biblical Monographs (Waynesboro: Paternoster,
2006), p. 133-4.
10
A CELEBRAÇÃO DO MISTÉRIO
CRISTÃO
(segunda parte, seção 2, capítulo 3, artigos
6-7)
Os sacramentos ao serviço da comunhão: ordem; matrimônio

Os sacramentos ao serviço da comunhão (seção 2,


capítulo 3)
Depois de apresentar três sacramentos da iniciação cristã — batismo,
confirmação e a eucaristia — e os dois sacramentos de cura — penitência e
reconciliação e unção dos enfermos —, o Catechism of the Catholic Chruch 1

conclui sua discussão dos sete sacramentos com dois sacramentos ao serviço da
comunhão: ordem e matrimônio. Esses ritos são “ordenados para a salvação de
2

outrem [...] e conferem uma missão particular na igreja, e servem à edificação do


povo de Deus”. De modo concreto, o sacramento da ordem consagra os
3

sacerdotes “para que alimentem a igreja com a Palavra e graça de Deus”, e o


sacramento do matrimônio consagra os cônjuges cristãos “para os deveres e a
dignidade do seu estado [de relacionamento matrimonial]”. 4

O sacramento da ordem (seção 2, capítulo 3, artigo 6)


O ministério apostólico — a missão ininterrupta confiada por Cristo aos
apóstolos e repassada a seus sucessores, os bispos da Igreja Católica — depende
do sacramento da ordem. O nome vem do termo latino ordo, que na antiguidade
romana se referia especialmente a um corpo de governo. A ordenação (do lat.
ordinatio), portanto, significa “incorporação em uma ordo”. Na Igreja Católica,
há três graus de ordem: ordo episcoporum (o episcopado, para bispos), ordo
presbyterorum (presbiterato, para padres) e ordo diaconorum (diaconato, para
diáconos). O ato sacramental que integra certos homens a essas três ordens “vai
além da simples eleição, designação, delegação ou instituição pela comunidade,
uma vez que confere o dom do Espírito Santo que permite o exercício de um
‘poder sagrado’ (sacra potestas) que só pode advir do próprio Cristo através de
sua igreja”. Outro nome para o sacramento é consagração (do lat. consecratio),
5

que consiste em um “pôr à parte e uma investidura feita pelo próprio Cristo para
a sua igreja”. O sinal dessa ordenação ou consagração é a imposição de mãos
6

por um bispo.
Em relação à base bíblica para esse sacramento, a antiga aliança do sacerdócio
levítico, que se ocupava do serviço litúrgico para o povo de Israel, trata-se de
uma prefiguração do sacerdócio da nova aliança da igreja. Consagrados por um
rito específico, esses levitas eram “[designados] dentre os homens, em favor dos
quais [são] constituído[s] nas coisas relativas a Deus, para que apresente[m]
ofertas e sacrifícios pelos pecados” (Hb 5.1; cf. Êx 29.1-30; Lv 8). Outra
prefiguração do ministério ordenado é o estabelecimento dos setenta anciãos
(Nm 11.24,25). A Tradição da igreja também “considera Melquisedeque,
‘sacerdote do Deus Altíssimo’, uma prefiguração do sacerdócio de Cristo, o
único ‘sumo sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque’; ‘santo, inocente,
sem mancha’, que ‘com uma única oblação, tornou perfeitos para sempre os que
foram santificados’, isto é, pelo único sacrifício da sua cruz”. Conforme
7

explicado anteriormente, embora esse sacrifício único de Cristo tenha sido


realizado de uma vez por todas, ele se torna presente no sacramento da
eucaristia: “O mesmo se diga do sacerdócio único de Cristo, que é tornado
presente pelo sacerdócio ministerial, sem diminuição da unicidade do sacerdócio
de Cristo: ‘Só Cristo é verdadeiro sacerdote, sendo os outros seus ministros’”. 8

Mais concretamente, esse sacerdócio único de Cristo consiste em duas


participações, porque Cristo fez da igreja “um reino, sacerdotes para Deus e Pai”
(Ap 1.6; cf. 5.9,10; 1Pe 2.5,9); portanto, a igreja consiste em um sacerdócio de
todos os crentes, em dois sentidos. O primeiro, o sacerdócio batismal ou comum,
é aquele em que todos os fiéis participam à medida que se envolvem na missão
de Cristo. O segundo, o sacerdócio ministerial ou hierárquico, é aquele do qual
bispos e sacerdotes participam. Embora ambos estejam intimamente
relacionados, são essencialmente distintos da seguinte forma: “O sacerdócio
ministerial está a serviço do sacerdócio comum”. Essa diferença é a razão pela
9

qual o sacerdócio hierárquico requer um sacramento próprio de ordem. De fato,


por meio desse sacramento, o sacerdote “age in persona Christi Capitis ”, isto 10

é, o ministro ordenado age na pessoa de Cristo Cabeça, de tal modo que o


próprio Cristo está presente em sua igreja: “É o mesmo sacerdote, Cristo Jesus,
cuja pessoa santa representa verdadeiramente seu ministério. O ministro [...] é
verdadeiramente tornado igual ao sumo sacerdote e possui autoridade para agir
no poder e no lugar da pessoa do próprio Cristo”. 11

Essa consagração sacramental não preserva os ministros ordenados da


fragilidade, do erro e do pecado, mas garante efetivamente que seu “pecado não
pode impedir o fruto da graça” quando ministram os sacramentos. Na verdade,
12

sem suas celebrações dos sacramentos, os ministros deixam “vestígios, que nem
sempre são sinais de fidelidade ao evangelho e podem, por conseguinte,
prejudicar a fecundidade apostólica da igreja”. Consequentemente, o Catechism
13

ressalta o fato de que o “poder sagrado” conferido aos sacerdotes pela ordem
torna seu sacerdócio ministerial, isto é, a serviço da igreja. Além disso, esse
sacerdócio ministerial é duplamente direcional: representa Cristo para a igreja e
“age em nome da igreja toda ao apresentar a Deus a oração da igreja e,
principalmente, ao oferecer o sacrifício da eucaristia”. 14

Os três graus do sacramento são, na verdade, divididos em dois tipos: os dois


graus da participação sacerdotal — o episcopado (a ordem dos bispos) e o
presbiterato (a ordem dos padres); e um único grau de serviço — o diaconato (a
ordem dos diáconos), que existe para ajudar os bispos e os sacerdotes. Contudo,
todos os três graus são conferidos pelo sacramento da ordem.
O Catechism trata primeiramente dos dois graus de participação sacerdotal. A
ordem dos bispos, ou episcopado, é conferida a homens por meio da ordenação
episcopal, que é a plenitude do sacramento da ordem. Esse ofício transmite a
linha apostólica, a sucessão ininterrupta de bispos que remonta ao apóstolo
Pedro no início da igreja. Cristo dotou seus apóstolos com um derramamento
especial do Espírito Santo, e eles, por sua vez, transmitiram a seus sucessores, os
bispos, o dom do Espírito pela imposição de mãos; a mesma prática prossegue
até hoje por meio da consagração episcopal. Essa transmissão da plenitude do
sacramento “é chamada sumo sacerdócio e vértice (summa) do sagrado
ministério”. De modo concreto, a ordenação episcopal confere três ofícios ou
15

responsabilidades — ensino, governo e santificação — de tal modo que os


bispos “fazem as vezes [...] do próprio Cristo, Mestre, Pastor e Pontífice, e
atuam em vez dele (in Eius persona agant)”. Essa consagração, conferida por
16

vários bispos e pela “especial intervenção do Bispo de Roma [o papa]”, confere 17

a graça do Espírito Santo, que é uma marca indelével. Os bispos assim


consagrados desfrutam de uma comunhão hierárquica uns com os outros e
formam um colégio apostólico. “Cada bispo tem, como vigário de Cristo, o
encargo pastoral da igreja particular que lhe foi confiada. Mas, ao mesmo tempo,
partilha colegialmente com todos os seus irmãos no episcopado a solicitude por
todas as igrejas.” 18

A ordem dos padres, ou presbiterato, partilha da autoridade de Cristo, mas não


em um grau supremo como a ordem dos bispos. De modo concreto, “o seu cargo
ministerial foi transmitido em grau subordinado aos presbíteros, para que,
constituídos na ordem do presbiterato, fossem cooperadores da ordem episcopal
para o desempenho perfeito da missão apostólica confiada por Cristo”. O 19

sacramento da ordem confere a esses homens o sacerdócio de padres e, tal como


na consagração episcopal, confere a graça do Espírito Santo, que é uma marca
indelével. Além disso, a ordenação os conforma a Cristo “de tal modo que
podem agir na pessoa de Cristo Cabeça”, delegando-lhes um grau menor das
20

três responsabilidades de ensino, governo e santificação. Ao mesmo tempo, o


sacerdote partilha “das dimensões universais da missão que Cristo confiou aos
apóstolos”. Isso se vê especialmente na celebração do sacramento da eucaristia,
21

em que “exercitam sem grau supremo seu ofício sagrado” e do qual “todo o seu
ministério extrai sua força”. Os padres, juntamente com seu bispo, constituem
22

um colégio (presbyterium) sacerdotal. Unidos a seus bispos, os padres


‘“representam, de certo modo, o bispo [...] cujos encargos e solicitude assumem’
[...] e exercitam seu ministério unicamente na dependência do bispo e em
comunhão com ele”. 23

Depois de discorrer sobre os dois graus da participação sacerdotal no


sacramento da ordem — o episcopado (ordem dos bispos) e o presbiterato
(ordem dos padres) —, o Catechism passa a discutir em seguida o único grau de
serviço — o diaconato (ordem dos diáconos). Os diáconos “recebem a imposição
de mãos ‘não para o sacerdócio, mas para o ministério’”, e, desse modo, ocupam
um “nível inferior da hierarquia”. Assim como ocorre na consagração episcopal
24

e sacerdotal, o sacramento confere a esses homens uma marca indelével e “os


conforma a Cristo, que se fez ‘diácono’, isto é, o servo de todos”. Na prática, os
25

diáconos existem para ajudar o bispo e os padres especialmente na celebração


dos sacramentos (e.g., eles distribuem os elementos eucarísticos e abençoam
matrimônios), na comunicação do evangelho e na pregação, na supervisão de
funerais etc. Embora disseminado na igreja primitiva, o diaconato caiu em
desuso e foi restaurado depois do Concílio Vaticano II; sua implementação é
uma tarefa perene na igreja hoje. “Esse diaconato permanente, que pode ser
conferido a homens casados, constitui um enriquecimento importante para a
missão da igreja.” 26

Em suma, o sacramento da ordem existe em três graus: os dois graus da


participação sacerdotal (o episcopado e o presbiterato) e em um grau de serviço
(diaconato).
A ministração desse sacramento é uma celebração solene realizada em um
domingo na catedral (igreja onde está localizada a cadeira do bispo) durante a
liturgia eucarística. O rito essencial é a imposição das mãos do bispo sobre a
cabeça do ordinando (i. e., daquele que será ordenado) e a oração de consagração
pelo bispo que pede o derramamento do Espírito Santo e as bênçãos respectivas
para o ofício específico a que o ordinando está sendo ordenado. Há ainda outros
elementos: “os ritos iniciais — a apresentação e a eleição do ordinando, a
alocução do bispo, o interrogatório do ordinando, as ladainhas dos santos
[oração estruturada invocando a misericórdia do Senhor]”. Outros ritos de
27

consagração de um bispo são “a unção com o crisma [...] a entrega do livro dos
Evangelhos, do anel, da mitra [chapéu] e do báculo [cajado]”. O óleo “é um sinal
de unção especial do Espírito Santo que torna frutífero seu ministério”, e os dons
são sinais da “missão apostólica [do bispo] de proclamar a Palavra de Deus, sua
fidelidade à igreja, a noiva de Cristo, e seu ofício de pastor do rebanho do
Senhor”. Para a ordenação de um padre, os ritos são a unção com óleo e a
entrega da patena (bandeja sobre a qual serão depositadas as hóstias) e do cálice
(copo para o vinho e a água eucarísticos); esses sinais são a “oferenda do povo
santo” que o sacerdote “é chamado a apresentar a Deus”. Para a ordenação de
um diácono, a unção com óleo é acompanhada por um presente, o livro dos
Evangelhos, um sinal da missão do diácono de “proclamar o evangelho de
Cristo”.28

O próprio Cristo é quem confere os três graus desse sacramento por meio dos
bispos; como sucessores dos apóstolos, “transmitem ‘o dom espiritual’, a
‘semente apostólica’”. O ordinando deverá ser do sexo masculino, batizado,
29

será homem para manter o costume de Jesus escolher homens para ser seus
apóstolos, os quais, por sua vez, escolhem outros homens. “A igreja reconhece-
30

se vinculada por essa escolha feita pelo Senhor em pessoa. É por isso que a
ordenação das mulheres não é possível.” Portanto, no caso dos bispos e dos
31

sacerdotes, os ordinandos devem ser “homens de fé que vivem uma vida


celibatária e que pretendem permanecer celibatários ‘por causa do reino de
Deus’ [Mt 19.12]”. “O celibato é um sinal desta vida nova, para cujo serviço o
32

ministro da igreja é consagrado”; o celibato deve ser “aceito de coração alegre”,


e assim mantido. Já os diáconos permanentes podem se casar.
33

Os efeitos do sacramento da ordem são inúmeros: conforme já dissemos, um


deles é a conformação a Cristo pela graça do Espírito Santo para o propósito de
participação na missão de Cristo e de sua igreja. O homem consagrado age na
pessoa de Cristo em seu triplo ofício de sacerdote, profeta e rei. Outro efeito,
conforme se dá no batismo e na confirmação, é a comunicação de uma marca ou
caráter espiritual indelével no recebedor, o que chama a atenção para o fato de
que o sacramento não pode ser repetido. Consequentemente, embora seja
possível para um homem consagrado por esse sacramento ser removido do seu
ofício e destituído de suas responsabilidades, essa desqualificação não faz dele
um leigo. Ele continua essencialmente marcado como bispo/sacerdote/diácono.
De fato, o Catechism lembra que, como “é Cristo, afinal, quem age e opera a
salvação através do ministro ordenado, a indignidade deste não impede Cristo de
agir”. Outro efeito do sacramento é o dom da “graça do Espírito Santo própria
34

deste sacramento [que] consiste numa configuração com Cristo, Sacerdote,


Mestre e Pastor, de quem o ordenado é constituído ministro. Para o bispo, é, em
primeiro lugar, uma graça de fortaleza [...] guiar e defender [...] sua igreja”,
santificando-a, ensinando-lhe e governando-a. Para o sacerdote, essa graça lhe
35

permite proclamar o evangelho e pregar, oferecer o sacrifício eucarístico e


batizar etc. Para o diácono, essa graça promove a dedicação aos fiéis juntamente
com o bispo e os padres, para o serviço da liturgia, o evangelho e as obras de
caridade.

Avaliação evangélica
Conforme dissemos na discussão e avaliação da teologia católica da doutrina da
igreja (cap. 4), um dos principais pontos de divergência entre a teologia católica
e a teologia evangélica é essa doutrina específica. Essa profunda divisão vem à
tona novamente no sacramento da ordem. Para uma crítica abrangente desse
sacramento, a teologia evangélica volta, uma vez mais, aos dois axiomas sobre
os quais está construído o sistema teológico do catolicismo e mostra como esses
falsos pilares constituem o fundamento da ordem. Em primeiro lugar, a
interdependência natureza-graça contribui de modo especial com o sacramento:
a natureza humana (nesse caso, os homens consagrados pela ordem) tem a
capacidade de mediar a graça. Consequentemente, os padres ordenados agem na
pessoa de Cristo Cabeça, conforme fica particularmente claro quando ministram
os sacramentos que comunicam graça sobre os fiéis. Imediatamente, observa-se
o segundo axioma em ação: a interconexão Cristo-Igreja significa que a Igreja
Católica é a continuação da encarnação de Cristo, que está presente em seu
corpo na igreja (nesse caso, em seus ministros consagrados, os padres) e age por
meio deles para dispensar a graça. A interdependência natureza-graça também
aparece na base de apoio da estrutura hierárquica da igreja: como há uma
hierarquia entre a natureza (na extremidade inferior) e a graça (na extremidade
superior), uma hierarquia semelhante deve estar presente na igreja. Portanto, a
diferença essencial entre os leigos (na extremidade inferior) e o clero (na
extremidade superior) encontra justificativa nesse axioma. De igual modo, a
estrutura dos três graus da ordem: o grau de serviço, ou o diaconato (na
extremidade inferior), o segundo grau de participação sacerdotal, ou presbiterato
(no meio) e o primeiro grau de participação sacerdotal, ou episcopado (na
extremidade superior). Por fim, esses três graus são consagrados pela ordem à
medida que esse sacramento “confere um dom do Espírito Santo que permite o
exercício de um ‘poder sagrado’ (sacra potestas) que só pode vir do próprio
Cristo, pela sua igreja”. De modo transparente, a interconexão Cristo-Igreja
36

proporciona o fundamento para o sacramento visto dessa forma. As críticas a


esses axiomas, já feitas (cap. 1), não serão repetidas aqui, mas esta avaliação
evangélica faz questão de ressaltar que é equivocado o sistema católico no qual o
sacramento da ordem se baseia.
Governo/ofícios da igreja
Há outras críticas a serem feitas, e a primeira área de avaliação diz respeito ao
governo ou ofícios da igreja. Em muitas de suas variações, a teologia evangélica
afirma que o Novo Testamento apresenta três ofícios na igreja: apostolado,
presbiterato e diaconato. O apostolado, constituído pelos Doze apóstolos e
alguns outros no círculo apostólico (Paulo, Barnabé e Tiago), foi estabelecido
37

pelo próprio Jesus (Mc 3.13-18), exigia que seus membros tivessem estado com
Jesus desde o início do seu ministério e que tivessem testemunhado uma de suas
aparições posteriores à ressurreição (At 1.15-26); eles constituíam o
38

fundamento da igreja de Jesus Cristo (Ef 2.19,20; Ap 21.14). Quase todas as


vertentes da teologia evangélica concordam que esse ofício foi divinamente
planejado para que chegasse ao fim com a morte do último apóstolo; portanto,
ele não está mais em vigor atualmente. Os homens que constituem o
presbiterato, presbíteros (anciãos), bispos ou pastores (os termos são
intercambiáveis), estão incumbidos de liderar a igreja sob a direção de Jesus
39

Cristo; pregar e ensinar a sã doutrina (1Tm 3.2; 5.17; Tt 1.5-9); orar,


especialmente pelos enfermos (Tg 5.13-16); e pastorear o rebanho mediante
liderança exemplar (1Pe 5.1-5). No Novo Testamento, em todos os casos em que
se conhece a composição de um governo da igreja, ela tem uma pluralidade de
presbíteros. O diaconato, formado pelos diáconos (muitos acrescentariam aqui
40

também diaconisas), é o ofício de serviço ou ministério (1Tm 3.8-13; cf. Rm


16.1,2; At 6.1-7). 41

Diferentemente do apostolado, que cessou, estes dois últimos ofícios


continuam em vigor; de fato, na igreja primitiva havia uma dupla ordem de
presbíteros/bispos e diáconos (Fp 1.1; 1Tm 3.1-13). Essa estrutura persistiu em
algumas igrejas nos primeiros dois séculos. Clemente de Roma, por exemplo,
citou Isaías 60.17 (na Septuaginta) em apoio à escolha de bispos e diáconos para
a liderança da igreja; a Didaquê exortava os cristãos a escolherem para si bispos
42

e diáconos; e Policarpo admoestava a igreja em Filipos a se submeter a seus


43

presbíteros e diáconos. Consequentemente, muitas igrejas evangélicas são


44

lideradas por dois grupos com diferentes responsabilidades: pastores ou


presbíteros (algumas igrejas os chamam de padres, presbíteros ou ministros) e
diáconos (em algumas igrejas, servos ou tesoureiros). Essa dupla estrutura de
liderança é comumente encontrada nas igrejas congregacionais. O
congregacionalismo tem sua autoridade máxima na congregação, isto é, nos
membros de uma igreja local, acima dos quais não há ninguém (e.g., um bispo)
ou um tribunal hierárquico superior (e.g., um sínodo ou uma assembleia geral).
Outras igrejas evangélicas, embora identifiquem a apresentação feita pelo
Novo Testamento dos dois ofícios de presbiterato e diaconato, identificam
também outras estruturas de liderança nas igrejas primitivas. Por exemplo, para
os proponentes do episcopalismo (forma de governo da igreja encabeçada pelo
epíscopos, ou bispo, que detém a autoridade máxima), o protótipo do bispo seria
Tiago, conforme se vê no Concílio de Jerusalém. Além disso, o estabelecimento
de uma tripla liderança logo no início do desenvolvimento da igreja (mais
abaixo) é tido como sinal de que está correta essa forma de governo. Por
exemplo, quando as igrejas primitivas tiveram de enfrentar heresias perigosas e
foram confrontadas com possíveis divisões em seu interior, Inácio respondeu
com uma nova forma de governo da igreja. Ao distinguir entre o ofício do bispo
e o do presbítero/ancião, ele propôs que um bispo, juntamente com o presbiterato
e o diaconato, liderasse essas igrejas da seguinte maneira: “Seu bispo presidirá
em nome de Deus, seus presbíteros no lugar da assembleia dos apóstolos
juntamente com os diáconos”. O episcopalismo, portanto, consiste em uma
45

tripla estrutura hierárquica — bispo, presbíteros/pastores/padres e diáconos.


Outra variedade encontrada na teologia evangélica é o presbiterianismo,
forma de governo formado pelos presbuteroi, ou presbíteros/anciãos,
representantes da igreja que exercem suas responsabilidades não somente no
conselho ou consistório local, mas também em instâncias hierárquicas acima da
igreja local — por área geográfica (presbitério), ou por uma região maior
(sínodo), ou ainda em nível nacional (supremo concílio). A base dessa
organização remete a evidências de uma estrutura de “igreja” acima do nível da
igreja local (e.g., At 9.31; 1Co 12.28), além de elementos de presbiterianismo no
Concílio de Jerusalém (At 15.1—16.5). 46

Apesar dessa grande variedade de organização eclesiástica no âmbito da


teologia evangélica, há pleno acordo de que é equivocada a proposta de sucessão
apostólica da teologia católica, bem como a forma episcopal de governo da
Igreja Católica em que o papa ocupa o topo da hierarquia. O congregacionalismo
e o presbiterianismo negam que o episcopalismo esteja correto. Ele não só
carece de base bíblica em sua estrutura, mas também diverge da autoridade que
seus proponentes conferem à tradição da igreja primitiva que fomentou seu
desenvolvimento. Além disso, essa tradição não era uniforme. Já no final do
quarto século, por exemplo, Jerônimo enfatizava que, para o apóstolo Paulo,
presbíteros/anciãos eram o mesmo que bispos, querendo dizer com isso que as
47

igrejas mais antigas eram governadas por uma pluralidade de líderes, sem que
houvesse um ofício separado para o bispo. Além disso, Jerônimo subscrevia as
razões pragmáticas para a adoção, pela igreja primitiva, do triplo ofício de
liderança em que um bispo era posto acima de outros presbíteros, um 48

desdobramento que ele não aceitava de bom grado. Até mesmo o episcopalismo
49

evangélico, embora mantenha o triplo ofício, nega a sucessão apostólica e a50

supremacia do bispo de Roma, o papa, sobre a igreja do mundo todo.


Sacerdócio levítico da antiga aliança
Muitas versões da teologia evangélica rejeitam o sacramento da ordem da
teologia católica em virtude de seu apelo ao sacerdócio levítico da antiga aliança
como precursor bíblico do sacerdócio da nova aliança da igreja. Sem dúvida, os
sumos sacerdotes da antiga aliança eram “designado[s] dentre os homens, em
favor dos quais [são] constituído[s] nas coisas relativas a Deus, para que
apresente[m] ofertas e sacrifícios pelos pecados” (Hb 5.1). Contudo, a Carta aos
Hebreus quer dizer que a antiga aliança é “imperfeita” (8.7,8), “obsoleta” e
“perto de desaparecer” (v. 13). Além disso, seus sacerdotes “servem naquilo que
é figura e sombra das coisas celestiais” (v. 5) e seu sacerdócio cedeu lugar ao
sacerdócio de Cristo (7.23-28), cujo “ministério é mais excelente [do que o
antigo]” (8.6). De fato, a antiga aliança foi substituída por uma nova que é
“melhor [...] firmada sobre melhores promessas” (v. 6); ela não é “como a
aliança [antiga]” (v. 9). Ao chamar a atenção para a descontinuidade entre a
antiga aliança e a nova, a teologia evangélica indaga por que, se a antiga aliança
foi ab-rogada, a teologia católica a toma como modelo para seu sacerdócio da
nova aliança. De igual modo, se o sacerdócio levítico não foi capaz de
aperfeiçoar o povo da antiga aliança de Deus, que recebeu a lei sob aquele
sacerdócio, por que deve o sacerdócio católico — que deve aperfeiçoar o novo
povo da aliança, que recebe graça desse sacerdócio — tomar como modelo algo
que falhou (7.11)?
Outra implicação dessa descontinuidade entre a antiga e a nova alianças é a
natureza do ministério de seus sacerdotes. Na antiga aliança, o sacerdócio era de
fato duplamente direcionado, conforme afirma a teologia católica: Os sacerdotes
representavam Yahweh perante seu povo, especialmente ao revelar sua Palavra e
chamar o povo para que fosse fiel à aliança; além de representarem o povo
diante de Yahweh, sobretudo por meio da oferta de sacrifícios a favor do povo.
Na nova aliança, porém, sacerdotes/pastores/bispos representam Cristo perante a
igreja, especialmente pela proclamação do evangelho e pelo chamado feito às
pessoas para que sejam fiéis à aliança, mas não representam o povo diante de
Cristo no que diz respeito à oferta de sacrifícios em seu favor, conforme afirma a
teologia católica. Essa crítica não se deve à compreensão equivocada da
eucaristia (a teologia católica explica claramente que esse sacramento não é um
sacrifício novo ou diferente daquele oferecido na cruz há cerca de dois mil anos;
antes, trata-se da representificação daquele sacrífico feito de uma vez por todas).
Trata-se, isto sim, de uma crítica à ideia da teologia católica de que, durante a
missa, o povo (representado pelos leigos, e não pelo clero) apresente os
sacrifícios necessários diante do altar: “fruto da terra e obra de mãos humanas”
(o pão oferecido a Deus) e o “fruto da videira e obra de mãos humanas” (o vinho
oferecido a Deus). Esses sacrifícios são recebidos pelo padre, que
51

posteriormente os oferece a Deus durante a liturgia da eucaristia. Conforme


dissemos anteriormente (cap. 8), a ideia de que o pão e o vinho — elementos da
natureza — possuam a capacidade de receber e comunicar graça como oferta da
igreja a Deus se baseia na interdependência natureza-graça, um axioma errôneo.
Além disso, conforme observamos previamente, a Escritura apresenta vários
sacrifícios oferecidos pelo povo da igreja, mas nenhuma passagem encoraja a
oferta de pão e vinho como sacrifícios a Deus.
Dois aspectos do sacerdócio
À medida que a teologia católica especifica melhor e explica que o sacerdócio
único de Cristo consiste, na verdade, em dois aspectos — o sacerdócio batismal
ou comum —, a teologia evangélica observa em relação ao primeiro aspecto
algo que se aproxima de uma das principais doutrinas da Reforma protestante: o
sacerdócio de todos os crentes. Todos os membros da igreja de Cristo “como
pedras vivas, [são] edificados como casa espiritual para [ser] sacerdócio santo, a
fim de oferecer sacrifícios espirituais aceitáveis a Deus, por meio de Jesus
Cristo” (1Pe 2.5). De fato, Pedro os chama de “geração eleita, sacerdócio real,
nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, para que anuncieis as
grandezas daquele que vos chamou das trevas para sua maravilhosa luz” (v. 9).
Como herdeira da doutrina protestante do sacerdócio de todos os crentes, a
teologia evangélica incentiva todos os cristãos a participarem com oração
intercessora uns pelos outros, a ouvir mutuamente a confissão de pecados e
assegurar a esses arrependidos o perdão divino, a participar missionalmente em
conjunto pela causa de Cristo, a ensinar e admoestar uns aos outros com a
Palavra de Deus (Cl 3.16) e muito mais. A ênfase da teologia católica no
sacerdócio batismal ou comum é, portanto, um evento bem-vindo.
A concordância, porém, para por aí, uma vez que a teologia evangélica
discorda da interpretação da teologia católica para o sacerdócio ministerial ou
hierárquico. Ela discorda especificamente de uma diferença essencial — uma
distinção em sua própria natureza — entre leigos e clero. Uma vez mais, na
condição de herdeira da Reforma, a teologia evangélica subscreve a negação
enfática dessa diferença feita por Martinho Lutero:
É pura invenção que o papa, bispos, padres e monges devem ser chamados de “poder espiritual”;
príncipes, senhores, artesãos e agricultores de “poder temporal”. Isso não passa de uma bela mentira
e hipocrisia. Contudo, ninguém deve sentir receio por isso; e por esse motivo — isto é, que todos os
cristãos são verdadeiramente o “poder espiritual”, e que não há entre eles diferença alguma, exceto
pelo ofício, conforme diz Paulo em 1Coríntios 12.12, somos todos um corpo, todavia cada membro
tem uma obra própria, e assim servem os membros uns aos outros, tudo porque temos um batismo,
um evangelho, uma fé e somos todos cristãos; porque somente o batismo, o evangelho e a fé nos
tornam “espirituais” e povo cristão.52

Acabar com a diferença essencial entre clero e leigos não significa, para Lutero,
pôr fim a todas as diferenças entre eles, uma vez que ele continua a afirmar o
ofício de ministro encarregado de liderar a igreja. Ampliando o que ele disse
acima, Lutero afirmava que os homens ordenados “estão incumbidos da
administração da Palavra de Deus e dos sacramentos, que é sua obra e ofício”, 53

tendo incluído o ofício de liderança da igreja como uma das sete marcas da
igreja.54

De acordo com a teologia católica, essa diferença essencial entre leigos e clero
é conferida ao segundo pelo sacramento da ordem, que confere uma marca
espiritual indelével sobre o clero. Por causa disso, mesmo que um padre seja
destituído do seu ofício ministerial, isso não significa que ele tenha voltado à
condição de leigo. A teologia evangélica procura em vão alguma base bíblica
para a existência de seres humanos cuja natureza seja de leigo do sexo
masculino, seres humanos cuja natureza seja de leigo do sexo feminino, e seres
humanos cuja natureza seja sacerdotal masculina. Pelo contrário, o apóstolo
Paulo lista as qualificações dos presbíteros/bispos (1Tm 3.1-7; Tt 1.5-9), e a
única exigência para os homens consagrados a esse ofício que difere dos traços
previstos e promovidos para todos os cristãos é que “saibam ensinar” (1Tm 3.2),
ou, de forma mais ampla, “que se mantenha[m] firme[s] na palavra fiel,
conforme a doutrina, para que seja[m] capaz[es] tanto de exortar na sã doutrina
quanto de convencer os seus opositores” (Tt 1.9). Vale observar que essa
ressalva qualificativa não é questão de caráter, mas de capacidade. Voltando ao 55

que disse Lutero, nenhuma diferença de natureza distingue o leigo do clero; pelo
contrário, a distinção é de ofício, cabendo ao último as responsabilidades de
pregar/ensinar a sã doutrina, liderando e pastoreando a igreja etc.
Eficácia ministerial
De acordo com a teologia evangélica, à medida que esses
presbíteros/pastores/bispos participam de várias responsabilidades, devem
manter e promover as qualidades que, presentes em sua vida desde o início de
sua candidatura ao ofício, tornaram-nos adequados para entrar nele. Contudo, a
razão pela qual tal desenvolvimento pessoal (requisito para todos os cristãos) é
necessário por parte desses líderes não é que sua eficácia no ensino, na liderança,
no pastoreio, na ministração dos sacramentos e outras responsabilidades dependa
de sua santidade pessoal. Pelo contrário, a fertilidade desse ministério depende
da Palavra de Deus que eles proclamam, sendo o poder divino (Rm 1.16,17)
aquele que chama os seres humanos pecadores à salvação (2Ts 2.13,14), causa a
regeneração (1Pe 1.22-25), expõe a desobediência (Hb 4.12), ensina a sã
doutrina, repreende, corrige e prepara na justiça (2Tm 3.16,17). Além disso, a
validade da sua ministração do batismo e da ceia do Senhor depende igualmente
de que essas ordenanças sejam palavras do evangelho postas em prática, uma
vez que o batismo reflete de forma vívida a identificação com a morte, o
sepultamento e a ressurreição de Jesus Cristo (Rm 6.3-5), e a ceia do Senhor
retrata de forma concreta seu corpo partido e o sangue derramado (Mt 26.26-29),
ao mesmo tempo que torna seus celebrantes partícipes do seu sague e corpo
(1Co 10.16).
Conforme já explicamos, essa ênfase no evangelho por parte da teologia
evangélica difere da doutrina ex opere operato da teologia católica, isto é, os
sacramentos são válidos em decorrência de serem ministrados por um padre. Por
causa da ordem, a marca espiritual indelével da consagração garante que a
situação pessoal do padre (e. g., estando ele em pecado) não pode obstruir os
efeitos da graça que é conferida pelos sacramentos. A teologia evangélica
concorda que a santidade ou a pecaminosidade do pastor não pode impedir a
eficácia do sacramento, mas discorda que isso se dá porque os sacramentos
sejam válidos ex opere operato. Ela insiste, pelo contrário, que o batismo e a
ceia do Senhor são eficazes porque são ordenanças do evangelho que
representam; são sacramentos da Palavra de Deus que lhes comunicam
sustentação e poder.
Celebração e recipientes do sacramento
No tocante à ministração da ordem, a teologia evangélica não se opõe, em
princípio, à celebração católica do sacramento, inclusive à imposição de mãos,
oferecimento de dons que representam a missão do ordinando e a fidelidade a
Cristo etc. A maior parte das igrejas evangélicas tem algum tipo de serviço de
ordenação a que recorre para a confirmação da vocação do candidato, do seu
caráter, de suas competências teológicas e pastorais etc., bem como para um ato
de reconhecimento público de sua instalação como pastor/ancião. Para as
variedades de teologia evangélica não episcopais, rejeita-se a exigência de que
os bispos confiram o sacramento. Até mesmo as versões que seguem
efetivamente essa política negam que a consagração episcopal transmita a
linhagem apostólica da sucessão apostólica católica.
Em relação a quem pode ser ordenado, a teologia católica estipula que o
indivíduo deve ser do sexo masculino e batizado; ela proíbe a ordem para
mulheres. Isso se deve ao fato de que Jesus escolheu apenas homens para
discípulos. Embora ao longo da história a teologia evangélica tenha acolhido na
totalidade essa restrição, eventos recentes levaram a uma divisão em suas fileiras
no tocante ao papel da mulher no ministério. Os que delimitam o ofício de
pastor/ancião a homens idôneos (esse posicionamento é com frequência
chamado de “complementarismo”) o fazem com base na proibição de Paulo de
que a mulher ensine e exerça autoridade sobre o homem (1Tm 2.11-15), também
com base no paralelismo bíblico entre a liderança masculina no lar e liderança
masculina na igreja, no paralelismo bíblico entre autoridade e submissão na
Trindade e autoridade e submissão na igreja (1Co 11.3-16), além de outros
argumentos. Os que permitem que as mulheres tenham ofícios de pastora/anciã
(esse posicionamento é chamado com frequência de “igualitarismo”) apelam à
base bíblica tomada da afirmação de Paulo sobre a igualdade entre homens e
mulheres (Gl 3.28), às aparições do Cristo ressurreto às mulheres (Mt 28.1-10),
ao dom do Espírito e seu poder conferido às mulheres (Jl 2.28-32; profecia
cumprida em At 2.17), aos diversos papéis importantes que as mulheres
desempenharam na igreja primitiva (e.g., Evódia e Síntique, Fp 4.2,3; Febe, Rm
16.1,2), além de outros argumentos. Portanto, alguns proponentes da teologia
56

evangélica estão de acordo com a limitação imposta pela teologia católica que
restringe a ordenação a homens idôneos, ao passo que outros discordam.
Apesar dessa discordância interna, a teologia evangélica se mantém coesa no
tocante à objeção que faz à limitação desse sacramento, por parte da teologia
católica, a “homens que vivem uma vida celibatária e que pretendem continuar
celibatários”, recorrendo a Mateus 19.12. A exigência do celibato sacerdotal
57

está em evidente conflito com a Escritura que certamente permite o casamento


de presbíteros/bispos, isso quando não entende a prática como assunto
corriqueiro. O apóstolo Paulo, em sua lista de qualidades para o ofício de
presbítero, explica que “um supervisor deve ser [...] marido de uma só mulher”
(1Tm 3.2). Embora a aplicação precisa dessa exigência seja objeto de debate —
para alguns se trata de uma proibição contra a poligamia; para outros, uma
prescrição para a fidelidade conjugal; outros ainda acreditam que se trata de
58

uma exigência: casar-se — seja como for, essa instrução paulina vai ao encontro
dos homens casados nesse ofício. Essa interpretação é reforçada por uma
passagem paralela em que o apóstolo descreve um ancião como alguém que é
“marido de uma só mulher e que tenha filhos crentes que não sejam acusados de
libertinagem, nem desobedientes” (Tt 1.6; cf. 1Tm 3.4,5). Uma vez que essas
passagens apresentam o ensino apostólico sobre o ofício episcopal ou sacerdotal,
não se pode exigir o celibato de bispos e padres consagrados a essa posição. A
teologia católica chama a atenção para o peso dessas passagens bíblicas,
assinalando que não havia a exigência do celibato clerical na igreja primitiva. De
fato, ela admite que o celibato “que a princípio foi recomendado aos padres, foi
posteriormente, na igreja latina [romana] imposto por lei a todos os que seriam
promovidos à ordem”. A teologia evangélica rejeita tal decisão porque vai além
59

das instruções da Escritura, colocando em dúvida desse modo sua suficiência.


Esse ensino específico sobre o estado conjugal dos líderes da igreja se encaixa
bem com a instrução apostólica geral sobre o casamento em outras partes,
sobretudo com a advertência de Paulo contra pessoas que “se desviarão da fé e
darão ouvidos a espíritos enganadores e a doutrinas de demônios, sob a
influência da hipocrisia de homens mentirosos, que têm a consciência insensível.
Eles proíbem o casamento e ordenam a abstinência de alimentos que Deus criou
para serem recebidos com ações de graças pelos que são fiéis e conhecem bem a
verdade...” (1Tm 4.1-3, grifo do autor). A denúncia implícita aí do celibato
clerical pode ser contornada pela teologia católica quando ela assinala que a
proibição do casamento não é universal para todos os fiéis, e sim dirigida
unicamente ao clero. É um bom argumento, mas a teologia evangélica discorda
do entusiasmo com que a teologia católica acolhe essa instrução apostólica,
porém não faz o mesmo no tocante ao ensino apostólico específico a respeito do
casamento para bispos/presbíteros/pastores (1Tm 3.2; Tt 1.6).
A posição da teologia católica em relação ao celibato clerical é decorrência
das palavras de Jesus sobre “eunucos que nasceram assim; e há eunucos que
foram feitos assim pelos homens; e há outros que a si mesmos se fizeram
eunucos por causa do reino do céu” (Mt 19.12). Há base nas palavras de Jesus
para que sejam aplicadas ao celibato sacerdotal? No contexto, a discussão de
Jesus gira em torno do seu endosso ao casamento conforme ordenado por Deus
desde o início da raça humana (Mt 19.3-6; que reflete Gn 1.28 e 2.24) e da
permissão que dá ao divórcio, que jamais foi planejado por Deus, exceto em um
caso: adultério por parte de um dos cônjuges (Mt 19.7-9). O ensino de Jesus leva
seus discípulos a imaginar se não seria “melhor não se casar”, ao que ele
responde positivamente, mas com ressalvas: a decisão de não se casar é válida
somente para aqueles a quem o dom do celibato “é concedido” (v. 10,11). Jesus
diz que essas pessoas bem-aventuradas são eunucos de três tipos; o último deles,
dos que assim se tornaram por causa do reino, se torna a justificativa para a
imposição celibatária da teologia católica ao episcopado e ao presbiterato.
O ensino de Jesus repercute na instrução do apóstolo Paulo a respeito do
casamento e da vida de solteiro em sua Primeira Carta aos Coríntios. Um ponto
fundamental dessa discussão é o dom: “Desejaria que todos os homens
estivessem na mesma condição em que estou. Mas cada um tem o seu dom da
parte de Deus, um de um modo, e outro de outro. Digo, porém, aos solteiros e às
viúvas que lhes seria bom se permanecessem na mesma condição em que estou.
Mas, se não conseguirem, que se casem. Porque é melhor casar do que arder de
paixão” (1Co 7.7-9). Para alguns, Deus dá o dom do celibato; porque essas
pessoas benditas são capazes de dominar seus desejos sexuais, elas conseguem
dispensar o casamento e permanecer solteiras. Com isso são beneficiadas com
inúmeras vantagens (v. 32-35). A outras pessoas Deus concede o dom do
casamento; como essas pessoas assim dotadas não conseguem controlar seus
desejos sexuais, elas deveriam se casar. Embora o estado conjugal traga muitas
ansiedades e resulte em desvio parcial de atenção (i. e., o cristão casado se
dedica ao cônjuge e também ao Senhor; v. 32-35), os que se casam fazem bem
agindo desse modo e certamente não pecam. Os que têm o dom do celibato
procedem ainda melhor ao não se casarem (v. 36-38).
Consequentemente, quanto ao casamento e à vida de solteiro/casado, tanto
Jesus quanto Paulo chamam a atenção para a questão fundamental do dom. A
teologia evangélica faz a seguinte indagação: será realista imaginar que todos os
homens que decidam ser celibatários pelo resto da vida, para que desse modo
possam entrar no sacerdócio, têm o dom necessário para tanto? Se não, não serão
bem-sucedidos no esforço de controlar seus desejos sexuais, manifestando-os de
formas que desonram a Deus e a igreja. A história da imoralidade sexual, seja ela
heterossexual, seja homossexual, no clero católico é prova da falha trágica da
imposição do celibato. Não se trata de um testemunho contra padres e bispos que
viveram de forma feliz e constante o dom do celibato. Na verdade, eles merecem
ser elogiados por sua fidelidade ao compromisso assumido com o celibato. Pelo
contrário, trata-se de um testemunho contra a exigência de que todos os padres e
bispos sejam celibatários quando alguns deles não foram agraciados com o
autocontrole que o celibato exige. 60

A teologia evangélica contesta a insistência da teologia católica sobre o


celibato clerical porque não foi o que se viu entre os apóstolos de Jesus —
Pedro, por exemplo, era casado (1Co 9.5) —, e o celibato não era prática da
igreja primitiva. De fato, não havia tal exigência, e ela só se tornou obrigatória
na virada do primeiro milênio, e a igreja reconhece isso. Ao tratar da história do
celibato clerical, o Concílio Vaticano II admitiu: “Não que por sua natureza [do
celibato] seja exigida do sacerdócio, como se evidencia pela praxe da igreja
primitiva e pela tradição das igrejas orientais...”. Além disso, João Calvino
61

expressou o sentimento de muita gente, inclusive dos fiéis católicos que


discordavam da posição da sua igreja: a exigência de padres celibatários “privou
a igreja de pastores bons e capazes”. A teologia evangélica fica perplexa com o
62

fato de que a teologia católica apela à continuidade entre o sacerdócio da antiga


e da nova alianças, ao proibir a relação sexual — os levitas não podiam praticá-
la durante o tempo em que estivessem a serviço do templo (Lv 22.4) — contudo,
o catolicismo enfatiza também a descontinuidade entre os dois, uma vez que o
sacerdócio da antiga aliança era hereditário, transmitido por geração natural, e o
sacerdócio da nova aliança, um dom conferido por uma marca espiritual por
meio da ordem. Por fim, o desejo da teologia católica de representar e retratar
Cristo para a igreja dele negligencia a mais nítida imagem bíblica possível dessa
relação entre Cristo e igreja: o casamento. A liderança do homem sobre sua
esposa, e o respeito e a submissão dela a ele, constitui uma imagem contundente
do amor e sacrifício de Cristo pela igreja, e da honra e submissão que presta a
Cristo (Ef 5.22-33). A adesão da teologia evangélica à Escritura, conforme
demonstrado pelo fato de que ela permite, e até mesmo incentiva, o clero a se
casar, significa que as igrejas lideradas por pastores/presbíteros casados
oferecem a seus membros bem de perto, ainda que de forma imperfeita, imagens
da relação entre Cristo e a sua igreja. Tal oportunidade não é permitida pela
63

Igreja Católica por meio do seu sacramento da ordem conferido somente aos
ministros celibatários.
Em suma, o sacramento da ordem, pelo qual a Igreja Católica ordena certos
homens ao ministério, embora lembre de algum modo a ordenação encontrada
em muitas variedades de teologia evangélica, está, na verdade, muito distante do
que diz sua congênere evangélica. A ordem se baseia em ambos os falsos
axiomas do sistema católico. Além disso, é suscetível de inúmeras críticas
específicas pela teologia evangélica.

O sacramento do matrimônio (seção 2, capítulo 3,


artigo 7)
O segundo sacramento de serviço à comunhão é o sacramento do matrimônio,
que é a iniciação e selo da aliança conjugal entre marido e mulher, uma parceria
que “é por natureza ordenada para o bem dos cônjuges e para a procriação e
educação de sua prole”. A base bíblica desse sacramento começa com os
64

capítulos iniciais de Gênesis, que apresentam Deus como “autor do casamento” e


que o dotou de um significado, origem e propósito específicos e de “leis
próprias”. Na verdade, Deus criou o ser humano à sua imagem e gravou em sua
65
natureza a vocação para o casamento. Consequentemente, trata-se de uma
instituição universal com certas características comuns e permanentes e pensada
para que proporcionasse bem-estar aos indivíduos e a multiplicação da sociedade
humana. Além disso, a criação à imagem de Deus — a imagem de Deus que ama
— significa que o ser humano é chamado a amar como reflexo do amor divino.
Esse reflexo se dá de maneira especial por meio do amor conjugal, que é
também frutífero no tocante à procriação e “se dá na obra comum de zelar pela
criação” (Gn 1.28). De fato, “a Santa Escritura afirma que o homem e a mulher
66

foram criados um para o outro. ‘Não é bom que o homem esteja só’ [Gn 2.18]”. 67

A mulher, que foi tirada do corpo do homem — “‘carne da sua carne’ [Gn 1.23],
isto é, sua congênere, sua igual, a que dele está mais próxima entre todas as
coisas” — “lhe é dada por Deus como ‘auxiliadora’; ela, portanto, representa
Deus, de onde vem nosso auxílio”. Os dois se tornam uma só carne (Gn 2.24),
68

formando “uma união inquebrantável de duas vidas”, conforme Cristo mesmo


enfatizou (Mt 19.6). 69

Tragicamente, essa imagem e plano divinos do casamento humano foram


arruinados pelo governo do pecado, de tal modo que este é caracterizado
universalmente por discórdia, dominação, infidelidade, ciúme, conflitos, ódio,
separação, luxúria etc. Essa desordem não é natural no casamento — não é coisa
própria e original da natureza humana, tampouco das relações entre o homem e a
mulher; é coisa própria do pecado. De fato, o pecado original de Adão e Eva
“teve como primeira consequência a ruptura da comunhão original entre o
homem e a mulher” [Gn 3.12]. A procriação agora se dá em meio a dores, e a
70

vocação implica o trabalho fatigante (Gn 3.16-19). “Não obstante, a ordem da


criação persiste, ainda que gravemente arruinada” pelo pecado, e para curar
71

suas feridas é preciso a intervenção da graça de Deus, que é propiciada pelo


sacramento do matrimônio. Além disso, depois da queda no pecado, “o
casamento ajuda a vencer a autoabsorção, o egoísmo, a busca do próprio prazer e
permite que o ser humano se abra ao outro, ao auxílio mútuo e ao sacrifício
pessoal”. 72

O Antigo Testamento tentou desenvolver e regular a instituição do casamento.


O uso que ele faz da “imagem do amor conjugal exclusivo e fiel” para retratar a
relação de aliança de Deus com Israel preparou o caminho para a nova aliança,
em que o Filho de Deus aparece “unindo a si mesmo, de certo modo, a
humanidade toda salva por ele, preparando desse modo para as ‘bodas do
Cordeiro’ [Ap 19.7,9]”. No primeiro sinal miraculoso que operou (“a pedido de
73

sua mãe” ), Jesus transformou água em vinho nas bodas de Caná (Jo 2.1-11). A
74

igreja vê nesse evento “a confirmação da bondade do matrimônio e o anúncio de


que, doravante, o matrimônio seria um sinal eficaz da presença de Cristo”. 75
Jesus também “ensinou de forma inequívoca o significado original” do
casamento — ele é indissolúvel — conforme a vontade de Deus desde o início;
concretamente, a concessão feita por Moisés ao divórcio não era intenção do
Criador para o casamento e se deve à dureza do homem (Mt 19.8). Portanto,
76

Jesus veio “restaurar a ordem original arruinada pelo pecado”, dando “força e
graça para a vida conjugal na nova dimensão do reino de Deus [...]. Essa graça
do matrimônio cristão é fruto da cruz de Cristo, fonte de toda a vida cristã”,
77

conforme disse o apóstolo Paulo (Ef 5.25,26,31,32). Caracterizada em toda a sua


inteireza pelo amor esponsal entre Cristo e sua igreja, a vida cristã começa com
um “mistério nupcial”, o batismo, ou com “o banho de núpcias que precede o
banquete das bodas, a eucaristia”. De igual modo, como o matrimônio cristão
78

simboliza e comunica a graça, torna-se um novo sacramento de aliança.


Ao mesmo tempo que enaltece o casamento, a igreja também enaltece a
virgindade. Essa renúncia ao bom casamento significa dedicação total a Cristo e
ao seu chamado (Ap 14.4; 1Co 7.32; Mt 25.6). Além disso, seu convite para que
nos tornemos “eunucos por causa do reino do céu” (Mt 19.12) constitui um estilo
de vida do qual ele foi modelo. Esse celibato é o “desenvolvimento da graça
batismal, um sinal poderoso da preeminência da união com Cristo e da espera
fervorosa do seu regresso, um sinal que lembra também que o matrimônio é uma
realidade do tempo presente, que é passageiro”. Assim como o sentido e a graça
79

são conferidos por Cristo por meio do sacramento do matrimônio, assim também
são concedidos em virgindade. Portanto, a igreja associa e aprecia enormemente
o casamento e a virgindade.
A celebração do sacramento do matrimônio ocorre durante a missa — evento
apropriado em razão de sua celebração da nova aliança, “em que Cristo se uniu
para sempre à igreja, sua noiva amada, por quem se deu a si mesmo. Por isso, é
conveniente que os esposos selem o seu consentimento à doação recíproca pela
oferenda da própria vida, unindo-a à oblação de Cristo pela sua igreja, tornada
presente no sacrifício eucarístico, e recebendo a eucaristia, para que,
comungando o mesmo corpo e o mesmo sangue de Cristo, ‘formem um só
corpo’ em Cristo”. O sacramento da penitência é uma preparação para o
80

sacramento do matrimônio para que seja recebido de forma conveniente. “Ao 81

expressar perante a igreja o seu consentimento, os esposos, como ministros da


graça de Cristo, mutuamente se conferem o sacramento do matrimônio.”
Estão aptos a receber esse sacramento o homem e a mulher batizados “livres
para contrair matrimônio”; isto é, não estão “sob pressão”; ninguém, nem
mesmo o homem ou a mulher, está coagindo ou está sendo ameaçado
externamente para se casar; também não estão “impedidos por nenhuma lei
natural ou eclesial”, isto é, não são parentes de sangue (e.g., irmãos biológicos),
tampouco estão casados atualmente. Como o mútuo consentimento é o
82

“elemento indispensável que ‘configura o casamento’”, se estiver ausente, “não


haverá casamento”. Tal consentimento é manifesto por meio de votos — “Eu te
83

recebo como esposa/marido” — e consumado pela relação sexual. Se


posteriormente à cerimônia ficar estabelecido que não houve consentimento de
uma das partes, o casamento poderá ser anulado — isto é, ficará registrado que
jamais existiu. Antes de entrar no estado de casamento por meio do seu
sacramento, as duas partes deverão fazer uma preparação.
Em seguida, o Catechism lidará com duas categorias especiais de casamento:
os casamentos mistos e os casamentos com disparidade de culto. No primeiro
84

caso, o casamento a ser selado por meio de aliança se dará entre um católico e
um não católico batizado (e.g., um cristão protestante). Essa situação “não
constitui obstáculo intransponível para o casamento”, mas certamente comporta
sérios desafios. Os casamentos mistos requerem a “permissão expressa da
autoridade eclesial”. No segundo caso, o casamento a ser selado por meio de
aliança se dará entre um católico e uma pessoa não batizada (e.g., um hindu).
Essa situação exige uma apreciação ainda mais cuidadosa, uma vez que as
dificuldades assinaladas acima ganham facilmente um peso maior aqui. Os
casamentos com disparidade de culto requerem “dispensação expressa de
impedimento” pela autoridade eclesial. Além disso, ambos os cônjuges devem
estar abertos aos “fins e propriedades essenciais do casamento”, e o cônjuge
católico é obrigado a assegurar que os filhos do casamento serão batizados na
Igreja Católica e educados na fé católica. 85

Os efeitos do sacramento do matrimônio são a criação de um elo permanente e


exclusivo entre os cônjuges e a comunicação de uma graça especial a eles. Em
relação ao primeiro efeito, o próprio Deus sela a aliança, tornando-a indissolúvel
e garantida por sua fidelidade. Quanto ao segundo efeito, a graça desse
sacramento tem Cristo como sua fonte e “tem como objetivo aperfeiçoar o amor
do casal e fortalecer sua unidade indissolúvel”. 86

Além disso, esse amor conjugal tem algumas exigências. Primeiro, “exige
indissolubilidade e fidelidade em entrega mútua definitiva”. É evidente que
87

essa obrigação exclui a poligamia e recebe apoio da “fidelidade de Deus à sua


aliança” e do evangelho do amor de Deus como “amor definitivo e
88

irrevogável”. Sob uma perspectiva prática, essa primeira exigência impede o


89

divórcio; entretanto, em situações difíceis, permite a separação do casal.


Contudo, a melhor solução é a reconciliação. A igreja denuncia os católicos que
se divorciam e se casam novamente em união civil porque esse ato cria a
situação de adultério e contraria as instruções de Jesus (Mc 10.11,12). Enquanto
persistir essa situação, estarão barrados do sacramento da eucaristia e proibidos
de exercer certas responsabilidades eclesiásticas. Somente pelo sacramento da
penitência — incluindo-se aí o arrependimento pela quebra da aliança conjugal e
a promessa de viver em completa abstinência — que será possível a
reconciliação.
A segunda exigência do amor conjugal é a abertura à fertilidade. Esse dever
se baseia em uma lei natural: “Pela sua própria natureza, a instituição
matrimonial e o amor conjugal estão ordenados à procriação e à educação dos
filhos, que constituem o ponto alto da sua missão e a sua coroa”. Fertilidade,
90

portanto, consiste tanto na procriação física — concepção, desenvolvimento in


utero, nascimento e desenvolvimento físico — bem como a educação moral,
espiritual e social dessas crianças. No caso de casais inférteis, o amor conjugal
ainda pode ser pleno de significado e “irradiar uma fertilidade de caridade, de
hospitalidade e de sacrifício”. Ao afirmar que “não pode haver conflito algum
91

entre as leis divinas que governam a transmissão da vida e a promoção do


verdadeiro amor”, a igreja insiste na proteção da vida “com o máximo cuidado
desde o momento da concepção: o aborto e o infanticídio são crimes
abomináveis”. Além disso, a igreja estabeleceu certos critérios objetivos no
92

tocante ao planejamento familiar permitindo o planejamento da família por meio


do método natural — a prática séria da “abstinência conjugal” — e proibindo o
uso de contraceptivos — “métodos não aprovados pela autoridade de ensino da
igreja em sua interpretação da lei divina”. 93

O Catechism conclui a discussão do sacramento do matrimônio com uma


breve exposição da “igreja doméstica” (ecclesia domestica), que se refere, em
geral, à igreja como “família de Deus” e, mais especificamente, ao âmago da
igreja como formada por crentes e todo o seu lar (At 18.8; 16.31; cf. 11.14). Por
meio de palavras e exemplos, os pais são “os primeiros arautos da fé no que diz
respeito a seus filhos” e têm a responsabilidade de promover seu
desenvolvimento de acordo com “a vocação própria a cada filho”, inclusive
“qualquer vocação religiosa”. Todos os membros da igreja doméstica
94

“exercitam o sacerdócio do batizado de maneira privilegiada ‘pelo recebimento


dos sacramentos, da oração e da ação de graças, testemunho de uma vida santa,
de autossacrifício e de caridade ativa’”. Por fim, o Catechism reconhece a
95

existência de muitas pessoas solteiras na igreja e diz que “elas estão


especialmente próximas do coração de Jesus e, portanto, merecem afeição
especial e solicitude ativa da igreja, sobretudo dos pastores”. Elas são
encorajadas a encontrar um lar na igreja doméstica e adquirir sua família humana
“na grande família que é a igreja”. 96

Avaliação evangélica
A teologia evangélica aplaude muitas áreas da doutrina do matrimônio da
teologia católica, sobretudo sua defesa dessa instituição e seu apoio irrestrito em
favor de uma cultura de vida contra uma cultura intrusa de morte — tipificada
pelo aborto, infanticídio, suicídio assistido, geronticídio etc. — especialmente no
mundo ocidental. São as seguintes as áreas de concordância: o casamento é uma
aliança que requer duas pessoas, um homem e uma mulher, que fazem votos
diante de Deus e de outras pessoas em busca de um compromisso exclusivo; por
desígnio divino, esse estado conjugal tem significado, propósito, origem e leis
que o governam. Dois desses requisitos são a indissolubilidade e a fidelidade,
excluindo desse modo a imoralidade, a poligamia e o divórcio. Embora a
separação, em face de circunstâncias difíceis, possa ser permitida, ela é sempre
posta em prática tendo por objetivo a reconciliação. As vantagens do casamento
são inúmeras, sendo a principal delas o bem do marido e da mulher, que não
foram feitos para ficarem sós, além da procriação e da educação — seja ela de
ordem espiritual, moral, social, civil ou vocacional — dos filhos assim gerados.
Entre os benefícios pessoais contam-se o auxílio para superar atitudes
pecaminosas e práticas como a do egoísmo e preocupação exclusiva com si
mesmo; isto é, o casamento é um meio de santificação para o marido e para a
esposa. Embora o Catechism não mencione explicitamente outros benefícios
(que são especialmente o bom fruto da relação sexual expressa no casamento), a
teologia evangélica acrescentaria a unidade do casal (ele se torna “uma carne”
mediante a relação sexual; Gn 2.24), consolo em meio à tragédia (e.g., 2Sm
12.24) e proteção contra a imoralidade sexual (1Co 7.5).
Há ainda outros pontos de concordância na excelente discussão do respaldo
bíblico ao casamento, a começar pela referência aos capítulos iniciais do
Gênesis. Depois de uma deliberação divina (“façamos o homem à nossa
imagem”; Gn 1.26), “Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus os
criou; homem e mulher os criou” (v. 27). A duplicidade de gênero na sociedade
humana reflete a pluralidade de pessoas na sociedade divina da Trindade. Além
disso, assim como o Pai, o Filho e o Espírito Santo se amam uns aos outros,
homens e mulheres refletem essa realidade em seu amor mútuo com a mais
elevada, embora não exclusiva, expressão desse amor conjugal. A vontade divina
de que o ser humano não fosse assexuado permite ao homem e à mulher
igualmente realizar o assim chamado “mandato cultural” (v. 28), que consiste na
procriação (“frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra”) e vocação, ou
construção da civilização (“sujeitai-a; dominai”). A teologia católica sublinha
corretamente que o chamado ao casamento está gravado na natureza mesma dos
portadores da imagem de Deus, razão pela qual a imensa maioria das pessoas se
casa e muitas delas têm filhos.
Outra área de concordância diz respeito à ruptura do casamento como
consequência trágica do pecado. Essa desordem não é natural, não pela vontade
de Deus; ela é anormal, é resultado do pecado. A desobediência de Adão e Eva
resultou em sofrimento no momento do parto e em trabalho árduo. Muitos
proponentes da teologia evangélica acrescentariam que uma disrupção da relação
hierárquica divinamente planejada — em que o marido exerce autoridade gentil
e confirmadora e em que a esposa se submete alegremente e de livre vontade —
foi outro resultado desastroso de sua queda no pecado. Em alguns casos, o
impacto devastador dessa queda levou ao desastre conjugal. Quando, por
exemplo, ocorre o divórcio por motivos não bíblicos e há um novo casamento,
cria-se uma situação de adultério (Mc 10.11,12); a Igreja Católica,
consequentemente, barra os envolvidos do sacramento da eucaristia e os tira de
alguns ministérios eclesiais. Alguns proponentes da teologia evangélica
concordam com a aplicação da disciplina da igreja em casos de pecado desse
tipo. Como o pecado é insidioso, um marido cristão e uma esposa cristã
precisarão da graça de Deus para vencer seus pecados pessoais, o rompimento da
sua relação, os passos errados que deram na criação dos filhos e muito mais. De
fato, como o casamento em si mesmo tem tantas dificuldades internas, a teologia
católica e a teologia evangélica concordam que o ideal é que a união a ser
estabelecida o seja por dois cristãos (embora cada uma dessas teologias defina
essa realidade de forma diferente, conforme veremos).
Há aqui e ali nesse acordo generalizado pontos específicos de discordância.
Em primeiro lugar, o matrimônio não é sacramento para a teologia evangélica. A
razão principal para essa rejeição é que o casamento é um mandado da criação;
isto é, Deus ordenou o casamento àqueles que têm sua imagem desde o primeiro
momento da criação do ser humano (Gn 1.26-28; 2.18-25). Embora Jesus Cristo
tenha certamente ratificado o casamento e elucidado as bases para sua dissolução
pelo divórcio (Mt 19.3-9), tenha abençoado um casamento em especial com seu
primeiro milagre (Jo 2.1-11) e fortaleça o casamento por meio de sua obra
salvadora na vida de mulheres e homens cristãos, tais ações de Jesus não deram
origem a essa relação entre marido e mulher. O casamento não é exclusivamente
cristão; é, antes, uma instituição humana universal.
No que se refere à defesa do casamento apresentada pela teologia católica,
alguns adeptos da teologia evangélica propõem dois esclarecimentos. Primeiro,
quando se apela à avaliação divina da condição de Adão — “Não é bom que o
homem esteja só” (Gn 2.18) —, é preciso deixar claro que esse pronunciamento
se aplica a pessoas que Deus planejou que se casassem, e não aos solteiros.
Neste último caso, Deus os abençoou em seu estado de solteiros, de gente só que
vive sem um cônjuge. Portanto, esse estado de solteiro para essas pessoas é bom.
Segundo, a implicação que a teologia católica estabelece da formação de Eva, a
“auxiliadora” de Adão — “portanto ela representa Deus, a quem recorremos em
busca de ajuda” —, precisa de ressalvas. Sem dúvida, o termo hebraico ‘ezer é
usado para descrever Deus como auxiliador, mas serve também para descrever a
ação humana, a assistência dos anjos, suporte militar e até a intervenção de
falsos deuses. Consequentemente, é preciso cuidado na hora de transferir as
conotações do divino para usos particulares da palavra. De fato, como foi Deus
quem formou Adão do pó da terra, e como foi Deus que formou Eva do corpo de
Adão, é difícil ver como ela pode representar Deus nesse contexto. Na verdade, é
o contexto que nos dá uma explicação mais plausível de seu papel de auxiliadora
(Gn 1.28): Eva ajudaria Adão à medida que os dois juntos desempenhassem o
mandato cultural planejado por Deus de serem férteis (procriação) e exercerem
domínio (vocação).
A teologia evangélica também vê com suspeita o apelo de sua congênere
católica ao Filho de Deus encarnado unindo “a si mesmo, de certa forma, toda a
humanidade salva por ele, preparando desse modo a ‘festa das bodas do
Cordeiro’ [Ap 19.7,9]”. Seria essa uma nova forma de inclusivismo —
97

tomando-se a expressão em itálico com o sentido de que as pessoas se salvam


por meio do Filho encarnado mesmo que não tenham ouvido o evangelho — ou
deveria ser ela entendida de forma exclusivista com o sentido de que somente
quem é salvo pelo Filho encarnado está unido a ele e desfrutará das bodas
celestiais? Outra dúvida que se levanta em decorrência da implicação que a
teologia católica estabelece do fato de Jesus ter feito seu primeiro milagre nas
bodas de Caná: “Desse modo o casamento será um sinal eficaz da presença de
Cristo”. Essa aproximação alegórica parece negligenciar o ponto óbvio
98

apresentado pela narrativa, isto é, a presença de Cristo no casamento: “Esse


sinal, em Caná da Galileia, foi o primeiro que Jesus fez. Ele manifestou a sua
glória, e os seus discípulos creram nele” (Jo 2.11). Este ponto combina bem com
o propósito geral do evangelho: “Jesus, na verdade, realizou na presença de seus
discípulos ainda muitos outros sinais que não estão registrados neste livro. Estes,
porém, foram registrados para que possais crer que Jesus é o Cristo, o Filho de
Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome” (Jo 20.30,31). De todos os
milagres que o apóstolo poderia ter incluído nesse relato de Jesus, João escolheu
sete — o primeiro dos quais é a transformação da água em vinho em um
casamento — para o propósito explícito de suscitar a fé que conduz à vida
eterna. Suscitar a fé salvadora é o propósito de João ao narrar a presença de
Jesus e a realização de um milagre no casamento. Não era sua intenção fazer do
matrimônio um sacramento da presença e da graça de Cristo.
Outra discordância vem da cláusula da teologia católica que permite a
anulação do casamento e a rejeição do divórcio por qualquer motivo. Antes de
discutirmos esses tópicos contenciosos, é bom lembrar alguns pontos de
concordância. A teologia evangélica concorda com sua congênere católica que
esse rito é administrado mais propriamente a dois cristãos que concordam em se
casar (ninguém os obriga a fazê-lo) e o fazem legalmente. O consentimento é
expresso por meio de votos, e a aliança é consumada pela relação sexual. O
anúncio do oficial da igreja que preside a cerimônia — um ato de fala
declarativo comumente expresso pela frase “Eu vos declaro marido e mulher” —
concretiza a situação em curso; os dois estão casados, e a consumação é uma
conclusão compulsória. Para a teologia evangélica, nenhuma anulação
99

subsequente pode declarar desfeito o que já foi feito e como tal assim declarado.
A explicação da teologia católica — anulação não significa que o casamento
jamais ocorreu, e sim que o sacramento do matrimônio jamais se realizou —
significa que a anulação cabe à Igreja Católica, e que o sacramento do
matrimônio só pode ser realizado por seu clero. O interesse pelas anulações se dá
principalmente em decorrência dos casamentos católicos que acabam em
divórcio. Como a igreja não permite o divórcio, os católicos divorciados que
queiram se casar na igreja devem primeiramente conseguir a anulação do
casamento; caso contrário, não terão permissão para se casar. Muitos adeptos da
teologia evangélica discordam da proibição de novo casamento para divorciados
defendida pela teologia católica. O Novo Testamento apresenta dois motivos
para o divórcio: Jesus o permite em caso de adultério (Mt 19.9), e Paulo o
permite quando, num casamento misto, o cônjuge descrente procura o divórcio
(1Co 7.12-16). Consequentemente, a teologia evangélica e a teologia católica
discordam no tocante à anulação do casamento e ao divórcio.
A afirmação acima de que a teologia católica e a teologia evangélica
concordam que o casamento deve ser entre dois cristãos requer um pouco mais
de esclarecimento, uma vez que a afirmação geral mascara áreas específicas de
discordância. A teologia evangélica, de modo geral, insiste no casamento entre
dois cristãos definidos como um homem e uma mulher que acolheram o
evangelho, se arrependeram de seus pecados e confiaram em Cristo para
salvação. Uma vez que o evangelicalismo compreende um vasto espectro de
cristãos, um evangélico presbiteriano e um evangélico batista, ou um evangélico
episcopal e um evangélico metodista poderiam prontamente se casar. Embora
reconheçam que pode haver algumas dificuldades adiante em razão de diferenças
denominacionais, esses evangélicos de espectros variados poderiam se casar. A
teologia católica diz que o ideal é que dois católicos se casem entre si, mas ela
também dá espaço para duas outras categorias de casamento. Primeiro, os
casamentos mistos são aqueles que compreendem um católico e um não católico
batizado (e.g., um cristão protestante); segundo, os casamentos com disparidade
de culto são os que envolvem um católico e uma pessoa não batizada (e.g., um
hindu). Essas duas categorias requerem alguma ação eclesial especial para que
seu casamento seja permitido, e o cônjuge católico tem obrigações no que diz
respeito ao batismo e à educação dos filhos na fé católica. Nos casamentos
mistos, em que tanto o católico quanto o não católico são cristãos genuínos no
sentido definido acima, os proponentes da teologia evangélica discordariam da
conveniência do casamento: alguns não o permitiriam por duvidarem de que a fé
da parte católica seja genuína; outros não o permitiriam porque as dificuldades
seriam intransponíveis, especialmente as obrigações do cônjuge católico no
tocante aos filhos; outros permitiriam, mas advertiriam fortemente sobre os
desafios que inevitavelmente haveriam de surgir. No caso de um casamento com
disparidade de culto, como tal casamento supõe um cristão e um não cristão, e a
Escritura claramente requer o casamento entre dois cristãos (1Co 7.39), os
defensores da teologia evangélica, de modo geral, não o permitiriam.
A concordância em relação a alguns requisitos para o casamento —
especificamente sua indissolubilidade e fidelidade — já foi tratada aqui. Outro
requisito da teologia católica, como a abertura à fertilidade, é um ponto de
discordância. Essa diferença tem uma aplicação prática no que se refere à
proibição por parte da teologia católica do uso de contraceptivos e a permissão
de uso deles pela teologia evangélica (contanto que o método contraceptivo não
induza o aborto). No âmago dessa diferença se encontra a doutrina evangélica da
autoridade e suficiência da Escritura, e o uso pela teologia católica da lei natural,
bem como os ensinos oficiais da igreja que proporcionam uma maior orientação
sobre o assunto e adesão mais significativa a ele. Para a teologia evangélica, a
instrução suficiente e plena de autoridade sobre a procriação é expressa pelo
mandado “frutificai-vos e multiplicai-vos e enchei a terra” (Gn 1.28). Essa
ordem não diz quantos filhos o casal deve ter, tampouco diz que ele deve estar
aberto a procriar em todas as relações sexuais que tiver. Além disso, a Escritura
não proíbe o uso de meios contraceptivos (não abortivos). A teologia evangélica,
embora não rejeite de imediato a lei natural, faz uso cauteloso dela e questiona
se um de seus princípios seria a abertura à fertilidade. É importante frisar
também que a teologia evangélica rejeita quaisquer princípios fora da Escritura
como suposta fonte de autoridade e adesão. Isso inclui a instrução moral
adicional proporcionada pela Igreja Católica. 100

Em suma, a teologia evangélica acolhe de bom grado muita coisa que a


teologia católica diz a respeito do casamento — a interpretação que faz dele, o
apoio que lhe concede, a defesa de sua santidade, ainda que discorde de alguns
aspectos do sacramento do matrimônio.
Conclusão
A segunda parte do Catechism, “A celebração do mistério cristão”, chega ao fim
depois de tratar da economia sacramental da Igreja Católica juntamente com
seus sete sacramentos. Ao trabalhar seção por seção desta segunda parte, e tendo
ciência dos dois axiomas do sistema católico, apresentamos aqui uma avaliação
evangélica dessa teologia e prática sacramental à luz da Escritura e da teologia
evangélica, o que resultou em áreas de intriga e de crítica. A terceira parte, “A
vida em Cristo”, com sua preocupação com a vocação humana e com a
comunidade humana será nosso próximo tópico de discussão.
1
Edição em português: Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Loyola, 1999).
2
“Comunhão” no sentido de que quem comunga desse sacramento recebe graça para servir em um
relacionamento com os outros.
3
CCC 1534.
4
CCC 1535; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 11.2.
5
CCC 1538 (grifo removido).
6
Ibidem.
7
CCC 1544; citações bíblicas de Hebreus 5.10; 6.20; 7.26; 10.14; Gênesis 14.18.
8
CCC 1545; citação de Thomas Aquinas [Tomás de Aquino], Commentary on the Epistle to the
Hebrews 8:4.
9
CCC 1547.
10
CCC 1548; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 10; 28; cf. Sacrosanctum concilium 33;
Presbyterorum ordinis 2; 6.
11
Papa Pio XII, encíclica, Mediator Dei (20 de novembro de 1947), 69, disponível em:
http://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_20111947_mediator-
dei_en.html.
12
CCC 1550.
13
Ibidem.
14
CCC 1552. Cf. Concílio Vaticano II, Sacrosanctum concilium 33; Lumen gentium 10.
15
CCC 1557; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 21.2.
16
CCC 1558; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 21.
17
CCC 1559.
18
CCC 1560 (grifo removido).
19
CCC 1562 (grifo removido); citação do Concílio Vaticano II, Presbyterorum ordinis 2.2.
20
CCC 1563; citação do Concílio Vaticano II, Presbyterorum ordinis 2.
21
CCC 1565.
22
CCC 1566; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 28; cf. 1Co 11.26.
23
CCC 1567; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 28.2.
24
CCC 1569; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 29.
25
CCC 1570; alusão bíblica às palavras de Jesus em Marcos 10.45; Lucas 22.27.
26
CCC 1571.
27
CCC 1574.
28
Ibidem.
29
CCC 1576; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 20.
30
CCC 1577. Base bíblica: Marcos 3.14,15; Lucas 6.12-16; 1Timóteo 3.1-13; 2Timóteo 1.6; Tito 1.5-9.
A confirmação pós-neotestamentária é de Clement of Rome [Clemente de Roma], Letter to the Corinthians
42, 44 (ANF 1:16-17).
31
CCC 1577. Cf. papa João Paulo II, Mulieris dignitatem (15 de agosto de 1988), 26–7, disponível em:
http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/apost_letters/documents/hf_jp-ii_apl_15081988_mulieris-
dignitatem_en.html.
32
CCC 1579.
33
Ibidem.
34
CCC 1584.
35
CCC 1585-1586.
36
CCC 1538.
37
Paulo (At 26.12-18); Barnabé (At 14.14; 1Co 9.6; Gl 2.9); Tiago (Gl 1.19; 2.9).
38
O apóstolo Paulo salientou as circunstâncias incomuns de seu ofício (1Co 15.8).
39
A defesa da natureza intercambiável desses termos faz referência a Atos 20.17; Tito 1.5-7; Efésios
4.11.
40
E.g., as primeiras igrejas fundadas por Paulo e Barnabé (At 14.23); a igreja de Jerusalém (15.1-29); a
igreja de Éfeso (At 20.17; 1Tm 5.17); as igrejas de Creta (Tt 1.5).
41
Para uma discussão mais ampla, veja Allison, SS, p. 206-47.
42
Clement of Rome, Letter of the Romans to the Corinthians 42 (ANF 1:16).
43
Didaquê 15 (ANF 7:381).
44
Polycarp [Policarpo], Letter to the Philippians 5 (ANF 1:34).
45
Ignatius [Inácio de Antioquia], Letter to the Magnesians 6 (ANF 1:61); cf. ibidem, Letter to the
Smyrneans 8 (ANF 1:89).
46
Para uma discussão mais ampla, veja Allison, SS, p. 249-95.
47
Jerome [Jerônimo], Letter 146, para Evangelus 1-2 (NPNF2 6:289).
48
Ibidem, 1 (NPNF2 6:288).
49
Jerome, Commentary on Titus 1.6-7, in: John Harrison, org., Whose are the fathers? (London:
Longmans, Green, 1867), p. 488.
50
O ministério anglicano, a estrutura de liderança da comunhão anglicana, reconhece a sucessão
apostólica, mas não da mesma forma que a teologia católica, e não reconhece o papa como seu líder
supremo. Pelo contrário, o arcebispo da Cantuária é o primeiro entre iguais em sua relação com outros
bispos anglicanos.
51
O Missal Romano, Ordem da Missa, 23, 25. Outras oblações, assim como as ofertas aos pobres,
também podem ser apresentadas. Além disso, durante a celebração da missa, quando o sacramento do
matrimônio é ministrado, o homem e a mulher que se casarão unem as oblações de sua vida, que estão
dando um ao outro, à oblação de Cristo por sua igreja na eucaristia (CCC 1621).
52
Martin Luther [Martinho Lutero], To the Christian nobility of the German nation.
53
Ibidem.
54
Martin Luther, On the councils of the church (LW 41:154).
55
Alguém talvez objete ao fato de que Paulo prescreva uma outra qualificação para anciãos/bispos que
não diz respeito ao cristão comum: “Se alguém almeja ser bispo, deseja algo excelente” (1Tm 3.1). Em
certo sentido, essa objeção está correta: para que alguém seja ordenado ancião/bispo, é preciso que aspire a
esse ofício. Em outro sentido, porém, esse desejo não é um traço de caráter que se deva possuir, tampouco a
capacidade de exercer tal ofício. A teologia evangélica com frequência associa essa aspiração ao chamado
divino para o ofício. Seja como for, o desejo de ser ancião/bispo é diferente da marca espiritual indelével
conferida pela ordem, uma vez que esse desejo certamente deve existir naqueles que serão ordenados antes
que recebam o sacramento.
56
Para uma discussão detalhada, veja Allison, SS, p. 223-40.
57
CCC 1579.
58
Uma exceção a esse ponto seria a perspectiva de Agostinho, segundo a qual a instrução de Paulo
proíbe o ofício a qualquer homem que tenha sido casado mais de uma vez (e.g., depois da morte de sua
primeira mulher) (Augustine, On the good of marriage 21 [NPNF1 3:408]). Nada no contexto da discussão
de Paulo remete tal restrição a homens casados apenas uma vez, e Paulo certamente poderia ter usado o
termo grego ἁπαξ (hapax = uma vez) se tivesse pretendido dar esse sentido. Além disso, outros comentários
do apóstolo sobre ser ou não apropriado que as viúvas se casassem novamente (Rm 7.1-3; 1Co 7.39)
pareceriam contradizer a interpretação de Agostinho.
59
Concílio Vaticano II, Presbyterorum ordinis 16 (VC II-1, 893).
60
A teologia evangélica se pergunta, então, como o Concílio Vaticano II pode afirmar que “se sente
confiante no Espírito de que o dom do celibato, tão apropriado ao sacerdócio do Novo Testamento, é
liberalmente concedido pelo Pai, contanto que aqueles que partilham do sacerdócio de Cristo através do
sacramento da ordem e, de fato, a igreja toda, peçam de forma humilde e apaixonada esse dom” (Concílio
Vaticano II, Presbyterorum ordinis 16 [VC II-1, 893]).
61
Concílio Vaticano II, Presbyterorum ordinis 16 (VC II-1, 892).
62
Calvin, Institutes 4.12.23 (LCC 21:1249) [edições em português: João Calvino, As institutas, tradução
de Waldyr Carvalho Luz (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), 4 vols.; e A instituição da religião cristã,
tradução de Carlos Eduardo Oliveira; José Carlos Estêvão (São Paulo: Ed. Unesp, 2008)].
63
Nesse sentido, muitas igrejas evangélicas deixam de pôr em prática uma teologia evangélica sadia ao
não aceitarem prontamente pastores/presbíteros solteiros. Essa prática parece não levar em conta as
instruções de Paulo sobre as vantagens do estado de solteiro, e é com frequência impelida pelo receio de
que ministros solteiros usem sua posição para incursionar por práticas de imoralidade sexual (como se isso
não fosse também um grande problema para os pastores casados).
64
CCC 1601; citação do Código de Direito Canônico 1055.
65
CCC 1602-1603; citação do Concílio Vaticano II, Gaudium et spes 48.1.
66
CCC 1604.
67
CCC 1605.
68
CCC 1605. A discussão remete a Gênesis 2.18-25.
69
Ibidem.
70
CCC 1607.
71
CCC 1608.
72
CCC 1609.
73
CCC 1611-1612.
74
CCC 1613.
75
Ibidem.
76
CCC 1614.
77
CCC 1615.
78
CCC 1617. Para a ideia de banho nupcial, veja Efésios 5.26,27.
79
CCC 1619. Para essa ideia, veja Marcos 12.25; 1Coríntios 7.31.
80
CCC 1621.
81
CCC 1622.
82
CCC 1625.
83
CCC 1626. Este ponto está de acordo com o cânon 1057.1 do Código de Direito Canônico.
84
CCC 1633-1637.
85
CCC 1635. Este ponto está de acordo com o cânon 1125 do Código de Direito Canônico.
86
CCC 1641.
87
CCC 1643.
88
CCC 1647.
89
CCC 1648.
90
CCC 1652; citação do Concílio Vaticano II, Gaudium et spes 48.1; 50. A lei natural é a regra, em
conformidade com a regra eterna que Deus prescreveu para a conduta humana, encontrada na natureza
humana. Dois paralelos podem nos ajudar aqui: assim como nada deveria inibir o desenvolvimento de um
girino em sapo, e assim como nada deveria inibir o desenvolvimento de uma bolota de carvalho em um
carvalho, de igual modo nada — por exemplo, contracepção, aborto — deveria inibir a fertilização e o
desenvolvimento in utero de um feto humano em um ser humano vivente fora do útero.
91
CCC 1654.
92
Concílio Vaticano II, Gaudium et spes 51 (VC II-1, 955).
93
Ibidem.
94
CCC 1656; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 11.
95
CCC 1657 (grifo removido); citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 10.
96
CCC 1658.
97
CCC 1612 (grifo do autor).
98
CCC 1613.
99
Infelizmente, num percentual elevado de casos, a consumação é fato já ocorrido.
100
Para a teologia católica, o dever de se abrir para a fertilidade se baseia na lei natural. Como isso é um
aspecto ou reflexo da lei divina, proporciona orientação moral em assuntos desse tipo. Com base nesse
fundamento, o ofício de ensino da Igreja Católica estabeleceu regras oficiais para o planejamento familiar,
permitindo o planejamento pelo método natural e, ao mesmo tempo, proibindo o uso de qualquer tipo de
contracepção. Preservativos, DIU, pílulas e os demais métodos que impedem a fertilização estão proibidos.
III
A teologia católica de acordo com o Catecismo
da Igreja Católica

TERCEIRA PARTE:
A VIDA EM CRISTO
11
A VIDA EM CRISTO
(terceira parte, seção 1, capítulos 1—2)
A vocação humana: a vida no Espírito; a comunidade humana

Depois de apresentar as doutrinas da igreja sob a rubrica “A profissão da fé” e


sua discussão ampliada da liturgia da igreja sob o título “A celebração do
mistério cristão”, o Catechism of the Catholic Church se volta para a instrução a
1

respeito da vida em Cristo. Renascidos pelo sacramento do batismo, “os cristãos


são chamados a levar, doravante, uma vida ‘digna do evangelho de Cristo’” (Fp
1.27), e são capazes de responder a esse chamado “pela graça de Cristo e os dons
do seu Espírito, os quais os crentes recebem por meio dos sacramentos e da
oração”. Essa catequese da nova vida em Cristo prioriza o Espírito Santo, a
2

graça, as bem-aventuranças, o pecado e o perdão, as virtudes humanas, as


virtudes cristãs (fé, esperança e caridade), bem como o duplo mandamento da
caridade (os Dez Mandamentos). Além disso, trata-se de uma catequese eclesial
centrada em Jesus Cristo.

A vocação humana: a vida no Espírito (seção 1)3


Esta primeira seção da vida em Cristo é dedicada à vida no Espírito Santo (cap. 1
do Catechism), vida que consiste no amor divino e na solidariedade humana
(cap. 2) e graciosamente oferecida como salvação (cap. 3). Nossa discussão e
avaliação evangélica tratarão dos temas da vida no Espírito e da solidariedade
humana em conjunto (cap. 11 deste livro) e versará sobre a doutrina da salvação
em si (cap. 12 deste livro).

A dignidade da pessoa humana (seção 1, capítulo 1)


A vida em Cristo pelo Espírito Santo é apresentada em oito artigos que vão da
imagem de Deus à vitória sobre o pecado, de modo que o fiel chegue à perfeição
do amor.
O homem: a imagem de Deus (seção 1, capítulo 1, artigo 1)
“A dignidade da pessoa humana radica na sua criação à imagem e semelhança de
Deus.” Essa imagem divina é sobretudo o intelecto ou a razão humana, a
4

capacidade “de compreender a ordem das coisas estabelecida pelo Criador”, o


livre-arbítrio, a capacidade de seguir em frente, de amar, o bem verdadeiro que
se tem, isto é, “o que é verdadeiro e bom”. A queda de Adão e Eva no pecado
5

teve um elemento trágico de abuso da liberdade de que desfrutavam. A


motivação, que os exortava a “fazer o bem e a evitar o mal”, sucumbiu à
6

tentação e optou pelo mal. Como consequência, a natureza humana, embora


quisesse o bem, “ferida pelo pecado original [...] ficou com a inclinação para o
mal e sujeita ao erro”. O resgate dessa divisão interna foi obra de Cristo e de sua
7

graça e se aplica pela fé em Cristo e pelo seguimento do seu exemplo. Tal


socorro significa o retorno à dignidade humana como portadores da imagem
divina.
Nossa vocação à bem-aventurança (seção 1, capítulo 1, artigo 2)
Tal dignidade se cumpre concretamente na vocação humana para a bem-
aventurança divina, que é o tema das Bem-Aventuranças de Jesus (Mt 5.3-12).
“As Bem-Aventuranças estão no coração da pregação de Jesus [...] retratam o
rosto de Jesus Cristo e descrevem-nos a sua caridade. Exprimem a vocação dos
fiéis [...] [e] definem os atos e as atitudes característicos da vida cristã.” Além
8

disso, “[elas] respondem ao desejo natural de felicidade. Esse desejo é de origem


divina; Deus o pôs no coração do homem para atraí-lo a si, o único que o pode
satisfazer”. Ao buscar a felicidade, o ser humano verá que somente Deus pode
9

satisfazer esse desejo divinamente implantado nele. Por fim, “as Bem-
Aventuranças revelam a meta da existência humana, o fim último dos atos
humanos: Deus nos chama à sua própria felicidade”. 10

Na Escritura, esse convite divino à bem-aventurança é também descrito como


a vinda do reino de Deus (Mt 4.17), a visão beatífica (ver a Deus; Mt 5.8; cf. 1Jo
1.2; 1Co 13.12), a entrada na alegria do Senhor (Mt 25.21-23) e no descanso
divino (Hb 4.7-11). Essas descrições chamam a atenção para o fato de que a
bem-aventurança é a meta divinamente estabelecida por Deus para a existência
humana: “Deus nos colocou no mundo para o conhecermos, servirmos e
amarmos, e assim chegarmos ao paraíso”. A entrada na bem-aventurança é algo
11

que depende totalmente da graça divina e, portanto, é sobrenatural; ao mesmo


tempo, a felicidade prometida “nos confronta com escolhas morais decisivas”,
como a purificação do nosso coração, a busca do amor de Deus acima de tudo e
a valorização correta da riqueza humana, da saúde, da fama, do poder e das
conquistas — sem neles pôr a esperança derradeira. 12
Liberdade humana (seção 1, capítulo 1, artigo 3)
A liberdade de buscar essa felicidade é a essência da existência e da dignidade
humanas; consequentemente, o Catechism retoma sua discussão da imagem
divina, que consiste na racionalidade humana e no livre-arbítrio. Como é
racional, o ser humano pode iniciar e controlar suas próprias ações, colocar-se
em busca de Deus e “aderir livremente a ele, para chegar à total e beatífica
perfeição”. A liberdade, de modo concreto, é definida pelo “poder, radicado na
13

razão e na vontade, de agir ou não agir, de fazer isto ou aquilo, praticando assim,
por si mesmo, ações deliberadas”. Quando dirigida a Deus, essa liberdade
14

alcança a perfeição; quando “não consolidada definitivamente no seu bem


último, que é Deus, existe a possibilidade de escolher entre o bem e o mal,
portanto de crescer na perfeição ou de falhar e pecar”. A liberdade de escolha
15

no primeiro caso resulta em louvor e mérito; no segundo, o abuso da liberdade


resulta em culpa e reprimenda. A escolha habitual do bem implica uma liberdade
cada vez maior; a desobediência habitual resulta na escravização ao pecado (Rm
6.17). Além disso, a liberdade torna o ser humano responsável por seus atos, na
suposição de que sejam voluntários, e não atos coercitivos. No caso de
“ignorância, inadvertência [falta de atenção], violência, medo, hábitos, afeições
desordenadas e outros fatores psíquicos ou sociais”, a responsabilidade pessoal
“pode ser diminuída ou até anulada”. A importância desse ponto é reforçada
16

pela insistência do Catechism de que “o direito ao exercício da liberdade é uma


exigência inseparável da dignidade da pessoa humana, nomeadamente em
matéria moral e religiosa”. 17

Ao colocar a discussão da liberdade no contexto da obra da salvação, o


Catechism chama a atenção para vários temas importantes. O primeiro deles,
18

liberdade e pecado, ressalta que a liberdade humana, sendo limitada e falível,


falhou; Adão e Eva pecaram livremente, e com isso se tornaram escravos do
pecado e mergulharam a humanidade toda em uma multidão de outros pecados,
Ameaças à liberdade, o segundo tema, mostra que o desvio da lei moral resulta
na violação da liberdade. Em relação ao terceiro tema, libertação e salvação, o
Catechism se ocupa da obra de Cristo, que produziu salvação e liberdade de tudo
o que escraviza o ser humano (Gl 5.1; Jo 8.32); o dom do Espírito Santo também
traz liberdade (2Co 3.17), que é a glória dos redimidos (Rm 8.21). Liberdade e
graça, o quarto tema, enfatiza que os dois não são rivais “quando essa liberdade
corresponde ao sentido da verdade e do bem que Deus colocou no coração do
homem”. De fato, uma resposta cada vez mais intensa à graça divina resulta em
19

cada vez mais liberdade.


A moralidade dos atos humanos (seção 1, capítulo 1, artigo 4)
“A liberdade faz do homem um sujeito moral. Quando age de maneira
deliberada, o homem é, por assim dizer, o pai dos seus atos.” Esses atos,
“livremente escolhidos em consequência de um juízo de consciência, são
moralmente qualificáveis” em bons ou maus. A moralidade dos atos humanos
20

consiste em três fontes ou elementos constitutivos: “o objeto escolhido; o fim


que se tem em vista ou a intenção; as circunstâncias da ação”. Em primeiro
21

lugar, o objeto escolhido é o ato em si, “para o qual a vontade tende


deliberadamente”, conforme avaliação da razão humana “em conformidade com
o verdadeiro bem”. Para fins de ilustração, um exemplo muito importante (e
22

que é positivo) é a orientação de um estudante que enfrenta dificuldades na


escola. As normas objetivas de moralidade e a consciência humana entram nesse
juízo racional. Consequentemente, alguns atos são intrinsecamente desregrados
(e.g., fornicação [atividade homossexual, entre outras], blasfêmia, perjúrio,
homicídio e adultério) e não podem jamais ser interpretados como boas ações
23

morais, seja qual for a intenção — o segundo elemento — com a qual são
empreendidas. Para fins de ilustração, outro exemplo (que é negativo) consiste
em exagerar as capacidades e realizações de um colega no trabalho.
O segundo elemento, o fim em vista ou intenção, consiste no agente moral
humano que age, e não no ato propriamente dito. Esse elemento é o objetivo da
intenção, o propósito que se busca na ação. “A intenção é um movimento da
vontade em direção ao fim: diz respeito ao objetivo da atividade. Sua meta é o
bem que se antecipa à ação empreendida.” No primeiro exemplo, o objetivo ou
24

a intenção da orientação consiste em ajudar o estudante a vencer suas


dificuldades de aprendizagem e a se tornar proficiente no assunto estudado para
prosseguir rumo a estudos avançados, se formar e ter emprego garantido em uma
ocupação que requer a habilidade por ele desenvolvida. Esse auxílio é uma boa
intenção. Conforme dissemos acima, porém, “uma boa intenção [...] não torna
um comportamento que é intrinsecamente incoerente [...] em bom ou justo. O
fim não justifica os meios”. No caso do segundo exemplo, exagerar as
25

habilidades de um colega no trabalho (o ato) para que ele ganhe uma promoção
merecida (a intenção) não torna o ato bom, porque mentir é inerentemente mau.
Em relação ao terceiro elemento, as circunstâncias da ação trazem consigo
suas consequências e “contribuem para agravar ou atenuar a bondade ou malícia
moral dos atos humanos [...]. Podem também diminuir ou aumentar a
responsabilidade do agente”. Contudo, essas “circunstâncias não podem, por si
próprias, modificar a qualidade moral dos próprios atos”. No primeiro exemplo,
26

a orientação dada ao estudante para ajudá-lo a se preparar para uma carreira é


bem-sucedido; isto é, o objetivo de preparar o estudante orientando-o resulta em
uma contribuição significativa por parte dele em sua vocação. A bondade moral
do ato em si, embora não dependa de suas consequências, é ampliada por seu
desfecho bem-sucedido. No exemplo secundário, a mentira dita para promover
um colega resulta, efetivamente, na sua promoção e, como consequência disso,
abre caminho para uma expansão significativa da empresa, beneficiando todos
os funcionários. Contudo, as consequências positivas não tornam a mentira, que
é má em si mesma, boa ou correta; a culpabilidade moral pela mentira não
diminui de modo algum em face do resultado positivo. Mudando um pouco o
exemplo secundário, se a mentira for decorrência do medo de que o colega
possa, de algum modo, retaliar se a dissimulação não for efetuada, a culpa pela
mentira poderá ser atenuada em alguma medida.
Consequentemente, um ato moral consiste em três fontes ou elementos
constitutivos. É importante notar que “um ato moralmente bom pressupõe, em
simultâneo, a bondade do objeto, da finalidade e das circunstâncias”. Uma boa 27

intenção não pode tornar bom um ato que é inerentemente mau.


A moralidade das paixões (seção 1, capítulo 1, artigo 5)
Passando de atos para paixões, o Catechism enfatiza que paixões ou sentimentos
humanos podem dispor de agentes morais para a felicidade e contribuir com ela.
Segundo a definição, “sentimentos ou paixões são emoções ou movimentos da
sensibilidade que inclinam a agir, ou a não agir, em vista do que se sentiu ou
imaginou como bom ou como mau”. Eles são mediadores entre a vida da mente
28

e a vida dos sentidos, conforme demonstrado aqui:


A vida da mente
(razão, vontade)

Paixões/sentimentos

A vida dos sentidos


(corpo)

Consequentemente, as paixões “são componentes naturais do psiquismo


humano, constituem o lugar de passagem e garantem a ligação entre a vida
sensível e a vida do espírito”. Conforme discutiremos em breve, a perfeição
29

moral é resultado de todos os aspectos humanos funcionando bem em conjunto


sob as ordens da razão e da vontade.
As paixões são numerosas, mas a afeição mais fundamental é o amor,
suscitada pela atração do bem. “O amor causa o desejo do bem ausente e a
esperança de o alcançar [...] e tem o seu termo no prazer e na alegria do bem
possuído.” O amor é a fonte dos demais sentimentos. Em oposição a isso, “a
30

apreensão pelo mal causa o ódio, a aversão e o receio do mal futuro; este
movimento termina na tristeza pelo mal presente ou na cólera que a ele se
opõe”. Consequentemente, as paixões “são más se o amor for mau, e boas se ele
31

for bom”. 32
Essa última afirmação significa que as paixões não são nem boas nem ruins
em si mesmas, mas recebem qualificação moral à medida que “dependem
efetivamente da razão e da vontade” e são por elas governadas. Quando a
33

razão/vontade governa as afeições ou não coloca obstáculos em seu caminho, as


paixões são voluntárias. Governadas pela razão/vontade de modo que
contribuam para uma boa ação, as paixões são moralmente boas; quando não são
governadas corretamente e desse modo contribuem para uma ação má, as
paixões são moralmente más. Em outros termos, “a vontade reta ordena para o
bem e para a bem-aventurança os movimentos sensíveis que assume; a vontade
má sucumbe às paixões desordenadas e exacerba-as”. Em suma, as paixões
34

“podem ser assumidas pelas virtudes, ou pervertidas pelos vícios”. 35

O Catechism conclui sua discussão chamando a atenção para a importância da


santificação, pelo Espírito Santo, do ser humano inteiro. Quando razão e
vontade, paixões e apetites e sentidos físicos são movidos na direção do bem, o
resultado será a perfeição moral.
A consciência moral (seção 1, capítulo 1, artigo 6)
Anteriormente, na discussão do sacramento do matrimônio, o Catechism apelou
à lei natural para respaldar a vocação para o casamento. A lei natural é a regra,
36

em conformidade com a regra eterna, que Deus prescreveu para a conduta


humana e que se encontra na própria natureza humana. Agora, em sua discussão
da vida de Cristo, o Catechism revisita essa ideia e descreve essa lei como
consciência moral: “No mais profundo da consciência, o homem descobre uma
lei que não se deu a si mesmo, mas à qual deve obedecer e cuja voz ressoa,
quando necessário, aos ouvidos do seu coração, chamando-o sempre a amar e
fazer o bem e a evitar o mal”. O apóstolo Paulo explica esse fenômeno em
37

Romanos 2.14-16.
De modo concreto, essa lei do coração, ou da consciência, foi inscrita por
Deus e é o julgamento da razão humana (não das paixões ou dos apetites
físicos). Uma consciência reta opera das seguintes formas: ela reconhece os
princípios morais; percebe sua aplicação em determinadas circunstâncias; julga
ações concretas, aprovando as que são boas e condenando as que são más;
promove a participação no bem e a necessidade de evitar o mal; e reconhece a
verdade a respeito do bem moral, de modo que ele se torna objeto de ações. A
interioridade é necessária para que a consciência funcione adequadamente; isto
é, o ser humano deve ser “suficientemente presente para si mesmo para ouvir e
seguir a voz de sua consciência”. A dignidade humana “implica e requer a
38

correção da consciência moral”; de fato, por causa da consciência, o ser humano


é capaz de assumir a responsabilidade por suas ações. Quando a consciência é
39
violada pela prática do mal, o juízo da consciência convence do erro, embora
testifique ainda da verdade do bem. Além disso, a consciência “atestando a falta
cometida, lembra o perdão a pedir, o bem a praticar ainda e a virtude a cultivar
incessantemente com a graça de Deus”. Dignidade humana significa também
40

que o ser humano deve ser livre para agir de acordo com a consciência e não
forçado a agir contrariamente a ela.
Embora implantada por Deus, a consciência deve ser formada por um
processo educativo ao longo da vida. Desse modo, ela se torna reta e verdadeira,
formulando seus juízos de acordo com o bem desejado por Deus. Tal formação
da consciência é indispensável à luz das influências e tentações negativas que
induzem ao pecado e que procuram prejudicar o ser humano. A Palavra de Deus,
os dons do Espírito Santo, o conselho alheio e os ensinos oficiais da igreja são
imprescindíveis à formação da consciência. São três os princípios da consciência
que se aplicam o tempo todo: “Nunca é permitido fazer o mal para que daí
resulte um bem; a Regra de Ouro é: ‘Portanto, tudo o que quereis que os homens
vos façam, fazei também a eles’ (Mt 7.12); e a caridade passa sempre pelo
respeito ao próximo e à sua consciência [1Co 8.12; Rm 14.21]”. 41

É possível que a consciência erre. A ignorância e o juízo equivocado de


consciência resultam de uma cegueira que se desenvolve por meio do pecado
habitual, da falta de consciência ou rejeição a Cristo e ao evangelho, do mau
exemplo de outros, da escravização a paixões, de afirmações de autonomia e
consciência, da rejeição dos ensinos oficiais da igreja e da falta de conversão e
de amor. Violar a própria consciência, agir deliberadamente contra ela, resulta na
própria condenação e na culpabilidade pelo mal cometido. Pela formação da
42

consciência, é possível corrigir seus erros.


As virtudes (seção 1, capítulo 1, artigo 7)
Com base na sugestão de Filipenses 4.8, o Catechism aborda o tópico das
43

virtudes humanas e teológicas. Por definição, “a virtude é uma disposição


habitual e firme para praticar o bem”. A pessoa virtuosa se inclina toda para o
44

bem, dando o melhor de si para escolher o bem nas ações concretas.


Há dois tipos de virtudes: a humana e a teológica. Em relação à primeira
categoria, “as virtudes humanas são atitudes firmes, disposições estáveis,
perfeições habituais da inteligência e da vontade, que regulam os nossos atos,
ordenam as nossas paixões e guiam o nosso procedimento segundo a razão e a
fé”. Esses hábitos comportam quatro virtudes cardeais ou principais: prudência
45

(“razão reta em ação”), justiça (dar a Deus e a outros o que lhes é devido),
46

fortaleza (perseverança na dificuldade e na busca do bem) e temperança


(moderação nos prazeres). Essas virtudes humanas e outras que delas derivam
são “purificadas e elevadas pela graça divina”. A vida virtuosa que é difícil para
47

o ser humano pecador buscar e praticar ganha o auxílio da graça da salvação.


As virtudes humanas “estão arraigadas nas virtudes teologais”, a segunda
categoria de virtudes. Essas inclinações ou esses hábitos são direcionados para
48

Deus e permitem que os fiéis vivam em relacionamento com ele e os ajudem a


merecer a vida eterna. As três virtudes teologais são a fé, a esperança e a
caridade (amor).
“A fé é a virtude teologal pela qual cremos em Deus e em tudo o que ele nos
disse e revelou e que a santa Igreja nos propõe para acreditarmos, porque ele é a
própria verdade.” O justo vive pela fé (Rm 1.17), o que, por sua vez, opera pelo
49

amor (Gl 5.6). A fé deve se fazer acompanhar da esperança e do amor, e deve ser
professada. De fato, “a fé sem obras é morta” (Tg 2.26), no sentido de que a “fé
não une plenamente o crente a Cristo e não o torna membro de seu corpo”. 50

Além disso, de acordo com as palavras de Jesus sobre confessá-lo ou negá-lo


perante outros (Mt 10.32,33), “o serviço e testemunho da fé são requeridos para
a salvação”. 51

“A esperança é a virtude teologal pela qual desejamos o reino dos céus e a


vida eterna como nossa felicidade, pondo toda a nossa confiança nas promessas
de Cristo e apoiando-nos não nas nossas forças, mas no socorro da graça do
Espírito Santo.” A esperança perseverante de Abraão (Rm 4.18) é o exemplo
52

por excelência dessa virtude. As Bem-Aventuranças de Jesus promovem a


esperança em meio às provações e à perseguição, e a oração — especialmente o
Pai-Nosso — expressa e alimenta a esperança.
“A caridade é a virtude teologal pela qual amamos a Deus sobre todas as
coisas por ele mesmo, e ao próximo como a nós mesmos, por amor de Deus.” O 53

amor é o novo mandamento que Jesus dá (Jo 13.34), e o amor entre seus
discípulos imita o amor de Jesus por eles (15.9,12). Como fruto do Espírito e
plenitude da lei divina (Rm 13.8), o amor obedece aos mandamentos divinos (Jo
15.9,10). Assim como Jesus demonstrou seu amor pelos pecadores morrendo por
eles, seus discípulos devem amar os pecadores (Rm 5.10; Mt 5.44). O amor é
descrito principalmente no hino de Paulo à caridade (1Co 13.1-7), que o situa no
topo das outras virtudes teologais. Consequentemente, o amor anima, inspira,
liga, articula e ordena a fé e a esperança; ele é “a forma das virtudes”, sua
origem e seu destino. 54

Além das virtudes humanas e das virtudes teologais, os dons do Espírito Santo
sustentam a vida moral do fiel. Esses sete dons — sabedoria, entendimento,
conselho, fortaleza, conhecimento, piedade e temor do Senhor — torna o fiel
submisso às animações do Espírito e “completam e levam à perfeição as virtudes
de quem os recebe”. 55
O pecado (seção 1, capítulo 1, artigo 8)
À medida que sua discussão sobre a dignidade da pessoa humana se aproxima do
final, o Catechism se detém na realidade do pecado, que é o pano de fundo para
a necessidade da misericórdia divina e da graça eucarística que conduz à
salvação. Citando Agostinho, o Catechism afirma: “Deus, que nos criou sem
nós, não quis salvar-nos sem nós”. Em outras palavras, embora a criação fosse
56

realizada sem a participação humana, a redenção é outra coisa. De modo


concreto, faz parte da participação humana na salvação a confissão do pecado
(1Jo 1.8,9). De fato, a graça divina, operando por meio da Palavra e do Espírito
de Deus, deve “revelar o pecado” — lançando sobre ele uma “luz viva” ou
convencendo do pecado — com o intuito de realizar sua obra, que é a conversão
e a imputação da justiça (Rm 5.21). 57

Por definição, “o pecado é uma falta contra a razão, a verdade, a reta


consciência. É uma falha contra o verdadeiro amor para com Deus e para com o
próximo, por causa de um apego perverso a certos bens”. Também pode ser
58

definido como “uma expressão, um ato ou um desejo contrário à lei eterna”. 59

Outros elementos do pecado são a ofensa contra Deus e seu amor pelo ser
humano (Sl 51.4); desobediência ou rebelião do ser humano contra a vontade de
Deus em busca de autonomia — autodeterminação (exemplificada no primeiro
pecado; Gn 3.5); amor-próprio a ponto de desprezar a Deus; autoexaltação
orgulhosa, em oposição à obediência a Cristo que realizou a salvação do ser
humano. Sobre esse último ponto, a paixão de Cristo revela “a violência e a sua
multiplicidade: incredulidade, ódio assassino, rejeição e escárnio por parte dos
líderes e do povo, covardia de Pilatos e crueldade dos soldados, traição de Judas
tão dura para Jesus, negação de Pedro e abandono dos discípulos”. Contudo,
60

desses sofrimentos decorrentes de muitos pecados vêm o perdão de pecados.


Das várias listas paulinas de pecados vêm o conceito de diferentes tipos de
61

pecados e sua categorização. Depois de assinalar vários sistemas de


classificação, o Catechism propõe que “os pecados sejam corretamente avaliados
de acordo com sua gravidade”; portanto, ele faz uma distinção entre pecado
62

mortal e pecado venial. “O pecado mortal destrói a caridade no coração do


homem por uma infração grave à Lei de Deus. Desvia o homem de Deus, que é o
seu último fim, a sua bem-aventurança, preferindo-lhe um bem inferior. O
pecado venial deixa subsistir a caridade, embora ofendendo-a e ferindo-a.” 63

Mais especificamente, as duas categorias podem ser discutidas e distinguidas


observando-se o pecado propriamente dito, seus resultados imediatos, seu
resultado eterno e a solução para vencê-lo. O pecado mortal é uma violação
grave da Lei de Deus e satisfaz três condições. Em primeiro lugar, seu objeto é
um assunto grave, conforme especificado pelos Dez Mandamentos. Portanto, ele
contradiz ou o amor de Deus ou o amor pelo próximo, ou ambos. Em segundo
lugar, ele está comprometido com o pleno conhecimento do “caráter pecaminoso
do ato, de sua oposição à lei de Deus”. Em terceiro lugar, o pecado mortal está
64

comprometido com o consentimento completo, requer uma escolha pessoal


deliberada que não é diminuída — pelo contrário, é aumentada — pela
“ignorância dissimulada e pela dureza de coração”. Por exemplo, “o pecado
65

cometido por meio da malícia, pela escolha deliberada do mal, é o mais grave de
todos”; de fato, Jesus mesmo falou da blasfêmia contra o Espírito Santo, que
66

caracterizou de pecado imperdoável e mortal (Mc 3.29; cf. Mt 12.32; Lc 12.10).


Um resultado imediato do pecado mortal é a destruição do amor no coração e o
distanciamento de Deus em razão da preferência de um bem inferior (i. e.,
criado) em lugar do bem por excelência, que é Deus. Outro resultado imediato é
a perda da graça santificadora; em que não se está mais em um estado de graça.
Quanto ao seu resultado eterno, se o pecado mortal não for redimido, e se
alguém morre nesse estado, “ele provoca a exclusão do reino de Cristo e leva à
morte eterna do inferno”. A solução para o pecado mortal é o sacramento da
67

penitência e reconciliação.
O pecado venial diz respeito a questões menos sérias do que o pecado mortal:
o padrão preconizado pela lei moral não é observado, ou a lei é desobedecida
“em questão grave, mas sem o pleno conhecimento ou sem o consentimento
completo”. Dois exemplos disso são “as conversas irrefletidas ou o riso
68

desmesurado”. Um resultado imediato do pecado venial é a ofensa ao amor, a


69

ferida imposta a ele, mas não sua destruição, como no caso do pecado mortal.
Manifestação de uma afeição desordenada por um bem inferior (i.e., criado), o
pecado venial também impede o progresso no exercício da virtude e da prática
do bem moral, que é um segundo resultado imediato. Em relação ao seu
resultado eterno, diferentemente do pecado mortal, o pecado venial não resulta
na perda da graça santificadora; a amizade da aliança com Deus, o amor e a
felicidade eterna permanecem. Contudo, o pecado venial implica também o
castigo temporal no purgatório. A solução para o pecado venial não é o
sacramento da penitência e reconciliação; pelo contrário, “ele é humanamente
reparável com a graça de Deus” por meio da confissão e do arrependimento. Há 70

uma advertência: “O pecado venial deliberado e do qual não houve


arrependimento nos dispõe pouco a pouco a cometer o pecado mortal”. 71

Para concluir sua discussão, o Catechism trata da proliferação do pecado: “O


pecado cria uma tendência para pecar; ele engendra o vício pela repetição dos
mesmos atos. Isso resulta em inclinações perversas que anuviam a consciência e
corrompem o juízo concreto do bem e do mal”. Seguindo a tradição da igreja
72
primitiva, o Catechism discute os vícios não no que diz respeito às virtudes às
quais se opõe, mas no que diz respeito à sua ligação com os sete pecados capitais
(comumente conhecidos como pecados “mortais”; são “‘capitais’ porque
engendram outros pecados”): orgulho, avareza (ganância), inveja, ira, luxúria,
glutonaria e preguiça (acídia). O Catechism menciona ainda os tradicionais
73

“pecados que clamam aos céus”: o sangue de Abel; a homossexualidade


sodomita; o clamor do povo de Deus escravizado no Egito; o clamor do
estrangeiro, da viúva, do órfão e as práticas comerciais injustas. Além disso, o
74

pecado vai além da responsabilidade pessoal: “Temos uma responsabilidade


pelos pecados cometidos por outros quando cooperamos com eles” ao 75

participar, supervisionar ou aprová-los, ao acobertá-los, protegê-los e ao proteger


os que os cometem. Esses pecados são sistêmicos, sociais ou estruturais; como
tais, estimulam um reino de pecado.

Avaliação evangélica
Boa parte desta seção sobre “A vida em Cristo” trata de tópicos de antropologia
(a doutrina da humanidade) e de moralidade (ética) de uma perspectiva
filosófica. Consequentemente, uma avaliação desses tópicos deve ser mensurada
e seletiva, detendo-se naquelas áreas das quais a Escritura e a teologia
evangélica tratam diretamente. De modo geral, como o ensino da teologia
católica sobre esses tópicos não é explicitamente bíblico, tampouco
explicitamente não bíblico, pode-se saudá-lo como uma contribuição bem-vinda
da antropologia e da moralidade, sem, contudo, considerá-lo definitivo e
obrigatório. São áreas como a da liberdade humana, moralidade das paixões
76

humanas, consciência moral, virtudes humanas, as virtudes teologais e a


77 78 79

moralidade dos atos humanos.


Tomando como exemplo esse último tópico, o ensino da teologia católica
sobre a moralidade dos atos humanos é uma teoria moral bem desenvolvida e
coerente. Sua ênfase nas três fontes ou elementos constitutivos dos atos morais
humanos — o objeto escolhido, o fim que se tem em vista ou a intenção e as
circunstâncias — lembra aos proponentes da teologia evangélica que as boas
obras e as más obras não dependem unicamente da correção ou do erro dos atos
em si. E se esses atos fossem realizados para a glória de Deus (Rm 15.7; 1Co
10.31), movidos pela fé (Rm 14.23), de um “amor que brota de um coração puro,
de uma boa consciência e de uma fé sincera” (1Tm 1.5; 1Pe 1.22), em
conformidade com uma atitude adequada e sincera (1Co 4.5; Cl 3.22)? Então
seriam considerados atos bons; do contrário, serão deficientes de alguma
maneira. Jesus advertiu sobre “falsos profetas, que se vestem de ovelhas, mas
que por dentro são lobos vorazes”, e prometeu a seus discípulos que eles os
“[reconheceriam] por seus frutos”, que serão maus porque eles são pessoas más
(Mt 7.15-20). Jesus também explicou que as profecias feitas, os demônios
exorcizados e as grandes obras realizadas, tudo em seu nome, não garantem a
entrada no reino de Deus (Mt 7.21-23). O bem e o mal não dizem respeito
apenas à correção e ao erro dos atos em si. Essa filosofia católica confere relevo
ainda maior à responsabilidade moral pessoal — “o homem é, por assim dizer, o
pai de seus atos” — e à natureza intrinsecamente desordenada de certos atos
80

(e.g., a atividade homossexual, o homicídio, o adultério). Essa ênfase pode ser


útil aos proponentes da teologia evangélica em meio a um distanciamento
cultural em relação à responsabilidade pessoal pelas ações próprias até a negação
de responsabilidade (e.g., o divórcio “sem culpa”; a síndrome da vítima) e dos
absolutos morais ao relativismo da ética (e.g., propor a justificação do mal
cometido por alguém com a expressão “Deus quer que eu seja feliz” ou “foi por
uma boa causa”).
Há duas questões sobre as quais as teologias católica e evangélica têm
perspectivas diferentes: a imagem de Deus e a distinção entre pecados mortais e
pecados veniais. Sobre a primeira questão, e conforme discutimos anteriormente,
a teologia católica se debruça sobre a imagem divina conforme expressa pela
razão humana, pelo intelecto e pelo livre-arbítrio. A seu favor, ela tem uma longa
tradição iniciada por Ireneu e desenvolvida por Tomás de Aquino. Embora
81

algumas variedades de teologia evangélica tenham seguido essa ênfase, outras


versões consideram a identificação da imagem de Deus com a racionalidade e a
liberdade humanas algo problemático por diversas razões. Em primeiro lugar, ela
é desnecessariamente reducionista. A Escritura não faz essa identificação
limitada. Na verdade, no capítulo inicial do Gênesis, a narrativa flui da
deliberação divina de criar o homem à imagem de Deus (Gn 1.26) à
concretização desse plano (v. 27), que é a criação de um homem e de uma
mulher em sua inteireza. Em segundo lugar, as investigações feitas no século
passado sobre a literatura do antigo Oriente Médio deslocaram a atenção da
imagem divina como função sobretudo do domínio sobre a ordem criada. Em 82

terceiro lugar, em razão da enorme influência de Karl Barth, a criação divina do


homem e da mulher como portadores dessa imagem ganhou destaque tendo
como consequência o fato de que a relação humana, refletindo a relação inerente
no Deus trino, ganhou importância. Esses desdobramentos em direção ao
83

acolhimento de uma estratégia mais holística no que diz respeito à imagem


divina servem para criticar e afastar a visão especulativa da teologia católica
segundo a qual, até mesmo antes da Queda, no caso de Adão e Eva, sua
razão/intelecto era responsável pelo governo de suas paixões e de seus apetites
físicos.
Retornando à segunda área de discordância, a teologia evangélica rejeita a
distinção da teologia católica entre pecados mortais e pecados veniais, sobretudo
porque a Escritura não faz correspondente distinção. Sem dúvida, a Escritura
distingue explicitamente entre pecados não intencionais e pecados intencionais,
ou “arbitrários”:
E se uma pessoa pecar por ignorância, oferecerá uma cabra de um ano como sacrifício pelo pecado.
E o sacerdote fará expiação por aquele que pecar diante do SENHOR, quando pecar por ignorância; feita
a expiação, será perdoado. Haverá uma só lei para todo aquele que pecar por ignorância, tanto para o
natural da terra de Israel como para o estrangeiro que viver entre eles. Mas a pessoa que pecar
conscientemente, seja natural da terra, seja estrangeira, blasfema contra o SENHOR. Tal pessoa será
eliminada do meio do seu povo, porque desprezou a Palavra do SENHOR e infringiu seu mandamento.
Certamente ela será eliminada, e o seu pecado recairá sobre ela (Nm 15.27-31; grifo do autor).

É importante frisar que, no caso do pecado por ignorância, será preciso fazer um
sacrifício de expiação e, no caso do pecado consciente, o sacrifício permitirá
perdoá-lo. Contudo, essa distinção bíblica não tem paralelo nenhum com a ideia
da teologia católica de que o pecado venial não requer uma nova infusão de
graça santificadora para ser perdoado, ao passo que o pecado mortal requer
efetivamente o sacramento da penitência para que possa ser perdoado.
Além disso, a Escritura faz distinção entre graus de pecado, pelo menos no
que diz respeito às consequências que diferentes pecados produzem: “Alguns
pecados são piores do que outros no sentido de que têm consequências mais
danosas em nossa vida e na vida de outros, e, no que diz respeito à nossa relação
pessoal com Deus como Pai, eles suscitam uma maior dose de descontentamento
nele e induzem a um rompimento mais sério em nosso relacionamento com
ele”. A base bíblica para a distinção entre pecados maiores e pecados menores
84

em relação a uma seriedade maior ou menor de suas consequências encontra-se


na visão de Ezequiel das “abominações ainda maiores” (Ez 8.6,13,15) e na
acusação de que, como Judas entregou Jesus a Pôncio Pilatos, aquele discípulo
“tem maior pecado” (Jo 19.11). Contudo, essa distinção se detém na gravidade
do pecado no que diz respeito às suas consequências danosas para a vida das
pessoas, que perdem a intimidade em seu relacionamento com Deus. Contudo,
ela não trata da questão da culpa diante de Deus. No caso da posição legal da
pessoa diante de Deus, todos os pecados, não importa se graves ou não, tornam a
pessoa culpada diante de Deus e, com isso, as coloca sob a ira divina. Conforme
Tiago explicou: “Pois qualquer um que guarda toda a lei, mas tropeça em um só
ponto, torna-se culpado de todos. Porque o mesmo que disse: Não adulterarás,
também disse: Não matarás. Se não cometes adultério, mas és homicida, tornas a
ti mesmo transgressor da lei” (Tg 2.10,11; cf. Gl 3.10, citando Dt 27.26).
Consequentemente, deixar de guardar toda a lei divina, mesmo que num só
ponto, faz com que a pessoa a viole, e essa transgressão suscita o juízo divino.
Portanto, quer seja o pecado sério, quer seja menor, o resultado é de culpa diante
de Deus. Por isso, a distinção que a teologia católica faz entre pecado mortal —
que implica a perda da graça justificadora, trazendo culpa diante de Deus,
fazendo o indivíduo incorrer na ira divina, exigindo, para ser perdoado, o
sacramento da penitência —, e pecado venial, por meio do qual não se perde a
graça, não constitui um ensinamento bíblico.
Duas áreas de séria discordância que a teologia evangélica tem com sua
congênere católica no que diz respeito à apresentação de “A vida em Cristo” são
a falta de atenção dada à Escritura como componente crítico da vivência cristã e
a atenção praticamente exclusiva com a bem-aventurança humana como
propósito estabelecido por Deus para a existência humana. Em relação à pouca
consideração pela Escritura, no início de sua discussão sobre esse tópico, o
Catechism atribui a capacidade do fiel de viver uma vida “digna do evangelho de
Cristo” à “graça de Cristo e aos dons do Espírito, que ele recebe através dos
sacramentos e da oração”. Outros elementos santificadores ordenados
85

explicitamente ao fiel compreendem a conformidade com a mente de Cristo e o


seguimento do seu exemplo, o Espírito Santo, a graça, o pecado e o perdão, as
virtudes humanas e as virtudes cristãs (fé, esperança e caridade). Quanto ao
papel da Escritura nessa vida em Cristo, há três seções fundamentais — as Bem-
Aventuranças, os Dez Mandamentos e a Regra de Ouro (Mt 7.12) — que
ocupam sua atenção, mencionando-se também a importância da Escritura na
formação da consciência, mas isso é tudo o que se diz sobre o papel explícito da
Escritura no viver cristão. Com essa crítica, a teologia evangélica não nega que
boa parte dessa seção do Catechism está fundamentada na Escritura; de fato, as
referências à base bíblica são comuns. Tampouco essa crítica faz pouco do fato
de que o Catechism, de modo geral, dedica uma discussão significativa à
revelação divina — incluindo uma apresentação à inspiração, à veracidade, ao
cânon, à interpretação, à unidade e à eficácia da Escritura — em suas páginas
iniciais. Pelo contrário, a crítica reflete aquilo pelo que a teologia evangélica é
conhecida — a Palavra de Deus e sua autoridade, suficiência e necessidade para
a vida em Cristo.
Fundamental para essa ênfase na Palavra de Deus é o que a Escritura afirma
por si mesma: “Toda a Escritura é divinamente inspirada e proveitosa para
ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir em justiça; a fim de que o
homem de Deus tenha capacidade e pleno preparo para realizar toda boa obra”
(2Tm 3.16,17). Conforme evidencia a última expressão, não há boa obra que
Deus conclame seu povo a fazer para a qual não o capacite a realizá-la por meio
da sua Palavra. O conhecimento do evangelho e da sã doutrina, a exposição ao
que desagrada a Deus, a convicção do pecado, a orientação no caminho correto,
a sabedoria para que se conheça a vontade de Deus, a certeza durante a provação
e a perseguição, a busca de pureza — a Palavra de Deus proporciona tudo isso e
muito mais para a vivência da vida cristã.
A teologia evangélica oferece uma rica apresentação da Escritura e mostra
como ela medeia essa obra salvadora de Cristo e promove a caminhada
progressiva do fiel com ele. Para um primeiro exemplo, a Escritura como atos de
fala revestidos de poder de Deus é mais do que apenas palavras, uma vez que
suas declarações realizam aquilo que comunicam. Para ilustrar isso, a declaração
divina conhecida como justificação é o pronunciamento legal de Deus, o Juiz,
segundo o qual os seres humanos pecadores “não são culpados!”, e sim
“justos!”, porque a declaração feita os torna justos. Para ilustrar ainda melhor, a
expressão comissiva divina “Quem tem o Filho tem a vida” (1Jo 5.12)
compromete a Deus, que a enunciou, com a verdade dessa promessa, que é
consequentemente verdadeira na vida do ser humano pecador que abraça a
Cristo. Um segundo exemplo apela a uma injunção bíblica explícita: “Desejai o
puro leite espiritual, como bebês recém-nascidos, a fim de crescerdes por meio
dele para a salvação, se é que já provastes que o Senhor é bom” (1Pe 2.2,3).
Consequentemente, a Escritura é o leite espiritual para a nutrição dos fiéis —
todos os quais são retratados como bebês recém-nascidos — para que progridam
na salvação. A teologia evangélica lamenta a escassa atenção que a teologia
católica dá à Palavra de Deus como elemento crucial para a vivência da vida em
Cristo e apela à sua congênere para que ressalte o papel essencial da Escritura na
vivência cristã.
Uma segunda área de profunda decepção da teologia evangélica com a
teologia católica diz respeito à apresentação que esta faz de “A vida em Cristo”
se detendo, quase exclusivamente, na bem-aventurança humana como propósito
divinamente estabelecido para a existência humana. Não se está dizendo aqui
que a salvação e a bênção eterna dos que abraçam o evangelho de Jesus Cristo
não são verdadeiras ou têm pouca importância. Pelo contrário, a exaltação futura
do fiel é descrita fartamente na Escritura: a plena conformidade à imagem de
Cristo (Rm 8.29; 1Co 15.49; 1Jo 3.1-3); corpos ressurretos imperecíveis,
gloriosos, fortes e dominados pelo Espírito (1Co 15.42-44); a experiência de ver
a Deus “face a face” (a “visão beatífica”), pois ele habita para sempre com seu
povo no novo céu e na nova terra (1Co 13.12; Ap 21 e 22). Portanto, a exaltação
futura do fiel é de importância extraordinária na visão bíblica da bem-
aventurança futura reservada aos cristãos. A crítica, pelo contrário, se detém na
oportunidade perdida de respaldar aquilo que é mais importante ainda do que a
bem-aventurança humana: o ser humano foi criado e, portanto, feito por Deus
para glorificá-lo em sua vida.
O Breve Catecismo de Westminster, uma das expressões populares da teologia
evangélica, diz de maneira sucinta: “Pergunta: Qual é o fim principal do
homem? Resposta: O fim principal do homem é glorificar a Deus e desfrutá-lo
para sempre”. O fim supremo do ser humano — sem negar os demais
86

propósitos para os quais ele foi criado — não acaba nele mesmo, mas em Deus.
Conforme disse Paulo em uma oração de glorificação a Deus: “Porque todas as
coisas são dele, por ele e para ele. A ele seja a glória eternamente! Amém” (Rm
11.36). Em outro lugar, o apóstolo assinalou que o propósito eterno de Deus
87

era, em certo sentido, a glorificação futura do seu povo; contudo, além dessa
exaltação do ser humano havia uma coisa mais: a preeminência do seu Filho.
“Pois os que conheceu por antecipação, também os predestinou para serem
conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre
muitos irmãos” (8.29). Desde toda a eternidade, o plano divino (presciência,
predestinação) é que o ser humano seja resgatado pela graça divina para que se
conforme plenamente um dia à imagem do Filho; contudo, entre esses irmãos e
irmãs distintos e redimidos, a preeminência do Filho (“o primogênito” no tocante
à sua condição exaltada) se distinguirá. Portanto, a teologia evangélica enfatiza o
plano divino para a humanidade, e não a bem-aventurança humana, a felicidade,
a glorificação etc., por mais importante que seja tudo isso. Pelo contrário, o mais
importante na visão da teologia evangélica é a glória de Deus e a preeminência
de Cristo — o ser humano existe para a glória do seu Criador e Salvador.
Consequentemente, a teologia evangélica lamenta a ênfase mal colocada, por
parte da teologia católica, na bem-aventurança humana.

A comunidade humana (seção 1, capítulo 2)


Depois de tratar da vida em Cristo como vida no Espírito Santo (seção 1,
capítulo 1), o Catechism discute a seguir as dimensões coletivas dessa vida, isto
é, a comunidade e a solidariedade humanas. Como o presente capítulo se detém
(seção 1, capítulo 2) na teoria social e política da Igreja Católica, será bastante
breve.
A pessoa e a sociedade (seção 1, capítulo 2, artigo 1)
Criado à imagem do Deus trino que existe eternamente em comunidade como
Pai, Filho e Espírito Santo, o ser humano é chamado a refletir essa comunidade
divina na sociedade humana. De fato, em razão desse desígnio divino para a
natureza humana, o ser humano precisa viver em sociedade, concretamente nas
sociedades da família e do Estado. Outras associações e instituições voluntárias
— econômicas, sociais, culturais, recreativas, atléticas, profissionais e políticas
— promovem a socialização humana, mas também apresentam perigos. Para
evitar essas possíveis ameaças, a igreja propõe o princípio da subsidiariedade e
“uma justa hierarquia de valores, os quais ‘subordinam as dimensões físicas e
instintivas às dimensões interiores e espirituais’”. Em virtude do mal humano e
88

sistêmico — por exemplo, quando as pessoas são tratadas como meios para um
fim —, “é preciso, portanto, apelar à capacidade espiritual e moral da pessoa
humana e à necessidade permanente de sua conversão interior, para que haja
mudanças sociais que lhe sirvam de fato”. Na verdade, o evangelho é a única
89

solução verdadeira para o problema social.


Participação na vida social (seção 1, capítulo 2, artigo 2)
A sociedade humana requer uma autoridade voltada para o bem comum e que
demonstre respeito por ele. “Chama-se autoridade àquela qualidade em virtude
da qual pessoas ou instituições dão leis e ordens a homens e esperam obediência
da parte deles.” Toda autoridade humana deriva de Deus (Rm 13.1,2; 1Pe 2.13-
90

17). “Por bem comum deve entender-se ‘o conjunto das condições sociais que
permitem, tanto aos grupos quanto a cada um dos seus membros, atingir a sua
perfeição, do modo mais completo e adequado’”. Esse bem comum consiste em
91

três elementos essenciais: respeito pelo ser humano e pelo seu desenvolvimento
como tal e por seus direitos fundamentais; prosperidade, ou o bem-estar e o
desenvolvimento da sociedade; e paz, ou a estabilidade e segurança da sociedade
por meio da manutenção e do desenvolvimento de uma ordem justa.
Evidentemente, o pressuposto que subjaz a essa discussão é a existência de um
bem comum universal, cuja busca é necessária para assegurar e promover a
dignidade do ser humano. Tal responsabilidade de promoção do bem comum é
primeiramente pessoal, depois institucional, sobretudo no que diz respeito ao
Estado e à família.

Justiça social (seção 1, capítulo 2, artigo 3)


A justiça social se acha vinculada ao exercício da autoridade e à busca do bem
comum, o que é garantido pela sociedade “quando ela realiza as condições que
permitem às associações e aos indivíduos obterem o que lhes é devido, segundo
a sua natureza e vocação”. No âmago da justiça social está o respeito pelo ser
92

humano e por sua dignidade transcendente como portador da imagem de Deus.


Tal respeito é demonstrado pela promoção dos direitos humanos, pela prática do
princípio segundo o qual “cada um considere o seu próximo, sem qualquer
exceção, como ‘outro ele mesmo’”, e zele por todos os seres humanos
93

igualmente, a despeito das muitas diferenças planejadas por Deus. Outras


diferenças — “desigualdades pecaminosas” contrárias ao evangelho — devem
ser contestadas e eliminadas; uma forma de fazê-lo consiste em reduzir a
disparidade social e econômica entre as pessoas e os grupos. Imprescindível 94

para isso é a virtude cristã da solidariedade humana, que leva ao


compartilhamento tanto dos bens materiais quanto dos bens espirituais da fé
cristã. 95

Avaliação evangélica
De modo geral, como o tratamento dispensado pela teologia católica a essas
questões é reflexo de uma teoria social e política que não é explicitamente
bíblica, tampouco não bíblica, pode-se acolhê-la como uma possível
contribuição para a discussão das dimensões coletivas da existência humana,
sem, contudo, considerá-la definitiva e obrigatória. A teologia evangélica está de
acordo em áreas como o plano divino para que o ser humano floresça em
comunidade, as duas instituições da família e do governo, conforme ordenadas
por Deus, os perigos inerentes às associações e instituições voluntárias em razão
do mal sistêmico, a necessidade de uma autoridade exercida de maneira
adequada, a promoção dos direitos humanos sancionados pela Bíblia, a bênção
da prosperidade e da paz (pela qual a igreja deve orar; 1Tm 2.1,2), a busca de
um bem comum universal, a igualdade de todos os seres humanos em
decorrência da criação à imagem de Deus e a solidariedade da raça humana.
Quando há disparidade, ela é encontrada em áreas como a do princípio da
subsidiariedade e da visão relativamente otimista que a teologia católica tem da
comunidade humana, do governo e de outras instituições.
Antes de concluir este capítulo, é preciso olhar com atenção uma área ainda
não avaliada. Em sua discussão da vida em Cristo, especialmente quando diz que
essa existência foi arruinada pela realidade do pecado, o Catechism cita
positivamente Agostinho: “Deus, que nos criou sem nós, não quis salvar-nos sem
nós”. Não avaliamos tal afirmação porque o próximo capítulo se concentrará na
96

doutrina da salvação da teologia católica em que esse arranjo cooperativo entre


Deus e o ser humano é discutido e defendido demoradamente. É para essa
apresentação e a sua avaliação evangélica correspondente que nos voltamos
agora.
1
Edição em português: Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Loyola, 1999).
2
CCC 1692.
3
Embora o título de fato dessa seção do Catechism seja “A vocação do homem”, o termo genérico
“humano” será usado em substituição a “homem” para assegurar que a discussão trate explicitamente do
homem e da mulher, como é de fato a intenção do Catechism.
4
CCC 1700.
5
CCC 1704; citação do Concílio Vaticano II, Gaudium et spes 15.2.
6
CCC 1706; citação do Concílio Vaticano II, Gaudium et spes 16.
7
CCC 1707.
8
CCC 1716-1717.
9
CCC 1718.
10
CCC 1719.
11
CCC 1721.
12
CCC 1723.
13
CCC 1730; citação do Concílio Vaticano II, Gaudium et spes 17; cf. Eclesiástico 15.14.
14
CCC 1731.
15
CCC 1731-1732 (grifo removido).
16
CCC 1735.
17
CCC 1738 (grifo removido).
18
CCC 1739-1742.
19
CCC 1742.
20
CCC 1749 (grifo removido).
21
CCC 1750.
22
CCC 1751.
23
CCC 1755-1756.
24
CCC 1752.
25
CCC 1753.
26
CCC 1754.
27
CCC 1755 (grifo removido).
28
CCC 1763.
29
CCC 1764.
30
CCC 1765.
31
Ibidem.
32
CCC 1766; citação de Augustine, The city of God 14.7 (NPNF1 2:267) [edição em português:
Agostinho, A cidade de Deus, tradução de Oscar Paes Leme (Petrópolis: Vozes de Bolso, 2012), 2 vols.].
33
CCC 1767.
34
CCC 1768.
35
CCC 1768 (grifo removido).
36
CCC 1603.
37
CCC 1776; citação do Concílio Vaticano II, Gaudium et spes 16.
38
CCC 1779.
39
CCC 1780-1781.
40
CCC 1781.
41
CCC 1789.
42
O Catechism leva em conta algumas situações — e.g., “a ignorância [da consciência] é invencível [i.e.,
ela é tão completamente plena que não pode ser retificada], ou o sujeito moral não é responsável por seu
juízo errôneo” — disso resultando que o mal cometido não é imputado ao agente moral (CCC 1793).
43
Paulo estabelece a verdade, a honra, a justiça, a pureza, a beleza, a graça, a excelência e o
merecimento de louvor como objetos da meditação humana.
44
CCC 1803.
45
CCC 1804 (grifo removido).
46
CCC 1806; citação de Thomas Aquinas [Tomás de Aquino], Summa theologica, 2.ª pt. da 2.ª pt, q. 47,
art. 2 [edição em português: Suma teológica (São Paulo: Loyola, 2001), 9 vols.].
47
CCC 1810.
48
CCC 1812.
49
CCC 1814; citação do Concílio Vaticano II, Dei Verbum 5.
50
CCC 1815.
51
CCC 1816.
52
CCC 1817.
53
CCC 1822.
54
CCC 1827 (grifo removido).
55
CCC 1831; referência bíblica: Isaías 11.2.
56
CCC 1847; citação de Augustine, Sermão 169, in: John E. Rotelle, org., The works of Saint Augustine:
a translation for the 21st Century, tradução para o inglês de Edmund Hill (Hyde Park: New City, 1992), vol.
5, p. 231.
57
CCC 1848.
58
CCC 1849.
59
Ibidem; citação de Augustine, Reply to Faustus the Manichean 22.27 (NPNF2 4:283); Thomas
Aquinas, Summa theologica, 1.ª pt. da 2.ª pt., q. 71, art. 6.
60
CCC 1851.
61
Gálatas 5.19-21; Romanos 1.28-32; 1Coríntios 6.9,10; Efésios 5.3-5; Colossenses 3.5-8; 1Timóteo
1.9,10; 2Timóteo 3.2-5.
62
CCC 1854.
63
CCC 1855.
64
CCC 1859.
65
Ibidem. Com relação à ignorância dissimulada e à dureza de coração, o Catechism faz referência a
Marcos 3.5,6 e Lucas 16.19-31.
66
CCC 1860.
67
CCC 1861.
68
CCC 1862.
69
CCC 1856. Os exemplos são de Thomas Aquinas, Summa theologica, 1.ª pt. da 2.ª pt., q. 88, art. 2.
70
CCC 1863.
71
Ibidem.
72
CCC 1865.
73
CCC 1866. Esses pecados capitais foram discutidos por John Cassian [João Cassiano] em The
conference of Abbot Serapion 5 (NPNF2 11:339-351) e por Gregory the Great [Gregório, o Grande],
Moralia in Job 31.45.
74
CCC 1867 (grifo removido); as referências bíblicas para esses pecados são: o sangue de Abel (Gn
4.10); o pecado de Sodoma (Gn 18.20; 19.13); o clamor de Israel (Êx 3.7-10); o clamor dos oprimidos (Êx
22.21-24); e o pagamento injusto (Dt 24.14,15; Tg 5.4).
75
CCC 1868 (grifo removido).
76
A teologia evangélica acolhe diversas perspectivas da liberdade humana, entre elas a liberdade do
livre-arbítrio, em combinação com o indeterminismo e com muita sobreposição com a postura da teologia
católica, e a liberdade compatibilista, que combina em alguma medida com o determinismo.
77
Para uma investigação das paixões da perspectiva evangélica, veja Kevin J. Vanhoozer,
Remythologizing theology: divine action, passion, and authorship, Cambridge Studies in Christian Doctrine
(New York: Cambridge University Press, 2012).
78
Embora a teologia evangélica concorde com sua congênere católica que a consciência humana foi
inscrita por Deus no coração de todos, e que ela serve para acusá-los quando erram e para elogiá-los quando
fazem o que é certo (Rm 2.14-16), muitas versões da teologia evangélica têm uma avaliação mais
pessimista do papel e da importância da consciência (corrompida pelo pecado) do que a perspectiva
católica.
79
De modo geral, a teologia evangélica, se familiarizada com a discussão das virtudes humanas proposta
pela teologia católica, questionará primeiramente os fundamentos dela (a teologia católica busca respaldo
no escrito apócrifo de Sabedoria 8.7) para, em seguida, descartar a proposição do Catechism de que “as
virtudes morais são adquiridas pelo esforço humano [...] [e] dispõem todas as potencialidades do ser
humano para comungar no amor divino” (CCC 1804). Para a teologia evangélica, as virtudes humanas
podem ser apreciadas e até elogiadas como atitudes e disposições virtuosas em nível humano, mas não o são
perante Deus, pelo menos no que diz respeito a garantir seu favor e/ou preparativos para sua graça. Que o
próximo seja uma pessoa virtuosa, exibindo padrões coerentes de prudência, justiça, fortaleza e temperança,
é motivo de ações de graças e causa de bom relacionamento com ele. Contudo, suas virtudes humanas não
são motivo de merecimento de favor perante Deus e, portanto, não devem mitigar a preocupação do cristão
de chamá-lo ao arrependimento por meio do evangelho. Até mesmo Cornélio, que temia a Deus, com quem
Pedro aprendeu a lição “de que Deus não mostra parcialidade, mas em toda nação, quem quer que o tema e
faça o que é certo e aceitável diante dele” (At 10.34,35), precisava ouvir a mensagem do apóstolo sobre
Jesus Cristo, arrepender-se, batizar-se e receber o Espírito Santo para ser salvo. É importante notar que a
teologia evangélica reconhece a interdependência natureza-graça no fundamento da posição da teologia
católica acerca das virtudes humanas. De acordo com esse axioma, a natureza — nesse caso, as virtudes
humanas — tem capacidade para a graça, que opera de modo que eleve e aperfeiçoe essas virtudes.
Conforme diz o Catechism, as virtudes cardeais, e outras que delas decorrem, “são purificadas e elevadas
pela graça divina” (CCC 1810). A crítica dessa interdependência pela teologia evangélica já foi apresentada.
80
CCC 1749 (grifo removido).
81
Irenaeus [Ireneu], Against heresies 4.4.3 (ANF 1:466); Thomas Aquinas, Summa theologica, pt. 1, q.
93.
82
E.g., Gerhard von Rad, Genesis: a commentary, tradução para o inglês de John H. Marks
(Philadelphia: Westminster, 1972), p. 60. Para um resumo desse desenvolvimento, veja J. Richard
Middleton, The liberating image: the Imago Dei in Genesis 1 (Grand Rapids: Brazos, 2005), p. 24-34.
83
Karl Barth, Church dogmatics, organização de G. W. Bromiley; T. F. Torrance (Edinburgh: T&T
Clark, 1936), 13 vols., p. 184-8.
84
Grudem, ST, p. 502 [edição em português: Wayne Grudem, Teologia sistemática (São Paulo: Vida
Nova, 2011)].
85
CCC 1692.
86
Breve Catecismo de Westminster, pergunta 1.
87
Cf. Salmos 86; Isaías 60.21; 1Coríntios 6.20; 10.31; Apocalipse 4.11.
88
CCC 1886; citação do papa João Paulo II, Centesimus annus (1 de maio de 1991), 36.2, disponível
em: http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/encyclicals/documents/hf_jp-
ii_enc_01051991_centesimus-annus_en.html.
89
CCC 1888 (grifo removido).
90
CCC 1897.
91
CCC 1906; citação do Concílio Vaticano II, Gaudium et spes 26.1; cf. 74.1.
92
CCC 1928.
93
CCC 1931; citação do Concílio Vaticano II, Gaudium et spes 27.1.
94
CCC 1938.
95
CCC 1939-1942.
96
CCC 1847; citação de Augustine, Sermon 169, in: Rotelle, org., Works of Saint Augustine, terceira
parte: Sermons, vol. 5: Sermons 148–183, p. 231.
12
A VIDA EM CRISTO
(terceira parte, seção 1, capítulo 3)
Salvação; lei; graça e justificação; mérito; a igreja, mãe e
educadora

A salvação de Deus: lei e graça (seção 1, capítulo 3)


Depois de tratar da vida em Cristo como vida no Espírito Santo (seção 1,
capítulo 1), e tendo discutido as dimensões coletivas da comunidade humana e
da solidariedade humana (seção 1, capítulo 2), o Catechism of the Catholic
Church se volta agora para a apresentação da salvação do ser humano,
1

“chamado à bem-aventurança, porém ferido pelo pecado” e, portanto,


necessitado de salvação (seção 1, capítulo 3). De modo concreto, essa ajuda
2

redentora que Deus oferece em Cristo vem por meio da lei que guia o ser
humano e da graça que o sustenta, conforme assinalado em Filipenses 2.12,13.
A lei moral (seção 1, capítulo 3, artigo 1)
Em sua sabedoria, Deus deu a lei moral ao homem para sua salvação. “Ela
prescreve ao homem os caminhos, as regras de procedimento que o levam à
bem-aventurança prometida e lhe proíbe os caminhos do mal, que desviam de
Deus e do seu amor.” A lei tem quatro expressões inter-relacionadas: “lei eterna
3

— a fonte, em Deus, de toda a lei; lei natural; lei revelada, que compreende a lei
antiga e a nova lei, ou lei do evangelho; por fim, a lei civil e a eclesiástica”. 4

Em relação ao primeiro tipo de lei, o Catechism não desenvolve a ideia da lei


eterna, mas ela parece corresponder ao caráter eterno de justiça de Deus. Como
ele é perfeitamente justo em si mesmo, Deus é a fonte da lei natural, e a lei
revelada, reflexo da lei eterna.
Quanto ao segundo tipo, “a lei natural exprime o sentido moral original que
permite ao homem discernir, pela razão, o bem e o mal, a verdade e a mentira”. 5

Ela é universal, foi inscrita na consciência humana por Deus, expressa nos Dez
Mandamentos, firmada pela razão, é supracultural (i.e., aplicável a todas as
pessoas em todos os tempos e lugares), imutável e permanente, fundacional para
a construção humana das regras morais para a edificação da comunidade humana
e base da lei civil. Dada a presente condição de pecaminosidade do homem, “os
preceitos da lei natural não são percebidos por todos de maneira clara e
imediata”. Pelo contrário, a humanidade pecaminosa “precisa da graça e da
6

revelação, de modo que as verdades morais e religiosas sejam conhecidas ‘de


todos com facilidade, com firme certeza e sem mistura com o erro’”. Dada a sua 7

importância, então, a lei natural, conforme planejada e forjada por Deus,


proporciona um fundamento para a lei e a graça reveladas.
O terceiro tipo de lei, a lei revelada, consiste em dois estágios: o da antiga lei
e o da nova lei. A antiga lei, ou Lei de Moisés, foi divinamente revelada ao povo
de Israel e “expressa muitas verdades naturalmente acessíveis à razão”, porém
recontextualizadas no âmbito da obra divina de salvação. Ela está resumida nos
8

Dez Mandamentos, ou Decálogo, que é “luz oferecida à consciência” de todo ser


humano para que conheça o chamado e os caminhos de Deus e possa se proteger
do mal. Embora em si mesma e por si mesma a antiga lei seja “santa, espiritual e
9

boa” (Rm 7.12,14,16), ela é imperfeita. De modo concreto, embora funcione


como tutora (Gl 3.24) mostrando “o que deve ser feito”, ela “não dá por si
mesma a força, a graça do Espírito, para que seja cumprida”. Como não pode
10

remover o pecado humano, “continua a ser uma lei de escravidão”. De fato, seu 11

propósito especial consiste em “denunciar e revelar o pecado, que constitui ‘uma


lei da concupiscência’ (Rm 7) no coração humano”. Ao mesmo tempo, “a lei
12

continua a ser o primeiro estágio na jornada em direção ao reino. Ela prepara e


dispõe o povo escolhido e cada cristão para a conversão e a fé no Deus
Salvador”. Em outras palavras, ela é “uma preparação para o evangelho”,
13

profetizando e prognosticando a obra de salvação do pecado realizada por


Cristo. Por fim, a antiga lei é completada pelo restante do Antigo Testamento,
14

que consiste nos Escritos e nos Profetas.


O segundo estágio da lei revelada é chamado de nova lei, ou lei do evangelho.
Trata-se da “perfeição aqui na terra da lei divina, natural e revelada” e, como15

obra de Cristo, se exprime especialmente em seu Sermão da Montanha.


Profetizada no Antigo Testamento (e.g., Jr 31.31-34; citado em Hb 8.8-12), essa
lei da nova aliança “se torna a lei interior de caridade” pela obra do Espírito
Santo; de fato, é “a graça do Espírito Santo dada ao fiel”. Além disso, “ela usa
16 17

o Sermão da Montanha para nos ensinar o que se deve fazer e usa os


sacramentos para nos dar graça para fazê-lo”. Conforme disse Jesus, seu sermão
18

não abole ou desvaloriza as prescrições morais da antiga lei. Pelo contrário, a


nova lei cumpre os mandamentos da antiga lei (Mt 5.17-19); de modo concreto,
ela “tira deles as virtualidades ocultas, fazendo surgir novas exigências”, as 19

quais não constituem preceitos externos adicionais, e sim preceitos que


reformam o coração humano para a realização do bem e da formação da fé,
esperança e amor. Além disso, a nova lei “pratica os atos da religião: a esmola, a
oração, o jejum, ordenando-os para ‘o Pai que vê no segredo’, ao contrário do
desejo ‘de ser visto pelos homens’ [Mt 6.1-6,16-18]. A sua oração é o Pai-Nosso
[Mt 6.9-13; Lc 11.2-4]”. Além disso, essa lei exige uma escolha entre “os dois
20

caminhos” — entrada pela porta estreita, e não pela porta larga; construção da
casa sobre a rocha, e não sobre a areia (Mt 7.13,14,21-27) — e requer obediência
a suas palavras conforme resumido pela Regra de Ouro (Mt 7.12; cf. Lc 6.31).
Além disso, a lei inteira está resumida no novo mandamento de Jesus: “amar uns
aos outros como ele nos amou” (Jo 15.12; 13.34).
Além do Sermão da Montanha, acrescenta-se “a catequese moral dos ensinos
apostólicos, tais como Romanos 12—15, 1Coríntios 12 e 13, Colossenses 3 e 4,
Efésios 4 e 5 etc”. Esses elementos a mais da nova lei se detêm sobretudo “nas
21

virtudes que fluem da fé em Cristo e são animados pela caridade, os dons


principais do Espírito Santo”. Eles formam também, como era de esperar, uma
22

consciência do fiel à luz da sua relação com Cristo e com a igreja. Fazem parte
também da nova lei os conselhos evangélicos: castidade, pobreza e obediência.
Esses conselhos se referem aos preceitos da lei no tocante à caridade: “Os
preceitos destinam-se a afastar tudo o que é incompatível com a caridade. Os
conselhos têm por fim afastar o que, mesmo sem lhe ser contrário, pode
constituir impedimento à expansão da caridade”. Os três conselhos chamam a
23

atenção de modo concreto para “caminhos mais diretos, meios mais adequados”
de amar a Deus e ao próximo, e cabe ao fiel obedecer aos conselhos apropriados
à sua vocação, posição na vida, oportunidade, força etc. 24

Por fim, essa nova lei atende por nomes diversos. É a lei do amor, porque a
obediência a ela não vem do temor, mas do amor do Espírito Santo que é
infundido no fiel. É chamada de lei da graça, porque confere graça para
obedecer, pela fé e pelos sacramentos. É conhecida como lei da liberdade,
porque liberta o fiel das “observâncias rituais e jurídicas da antiga lei”,
inclinando-o a agir de forma espontânea pelo amor, e, no lugar de uma relação
de senhor e servo, promove uma relação entre amigos com Cristo ao elevar o fiel
à condição de filho de Deus, e até mesmo coerdeiro com Cristo. 25

Por último, o quarto tipo de lei se refere à lei civil e à eclesiástica, contudo
essa categoria jurídica não é mais extensamente desenvolvida.
Graça e justificação; mérito (seção 1, capítulo 3, artigo 2)
Além da ajuda conferida pela lei de Deus, a obra da salvação que Deus
providencia para o ser humano pecador requer também graça e justificação.
Antes de definir esses dois termos, o Catechism afirma que a graça do Espírito
Santo opera com poder para justificar as pessoas. Essa obra divina está associada
com a purificação de pecados e a comunicação da “‘justiça de Deus pela fé em
Jesus Cristo’ [Rm 3.22] e pelo batismo”, conforme exposto pelo apóstolo Paulo
26

em Romanos 6.1-11. Consequentemente, o fiel participa da morte de Cristo —


ele morre para o pecado — e de sua ressurreição — ele nasce novamente para
uma vida nova. De fato, o fiel se torna membro do corpo de Cristo (1Co 12),
ramo enxertado na vinha (Jo 15.1-4) e participante da natureza divina (2Pe
1.3,4). A conversão precede a justificação: “A primeira obra da graça do Espírito
Santo é a conversão, que produz a justificação”; a base bíblica para isso é a
27

proclamação de Jesus: “Arrependei-vos, porque o reino do céu está próximo”


(Mt 4.17). “Movido pela graça, o homem se volta para Deus e se afasta do
pecado, aceitando desse modo o perdão e a justiça que vêm do alto”. Com essa 28

apresentação como contexto, o Catechism repete a definição de justificação do


Concílio de Trento: “A justificação não é apenas a remissão de pecados, mas
também a santificação e a renovação do homem interior”. O Catechism
29

acrescenta: “a justificação é ao mesmo tempo a aceitação da justiça de Deus


pela fé em Jesus Cristo”, em que se define justiça como “retidão do amor
divino”. 30

O fruto da justificação “afasta o homem do pecado [...] e purifica seu coração


do pecado [...] reconcilia o homem com Deus, liberta da escravidão ao pecado e
cura”. Além disso, com a justificação, são difundidas no nosso coração a fé, a
31

esperança e a caridade, “e é-nos concedida a obediência à vontade divina”. 32

Além disso, a justificação “conforma-nos com a justiça de Deus, que nos torna
interiormente justos pelo poder da sua misericórdia”. O fundamento da
33

justificação é o sacrifício expiatório de Jesus Cristo; pelos seus méritos ele


justifica o fiel. A apropriação da justificação se dá pela fé e pelo batismo: “A
justificação é conferida no batismo, o sacramento da fé”. O propósito da
34

justificação é duplo: a glória de Deus e o dom da vida eterna (Rm 3.21-26).


O Catechism explica que a justificação cria uma relação de cooperação entre a
graça e a liberdade humana. Em relação ao elemento humano nessa cooperação,
“a justificação estabelece a colaboração entre a graça de Deus e a liberdade do
homem. Do lado do homem, exprime-se no assentimento da fé à Palavra de
Deus que convida à conversão, e na cooperação da caridade com o impulso do
Espírito Santo que se lhe adianta e o guarda”. Esse último, que inicia e sustenta
35

a obra da graça do Espírito, é o elemento divino da cooperação. Citando o


Concílio de Trento, o Catechism afirma: “Quando Deus move o coração do
homem pela iluminação do Espírito Santo, o homem não fica sem fazer nada ao
receber essa inspiração, que, aliás, pode rejeitar; no entanto, também não pode,
sem a graça de Deus, caminhar, por sua livre vontade, para a justiça na sua
presença”. É evidente que essa obra de justificação é maravilhosa, “obra mais
36

excelente do amor de Deus”. Ao recorrer uma vez mais ao apóstolo Paulo (Rm
37

6.19,22), o Catechism novamente associa justificação, regeneração e


santificação: “O Espírito Santo é o mestre interior. Fazendo nascer o ‘homem
interior’, a justificação implica a santificação de todo o ser”. 38

Depois de definir e discutir a obra da justificação, o Catechism oferece em


seguida sua apresentação da graça, que está intimamente associada à
justificação; de fato, “a justificação provém da graça de Deus”. A graça é
39

definida como “favor, o socorro gratuito que Deus nos dá, a fim de
respondermos ao seu chamamento para nos tornarmos filhos de Deus, filhos
adotivos participantes da natureza divina e da vida eterna”. O fruto da graça é a
40

participação na vida do Deus trino e na vocação sobrenatural para a vida eterna.


Tal graça se inicia com o sacramento do batismo, porém a graça em si “é dom
gratuito que Deus nos faz da sua vida, infundida pelo Espírito Santo na nossa
alma para curá-la do pecado e a santificar”. 41

A graça vem de maneiras diversas: a graça santificadora (também chamada


de graça divinizadora) é recebida pelo batismo; trata-se de uma “graça habitual,
de uma disposição estável e sobrenatural que aperfeiçoa a alma e a capacita a
viver com Deus, a agir por seu amor”. Tal graça habitual, “a disposição
42

permanente de viver e agir em sintonia com o chamamento de Deus”, deve ser 43

diferenciada das graças reais, atos específicos da intervenção divina no início ou


durante o desenvolvimento da sua obra de santificação. A graça preparatória
(com frequência chamada, na teologia evangélica, de graça preveniente) vai
adiante do ser humano pecador e o prepara para o recebimento da graça divina. 44

Além disso, essa iniciativa divina “exige a livre resposta do homem” para que
possa conhecer e amar a Deus; “só livremente [uma pessoa] entra na comunhão
de amor”. Graças sacramentais são aquelas cujos “dons são próprios aos
45

diferentes sacramentos”; por exemplo, a graça do sacramento da penitência


46

absolve o penitente de seu pecado mortal confessado. As graças especiais


(carismas) são dons como milagres e o falar em línguas “voltados para a graça
santificadora e visam ao bem comum da Igreja”. A graça da perseverança final
47

é a obra divina por meio da qual Deus sustenta e reveste de poder o fiel até o
fim, ocasião em que o recompensa “pelas boas obras realizadas com sua graça
em comunhão com Jesus”. 48

O Catechism conclui seu tratamento da graça assinalando dois pontos


importantes: por seu caráter sobrenatural, “a graça escapa da nossa experiência e
não pode ser conhecida, senão pela fé”. Portanto, o fiel não deve confiar em
49
seus sentimentos e em suas boas obras para ganhar a certeza da salvação. Ao
mesmo tempo, conforme a afirmação de Cristo — “Pelos frutos os conhecereis”
(Mt 7.20) —, “a consideração dos benefícios de Deus na nossa vida e na vida
dos santos oferece-nos uma garantia de que a graça de Deus opera em nós e nos
incita a uma fé cada vez maior e a uma atitude de pobreza confiante”. 50

Depois de lidar com a relação entre justificação, graça e liberdade humana, o


Catechism conclui essa seção com uma discussão sobre o mérito. Começa com
uma afirmação do Missal Romano: “Vós [Deus] sois glorificado na assembleia
dos vossos santos, pois que, ao coroar seus méritos, coroais vossos próprios
dons”. A definição de mérito “designa, em geral, a retribuição devida por uma
51

comunidade ou sociedade à ação de um dos seus membros, experimentada como


um benefício ou um malefício, digna de recompensa ou de castigo”. Por meio 52

da graça santificante, o fiel é capacitado a ganhar méritos e, com isso, a salvação


eterna. No âmago da ideia de mérito há o fato de que “Deus escolheu livremente
associar o homem à obra da sua graça”. A graça divina dá o primeiro passo, e a
53

livre resposta do homem vem a seguir; portanto, há uma cooperação divinamente


planejada entre Deus e o ser humano, “de modo que os méritos das obras devem
ser atribuídos à graça de Deus, primeiro, e depois ao fiel”. Tal mérito não diz
54

respeito de modo algum ao início da salvação, porque essa graça pertence tão
somente à iniciativa divina: “Ninguém pode merecer a graça primeira, que está
na origem da conversão, do perdão e da justificação”. Contudo, o mérito entra
55

em cena quando o fiel, sob a moção do Espírito Santo e do amor, alcança para si
e para outros, por merecimento, “as graças úteis para a santificação e para o
aumento da graça e da caridade, bem como para a obtenção da vida eterna”. 56

Há dois tipos de mérito: méritos de condigno s são méritos reais, ou méritos


de valor, realizados pelo fiel mediante a graça divina. Deus está moralmente
obrigado a recompensar o fiel que é justo com méritos de condignos. Méritos de
côngruos, ou méritos de aptidão, não são, em rigor, méritos; antes, trata-se de
obras humanas reconhecidas como méritos porque, ao praticá-las, o fiel faz o
que está em si fazer. Consideradas em si e por si mesmas, as boas obras não
alcançam nenhum mérito real — mérito de condigno — diante de Deus, porque
o fiel que pratica boas obras se acha em estado de pecado e recebeu tudo —
especialmente graça — de Deus, antes de mais nada. Contudo, enquanto o fiel
fizer o que está dentro de sua capacidade fazer, conforme Deus planejou usar sua
livre vontade para que fizesse o bem, ele será recompensado com mérito de
côngruo. Quando Deus vê as boas obras do fiel que, em outras circunstâncias,
seriam dignas de mérito, ele credita essas obras em sua conta como tais.
A igreja, mãe e educadora (seção 1, capítulo 3, artigo 3)
A obra divina de salvação realizada por meio da lei que guia o fiel, e pela graça
divina que o sustenta, está sempre situada no contexto da igreja, que é a um só
tempo mãe e educadora do fiel. De modo concreto, a igreja dá a seus filhos e
alunos a Palavra de Deus (especialmente a lei de Cristo e os Dez Mandamentos),
a graça dos sacramentos (especialmente o sacrifício da eucaristia), os exemplos
notáveis de santidade de Maria e dos santos, a verdade salvadora e os princípios
morais (o “depósito” do ensino moral cristão) por meio dos quais devem viver a
vida.
Dentro da igreja é especialmente o Magistério o instrutor autêntico da fé em
quem se deve acreditar e a quem se deve obedecer. Esse papel do Magistério
resulta do carisma da infalibilidade, o dom de ensinar sem erro. “Essa
infalibilidade se estende até onde se estende o depósito da revelação divina” —
do qual fazem parte, entre outros, a Escritura em sua forma escrita e a Tradição
da igreja —, mas vai além desse depósito, abrangendo também outras categorias
de ensinos: em primeiro lugar, estende-se “também a todos os elementos de
doutrina, mesmo moral, sem os quais as verdades salvíficas da fé não podem ser
guardadas, expostas e observadas”. Em segundo lugar, estende-se “a preceitos
57

específicos da lei natural, porque sua observância, exigida pelo Criador, é


necessária à salvação”. A igreja, por meio de seu Magistério, é encarregada
58

dessa lei de Deus e deve ensiná-la aos fiéis, que têm tanto o direito de ser
instruídos nela quanto o dever de obedecer-lhe. Embora a consciência do fiel
deva ser livre e não possa ser coagida, ela não é livre para seguir “considerações
individualistas em seus juízos morais dos atos da pessoa” e “não deve ser posta
em oposição à lei moral ou ao Magistério da Igreja”. Um católico, por exemplo,
59

não pode adotar uma posição favorável ao aborto; na verdade, até mesmo sua
afirmação de que está seguindo sua consciência ao defender o aborto mostra uma
consciência malformada e deve ser rejeitada.
Além de todos esses ensinamentos, a igreja oferece também seus preceitos aos
fiéis. Essas instruções “são situadas no contexto de uma vida moral vinculada à
vida litúrgica e por ela nutrida”. Há cinco preceitos, conforme se seguem: (1)
60

“ouvir missa inteira aos domingos e nos dias santos de guarda”; (2) “confessar
os pecados pelo menos uma vez por ano”; (3) “comungar ao menos pela Páscoa
da Ressurreição”; (4) “guardar os dias determinados pela Igreja”; (5) “guardar os
dias de jejum e abstinência conforme prescritos”. Há outro preceito segundo o
qual é dever do fiel contribuir com o sustento financeiro da igreja. 61

Se o fiel for obediente, legitimará com isso a mensagem de salvação,


contribuirá com o progresso da missão da igreja no mundo, promoverá sua
edificação e apressará a vinda do reino de Deus.
Avaliação evangélica
Na discussão anterior sobre a vida em Cristo, o Catechism citou Agostinho
endossando suas palavras: “Deus, que nos criou sem nós, não quis salvar-nos
sem nós”. Esse esforço sinergético de cooperação humana e divina ganha
62

destaque na discussão da doutrina da salvação pelo Catechism, e por esse motivo


a teologia evangélica tem críticas contundentes à teologia católica nos tópicos
que se seguem.
Em primeiro lugar, “monergismo” é um termo usado em discussões sobre a
63

salvação para se referir a uma fonte única que opera a redenção; isto é, Deus é o
único agente que opera o resgate do ser humano decaído. Já o termo
“sinergismo” se refere a duas (ou mais) fontes que operam juntas na salvação;
64

isto é, Deus e o ser humano caído, juntos, operam o resgate deste último. A
teologia evangélica, seguindo os princípios fundamentais da Reforma
protestante, subscreve a salvação monergista, ao passo que a teologia católica
defende a salvação sinergista. Essa comparação e a crítica implícita ao
sinergismo não menosprezam a insistência da teologia católica de que a salvação
é obra da graça de Deus, tampouco discordam dela; o Catechism está repleto de
discussões sobre a graça divina como fundamento da salvação. Pelo contrário, a
crítica que se faz diz respeito à aplicação da salvação e à ideia de que Deus
planejou a salvação para que nela fosse incluída a participação do fiel, seu
revestimento de poder, para que merecesse a vida eterna. No âmago de tal
sinergismo se nota a presença da interdependência natureza-graça: a natureza —
nesse caso, o ser humano caído — tem uma capacidade para a graça, que opera
na natureza a fim de elevá-la e aperfeiçoá-la; ocorre então uma participação
colaborativa. A crítica a tal axioma já foi feita (cap. 1). Consequentemente, ao
iniciarmos aqui a crítica evangélica à perspectiva católica da salvação, é
importante frisar que os dois lados têm visões antagônicas a respeito desse
assunto.
Lei
Antes, porém, de nos aprofundarmos na discussão do monergismo e do
sinergismo, começaremos esta avaliação com o ponto de partida da teologia
católica, que é a apresentação da lei moral como meio ordenado por Deus pelo
qual ele proporciona auxílio para a redenção do ser humano caído. Sem entrar
nos detalhes dos quatro tipos de lei que constituem a lei moral, é o conceito de
lei como auxílio divinamente concedido para a salvação que é objeto de
contestação pela teologia evangélica. Sabendo que a teologia evangélica
compreende um amplo espectro de perspectivas acerca da lei, o resumo a seguir
pode ser considerado uma versão bastante típica (todos os pontos seguintes
dizem respeito, especialmente, à antiga lei da aliança, ou Lei de Moisés, que a
teologia católica também chama de antiga lei). 65

Oriunda de Deus, a lei é santa, justa e boa (Rm 7.12). Ela revela quem Deus é,
articula aquilo de que seu povo tem necessidade para ser justo diante dele e
promete bênçãos para quem obedece e ameaça com maldições os desobedientes.
De modo concreto, à medida que estabelece as exigências divinas, ela demanda
perfeição, conforme disse Moisés insistentemente ao povo: “Ouve e guarda
todas estas palavras que te ordeno, para que vivas bem para sempre, tu e teus
filhos depois de ti, por fazer o que é bom e correto aos olhos do S , teu Deus” ENHOR

(Dt 12.28, grifo do autor). Essa exigência de perfeição está em sintonia com a
santidade perfeita do Deus que deu a lei (“Sede santos, porque eu sou santo”; Lv
11.44; 1Pe 1.16) e se reflete em toda a extensão da lei, que regulava toda a vida
do povo de Deus. É importante frisar que a lei “exige obediência, mas falta a ela
o poder para produzir essa obediência, embora jamais fosse seu propósito ser a
fonte de tal obediência”; antes, “pela lei vem o conhecimento do pecado” (Rm
66

3.20). Além disso, “a lei veio para que a transgressão se ressaltasse” (5.20). O
impacto concreto da lei foi tornar o povo de Israel pior do que era; por exemplo,
imediatamente depois de receber os Dez Mandamentos, ele forjou o bezerro de
ouro e mergulhou numa horrenda idolatria (Êx 32). Como a lei mostrou o que
era de fato o pecado — portanto, ninguém pode fingir ignorância —, a lei traz
consigo a ira divina (Rm 4.15) e a morte (7.24), o exato oposto da bênção e da
vida. Consequentemente, a lei — e as obras a ela associadas — não pode
promover a justificação, conforme assinala Paulo:
Porque ninguém será justificado diante dele pelas obras da lei; pois pela lei vem o pleno
conhecimento do pecado. Mas agora a justiça de Deus se manifestou, sem a lei, atestada pela Lei e
pelos Profetas; isto é, a justiça de Deus por meio da fé em Jesus Cristo para todos os que creem; pois
não há distinção (Rm 3.20-22).

Sabemos, contudo, que o homem não é justificado pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo.
Nós também temos crido em Cristo Jesus, para sermos justificados pela fé em Cristo, e não pelas
obras da lei, pois ninguém será justificado pelas obras da lei (Gl 2.16).

Consequentemente, “Paulo não condena ninguém por ter em alta conta a lei; ele
condena as pessoas por tentarem usar a lei para alicerçar sua justiça própria”. 67

A discussão de Paulo sobre a lei da antiga aliança e sua incapacidade de


produzir a justificação é parte de uma história mais ampla que o apóstolo conta.
Em primeiro lugar, “a lei distinguia Israel, separando-o de todas as nações na
terra, ao definir sua identidade e chamar a atenção para a grandeza do seu
Deus”. Em outras palavras, a Lei de Moisés não era uma lei genérica escrita
68

para a raça humana, e sim uma lei direcionada especificamente ao povo de Israel
(e.g., Dt 4.8). Em segundo lugar, “a comunicação da lei é um ato de graça
conferido a Israel porque se acha inserido no contexto de redenção do Egito e
funciona como uma resposta da parte de Israel à sua relação de aliança com
Deus”. Em outros termos, a lei da antiga aliança não criou uma relação entre
69

Deus e seu povo; essa aliança já havia sido firmada com Abraão e as promessas
de Deus feitas a ele (e.g., Gn 15). “A lei, portanto, não foi dada como uma forma
de encontrar Deus; ela foi dada depois que Deus proveu um meio para que Israel
saísse da escravidão do Egito e se tornasse seu povo.” 70

Embora direcionada rigorosamente ao povo de Israel, a Lei de Moisés — mais


precisamente a incapacidade do povo de obedecer a ela — repercutiu no mundo
de modo geral: “E então? Somos [nós, judeus] superiores a eles? De modo
nenhum, pois já demonstramos que tanto judeus como gregos estão todos
debaixo do pecado; como está escrito: ‘Não há justo, nem um sequer. Não há
quem entenda; não há quem busque a Deus. Todos se desviaram; juntos se
tornaram inúteis. Não há quem faça o bem, nem um sequer’” (Rm 3.9-12). Paulo
argumenta do específico para o geral e diz que a “a lei é a principal prova que
atesta, para além de qualquer dúvida, que o conflito de Deus com [toda] a
humanidade é justo [...]. Se aqueles que vivem debaixo da lei se mostram
incapazes e relutantes em guardar a lei, que esperança haverá para os que se
acham fora dela?”. Em nenhuma circunstância poderá o ser humano, seja ele
71

quem for, ser justificado porque guarda a lei, quer seja a Lei de Moisés, quer
outro código qualquer.
Portanto, se é impossível firmar a justiça com base na lei, sobre que base
poderá ela ser firmada? A Escritura aponta para Jesus Cristo, o Justo, e para a fé
nele, fundamento e meio de apropriação da justiça divina. Em sua forma
seminal, esse direcionamento começa com Abraão, que “creu no S ; e o S ENHOR ENHOR

atribuiu-lhe isso como justiça” (Gn 15.6). Ao comentar a fé de Abraão, Paulo


explica:
Porque não foi pela lei que Abraão, ou sua descendência, recebeu a promessa de que ele havia de ser
herdeiro do mundo; ao contrário, foi pela justiça da fé. Pois, se os que vivem pela lei são herdeiros,
esvazia-se a fé, e anula-se a promessa. Porque a lei produz a ira; mas onde não há lei também não há
transgressão. Por essa razão, a promessa procede da fé, para que seja segundo a graça, a fim de que a
promessa seja confirmada a toda a descendência, não somente aos que são da lei, mas também aos
que são da fé que Abraão teve. Ele é pai de todos nós (Rm 4.13-16, grifo do autor).

Muito antes de ser dada a lei, Abraão creu em Deus e em sua promessa de uma
prole incontável no futuro. Se a justiça pudesse provir da lei — o que não é
possível, porque a lei suscita a ira —, disso se segue que os beneficiários de uma
relação com Deus estariam limitados ao povo de Israel, que recebeu a lei.
Contudo, a justiça não vem desse modo; pelo contrário, como ela repousa sobre
o fundamento da graça divina, a justiça se dá a todos os que, como Abraão, têm
fé.
Essa provisão de graça foi profetizada no Antigo Testamento (Rm 3.21).
Pouco antes de encerrada a redação do Pentateuco, Moisés previu a falha abjeta
de Israel incapaz de obedecer à Lei. Ele ofereceu então a seguinte esperança: “O
S , teu Deus, circuncidará o teu coração, e o coração da tua descendência, a
ENHOR

fim de que ames o S , teu Deus, de todo o teu coração e com toda a alma, para
ENHOR

que vivas” (Dt 30.6). Com essa profecia, “Moisés evidencia o fato de que não se
trata apenas de um problema da lei, mas de um problema do coração. A lei
apresenta os padrões de justiça de Deus e mostra o que é preciso para se chegar à
justiça, mas o problema é que a lei não proporciona aquilo que é necessário para
guardá-la — um novo coração”. Essa esperança de transformação repercutiu na
72

profecia de Jeremias sobre uma nova aliança em que a lei seria escrita no
coração das pessoas e Deus perdoaria completamente seus pecados (Jr 31.31-
34), e na profecia de Ezequiel segundo a qual Deus purificaria seus pecados,
daria a eles um novo coração e colocaria neles seu Espírito (Ez 36.25-27).
A esperança do Antigo Testamento apontava para Jesus Cristo e sua obra de
salvação como fundamento da justiça, que seria apropriada pela fé. Depois da
sua profecia sobre a circuncisão do coração (Dt 30.6), Moisés volta à
apresentação da lei dizendo que “não é difícil demais, nem está fora do teu
alcance [...]. A palavra está muito perto de ti, na tua boca e no teu coração, para
que a cumpras” (Dt 30.11,14). De acordo com Paulo, a palavra de Moisés é o
evangelho, “a palavra de fé” que é proclamada e que proporciona não “a justiça
proveniente da lei”, mas “a justiça que vem da fé [...]. Porque, se com a tua boca
confessares Jesus como Senhor, e em teu coração creres que Deus o ressuscitou
dentre os mortos, serás salvo” (Rm 10.5-9). Portanto, pode-se dizer que a lei
apontava para Jesus Cristo, e para a fé nele, para obtenção da justiça perante
Deus.
A maior parte do povo judeu, tragicamente, errou o alvo, e Paulo lamenta a
sorte deles: “Pois, não reconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer
a sua própria, não se sujeitaram à justiça de Deus. Pois Cristo é o fim da lei para
a justificação de todo aquele que crê” (Rm 10.3,4). Acabou-se, portanto, a época
da lei. Como a antiga aliança se tornou obsoleta e foi substituída por uma nova
aliança — a forma pela qual Deus agora se relaciona com seu povo, a igreja —,
assim também a lei da antiga aliança chegou naturalmente ao seu fim. “A lei não
é da fé”, explica Paulo; é, antes, uma maldição sobre todo aquele que não guarda
a lei em todas as suas partes. Contudo, prossegue Paulo: “Cristo nos resgatou da
maldição da lei, tornando-se maldição em nosso favor, pois está escrito: ‘Maldito
todo aquele que for pendurado em um madeiro’” (Gl 3.13). Com sua morte na
cruz, Jesus resgata as pessoas das exigências da lei e do desespero da antiga e
fracassada aliança. A era anterior chegou ao fim; Cristo ocupa seu lugar: “Mas,
antes que viesse a fé, éramos mantidos debaixo da lei, nela confinados para a fé
que haveria de ser revelada. Desse modo, a lei se tornou nosso guia para nos
conduzir a Cristo, a fim de que pela fé fôssemos justificados. Mas, tendo
chegado a fé, já não estamos sujeitos a esse guia. Pois todos sois filhos de Deus
pela fé em Cristo Jesus” (v. 23-26). A fé em Cristo e a justiça de Deus que é
apropriada pela fé, sempre foi o objetivo da lei. Agora que veio a fé em Cristo, a
lei que era como um guardião não tem mais papel algum a desempenhar. A fé é
essencial à igreja, o que ecoa alegremente a afirmação de Paulo: “Pois, pela lei,
eu morri para a lei, a fim de viver para Deus. Já estou crucificado com Cristo.
Portanto, não sou mais eu quem vive, mas é Cristo quem vive em mim. E essa
vida que vivo agora no corpo, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se
entregou por mim” (2.19,20). É a vida da fé, e não a vida da lei, que a igreja vive
agora.
Com esse arcabouço de uma teologia evangélica da lei, podemos expor aqui
os principais pontos de discórdia em relação à teologia católica e sua
apresentação da salvação. Em primeiro lugar, a ideia de lei como ajuda divina
que conduz à bem-aventurança prometida está equivocada. Nada na discussão
acima nem sequer se aproxima dessa ideia. Isso se aplica, primeiramente, à lei
natural, cujo desenvolvimento pela teologia católica vai muito além da menção
limitada que a Escritura faz a seu respeito. Ainda que, numa concessão nossa,
aceitemos, por amor à argumentação, essa ideia elevada de lei natural, é limitada
demais a proposição da teologia católica de que a pecaminosidade do homem
cria um problema para a percepção clara e imediata dos princípios da lei natural
— com a consequência de que a humanidade pecadora necessita da graça e da
revelação para vencer sua miopia. O problema da humanidade pecadora não é
apenas de ordem epistemológica. Trata-se, antes, de um drama moral — e que
resulta na avaliação de Paulo de que “todos os que sem lei pecaram, sem lei
também perecerão” (Rm 2.12). Os que não têm a Lei de Moisés ainda têm a lei
“escrita em seu coração” — a lei natural, ou “consciência” (v. 14,15) —, mas são
incapazes de guardá-la e, portanto, perecerão. Consequentemente, a lei natural
não proporciona um fundamento para a lei revelada e para a graça; antes, a
desobediência pecaminosa da humanidade aos preceitos da lei natural cria a
necessidade da revelação divina e da graça.
Em segundo lugar, é errônea a ideia da antiga lei como ajuda divina que leva à
bem-aventurança prometida de toda a humanidade. Nunca foi intenção da lei
atender um público geral; pelo contrário, ela foi dada como presente da graça
divina às pessoas a quem Deus havia tirado da escravidão no Egito, e seu
propósito era distinguir Israel do restante das nações (Dt 4.8). Além disso, sua
função de tutora não era apenas a de mostrar “o que deveria ser feito”, como se 73

esse fosse um papel positivo que ela tivesse de desempenhar. Pelo contrário,
como guardiã, a antiga lei, que operava “antes da vinda da fé”, mantinha as
pessoas cativas, “nela confinadas para a fé que haveria de ser revelada” em Jesus
Cristo e por meio dele, que satisfaria seu povo por meio da fé (Gl 3.23-26). Com
a fé em seu lugar, o guardião fica desalojado; ele deixa de ter função para a
igreja. Na verdade, a teologia católica destaca alguns pontos muito bons em
relação a essa lei: ela é santa e boa em si e por si mesma, ainda que imperfeita;
ela não proporciona em si mesma os recursos necessários para seu cumprimento.
Não retira o pecado humano; antes, ela o expõe. Contudo, quando a teologia
católica faz da lei “o primeiro passo em direção ao reino”, uma preparação para a
conversão e a fé, fica faltando a base bíblica. São os seguintes os principais
74

pontos negligenciados pela teologia católica: a lei exigia perfeição, em vez de


fazer meramente o que estava na capacidade de fazer da pessoa; ela piorava a
situação do povo de Israel, em vez de melhorá-la; por causa do pecado humano,
a lei resultava em ira e morte, exatamente o oposto da bênção e da vida; a lei, e
obras associadas a ela, não pode tornar ninguém justo perante Deus; e a
justificação está alicerçada na graça de Deus e é apropriada somente pela fé sem
qualquer mistura de guarda da lei ou boas obras feitas em obediência à lei.
Trataremos novamente desses pontos quando discutirmos mais adiante a
justificação.
Em terceiro lugar, a ideia de uma nova lei, a lei do evangelho, como ajuda
divina que conduz à bem-aventurança prometida também é incorreta. Tomando
por base a instituição da antiga lei como dom gratuito de Deus ao seu povo que
já havia sido liberto da escravidão e já se relacionava com Deus por meio da
antiga aliança, para a teologia evangélica a instituição de uma nova lei, a lei de
Cristo (Gl 6.2), como dom gratuito para benefício dos cristãos que já são
justificados não pela lei (de qualquer tipo), mas pela fé em Cristo, e que já se
acham na relação da nova aliança com Deus. Portanto, a obediência à nova lei
como requisito de acesso ao povo de Deus da nova aliança, a igreja, deve ser
rejeitada; antes, a nova lei se torna o estilo de vida dos discípulos cristãos que
foram salvos pela graça de Deus por meio da fé.
Ainda soa nos ouvidos da teologia evangélica a convocação de Martinho
Lutero para que se distinga entre lei e evangelho. A distinção que ele fazia não
75

era entre o Antigo Testamento (lei) e o Novo Testamento (evangelho). Pelo


contrário, lei é qualquer coisa na Escritura que expressa as exigências de Deus
enfatizando ao mesmo tempo a incapacidade dos seres humanos pecaminosos de
viver de acordo com esses padrões (e.g., o mandamento de Jesus para que
fôssemos perfeitos como Deus é perfeito; Mt 5.48). Contrariamente a isso,
evangelho é qualquer coisa na Escritura que expressa as promessas de Deus ao
enfatizar que Jesus satisfez todas as suas exigências. O evangelho, portanto, traz
a graça para resgate dos pecadores despertos pela lei para sua necessidade. A
teologia evangélica, seguindo a trajetória de Lutero, discorda profundamente da
perspectiva da teologia católica no que diz respeito à nova lei (e, a propósito,
também à antiga lei). Não existe nenhuma lei do evangelho, uma vez que são
coisas mutuamente excludentes. A lei (de qualquer tipo) prepara o caminho ao
expor e suscitar o pecado, levando o pecador ao desespero, e desse pesadelo
infernal a única esperança de escape é o evangelho de Cristo pelo qual a graça
divina, que se acolhe pela fé, se torna conhecida e é recebida.
Ainda que não se oponha à atenção que a teologia católica dá ao Sermão da
Montanha, a teologia evangélica prefere abordar o assunto do conteúdo da lei de
Cristo de outra maneira. Em primeiro lugar, ela se preocuparia em analisar de
que modo Jesus e os apóstolos lidam com as leis do Antigo Testamento.
Consequentemente, fariam parte da lei de Cristo aquelas leis do Antigo
Testamento que entraram intactas na nova aliança (e.g., os Dez Mandamentos;
Rm 13.9; Tg 2.11) e leis do Antigo Testamento que foram modificadas para
76

observância dos novos membros da aliança (e.g., os mandamentos “cumpridos”


referentes ao homicídio, adultério etc.; Mt 5.17-48). A lei de Cristo não incluiria
77

nenhuma das leis que ele e os apóstolos ab-rogaram (e.g., as leis sacrificais e as
leis alimentares; Mc 7.19; 1Tm 4.3,4; Hb 8—10). Certamente, ela incluiria
também as leis reveladas no Novo Testamento, das quais fazem parte o Sermão
da Montanha e os ensinos apostólicos. Como os conselhos evangélicos de
castidade e de pobreza contradizem a Escritura (conforme discutimos
anteriormente), esses não estão incluídos na nova lei. Essa estratégia baseada em
princípios para determinar o conteúdo da nova lei, embora tenha seus problemas,
consegue estabelecer um equilíbrio entre a continuidade absoluta entre o Antigo
e o Novo Testamentos e a descontinuidade absoluta entre ambos.
A teologia evangélica faz uma correção final, ou melhor, requer uma ênfase
maior no que diz respeito à relação do Espírito Santo com a lei. A teologia
católica afirma que a nova lei se torna a lei interna do amor por obra do Espírito,
que também comunica fé e amor, dos quais fluem as virtudes exigidas pela nova
lei. A teologia evangélica, porém, quer ver mais enfatizado o papel do Espírito
em relação à lei, tanto a antiga quanto a nova. O apóstolo Paulo destaca esse
ponto: “Portanto, agora já não há condenação alguma para os que estão em
Cristo Jesus. Porque a lei do Espírito da vida, em Cristo Jesus, te livrou da lei do
pecado e da morte. Pois o que para a lei era impossível, uma vez que se achava
fraca por causa da carne, Deus o fez na carne, condenando o pecado e enviando
o seu próprio Filho em semelhança da carne do pecado e como sacrifício pelo
pecado, para que a justa exigência da lei se cumprisse em nós, que não andamos
segundo a carne, mas segundo o Espírito” (Rm 8.1-4). Paulo expõe o fracasso da
lei — a Lei de Moisés dada ao povo debilitado por sua natureza pecadora —
para libertá-lo da morte e do pecado. Tal salvação, embora impossível para a lei,
foi o que Deus realizou pela morte do seu Filho, o que nos leva ao veredito de
não condenação para todos aqueles unidos a Cristo. Outro componente
importante daquilo que Cristo fez consiste na obediência de seus seguidores à
lei, uma realidade que é concretizada na vida no Espírito. À medida que o fiel
caminha com o Espírito, ele realiza “a justa exigência da lei”, que, de acordo
com a Escritura, se resume aos dois grandes mandamentos sobre amar a Deus e
amar ao próximo. É importante frisar que a obediência não vem da lei, nem da
78

graça conferida pela lei, mas pelo andar no Espírito.


A mesma ideia se repete em outro lugar: “Mas eu afirmo: Andai pelo Espírito
e nunca satisfareis os desejos da carne. Porque a carne luta contra o Espírito, e o
Espírito, contra a carne. Eles se opõem um ao outro, de modo que não conseguis
fazer o que quereis. Mas, se sois guiados pelo Espírito, já não estais debaixo da
lei” (Gl 5.16-18). A relação entre o ser humano pecador e a lei é uma relação de
morte, conforme explicamos acima. Quando as pessoas vivem de acordo com
sua conexão natural pecaminosa com a lei, o que se tem é tão somente acusação,
ira, culpa, escravidão e condenação; a lei se opõe ao indivíduo. Contudo, o
inverso é verdade para quem vive de acordo com o Espírito. Essa pessoa não
está sob o juízo da lei e da condenação; ela não sente seu peso; em vez disso, dá
fruto — “o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, paciência, benignidade,
bondade, fidelidade, amabilidade e domínio próprio” —, e o apóstolo chega a
uma conclusão importante: “Contra essas coisas não existe lei” (v. 22,23).
Portanto, a teologia evangélica requer que se exalte mais a necessidade de
enchimento e direção do Espírito Santo para aqueles que pertencem a Cristo, de
modo que eles, “em conformidade com sua nova natureza”, cumpram como
discípulos as exigências da lei.
Graça e justificação
Se por um lado a teologia evangélica desaprova em grande medida a insistência
com que a teologia católica faz da lei um auxílio divino para a salvação do ser
humano decaído, ela, por outro lado, critica ainda mais a discussão da graça e da
justificação promovida pelo catolicismo. Diferentemente da crítica anterior, que
se debruçou sobre a incapacidade da lei para cooperar com a redenção —
inclusive sobre sua inadequação para o que nela se buscava —, a crítica que
faremos não negará o papel — e até mesmo a necessidade — da graça e da
justificação para a salvação, mas o fará em discordância com a interpretação que
a teologia católica dá a essas duas questões. Como a doutrina da justificação pela
graça de Deus apropriada pela fé foi o princípio material, o conteúdo principal,
da Reforma, a presente seção tratará de uma das áreas que mais profundamente
separam a teologia evangélica da católica. 79

De modo geral, a teologia evangélica da justificação e da graça pode ser


resumida desta forma: no que diz respeito à definição, a justificação é um ato
80

forense, ou legal, de Deus em que ele não declara inocente o ser humano
pecador, mas justo. Ele o faz ao atribuir, ou creditar, a justiça perfeita de Jesus
Cristo na sua conta, de tal modo que, embora não seja efetivamente justo, Deus o
vê assim por causa da justiça de Cristo. Por intermédio da sua obediência em
vida e na morte, Cristo cumpriu todas as exigências da lei, e pelo poderoso ato
divino da justificação o homem pecador é creditado com sua justiça e posição
perante Deus como aquele que “vive à altura da vontade divina em sua
plenitude”. 81

A graça é definida com frequência como favor imerecido; de fato, o


Catechism a define como “favor, ajuda livre e não merecida que Deus nos dá”. 82

Contudo, conforme diz Vickers, essa definição não é muito correta, porque
“graça em sua conexão com a salvação não é apenas favor imerecido, mas
também favor em que há desmerecimento”. O respaldo bíblico para essa
83

definição leva em conta, entre outras coisas, o argumento de Paulo segundo o


qual os que são “justificados gratuitamente pela sua graça” (Rm 3.24) não são
“[pessoas] moralmente neutras que simplesmente nada fizeram para merecer o
favor de Deus”; antes, elas fazem parte do grupo assim identificado: “todos
84

pecaram e destituídos estão da glória de Deus” (v. 23). Como confirmação,


aqueles que, segundo Paulo, “[eram] insensatos, desobedientes,
desencaminhados, [servindo] a várias paixões e prazeres, [viviam] na maldade e
na inveja, [eram] rancorosos e [odiavam] uns aos outros” foram “justificados
pela graça” (Tt 3.3,7). Aqueles que receberam a graça divina não apenas não a
mereciam, mas, por causa do seu pecado, se acham desamparados em sua pessoa
e em sua obrigação, por isso merecem o oposto do favor. Somente a justificação
pela graça pode resgatá-los.
A natureza forense da justificação pode ser prontamente deduzida da
Escritura. Em primeiro lugar, o termo é encontrado em oposição a “condenação”
(e.g., Dt 25.1; Pv 17.15; Rm 5.16,18); de fato, como seres justificados pela graça
divina, os cristãos podem estar seguros de que “agora já não há condenação
alguma para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8.1). Além disso, Paulo usa uma
linguagem legal quando apresenta um salmo de Davi em apoio à sua
argumentação de que Deus “justifica o ímpio” (Rm 4.5, grifo do autor): “Assim
também Davi fala da bem-aventurança do homem a quem Deus atribui a justiça
sem as obras, dizendo: ‘Bem-aventurados aqueles cujas iniquidades são
perdoadas, cujos pecados são cobertos. Bem-aventurado o homem a quem o
Senhor nunca atribuirá o pecado’” (Rm 4.6-8, grifo do autor). Embora essa
citação do Antigo Testamento (do Sl 32.1,2) afirme que Deus atribua, ou impute,
justiça às pessoas (um segundo aspecto da justificação que discutiremos em
breve), ela também enfatiza que Deus não atribui, ou não imputa pecado
(primeiro aspecto da justificação), isto é, ele perdoa. Deus, em Cristo, não leva
em conta os pecados das pessoas e não os coloca contra elas, o que seria uma
ideia de caráter totalmente legal.
Essa evidência bíblica da natureza legal da justificação serviu para introduzir
dois aspectos da justificação. O primeiro deles é o perdão dos pecados, que é
resultado da morte substitutiva de Cristo na cruz (Rm 3.25; 5.9) e que ganha
destaque na declaração de Deus de que pecadores “não são culpados”! Jeremias
profetizou que o perdão seria um elemento fundamental na nova aliança:
“Porque perdoarei a sua maldade e não me lembrarei mais dos seus pecados” (Jr
31.34). Paulo salienta esse aspecto em sua descrição da obra de Deus em Cristo
“reconciliando consigo mesmo o mundo, não levando em conta as transgressões
dos homens [...]. Daquele que não tinha pecado Deus fez um sacrifício pelo
pecado em nosso favor, para que nele fôssemos feitos justiça de Deus” (2Co
5.19-21). Ao transformar em pecado o Filho de Deus sem pecado, e pela morte
de Cristo pelo pecado, Deus agora não confronta o pecador com seu pecado.
O segundo aspecto é a imputação da justiça de Jesus Cristo. Nossa base
bíblica começa com a afirmação de Paulo: “Portanto, assim como por uma só
transgressão veio o julgamento sobre todos os homens para a condenação, assim
também por um só ato de justiça veio a graça sobre todos os homens para
justificação que produz vida. Porque, assim como pela desobediência de um só
homem muitos foram feitos pecadores, assim também pela obediência de um só
muitos serão feitos justos” (Rm 5.18,19). O paralelo é claro:
De um lado do paralelo estão Adão e sua transgressão/desobediência, o que
mergulhou todos os seres humanos na condenação, já que foram feitos
pecadores. Do outro lado do paralelo estão Cristo e seu ato de justiça, que
comunicam justificação e vida para todos os que o recebem (Rm 5.17), tendo em
vista que serão justificados. Conforme explica Vickers: “Quando Paulo diz que
muitos foram ‘feitos’ pecadores e muitos ‘serão feitos’ justos, ele está falando do
ponto de vista legal. Ele não está enfatizando, pelo menos aqui, ações
pecaminosas ou justas. Ele está se referindo a uma condição, uma posição que as
pessoas ocupam diante de Deus”. O que permite a Vickers afirmar que Paulo
85

está usando uma linguagem legal aqui? “No Novo Testamento, a mesma palavra
traduzida por ‘feito’ em [Romanos] 5.19 é muito comumente usada para designar
o lugar e/ou a posição que uma coisa ou pessoa tem ou para que uma coisa ou
pessoa é designada. Mais raramente a palavra tem o sentido de tornar-se, causar
ser ou fazer, e se refere a algum estado do ser”. Um motivo fundamental para
86

interpretar “feito pecadores” ou “serão feitos justos” com o significado de


“colocado em uma posição ou designado” se encontra em Romanos 5.18, em que
Paulo afirma que “a condição legal que o indivíduo tem diante de Deus tem por
base as ações de outra pessoa. Em relação a Adão, as pessoas pecaram; em
relação a Cristo, elas realizaram tudo o que era necessário para serem
consideradas justas”. Reitero que essa explicação não significa que o termo
87

“justo” não seja usado com frequência para se referir ao “comportamento e/ou
caráter pessoal”. “Quando Paulo, porém, a coloca ao lado de feito, que se refere
88
a ser designado ou colocado em uma posição, justo então não diz respeito ao
comportamento ou ao caráter, mas à nossa posição em relação a Deus. Fomos
feitos para manter a posição daqueles cujos atos e comportamentos são justos
tomando por base a obediência de Cristo.” Consequentemente, Deus declara
89

pecadores “justos” em sentido legal; “o que é comumente reconhecido por meio


de traços de caráter e/ou ações é declarado como algo à parte de quaisquer ações
feitas por aqueles que foram feitos justos [...]. Deus julga aqueles conectados
(pela fé) a Cristo [...] como tendo realizado plenamente todo tipo de justiça
perante seus olhos”. 90

Pode-se ver a confirmação da imputação da justiça de Cristo como segundo


aspecto da justificação no caso de Abraão. Depois de se queixar de que só tinha
a Eliézer por herdeiro, Deus disse a Abraão que seu filho seria o herdeiro,
suscitando com isso a grande nação que Deus havia prometido a Abraão (Gn
12.1-3). “Então o levou para fora e disse: ‘Olha agora para o céu e conta as
estrelas, se é que consegues contá-las’; e acrescentou: ‘Assim será a tua
descendência’. E Abrão creu no S ; e o S atribuiu-lhe isso como justiça”
ENHOR ENHOR

(15.5,6). No momento exato em que Abraão estava prestes a resolver a situação


com as próprias mãos e fazer de Eliézer seu herdeiro, o patriarca preferiu confiar
que Deus cumpriria sua promessa, e Deus considera a fé de Abraão como
justiça. “A condição ou descrição comumente reservada para ações é atribuída
aqui a Abraão tendo por base a fé. A fé de Abraão lhe é atribuída como algo que
inerentemente não é, isto é, justiça [...]. Quando posta lado a lado com atribuído
e fé, a justiça aqui se refere a um juízo e a uma declaração sobre a posição de
Abraão perante Deus.” O termo técnico teológico para isso é “imputação”.
91

O que é imputado àqueles que são justificados é a justiça de Deus. Depois de


mencionar sua ilustre ascendência que o qualificava pelo renome entre seus
compatriotas judeus, Paulo colocou todas as suas realizações na coluna das
perdas, porque, conforme explicou, elas haviam produzido “uma justiça própria
que vem da lei”. Em vez desse esterco, o apóstolo desejava a justiça que
“procede da fé em Cristo, justiça que vem de Deus pela fé” (Fp 3.8,9). Martinho
Lutero se referia a isso como “justiça alheia”, isto é, não a justiça própria da
pessoa, alcançada por meio da realização humana, mas a justiça de outro, que
vem de fora pela fé e é imputada à conta da pessoa. “A justiça que vem até nós
como dom de Deus pela fé que nos une a Cristo continua a ser justiça de Cristo.
A justiça em questão não é nossa justiça, como se Deus tivesse transferido certa
quantidade de justiça para nós como se fosse uma commodity ou alguma coisa
que pode ser quantificada com base em um sistema de pontos. Temos o próprio
Cristo e todos os seus benefícios de uma vida perfeita e sua morte e ressurreição
em nosso favor.” 92
Como um dom concedido a seres humanos pecadores por Deus, sua justiça é,
e só pode ser, apropriada pela fé. O caso de Abraão, uma vez mais, estabelece a
defesa desse ponto:
Que diremos sobre Abraão, nosso pai humano? O que ele alcançou? Porque, se foi justificado pelas
obras, Abraão tem do que se gloriar, mas não diante de Deus. Que diz a Escritura? Abraão creu em
Deus, e isso lhe foi atribuído como justiça. Ora, o salário daquele que trabalha não lhe é atribuído
como favor, mas como dívida. Contudo, ao que não trabalha, mas crê naquele que justifica o ímpio,
sua fé lhe é atribuída como justiça (Rm 4.1-5).

O trabalhador recebe salário, pagamento contratado e, portanto, devido pelo


trabalho realizado. Avaliar esse sistema é uma forma de ser justo diante de Deus.
Paulo explica que, se Abraão fosse justificado pelas boas obras que fez, ele se
sentiria orgulhoso e se jactaria de suas realizações de homem santo. Contudo, se
a ideia de jactância diante de Deus é absurda, então a ideia de ser justificado
diante de Deus por meio de obras é um equívoco, e certamente não foi esse o
caminho pelo qual Abraão optou. Pelo contrário, esse adorador de ídolos de Ur
não fez obra alguma, mas creu em Deus que justifica não o homem piedoso, mas
o ímpio. Pela fé, Abraão foi considerado justo perante Deus. Para confirmar esse
ponto, Paulo salienta que a justificação de Abraão veio antes que ele fosse
circuncidado (Rm 4.10,11) e independentemente da lei, que veio muito mais
tarde (Rm 4.13).
Essa linguagem da justiça de Deus como dom recebido pela fé é reiterada:
“Mas agora a justiça de Deus se manifestou, sem a lei, atestada pela Lei e pelos
Profetas; isto é, a justiça de Deus por meio da fé em Jesus Cristo para todos os
que creem; pois não há distinção. Porque todos pecaram e estão destituídos da
glória de Deus; sendo justificados gratuitamente pela sua graça, por meio da
redenção que há em Cristo Jesus, a quem Deus ofereceu como sacrifício
propiciatório, por meio da fé, pelo seu sangue” (Rm 3.21-25, grifo do autor).
Alcançado pela obediência perfeita de Cristo, especialmente por sua morte como
sacrifício expiatório para aplacar a ira furiosa de Deus (propiciação e seu efeito),
a justificação como dom gratuito de Deus é apropriada pela fé em Jesus Cristo.
Vale a pena observar que o fundamento da justificação que conduz ao dom da
justiça divina é a cruz de Jesus Cristo. A fé não é o fundamento do dom; ela é o
meio de recebimento do dom e é colocada em um objeto adequado, que é Jesus
Cristo. De fato, “a fé não deve ser pensada isoladamente em relação ao seu
objeto. A justiça que se tem em vista não é feita de fé, sendo encontrada no
objeto da fé. Paulo não diz que a justificação se dá por causa da fé, mas pela fé.
A fé é o meio pelo qual somos feitos justos perante Deus por meio de Cristo,
objeto da fé e fundamento da nossa justiça”. De modo concreto, pela união com
93

Cristo, e com base na obra de Deus em Cristo, o ser humano pecador “se coloca
diante dele sem culpa e como se tivesse feito tudo o que a obediência exige”. 94

Contudo, tal justiça não deve ser considerada como se fosse algum tipo de
substância ou commodity infundida na pessoa; pelo contrário, “a justiça em
questão é encarnada, e a imputação consiste em partilhar do Cristo que é nossa
justiça”.95

Essa comunicação da justiça de Deus por seu ato declarativo de justificação, e


sua apropriação pela fé, se contrapõe a uma falsa visão exposta e condenada pela
Escritura: a justificação pelas obras. Conforme observamos anteriormente,
Abraão é o exemplo por excelência de alguém que não teve de fazer obra alguma
para ganhar a justiça de Deus; ele creu naquele que justifica o ímpio (Rm 4.1-5).
Era sua “a justiça da fé” (v. 13) que não se baseava na circuncisão, tampouco na
lei. Conforme Paulo sintetiza esse ponto comum: “Concluímos, pois, que o
homem é justificado pela fé sem as obras da lei” (3.28). O exemplo de Abraão
chama a atenção para o fato de que essa denúncia que a Escritura faz das obras
não se refere unicamente àquelas obras associadas à lei de Moisés. Aquela antiga
lei da aliança nem sequer existia quando o patriarca creu em Deus para sua
justiça. Pelo contrário, a Escritura se coloca contra as obras de qualquer tipo
feitas com o propósito de conquistar a justiça. Isso se deve ao fato de que não
apenas a justificação, mas a salvação em geral, não é ganha por meio de obras:
“Porque pela graça sois salvos, por meio da fé, e isto não vem de vós, é dom de
Deus; não vem das obras, para que ninguém se orgulhe. Pois fomos feitos por
ele, criados em Cristo Jesus para as boas obras, previamente preparadas por
Deus para que andássemos nelas” (Ef 2.8-10).
A teologia evangélica é acusada com frequência, nesse ponto, de tomar
partido do apóstolo Paulo e sua ênfase sobre a justificação pela fé em
contraposição ao apóstolo Tiago e sua alegação de que “uma pessoa é justificada
por obras e não somente pela fé” (Tg 2.24). Embora tenha havido muita
discussão em torno desse assunto, Paulo e Tiago simplesmente não estão em
desacordo em relação à forma correta de se apropriar da justificação; tampouco
que a teologia evangélica coloque a fé em confronto com as obras.
Quanto ao primeiro ponto, a ênfase de Paulo recai sobre o que significa
abraçar a justiça de Deus, que é seu dom aos seres humanos pecadores: receber
esse dom para ser justificado diante de Deus é algo que se dá pela fé, e não por
qualquer outra coisa (e.g., circuncisão, obras da lei, qualquer boa obra). Tiago
chama a atenção não para a fé salvadora, mas para a fé falsa: essa fé não pode
salvar. Sua ênfase sobre a natureza da fé fica clara a partir da ilustração que ele
emprega para caracterizar a falsa fé: “Crês que Deus é um só? Fazes bem, pois
os demônios também creem e estremecem!” (Tg 2.19). Os demônios têm um
tipo de fé, mas ela certamente não é uma fé salvadora! Saindo do reino
demoníaco, Tiago ilustra como se dá a falsa fé entre os seres humanos: “Se um
irmão ou irmã estiverem necessitados de roupas e do alimento de cada dia, e
algum de vós lhes disser: ‘Ide em paz, aquecei-vos e saciai-vos’, e não lhes
derdes as coisas necessárias para o corpo, que vantagem há nisso?” (v. 15,16).
Essa fé é chamada “fé em si mesma [...] que não tem obras”, e a avaliação de
Tiago é que tal fé “é morta” (v. 17). Consequentemente, a resposta às perguntas
de Tiago — “Meus irmãos, que vantagem há se alguém disser que tem fé e não
tiver obras? Essa fé poderá salvá-lo?” (v. 14) — é claramente: “Não, claro que
não!”. Tomando essa definição de fé, Tiago enfatiza que a justificação diante de
Deus não é, e não pode ser, por meio dessa fé. A falsa fé, ou fé fictícia, não pode
salvar ninguém.
Deixando de lado esse conceito de fé, Tiago descreve o tipo de fé que produz
justificação: a fé salvadora. Que fé é essa? Ele dá um exemplo dela
primeiramente com Abraão: “Não foi pelas obras que nosso pai Abraão foi
justificado quando ofereceu sobre o altar seu filho Isaque? Vês que a fé
cooperou com suas obras, e pelas obras a fé foi aperfeiçoada. Assim se cumpriu
a Escritura que diz: ‘Abraão creu em Deus, e isso lhe foi atribuído como justiça’,
e ele foi chamado amigo de Deus” (v. 21-23). É interessante observar que Tiago
apresenta a natureza da fé verdadeira destacando, primeiramente, que a obra de
Abraão, isto é, o sacrifício do seu filho (no monte Moriá; Gn 22), salientando em
seguida que essa obra cumpriu a Escritura ao afirmar que Abraão foi contado
como justo perante Deus pela fé (no monte Hebrom; Gn 15.6). A justificação de
Abraão perante Deus se deu pela fé e, conforme ficou demonstrado vividamente
décadas depois, por meio da oferta que o patriarca fez do seu filho, “que a fé
esteve ativa juntamente com suas obras, e a fé era completada por suas obras”,
que cumpriram a Escritura anterior. “A palavra “cumpriram” não significa que as
palavras de Abraão tornaram verdadeira a Escritura [...] mas que suas obras
fizeram com que a declaração de Hebrom chegasse ao seu fim determinado. A
declaração tinha como finalidade ser manifesta para que a Palavra de Deus fosse
justificada. Deus declarou como justiça a fé de Abraão, e as ações dele,
particularmente o teste com Isaque, confirmaram a verdade da Escritura.” Além 96

disso, não havia nada de errado com a fé de Abraão — pela fé, Abraão foi
considerado justo perante Deus! —, porém tal fé salvadora resultou em boas
obras.
A segunda ilustração de Tiago da fé salvadora é Raabe: “De igual modo, a
prostituta Raabe não foi também justificada pelas obras, quando acolheu os
espias e os fez sair por outro caminho?” (Tg 2.25). Como podemos saber se a fé
dessa prostituta não passava de um último esforço desesperado para salvar sua
própria vida, um exemplo da falsa fé que Tiago está combatendo nessa
passagem? A fé fictícia não teria resultado em ato tão corajoso, mas, porque ela
resgatou os espias israelitas, sua boa obra nos permite distinguir em sua fé uma
fé salvadora. Como destaca a Carta aos Hebreus, em seu capítulo sobre a fé:
“Pela fé, a prostituta Raabe não morreu com os desobedientes, pois acolheu em
paz os espias” (Hb 11.31). A conclusão que Tiago tira dessa ilustração é que “a
fé sem obras é morta” (Tg 2.26). A fé de Raabe não era do tipo fictício ou morto;
pelo contrário, era uma fé genuína — uma fé salvadora — que assim se mostrou
ser por suas obras.
O próprio Paulo, em vez de se opor à exposição de Tiago, concorda
completamente com ela e usa até a mesma ilustração de Abraão em apoio a ela.
Conforme discutimos acima, o apóstolo cita Gênesis 15.6 em sua Carta aos
Romanos, destacando que Abraão não foi justificado pelas obras, mas pela fé
(Rm 4.1-5). Vale a pena notar que no final de sua discussão sobre a justificação
pela fé, e não pelas obras (no final de Rm 4), Paulo cita novamente a vida do
patriarca e faz referência outra vez a Gênesis 15.6. Embora esteja plenamente a
par das muitas falhas reais de Abraão, Paulo o descreve da seguinte forma:
Abraão, ao contrário do que se podia esperar, creu com esperança, para que se tornasse pai de muitas
nações, conforme o que lhe havia sido dito: “Assim será a tua descendência”. E, sem enfraquecer na
fé, considerou que o seu corpo já não tinha vitalidade (pois já contava cem anos), e o ventre de Sara
já não tinha vida. Contudo, diante da promessa de Deus, não vacilou em incredulidade; pelo
contrário, foi fortalecido na fé, dando glória a Deus, plenamente certo de que ele era poderoso para
realizar o que havia prometido (Rm 4.18-21).

Paulo cita então Gênesis 15.6 pela segunda vez — “Por essa razão, isso ‘lhe foi
atribuído como justiça’” (Rm 4.22) — confirmando duas coisas: “(1) A vida de
fé de Abraão era evidência de sua justificação; (2) o que Deus declarou na
Escritura sobre Abraão era verdade”. Esses pontos correspondem aos que Tiago
97

defende com ênfase no fato de que a justificação é apropriada não pela fé


fictícia, mas pela fé salvadora, e essa fé salvadora resulta em boas obras.
Consequentemente, não é verdade que Paulo e Tiago estejam em lados opostos
em relação à forma correta de se apropriar da justificação, portanto a teologia
evangélica não toma o lado de Paulo em oposição a Tiago ao desenvolver e
defender sua doutrina da justificação.
Há, porém, uma segunda acusação contra a teologia evangélica, mais
concretamente que ela contrapõe a fé às obras ou, no mínimo, demonstra uma
atitude de despreocupação para com as boas obras como parte da vida em Cristo.
Para repelir tal acusação, basta à teologia evangélica voltar à sua herança
reformada. Martinho Lutero estabeleceu uma distinção entre “dois tipos de
justiça cristã [...]. A primeira é a justiça externa, isto é, a justiça de outro,
instilada de fora para dentro. Essa é a justiça de Cristo, por meio da qual ele
justifica através da fé”. Aqui, Lutero descreve a imputação da justiça de Cristo
98

que foi discutida. A respeito do outro tipo, “a segunda espécie de justiça é nossa
própria justiça não porque somente nós a trabalhamos, mas porque trabalhamos
com aquela primeira justiça externa. Esse é aquele tipo de vida gasta com
proveito em boas obras”. Importante para Lutero, o primeiro tipo “é
99

fundamental; é a base, a causa, a fonte de toda a nossa justiça de fato”. 100

Consequentemente, os que foram justificados pela fé, tendo por isso a justiça de
Jesus Cristo imputada a eles, se dedicam a obras reais de justiça. Lutero
claramente uniu a fé (em uma justiça externa) e obras (a justiça do indivíduo que
decorre de sua justiça externa).
A relação desses dois tipos de justiça é paradoxal, de acordo com Lutero, que
estabeleceu duas proposições referentes à liberdade e à escravidão do espírito
humano: “O cristão é um senhor de tudo perfeitamente livre, que não se submete
a ninguém. O cristão é um servo perfeitamente obediente de todos, sujeito a
todos. Essas duas teses parecem contradizer uma à outra”. Sobre a primeira
101

tese, Lutero afirmou que a justificação pela graça por meio da fé somente, e não
pelas obras, liberta completamente o cristão, especialmente da lei divina. Além
disso, “se buscamos as obras como meio de justiça [...] e se elas são feitas sob a
falsa impressão de que por seu intermédio a pessoa é justificada, tornam-se
necessárias, destruindo desse modo a fé e a liberdade. Essa adição a elas faz com
que deixem de ser boas, tornando-se verdadeiramente condenáveis”. Em 102

relação à sua segunda tese, Lutero disse que a justificação estabelece o serviço
cristão e o dever de participar das boas obras pelo bem de outros: “Essa é a
verdadeira vida cristã. Aqui, a fé é verdadeiramente ativa por meio do amor [Gl
5.6], isto é, ela encontra expressão nas obras do serviço mais livre, feito com
alegria e amor, com o qual o homem serve ao outro sem esperar recompensa”. 103

Lutero conclui: “Não rejeitamos as boas obras; pelo contrário, nós as


valorizamos e as ensinamos tanto quanto possível”. Digno de nota a esse
104

respeito é a reprovação de Lutero da restrição que a teologia católica faz das


obras limitando-as aos atos religiosos, como orar, jejuar e dar esmolas — uma 105

crítica já repercutida acima.


A teologia evangélica, portanto, tem uma herança centenária que a leva a
abraçar as boas obras no que diz respeito à fé e à justificação. A acusação de que
ela contrapõe a fé às obras, ou pelo menos demonstra uma atitude despreocupada
para com elas na vida cristã, é simplesmente falsa.
Para evitar confusão ou possíveis equívocos em relação à doutrina da teologia
evangélica, é preciso dizer mais alguma coisa no tocante à relação entre
justificação, graça, fé e boas obras. A justificação do ímpio pela graça divina
apropriada pela fé é um ato declarativo de Deus — que pessoas pecadoras não
são culpadas, e sim justas —, e “Deus planeja manter sua Palavra para com um
tipo especial de pessoas — aquelas que o seguem em obediência” por meio da
106

participação nas boas obras. A declaração permanece firme e é incondicional.


Sua realidade não depende das boas obras de quem a recebe; sua realidade é
“concorrente, ou paralela, à obediência”. Simplificando, a fé salvadora que
107

justifica resulta em boas obras, mas não está associada a elas. Portanto, não há
“uma dupla base de justificação, isto é, constituída de fé e obras. Contudo, a fé, o
único fundamento para a justificação, opera”. Isso significa que o veredito da
108

justificação não espera por evidências para lhe dar respaldo, sendo declarada
antes de apresentada a evidência. Voltando à ilustração de Abraão, “a fé de
Abraão foi considerada justiça antes da evidência manifestada em sua vida, e
não com base nela”. A base da justificação é a obra de Cristo em favor dos
109

seres humanos pecadores, e o meio de apropriação é a fé, e somente a fé, mas a


fé salvadora produz a evidência da justificação, que são as boas obras. Além
disso, embora o veredito público aguarde um momento futuro, ele já foi
evidenciado no presente para todos os que, pela fé, confiam em Cristo para a
justificação. Por fim, como parte da fé salvadora, a garantia de salvação é
privilégio de todos os seguidores de Cristo.
Com essa estrutura de uma teologia evangélica da justificação, graça, fé e
boas obras é possível esboçar os principais pontos de discordância no tocante à
elaboração que a teologia católica faz desses tópicos. É importante notar que a
definição de justificação da teologia católica é incorreta. A justificação é um ato
forense ou legal, é a declaração do perdão do pecado e a imputação de justiça. A
teologia católica erra quando mistura a justificação com dois outros atos de
poder de Deus — a santificação e a regeneração: “A justificação não é apenas a
remissão de pecados, mas também a santificação e a renovação do homem
interior”. Essa crítica não significa que a teologia evangélica minimiza ou nega
110

esses dois outros atos divinos. Pelo contrário, embora afirme que a justificação
se acha associada com a regeneração e a santificação, a teologia evangélica faz
distinção entre essas três coisas, assim como o faz a Escritura (e.g., 1Co 6.11).
Infelizmente, fundir a justificação, a regeneração e a santificação resulta na falsa
ideia de justificação da teologia católica.
Igualmente importante, é errônea a ideia na teologia católica da justiça como
“retidão do divino amor” que é infundido nas pessoas, especialmente por meio
dos sacramentos. Pode-se perceber essa ênfase na infusão na lista do fruto da
111

justificação, que destaca, entre outras coisas, a purificação do pecado; o


derramamento da fé, esperança e caridade no coração dos fiéis; e a conformidade
do fiel “com a justiça divina, que o torna interiormente justo pelo poder da sua
misericórdia”. Já expusemos neste livro a crítica que a teologia evangélica faz
112
da interdependência natureza-graça, da qual depende a doutrina católica da graça
infundida. Simplesmente não é verdade que a natureza — nesse caso, a natureza
humana decaída — possua a capacidade para a graça, que é infundida no fiel por
meio dos sacramentos para elevar e aperfeiçoar sua natureza. Em vez de infusão
da graça que produz conformidade interna à justiça de Deus, a teologia
evangélica acolhe a imputação da justiça perfeita de Cristo. Uma justiça
infundida é capaz de aumentar ou diminuir, dependendo da participação do fiel
no meio de graça (o sacramento) ou de sua não participação. Para a teologia
evangélica, a justiça imputada por meio de uma declaração divina significa que
o ímpio está agora diante de Deus como alguém plenamente à altura do padrão
da lei e que demonstrou perfeita obediência a ele; não pode haver (e de fato não
há) necessidade alguma de um aumento de justiça. Tampouco a justiça pode
decrescer, porque a justificação é uma declaração que faz dela o que ela é. Além
disso, a perspectiva católica da graça justificadora, que pode ser perdida,
significa que não há garantia de justificação. A justificação, porém, de acordo
com a teologia evangélica, produz essa segurança.
Além disso, é equivocado o vínculo que a teologia católica estabelece entre a
fé e o sacramento do batismo como meio de apropriação da justificação. Isso não
apenas contradiz inúmeras passagens dos escritos paulinos que insistem na fé
como instrumento único para o recebimento da graça divina da justificação, mas
parece incapaz de explicar a discussão da salvação e seu meio de apropriação no
Concílio de Jerusalém (At 15). Estava em pauta a insistência dos cristãos
judaizantes segundo os quais os cristãos gentios eram salvos pela fé em Cristo e
mais alguma coisa — a saber, pela circuncisão e obediência à Lei de Moisés (v.
1,5,24). A posição firme do Concílio — “cremos que somos salvos pela graça do
Senhor Jesus, do mesmo modo que eles” (v. 11) — ressaltou que a salvação tanto
de judeus quanto de gentios é pela graça de Deus recebida mediante a fé (v. 7-
11). “Se houve uma época para que a igreja primitiva insistisse na necessidade
do batismo para salvação, certamente esse debate teria sido um momento
oportuno para isso. Tal proposta, porém, não foi feita, nem discutida ou
ratificada naquele concílio”. Conforme explicamos anteriormente, o batismo
113

não é necessário para a salvação, mas isso não significa que não o consideremos
importante, embora ele rompa o elo católico entre a fé e o sacramento do
batismo para justificação. A teologia católica cria o elo entre fé e batismo por
causa da interdependência natureza-graça, o axioma segundo o qual a graça deve
ser concretamente transmitida por meios tangíveis — nesse caso, água. Outra
razão para essa ligação é a interpretação católica da afirmação de Jesus de que
“se alguém não nascer da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus”
(Jo 3.5), mas, conforme já expusemos, essa é uma interpretação equivocada das
palavras de Jesus.
Para uma crítica final da doutrina da justificação da perspectiva católica,
retomamos aqui uma discussão anterior. A teologia católica afirma que a
justificação estabelece uma relação de cooperação entre a graça divina e a
liberdade humana. Essa fórmula se traduz naquilo a que nos referimos
anteriormente como sinergismo : dois agentes, Deus e o seres humanos,
trabalham juntos para operar o resgate desse grupo. Da parte de Deus, os muitos
tipos de graça operam de maneira poderosa para produzir a justificação do fiel,
cabendo a este “assentir com fé à Palavra de Deus”, responder com a conversão
e obedecer “ao impulso do Espírito Santo que se lhe adianta e o guarda”. 114

Diferentemente disso, a doutrina da justificação da teologia evangélica é um


exemplo evidente de monergismo. Um agente — Deus — opera sozinho para
justificar o ímpio (Rm 4.5), que não contribui — na verdade, nem pode — com
coisa alguma para sua justificação. Um agente — Deus — trabalha sozinho para
declarar o injusto não “inocente!”, mas, “em vez disso, justo!”, o que não o torna
efetivamente justo (e, desse modo, agente cooperador), mas considerando-o justo
por meio do dom da justiça perfeita de Jesus Cristo.
Uma vez mais, no âmago da salvação sinérgica da teologia católica deparamos
com a interdependência natureza-graça. A natureza — nesse caso, o ser humano
caído — tem a capacidade de receber a graça divina, e a graça capacita a
natureza a cooperar com a operação de graça comunicada por meio dos
sacramentos. Como esse axioma está equivocado, a salvação como um
empreendimento sinérgico, de cooperação entre a natureza e a graça, entre Deus
e o ser humano, está arraigada em solo falso. Além disso, se a graça divina
imputa justiça como dom, então a ideia mesma de um dom descarta qualquer
ideia de que a pessoa que o recebe possa contribuir de algum modo com ele ou
cooperar com aquele que o concede. Além disso, a apropriação desse dom se dá
pela fé, e essa resposta de fé à graça de Deus, embora seja certamente uma
resposta humana, vista equivocadamente como cooperação humana. Conforme
afirma Paulo, salvação pela graça por meio da fé — toda ela — é em si mesma
um dom de Deus. Para o apóstolo, isso significa que a salvação “não é obra sua”
e “não é resultado de suas obras”, impedindo com isso que alguém se orgulhe ou
que assuma crédito por ela de qualquer tipo que seja. Caminhar nas boas obras,
como resposta adequada ao fruto de ser “criado em Cristo Jesus para boas obras,
que Deus de antemão preparou”, é o ponto de cooperação, mas o ser humano não
contribui em nada para sua justificação (Ef 2.8,9). O monergismo, e não o
sinergismo, é a estrutura apropriada para a justificação pela graça por meio da fé.
Mérito
Consequentemente, a estrutura da teologia evangélica do monergismo critica o
tópico seguinte da doutrina da salvação, a saber, o mérito, a recompensa que
Deus deve ao fiel pelas boas obras que pratica (recompensa) e também pelas más
obras (castigo). No âmago da ideia de mérito da teologia católica encontra-se sua
crença de que “Deus escolheu livremente associar o homem à obra de sua
graça”. A graça divina começa e é seguida pela resposta do homem
115

(sinergismo), e Deus recompensa condignamente essa resposta humana. Essa


resposta é específica para cada pessoa: todo fiel deve “fazer aquilo que está nele
fazer” (facere quod in se est). Vale a pena notar que a teologia católica nega a
possibilidade de se alcançar algum mérito no início da salvação, uma vez que o
início da salvação depende unicamente da graça de Deus. Portanto, “ninguém
pode merecer a graça inicial do perdão e da justificação”. O mérito, porém,
116

entra em cena quando o fiel, impelido pelo Espírito Santo e pelo amor, alcança
para si e para os outros a graça da santificação permanente, o aumento da graça e
do amor e alcança a vida eterna.
Embora respeite essa diferenciação entre graça inicial, que não pode ser
merecida, e graça permanente, que se pode alcançar por mérito, a teologia
evangélica nega qualquer possibilidade de se conquistar a graça de qualquer tipo
— inicial, permanente ou final — e considera supérfluo o esforço humano em
direção à conquista da vida eterna. É evidente que a ideia de mérito se baseia no
axioma da interdependência natureza-graça. A natureza — nesse caso, a natureza
humana decaída — é capaz de receber a graça divina e, tendo obtido tal graça
por meio dos sacramentos, torna-se livre e pode, portanto, se tornar merecedora
da vida eterna. Como já foi demonstrado, a interdependência natureza-graça é
um equívoco, portanto a ideia de mérito que repousa sobre esse axioma é
igualmente errônea. Além disso, a doutrina correta da justificação defendida pela
teologia evangélica ressalta o erro do mérito: como o ser humano decaído não é
declarado “inocente!”, mas “justificado!”, não se alcança a vida eterna por meio
desse ato gratuito de Deus somado ao esforço humano (mesmo que seja um
esforço sustentado pela graça divina), e sim exclusivamente pela declaração de
Deus recebida pela fé e nada mais. Considerado plenamente justo por causa da
justiça de Cristo que lhe foi imputada pela fé, o cristão nada precisa agregar a
essa salvação. Como se não bastassem o perdão e o resgate do pecado, ele
também é recompensado por suas boas obras que decorrem da sua união com
Cristo, da nova natureza dada a ele por meio da regeneração pelo Espírito Santo
e pelo derramamento de um coração cheio de gratidão por sua salvação.
A teologia evangélica enfatiza que essas recompensas, porém, nada dizem
respeito à doutrina do mérito da teologia católica. Conforme ressaltou João
Calvino, o exemplo de Abraão elucida a diferença entre recompensa e mérito.
Antes de Isaque nascer, Abraão recebeu pela fé a promessa de que sua
descendência seria tão numerosa quanto as estrelas do céu (Gn 15.5); isto é, ele
se tornaria pai de muitas nações (Gn 17.4-6). Anos mais tarde, o patriarca
levantou obediente a faca sobre a cabeça do seu filho Isaque, provando que
temia a Deus (22.12). Tendo agido em obediência a Deus, Abraão recebeu a
seguinte promessa: “Por mim mesmo jurei, diz o S , porque fizeste isso e não
ENHOR

me negaste teu filho, teu único filho, que com certeza te abençoarei e
multiplicarei grandemente a tua descendência, como as estrelas do céu e como a
areia na praia do mar; e a tua descendência dominará a cidade dos seus inimigos;
e todas as nações da terra serão abençoadas por meio da tua descendência, pois
obedeceste à minha voz” (22.16-18).
Conforme explicou Calvino, “o que foi que ouvimos? Abraão, por sua
obediência, mereceu a bênção cuja promessa lhe fora feita antes da ordem [de
matar seu filho]? Aqui, certamente, mostramos sem ambiguidade que o Senhor
recompensa as obras dos crentes com os mesmos benefícios que ele lhes havia
concedido antes que contemplassem quaisquer obras, já que ele não tem razão
alguma para beneficiá-los, exceto sua própria misericórdia”. Abraão não
117

mereceu — na verdade nem sequer podia merecer — por suas boas obras, algo
que já lhe havia sido prometido e recebido pela fé. Deus prometera, Abraão creu
pela fé, foi declarado justo, obedeceu e foi recompensado — mas não de modo
que fosse salvo pela graça e por mérito. Conforme dissemos: “Deus planeja
manter sua Palavra com um tipo específico de povo — aqueles que o seguem em
obediência” praticando boas obras. Sua justificação é firme e incondicional.
118

Sua realidade não depende de suas boas obras, sendo simultânea ou sincronizada
com elas. Em outras palavras, a fé salvadora que justifica resulta em boas obras,
mas não depende da cooperação do fiel com a graça divina para que o fiel
mereça a vida eterna por meio de graça e obras. É verdade que o cristão é
recompensado por Deus, conforme acentua com frequência a Escritura (e.g., Mt
16.27; Lc 6.23; 1Co 3.8,15; 2Co 5.10). Que tal prática de boas obras faz o fiel
merecer a vida eterna e seja necessária para a obtenção da salvação consiste em
erro.
A igreja, mãe e educadora
O Catechism conclui sua discussão da doutrina da salvação situando na doutrina
da igreja essa obra divina de resgate do ser humano (decaído) do pecado, que é
então conduzido à bem-aventurança eterna. Dois temas já tratados são
retomados: a igreja é mãe e educadora. Ambos os tópicos são sustentados pelo
axioma da interconexão Cristo-Igreja: como a igreja é extensão da encarnação
do Cristo total (tanto a cabeça quanto o corpo), então a Igreja Católica, e
somente ela, é mediadora da salvação. Conforme esse axioma já foi criticado,
basta ressaltar que o fundamento da ideia católica de igreja mãe e educadora é
incorreto.
Em relação à crítica específica da metáfora materna da igreja, a teologia
evangélica enfatiza que a Escritura emprega uma imagem feminina vívida para a
igreja — ela é a noiva de Cristo (2Co 11.1-4; Ef 5.25-33; Ap 19.7; 21.2,9,17) —
ela não emprega a metáfora de mãe. Além disso, a teologia evangélica critica a
ligação que a teologia católica faz entre a igreja mãe e Maria, mãe da igreja. Ao
mesmo tempo, e entendido de maneira diferente, a igreja mãe dos cristãos, que
serve como ministra ungida pelo Espírito da graça de Deus pela pregação do
evangelho e pela celebração das ordenanças, faz sentido dentro de uma estrutura
teológica evangélica. Com relação a críticas específicas da igreja educadora, um
aspecto dessa ideia, a doutrina da infalibilidade papal, é veementemente rejeitada
pela teologia evangélica, pelas seguintes razões: ela se baseia em uma
interpretação equivocada da promessa de Cristo segundo a qual “as portas do
inferno não prevalecerão contra ela [a igreja]” (Mt 16.18); ela erra por não
reconhecer a efetiva falibilidade dos papas; o dogma foi promulgado muito
posteriormente (1870) e em circunstâncias questionáveis; a elaboração de
ensinos oficiais mediante esse dogma viola a suficiência da Escritura. 119

Por último, o Catechism explica que o carisma, ou dom, de infalibilidade da


igreja, se estende para além dos pronunciamentos ex cathedra feitos pelo papa,
já que incluem também: (1) outras doutrinas e princípios morais “sem os quais
as verdades salvíficas da fé não podem ser preservadas, explicadas ou
observadas”; (2) “os preceitos específicos da lei natural, porque sua
120

observância, exigida pelo Criador, é necessária à salvação”; (3) cinco preceitos


121

eclesiais referentes à frequência à missa, confissão de pecados, participação na


eucaristia, guarda de dias santos de obrigação e observância de dias designados
de jejum e abstinência; e (4) um preceito adicional de oferta financeira para
122

sustento da igreja. Exasperada, a teologia evangélica objeta à natureza


123

incômoda dessas leis a mais que a Igreja Católica prescreve aos fiéis e os obriga
a obedecer. Ela questiona: em que momento chegam ao fim essas exigências
para a salvação? Ao ligar esse ponto ao primeiro tópico deste capítulo, a teologia
evangélica chama a atenção (e rejeita) a ênfase exagerada sobre a lei como
componente essencial da teologia católica da doutrina da salvação. Nem a lei
nem as boas obras cooperam com a graça para merecer a vida eterna, mas o
evangelho “é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê; primeiro
do judeu e também do grego. Pois a justiça de Deus se revela no evangelho, de
fé em fé, como está escrito: ‘O justo viverá pela fé’”(Rm 1.16,17).
Conclusão
“A vida em Cristo”, terceira parte do Catechism, tratou até o momento da
vocação humana da vida no Espírito (seção 1), analisando a dignidade da pessoa
humana (capítulo 1) e da comunidade humana (capítulo 2), e a salvação divina
especialmente no que diz respeito à lei, à justificação e à graça, ao mérito e à
igreja, mãe e educadora (capítulo 3). Embora apresente outra seção em que
discorre sobre os Dez Mandamentos (seção 2), não daremos a perspectiva
evangélica do assunto. Há três razões importantes para isso. Em primeiro lugar, a
apresentação da teologia católica dos Dez Mandamentos repousa sobre sua
ênfase na lei como componente essencial da salvação. Conforme salientou o
Concílio Vaticano II, “todo homem pode obter a salvação pela fé, pelo batismo e
pela observância dos [Dez] Mandamentos”. Como já criticamos a ênfase na lei,
124

outras críticas dirigidas à explicação detalhada que a teologia católica faz dessa
lei, conforme exposta nos Dez Mandamentos, parece supérflua. Em segundo
lugar, o tratamento do Catechism dessa seção apresenta uma grande
interpretação bíblica das passagens de Êxodo 20.2-17 e Deuteronômio 5.6-21.
Como este livro foi planejado para ser uma avaliação teológica da doutrina e
prática católicas, uma avaliação da interpretação bíblica do catolicismo levaria
este livro demasiadamente além. Em terceiro lugar, mesmo quando a
interpretação bíblica dessas passagens entra na reflexão teológica e na discussão
doutrinária, as questões teológicas apresentadas repetem os tópicos já cobertos
nas seções precedentes do Catechism, o que dispensa quaisquer outros
comentários.
De igual modo, a parte 4, “A oração cristã”, não será analisada aqui. A seção 1
trata da oração na vida cristã. Parte dessa discussão repercutirá junto aos
evangélicos, e deve mesmo repercutir, ao passo que outras partes devem ser
criticadas, da mesma forma e pelos mesmos motivos que essa avaliação
evangélica tem criticado a teologia e prática católicas nas seções precedentes do
Catechism. A seção 2 consiste na exposição detalhada dos sete pedidos do Pai-
Nosso (Mt 6.9-13). Como uma avaliação dessa interpretação bíblica nos
desviaria muito dos nossos propósitos, não a faremos aqui.
1
Edição em português: Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Loyola, 1999).
2
CCC 1949.
3
CCC 1950.
4
CCC 1952.
5
CCC 1954.
6
CCC 1960.
7
Ibidem; citação do papa Pio XII, Humani generis (12 de agosto de 1950), 3, disponível em:
http://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_12081950_humani-
generis_en.html.
8
CCC 1961.
9
CCC 1962.
10
CCC 1963.
11
Ibidem.
12
Ibidem (grifo removido).
13
CCC 1963.
14
CCC 1964 (grifo removido).
15
CCC 1965.
16
Ibidem.
17
CCC 1966 (grifo removido).
18
Ibidem. “Esse sermão apresenta [...] todos os preceitos necessários para modelar a vida das pessoas”
(CCC 1966, citando Augustine [Agostinho], The Sermon on the Mount 1.1 [NPNF1 6:2]).
19
CCC 1968.
20
CCC 1969 (grifo removido).
21
CCC 1971 (grifo removido).
22
CCC 1971.
23
CCC 1973.
24
CCC 1974.
25
CCC 1972. Essa seção toma como base bíblica João 15.15; Tiago 1.25; 2.12; Gálatas 4.1-7,21-23;
Romanos 8.15.
26
CCC 1987.
27
CCC 1989 (grifo removido). Cf. 1990: “A justificação continua a iniciativa da misericórdia de Deus,
que oferece o perdão”.
28
CCC 1989.
29
Ibidem; citação dos Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 6.ª sessão (13 de janeiro de 1547),
Decreto sobre a Justificação 7 (Schaff, 2:94).
30
CCC 1991 (grifo do autor).
31
CCC 1990 (grifo removido).
32
CCC 1991.
33
CCC 1992.
34
Ibidem.
35
CCC 1993.
36
Ibidem; citação dos Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 6.ª sessão (13 de janeiro de 1547),
Decreto sobre a justificação 5 (Schaff, 92).
37
CCC 1994 (grifo removido).
38
CCC 1995 (grifo removido).
39
CCC 1996.
40
Ibidem (grifo removido). Essa seção toma como base bíblica João 1.12-18; 17.3; Romanos 8.14-17;
2Pedro 1.3,4.
41
CCC 1999.
42
CCC 2000.
43
Ibidem.
44
CCC 2001. O Catechism discute esse tipo de graça como “preparação do homem para o recebimento
da graça” (grifo removido). Do latim praevenire (ir antes), a graça preveniente tem base bíblica, segundo
Agostinho, por causa de Salmos 59.10 (tradução latina): “Lemos na Sagrada Escritura [...] que a
misericórdia de Deus ‘me encontrará’ [praevenient] [...]. Ela vai adiante do que reluta para demovê-lo de
sua relutância” (Augustine, Enchiridion on faith, hope, and love 32 [NPNF1 3:248]). Para uma discussão
mais ampla, veja Augustine, On nature and grace 35[31] (NPNF1 5:133); Treatise against two letters of the
pelagians 2.21 (NPNF1 5:401).
45
CCC 2002 (grifo removido).
46
CCC 2003.
47
Ibidem.
48
CCC 2016.
49
CCC 2005 (grifo removido).
50
CCC 2005.
51
CCC 2006 (Introdução); citação do Missal Romano, prefácio 1 de Sanctis, da declaração de Agostinho
em Exposition on the Psalms 102.7; cf. Letter 194.
52
CCC 2006 (grifo removido).
53
CCC 2008 (grifo removido).
54
CCC 2008.
55
CCC 2010 (grifo removido).
56
CCC 2010.
57
CCC 2035.
58
CCC 2036 (grifo removido).
59
CCC 2039.
60
CCC 2041.
61
CCC 2042-2043.
62
CCC 1847; citação de Augustine, Sermon 169, in: John E. Rotelle, org., The works of Saint Augustine:
a translation for the 21st Century, tradução para o inglês de Edmund Hill (Hyde Park: New City, 1992),
vol. 5, p. 231.
63
“Monergismo” é um termo derivado de duas palavras gregas: μόνος (monos = somente, somente um) e
ἔργον (ergon = trabalho).
64
“Sinergismo” é um termo derivado de duas palavras gregas: σύν (syn = com, junto) e ἔργον (ergon =
trabalho).
65
Boa parte do que vem a seguir reflete a discussão em Brian Vickers, Justification by grace through
faith: finding freedom from legalism, lawlessness, pride, and despair, in: Robert A. Peterson, org.,
Explorations in Biblical Theology (Phillipsburg: P&R, 2013).
66
Ibidem, p. 99; cf. p. 133, 155, 175.
67
Ibidem, p. 99. Vale a pena enfatizar que o apóstolo distingue entre a antiga lei, pela qual ninguém pode
ser justificado, e o Antigo Testamento, ao qual a expressão “a Lei e os Profetas” se referem. O Antigo
Testamento dá testemunho da manifestação da justiça de Deus independentemente das obras da antiga lei.
68
Ibidem, p. 100.
69
Ibidem, p. 100-1.
70
Ibidem, p. 106.
71
Ibidem, p. 33. De igual modo, Vickers emprega o fracasso de Adão para tratar da sina dos demais
seres humanos, observando que, “afinal de contas, se Adão não obedeceu em sua inocência, o que
acontecerá às pessoas que vivem sob sua maldição quando receberem ordens de Deus?” (ibidem, p. 28-9).
72
Ibidem, p. 114.
73
CCC 1963.
74
Ibidem.
75
Embora Lutero tenha feito dessa distinção um princípio fundamental a ser observado na interpretação
da Bíblia, sua aplicação pode ser ampliada.
76
A questão do quarto mandamento, sobre o sábado, suscita a única indagação significativa a seu
respeito, isto é, se continua intacto ou se foi modificado.
77
“Cumpridos” no sentido de que Jesus oferece sua interpretação definitiva dessas leis do Antigo
Testamento. Embora algumas vertentes da teologia evangélica concordem com a teologia católica que a
linguagem contrastante usada por Jesus — “ouvistes o que foi dito [...] eu, porém, vos digo” — significa
que suas novas leis liberam o potencial oculto das antigas leis e trazem novas demandas internas que brotam
de dentro delas, muitas vertentes discordariam disso.
78
Vickers, Justification by grace through faith, p. 159-60.
79
Conforme disse Martinho Lutero: “Se perdermos a doutrina da justificação, perderemos a doutrina
cristã por inteiro” (Martin Luther, Lectures on Galatians: chapters 1–4 [LW 26:9]). João Calvino
subscreveu a convicção de Lutero chamando a justificação de “eixo principal sobre o qual se movimenta a
religião” e instou com a igreja para que “[dedicasse] a maior atenção e cuidados possíveis a ela” (Calvin,
Institutes 3.11.1 [LCC 20:726] [edições em português: João Calvino, As institutas, tradução de Waldyr
Carvalho Luz (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), 4 vols.; e A instituição da religião cristã, tradução de
Carlos Eduardo Oliveira; José Carlos Estêvão (São Paulo: Ed. Unesp, 2008)]).
80
Por causa de sua novidade, para não falar dos inúmeros desafios suscitados por ela, a chamada “nova
perspectiva sobre Paulo” não será discutida aqui.
81
Vickers, Justification by grace through faith, p. 2; cf. p. 31. Na página 48, Vickers cita John Piper:
“Em Cristo, somos considerados como tendo feito toda a justiça que Deus exige” (ibidem, p. 48, n. 30);
citação de John Piper, The future of justification: a response to N. T. Wright (Wheaton: Crossway, 2007), p.
171.
82
CCC 1996 (grifo removido).
83
Vickers, Justification by grace through faith, p. 27.
84
Ibidem.
85
Ibidem, p. 47.
86
Para “feito” como designação de condição ou posição, ele lista Mateus 25.21,23; Lucas 12.14; Atos
6.3; Tito 1.5; Hebreus 5.1 (ibidem, p. 47, n. 28). Para “feito” como designação de um estado do ser, ele lista
Tiago 4.4; 2Pedro 1.8 (ibidem, p. 48, n. 29). Em outro lugar ele ilustra essa ideia com Fineias (Sl
106.30,31), que foi tido como justo em virtude de sua justa ação de matar um israelita e uma moabita com
ele, uma relação idólatra que havia sido rigorosamente proibida por Moisés. De acordo com o salmista, a
atitude de Fineias “lhe foi atribuída como justiça” (ibidem, p. 59).
87
Ibidem, p. 48.
88
Vickers cita José (Mt 1.19), Simeão (Lc 2.25), José de Arimateia (Lc 23.50) e Cornélio (At 10.22); ele
chama a atenção ainda para o uso que Paulo emprega nesse sentido (Rm 3.10; Cl 4.1; Tt 1.8; 2Tm 4.8)
(ibidem, p. 49).
89
Ibidem, p. 49.
90
Ibidem (grifo do original).
91
Ibidem, p. 60.
92
Ibidem, p. 135-6.
93
Ibidem, p. 76 (grifo do original).
94
Ibidem, p. 74.
95
Ibidem.
96
Ibidem, p. 153.
97
Ibidem, p. 90.
98
Martin Luther, Two kinds of righteousness (LW 31:297).
99
Ibidem (LW 31:299).
100
Ibidem (LW 31:298).
101
Luther, The freedom of a Christian (LW 31:344).
102
Ibidem (LW 31:349–350).
103
Ibidem (LW 31:365).
104
Ibidem (LW 31:363).
105
Luther, Treatise on good works 3.
106
Vickers, Justification by grace through faith, p. 152.
107
Ibidem.
108
Ibidem, p. 153.
109
Ibidem, p. 90.
110
CCC 1989; a citação é dos Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 6.ª sessão (13 de janeiro de
1547), Decreto sobre a justificação 7 (Schaff: 2:94).
111
CCC 1991.
112
CCC 1992.
113
Allison, SS, p. 358.
114
CCC 1993.
115
CCC 2008 (grifo removido).
116
CCC 2010 (grifo removido).
117
Calvin, Institutes 3.18.2 (LCC 21:822-823).
118
Vickers, Justification by grace through faith, p. 152.
119
Veja críticas anteriores no capítulo 2.
120
CCC 2035.
121
CCC 2036 (grifo removido).
122
CCC 2041-2042.
123
CCC 2043.
124
CCC 2068; a citação é do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 24.
CONCLUSÃO
MINISTÉRIO EVANGÉLICO COM
CATÓLICOS
O presente livro, Teologia e prática da Igreja Católica Romana, deteve-se na
análise evangélica da teologia e prática católicas conforme expostas no
Catechism of the Catholic Church. Ele foi concebido exclusivamente com o
1203

propósito de chamar a atenção para os inúmeros pontos em comum que partilham


a teologia católica e a evangélica, e propor também uma crítica das muitas
divergências entre ambas. Outro diferencial diz respeito à ênfase da crítica no
sistema católico de modo geral, alicerçado nos dois axiomas da interdependência
natureza-graça e na interconexão Cristo-Igreja, além de questões específicas
relacionadas a cada doutrina e prática católicas.
Enquanto escrevia este livro, ia ficando cada vez mais fascinado com as
concordâncias teológicas entre a teologia católica e a evangélica, e esse fascínio
foi um grande estímulo para mim. De forma oposta, a crítica clara e incisiva das
doutrinas e práticas em que a teologia católica discordava da teologia evangélica
não me deu prazer algum. Contudo, a crítica a essas divergências, por mais
incômoda que tenha sido, é necessária por diversos motivos. O leitor evangélico
deste livro conhece muitos católicos e deseja compreender o que eles creem e
por quê. Além disso, o leitor católico deste livro conhece muitos evangélicos e
deseja também compreender em que eles creem e por que, além de entender a
avaliação que fazem da teologia católica. Não bastasse isso, o diálogo entre
católicos e evangélicos só prosseguirá de forma construtiva se ambas as
perspectivas teológicas compreenderem plenamente uma à outra, tanto aquilo
que têm em comum quanto as suas divergências. Por fim, os católicos que estão
migrando para o evangelicalismo e os evangélicos que estão migrando para o
catolicismo precisam conhecer no que estão se envolvendo. Sei perfeitamente
que, na realidade, um dos fatores mais decisivos dessa jornada entre fés é o
conselho de um guia ou mentor espiritual da fé para a qual a pessoa está
migrando. Uma consequência disso é que as questões de ordem doutrinária e
prática das quais este livro se ocupou talvez não sejam fundamentais no processo
de tomada de decisão. Na verdade, é possível que sua influência seja mínima
nesse processo. Essa realidade, porém, não torna as questões teológicas menos
importantes, pois quando um evangélico se torna católico, por exemplo, terá de
aceitar integralmente a teologia católica. Consequentemente, terá de abraçar a
tradição da Igreja Católica e seu magistério; o papel de Maria como advogada,
auxiliadora, benfeitora e medianeira; a justificação não só como uma declaração
de isenção diante de Deus e a imputação da justiça de Cristo, mas também como
um progresso contínuo de santidade; a perda da salvação como consequência de
um pecado mortal cometido e que levará ao castigo eterno no inferno; a
impossibilidade da certeza da salvação; a realidade do purgatório; a
infalibilidade do papa e do colégio episcopal; a economia sacramental; a
transubstanciação; a participação nos sacramentos da igreja para recebimento da
graça divina com os quais deverá cooperar para merecer a vida eterna;
exigências que vão além da Escritura e que são necessárias à salvação; e muito
mais. Se este livro tiver conseguido chamar a atenção para a grande brecha que
há nas questões listadas acima, e que separam o catolicismo do evangelicalismo,
por mais difícil que tenha sido o processo da crítica, pelo menos as pessoas
ficarão cientes da distância teológica entre os dois, ainda que essas questões não
ocupem o âmago de sua jornada de fé.
Meu interesse na conclusão deste livro é me dirigir aos evangélicos que
desejam saber como se envolver em um ministério com católicos. Tomando o
conteúdo deste livro como fundamento do que será oferecido a seguir, chamo a
atenção para os seguintes pontos: em primeiro lugar, à luz da interdependência
natureza-graça como axioma do sistema católico, o ministério evangélico com
católicos precisa quebrar a dependência da graça em relação à natureza. Isso é
possível acentuando-se a profundidade e a obstinação do pecado, que torna a
natureza incapaz de receber e de transmitir graça, e enfatiza a situação
irremediável da natureza e a necessidade desesperadora não de revisão nem de
renovação, mas de recriação. Além disso, o ministério evangélico destaca a
intervenção radical da graça divina comunicada por meio de um evangelho que
vem de fora do ser humano e que proclama uma justiça alheia imputada pela
justificação — a declaração de que um povo pecador agora foi justificado — e
não de uma justiça infundida, elevando assim a natureza humana com a
possibilidade de perfeição.
Em segundo lugar, o ministério evangélico com católicos terá de desfazer a
íntima conexão entre Cristo e a igreja, sem, contanto, atacar a importância da
igreja ou torná-la menos crucial. O ministério evangélico deverá destacar o
governo soberano do Deus-homem que subiu ao céu, opera por meio do Espírito
de Deus e pela Palavra de Deus e não transmitiu suas prerrogativas de autoridade
para a Igreja Católica e sua hierarquia. Além disso, o ministério evangélico deve
enfatizar a natureza instrumental da igreja e seu ministério que não age na
pessoa de Cristo, não é infalível e não estabelece o cânon da Escritura e sua
interpretação oficial, tampouco, de modo geral, faz a mediação entre a natureza e
a graça. Reitero que esse ponto não tem como objetivo censurar a igreja, seus
líderes ou seu ministério, porém quer estabelecer uma distância apropriada
dessas realidades em relação ao axioma da interconexão Cristo-Igreja para o
qual a Igreja Católica é um prolongamento da encarnação de Jesus Cristo que
subiu ao céu.
Em relação aos conselhos práticos para o ministério evangélico com católicos,
inúmeras sugestões dão destaque ao evangelho e decorrem da doutrina da
Escritura e da sua interpretação. Uma estratégia, baseada na ignorância geral
acerca da Bíblia predominante entre os católicos, consiste em fazer com que
sejam fartamente expostos ao evangelho por meio da leitura e do estudo da
Escritura. Uma ferramenta que usamos quando trabalhamos com os católicos em
Roma consistia em nos reunirmos uma vez por semana em grupos de leitura dos
Evangelhos (e.g., Lc 19.1-10) para estudar o Evangelho programado para a
missa do domingo seguinte. Seguindo um método de estudo bíblico muito
simples — leitura do texto, observação, interpretação, aplicação e oração —,
esses grupos de leitura ajudam os católicos a se familiarizarem com a pessoa e a
obra de Jesus Cristo conforme o revela a Escritura. Crendo que “a fé vem pelo
ouvir, e o ouvir, pela palavra de Cristo” (Rm 10.17), o ministério evangélico
pode apresentar longas exposições da palavra de Cristo, inflamando a fé nele por
meio desses Grupos de Leitura do Evangelho. Uma segunda sugestão consiste no
fato de que o ministério evangélico precisa se concentrar constantemente na
autoridade bíblica em seu diálogo com católicos. Familiaridade com a Escritura,
amor à Palavra de Deus, afirmação da verdade bíblica, confiança nas promessas
da Escritura, submissão aos mandamentos bíblicos etc. não apenas enfatizam a
doutrina evangélica da Escritura, mas, igualmente importante, comunicam um
compromisso profundo e vivo com a Palavra de Deus. Entrar num debate em que
a opinião evangélica é posta em oposição ao ensino católico é pouco produtivo,
mas, se o ponto constante de referência da discussão e da disputa for a Escritura,
colocaremos no centro da conversa a devida autoridade.
Várias outras sugestões têm como objetivo ajudar a elucidar o evangelho. O
primeiro conselho é dirigido especificamente ao esclarecimento da aplicação da
obra salvadora de Deus em Cristo por meio do arrependimento e da fé. Uma
pergunta fundamental que deve ser feita antes de convidar o católico a abraçar a
salvação é a seguinte: “Você já deixou de confiar em seus esforços para ganhar o
amor e o perdão de Deus?”. O objetivo da pergunta é enfatizar que a participação
em boas obras, a frequência à missa e a dependência do batismo e a participação
em outros sacramentos etc. ainda expressam confiança na justiça própria e em
obras pessoais para que alguém possa se considerar preparado para a salvação.
Se a resposta for negativa — ou se for uma que indique que a pessoa entende a
importância da fé, mas continua comprometida em acrescentar alguma coisa à fé
somente para salvação —, é sinal de que a pessoa ainda não está pronta para
acolher Jesus Cristo. Uma resposta positiva indica que o meio prescrito de
apropriação da salvação pela graça de Deus por meio da fé foi compreendido e,
portanto, deve-se oferecer à pessoa o incentivo para que dê um passo de fé. Ao
expressar a convicção do ministério evangélico no tocante à apropriação
adequada da salvação, a simples fórmula “fé +_______” (complete com boas
obras, obediência à lei, batismo, graça sacramental, rezar o rosário etc.) cancela a
fé e torna a salvação divina nula e vazia. Esse é um tópico que precisa ser
esclarecido.
Um segundo conselho a respeito do evangelho diz respeito ao esclarecimento
do impacto que o evangelho tem sobre todas as áreas da vida. Com muita
frequência, o ministério evangélico restringe sua atenção às boas-novas como
ponto de entrada para a salvação, mas abandona em seguida a importância do
evangelho para a transformação contínua. Em vez disso, o ministério evangélico
deveria insistir nas boas-novas da graça de Deus como aquilo que suscita o
arrependimento do pecado e inflama a fé em Jesus Cristo, curando
relacionamentos arruinados, superando vícios, substituindo a mentira pela
verdade, acalmando as inseguranças e derrotando medos, salvando casamentos,
proporcionando amor e compaixão para os que não são amados e os
marginalizados, unindo gente muito diferente, promovendo a coragem para dar
testemunho de Cristo e muito mais. Como o evangelho impacta e transforma
tudo, o ministério evangélico deve pôr o evangelho sempre em plano elevado o
tempo todo.
É possível fazer várias perguntas no tocante à suficiência de Cristo e à sua
obra de salvação. É interessante observar que um elemento do catolicismo que
atrai os evangélicos para a Igreja Católica é o seu magistério e a certeza que ele
proporciona no que diz respeito à revelação, à verdade, à graça etc. Vale notar,
em contrapartida, que a teologia católica nega que o fiel possa ter certeza da
salvação, por isso parece que o ponto mais importante de certeza, que é o destino
eterno da pessoa, não pode ser encontrado na Igreja Católica. Contudo, a
teologia evangélica, pelo menos naquelas vertentes que defendem a perseverança
dos santos, oferece efetivamente tal certeza. Ao se ocupar do fruto da obra
divina da justificação — o veredito de “inocente” livra-nos da condenação; a
imputação da justiça de Cristo garante-nos lugar certo diante de Deus —, tal
certeza é comunicada. Além disso, ao enfatizar a obra intercessora de Cristo (Hb
7.25), sua promessa de preservar os cristãos firmemente até o fim e assim
garantir-lhes vida eterna (Jo 6.38-40; 10.27-29), o selo do Espírito Santo como
promessa da herança cristã (Ef 1.13,14), as promessas da Palavra de Deus (1Jo
5.11-13) e a fidelidade e o poder de Deus para efetuar a salvação completada
(1Co 1.7-9; Fp 1.6; 1Pe 1.5), o ministério evangélico oferece a verdade da
perseverança na fé e a garantia da salvação que a acompanha em contraste com a
negação dessa verdade pela teologia católica. Uma implicação desse ponto é que
o purgatório não existe, como tampouco é necessário um estado de purificação
completa para a mancha do pecado perdoado. Além disso, chama-se a atenção
para o fato de que o papel de medianeira de Maria e a obra intercessora dos
santos são desnecessários.
Outra sugestão que decorre da suficiência de Cristo e de sua obra de salvação
é que o ministério evangélico com católicos deve enfatizar a aplicação diária do
evangelho dada a sua necessidade constante de perdão. O cristão não deve
esperar para lidar de forma adequada com seu problema contínuo de pecado
acumulando pecados durante muito tempo (e. g., um ano inteiro) antes de
confessá-los. A confiança na divina promessa de que Deus é poderoso e justo
para perdoar pecados quando eles são confessados deve ser vivenciada de forma
concreta sempre que o pecado é exposto. Além disso, o ministério evangélico
não deve jamais apresentar a jornada cristã sob a fachada de uma vida perfeita.
Pelo contrário, o ministério evangélico com católicos deve ser modelo e defensor
da confissão e do arrependimento perenes.
São inúmeras as razões para a migração de evangélicos em direção ao
catolicismo, inclusive um desejo de se sentir conectado ao passado e de estar
organicamente relacionado à igreja dos tempos antigos, um desejo de unidade
entre os cristãos, um anseio por uma autoridade inconteste e o apelo do mistério
e da majestade da missa. Essas razões ressaltam o papel central que a realidade
da Igreja Católica desempenha em tais jornadas de fé. Elas também suscitam
outro conselho prático: os evangélicos envolvidos no ministério com católicos
precisam estar envolvidos em igrejas robustas que se caracterizem pela
orientação para a glória de Deus, igrejas que estejam centradas na Palavra de
Deus (entendida como a Palavra encarnada, Jesus Cristo; e Palavra inspirada, a
Escritura), animadas pelo Espírito e por ele revestidas de poder. Essas igrejas
centradas no evangelho rejeitam o entretenimento como forma de apelo para
atrair novas pessoas e não executam seus programas apenas por executar; evitam
a falsa fidelidade e obediência e, em vez disso, vivem na prática com alegre
submissão à autoridade da Escritura; dependem no mais alto grau da presença e
do poder do Espírito Santo por meio da oração; discipulam seus membros por
meio da pregação, do ensino, do cuidado pastoral, da vida comunitária,
mentoreando-os pessoalmente, e, pela disciplina da igreja; ministram as
ordenanças do batismo e da ceia do Senhor com seriedade de intenção e de
celebração daquilo que a morte de Cristo realizou, e assim por diante. Em muitas
conversas com ex-evangélicos, vêm à tona que sua experiência na igreja
evangélica foi supérflua e rasa. O ministério evangélico com católicos deve
reconhecer que tal participação superficial na igreja não segurará os evangélicos
em suas igrejas, acabando, inclusive, por incentivá-los a buscar comunhão,
unidade, autoridade e mistério em outro lugar — inclusive na Igreja Católica. O
ministério evangélico deve estar arraigado em igrejas evangélicas fortes.
Dois últimos conselhos práticos: em primeiro lugar, o ministério evangélico,
herdeiro que é da doutrina protestante do sacerdócio universal dos crentes, deve
encorajar os cristãos a participar da oração intercessora mútua, ouvir a confissão
de pecados uns dos outros e dar garantia do perdão de Deus, participar
missionalmente da causa de Cristo e ensinar e admoestar uns aos outros com o
evangelho. Viver a vida e participar do ministério juntos apresentará a fé
evangélica como algo distinto da realidade de sua congênere católica (ainda que
a teologia católica reconheça a importância do sacerdócio comum ou batismal de
todos os seus membros). Em segundo lugar, o ministério evangélico deve
acolher uma visão bíblica da vida com Deus acompanhada do florescimento
humano aliado à graça divina, ao perdão de Cristo e ao revestimento de poder do
Espírito; deve se empenhar com tudo o que é para tornar concreta essa visão,
com profunda consciência de como a Escritura e a teologia evangélica
participam tanto do respeito quanto da crítica à teologia e prática católicas.
CONHEÇA OUTRA OBRA DO AUTOR
Teologia Histórica
Um excelente recurso para entender o desenvolvimento da teologia cristã
nos últimos 2.000 anos.
Em Teologia histórica, Gregg Allison oferece a oportunidade de estudar o
desenvolvimento histórico da teologia, seguindo uma organização tópico–
cronológica e apresentando um elemento teológico por vez na história da
doutrina cristã. Essa abordagem permite que os leitores se concentrem em
apenas um princípio do cristianismo de cada vez, acompanhado de sua
formulação na igreja primitiva, na Idade Média, na Reforma, na era pós-Reforma
e no período moderno.
O livro também inclui um conjunto de fontes primárias, com citações de
Cipriano, Agostinho, Tomás de Aquino, Lutero, Calvino, Barth e outros. Allison
faz referência às edições mais acessíveis da obra desses teólogos notáveis para
que os leitores possam continuar seu estudo da teologia histórica com aqueles
que contribuíram de forma muito significativa para a história cristã.
Esta obra foi composta em Adobe Caslon Pro,
impressa em papel off-set 63 g/m2, com capa dura,
na Imprensa da Fé, em maio de 2018.
Gregg R. Allison (PhD, Trinity Evangelical Divinity School) é professor de
Teologia Sistemática no Southern Baptist Theological Seminary, em Louisville,
Kentucky. Lecionou Teologia e História da Igreja por quase uma década no
Western Seminary, em Portland, Oregon. Foi também professor adjunto da
Trinity Evangelical Divinity School, da Elgin Community College, da Judson
College, do Institute of Biblical Studies in Western Europe and the United States
e do Re:Train. É pastor da igreja Sojourn Community Church e estrategista
teológico da Sojourn Network, rede de plantação de igrejas composta por
aproximadamente 30 igrejas locais. É autor de Teologia histórica: uma
introdução ao desenvolvimento da doutrina cristã (Vida Nova).
Com profundidade e clareza características, Gregg Allison conduz o leitor à
intersecção entre catolicismo e protestantismo e analisa o que há de comum e de
diferente entre os dois sistemas teológicos. Além de proporcionar um insight
indispensável ao tema, esse livro é exemplo do tipo de abordagem cordial e
sensata extremamente necessária ao diálogo hoje.
Chris Castaldo, diretor do Ministry of Gospel Renewal, da Wheaton
College, e autor de Talking with Catholics about the gospel
Protestantes e católicos precisam inventar um novo tipo de relacionamento. O
fogo e a espada da era da Reforma não foram dignos de Cristo, assim como os
esforços precipitados de líderes irresponsáveis no século passado de negar que
jamais houve, de fato, discordância entre nós. Será possível pregarmos diferentes
perspectivas do evangelho e ainda amarmos uns aos outros? Se assim for, como
entender essa relação no plano espiritual e eclesiástico? Com esmero sistemático
digno de um Tomás de Aquino, Gregg Allison expõe as dificuldades teológicas
em jogo. O autor nos apresenta um panorama completo das questões que nos
desafiam, e seu compromisso de amar de forma irrestrita os católicos enquanto
lhes diz a verdade nos mostra como lidar com os conflitos de maneira digna de
Cristo. O leitor só terá a ganhar com o estudo diligente apresentado nesse livro.
Greg Forster, diretor do programa Kern Family Foundation e autor de Joy
for the world
Uma avaliação evangélica muito útil do catolicismo romano. Ao contrário de
tantos outros livros sobre o assunto, a obra não se detém simplesmente nos
pontos em que há diferenças, estendendo-se por toda a vastidão do ensino
católico romano.
Anthony S. Lane, professor de Teologia Histórica da London School of
Theology e autor de Exploring Christian doctrine

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