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e prática da
IGREJA CATÓLICA ROMANA
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Angélica Ilacqua CRB-8/7057
Allison, Gregg R.
Teologia e prática da Igreja Católica Romana: uma avaliação
evangélica / Gregg R. Allison; tradução de A. G. Mendes.
– São Paulo: Vida Nova, 2018.
496 p.
Bibliografia
ISBN 978-85-275-0762-2
Título original: Roman Catholic theology and practice
1. Igreja Católica – Teologia dogmática 2. Igreja Católica – Usos e costumes 3. Evangelicalismo I.
Título II. Mendes, A. G.
17-0721 CDD 282
Gregg R. Allison
Teologia e prática da
IGREJA CATÓLICA ROMANA
uma avaliação evangélica
Tradução
A. G. Mendes
©
2014, de Gregg R. Allison
Título do original: Roman Catholic theology and practice: an Evangelical assessment, edição publicada
pela CROSSWAY (Wheaton, Illinois, Estados Unidos).
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por
SOCIEDADE RELIGIOSA EDIÇÕES VIDA NOVA
Rua Antônio Carlos Tacconi, 63, São Paulo, SP, 04810-020
vidanova.com.br | vidanova@vidanova.com.br
1.a edição: 2018
Proibida a reprodução por quaisquer meios,
salvo em citações breves, com indicação da fonte.
Todas as citações bíblicas sem indicação da versão foram traduzidas diretamente da English Standard
Version. As citações bíblicas em trechos do Catechism of the Catholic Church foram traduzidas da Revised
Standard Version (RSV) e da New Revised Standard Version (NRSV) ou extraídas da Almeida Século 21
(A21).
_________________________
DIREÇÃO EXECUTIVA
Kenneth Lee Davis
GERÊNCIA EDITORIAL
Fabiano Silveira Medeiros
EDIÇÃO DE TEXTO
Aldo Menezes
PREPARAÇÃO DE TEXTO
Marcia B. Medeiros
REVISÃO DE PROVAS
Josemar de Souza Pinto
GERÊNCIA DE PRODUÇÃO
Sérgio Siqueira Moura
DIAGRAMAÇÃO E CAPA
OM Designers Gráficos
_________________________
Dedico Teologia e prática da Igreja Católica Romana a inúmeras pessoas
que exerceram uma influência profunda e duradoura sobre minha vida: R OY
A , meu querido pai, uma grande dádiva de Deus para mim e que de
LLISON
que me discipulou nos anos que passei na universidade e que sacrificou seu
sonho pessoal por minha causa, para que eu pudesse crescer; W G , a AYNE RUDEM
quem Deus usou para fazer de mim o teólogo que sou, totalmente
comprometido com a veracidade e a clareza da Escritura; G B ERRY , que
RESHEARS
I
A teologia católica de acordo com o
Catecismo da Igreja Católica
PRIMEIRA PARTE:
A PROFISSÃO DA FÉ
II
A teologia católica de acordo com o
Catecismo da Igreja Católica
SEGUNDA PARTE:
A CELEBRAÇÃO DO MISTÉRIO CRISTÃO
III
A teologia católica de acordo com o
Catecismo da Igreja Católica
TERCEIRA PARTE:
A VIDA EM CRISTO
as habilidades que nos foram dadas por Deus. Ao refletir Deus (manifestando
vislumbres do seu caráter) e representá-lo (por meio do estabelecimento da
família e da edificação da civilização), participamos do mais excelente dos
propósitos: glorificar a Deus.
Como portadores da imagem divina, nascemos dotados de um senso inato de
Deus (At 17.22-34), testemunhamos seu poder eterno e sua natureza divina por
meio do que observamos na ordem criada (Rm 1.18-25), testemunhamos
também da sua bondade graças ao cuidado da sua providência que nos sustenta
(At 14.8-18) e temos um sentimento intuitivo do certo e do errado pela
consciência (Rm 2.12-16). Por esses modos de revelação geral, sabemos que
Deus existe, conhecemos um pouco dos seus atributos e alguns princípios morais
que nos tornam responsáveis perante ele. Diante dessa revelação universal de
Deus, devemos adorá-lo e honrá-lo como Deus, dar-lhe graças e depender dele
para nossa existência, obedecendo ao senso moral do nosso coração.
Tragicamente, todos os portadores da imagem de Deus caíram em pecado e
vivem em um mundo que não é como deveria ser. Pessoalmente, estamos aquém
da glória de Deus (Rm 3.23); isto é, não adoramos e honramos a Deus como
deveríamos, não lhe agradecemos nem dependemos dele como deveríamos, e
não obedecemos (em geral, nem sempre) a nosso senso moral acerca do que é
certo, evitando fazer o que nossa percepção moral nos diz que é errado,
conforme deveríamos. Tudo isso evidencia nosso distanciamento de Deus.
Contudo, nossa queda não termina aqui: também estamos afastados de outros
seres humanos, absortos em nós mesmos, em vez de estar preocupados com os
outros, competimos com eles e deixamos de cultivar um bom relacionamento.
Além disso, somos desatentos em relação a nós mesmos, nosso entendimento se
obscureceu em busca de coisas que jamais nos satisfarão, a ponto de nos
enganarmos.
Na verdade, talvez nem sequer estejamos cientes da nossa situação atual de
pecaminosidade: nossa consciência talvez esteja anestesiada; quem sabe nos
julguemos moralmente justos em comparação com outros que são piores do que
nós; talvez nos entreguemos às boas obras (o que não significa necessariamente
que sejamos religiosos; no entanto, ser religioso e pertencer a uma comunidade
de fé que enfatiza a prática do bem contribui para isso), levando-nos a concluir
que ganhamos o favor divino. Bem lá no fundo, porém, sabemos que não está
tudo bem conosco: temos uma percepção confusa da nossa hipocrisia e, embora
esperemos que Deus nos seja favorável e aprecie nossas boas obras, suspeitamos
— e com razão — que um Deus perfeitamente santo e justo não nos avaliará
com base no volume positivo de boas obras que tivermos feito, e que até mesmo
a realização humana mais extraordinária, para não falar dos esforços mais
insignificantes da maioria dos seres humanos, de nada valerão diante de um
Deus perfeito. Portanto, não estamos em uma situação confortável, tampouco em
uma situação neutra; pelo contrário, nossa situação é terrível. Entramos neste
mundo sobrecarregados pelo pecado original e manifestamos essa realidade pela
vida toda: culpados diante de Deus, totalmente corruptos em nossa natureza (na
mente, nas emoções, na vontade, no corpo, nas motivações, em nossos
propósitos — tudo está desfigurado), e incapazes de sanar nossa culpa e de
reorientar nossa natureza pecaminosa tirando-a de seu estado de egoísmo e
levando-a para que se concentre em Deus, da vida do eu para a vida com Deus. 8
Neste mundo trágico de seres humanos decaídos, Deus interveio para resgatar
os portadores de sua imagem. No âmago da redenção em Jesus Cristo, o eterno
Filho de Deus, por meio de um milagre operado pelo Espírito Santo, foi
concebido pela virgem Maria e se fez carne (Mt 1.18-25; Lc 1.26-38), assumindo
a natureza humana (Fp 2.5-7). Como Deus-homem, Jesus viveu uma vida
perfeita sob a lei de Deus (Gl 4.4), fez milagres para mostrar sua divindade, 9
A justificação é o ato de poder por meio do qual Deus declara que o pecador
não é culpado, justificando-o, perdoando seus pecados e atribuindo a ele a justiça
de Cristo. A justificação está alicerçada na graça de Deus alcançada por meio da
morte expiatória de Cristo mediante a qual Deus, em sua justiça, proclama que a
penalidade pelo pecado foi paga e, portanto, o pecador não é culpado (Rm 3.25).
Em vista da exigência divina de retidão perfeita, a perfeita retidão de Jesus
Cristo, conquistada por sua obediência na vida e na morte, é atribuída ao
pecador. Esse ato declaratório não se baseia em qualquer bondade inerente ou
justiça pessoal alcançada pelos seres humanos decaídos (Rm 3.19-22) e não os
torna efetivamente justos; pelo contrário, a justiça de Jesus Cristo é apropriada
pela fé (Gl 2.15,16), e o pecador é justificado completamente, de tal modo que
jamais terá de enfrentar a condenação divina (Rm 8.1).
A adoção é a obra de poder por meio da qual Deus leva o pecador à sua
família e o acolhe como filho (Ef 1.5).
A união com Cristo é o ato de poder multifacetado do qual fazem parte os
crentes que estão em Cristo (Rm 6.1-11), ou que se identificam com sua morte,
ressurreição e ascensão; estando Cristo em seus seguidores (Gl 2.20); e sendo
todos os crentes um em Cristo (Jo 17.21-23).
Todos esses atos de poder de Deus — eleição, convicção do pecado, chamado
eficaz, regeneração, justificação, adoção e união com Cristo — se concretizam
no início da obra graciosa de salvação de Deus. A resposta humana a essa ação
multifacetada é a conversão, que implica ouvir e compreender a mensagem do
evangelho, arrependimento do pecado (dar-lhe as costas, renunciar a ele,
comprometendo-se a não viver mais em pecado; Lc 24.46,47; At 17.30) e fé
(crer que Cristo morreu pelos seus pecados, confiar em sua obra de salvação e
abandonar todo esforço humano, confiando em Cristo e em Cristo somente; Ef
2.8,9; Rm 10.9). Arrependimento e fé não são obras humanas, tampouco
respostas meramente humanas. Como virtudes evangélicas, estão atreladas ao
evangelho e são, portanto, inspiradas pela graça (At 18.27) e motivadas pelos
mensageiros do evangelho (1Co 3.5; 2Co 5.17-21). Contudo, constituem a
resposta humana adequada e necessária ao evangelho. De fato, sem
arrependimento e fé genuínos, não pode haver salvação.
A salvação, entretanto, é muito mais do que assunto individual, porque as
obras poderosas de Deus que resgatam o ser humano decaído também conduzem
os redimidos à igreja. O ato de poder específico nesse caso é o batismo com o
Espírito: Jesus batiza (Jo 1.33) os novos crentes com o Espírito Santo (Lc 3.15-
17), acolhendo-os em seu corpo, a igreja (1Co 12.13). O cristão está unido à
igreja universal e à igreja local.12
No decorrer da jornada do cristão pela vida, ele espera por vários outros atos
de poder de Deus tanto no plano pessoal quanto no cósmico. Pessoalmente, à
medida que envelhece, sofre, adoece e se aproxima inexoravelmente da morte,
ele antevê com alegria, e sem sucumbir ao medo, sua chegada ao lar. A chegada
ao lar é o ato de poder de Deus no final da vida pelo qual o cristão se desprende
do corpo e vai viver com o Senhor. Ele passa imediatamente desta vida terrena
para a presença de Deus, apesar de estar sem corpo (2Co 5.1-10).
Consequentemente, ele espera ansiosamente pelo próximo ato de poder de Deus,
sua glorificação, que é o término da sua salvação quando Cristo retornar (Fp
3.20,21). A glorificação se caracteriza pela ressurreição do corpo; o cristão sem
corpo recebe seu corpo glorificado — imperecível, glorioso, poderoso e
totalmente dominado pelo Espírito Santo (1Co 15.42-44).
Cosmicamente, a consumação da presente era começará com o retorno de
Jesus Cristo. Ao descer do céu, acompanhado de seu povo fiel, o Rei dos reis e
Senhor dos senhores esmagará seus inimigos e se manifestará como o
Governante supremo (Ap 19). Dependendo da sua escatologia (visão do futuro),
o cristão acredita que o Governante supremo reinará por mil anos — durante o
milênio (Ap 20.1-6) — na terra antes de inaugurar o novo céu e a nova terra, ou
que imediatamente depois do seu retorno triunfante ele estabelecerá o novo céu e
a nova terra. Na esteira desses eventos cósmicos virão outros atos de poder de
Deus: o juízo final (At 17.30,31), em que Deus avaliará as obras de todos (2Co
5.10) e manifestará sua justiça recompensadora, premiando as boas obras, ou sua
justiça retributiva, condenando as más obras, o que culminará com o castigo
eterno dos ímpios (Mt 25.46). O último ato de poder de Deus consistirá na
remoção do céu e da terra como hoje existem e de tudo o que eles contêm (2Pe
3.10), dando lugar a um novo céu e uma nova terra (Ap 21 e 22) em que não
haverá mais pecado, sofrimento, doenças e morte. Os seres humanos redimidos,
plenamente renovados à imagem de Deus, habitarão ali para sempre, adorando o
Senhor.
teologia católica] como catolicismo romano, isto é, uma religião que desfruta, ou
diz desfrutar, de amplitude e visão católicas, além de especificidade institucional
e histórica”.17
que “a unidade católica pode ser alcançada, deve ser alcançada e, no fim das
contas, será alcançada por obra do sistema” assume o controle e se torna o
objetivo do sistema, com a chave dessa unidade — a Igreja Católica — em seu
centro.20
A interdependência natureza-graça
De Chirico define dois conceitos principais da natureza e graça: “No vocabulário
cristão, a natureza é considerada o equivalente ao mundo criado em sua
totalidade, que é tanto resultado da atividade criadora de Deus quanto recipiente
de seus propósitos salvíficos. No que diz respeito a esse último, as interações de
Deus com o mundo (i. e., com a natureza) foram entendidas teologicamente sob
o aspecto da ‘graça’. Graça é o que Deus faz em relação ao mundo, tanto no que
se refere à providência quanto à redenção”. Em outras palavras, a natureza,
28
Para dar um exemplo simples, a água (no reino da natureza) pode receber e se
tornar um canal de graça quando, consagrada pela Igreja Católica, é usada para o
sacramento do batismo, que confere graça aos que o recebem. De fato, George
Weigel afirma que “é por intermédio do material comum da vida — o material
dos sete sacramentos, tal como o pão, o vinho, o óleo e a água — que a graça
extraordinária de Deus entra na história, alimenta os amigos de Jesus e lhes dá
poder em seu discipulado missionário”. 31
termos, na queda de Adão e Eva, uma das consequências daquele trágico evento
foi o abalo dessa interdependência original natureza-graça. É importante
destacar, entretanto, que, embora desfigurada pelo pecado, a natureza maculada
ainda é capaz de receber e transmitir a graça e cooperar com ela. O sistema
teológico católico tem dois polos, natureza e graça, e situa o pecado (levado a
sério por esse sistema) na esfera da natureza, relativizando desse modo os efeitos
negativos do pecado sobre a natureza:
Natureza e graça são os dois elementos constitutivos do sistema católico, sendo
o pecado um elemento secundário sério, mas não devastador. A natureza, embora
ferida pelo pecado, conserva uma capacidade para a graça, e a graça eleva ou
aperfeiçoa a natureza. As duas continuam a operar de forma interdependente.
33
A teologia evangélica, por sua vez, tem três polos: Criação, Queda/pecado e
redenção/graça: 34
Nesse sistema, o pecado é levado mais a sério, e seu impacto corruptor sobre a
criação não é atenuado pelo fato de ser parte da natureza: “A natureza não é mais
algo simples, nem mesmo uma natureza intrinsecamente dotada de graça; ela é
sempre uma natureza drasticamente subvertida e que precisa ser restaurada pela
graça. Nessa perspectiva, a natureza teria passado por uma ruptura radical por
ocasião da Queda e, em sua perspectiva pós-Queda, que é o único contexto
historicamente real em que a criação se encontra, ela não pode ser outra coisa, a
não ser natureza decaída”. A teologia evangélica tem efetivamente três
35
[...] no sentido de que na natureza ele encontra uma atitude receptiva e possíveis
recursos aos quais pode recorrer em sua operação. A natureza sempre participa
da graça, ao passo que a graça sempre pressupõe a habilidade ad intra [a partir
de dentro; inerente] da natureza de ser tocada por ela e de cooperar com ela [...].
A continuidade entre natureza e graça permite o [...] mútuo envolvimento entre
as forças da natureza e as forças da graça. De acordo com o sistema católico
romano, a metodologia da graça requer sempre a participação da natureza e a
colaboração ativa desta última [natureza] na obra daquela [graça]”. 41
(em seu estado de criação original) que exerce uma influência controladora
sobre seus sentimentos/paixões e desejos físicos.
Doutrina do pecado: a teologia católica acredita que, com a introdução do
pecado, a estrutura original da natureza humana foi corrompida, e os
aspectos da natureza de Adão e Eva usurparam o papel da razão. Contudo,
o sistema católico não acredita que o impacto do pecado seja tão devastador
que a natureza humana tenha perdido sua capacidade para a graça.
Doutrina da salvação: para a teologia católica, o processo pelo qual Deus
resgata o ser humano decaído é sinergético, isto é, há um esforço de
cooperação entre a graça divina e o empenho humano (reino da natureza),
auxiliado pela graça, num trabalho conjunto que faz por merecer a vida
eterna. Além disso, para a teologia romana a operação da salvação consiste
na infusão da graça divina sobre as pessoas, por meio da qual sua natureza é
transformada. Esse ponto está em sintonia com a compreensão católica do
objetivo da salvação como deificação, ou o processo pelo qual a natureza
humana, pela graça, se torna cada vez mais semelhante a Deus. Se esse
processo for interrompido pela prática de pecado mortal, poderá ser
reiniciado mediante o sacramento da penitência, por meio do qual a graça é
infundida novamente para o aperfeiçoamento da natureza humana. Por fim,
se esse processo não for concluído nesta vida terrena, isto é, se a graça não
tiver elevado plenamente a natureza humana à perfeição antes da morte, a
existência depois da morte no purgatório promete concluir o procedimento
de purificação.
Teologia sacramental: o catolicismo afirma que os elementos criados na
natureza — por exemplo, a água, o óleo, o pão e o vinho — têm o poder de
transmitir a graça divina pela ministração do batismo, da confirmação e da
eucaristia. Além disso, esses elementos (reino da natureza), quando
consagrados (reino da graça), são eficazes para a transmissão da graça ex
opere operato, isto é, simplesmente por serem sacramentos. A eucaristia
também confere incorruptibilidade ao corpo e, desse modo, é prenúncio da
ressurreição. Por fim, para a teologia católica, o pão e o vinho (reino da
natureza) são oferendas feitas a Deus por meio da igreja (reino da graça).
Eclesiologia: para o sistema católico, a graça deve ser expressa
concretamente na natureza, e a expressão mais elevada da graça (depois de
Jesus Cristo) é a Igreja Católica. Observa-se de maneira especial esse
aspecto na associação que a igreja faz entre o perdão de pecados e seu
sacerdócio. Na verdade, pelo sacramento da ordem, o homem (reino da
natureza) é consagrado para que possa administrar os sacramentos (reino da
graça).
Hierarquia: a Igreja Católica se caracteriza pela hierarquia, especificamente
entre os leigos (na extremidade inferior) e o clero (na extremidade
superior). Há também uma estrutura hierárquica no clero entre diáconos (na
extremidade inferior), padres (no meio) e bispos (na extremidade superior).
Há também uma hierarquia geralmente explícita entre os fiéis (na
extremidade inferior), os religiosos (no meio) e os santos (na extremidade
superior).
Teologia moral: a teologia católica acredita que as quatro virtudes cardeais
humanas (reino da natureza) — prudência, temperança, fortaleza, justiça —
são compreendidas, apreciadas e praticadas pelos seres humanos
independentemente da graça, que opera não para criar, mas para purificar e
elevar essas virtudes. Ela também enfatiza que a lei natural — uma lei
derivada do reino da natureza humana e dada a conhecer aos seres humanos
pela razão e que os capacita a distinguir o certo do errado — ainda opera,
apesar do pecado da humanidade, de modo mais ou menos intacto para
orientar as escolhas do ser humano.
Doutrina de Maria: “A mariologia é expressão [...] das características
quintessenciais do tema natureza-graça católico romano”. Maria, como ser
45
Avaliação evangélica
Todas as doutrinas e práticas supracitadas serão avaliadas no momento oportuno
no restante deste livro, contudo avaliaremos agora o primeiro pilar sobre o qual
se acham erigidas: a interdependência natureza-graça.
A teologia evangélica discorda veementemente da teologia católica no que diz
respeito à interdependência natureza-graça. Uma objeção diz respeito ao
conceito do sistema católico de natureza que, na visão evangélica, deve mais à
tradição filosófica — ao neoplatonismo no âmago da teologia de Agostinho; à
filosofia aristotélica, à qual a teologia de Tomás de Aquino se achava associada
— do que à Escritura. Como a teologia católica define “natureza”
filosoficamente, em vez de extrair esse conceito da Escritura, para a teologia
evangélica tal ideia de natureza se acha fundamentalmente equivocada. “O
enfoque sistêmico evangélico sublinha o fato de que a edificação de todo um
sistema sobre a natureza definida dessa maneira constitui um defeito estrutural
do sistema católico romano, que fica evidente em todas as expressões do sistema
e caracteriza seu aspecto geral.” 46
Sujeitados à futilidade por Deus como castigo pelo pecado humano (Rm 8.20-
22), o reino da natureza se torna um lugar amaldiçoado. O único lugar em que
Adão e Eva poderiam ter encontrado refúgio da ruína — o jardim do Éden —
fecha-lhes a porta e lhes veda a entrada: “E havendo [Deus] expulsado o homem,
pôs a leste do jardim do Éden os querubins e uma espada flamejante que se
revolvia por todos os lados, para guardar o caminho da árvore da vida” (Gn
3.24). De acordo com nossa terminologia, se o jardim do Éden representa a
interdependência natureza-graça, os seres humanos pós-Queda se acham
efetivamente separados dele, vivendo em vez disso no exílio, no deserto, numa
terra desolada e, por eles mesmos, arruinada.
Além disso, a Escritura continua a enfatizar a descontinuidade, e não a
continuidade, entre o reino da natureza e o reino da graça na descrição que João
faz da recepção dada pela criação ao seu Criador, a Palavra de Deus, que é vida e
luz do mundo: “Pois a verdadeira luz, que ilumina a todo homem, estava
chegando ao mundo. Ele estava no mundo, e este foi feito por meio dele, mas o
mundo não o reconheceu. Ele veio para o que era seu, mas os seus não o
receberam. Mas a todos que o receberam, aos que creem no seu nome, deu-lhes a
prerrogativa de se tornarem filhos de Deus; os quais não nasceram do sangue,
nem do desejo da carne, nem da vontade da carne, mas de Deus” (Jo 1.9-13).
Jesus Cristo, a Palavra de Deus que se fez carne, aquele por meio de quem
vieram “graça e verdade” (v. 17), foi rejeitado pelo mundo por ele criado, mais
especificamente por seu próprio povo, os judeus. Mais uma vez, para usar nossa
terminologia, o reino da natureza não conta com nenhuma capacidade inerente
para Deus; mais do que isso, o reino da natureza agraciada, o povo privilegiado
de Deus, não possui nenhuma capacidade intrínseca para Deus. A única
esperança de socorro desse pesadelo sombrio e devastador é o novo nascimento,
nascer de Deus, o que não tem conexão ou continuidade alguma com o
relacionamento familiar, com a herança (inclusive judaica) ou com a volição
humana. Somente por um ato externo de Deus — o Verbo-Criador que veio até
sua criação hostil e ao povo que não o recebeu — e mediante uma obra radical
de recriação, podem os seres humanos pecaminosos desfrutar da graça de Deus.
O exemplo por excelência dessa obra radical de salvação não é a preparação
da natureza para a graça que é, em seguida, elevada até ela; não, o exemplo é
Abraão (Rm 4.17-22). Esse descrente de Ur, chamado pelo único Deus
verdadeiro do paganismo idólatra, creu na promessa divina quando ainda não era
circunciso e antes que as obras da lei fossem possíveis. Por conseguinte, a graça
resgatou Abraão tirando-o da natureza; ela não o refez a partir do interior da
natureza. Além disso, a promessa graciosa de um filho por meio do qual Abraão
49
se tornaria “pai de muitas nações” (v. 17) não tem contrapartida em sua natureza
e tampouco na natureza de sua mulher — “e, sem enfraquecer na fé, considerou
que seu corpo já não tinha vitalidade (pois já contava cem anos), e o ventre de
Sara já não tinha vida” (v. 19). Pelo contrário, a graça operou independentemente
da natureza e Abraão creu em Deus “que dá vida aos mortos e chama à
existência as coisas que não existem” (v. 17). Para usar nossa terminologia, a
natureza é morta e inexistente em relação à graça; mas a graça de Deus levanta
os mortos e cria uma nova criação.
Essa ênfase na recriação pela graça — e não na graça que encontra uma
capacidade na natureza, sua contrapartida, renovando-a — tem respaldo nos
capítulos finais da Escritura, na visão do novo céu e da nova terra por vir (Ap 21
e 22). Não há dúvida de que a consumação da presente era requer a renovação do
Universo inteiro (Sl 102.25-27; Rm 8.21; 1Co 7.31); entretanto, em vez de
compreender esse projeto de renovação no sentido de uma continuidade — em
que a graça retrabalha a natureza —, deve-se entendê-lo, conforme outras
passagens bíblicas, como uma renovação pela destruição da realidade atual: “Os
céus e a terra de agora têm sido guardados para o fogo, reservados para o dia do
juízo e da destruição dos homens ímpios. [...] Contudo, o dia do Senhor virá
como ladrão, no qual os céus passarão com grande estrondo, e os elementos,
queimando, se dissolverão, e a terra e as obras que nela há serão descobertas”
(2Pe 3.7,10). A substituição dessa realidade antiga radicalmente queimada é “um
novo céu e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra já se foram, e o
mar já não existe” (Ap 21.1). Além disso, o novo lugar da humanidade redimida
não será um espaço renovado feito da natureza terrena, mas “a nova Jerusalém,
que [desce] do céu” (v. 2,10).
Em suma, por motivos teológicos e bíblicos, a teologia evangélica discorda do
axioma do sistema teológico católico do continuum natureza-graça. Como esse
princípio é fundacional para o sistema todo, sua manifestação arruinará doutrinas
e práticas específicas, conforme ficará demonstrado em boa parte deste livro,
bem como na crítica aqui apresentada. Esse axioma, porém, é apenas o primeiro
de dois pilares do sistema católico, e é para esse segundo elemento que agora
voltamos nossa atenção.
A interconexão Cristo-Igreja
Dando continuidade à apresentação do sistema católico composto, conforme De
Chirico, por dois pilares, passamos agora ao segundo: a compreensão que tem a
Igreja Católica de si mesma como continuação da encarnação de Jesus Cristo. O
axioma está conectado ao primeiro da seguinte forma: “Entre as ordens da
natureza e da graça, há necessidade de um tema mediador que represente a
natureza para a graça e a graça para a natureza, de modo que a natureza seja cada
vez mais e mais completamente agraciada e a graça acabe por atingir seu
objetivo final de elevação da natureza. Essa mediação é a raison d’être [razão de
ser] da Igreja Católica Romana e tipifica o papel principal da igreja dentro do
sistema católico romano mais amplo”. A função de mediação da Igreja Católica
50
conceito do corpo místico de Cristo que faz a mediação entre a presença divina e
a graça.
Como respaldo final da atividade mediadora da Igreja Católica, a teologia
católica se volta para o conceito de igreja como sacramento, uma categoria que é
“da máxima importância quando se lida com a relação profundamente
misteriosa, ainda que de vital importância, entre Cristo e a igreja” como
encarnação contínua de Cristo. De acordo com o Concílio Vaticano II, “a igreja,
63
Avaliação evangélica
Cada uma das doutrinas e práticas listadas acima serão avaliadas no devido
tempo no restante deste livro, porém a avaliação do segundo pilar sobre o qual
elas são construídas, a interconexão Cristo-Igreja, será feita agora.
A teologia evangélica discorda veementemente do conceito da Igreja Católica
de que ela é o prolongamento da encarnação do Cristo que subiu ao céu. Tal
formulação postula a continuação entre a encarnação do Filho de Deus, Jesus
Cristo, e a igreja como prolongamento dessa encarnação muito mais do que é
possível justificar. A encarnação da segunda pessoa da Trindade foi um evento
único: não houve prefiguração dela no Antigo Testamento, assim como
68
católico deva levar em conta a alegação do sistema de manter sob tensão o que
parecem ser princípios mutuamente contraditórios de mediação — a mediação
exclusiva de Cristo é realizada por meio da mediação partilhada da igreja —, a
teologia evangélica tem muita dificuldade em entender essa conjunção. Sua
crítica se preocupa com os dois axiomas que dão sustentação a esse conceito
católico de função mediadora da igreja: o continuum natureza-graça está errado,
e o entendimento que a igreja tem de si mesma como extensão da encarnação
está equivocado. E, nesse caso, duas coisas erradas postas juntas não fazem uma
certa. Portanto, a teologia evangélica vive com base no solus Christus
protestante — somente Cristo, e não Cristo mais a igreja.
A teologia evangélica faz uma crítica semelhante da teologia católica de
Maria, que é um exemplo particular de uma expressão mais geral da mediação
da igreja na operação da graça para salvação. Mais uma vez, os dois axiomas do
sistema católico servem de suporte para a elevação de Maria a medianeira. A
natureza tem uma capacidade para a graça; portanto, quando a natureza humana
de Maria foi preservada do pecado por meio de sua concepção imaculada (uma
obra da graça), e por ela não ter pecado graças à sua obediência à fé suscitada
pela graça, Maria se tornou a medianeira da graça pela graça, que está encarnada
na natureza (humana). Além disso, como a igreja é a mediadora entre a natureza
e a graça, e Maria se relaciona com a igreja na condição de sua mãe, disso se
segue que ela é membro fundamental na mediação da graça para a natureza.
Contudo, objeta a teologia evangélica, a mariologia está fundamentada nos
axiomas equivocados do continuum natureza-graça e na compreensão que a
igreja tem de si mesma como extensão da encarnação de Jesus Cristo. Por
conseguinte, Cristo, e somente Cristo, é o mediador entre Deus e o homem,
graça e natureza.
Conclusão
Este capítulo tratou de quatro assuntos importantes: (1) esboçou a estratégia
interpretativa em relação à Escritura e recorreu a um método gramático-
(salvífico)-histórico-tipológico que será o método para a compreensão da
Escritura usado nesta avaliação evangélica. (2) Descreveu uma expressão típica
da teologia evangélica — chamada de visão de vida com Deus e desabrochar
humano — que será a estrutura teológica geral empregada nesta avaliação
evangélica. (3) Buscou uma estratégia para a compreensão e avaliação da
teologia católica considerando-a como um sistema coerente e abrangente
baseado em dois princípios fundacionais. (4) Avaliou, por meio dessa estratégia,
esses dois axiomas — a interdependência natureza-graça e a interconexão
Cristo-Igreja — com uma crítica geral.
O restante deste livro será uma avaliação da teologia católica e da prática do
amplo sistema católico, com base na Escritura e na teologia evangélica.
1
A Bíblia da Igreja Católica Romana contém mais livros do que a Bíblia dos protestantes/evangélicos.
Para uma discussão mais ampla da hermenêutica evangélica, veja Grant R. Osborne, The hermeneutical
spiral: a comprehensive introduction to biblical interpretation, ed. rev. ampl. (Downers Grove: IVP
Academic, 2006) [edição em português: Espiral hermenêutica: uma nova abordagem à interpretação
bíblica (São Paulo: Vida Nova, 2009)]; William W. Klein; Craig L. Blomberg; Robert L. Hubbard, Jr.,
Introduction to biblical interpretation (Dallas: Word, 1993); Robert L. Plummer, 40 Questions about
interpreting the Bible (Grand Rapids: Kregel Academic & Professional, 2010) [edição em português: 40
questões para se interpretar a Bíblia (São José dos Campos: Fiel, 2017)].
2
Por exemplo, na história da conversão do eunuco etíope (At 8.26-40), temos a apresentação dos
personagens (v. 26-28) ou a exposição dos personagens principais (o eunuco, Filipe, um anjo do Senhor/o
Espírito Santo) e o cenário da narrativa (na estrada a caminho de Gaza, um local deserto); a ação crescente
(v. 29-33), incluindo-se aí a direção do Espírito dada a Filipe, a leitura de Isaías pelo eunuco, perguntas
sobre entendimento e interpretação e uma citação da Escritura; o clímax (v. 34,35), um crescendo dramático
que culmina com a comunicação do evangelho por Filipe; o decréscimo da ação (v. 36,38) centrada na
legitimidade do batismo seguido pelo batismo de fato do eunuco (o v. 37 é uma adição posterior e
desnecessária para efeito de esclarecimento); e a resolução (v. 39,40), ou a amarração dos vários fios (o
eunuco, Filipe e o Espírito Santo) para dar uma conclusão à história. Seguir o fluxo dessa narrativa é crucial
para o entendimento correto dessa passagem.
3
Por exemplo, compreender a história das religiões de mistério em Colossos é importante para
interpretar as advertências de Paulo sobre “os espíritos elementares do mundo” em sua carta aos colossenses
(Cl 2.8,20).
4
Por exemplo, os textos bíblicos sobre a construção do Templo de Salomão e a adoração no local devem
ser interpretados à luz de passagens anteriores (revelação antecedente) sobre a construção de altares e a
adoração feita neles pelos patriarcas e a construção e adoração no Tabernáculo pelo povo nômade de Israel.
Também devem ser entendidos como antecipação de passagens posteriores (revelação subsequente) sobre a
destruição do Templo, sua reconstrução depois do exílio, a insistência de Jesus de que se deve adorar em
espírito e em verdade (Jo 4.24), a igreja como templo do Espírito Santo (1Co 3.10-17) e Deus como templo
no novo céu e na nova terra (Ap 21.22).
5
Por exemplo, a ação de Moisés levantando a serpente no deserto é o tipo (Nm 21.9), e Jesus sendo
levantado na cruz é o antítipo (Jo 3.14,15).
6
Esses sentidos serão explicados e avaliados em discussão posterior.
7
O mandamento divino de Gênesis 1.28 é conhecido tradicionalmente como o “mandato cultural”, e o
começo do seu cumprimento é narrado em Gênesis 4.2,17-22 com referências ao pastoreio, à agricultura, à
construção de uma cidade, à criação de gado, participação em expressões artísticas e à fabricação de
ferramentas de metal.
8
A teologia evangélica faz referência a inúmeras variedades de pontos de vista sobre o pecado. Um
deles, por exemplo, é que o pecado de Adão é imputado a todos os seres humanos, portanto todos são
culpados do seu pecado; de acordo com outra visão, somente a natureza pecaminosa de Adão é herdada
pelos seres humanos. Um segundo exemplo trata da extensão e da intensidade do pecado original sobre a
natureza humana: uma perspectiva defende a depravação total e a total incapacidade, ao passo que outro
ponto de vista defende a depravação parcial e a inabilidade parcial.
9
Por exemplo, o quarto Evangelho apresenta sete sinais ou milagres que Jesus realizou para demonstrar
sua natureza divina (Jo 2.1-11; 4.46-54; 5.1-18; 6.1-15; 6.16-21; 9.1-41; 11.1-45); conforme João explica
perto do final do seu Evangelho, ele poderia ter registrado muitos outros sinais miraculosos (Jo 20.30),
porém “estes foram registrados para que possais crer que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que,
crendo, tenhais vida em seu nome” (Jo 20.31).
10
Essa perspectiva da eleição reflete a teologia reformada. Um ponto de vista diferente, defendido pela
teologia arminiana, considera que a eleição se baseia no conhecimento antecipado de Deus da resposta de
alguém ao arrependimento e à fé no evangelho para sua salvação, e a perseverança nessa salvação até o fim
da sua vida. Conhecendo antecipadamente tais realidades, Deus escolhe essas pessoas para que pertençam a
ele para sempre. Essa perspectiva da eleição é defendida por vários tipos de teologia evangélica.
11
A relação entre chamado eficaz, regeneração e conversão (a ser discutida em breve) é objeto de disputa
entre os vários tipos de teologia evangélica.
12
A apresentação a seguir é uma adaptação de Allison, SS, p. 29-32.
13
Outras variedades de teologia evangélica acreditam que é possível perder a salvação; portanto,
receberiam com ressalvas essa discussão sobre a certeza da salvação.
14
Edição em português: Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Loyola, 1999).
15
Leonardo De Chirico, Evangelical theological perspectives on post-Vatican II Roman Catholicism,
Religions and Discourse [daqui em diante De Chirico] (Bern: Peter Lang, 2003), vol. 19. Os teólogos
evangélicos com quem De Chirico interage são G. C. Berkouwer, Cornelius Van Til, David Wells, Donald
Bloesch, Herbert Carson e John Stott. As associações para o diálogo entre evangélicos e católicos com as
quais ele interage são a World Evangelical Fellowship e Evangelicals and Catholics Together. Por
atomismo, ele se refere “a uma estrutura epistemológica que favorece a análise de componentes, partes,
elementos de determinada realidade, sem avaliar de forma suficiente suas relações internas e seu elo
orgânico. Em suma, o atomismo é uma análise a que falta síntese, enfatiza os particulares, mas não dá conta
suficiente dos universais, enfatiza a importância dos aspectos particulares e subestima a relevância das
estruturas” (ibidem, p. 204).
16
Ibidem, p. 18.
17
Ibidem, p. 24.
18
Ibidem, p. 186.
19
Ibidem, p. 197.
20
Ibidem.
21
Ibidem, p. 199.
22
Ibidem, p. 201.
23
Ibidem.
24
Outra linha de evidência de que o catolicismo é um sistema é o fato de que foi contestado por um
movimento que, no fim, se tornou um sistema de oposição, coerente e abrangente — o protestantismo —
com axiomas próprios (o princípio formal do sola Scriptura; o princípio material da justificação pela graça
pela fé somente), suas marcas próprias da igreja verdadeira (pregação, sacramentos), suas confissões de fé
próprias etc.
25
De Chirico, p. 213, 218.
26
Cf. ibidem, p. 218.
27
O primeiro deles, que trata da relação entre natureza e graça, é o “alcance teológico” ou “horizonte
teológico” do sistema católico. O segundo elemento, que se debruça sobre a compreensão própria da igreja,
é o “principal ponto de referência teológica que determina a orientação e as expressões do sistema” (ibidem,
p. 219).
28
Ibidem.
29
De Chirico resume essas tipologias divergentes apresentadas em três polaridades: as tendências
dualistas da variedade rígida da tradição de Tomás de Aquino e as tendências holísticas do Surnaturel de
Henri de Lubac; a perspectiva essencialista da tradição patrística e as perspectivas
personalistas/existencialistas dos teólogos do século 20, bem como a tradição agostiniana e a tradição
tomista (que segue Tomás de Aquino) (ibidem, p. 222-9).
30
Conforme disse Aquino, “a graça não destrói a natureza; antes, ela a aperfeiçoa” (Thomas Aquinas,
Summa theologica, pt. 1, q. 1, art. 8 [edição em português: Tomás de Aquino, Suma teológica (São Paulo:
Loyola, 2001), 9 vols.]).
31
George Weigel, Evangelical Catholicism: deep reform in the 21st-century church (New York: Basic,
2013), p. 44. Em outro lugar, Weigel afirma que “o sistema sacramental da igreja leva muito a sério as
coisas do mundo e das relações humanas, vendo nelas veículos da graça divina” (ibidem, p. 47; cf. p. 63-4).
32
De Chirico, p. 236.
33
Ao tratar do conceito da teologia católica de que, mesmo antes da Queda, a razão em Adão e Eva tinha
uma função de controle sobre suas paixões e seus desejos físicos, a teologia evangélica pressente que há
alguma coisa fora de ordem: a natureza humana, embora não tivesse pecado quando foi criada, era, não
obstante, imperfeita ou, no mínimo, não desfrutava de um estado de integridade. O pecado, portanto, é um
transtorno no âmago da natureza, e não um rompimento radical com ela; a natureza já manifestava ou
havia sido preparada para um continuum natureza-pecado. Por conseguinte, o cenário está parcialmente
disposto para a aceitação, por parte da teologia católica, do pecado como um elemento secundário sob a
égide do elemento primário da natureza. A visão da teologia católica do estado original do ser humano antes
da Queda será discutida e avaliada posteriormente.
34
Algumas abordagens evangélicas acrescentariam um quarto elemento. O símbolo φ representa o caso
nulo; isto é, a teologia evangélica não tem elementos secundários. Especificamente, ela não considera o
pecado um elemento secundário, e sim primário.
35
De Chirico, p. 236.
36
Ibidem, p. 237.
37
Ibidem, p. 236. De Chirico classifica corretamente essa discussão do grave impacto do pecado sobre a
criação/natureza assinalando que a teologia evangélica também acolhe duas outras doutrinas que dizem
respeito a esse tópico: em primeiro lugar, a graça comum é concedida por Deus para preservar a criação e
encorajar a edificação da civilização, a despeito da corrupção generalizada introduzida pela Queda e
continuada pelo pecado. Em segundo lugar, embora a Queda “tenha alterado a ‘direção’ da criação”, não
destruiu sua “estrutura”. Por exemplo, ainda que o pecado tenha corrompido de forma devastadora a
natureza humana, o ser humano decaído ainda é um ser criado à imagem de Deus (ibidem, p. 238-9).
38
Isto não significa que a teologia evangélica leve ao gnosticismo, o que, de acordo com Weigel, é um
espectro do “espírito de era” contemporâneo. A teologia evangélica acolhe a bondade da criação original, a
corporificação humana (porque foi esse o projeto divino para o ser humano), a encarnação do Filho, o Deus-
homem, a ressurreição (tanto de Cristo quanto, no futuro, de todos os seus seguidores) e o novo céu e a
nova terra. Contudo, a teologia evangélica sustenta que a depravação decorrente do pecado é mais
abrangente e intensa do que acredita sua contraparte católica. Essa depravação significa que a natureza não
é e não pode ser canal da graça; pelo contrário, a natureza deve ser recriada pela graça.
39
De Chirico, p. 228.
40
Ibidem, p. 240.
41
Ibidem.
42
Ibidem, p. 241.
43
Ibidem, p. 242.
44
Ibidem, p. 84. Aqui, De Chirico reflete a avaliação que faz David Wells da teologia católica; a citação
é de David Wells, The search for salvation (Leicester: Inter-Varsity Press, 1978), p. 144.
45
De Chirico, p. 243.
46
Ibidem, p. 234.
47
Ibidem, p. 232.
48
Ibidem, p. 233; citação de Eugene TeSelle em “Nature and grace in the Forum of Ecumenical
Discussion”, Journal of Ecumenical Studies (Summer 1971): 540.
49
De fato, um tema constante da Escritura é a necessidade da salvação graciosa, que nos resgata da
adoração idolátrica da natureza (e.g., At 14.8-18; 17.22-31; Rm 1.18-25).
50
De Chirico, p. 247.
51
Ibidem, p. 249.
52
Ibidem.
53
Ibidem, p. 250.
54
Ibidem, p. 253.
55
Ibidem.
56
Ibidem, p. 259.
57
Ibidem, p. 261.
58
Ibidem.
59
Augustine [Agostinho], Expositions of the Psalms, in: The works of Saint Augustine: a translation for
the 21st Century, edição de John E. Rotelle, tradução de Maria Boulding (New York: New City, 2000-
2004), 4:149, 6 vols.
60
Ibidem.
61
Augustine, Tractates on the Gospel of John 28.1 (NPNF1 7:179).
62
Augustine, Sermon 341, in: John E. Rotelle, org., The works of Saint Augustine: a translation for the
21st Century, tradução para o inglês de Edmund Hill (Hyde Park: New City, 1992), vol. 10, p. 19.
63
De Chirico, p. 267.
64
Concílio Vaticano II, Lumen gentium 1 (VC II-1, 350).
65
De Chirico, p. 273.
66
Papa Pio XII, The mystical body of Christ (29 de junho de 1943), p. 54, disponível em:
http://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_29061943_mystici-
corporis-christi_en.html.
67
O sacrário eucarístico é um recipiente consagrado, lindamente decorado e seguro, disposto em um
local de destaque em uma Igreja Católica e usado para guardar a eucaristia fora da missa. Como a hóstia
consagrada é o corpo de Cristo, os fiéis são encorajados à adoração no momento em que se aproximam do
sacrário onde o sacramento se acha depositado. A eucaristia no sacrário pode também ser usada para a
administração do sacramento aos doentes como viático. “Viático” se refere aos preparativos para uma
viagem (do lat. via). Esse aspecto do sacramento da eucaristia será discutido em detalhes posteriormente.
68
As teofanias não eram prefigurações da encarnação porque consistiam em manifestações temporárias
de Deus em forma humana, mas nenhuma delas era uma união hipostática entre a natureza divina e a
natureza humana, como a encarnação de Jesus Cristo.
69
De Chirico, p. 278.
70
Ibidem, p. 276.
71
Michael S. Horton, People and place: a covenant ecclesiology (Louisville: Westminster John Knox,
2008), p. 5.
72
Para uma discussão mais ampla, veja ibidem, p. 155-89.
73
De Chirico, p. 281.
74
Ibidem, citando Concílio Vaticano II, Lumen gentium 62.
I
A teologia católica de acordo com o Catecismo
da Igreja Católica
PRIMEIRA PARTE:
A PROFISSÃO DA FÉ
2
A PROFISSÃO DA FÉ
(primeira parte, seção 1, capítulos 1–3)
A capacidade humana de acesso a Deus; a doutrina da revelação;
a doutrina da fé
doutrina do pecado é tratada nas duas partes, 1 e 3), o Catechism tem uma leitura
fluida e fácil de seguir. Alguns pontos finais para seus leitores: citações das
Escrituras, que aparecem com frequência e, de forma muito útil, escritas por
extenso são extraídas da Revised Standard Version e da New Revised Standard. 5
todos, por toda parte, veem evidências de Deus e suas características pessoais na
criação existente (Rm 1.18-25) e conhecem alguma coisa de suas leis morais por
meio da consciência humana (2.13-16). Além disso, mediante esses meios o ser
humano se torna disposto à fé e compreende que a fé é compatível com a razão
humana. De fato, o Catechism salienta que Deus “pode certamente ser conhecido
a partir do mundo criado pela luz natural da razão humana” porque ele criou o
ser humano como portador da sua imagem e com capacidade para conhecê-lo. 8
Avaliação evangélica
A teologia evangélica concorda com a ideia de fé do Catechism como resposta
humana a Deus e à sua revelação aos que são portadores da sua imagem, a quem
Deus criou para que o buscassem. Conforme explicou o apóstolo Paulo à
multidão reunida no Areópago:
Homens atenienses, em tudo vejo que sois excepcionalmente religiosos. Porque, ao passar e observar
os objetos do vosso culto, encontrei também um altar em que estava escrito: AO DEUS DESCONHECIDO. É
exatamente este que honrais sem conhecer que eu vos anuncio. O Deus que fez o mundo e tudo o que
nele há, Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos de homens. Tampouco é
servido por mãos humanas, como se necessitasse de alguma coisa. Pois é ele mesmo quem dá a todos
a vida, a respiração e todas as coisas. De um só fez toda a raça humana para que habitasse sobre toda
a superfície da terra, determinando-lhes os tempos previamente estabelecidos e os territórios da sua
habitação, para que buscassem a Deus e, mesmo tateando, pudessem encontrá-lo. Ele, de fato, não
está longe de cada um de nós; pois nele vivemos, nos movemos e existimos, como também alguns
dos vossos poetas disseram: Pois dele também somos geração (At 17.22-28).
Essa percepção inata de Deus com a qual todos os seres humanos foram
criados é um dos quatro modos de revelação geral, ou da comunicação de Deus
sobre si mesmo a todas as pessoas de todos os tempos e em todos os lugares. Os
quatro modos são a ordem criada (Rm 1.18-25); a consciência humana (Rm
2.13-16); o cuidado providencial de Deus na criação (At 14.8-18); e a percepção
inata da divindade (At 17.22-28). A partir dessa revelação geral, o ser humano
sabe da existência de Deus, conhece algo de suas características divinas e
amplos princípios de sua lei moral. A resposta inesperada, ou correta — como o
ser humano deveria responder — é a adoração adequada do único Deus vivo e
verdadeiro; com ações de graças a ele e submetendo-se à dependência dele; em
obediência à sua lei moral. Tragicamente, a resposta efetiva está longe da
pretendida; de fato, por causa do pecado humano, a adoração é mal direcionada,
de modo que a idolatria reina, a ingratidão e a confiança em si mesmo dominam
e, embora haja alguma obediência, a desobediência à lei moral é lugar-comum.
O resultado de toda essa situação trágica não é bom: Paulo diz que os seres
humanos são “indesculpáveis” porque suprimiram o conhecimento de Deus
concedido a eles por meio da revelação geral na criação (Rm 1.20-23), e o
apóstolo convida as pessoas para que se arrependam de sua resposta idolátrica e
se voltem para a percepção da divindade depositada em seu coração (At
17.30,31). Além disso, o quadro terrível da resposta inadequada à revelação
geral é encontrado em toda a Escritura e parece ser a única resposta dada pelo
ser humano pecador, que certamente não está em boa situação, não está nem
mesmo em uma situação neutra perante Deus. Pelo contrário, todos estão em
uma situação terrível perante ele. Contudo, Deus está sempre disposto a agir para
resgatar suas criaturas desviadas, mas a revelação geral não basta para tal
salvação ocorrer. Por conseguinte, a teologia evangélica discorda da atitude um
tanto esperançosa do Catechism em relação à revelação geral. Como pode ela
dispor os não crentes à fé quando eles rejeitam de forma sistemática e total a
revelação geral? No âmago dessa atitude otimista encontra-se a interdependência
natureza-graça, um dos axiomas do sistema teológico católico: embora o pecado
tenha afetado seriamente a natureza, ele não a corrompeu a ponto de que não
seja possível uma resposta humana à revelação geral. A teologia evangélica
discorda de forma veemente dessa posição. Contudo, a teologia evangélica
afirma o benefício de tal comunicação divina universal: apesar de uma rejeição
humana profundamente enraizada a ele e à sua revelação, Deus não desiste de
todas as pessoas em todo tempo e em todo lugar — na verdade, ele se comunica
com elas!
Com relação às provas da existência de Deus, a teologia evangélica tem várias
atitudes a esse respeito. Algumas versões afirmam que certas provas são
argumentos sólidos capazes de convencer os não teístas de que Deus existe.
Outras variedades rejeitam as provas, negando que haja argumentos
racionalmente convincentes para a existência de Deus. Contudo, outras atitudes
evangélicas afirmam o pressuposicionalismo, a visão segundo a qual as pessoas
devem admitir a existência de Deus e, portanto, tais provas são equivocadas. Em
todos os casos, porém, a teologia evangélica concorda com o Catechism de que o
mero conhecimento da existência de Deus é insuficiente para uma relação
pessoal com ele. Isso se deve a dois motivos: o primeiro deles, não afirmado
explicitamente pelo Catechism, é que a revelação geral não foi dada para
promover uma relação pessoal com Deus; esse é o papel da revelação especial. O
segundo motivo, assinalado no Catechism e na explicação acima, é que a
pecaminosidade humana distorce a percepção humana da revelação geral,
tornando-nos incapazes de estabelecer e cultivar uma comunhão íntima com
Deus. Por conseguinte, a visão do Catechism de que Deus “pode ser conhecido
com certeza a partir do mundo criado pela luz natural da razão humana” (o
9
Além disso, para garantir a preservação dessa revelação divina na igreja, “os
apóstolos deixaram bispos como seus sucessores” e “lhes deram ‘sua posição de
autoridade de ensino’”. Essa sucessão apostólica preserva a Tradição da igreja.
15
igreja. Eis dois exemplos da Tradição: (1) a imaculada concepção de Maria; isto
é, ela foi “preservada de toda mácula do pecado original” do momento em que
nasceu; e (2) sua assunção física — ela “foi assunta em corpo e alma à glória
19
Palavra de Deus, quer em sua forma escrita, quer na forma de Tradição, foi
confiada ao ofício vivo de ensino exclusivamente da igreja”. Esse Magistério é
23
Avaliação evangélica
Revelação divina
A teologia evangélica está de acordo com alguns elementos da doutrina da
revelação do Catechism, a começar com sua afirmação da insuficiência da
revelação geral para estabelecer e desenvolver uma relação pessoal com Deus e a
consequente necessidade da revelação divina (revelação especial, no jargão
evangélico) para que haja tal relacionamento. Há outros acordos no que se refere
à liberdade de Deus de se revelar, ou não, e de comunicar seus caminhos ao ser
humano decaído por amor à sua salvação. A revelação especial é um dom da
graça divina e com uma implicação muito importante que a teologia evangélica
enfatizará no devido tempo: a posição da igreja no tocante à revelação divina
deve ser a de receptora, e não sua doadora ou determinadora. Além disso, a
teologia evangélica concorda em princípio com a afirmação do Catechism a
respeito de ações e obras divinas em operação conjunta para a revelação de Deus
e de seus caminhos. O episódio da travessia do mar Vermelho, por exemplo, foi
uma revelação do poder da fidelidade de Deus; o texto de Moisés narrando esse
acontecimento (Êx 14) também é revelação divina. Certamente, esse ato de
poder de Deus estava acessível a todos os que cruzaram em terra seca as
muralhas de água, bem como a outros a quem a história foi contada e recontada
oralmente; mais tarde, a narrativa foi escrita sob a forma de texto. É importante,
porém, que a igreja conheça esse ato de poder e se beneficie dele somente por
meio do texto escrito. Toda e qualquer narrativa oral que tenha sobrevivido sem
dúvida conteria inúmeras e sérias distorções e não daria nenhuma autoridade à
igreja hoje. De fato, a autoridade é conferida exclusivamente ao registro escrito
do Êxodo conforme narrado por Moisés em Êxodo 14, uma vez que essa é a
narrativa inspirada pelo Espírito Santo.
Além disso, há concordância sobre a questão da natureza progressiva da
revelação divina: Deus se revelou efetivamente a Adão e Eva antes da Queda
(e.g., Gn 2.15-17) e, depois que caíram, por meio de uma comunicação direta
(e.g., 3.8-13). Essa revelação prosseguiu por meio de uma fala divina mais direta
(e.g., 12.1-3), sonhos e visões (e.g., o sonho de Abimeleque, 20.1-7; os sonhos
de José, 37.1-11), acontecimentos históricos (e.g., o dilúvio; Gn 6—9), e a
Escritura em registro escrito (e.g., Dt 31.9). Essa comunicação incessante
também foi progressiva. Por exemplo, Deus ensinou seu povo a adorá-lo no
Tabernáculo (e.g., Êx 40); mais tarde, ele lhe deu instruções para adorá-lo no
Templo (e.g., 2Cr 5). Pode se ver também claramente essa revelação progressiva
na profusão de alianças que Deus estabeleceu com seus parceiros humanos: as
alianças com Adão, Noé, Abraão, Moisés (ou antiga aliança) e a que fez com
Davi estavam em operação antes da vinda de Jesus Cristo. Foi profetizada então
uma nova aliança (e.g., Jr 31.31-34; Ez 36.25-27) que, por fim, tornou-se a
relação estruturada entre Deus e os membros da igreja. Essa nova aliança
convergiria em direção ao ápice da revelação divina tanto em ações quanto em
palavras: Jesus Cristo. Suas obras miraculosas foram o apogeu de muitos atos
poderosos de Deus feitos anteriormente, e suas palavras marcaram o auge do
discurso divino — a realização de tudo o que fora ordenado e profetizado (e.g.,
Mt 5.17-19) e o fundamento de tudo o que seria exigido e praticado
posteriormente (e.g., 1Co 11.23). Conforme prometido, Jesus Cristo é a Palavra
final de Deus (Hb 1.1,2), portanto não se deve esperar ou acolher nenhuma nova
revelação até a sua segunda vinda.
A transmissão da revelação divina/Sola Scriptura
Com relação à transmissão da revelação divina, há um grande distanciamento
entre a teologia católica e a evangélica. Enquanto a teologia católica afirma um
duplo padrão de comunicação da revelação divina (tradição oral e o texto da
Escritura), a teologia evangélica segue o princípio fundacional (chamado
princípio formal) do protestantismo: a fonte por excelência da revelação divina é
a Palavra de Deus escrita (sola Scriptura), e não a Escritura mais a Tradição.
Há diversas razões importantes para a rejeição, por parte da teologia
evangélica, da Tradição como modo distinto de revelação divina, não importa
quanto o Catechism insista na “mesma fonte divina” de Tradição e Escritura, no
elo próximo e na mútua comunicação entre os dois — até mesmo sua
singularidade em essência e objetivo. Uma razão para isso é a ideia da Tradição
29
como suplemento ao texto da Escritura, o que não conta com um bom respaldo
bíblico. A teologia católica busca esse apoio para sua Tradição nas palavras de
Jesus aos seus discípulos: “Ainda tenho muito que vos dizer; mas não podeis
suportá-lo agora” (Jo 16.12). Calvino contestou a (má) interpretação dessa
passagem:
Mas que afronta é essa? Admito que os discípulos ainda eram ignorantes e que era praticamente
impossível instruí-los quando ouviram isso do Senhor. No entanto, quando registraram por escrito
sua doutrina, será que estavam acossados por tal estupidez que precisavam, posteriormente,
completar com viva voz [Tradição] o que haviam omitido dos seus escritos em virtude do erro da
ignorância? Ora, se já haviam sido guiados a toda a verdade pelo Espírito da verdade [Jo 16.13, o
versículo imediatamente seguinte], o que os teria impedido de abraçar e de deixar registrado por
escrito o conhecimento perfeito e específico da doutrina evangélica?30
que teve origem com os apóstolos e que foi preservada por meio da sucessão de
líderes das igrejas apostólicas. Os hereges deram sua resposta: a tradição da
igreja estava errada porque teve origem nos líderes da igreja, nos apóstolos e, em
última análise, no próprio Jesus Cristo, todos eles inferiores em conhecimento e
verdade se comparados aos hereges, os únicos que detinham o mistério oculto e
não adulterado. Ireneu resumiu o problema com os hereges: “Esses homens não
toleram nem a Escritura nem a tradição”. Por conseguinte, para Ireneu, a
33
Contudo, ele não propôs uma tradição eclesiástica que fosse a “viva voz”
contendo a verdade que não estava igualmente registrada na Escritura. Se essa
tivesse sido a tática, seu argumento seria o mesmo dos hereges, o que resultaria
num empate.
Essa tradição propriamente dita — a doutrina apostólica em conformidade
com a Escritura e que proporcionou a estrutura correta para a interpretação da
Escritura — foi expressa pelo próprio Ireneu:
A igreja, embora dispersa pelo mundo todo até os confins da terra, recebeu dos apóstolos e de seus
discípulos esta fé: ela crê em um único Deus, o Pai todo-poderoso, Criador do céu, da terra e do mar,
e de todas as coisas que neles há; e em Jesus Cristo, o Filho de Deus, que se encarnou para nos
salvar; e no Espírito Santo, que proclamou pelos profetas as dispensações de Deus, e os adventos, e o
nascimento de uma virgem, a paixão e a ressurreição dos mortos, e a ascensão ao céu na carne do
amado Jesus Cristo, nosso Senhor, e sua [futura] manifestação do céu na glória do Pai “[para]
convergir todas as coisas em um” [Ef 1.10] e levantar de novo toda carne da raça humana inteira,
para que diante de Jesus Cristo, nosso Senhor, Deus, Salvador e Rei, conforme a vontade do Pai
invisível, “se dobre todo joelho, das coisas no céu, e das coisas na terra, e debaixo da terra, e toda
língua o confesse” [Fp 2.10,11], e para que ele execute o justo juízo para com todos; para que mande
os “malvados espirituais” [Ef 6.12] e os anjos que transgrediram e apostataram, juntamente com os
ímpios, os que não praticam a justiça, os perversos e os profanos entre os homens para o fogo eterno;
mas possa, no exercício da sua graça, conferir imortalidade aos justos, aos santos, e aos que
guardaram seus mandamentos e perseveraram em seu amor, alguns desde o princípio [de sua
trajetória cristã], e outros desde o dia do seu arrependimento, cercando-os de eterna glória.35
“a doutrina e tradição dos apóstolos [...] sem [fora da] Escritura”; 40
“as palavras não escritas dos apóstolos e suas tradições não escritas que
pertenceriam ao cânon da Escritura se tivessem sido escritas”; 41
“tal é a dignidade das tradições apostólicas que não foram registradas nas
Escrituras, que a mesma veneração e a mesma fé fervente são devidas a elas
como as que foram registradas por escrito”; 42
“as verdades que procedem verbalmente dos apóstolos ou que se acham nos
escritos dos fiéis, muito embora não se encontrem nas Sagradas Escrituras e
não se possa inferi-las com certeza das Escrituras apenas”; 43
Uma quarta razão para que a teologia evangélica rejeite a Tradição é que a
estrutura Escritura mais Tradição é inerentemente instável. Na prática, quando as
duas entram em conflito, a autoridade da Tradição sobrepuja a da Escritura.
Embora a Igreja Católica diga que as duas se acham em perfeita harmonia, a
história mostra que não é bem esse o caso, e, quando os dois aspectos realmente
entram em conflito, um dos dois se torna a autoridade suprema. A colisão de
ambos, resultando na elevação da autoridade da Tradição em detrimento da
Escritura, pode ser claramente observada na promoção da doutrina da imaculada
concepção de Maria pela igreja. A Escritura afirma sem sombra de dúvida o
estado de pecaminosidade do ser humano e não permite exceções. Todo ser
humano, como descendente de Adão, é concebido em pecado, tem uma natureza
pecadora e peca em palavras, ações, pensamentos, intenções etc. De acordo com
a Tradição católica, porém, há uma pessoa que foi concebida sem pecado, não
tinha natureza pecaminosa e jamais pecou em palavra, ações, pensamentos,
intenções ou de qualquer outro modo. Nesse caso evidente, a Escritura e a
Tradição se acham em posições diametralmente opostas. Também fica evidente
aqui que a igreja tomou o partido da Tradição em detrimento da Escritura e
afirmou a concepção imaculada de Maria. Conforme observa James Warwick
Montgomery, toda autoridade que bebe em duas fontes é inerentemente instável
porque, quando as duas entram em conflito, uma se ergue inevitavelmente sobre
a outra, submetendo a ela sua autoridade. A primeira se torna autoridade de
facto, apesar das alegações em contrário. Portanto, a instabilidade inerente da
47
estrutura formada pela Escritura mais Tradição é motivo para que a teologia
evangélica rejeite a Tradição como modelo de revelação divina.
Por fim, a ideia da Tradição como revelação divina em acréscimo à Escritura
contradiz tanto a suficiência quanto a necessidade da Escritura, duas doutrinas
protestantes caras à teologia evangélica. A suficiência da Escritura significa que
tudo o que você precisa saber para ser salvo e para viver de um modo que agrade
plenamente a Deus está contido na Escritura. Faz parte da garantia bíblica desse
atributo da Escritura o testemunho de Davi de que “a lei do S é perfeita” (Sl
ENHOR
Escritura e nada mais — e assim deve ela ser defendida e apresentada hoje. 56
Kreeft tem em mente quando diz que a Escritura ensina ou não ensina alguma
coisa. A Escritura, por exemplo, ensina a doutrina da Trindade articulando em
diversas palavras que Deus existe eternamente como Pai, Filho e Espírito Santo,
cada um dos quais é plenamente Deus. Contudo, existe apenas um Deus? A
Escritura não ensina claramente a doutrina da Trindade desse modo. Se for isso o
que Kreeft quer dizer, então a teologia evangélica concorda alegremente que a
“Escritura jamais ensina o sola Scriptura”. Contudo, Kreeft deverá concordar
que até mesmo a Igreja Católica crê em certas doutrinas — por exemplo, na
doutrina da Trindade — que a Escritura não ensina de modo semelhante à
doutrina descrita. Contudo, se for legítimo que a teologia católica abrace a
doutrina da Trindade pelo fato de que tal doutrina é um resumo adequado da
afirmação da Escritura sobre a natureza da Divindade, ou porque tal crença é
uma decorrência lógica de outras crenças, então, pelo menos em princípio, seria
legítimo para a teologia evangélica abraçar o sola Scriptura, uma vez que tal
crença resume adequadamente as afirmações da Escritura sobre sua natureza e
seus benefícios, ou porque tal crença é uma decorrência lógica de outras. Por
conseguinte, o argumento de que “a Escritura jamais ensina o sola Scriptura e,
portanto, a crença no sola Scriptura” é contraditória em si mesma não se
sustenta, porque tanto a teologia católica quanto a evangélica acreditam em
crenças que a Escritura não ensina, mas que são resumos ou decorrências da
Escritura e/ou de outras crenças. 63
Para o cristão, hoje, essa exortação significa que a Escritura não precisa ser um
livro obscuro e distante dele. Na verdade, toda vez que ele se senta na beira da
cama com os filhos e recita uma história da Bíblia, quando consola os amigos
que sofrem citando uma passagem que tenha memorizado, quando ouve uma
passagem bíblica lida em seu iPod a caminho de suas atividades diárias, ou
quando discute um sermão baseado na Bíblia na reunião de grupo da
comunidade, a Palavra de Deus inteligível está presente — não “fora do [...]
alcance”, mas “muito perto”.
Tal postura explica as instruções subsequentes de Moisés em relação aos seus
escritos:
Moisés escreveu esta lei e a entregou aos sacerdotes, filhos de Levi, que levavam a arca da aliança do
SENHOR, e a todos os anciãos de Israel. Moisés deu-lhes esta ordem: Ao fim de cada sete anos, no ano
da remissão, na festa dos tabernáculos, quando todo o Israel comparecer perante o SENHOR, teu Deus,
no lugar que ele escolher, esta lei será lida diante de todo o Israel, para que todos a ouçam. Reuni o
povo, homens, mulheres e crianças, e os estrangeiros dentro das vossas cidades, para que ouçam,
aprendam e temam o SENHOR, vosso Deus, e tenham o cuidado de obedecer a todas as palavras desta
lei; e para que seus filhos que não conhecem esta lei ouçam e aprendam a temer o SENHOR, vosso Deus,
todos os dias que viverdes sobre a terra que ireis possuir quando atravessardes o Jordão (Dt 31.9-13).
nosso Deus, mas as reveladas pertencem a nós e a nossos filhos para sempre,
para que obedeçamos a todas as palavras desta lei” (Dt 29.29). Muita coisa sobre
Deus continua obscura e misteriosa para nós, mas o que ele, em sua soberania,
quis revelar a seu povo é suficientemente claro. Embora a Escritura não esgote a
categoria de coisas “reveladas”, ela certamente está aí contida. Isso significa que
a Escritura é acessível e inteligível para o povo de Deus — aí está a clareza da
Escritura.68
ninth Easter letter [Trigésima nona carta da Páscoa] (367 d.C.) apresenta uma
lista de livros do Novo e do Antigo Testamentos, deu prosseguimento a essa
tradição de se espelhar no cânon hebraico (embora tenha incluído a Carta de
Jeremias e Baruque em sua lista do Antigo Testamento). Além disso, Atanásio
rejeitou a “Sabedoria de Salomão, o Sirácida [Eclesiástico], Ester, Judite e
Tobias”, embora tenha ressaltado que esses livros, ainda que “não estejam
efetivamente incluídos no cânon”, haviam sido “indicados pelos Pais [líderes da
igreja primitiva] para leitura por aqueles que haviam se juntado há pouco a nós e
que desejam se instruir no mundo da santidade”. Cirilo de Jerusalém listou 22
72
tradição que havia sido traçada a partir de Melito e da qual faziam parte líderes
da igreja como Orígenes, Cirilo de Alexandria e Atanásio. 77
ameaçados de condenação pela igreja por adotarem uma Bíblia sem os escritos
apócrifos. Essa condenação gerou outra diferença maior em relação à versão
oficial da Escritura canônica: com base na decisão do Concílio, a Vulgata Latina
passou a ser a Bíblia oficial da Igreja Católica. Embora a teologia protestante
não promovesse uma versão oficial, sua prática sempre consistiu em apelar à
Bíblia hebraica e ao Novo Testamento grego.
A oposição insistente do catolicismo a essa reformulação protestante do cânon
da Escritura (o Antigo Testamento, especificamente) com frequência parte do
princípio de que a Igreja Católica foi divinamente apontada para ser a
responsável pela determinação do cânon. Kreeft afirma: “A igreja (apóstolos e
santos) escreveu o Novo Testamento, e a igreja (bispos subsequentes) definiu seu
cânon”. Trata-se de uma perspectiva equivocada por pelo menos dois motivos:
81
pode ser perdida: como a fé é um dom gratuito, o ser humano pode perdê-
la; para impedir que isso aconteça, portanto, a fé deve se alimentar da
Palavra de Deus; ela requer “trabalho por meio da caridade” tendo seu
alicerce na fé da igreja; 99
não está nas proposições, mas nas realidades que elas expressam: porque a
revelação divina é a um só tempo proposicional (inclui tanto a Tradição
transmitida oralmente quanto o registro escrito da Escritura) e pessoal
(revelando Deus, com quem as pessoas podem se relacionar intimamente),
aquilo em que o cristão crê em última análise é a realidade de Deus dada a
conhecer por meio das doutrinas da fé. 101
“Cremos que a igreja é mãe do nosso novo nascimento; não cremos na igreja
como se fosse ela autora da nossa salvação”. É a Igreja Católica que, do
104
Avaliação evangélica
Essa ideia de fé guarda semelhanças com sua contraparte evangélica, mas
evidencia também várias diferenças. Com relação às semelhanças, a teologia
evangélica e a católica afirmam igualmente que a fé é adesão pessoal, uma
disposição de confiar, que é, de fato, um ato humano vinculado ao entendimento
(especialmente alicerçado na Palavra de Deus), que é livre (sem coerção) e
necessário à salvação. Além disso, o objeto da fé é Deus, conforme ele se
revelou, e seu caminho de salvação por meio do evangelho, que foi comunicado
ao ser humano decaído por intermédio da verdade proposicional expressa
mediante vários gêneros (narrativa, poesia, cartas, profecia etc.) na Escritura (e
não Escritura e Tradição). Essa revelação serve efetivamente para criar uma
relação pessoal entre o Deus da Revelação e da Redenção e os que têm fé nele.
Em relação às diferenças, a teologia evangélica enfatiza a influência dos dois
axiomas do sistema católico (a interdependência natureza-graça e a interconexão
Cristo-Igreja) na formulação da doutrina e da fé católica. Aliado a esse primeiro
axioma, a teologia católica ressalta que a natureza humana — intelecto e vontade
— é capaz de cooperar com a graça divina de tal modo que a fé é um ato
humano, mas também pode deixar de cooperar com a graça, de modo que perca
a fé. Além disso, a teologia católica salienta que a graça divina recebida pela fé é
infundida na natureza humana para elevar e aperfeiçoar essa natureza. Com base
no segundo axioma, a teologia católica destaca o fato de que a Igreja Católica,
como encarnação permanente de Cristo, faz a mediação entre a natureza e a
graça de tal maneira que a igreja é a primeira a crer e a conceder, efetivamente, a
fé (o reino da graça) ao ser humano (reino da natureza). A crítica evangélica
desses dois axiomas já foi feita, o que significa que os pontos do sistema católico
da doutrina da fé que estão baseados nesses axiomas não têm fundamento.
Com relação a críticas específicas, a teologia evangélica concorda que a fé é
um dom de Deus (e não uma disposição arraigada ou reação natural), mas nega o
conceito de que seja infundida por Deus. Em sua discussão sobre o tema, o
Catechism apela à confissão de Pedro sobre a identidade de Jesus, o Cristo, o
Filho do Deus vivo, bem como o subsequente comentário de Jesus de que “essa
revelação não veio de ‘carne e sangue’, mas do ‘meu Pai que está no céu’”. Ao 105
porém, Jesus não trata da fé de Pedro como um dom, mas respalda a revelação
divina que Pedro recebeu; a revelação da identidade de Jesus, e não a fé de
Pedro, era um dom divino. Portanto, é difícil ver quanto essa passagem se
relaciona com a fé como dom. Além disso, a teologia evangélica insiste que,
antes de alguém expressar sua fé, a graça dos atos poderosos de Deus de
convicção do pecado, vocação, justificação, regeneração, adoção e união com
Cristo possibilita que um povo endurecido e rebelde, que agora foi efetivamente
chamado, seja declarado inocente e justo e receba uma nova natureza espiritual
receptiva a Deus, seja acolhido na família de Deus e, unido com Cristo, responda
verdadeiramente com fé a essa obra divina da graça. De fato, Paulo diz: “Porque
pela graça sois salvos, por meio da fé, e isto não vem de vós, é dom de Deus;
não vem das obras, para que ninguém se orgulhe” (Ef 2.8,9). Paulo diz que toda
essa realidade — salvação pela graça por meio da fé — é um dom de Deus, e
não apenas fé. Conforme discutiremos mais adiante, a graça não é uma coisa
infundida nas pessoas; tampouco a fé. Em vez disso, ela é a bondade de Deus
manifesta a todos os que merecem apenas a condenação. Essa bondade divina
suscita e permite uma resposta positiva ao evangelho e fé nele, resultando na
salvação.
Um segundo ponto importante de discordância diz respeito à fé salvadora: é
possível perdê-la? A teologia católica acredita que sim. Há uma corrente da
teologia evangélica que também pensa assim; outra corrente — à qual pertenço
— afirma que a fé genuína é permanente e não pode ser abandonada. O
Catechism dá o exemplo de “certas pessoas que naufragaram na fé” (1Tm
1.18,19) em apoio à possibilidade da perda da fé. Contudo, o exemplo de
107
Himeneu, uma das pessoas citadas na passagem sobre o naufrágio na fé (v. 20),
não parece convincente, já que ele é um falso mestre, “dizendo que a
ressurreição já havia ocorrido”; de fato, a doutrina herética de Himeneu
“[perverteu] a fé em alguns” (2Tm 2.17,18). Em seu comentário apostólico sobre
a situação, Paulo explica: “Todavia, o firme fundamento de Deus permanece e
tem este selo: O Senhor conhece os seus, e: Aparte-se da injustiça todo aquele
que profere o nome do Senhor” (v. 19). Em outras palavras, Paulo estabelece um
contraste entre os que pertencem genuinamente a Cristo (e.g., aqueles cuja fé foi
abalada pelo falso ensino) e os que são cristãos nominais apenas e praticam a
iniquidade (e.g., Himeneu, que propagava falsos ensinamentos). Por
conseguinte, Himeneu não é um exemplo confiável de cristão que perdeu a fé.
Outros supostos exemplos de cristãos que perderam a fé poderiam ser usados
em defesa dessa posição: Ananias e Safira (At 5.1-11); os seguidores de Jesus
que profetizavam, expeliam demônios e realizavam milagres em nome de Jesus
(Mt 7.21-23); os crentes descritos na Carta aos Hebreus como “aqueles que uma
vez foram iluminados, experimentaram o dom celestial e se tornaram
participantes do Espírito Santo, e experimentaram a boa Palavra de Deus e os
poderes do mundo vindouro, e caíram, [esses não podem ser] outra vez
renovados para o arrependimento; visto que eles estão crucificando de novo o
Filho de Deus e expondo-o à vergonha pública” (Hb 6.4-6) e outros.
Mas será que essas passagens afirmam, de fato, que as pessoas ali descritas
perderam sua salvação? No caso de Ananias e Safira, Lucas não dá detalhes
suficientes para que possamos saber se eram crentes genuínos ou não. Por um
lado, eles eram crentes dedicados à prática de um pecado horrível que ameaçava
subverter a oferta sacrifical que produzia uma unidade notável na igreja
primitiva (conforme descrito em At 2.42-47; 4.32-37); assim, Deus os retirou
mediante uma intervenção severa para evitar que seu exemplo se espalhasse
como câncer na comunidade. Por outro lado, o casal havia se associado à igreja
108
De forma negativa:
Se foram pessoas que saíram do nosso meio, não eram “dos nossos” — isto
é, não tinham a mesma fé salvadora.
Você não tem fé salvadora.
Portanto, sairá do nosso meio — você sairá da comunidade da igreja.
caindo. Isso porque sua fé não era fé salvadora, mas uma fé espúria; não é da
salvação que se afastam, mas da fé religiosa que um dia tiveram. Diferentemente
disso, os que têm fé salvadora no evangelho de Jesus Cristo serão cristãos até o
fim. É claro que tal perseverança não depende exclusivamente deles e de seus
melhores esforços de permanecerem fiéis. Na verdade, “sois protegidos pelo
poder de Deus, mediante a fé, para a salvação preparada para se revelar no
último tempo” (1Pe 1.5). O poder protetor de Deus operando por meio da fé
diária e consistente desses fiéis preserva-os em seu futuro, enquanto aguardam a
salvação.
Como a salvação não pode ser perdida depois de genuinamente obtida, a fé
salvadora não pode ser perdida. Esse é o ensinamento consistente da Escritura.
Cristo prometeu que não perderia nenhum de seus seguidores (Jo 10.27-29; 6.37-
40) e sua intercessão permanente por eles resulta em sua salvação final (Hb
7.25). O Espírito Santo selou os crentes verdadeiros, e sua marca serve de
garantia da obra divina de preservação da sua vida (2Co 1.22; 3.18; Ef 1.13,14;
4.30), e seu testemunho interno mostra que são verdadeiramente filhos de Deus
(Rm 8.16). Para aqueles que têm o Filho de Deus, sua Palavra promete vida
eterna, dando a eles a segurança de que tal é sua posse (1Jo 5.11-13); de fato,
não há nada que possa separar o cristão do amor de Deus em Jesus Cristo (Rm
8.31-39). Além disso, a fidelidade perseverante dos crentes genuínos é coerente
com sua fidelidade a Deus e está nela fundamentada (1Co 1.9; Fp 1.6). Foi Deus
quem os escolheu (Rm 8.32; Ef 1.4), justificou (Rm 3.21-31; 8.1), regenerou (Jo
3.1-8), adotou (Rm 8.14,15; Gl 4.5,6) e os uniu a Cristo (Rm 6.1-11), que
também os batizou com o Espírito Santo em seu corpo (1Co 12.13).
Um último contraste importante se dá entre a visão católica de que a fé vem
de outros, especialmente da Igreja Católica, e a visão evangélica de que a fé é
uma responsabilidade pessoal que, embora ajudada e alimentada pela igreja, não
provém dela. Conforme já observamos, a visão católica depende de pressupostos
em segundo plano vinculados à interconexão Cristo-Igreja. Além disso, uma
fragilidade do Catechism na discussão desse ponto é sua falta de respaldo
bíblico. Sua alegação de que a igreja é a mãe dos cristãos porque eles
“receberam a vida de fé através da igreja” — especificamente, por meio da
administração do batismo pela igreja — é certamente uma parte importante da
110
para a igreja — ela é a noiva de Cristo (2Co 11.1-4; Ef 5.25-33; Ap 19.7; 21.2,9;
22.17) —, ela não emprega a metáfora de mãe.
Ao mesmo tempo, a teologia evangélica não se furta necessariamente à
imagem da igreja-mãe, contanto que seja compreendida sob um aspecto
específico. Por exemplo, João Calvino citou o dictum de Cipriano ao defender
112
a necessidade da igreja, “em cujo seio Deus se alegra em reunir seus filhos, não
apenas para que sejam alimentados por sua ajuda e ministério enquanto forem
bebês e crianças, mas também para que sejam guiados por seu cuidado maternal
até que amadureçam e alcancem, por fim, o objetivo da fé”. Ele insistiu com os
113
crentes para que conheçam a igreja como sua mãe, “pois não há outra maneira de
entrar na vida, a não ser que essa mãe nos conceba em seu útero, nos alimente
em seu seio [...]. Nossa fraqueza não nos permite que abandonemos sua escola
até que sejamos alunos por toda a vida. Além disso, longe do seu seio não se
pode ter esperança de qualquer perdão de pecados ou de qualquer salvação [...].
Deixar a igreja é sempre desastroso”. 114
comum dos três (conhecida como Trindade econômica). Além disso, Deus é
3
todo-poderoso, e ele criou o Universo e tudo o que nele há ex nihilo (do nada); o 4
alma é criada imediatamente por Deus, portanto não é transmitida dos pais para
os filhos; e (3) a imortalidade da alma, isto é, “ela não perece quando se separa
do corpo na morte”. 12
Os seres humanos foram criados por Deus com identidade de gênero, o que
significa que homem e mulher são “iguais em sua condição de pessoa”, feitos à
imagem de Deus, mas são também diferentes entre si para serem “‘auxiliares’
um do outro”. Juntos, portanto, homens e mulheres, como servos de Deus,
13
queda de uma parte dos anjos, que foram originalmente criados como seres bons.
Eles abusaram do livre-arbítrio que tinham para se rebelar, rejeitaram a Deus e
ao seu reino e assim cometeram um pecado imperdoável. Satanás e seus
asseclas, os demônios, ao mesmo tempo que levam a destruição à raça humana,
são providencialmente confinados por Deus e só podem agir em conformidade
com a vontade dele. Foi esse Satanás ou Diabo que levou a cabo uma “sedução
enganadora que induziu o homem a desobedecer a Deus”. 17
Em meio a essa tentação satânica, Adão e Eva lutavam com a ordem divina
que não lhes permitia comer da árvore do conhecimento do bem e do mal que,
“simbolicamente, evoca os limites intransponíveis que o homem, sendo uma
criatura, deve livremente reconhecer e, confiante, respeitar”. Eles não
18
obedeceram a Deus: “O homem, tentado pelo Diabo, deixou que sua confiança
no Criador morresse em seu coração e, abusando da liberdade que tinha,
desobedeceu à ordem de Deus. Esse foi o primeiro pecado do homem [...]. Ao
cometer esse pecado, o homem preferiu a si mesmo a Deus e, por esse ato,
zombou dele. Ele escolheu a si mesmo em detrimento de Deus, insurgindo-se
contra as exigências de sua condição de criatura e, portanto, contra seu próprio
bem”. Essa rebeldia teve consequências devastadoras. Em primeiro lugar, a
19
em Adão e, portanto, todos pecaram quando ele pecou. Essa explicação, porém,
tem igualmente um elemento de representação : “Adão havia recebido uma
santidade e uma justiça originais não apenas para si, mas para toda a natureza
humana”. A transmissão do pecado original ocorre por propagação; a natureza
22
Avaliação evangélica
A doutrina de Deus conforme afirmada pelo Catechism é totalmente bíblica,
consistente com a fé histórica da igreja ao longo de sua existência e defendida
por todos os católicos, protestantes e também pelos ortodoxos. A única diferença
se dá com a Trindade ontológica, especificamente com a eterna processão do
Espírito Santo. O Catechism, que representa a tradição da igreja ocidental —
católica e protestante/evangélica — afirma que “o Espírito Santo procede do Pai
e do Filho” e explica por que a adição da cláusula filioque (“e do Filho”) era
adequada. A tradição ortodoxa confessa a processão do Espírito Santo do Pai e
24
nega o filioque. 25
Há forte respaldo bíblico para essa dupla processão. Entre outras coisas: o
Espírito Santo é descrito (Rm 8.9) como Espírito Santo de Deus (i.e., do Pai) e
Espírito de Cristo (i.e., do Filho); tanto o Pai quanto o Filho enviam o Espírito
no dia de Pentecostes (Jo 14.16,26; 15.26; 16.7), dando a entender com isso que
ele procede de ambos; Cristo soprou seu Espírito nos discípulos, dando a
entender com isso que, juntamente com o Pai, o Filho comunica o Espírito Santo
(At 2.33). Além disso, a objeção ortodoxa (de que a teologia ocidental cria uma
situação em que há dois princípios ou fontes do Espírito Santo) foi bem
respondida por teólogos como Agostinho. Ele disse que o Espírito procede de
uma ação conjunta do Pai e do Filho. A teologia católica e a teologia evangélica
26
com cautela, se é que deve ser afirmada. De acordo com o livro de Daniel
(10.13,20; 12.1), parece que esses anjos em especial têm uma missão específica
nas nações da terra, e Jesus diz que as crianças têm a proteção de anjos especiais
(Mt 18.10). O respaldo mais convincente desse ponto de vista se encontra em
Atos (12.15), que narra a história um tanto cômica da libertação de Pedro do
cárcere e de como ele aparece na porta da igreja que havia se reunido para orar
pela sua soltura. Quando alguém disse que o apóstolo estava na porta da igreja
pedindo para entrar, os discípulos, chocados, disseram: “É o seu anjo!”.
Contudo, concluir dessas passagens que todos têm um anjo da guarda específico
é pura especulação. Além disso, essa perspectiva parece negligenciar a ênfase
bíblica de que Deus providencia um exército de anjos para defender e ajudar seu
povo (e.g., 2Rs 6.17; Lc 16.22). Nesse sentido, Calvino talvez tenha ido mais
direto ao ponto: “Há um fato que é preciso acatar, que o cuidado com cada um
de nós não é tarefa de um anjo apenas, senão de todos, que, unânimes, zelam por
nossa salvação”. 29
posição está fora dos limites da fé cristã ortodoxa, uma vez que contradiz a
exposição bíblica do estado intermediário (2Co 5.1-9) e investe contra a posição
32
segundo a qual a alma é passada dos pais para os filhos. Há ainda outros
35
indecisos nessa questão ou que propõem uma explicação mais holística — por
exemplo, o dualismo emergente de William Hasker ou o personalismo emergente
—, que é provavelmente melhor. Em terceiro lugar, a teologia católica e a
36
evangélica concordam que a existência humana não termina na morte, mas que
continua eternidade afora. 37
imagem divina não sustentam tal ideia; na verdade, elas não apresentam indício
algum de que alguma possível luta interior tenha sido vencida pela razão, que
teria passado a controlar as paixões do corpo. Pelo contrário, a Escritura
apresenta a criação divina do ser humano de maneira holística — “E Deus criou
o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou”
(Gn 1.27) — seguida por uma ênfase na forma que esse ser humano criado
holisticamente deve operar: como administrador que procria e cuja vocação é
estabelecer e erigir uma civilização humana que prospere na terra (v. 28). Além40
posição, e insistem que a natureza humana decaída, que produz a tendência para
pecar (concupiscência), é um aspecto do pecado original e, portanto, incorre na
ira de Deus (Ef 2.1-3). Em suma, para essas variedades da teologia evangélica,
dada à penetração do pecado original (que infecta todos os elementos da
natureza humana e nada deixa que não seja por ele afetado), e em razão de sua
perversidade (o pecado original torna o ser humano incapaz de fazer qualquer
coisa que possa agradar fundamentalmente a Deus), todos os seres humanos se
acham em uma situação extremamente difícil perante Deus e são merecedores do
juízo, da condenação e da ira.
A solução desse grave problema do pecado original, para a teologia católica, é
o batismo, sobretudo o batismo infantil. Por meio desse sacramento, o pecado
original é removido e a criança é regenerada, trazendo a salvação desse pesadelo
infernal. Como o tratamento pleno desse sacramento vem mais tarde no
Catechism, a avaliação evangélica do batismo será adiada.
Avaliação evangélica
A doutrina da pessoa de Cristo é plenamente acolhida pela teologia evangélica;
na verdade, essa teologia tradicional serve de fundamento histórico para o
desenvolvimento da cristologia evangélica.
respaldo bíblico para essa obra poderosa do Espírito Santo encontra-se em Lucas
1.34,35 (cf. Mt 1.18-25). Esse foi o lado divino da encarnação.
Com relação ao lado humano da encarnação, o Catechism afirma vários
pontos importantes em sua doutrina de Maria, a começar por sua predestinação:
Maria se tornaria a mãe de Jesus porque isso havia sido ordenado eternamente.
De fato, “desde toda a eternidade, Deus escolheu, para ser a mãe do seu Filho,
‘uma virgem que era noiva de um homem da casa de Davi, chamado José. O
nome da virgem era Maria’ [Lc 1.26,27]”. É importante notar que Deus “quis
44
que a aceitação, por parte da que ele predestinara para mãe, precedesse a
encarnação, para que, assim como uma mulher contribuiu para a morte [Eva],
também outra mulher contribuísse para a vida [Maria]”. 45
A participação de Maria na parte que lhe coube foi preparada por sua
concepção imaculada. Essa doutrina, que foi proclamada pelo papa Pio IX em
sua encíclica Ineffabilis Deus (8 de dezembro de 1854), diz: “Por uma graça e
favor singular de Deus onipotente e em previsão dos méritos de Jesus Cristo,
salvador do gênero humano, a bem-aventurada Virgem Maria foi preservada
intacta de toda a mancha do pecado original no primeiro instante da sua
concepção”. Além disso, Maria foi “remida de um modo mais sublime, em
46
atenção aos méritos de seu Filho” e foi abençoada por Deus mais do que
47
qualquer outro ser humano. Ademais, por meio dessa mesma graça divina,
“Maria manteve-se pura de todo o pecado pessoal ao longo de toda a vida”. 48
Graças a essa realidade singular, Maria estava bem preparada para se tornar a
mãe do Salvador, e as palavras do anjo Gabriel na anunciação ecoaram com
justiça: ele a saúda como “cheia de graça”. A resposta de Maria, um livre
assentimento ao anúncio angélico, foi a obediência de fé: “Aqui está a serva do
Senhor; cumpra-se em mim a tua palavra” (Lc 1.28-38). “Aceitando de todo o
coração, sem que nenhum pecado a retivesse, a vontade divina da salvação,
entregou-se totalmente à pessoa e à obra do seu Filho.” É forte o contraste entre
49
Espírito Santo, e não por meio de relações sexuais com José (ou com outro
homem qualquer); ela concebeu virgem. Além disso, Maria permaneceu virgem
durante o parto; sua integridade física não foi comprometida pelo processo de
nascimento. E mais, ela permaneceu virgem por toda a vida. Maria é chamada
53
do nascimento de Jesus, jamais teve relações sexuais com José (ou qualquer
outro homem). As aparentes referências bíblicas aos irmãos e irmãs de Jesus
(Mc 3.31-35; 6.3; 1Co 9.5; Gl 1.19; Mt 13.55; 28.1) dizem respeito a pessoas
que são parentes próximos, e não a membros de fato de sua família nuclear. Essa
integridade da virgindade perpétua é “sinal da sua fé, ‘sem a mais leve sombra
de dúvida’” e manifesta a ausência de pecado em Maria por toda a sua vida. Ela
55
desse tópico a revelação (ele revela Deus Pai), a redenção (incluindo sua
obediência passiva e ativa na vida e na morte) e a recapitulação (ele resumiu a
história humana, ao mesmo tempo que reverteu a desobediência de Adão),
realizando por seus atos a substituição do ser humano que veio salvar servindo
de modelo a ser seguido por seus discípulos. A união com ele torna as pessoas
participantes em seus mistérios. Os eventos específicos de sua vida são
detalhados no Catechism: a promessa da vinda de Cristo no Antigo Testamento;
a preparação para sua vinda por intermédio de João Batista; o nascimento de
Jesus; sua infância e o período desconhecido dos seus primeiros anos de vida (a
única luz aqui é o episódio em que Jesus fica para trás, no templo, quando tinha
doze anos de idade); seu batismo marcando o início do seu ministério público
seguido imediatamente de suas tentações no deserto; seu anúncio do reino de
Deus por meio da proclamação, sinais messiânicos (milagres e exorcismos) e a
convocação dos doze discípulos, a quem (com Pedro à frente) Jesus entregou as
chaves do reino; sua transfiguração, subida e entrada em Jerusalém.
Avaliação evangélica
A doutrina da encarnação de Jesus Cristo, a condenação feita pelo Catechism das
heresias cristológicas ao longo da história e sua ênfase na plena divindade e
plena humanidade de Cristo estão em total acordo com a teologia evangélica. Na
verdade, essas formulações e censuras tradicionais proporcionam a infraestrutura
histórica para a doutrina evangélica da encarnação. Além disso, a afirmação do
Catechism de que Jesus Cristo “foi concebido pelo poder do Espírito Santo”, no
sentido de que o Espírito cobriu milagrosamente Maria para que a jovem
acolhesse em seu ventre o Filho de Deus (o qual, no momento de sua concepção,
assumiu plenamente a natureza humana) também é uma afirmação aceita pelos
evangélicos. Esse lado divino da encarnação encontra respaldo inquestionável na
Escritura (Mt 1.18-25; Lc 1.34,35).
Há, entretanto, uma profunda divisão entre a teologia católica e a evangélica
no ponto seguinte, isto é, no que diz respeito ao lado humano da encarnação.
Praticamente todos os ensinos do Catechism sobre Maria são contestados e
rejeitados pelos evangélicos. Contudo, há três pontos em comum partilhados por
católicos e evangélicos. Em primeiro lugar, há o reconhecimento e a gratidão
pelo papel singular desempenhado por Maria na encarnação do Filho de Deus.
Especificamente, o reconhecimento de sua condição de theotokos (lit.,
“portadora de Deus” ), de acordo com a perspectiva histórica de que aquele a
58
quem Maria deu à luz era plenamente Deus, une católicos e evangélicos. Em
59 60
seguinte paralelismo:
tempo, a teologia católica sustenta que Maria foi “remida de um modo mais
sublime, em atenção aos méritos de seu Filho”. Tal obra graciosa se estendeu
70
por toda a sua vida, e “Maria manteve-se pura de todo o pecado pessoal ao longo
de toda a vida”. Bem-aventurada como ninguém mais, mais do que qualquer
71
outro ser humano, pela graça divina, ela foi preparada para ser a mãe do Filho de
Deus. Pode-se ver claramente esse preparo quando o anjo Gabriel se aproxima
dela e a saúda chamando-a de “cheia de graça” (Lc 1.28). A resposta de Maria
— livre e graciosamente preparada — foi a obediência da fé: “Aqui está a serva
do Senhor, cumpra-se em mim a tua palavra” (Lc 1.38). Concebida sem a
natureza do pecado, nascida sem o pecado original, e preservada livre de todo
pecado, recebeu a capacitação para dar seu consentimento sincero ao plano
divino para que se tornasse mãe de Jesus Cristo. 72
que tem autoridade); pelo contrário, ela expressa seu desejo de se submeter à
vontade de Deus, que lhe foi comunicada pelas palavras finais de Gabriel, “para
Deus nada é impossível” (v. 37). Esse texto não é sobre Maria e seu preparo
especial; é sobre o poder de Deus para efetuar a encarnação de seu Filho.
O fundamental aqui é que Maria responde com fé à palavra do anjo sobre a
identidade do seu Filho, Jesus, a presença da sombra do Espírito Santo que cobre
Maria e a impossibilidade de Deus achar impossível essa concepção virginal.
Maria responde corretamente ao anúncio de Gabriel, e, por causa de sua
resposta, os evangélicos a veem como exemplo por excelência de fé e obediência
— mas não porque ela tenha um lugar “totalmente especial e excepcional” no
plano divino, não por causa “da grandeza e da beleza extraordinárias de todo o
seu ser”, e não por causa da “perfeita cooperação com ‘a graça de Deus que a
precede e assiste’”. Essa é a ideia de perfeição excepcional, mas que está
77
ausente no relato bíblico; na verdade, tal ideia peca porque não percebe o sentido
exato da passagem. O que deverá acontecer no ventre de Maria é inconcebível
para ela em sua condição humana. Por mais que ela acrescente ao fato sua
obediência de fé, sua cooperação, ou outra coisa qualquer, nada disso transforma
o impossível em possível; nada que Maria seja ou faça é “decisivo no plano
humano” para contribuir com esse milagre. Certamente a obediência de Maria é
78
uma grande bênção para ela e para toda a humanidade, mas ela creu que “se
cumprirão as coisas que lhe foram faladas da parte do Senhor” (Lc 1.45); isto é,
ela creu que o próprio Deus cumpriria a palavra prometida.
Além disso, o tratamento concedido por Gabriel a ela — “Salve, cheia de
graça, o Senhor está contigo” (Lc 1.28) — é mal compreendido pela teologia
79
Tampouco o adjetivo “cheia” significa que Maria seja mais abençoada do que
qualquer outro ser humano jamais foi. Essa ideia trai uma compreensão
deficiente da graça como se fosse algum tipo de substância ou matéria-prima que
é injetada nas pessoas e que tem a capacidade de aumentar ou diminuir (esse
tópico será discutido posteriormente). Esse equívoco contribui ainda mais para a
ideia enganosa da cooperação excepcional e perfeita de Maria. Conforme explica
Nancy Duff:
Diferentemente disso, para a teologia evangélica essa ênfase na perfeição contradiz a doutrina da
encarnação resumida na proclamação de Gabriel de que “o Senhor está contigo”. Que Maria era
cheia de graça não significa que ela foi criada sem pecado para que fosse digna de dar à luz o Filho
de Deus, porque Deus entra em um mundo que é indigno da presença de Deus, um mundo que é
pecaminoso e está arruinado. Se Maria tivesse de ser perfeita para carregar o Senhor, a mensagem
estaria perdida [...]. A perfeição de Maria [...] apresenta um campo de santidade capaz de acolher
Deus, e não o mundo pecaminoso e indigno em que Deus escolhe estar presente.81
virgem, foi um milagre. Mateus 1.25 observa ainda que Maria não teve relações
durante a gravidez. Mas a ideia de que, depois do parto, a virgindade de Maria
foi preservada intacta não é afirmada na Escritura. O fato é que tal ideia é
contraditada no relato simples e objetivo do evento: “E ela teve seu filho
primogênito; envolveu-o em panos e o colocou em uma manjedoura, pois não
havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 2.7). Não há indício algum de uma
intervenção miraculosa que preservasse a virgindade de Maria depois do
nascimento de Jesus. Além disso, depois que Jesus nasceu, Maria teve
efetivamente relações sexuais com José, conforme se lê em Mateus: “E recebeu
sua mulher, mas não a conheceu na intimidade até ela dar à luz um filho”
(1.24,25). A palavra “até” (ἓως; heōs), usada como conjunção, indica o ponto
final de um estado de coisas em processo. Em outras palavras, José não teve
84
relações sexuais com Maria durante o tempo todo do seu noivado (que
correspondeu aos nove meses de gravidez), mas tiveram relações depois do
nascimento de Jesus. Esse fato é confirmado por referências a Jesus como o
“primogênito” de Maria (Lc 2.7) e a seus irmãos e irmãs (Mt 12.46 [par. Mc
3.31; Lc 8.19]; 13.55,56; At 1.14). O Catechism identifica equivocadamente
esses irmãos e irmãs como “filhos de uma Maria discípula de Cristo designada
significativamente como ‘a outra Maria’, o que faz deles parentes próximos de
Jesus, segundo uma expressão conhecida do Antigo Testamento”. A defesa da
85
fase não revelada dos primeiros anos de vida de Jesus e sua aplicação às pessoas
hoje; ênfase no batismo como assimilação do cristão a Jesus; e a elaboração do
92 93
“colégio dos Doze” que teria estabelecido o papado com sede em Roma. Essas 94
desejo, e tornou-se “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1.29).
Na Última Ceia, Jesus antecipou a livre oferta de sua vida, e no jardim do
Getsêmani lutou com a escolha entre a autopreservação (sua vontade humana) e
a crucificação (a vontade do Pai), à qual ele de forma voluntária e obediente
acolheu. Sua morte foi única e definitiva, “tanto o sacrifício pascal, que realiza a
redenção divina do homem [...] quanto o sacrifício da nova aliança, que restaura
o homem à comunhão com Deus ao reconciliá-lo com Deus”. Na verdade, sua
98
foi colocado em uma sepultura, e ali seus aspectos material e imaterial ficaram
desconectados durante três dias. Ao mesmo tempo, “a pessoa divina do Filho de
Deus necessariamente continuou a assumir a alma e o corpo, separados um do
outro pela morte”. 102
Avaliação evangélica
As doutrinas católica e evangélica da obra de Cristo coincidem em quase todos
os aspectos de sua morte na cruz, que é o objeto de atenção do Catechism nesta
seção. Seu sofrimento, resultado sobretudo dos desafios que lançou aos líderes
judeus e às suas instituições e tradições sacras; sua crucificação, não como obra
acidental, e sim espontânea, ele a suportou para que se cumprisse o desejo do
Pai; sua morte expiatória pelo pecado humano e seu sepultamento são elementos
fundamentais da obra de Cristo. Há dois pontos de desacordo em questões
tangenciais — tangenciais aqui no sentido de que não são o foco principal da
presente discussão doutrinária, mas que deverão aparecer posteriormente como
questões importantes —; são eles: a defesa pelo Catechism da expiação ilimitada
e sua vaga noção de uma participação universal no sacrifício de Cristo. Com
relação ao primeiro ponto, a teologia evangélica sustenta três posições principais
no que diz respeito à expiação: expiação limitada, visão segundo a qual Cristo
morreu para expiar os pecados e garantir a salvação somente dos eleitos;
expiação ilimitada, visão semelhante à defendida pela teologia católica segundo
a qual Cristo morreu para expiar os pecados de todos os seres humanos (com a
consequência de que a graça preveniente, uma bênção divina universal, capacita
todo ser humano a responder adequadamente ao evangelho e satisfazer os
requisitos para a salvação); e a teoria das múltiplas intenções na morte de Cristo,
incluindo a intenção de garantir a salvação dos eleitos, a intenção de
proporcionar expiação para os pecados de todos, a intenção de criar outra base
para a condenação eterna do impenitente etc. Por conseguinte, alguns
103
a teologia católica quer dizer que foi feita uma provisão universal para o perdão
dos pecados de todos os seres humanos por meio do sacrifício de Cristo, e que
mediante o anúncio universal referente à forma em que essa obra expiatória pode
ser apropriada, o evangelho é comunicado a todos os seres humanos, trazendo
com isso a possibilidade de salvação para todos, os evangélicos que defendem a
expiação ilimitada ou a teoria de múltiplas intenções da expiação concordarão
(os proponentes da expiação limitada não concordarão, porque negam a provisão
universal da expiação para todos os seres humanos). Contudo, se a teologia
católica defende algum tipo de salvação universal trazida aos cristãos por meio
do evangelho e (secretamente, misteriosamente) comunicada aos não cristãos de
algum modo — até (supostamente) envolvendo o Espírito Santo — sem o
evangelho, os evangélicos de todas as tendências, no que diz respeito à extensão
da expiação, discordarão veementemente. 105
desse drama pascal foi o túmulo vazio. Embora não seja uma prova direta da
ressurreição — há outras explicações possíveis —, ela, não obstante, suscitou a
esperança da ressurreição nos que viram as vestes fúnebres esvaziadas do corpo
de Jesus. Os episódios seguintes foram as aparições de Jesus — primeiro a Maria
Madalena e a outras mulheres, depois a Pedro, aos Doze, e até mesmo a mais de
quinhentas pessoas ao mesmo tempo —, gerando testemunhas da sua
ressurreição, que constituiriam o fundamento da comunidade cristã. O
Catechism condena explicitamente explicações distorcidas para a ressurreição —
por exemplo, que ela foi produto da exaltação mística, ou um mito decorrente da
fé dos apóstolos — insistindo que “é impossível não reconhecer a ressurreição
como um fato histórico”. 108
como o Pai ressuscitou Jesus, revelando-se desse modo como Filho de Deus (Rm
1.3,4); o Filho exerceu o poder que possuía ao entregar sua vida e retomá-la (Jo
10.17,18); e o Espírito Santo deu vida ao corpo mortal do Filho e o ressuscitou
(Rm 8.11).
A ressurreição de Cristo é importante por vários motivos: ela confirma todas
as obras e ensinamentos de Cristo; é o cumprimento das profecias do Antigo
Testamento e das promessas de Jesus; ela legitima Jesus Cristo como Filho
divino de Deus; realiza a justificação de seres humanos pecadores; e é garantia
da ressurreição futura dos cristãos.
Avaliação evangélica
A teologia católica e a teologia evangélica estão de pleno acordo em torno da
doutrina da ressurreição, até mesmo no que diz respeito à sua realidade no
espaço e no tempo, a rejeição das explicações naturalistas dadas a ela, a natureza
do corpo ressuscitado de Cristo, sua dimensão trinitária e sua importância por
vários motivos. Com relação à descida de Cristo ao inferno entre sua morte e
ressurreição, há evangélicos que concordam com essa ideia; outros, não. Os que
concordam com ela aceitam a oração descritiva — “desceu ao inferno”
(descendit ad inferna) — do Credo Apostólico, na maior parte dos casos
justificando sua aceitação com base em 1Pedro 3.18,19 (recorre-se também a
Atos 2.27; Romanos 10.6,7; Efésios 4.8,9 e 1Pedro 4.6). Os evangélicos que
discordam da afirmação chamam a atenção para a existência de problemas com o
desenvolvimento histórico da expressão, observando especificamente que (1) as
versões mais antigas do Credo não trazem a expressão; (2) não há confirmação
evidente da sua presença até o final do quarto século no comentário de Rufino
sobre o Credo de Aquileia; (3) ao mesmo tempo, a expressão não é encontrada
111
aos justos, já que ele particulariza “[os] espíritos em prisão, os quais, noutro
tempo, foram rebeldes, quando a paciência de Deus esperava enquanto a arca era
construída nos dias de Noé” (1Pe 3.19,20). Embora esteja fora do propósito
desta discussão demonstrar o significado desse texto bíblico, a proposta de
113
voltara para lá (Jo 3.13; Ef 4.8-10). Sentado fisicamente à mão direita do Pai (At
2.33; Ef 1.20; Hb 1.3; 1Pe 3.22), ele foi exaltado e agora partilha “do poder e da
autoridade de Deus” como Filho encarnado cujo “corpo foi glorificado”. Como 116
tal, ele é o Sumo Sacerdote da nova e eterna aliança, que intercede por seus
seguidores e que reina sobre o reino messiânico.
Avaliação evangélica
Há pleno acordo entre a teologia católica e a evangélica em quase todos os
aspectos da doutrina da ascensão, até mesmo no que diz respeito às aparições de
Cristo depois de ressuscitado que a precederam, sua realidade no espaço e no
tempo e sua importância para o Cristo exaltado e seu ministério de intercessão
na glória. O axioma do sistema católico da interconexão Cristo-Igreja — a ideia
de que a Igreja Católica é o prolongamento da encarnação do Cristo ascendido,
do Cristo total (totus Christus) — é um sério equívoco no que diz respeito ao
entendimento do que foi a ascensão; isso já foi avaliado e constatamos que se
trata de um erro. Diremos mais a esse respeito posteriormente.
derrotados do mal. Sua supremacia completa, portanto, ainda está por vir, e se
dará quando o Rei voltar à terra e destruir definitivamente tudo o que lhe fizer
oposição e estabelecer o novo céu e a nova terra.
A segunda vinda de Cristo é iminente desde sua ascensão, embora o momento
desse acontecimento seja desconhecido e impossível de conhecer pelos seres
humanos. Ele se acha associado ao reconhecimento do Messias “por ‘todo o
Israel’, pois ‘veio um endurecimento sobre parte de Israel’ na sua ‘descrença’ em
Jesus”. Por fim, “a ‘inclusão plena’ dos judeus na salvação do Messias, na
118
na “plenitude de Cristo” (Ef 4.13). Antes de Jesus retornar, a igreja terá de passar
por um último julgamento durante o qual o “mistério da iniquidade” (2Ts 2.7), as
maquinações do Anticristo, será revelada “sob a forma de farsa religiosa que
oferecerá ao homem uma aparente solução para os seus problemas ao preço da
apostasia da verdade”. 120
Com o retorno de Jesus Cristo será instaurado o juízo final. Nesse último dia,
a descrença culpável será exposta, e “a aceitação ou recusa da graça e do amor
divino” será revelada por meio de atitudes para com o próximo (Mt 25.40). 121
Cristo tem autoridade que lhe foi delegada pelo Pai para proceder ao juízo
definitivo (Jo 5.22,27). Ao mesmo tempo, o Catechism introduz a ideia de um
autojulgamento e de uma autocondenação mediante a rejeição ao amor. 122
Avaliação evangélica
Há muitos pontos em comum entre a teologia católica e a evangélica no que se
refere à segunda vinda de Cristo e seu juízo final, como, por exemplo, a natureza
inicial do governo de Cristo (que os evangélicos chamam de realidade “já, mas
ainda não” do seu reino), que progride em direção à sua realização plena no seu
retorno; o tempo iminente e desconhecido (e impossível de conhecer) da sua
segunda vinda; a grande tribulação, em que se dará a ofensiva do Anticristo
precedendo tal evento; o juízo final diante de Cristo, Juiz, ao qual estarão
presentes todos os seres humanos que já viveram; e a esperança futura do novo
céu e da nova terra.
Os pontos de discordância são, em primeiro lugar, a natureza da habitação de
Cristo na terra com a igreja. Como já fizemos a crítica do axioma da
interconexão Cristo-Igreja, bastará oferecer uma crítica específica da sua
implicação: a teologia evangélica se pergunta como, à luz da teologia católica,
pode-se dizer em qualquer sentido significativo que Cristo, que subiu ao céu e,
portanto, não está aqui (fisicamente) na terra, retornará (fisicamente) à terra em
sua segunda vinda. Se o Cristo que subiu ao céu com todo o seu ser — a cabeça,
incluindo-se aí sua natureza divina e humana, e o corpo — continua a estar
encarnado na Igreja Católica, não nos parece então que ele esteja ausente deste
mundo em nenhum sentido efetivamente importante; tampouco nos parece
possível que o retorno daquele que jamais partiu possa ser igualmente
significativo.
Um segundo ponto de discordância diz respeito ao juízo final. Embora o
Catechism afirme que Cristo “julgará definitivamente” (um direito que ele
“adquiriu” com sua morte) nesse acontecimento apoteótico, ele atenua essa
afirmação com outra contrastante: “Contudo, o Filho não veio para julgar, mas
para salvar”, recorrendo a passagens bíblicas tais como João 3.17 e 5.26. O
Catechism parece lidar com essa tensão fixando-se no juízo pessoal e na
condenação pessoal: “É pela recusa da graça nesta vida que cada qual se julga já
a si próprio, recebe segundo as suas obras e pode, mesmo, condenar-se para a
eternidade, recusando o Espírito de amor”. Existe entre os evangélicos o receio
123
disso, a igreja conhece o Espírito Santo na Escritura que ele inspirou, em sua
Tradição e em seu Magistério, por ele assistido; na liturgia sacramental; na
oração, em que o Espírito intercede etc. 127
fim, como “a mãe do ‘Cristo total’”, Maria estava presente no Cenáculo com os
doze discípulos no momento em que o Espírito Santo estava prestes a inaugurar
sua obra (At 1.14). 135
forma mais direta, Jesus falou a seus doze discípulos sobre o papel do Espírito
na oração (Lc 11.13) e no testemunho (Mt 10.19,20). Contudo, Jesus reservou
sua promessa da vinda do Espírito Santo para sua última hora, quando explicou
que ele (i.e., o Filho) oraria ao Pai para que enviasse o Filho; o Pai enviaria o
Espírito em seu nome (i.e., em nome de Jesus); ele (i.e., o Filho) enviaria o
Espírito da parte de Deus; e o Espírito procede do Pai. Esse Espírito prometido e
enviado estaria para sempre com os discípulos de Cristo, ensinando-os todas as
coisas, trazendo-lhes à mente o que Cristo disse, testemunhando de Cristo,
levando seus discípulos a toda a verdade, glorificando Cristo, convencendo o
mundo do pecado, da justiça e do juízo (Jo 14.16,17,26; 15.26; 16.5-15; 17.26). 138
Avaliação evangélica
De modo geral, a doutrina do Espírito Santo na teologia evangélica está de
acordo com a teologia católica porque depende em grande medida da elaboração
desta a partir da Escritura. O Espírito é divino, igual em essência e atributos ao
Pai e ao Filho e é pessoa distinta, ainda que inseparável, dos dois na unidade da
Trindade. Essa crença é afirmada na Escritura e foi defendida pela igreja
primitiva em oposição às ideias heréticas. São bem atestadas na Escritura as
obras do Espírito na Criação, encarnação (profecias da vinda do Messias; na
concepção miraculosa do Filho de Deus no ventre da virgem Maria; na unção de
Jesus para seu ministério messiânico), na salvação (incluindo a convicção de
pecado, no aproximar-se de Cristo, na iluminação do evangelho, na regeneração,
no despertar da fé, na adoção e na intercessão), bem como na consumação
(ressurreição do corpo). Além disso, o Espírito previu seu ministério vindouro na
nova aliança (um novo derramamento futuro sem precedentes do Espírito sobre
todas as pessoas), uma palavra profética cuja continuação veio e foi fortalecida
tanto por João Batista quanto por Jesus. De fato, Jesus prometeu enviar o
Espírito Santo para estar para sempre com os discípulos, para ensiná-los e para
142
conduzi-los à verdade, para lhes trazer à mente tudo o que ele disse e fez, para
dar testemunho de Cristo e glorificá-lo. Essas profecias e promessas começaram
a ser cumpridas no dia de Pentecostes, quando o Espírito Santo foi derramado
sobre seu novo ministério de aliança e deu à luz a igreja. Agora, vivendo dentro
de todos os cristãos, o Espírito lhes dá amor, promove a santificação, a
semelhança com Cristo, reveste de poder para o serviço, suscita a fidelidade e a
obediência à medida que os cristãos se enchem do Espírito e caminham com ele,
e muito mais.
Apesar desse amplo acordo, há várias diferenças importantes no que diz
respeito à doutrina do Espírito Santo. Em primeiro lugar, a teologia evangélica
vê com suspeita o desprezo da teologia católica pelo Espírito Santo como “um
outro paráclito” (ajudador/consolador; Jo 14.16). Embora o Catechism deixe
claro que Jesus é “o primeiro consolador” (com base em 1Jo 2.1), ele não
143
“para que não se confunda Deus com suas obras”. Na primeira parte deste
3
pelo Espírito Santo e é missional em sua constituição — foi criada para fazer
discípulos de todas as nações — por obra de Cristo e do Espírito. Por fim, a
igreja será um dia aperfeiçoada na glória quando Cristo retornar.
Misteriosamente, a igreja é a um só tempo visível e espiritual, humana e
divina; visível e humana em sua hierarquia e em sua sociedade terrena; espiritual
e divina em sua natureza de corpo místico de Cristo e comunidade espiritual a
quem foram concedidas riquezas celestiais. Essas características pertencem não
apenas às igrejas locais, mas também à igreja universal. Além disso, a igreja é o
sacramento universal da salvação: “A Igreja, em Cristo, é como um sacramento
— sinal e instrumento, a saber, de comunhão com Deus e de unidade entre todos
os homens”. Cristo usa o sacramento da igreja como instrumento de salvação
8
universal, unindo o ser humano a Deus, unindo todos os seres humanos a Deus e,
como consequência disso, todos os seres humanos uns com os outros.
O Catechism apresenta três elementos descritivos principais da igreja: em
primeiro lugar, a igreja é o povo de Deus, um povo sacerdotal, profético e real.
Em segundo lugar, a igreja é o corpo de Cristo, está unida a ele que é a cabeça de
um corpo de grande diversidade, composto por muitos membros. Na verdade,
“Cristo e sua Igreja formam juntos o ‘Cristo total’ (Christus totus)”. Além disso,
9
fazem parte “da Igreja única de Cristo que nosso Salvador [...] confiou aos
cuidados pastorais de Pedro, ordenando-lhe, e aos outros apóstolos, que a
propagassem e governassem [...]. Essa Igreja [...] subsiste em (subsistit in) na
Igreja Católica, que é governada pelo sucessor de Pedro e por seus bispos em
comunhão com ele”. Como apenas a Igreja Católica possui esses três elementos
13
de unidade, é somente por meio dessa igreja que a “a ajuda universal para a
salvação [...] a plenitude dos meios de salvação pode ser obtida”. 14
verdade fora dos limites da Igreja Católica”: Escritura; graça; fé, esperança e
16
graça e da verdade que Cristo confiou à Igreja Católica”, essas outras igrejas e
comunidades eclesiais derivam seu poder para que se tornem meios de salvação,
sendo ao mesmo tempo chamadas à “unidade católica”. Graças à grande
18
Como totus Christus, o Cristo total como cabeça unida à plenitude do seu corpo,
a igreja possui a plenitude dos meios de salvação, concretamente o Credo, a
liturgia com seus sacramentos e a sucessão apostólica. Com relação ao segundo
motivo, Cristo comissionou seus discípulos com a seguinte ordem: “Portanto,
ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, do Filho e
do Espírito Santo” (Mt 28.19). O alcance da Grande Comissão é universal. Essa
catolicidade é parte não apenas da igreja em geral. Toda igreja em particular (ou
diocese) — “uma comunidade de fiéis cristãos em comunhão sacramental e de fé
com seu bispo ordenado de acordo com a sucessão apostólica” — é plenamente
católica por meio de sua comunhão com a igreja de Roma. 25
relação aos judeus, a igreja tem em comum com eles a fé na revelação de Deus
na antiga aliança, a Lei, os patriarcas e o Cristo (Rm 9.4,5); de fato, tanto judeus
quanto a igreja esperam “a vinda (o retorno) do Messias”, embora, no que diz
respeito aos judeus, “a espera se dê acompanhada do drama de não conhecer ou
de compreender mal a Cristo Jesus”. Em relação aos muçulmanos, o Catechism
31
adeptos das religiões não cristãs — por exemplo, hindus, budistas, siques,
bahahístas, zoroastrianos, xintoístas, animistas —, “a Igreja reconhece nas
33
caminho de salvação para seus adeptos, ele também reconhece que na jornada
por eles empreendida não faltam sérias dificuldades.
Uma vez que essas outras igrejas, comunidades eclesiais e religiões não cristãs
se acham em maior ou menor grau distantes da plenitude da salvação que há no
centro do círculo, “o Pai quis reunir toda a humanidade na Igreja do seu Filho. A
Igreja é o lugar onde a humanidade deve reencontrar sua unidade e salvação. Ela
é ‘o mundo reconciliado’”. O Catechism suscita outra indagação importante:
36
que, não ignorando que Deus, por Jesus Cristo, fundou a Igreja Católica como
necessária, se recusam a entrar nela ou a nela perseverar”. O Catechism faz
39
então uma advertência: “Esta afirmação não visa àqueles que, sem culpa da sua
parte, ignoram Cristo e sua Igreja”. Na verdade, “também podem conseguir a
40
salvação eterna aqueles que, ignorando sem culpa o evangelho de Cristo e a sua
Igreja, no entanto procuram Deus com um coração sincero e se esforçam, sob o
influxo da graça, por cumprir a sua vontade conhecida por meio do que a
consciência lhes dita”. O que Deus realiza misteriosamente nesses casos não
41
tira, nem deve tirar, a obrigação da igreja de alcançar todas as pessoas com o
evangelho.
Consequentemente, sua catolicidade exige que a igreja seja missional. A ela
foi concedida a Grande Comissão (Mt 28.19,20), um mandato missionário que
tem em sua origem o amor pelo Deus trino e que tem como propósito o
estabelecimento da comunhão de amor entre Deus e o ser humano. Movida pelo
amor de Cristo (2Co 5.14), motivada pela consciência de que Deus deseja que
todos se salvem (1Tm 2.4), e conduzida pelo Espírito, a igreja participa de
esforços missionários cujo propósito é levar a verdade da salvação aos que já
desejam a verdade. 42
Avaliação evangélica
Embora o Catechism prossiga em sua longa discussão da doutrina da igreja, vale
a pena fazer uma avaliação do que ele afirma até este ponto (parágrafos 1-3).
Conforme ficará evidente, uma das doutrinas que mais separa a teologia católica
da teologia evangélica é a doutrina da igreja. Antes de apresentar as muitas áreas
de conflito, porém, é importante salientar as várias áreas de concordância.
Avaliação geral
Em linhas gerais, a teologia católica e a evangélica concordam que a noção
básica em relação à igreja é a de que se trata de uma assembleia. Ambas
46
tornam menos real, já que a igreja universal se manifesta nas igrejas locais.
Consequentemente, há uma ampla divisão entre a ideia de igreja universal da
teologia católica e da teologia evangélica. Uma implicação dessa divergência
consiste no fato de que a teologia evangélica discorda da alegação da teologia
católica de ser sacramento universal de salvação. Sem dúvida, as igrejas locais
são divinamente designadas para serem instrumentos de salvação, à medida que
seus pastores e membros proclamam o evangelho, discipulam, adoram, batizam,
celebram a ceia do Senhor, oram, educam, proporcionam comunhão, cuidados,
exercitam os dons espirituais etc. Contudo, tal instrumentalidade pertence às
igrejas locais, mas não se estende o bastante para incluir uma igreja universal
que seja uma assembleia concreta e real — a Igreja Católica.
No âmago da discordância da teologia evangélica, deparamos com o duplo
axioma do sistema católico. A interdependência natureza-graça requer que a
graça divina se manifeste concretamente na natureza. Desse modo, a igreja como
corpo de Jesus Cristo não pode ser uma entidade invisível, espiritual e
intangível. Pelo contrário, ela deve ser uma realidade visível, material e concreta
— a Igreja Católica. A interconexão Cristo-Igreja significa que a Igreja Católica
é a extensão da encarnação do Cristo que subiu ao céu. Concretamente, a Igreja
Católica faz a mediação da graça divina para a natureza (humana), de modo que
seja o meio único e universal de salvação. Como esses dois axiomas (que estão
no âmago do sistema teológico católico) já foram avaliados (cap. 1), nos
ocuparemos aqui da crítica específica da eclesiologia católica, particularmente
da sua apresentação dos quatro atributos históricos ou clássicos da igreja.
É importante ressaltar que os reformadores protestantes criticaram a Igreja
Católica e dela se separaram por esta se autoproclamar a “única, santa, católica e
apostólica”. Essa separação não se deu porque os reformadores achavam esses
atributos históricos antibíblicos e, portanto, infiéis à igreja, e sim porque a igreja
do século 16 dizia serem essas suas características, mas desvirtuava sua
fidelidade a elas e à realidade que comportavam em virtude do estado de
decadência a que havia sucumbido. Consequentemente, embora afirmassem que
a igreja era “única, santa, católica e apostólica”, os reformadores tinham de
distinguir as verdadeiras igrejas — as que haviam sido inauguradas por Martinho
Lutero, Ulrico Zuínglio, João Calvino e outros — da falsa Igreja Católica. A
situação fez os reformadores assinalarem as características da verdadeira igreja,
que eram duas. Conforme diz a Confissão de Augsburgo (de teologia luterana):
“A igreja é a congregação dos santos em que o evangelho é ensinado
corretamente e os sacramentos [batismo e ceia do Senhor] são administrados
corretamente”. Calvino (de teologia reformada) estava de acordo: “Onde quer
51
Unicidade/unidade
Consequentemente, embora a teologia católica acentue esses três elos — o
Credo, a liturgia e a sucessão apostólica — de unicidade da igreja, a teologia
54
evangélica sustenta que “para que haja unidade verdadeira da igreja, basta que
haja concordância no tocante ao evangelho e à administração dos sacramentos”. 55
Além disso, para a teologia evangélica a unidade se dá de três maneiras: por sua
posição, a unidade é a realidade da igreja; isto é, ela já está unida porque recebeu
o dom da unicidade pelo Espírito Santo (Ef 4.3). Por seu propósito, a igreja tem
como objetivo “[chegar] à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de
Deus, ao estado de homem feito, à medida da estatura da plenitude de Cristo” (v.
13). Essa conquista da unidade como objetivo acarreta um processo. Do ponto de
vista instrumental, a unidade entre seus membros estimula o crescimento na
unidade. Por esse motivo, a igreja se emprenha sobremaneira para preservar a
unidade de que foi dotada (v. 3). “Portanto, afirmar a unidade da igreja significa
afirmar que a igreja, que é dotada de unicidade, busque o objetivo da unidade
perfeita trabalhando diligentemente para preservar sua unidade.” 56
juntamente com seu corolário segundo o qual “a Igreja única de Cristo [...]
subsiste na (subsistit in) Igreja Católica, que é governada pelo sucessor de Pedro
e pelos bispos em comunhão com ele”. Embora a teologia católica não se
58
insiste que a salvação oferecida às pessoas por meio das comunidades eclesiais
decorre, na verdade, “da plenitude da graça e verdade que Cristo confiou à Igreja
Católica”. Além disso, para que se possa recuperar um dia a unidade entre as
60
porque Deus deseja que todos se salvem; ela opera neles por causa da graça de
Deus e os une à Igreja Católica em virtude do fato de que ela é “sacramento
67
universal da salvação”. Não fica claro, porém, exatamente de que modo a igreja
68
pode exercer papel instrumental na salvação dos não cristãos que não têm nem
conhecimento de Cristo nem estão familiarizados com sua igreja. Além disso, 69
para a igreja “todo bem ou verdade que se encontra entre os [não cristãos] [...]
consiste em preparação para o evangelho” dado por Deus como luz para eles. 70
evangélica faz objeção ao inclusivismo porque seu segundo princípio não tem
sustentação bíblica. Na verdade, a Escritura contradiz a ideia de que a fé em
Cristo por meio do evangelho não é necessária à salvação (e.g., Rm 10.13-17).
Além disso, ao longo da história, a igreja jamais creu nisso. O fato é que,
inicialmente, a Igreja Católica não trabalhava com a ideia de que não cristãos
poderiam ser salvos sem se tornarem cristãos até o seguinte pronunciamento do
papa Pio IX em 1863:
E aqui, queridos filhos e veneráveis irmãos, é mister recordar e censurar novamente o gravíssimo
erro no qual lastimavelmente se encontram alguns católicos ao opinarem que homens que vivem no
erro e apartados da verdadeira fé e da unidade católica podem obter a salvação eterna. O que
certamente é oposto em sumo grau à doutrina católica. Notório é a nós e a vós que aqueles que
sofrem de ignorância intransponível acerca de nossa santíssima religião, e que sinceramente guardam
a lei natural e seus preceitos esculpidos por Deus no coração de todos que estão dispostos a obedecer
a Deus, e vivem uma vida honesta e reta, podem conseguir a vida eterna pelo poder da operação da
luz divina e da graça, pois Deus, que conhece, busca e compreende claramente a mente, o coração, o
pensamento e a natureza de todos, não permitirá de modo algum que alguém seja castigado com
eternos tormentos, se não é réu de culpa voluntária.73
Até então, o Concílio Vaticano I (1870) não considerava essa ideia, que
efetivamente não veio à tona até a publicação da encíclica de 1943 do papa Pio
XII, O corpo místico de Cristo. Depois de um prolongado desenvolvimento, a
74
mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece; mas vós o conheceis”
(Jo 14.17). Se o dom do Espírito Santo está prometido aos cristãos, mas é
negado aos que são de fora, como podem essas versões do inclusivismo católico
alegar um papel para o Espírito nas religiões e atividades dos não cristãos? Para
o inclusivismo católico, também a fé é suscitada por uma atividade divina
independente do conhecimento do evangelho, embora a teologia católica atribua
isso a um mistério que, consequentemente, não foi revelado por Deus. Conforme
se lê no Ad gentes do Concílio Vaticano II: “Deus pode por caminhos dele
conhecidos levar à fé os homens que sem culpa própria ignoram o evangelho.
Pois sem a fé é impossível agradar-lhe”. Se tais caminhos são “conhecidos de
79
Deus”, a implicação parece ser a de que não são conhecidos das pessoas;
portanto, se tal atividade divina não é questão de revelação divina, como pode a
teologia católica afirmar alguma coisa a seu respeito? Assim o inclusivismo
parece ser, no máximo, especulação.
Como objeção final ao inclusivismo católico, a teologia evangélica chama a
atenção para a sua visão de possibilidade de salvação de judeus e muçulmanos. É
importante observar que, embora o Catechism chame especialmente a atenção
para o fato de que a espera dos judeus pelo Messias “seja acompanhada do
drama de não conhecer ou compreender mal Cristo Jesus”, ele não faz menção 80
alguma dos princípios fundamentais do islã que negam a Trindade (sura 4.171) e
criticam a ideia de que Deus tenha um Filho (e.g., suras 4.171; 6.101; 9.30).
Contudo, no caso do judaísmo e do islamismo, a falta de reconhecimento, ou a
negação objetiva, da Trindade e da divindade de Jesus Cristo coloca-os fora do
âmbito da salvação, conforme explica Jesus:
E disse-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo que o Filho nada pode fazer por si mesmo,
senão o que vir o Pai fazer; porque tudo quanto ele faz, o Filho faz também. Porque o Pai ama o
Filho e mostra-lhe tudo o que ele mesmo faz; e lhe mostrará obras maiores que estas, para que vos
admireis. Pois, assim como o Pai ressuscita os mortos e concede-lhes vida, assim também o Filho
concede vida a quem ele quer. Porque o Pai não julga ninguém, mas entregou ao Filho todo o
julgamento, para que todos honrem o Filho, assim como honram o Pai. Quem não honra o Filho não
honra o Pai que o enviou. Em verdade, em verdade vos digo que quem ouve a minha palavra e crê
naquele que me enviou tem a vida eterna e não vai a julgamento, mas já passou da morte para a vida
(Jo 5.19-24).
A obra do Pai e do Filho (a obra do Espírito, embora não esteja sendo discutida
neste momento, poderia ser acrescentada aqui) realizou a salvação eterna, e Deus
não pode ser honrado se o Filho não for honrado. Além disso, a vida eterna é
apropriada pela fé no evangelho de Cristo. Tendo em vista os princípios
fundamentais de suas religiões, os adeptos do judaísmo e do islã estão excluídos
da salvação eterna. A posição da teologia evangélica é de exclusivismo, em
contradição com o inclusivismo sustentado pela teologia católica.
Em suma, o atributo da catolicidade da igreja cria uma profunda divisão entre
a teologia católica e a teologia evangélica.
Apostolicidade
Com relação ao atributo da apostolicidade, o acordo entre as duas posições está
na ênfase dada ao papel fundacional dos apóstolos na igreja (Ef 2.20) e no Novo
Testamento como escrito dos apóstolos. As diferenças são inúmeras desse ponto
em diante. A teologia evangélica discorda especialmente da doutrina da sucessão
apostólica da teologia católica. Certamente, Jesus Cristo escolheu doze
discípulos para o ministério (Mt 10) e, depois de sua morte e ressurreição, ele os
incumbiu de cumprir a Grande Comissão (Mt 28.18-20). De modo concreto, a
missão com a qual o Pai comissionara o Filho se tornou a missão com a qual o
Filho comissionou a igreja: “Assim como o Pai me enviou, também eu vos
envio” (Jo 20.21). Essa missão era evangelística em sua natureza, proclamando o
evangelho do perdão de pecados por meio de Jesus Cristo (Lc 24.44-48; Jo
20.23), e se propunha a fazer discípulos no mundo inteiro (Mt 28.18-20). O
início do cumprimento da missionalidade da igreja é narrado em Atos. O que
surpreende é a preocupação dos apóstolos de anunciar as boas-novas; chamando
as pessoas para que se arrependessem dos seus pecados e confiassem em Jesus
Cristo pela fé; prometendo o perdão dos pecados e o dom do Espírito àqueles
que clamassem pelo Senhor; batizando esses discípulos e incorporando-os à
igreja, onde o ensino apostólico, a ceia do Senhor, a adoração, oração,
comunhão, generosidade sacrifical, sinais e maravilhas e a multiplicação tinham
lugar (e.g., At 2.38-47). Essa narrativa não apresenta o desenvolvimento de
hierarquia que se autoperpetuava, e também não propõe o modelo de uma linha
de sucessão dos apóstolos. Na verdade, muitos personagens não apostólicos
aparecem na história: Estêvão, o primeiro mártir cristão (At 7); Filipe, o
evangelista dos samaritanos e do eunuco etíope (At 8); “homens de Chipre e
Cirene” que evangelizam os gregos (At 11.19-22) e instituem a primeira igreja
gentia, liderada por Barnabé, em Antioquia (v. 22-26); e outros. Sem dúvida, os
apóstolos escolheram líderes nas igrejas que haviam plantado (e.g., 14.23), mas
essas indicações não transferiam nenhum tipo de autoridade apostólica aos
indicados.
A forma episcopal de governo da igreja, que levou eventualmente à estrutura
hierárquica da Igreja Católica com o papado à frente, foi obra de
desenvolvimento histórico e não lhe faltaram problemas. Seu triplo modelo de
liderança — episcopado (ou ofício do bispo); presbiterado/sacerdócio/pastorado;
e diaconato — contradiz o modelo duplo de liderança estabelecido pela
Escritura: o Novo Testamento apresenta um ofício de ensino e de supervisão que
é exercido por líderes chamados de presbíteros, bispos, supervisores ou pastores
(os termos são usados de forma intercambiável no Novo Testamento), e um
81
porém, Pedro professa que “temos ainda mais firme a palavra profética” e
discorre sobre a Palavra de Deus escrita, produto de autores bíblicos movidos
pelo Espírito Santo (v. 19-21). Se ele, o principal dos apóstolos, considerava a
Escritura instrução divina e confiável para a igreja na era pós-apostólica, é difícil
compreender o que a sucessão apostólica teria a acrescentar a esse fundamento já
garantido. Consequentemente, a teologia evangélica acolhe a apostolicidade
como logocentricidade, ou centralidade da Palavra, da igreja cuja atenção está
voltada para os escritos dos apóstolos.
Com isso, concluímos a avaliação evangélica da primeira seção do Catechism
sobre a doutrina da igreja. Segue-se agora a apresentação da segunda parte, que
também será avaliada.
O colégio episcopal e seu chefe, o papa, têm origem na instituição dos Doze
por Cristo: “Ele os constituiu sob a forma de um colégio ou assembleia
permanente à frente do qual colocou Pedro, escolhido entre eles”. O 90
anteriormente, a autoridade dos bispos deve ser exercida em sintonia com o papa
e é controlada em última análise por ele. Ao mesmo tempo, a autoridade do
bispo é pessoal, ordinária e imediata porque é exercida em nome de Cristo, o
Bom Pastor, que é modelo do ofício pastoral do bispo.
O segundo segmento de fiéis consiste nos leigos da igreja; incorporados que
foram em Cristo pelo batismo, participam de seu triplo ministério ao executar a
missão da igreja. Os leigos diferem da hierarquia porque não foram ordenados
pelo sacramento da ordem, e diferem dos monges e freiras da vida religiosa
porque não fizeram os três votos evangélicos de castidade, pobreza e
obediência. Sua vocação os leva a participar de questões temporais —
104
“Maria ‘assistiu com suas orações aos começos da Igreja’ [...] implorando [...] o
dom [do] Espírito, que já na anunciação a cobrira com a sua sombra”. Por fim, 115
Maria foi unida a seu Filho em sua assunção. O dogma da assunção corporal de
Maria, promulgado pelo papa Pio XII, significa que “a Virgem Imaculada,
preservada imune de toda a mancha da culpa original, terminado o curso da vida
terrena, foi elevada ao céu em corpo e alma e exaltada pelo Senhor como rainha,
para assim se conformar mais plenamente com o seu Filho, Senhor dos senhores
e vencedor do pecado e da morte”. Consequentemente, Maria participou de
116
maneira singular da ressurreição do seu Filho, de tal forma que ela é a única
crente no céu que tem corpo. Além disso, sua assunção é “uma antecipação da
ressurreição dos demais cristãos”. 117
“O papel de Maria na Igreja é inseparável de sua união com Cristo e decorre
diretamente dela.” De modo concreto, “a Virgem Maria é o modelo de fé e
118
sua obediência, fé, esperança e amor por meio dos quais ela cooperou com a
obra de salvação de Cristo, Maria é mãe da Igreja na ordem da graça. Sua graça
salvadora não cessou com sua ascensão física, mas continua desimpedidamente
mediante sua intercessão. “Por isso, a Virgem é invocada na Igreja com os títulos
de advogada, auxiliadora, socorro e medianeira.” O Catechism nega
120
Avaliação evangélica
A primeira parte (parágrafos 1-3) da longa discussão do Catechism a respeito da
doutrina da Igreja já foi avaliada; a segunda parte (parágrafos 4-6) será avaliada
agora. Conforme já foi observado, e se tornará ainda mais evidente, essa
doutrina separa significativamente a teologia católica da teologia evangélica.
Assim como anteriormente, as áreas de concordância serão apresentadas antes da
discussão das muitas áreas de conflito.
está em dívida com bispos romanos como Leão I e sua articulação da doutrina
ortodoxa de Cristo que abriu caminho para o Credo de Calcedônia. Contudo,
133 134
dogmas não contradizem a Escritura, o fato é que eles vão além dela e, portanto,
contradizem sua suficiência.
Leigos católicos
Em relação à exposição que a teologia católica faz da laicidade da Igreja, a
teologia evangélica aplaude várias de suas afirmações. Uma delas diz respeito à
posição elevada conferida aos leigos, resultado do estímulo encorajador posto
em prática pelo Vaticano II. A participação dos leigos na missão da igreja
encontra amplo respaldo na teologia evangélica, que, em suas muitas variedades,
conclama os leigos a executar o triplo ofício — sacerdotal, profético e real — de
Cristo. Consequentemente, todos os cristãos são chamados a pregar o evangelho
uns aos outros e a orar uns pelos outros, exercendo o sacerdócio de todos os
crentes. Além disso, eles são chamados para ser embaixadores de Cristo para
evangelizar os não crentes pela participação no ministério da reconciliação (2Co
5.14-21). Embora a teologia evangélica não veja na participação no ofício real de
Cristo um exercício de autodomínio — já criticamos a ideia da teologia católica
de que a razão/intelecto humano deve reinar sobre as paixões do corpo —, ela
certamente afirma que a função real requer de todos os cristãos
responsabilidades vocacionais. Esses cristãos, também, em caso de males
pessoais e sistêmicos, são chamados a se opor à injustiça e a defender a causa
dos marginalizados, dos pobres, órfãos e viúvas etc. Por fim, a exemplo de sua
congênere católica, a teologia evangélica incentiva a colaboração dos leigos com
o clero para o progresso da igreja.
Religiosos católicos
Com relação à estratégia da teologia católica para a vida de consagração dos que
entraram para as ordens religiosas, a teologia evangélica concorda em parte e
discorda também em parte. Em primeiro lugar, a concordância se justifica pelo
fato de que Cristo chama todos os seus fiéis para que vivam uma vida de total
devoção consciente a ele. Tudo o que separa o cristão de sua santidade ou
espiritualidade alija-o da discussão e da realidade. Não importa qual seja a
distinção (e os exemplos a seguir são encontrados no evangelicalismo): cristãos
batizados no Espírito e cristãos comuns (como se vê na teologia
pentecostal/carismática), cristãos espirituais e cristãos carnais (como na teologia
de Keswick), discípulos e crentes (conforme a Grace Evangelical Society), ou
um outro tipo de combinação, a perspectiva bíblica da santidade a repudia. 137
Marinho Lutero e, de modo especial, seu Treatise on good works [Tratado sobre
as boas obras], de 1520, a teologia evangélica se recusa a elevar a atividade
“religiosa” acima de outras obras humanas no que diz respeito ao que é mais
agradável a Deus e ao que contribui mais efetivamente para a santificação
pessoal. Em razão do chamado divino para a busca da santidade e a capacitação
para tal (e.g., 2Pe 1.3,4), essa busca se estende a todos os cristãos, não importa
sua vocação. Eles podem ser profissionais da religião — por exemplo, padres e
religiosos no caso da teologia católica, pastores/presbíteros e missionários no
caso da teologia evangélica —, mas isso não significa que estejam em posição
mais favorável diante de Deus, tampouco em posição mais vantajosa para
agradá-lo.
Tomando os conselhos evangélicos um por um, a teologia evangélica afirma
que o celibato é uma escolha que o crente poderá fazer contanto que receba de
Deus o dom para o celibato (1Co 7.7). Um sinal de que a pessoa tem esse dom é
a alegria por não ser casado e a capacidade dada por Deus de controlar o desejo
sexual de maneiras que honrem a Deus (v. 8,9,36-38). Além disso, a teologia
evangélica diz que o celibato temporário é concedido, porém não ordenado, aos
casados, nas seguintes condições: quando há um acordo temporário comum e
com um propósito espiritual que chega ao fim com a retomada das relações
sexuais (v. 5,6). Além disso, a teologia evangélica reconhece que o celibato
cristão fica livre de “dificuldades na vida terrena” e de ansiedades próprias da
vida conjugal e familiar, preocupando-se o indivíduo apenas com as “coisas do
Senhor” (v. 32-35). Consequentemente, o celibato e a vida de solteiro são um
dom maravilhoso para a igreja.
Contudo, a teologia evangélica discorda quando o celibato se torna um
requisito para determinado tipo de serviço na igreja. Embora seja
conceitualmente possível que o dom do celibato corresponda ao grupo de
homens e mulheres não casados em estado consagrado (poderíamos acrescentar
também o grupo de sacerdotes que recebeu o sacramento da ordem), a realidade
da imoralidade sexual, tanto no que diz respeito ao pecado heterossexual quanto
homossexual, entre os que fizeram o voto de celibato é evidência contrária a ele.
De fato, a teologia evangélica questiona se a compreensão errônea do celibato
não seria um fator que contribuiu para o fracasso nessa área. Afinal de contas,
quando Paulo diz que “quem não se casa faz melhor” (v. 38), ele está se
referindo aos que estão prontos para se casar, mas se abstêm de fazê-lo “por
causa da dificuldade do momento” (v. 26; provavelmente uma referência à
intensa perseguição da igreja) e porque são capazes de controlar seus desejos
sexuais (v. 36-38). Essa instrução não é um manifesto a favor do celibato para
todos em todas as épocas.
Com relação ao conselho evangélico da pobreza, a teologia evangélica
enfatiza a compaixão de Jesus pelos pobres e marginalizados da sociedade (e. g.,
Mc 14.7; Lc 4.18) e a missão da igreja em favor dos pobres (At 4.32-35; Gl 2.10;
1Tm 5.3-16; Tg 1.27; 2.15,16). A teologia evangélica não concorda, porém,
139
com a ideia de que a pobreza contribua para aumentar a santificação. São várias
as disciplinas espirituais bíblicas: oração, leitura e meditação na Escritura, jejum,
prestação de contas, tempo a sós com Deus etc. Até mesmo dar é uma disciplina
imposta a todos os cristãos (2Co 8 e 9). E, embora exemplos de grande
generosidade estejam presentes na Escritura (Zaqueu, e. g., prometeu dar metade
da sua riqueza aos pobres; Lc 19.1-10), eles se fixam em uma pessoa específica
(e.g., a recusa de um homem importante em se desfazer do seu dinheiro expôs
sua idolatria; Lc 18.18-30) ou em atos concretos de generosidade (e.g., os
cristãos que dispunham de meios financeiros e físicos na igreja de Jerusalém
contribuíam com espírito de sacrifício, At 2.44,45; 4.32-35; Barnabé vendeu um
campo, At 4.36,37). Contudo, o ato de dar na Escritura nunca é apresentado
como obrigação de se livrar de tudo o que se possui. Ananias e Safira, por
exemplo, pecaram não porque retiveram parte do lucro da venda de sua
propriedade, mas porque deram a entender que haviam dado tudo o que haviam
apurado com a venda (At 5.1-11). Dar é uma disciplina, mas a pobreza, não.
Além disso, o apóstolo Paulo encoraja os que são ricos a “que pratiquem o bem e
se enriqueçam com boas obras, sejam solidários e generosos” (1Tm 6.17-19). É
importante também observar que Paulo se dirige à situação financeira dos
presbíteros da igreja: “Os presbíteros que governam bem devem ser dignos de
honra em dobro [respeito e remuneração], principalmente os que trabalham na
pregação e no ensino. Porque a Escritura diz: Não amarres a boca do boi quando
ele estiver debulhando; e: O trabalhador é digno do seu salário” (5.17,18). Não
há recomendação para que os que servem na igreja sejam pobres.
O conselho evangélico da obediência encontra respaldo da teologia evangélica
no fato de que a submissão a Deus, a conformidade a todos os seus
mandamentos — e todas as proibições — da Escritura e o acolhimento de todas
as diretrizes boas e lícitas dos que detêm autoridade (autoridades do governo,
pais, empregadores, líderes de igreja) são adequadas ao cristão. Contudo, se a
obediência é o curso normal da vida cristã, como pode ser mais ainda do que é
para os que vivem a vida consagrada, a menos que signifique submissão a regras
e regulamentos que vão além da Escritura e que as autoridades legalmente
constituídas prescrevem de forma legítima? Neste último caso, a questão não é
de obediência, mas de adições não bíblicas e de autoridades ilegítimas ou de
prescrições ilegítimas de autoridades legítimas.
Portanto, a teologia evangélica tem sérias preocupações com os conselhos
evangélicos de castidade, pobreza e obediência adotados por homens e mulheres
que procuram viver a vida consagrada.
Uma última questão em que há acordos e discordâncias: a teologia evangélica
concorda com a vida comunitária, que é um tipo de vida religiosa na Igreja
Católica. Mas discorda de outro tipo de vida, a vida do eremita, que exige
solidão pelo distanciamento do mundo. Uma questão fundamental desse
desacordo é que essa retirada planejada contradiz a essência daquilo pelo que
Jesus orou ao Pai pensando em seus discípulos:
Eu lhes dei a tua palavra; o mundo os odiou, pois não são do mundo, assim como eu também não
sou. Não rogo que os tires do mundo, mas que os guardes do Maligno. Eles não são do mundo, assim
como eu também não sou. Santifica-os na verdade, a tua palavra é a verdade. Assim como tu me
enviaste ao mundo, eu também os enviei ao mundo. E por eles me santifico, para que também eles
sejam santificados na verdade (Jo 17.14-19).
Retirar-se do mundo, que por meio de suas filosofias carnais e sistemas ímpios
se coloca contra a igreja e procura poluí-la e sabotá-la, não é uma opção para o
cristão, e também não foi para Jesus: assim como Jesus estava no mundo, mas
não pertencia a ele, a igreja deve estar no mundo, embora não pertença a ele. De
fato, assim como o Pai enviou o Filho ao mundo para concretizar a salvação,
assim também o Filho envia a igreja ao mundo para anunciar como essa salvação
conquistada deverá ser apropriada (cf. Jo 20.21). A consagração que Jesus faz de
si mesmo por amor à igreja, bem como a Palavra de Deus que ele traz, é
suficiente para que a igreja esteja no mundo e não seja do mundo, participando
de seus esforços missionais e sendo fiel e obediente a Deus.
católica prossegue: “E, no entanto, o ‘testamento da cruz de Cristo’ diz mais”. 143
observa que o Credo “associa a fé no perdão dos pecados não apenas com a fé no
Espírito Santo, mas também com a fé na Igreja e na comunhão dos santos”. O 2
Catechism aponta para Cristo, que concede o Espírito Santo, juntamente com
“divino poder para perdoar pecados”, por intermédio dos apóstolos, como base
bíblica para esse princípio de fé. No dia da ressurreição, Jesus disse a seus
discípulos: “Recebei o Espírito Santo. Se perdoardes os pecados de alguém,
serão perdoados; se os retiverdes, serão retidos” (Jo 20.22,23). Além disso,
3
batismo é um dos usos possíveis das chaves do reino conferidas por Cristo à sua
Igreja (Mt 16.13-20).
Ao mesmo tempo, “a graça do batismo não isenta ninguém de nenhuma das
enfermidades da natureza. Pelo contrário, resta-nos ainda combater os
movimentos da concupiscência, que não cessam de nos arrastar para o mal”. 5
Para vencer essa inclinação que seduz a pecar e que culmina com o pecado, o
fiel precisa de outro remédio além do batismo. Portanto, a Igreja recorre
novamente às chaves do reino e nelas encontra o sacramento da penitência, que
lhe dá poder para “perdoar as faltas a todos os penitentes”. A penitência,
6
Avaliação evangélica
Como a doutrina do perdão dos pecados se acha intimamente associada ao
batismo e à penitência, sua avaliação completa só ocorrerá no momento que o
Catechism fizer a exposição dos sacramentos. Contudo, conforme observamos
anteriormente, a associação íntima da teologia católica do perdão aos apóstolos
— e, portanto, aos seus sucessores, os bispos da Igreja Católica — é motivo de
dificuldades porque se acha baseada em dois axiomas do sistema católico: a
interdependência natureza-graça se manifesta na necessidade de graça a ser
conferida de uma maneira tangível; portanto, ela deve ser conferida
concretamente, primeiro pelos apóstolos e, depois de sua morte, pelos bispos da
Igreja Católica. A interconexão Cristo-Igreja se expressa por meio da exigência
de mediação entre os dois reinos, isto é, natureza e graça. Portanto, a Igreja
Católica deve comunicar graça à natureza. Esses dois axiomas já foram
analisados (cap. 1).
Pode-se fazer igualmente uma crítica específica desse ponto. Sem dúvida, a
teologia evangélica reconhece o dom e a comissão confiados por Cristo a seus
discípulos: “E havendo dito isso, soprou sobre eles e disse-lhes: Recebei o
Espírito Santo. Se perdoardes os pecados de alguém, serão perdoados; se os
retiverdes, serão retidos” (Jo 20.22,23). A pergunta que se coloca é a seguinte:
como a Escritura apresenta a iniciativa apostólica para o cumprimento dessa
tarefa missional? Seguindo o Evangelho de João pela ordem canônica, o livro de
Atos narra o período de espera e de oração em antecipação à vinda do Espírito
Santo (At 1.12-14) e sua descida no dia de Pentecostes para dar início a seu novo
ministério de aliança e inaugurar a igreja (At 2). Os discípulos de Jesus — e não
apenas os Doze por ele instituídos (At 1.15-26), e sim 120 no total (v. 15) —
foram batizados, ou cheios do Espírito Santo, recebendo desse modo o dom do
Espírito prometido por Cristo (v. 4,5; 2.4). Tendo recebido poder do alto com o
recurso divino necessário (1.8), esses discípulos foram lançados em sua missão
evangélica, que é narrada em todo o livro de Atos. Os aspectos desse esforço
missionário consistiram no anúncio da obra de Jesus de Nazaré a favor dos seres
humanos decaídos; instrução de arrependimento do pecado e fé em Jesus Cristo;
promessa de perdão e o dom do Espírito; batismo; afiliação à igreja (2.22-47). A
participação na Grande Comissão não era restrita aos apóstolos; Estêvão (At 7),
Filipe (At 8) e os homens de Chipre e Cirene (At 11.19-26) são mencionados
especificamente como arautos não apostólicos do evangelho. Consequentemente,
o perdão de pecados não é uma prerrogativa de uma casta especial de homens,
tampouco algo que pertence exclusivamente ao seu ministério. Sejam quais
forem as realidades institucionais e hierárquicas introduzidas posteriormente na
história para que a remissão de pecados fosse restrita aos sacerdotes/bispos da
Igreja Católica, eles não podem alterar o que a Escritura ordena a todos os
seguidores de Cristo que receberam poder pelo Espírito de Deus. Quando uma
mãe cristã partilha o evangelho de Jesus Cristo e seu filho perdido se arrepende e
crê, a declaração dessa mãe — “Seus pecados estão perdoados” — expressa a
verdade de pecados já desligados no céu por causa do sacrifício de Cristo (Mt
16.19,21), e é motivo de “alegria perante os anjos de Deus” por causa do filho
pródigo que voltou ao lar e foi encontrado (Lc 15.10,11-32).
A conexão específica desse perdão de pecado com os sacramentos do batismo
e da penitência da Igreja Católica será analisada e avaliada posteriormente.
que encontra sua expressão mais clara e completa na associação que Jesus faz da
“fé na ressurreição à sua pessoa: ‘Eu sou a ressurreição e a vida’. É Jesus quem,
no dia final, levantará aqueles que creram nele, que comeram seu corpo e
beberam seu sangue”. Desde o início, a fé na ressurreição enfrentou forte
9
resistência: “Não há ponto em que a fé cristã encontre mais contradição do que o
da ressurreição da carne”. 10
céu com Cristo se dá em forma incorpórea (com exceção de Maria, cujo corpo
subiu ao céu no fim de sua vida). Quando Cristo voltar, todos os crentes
destituídos de corpo ressurgirão e receberão um corpo novo e glorioso; eles terão
novamente um corpo pelo poder de Cristo e do Espírito Santo (1Co 15.35-53; Fp
3.21; Rm 8.11).
Embora tal esperança seja futura, certo aperitivo da ressurreição é concedido
durante esta vida terrena. A participação no sacramento do corpo e do sangue de
Cristo significa que “nossos corpos, que participam da eucaristia, não são mais
corruptíveis, mas possuem a esperança da ressurreição”. A participação no
12
Avaliação evangélica
Com poucas exceções, a teologia católica e a teologia evangélica estão de acordo
em relação à doutrina da ressurreição. A esperança derradeira do cristão não é
morrer e ir para o céu em alma sem corpo; pelo contrário, a expectativa correta é
a que espera a ressurreição do corpo. Somente quando o crente for revestido
novamente de um corpo imperecível, glorioso, forte e espiritual (i.e., totalmente
controlado e dominado pelo Espírito Santo; veja 1Co 15.42-44,49) é que ele
experimentará a plenitude da salvação. Todos os que estão unidos a Cristo —
identificados com sua morte, sepultamento e ressurreição vividamente expressos
no batismo — têm essa esperança. A condição do cristão já é o de ressuscitado
com Cristo, e a realidade da sua cidadania celestial deve motivar e guiar sua
cidadania terrena (Fp 3.20; Cl 2.12; 3.1-4). Por fim, a ressurreição será obra
milagrosa do Espírito Santo (Rm 8.11), que reunirá a alma do crente ao seu novo
corpo glorificado.
O ponto fundamental de discordância diz respeito à fonte do antegozo do
corpo ressurreto durante a vida terrena do crente. A teologia evangélica não crê
que o sacramento da eucaristia confira incorruptibilidade ao corpo, o resultado
da transformação interior por meio da graça de Deus infundida no crente,
conforme afirma a teologia católica. Ouvem-se aí ecos da interdependência
15
sacramento da eucaristia. Por esse meio, a Igreja Católica prepara seus membros
fiéis para a morte.
Quando a morte põe fim à vida terrena do homem, segue-se o julgamento
divino: todos “serão recompensados imediatamente depois da morte de acordo
com suas obras e fé”. O veredito dado no julgamento determinará o destino da
17
experimenta de modo concreto a visão beatífica, isto é, ele “vê a divina essência
com uma visão intuitiva, e até face a face, sem a mediação de criatura alguma”. 20
Além disso, “o céu é o fim último e a realização das aspirações mais profundas
do homem, o estado de felicidade suprema e definitiva” e “consiste na posse em
plenitude dos frutos da redenção operada por Cristo”. 21
consiste em passagens como a da purificação pelo fogo (1Co 3.15; 1Pe 1.7), bem
como a advertência severa de Jesus de aquele que cometer blasfêmia contra o
Espírito Santo “não lhe será perdoado, nem neste mundo, nem no vindouro” (Mt
12.32). Sua ameaça significa que “certas ofensas podem ser perdoadas [...] no
mundo vindouro”. O Catechism também apela à prática de orar pelos mortos,
24
essa ameaça de juízo deve suscitar uma resposta positiva ao apelo divino à
conversão.
Depois do juízo final, “no fim dos tempos, o reino de Deus chegará à sua
plenitude [...] os justos reinarão para sempre com Cristo, glorificados em corpo e
alma”. Além disso, o Universo inteiro, cujo destino se acha intimamente
31
Avaliação evangélica
Prosseguindo com a discussão sobre escatologia, ou a doutrina das últimas
coisas, o Catechism trata da escatologia pessoal no tópico do juízo depois da
morte, e da escatologia nos tópicos sobre o retorno de Cristo, o juízo final, o
milênio e o novo céu e a nova terra. Avaliaremos cada um desses elementos.
Em relação à escatologia pessoal, a morte põe fim à vida terrena, sendo
seguida pelo juízo divino; há dois destinos eternos para o ser humano. De acordo
com a teologia católica, um desses destinos futuros é o céu, que é o destino
eterno imediato dos que morrem na graça e na amizade de Deus e são
perfeitamente puros. Embora a teologia evangélica concorde que o céu é um dos
destinos possíveis que aguardam as pessoas, ela discorda do fundamento a que a
Igreja Católica recorre para fazer tal afirmação. De acordo com o sistema
católico, que é baseado na interdependência natureza-graça, a graça opera no
sentido de elevar a natureza, e o céu é a recompensa do fiel cuja natureza
(humana) foi aperfeiçoada pela graça. Como esse axioma, já avaliado, está
errado, isso significa que o fundamento da teologia católica para que o fiel entre
no céu está equivocado.
Em relação à crítica concreta da teologia evangélica à doutrina católica do céu
(e conforme discutiremos em detalhes posteriormente), a salvação — e, portanto,
a vida com Cristo no céu depois da morte — baseia-se no juízo manifesto de
Deus, e não em alguma purificação (inatingível) nesta vida. A doutrina
evangélica da justificação, que é completamente distinta da ideia proposta pela
teologia católica, sustenta que um dos atos poderosos de Deus na salvação do ser
humano caído é sua declaração de que o homem não é culpado, e sim justificado,
porque Deus, o Juiz, credita a justiça perfeita de Jesus Cristo na sua conta,
tornando-o assim totalmente justo perante ele. Essa justificação está baseada
unicamente na graça divina — conquistada pela morte, pelo sepultamento e pela
ressurreição de Jesus Cristo — e é apropriada somente pela fé, isto é, pela
confiança na obra consumada de Cristo, sem a interferência de boas obras,
esforço humano, envolvimento da igreja, participação nos sacramentos, e/ou
qualquer coisa adicionada à fé salvadora. Portanto, todos os que são justificados
pela graça por meio da fé aguardam seu destino eterno: o céu.
Essa crítica evangélica ao axioma católico da interdependência natureza-
graça, juntamente com a doutrina evangélica da justificação, significa também
que a ideia de purgatório na escatologia católica está errada. De acordo com o
catolicismo, o céu é o destino final não apenas do fiel que foi perfeitamente
purificado, mas também, no fim das contas, daqueles cuja purificação não se
completou em sua existência terrena. Com a morte desses fiéis, a alma deles vai
imediatamente para o purgatório, seu destino temporário e estado de sofrimento
em que eles “[passam por] uma purificação, a fim de obterem a santidade
necessária para entrar na alegria do céu”. Enquanto nesse estado, sua alma pode
35
ser ajudada com orações do fiel no céu e na terra, com a compra de indulgências
para atenuar o tempo necessário à purificação, com a encomenda de missas em
seu favor e outros meios.
Para a teologia católica, o purgatório é necessário porque, para ela, a salvação
— e, por conseguinte, a vida com Cristo no céu depois da morte — se baseia
“não apenas na remissão dos pecados, mas também na santificação e renovação
do homem interior”. Se tal renovação e elevação da natureza humana pela graça
36
de Deus não chega à perfeição nesta vida, é preciso algo mais para a salvação.
Portanto, há necessidade de “um estado de punição temporária para os que, ao
partir desta vida na graça de Deus, não estão inteiramente livres dos pecados
veniais ou não pagaram totalmente ainda a satisfação devida por suas
transgressões”. Essa doutrina católica está incorreta teologicamente porque se
37
Conclusão
A primeira parte do Catechism, “A profissão da fé”, chega ao fim, tendo tratado
das doutrinas da revelação e da fé e das doze doutrinas que decorrem dos credos
da igreja, concretamente do Credo dos Apóstolos conforme complementado pelo
Credo de Niceia. Avaliamos teologicamente a teologia católica, sob a
perspectiva evangélica e à luz da Escritura e do evangelho, em toda essa
primeira parte, seção por seção, cientes do duplo axioma do sistema católico, do
que resultaram pontos de acordo e críticas. A segunda parte do Catechism, “A
celebração do mistério cristão”, com atenção especial à economia sacramental da
Igreja Católica e aos seus sete sacramentos, será nosso próximo tópico de
discussão.
1
Edição em português: Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Loyola, 1999).
2
CCC 976.
3
Ibidem.
4
CCC 978; a citação é do Roman catechism 1.11, 3.
5
Ibidem.
6
CCC 979; a citação é do Roman catechism 1.11, 4.
7
CCC 980; a citação é dos Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 14.a sessão (25 de novembro de
1551), Dos Santíssimos Sacramentos da Penitência e da Extrema-Unção, cap. 2 (Schaff, 2:143). O concílio
cita Gregory of Nazianzus [Gregório de Nazianzo], Oration 39.17 (NPNF2 7:358), e John of Damascus
[João Damasceno], The orthodox faith 4.9 (NPNF2 9:77-79, segundo conjunto de números de páginas).
8
CCC 992. O Catechism faz referência a Daniel 12.1-13 juntamente com o escrito apócrifo de
2Macabeus 7.9,14,29.
9
CCC 994; a citação é de João 11.25. A afirmação sobre o corpo e o sangue de Cristo é de João 5.24,25;
6.40,54.
10
CCC 996; a citação é de Augustine [Agostinho], Expositions on the Psalms, salmo 88(89), 32 (NPNF1
8:437).
11
CCC 997.
12
CCC 1000; a citação é de Irenaeus [Ireneu], Against heresies 4.18.5 (ANF 1:486).
13
CCC 1002-1003; a base bíblica para essas afirmações é Colossenses 2.12; 3.1,3; cf. Filipenses 3.20.
14
CCC 1014; as citações são do Roman missal, “Litany of the Saints” e “Hail Mary”.
15
CCC 1000.
16
Conforme já dissemos, viaticum se refere à preparação para uma jornada (do lat. via). Esse aspecto de
sacramento da eucaristia será discutido em detalhes mais adiante.
17
CCC 1021. A base bíblica para esse juízo abrange, entre outros textos, a Parábola de Lázaro e o
Homem Rico (Lc 16.19-31), as palavras do Cristo prestes a morrer ao bom ladrão (Lc 23.39-43), e outras
passagens do Novo Testamento (2Co 5.8-10; Hb 9.27; 12.23).
18
CCC 1022.
19
CCC 1023.
20
Ibidem; a citação é do papa Bento XII, Benedictus Deus (1336), disponível em:
http://www.papalencyclicals.net/Ben12/B12bdeus.html. Cf. CCC 1028.
21
CCC 1024, 1026.
22
CCC 1030.
23
CCC 1031.
24
Ibidem (grifo do autor); a citação é de Gregory the Great [Gregório, o Grande], Dialogue 4.39,
disponível em: http://www.tertullian.org/fathers/gregory_04_dialogues_book4.htm#C39.
25
De acordo com o Catechism, essa passagem aparece como versículo 46; na RSV, é o versículo 45.
26
CCC 1033.
27
Ibidem; a alusão bíblica é a Mateus 25.31-46.
28
CCC 1035.
29
CCC 1037. A última afirmação é reforçada pelos apelos do Concílio de Orange II (529) e pelo
Concílio de Trento (1547), bem como pela afirmação bíblica do desejo de Deus que todos cheguem ao
arrependimento (2Pe 3.9).
30
CCC 1039.
31
CCC 1042.
32
CCC 1045; a citação é do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 1; referência bíblica: Apocalipse
21.2,9.
33
CCC 1047; a citação é de Irenaeus, Against heresies 5.32.1 (ANF 1:561).
34
CCC 1049; a citação é do Concílio Vaticano II, Gaudium et spes 39.2.
35
CCC 1030.
36
CCC 1989. Essa é a definição de justificação da teologia católica, que retomaremos mais à frente.
37
Joseph Pohle, Eschatology; or the catholic doctrine of the last things: a dogmatic treatise, reimpr. do
texto de 1923 (Ulan Press, 2012), p. 77.
38
CCC 1033.
39
CCC 1040.
40
Amilenarismo vem do prefixo a (alfa privativo do grego) e expressa negação; e milenar ou reino de
mil anos. Portanto, “amilenarismo” significa “não mil anos”, ou, para ser mais preciso, “nenhum futuro de
mil anos”.
41
Pós-milenarismo deriva do prefixo post (= depois) e milenar ou reino de mil anos. Portanto, “pós-
milenarismo” significa “depois de mil anos”.
42
Pré-milenarismo vem do prefixo pre (= antes) e milenar ou reino de mil anos. Portanto, “pré-
milenarismo” significa “antes de mil anos”.
43
Pré-tribulacionista vem do prefixo pre (= antes) e tribulacionista ou relativo a sofrimento. Portanto,
“pré-tribulacionista” significa “antes do período de sofrimento”.
II
A teologia católica de acordo com o Catecismo
da Igreja Católica
constituído por sua paixão [seu sofrimento], sua morte, seu sepultamento, sua
ressurreição e ascensão. A partir desse ato sacrifical de Cristo na cruz, “surgiu ‘o
maravilhoso sacramento de toda a igreja’”. Em segundo lugar, e como
3
Por conseguinte, a liturgia é caracterizada pela dupla atuação: do lado divino, ela
é obra de Cristo; do lado humano, é obra da igreja, tornando a igreja presente e
revelando-a “como sinal visível da comunhão em Cristo entre Deus e os
homens”. Além disso, a liturgia não é apenas obra da igreja; “ela deve ser
7
liturgia é o “lugar privilegiado” para a catequese, já que ela procede “do visível
para o invisível, do sinal para a coisa significada, dos ‘sacramentos’ para os
‘mistérios’”. 9
Avaliação evangélica
Um conceito pouco familiar para os evangélicos, “liturgia” pode simplesmente
se referir a um rito, uma estrutura ordenada, de adoração pública. A maior parte
dos cultos das igrejas evangélicas segue um ritmo específico, começando por um
chamado à adoração, seguido do cântico de hinos e/ou cânticos de louvor e de
ação de graças, passando a seguir para orações coletivas e/ou individuais que
incluem a confissão de pecados e a certeza de perdão; depois vêm a leitura e a
pregação da Palavra de Deus. Muitas vezes celebram-se também as duas
ordenanças ou os dois sacramentos do batismo e da ceia do Senhor. Conclui-se
com mais hinos de louvor a Deus e com uma bênção. Portanto, as igrejas
evangélicas, embora não estejam acostumadas a se referir a tal estrutura como
“liturgia”, realizam efetivamente cultos de adoração litúrgicos.
O conceito católico de liturgia é, contudo, muito mais elevado porque se acha
associado ao mistério.
Em relação à ideia de mistério da teologia católica, a teologia evangélica
concorda que isso está relacionado com a proclamação do evangelho pela igreja.
Concretamente, no Novo Testamento, “mistério” diz respeito à verdade
conhecida originalmente e apenas por Deus em tempos passados, mas que agora
foi revelada, principalmente por meio do anúncio das boas-novas de Jesus
Cristo, para que fossem acolhidas pelo homem. Contudo, nem todos foram
destinatários dessa revelação (ela foi dada, e. g., somente aos discípulos, e não
aos de fora, era o segredo [mistério] do reino de Deus verbalizado em parábolas,
explicado; Mt 13.11). Mistérios específicos revelados em Cristo constituem o
objetivo maior de Deus, que é o de fazer convergir todas as coisas em Cristo (Ef
1.10); a participação dos gentios em Cristo e sua inclusão juntamente com os
judeus em seu corpo, a igreja (Ef 3.6); e Cristo no crente como sua esperança da
glória (Cl 1.27; 2.3). De modo especial, os líderes da igreja, como servos de
Cristo, são administradores desses mistérios (1Co 4.1) no sentido do “mistério
da fé” (1Tm 3.9) ou do “mistério da divindade”, que é a fé verdadeira, ou sã
doutrina, acerca de Cristo (1Tm 3.16,17).
Como a Escritura apresenta o mistério por esses meios, a teologia evangélica
não aceita o sentido distinto e básico que a ele atribui a teologia católica: a
economia, ou obra, de salvação. Certamente, a paixão, a morte, o sepultamento,
a ressurreição e a ascensão de Jesus Cristo constituem o fundamento de tudo o
que a igreja é, crê e faz. Contudo, por que a teologia católica vê nisso um
mistério? Além disso, com a ênfase do Novo Testamento na proclamação desse
mistério, a teologia evangélica indaga por que a teologia católica amplia a ideia e
inclui nela a celebração desse mistério pela igreja. A resposta à perplexidade da
teologia evangélica nos remete ao duplo axioma do sistema católico. A
interdependência natureza-graça acentua a capacidade da natureza — água, óleo,
pão e vinho — para comunicar a graça de Deus, que deve ser expressa de
maneira tangível. O resultado é a capacidade dos sacramentos — batismo,
confirmação, eucaristia — de se tornarem instrumentos da graça que opera
concretamente por esses meios visíveis. Além disso, a interconexão Cristo-Igreja
deixa claro que, quando a Igreja Católica celebra a liturgia, ela é o corpo místico
de Cristo — o Cristo por inteiro, cabeça e corpo — como continuação da
encarnação de Cristo que realiza a liturgia. Na verdade, é o próprio Cristo,
agindo no sacerdote e por meio dele, que a celebra. Portanto, a Igreja Católica
como sacramento é reveladora da graça divina encoberta, que ela desvela e
medeia por meio de sua administração dos sete sacramentos. Na liturgia, esses
dois princípios fundamentais do sistema católico se combinam e se manifestam
claramente. Como esses axiomas são rejeitados pela teologia evangélica — e
com justiça, porque são equivocados, conforme análise já feita aqui
anteriormente —, a liturgia católica se torna extremamente difícil de
compreender para o evangélico.
Sem dúvida, é verdade que a salvação realizada em Cristo, revelada por meio
do evangelho, é e deve ser aplicada de forma contínua, mas a teologia evangélica
contesta a ideia católica de uma nova revelação da Palavra de Cristo e de uma
realização contínua da salvação por intermédio da liturgia da igreja. Na teologia
católica, essa realidade é chamada de “economia sacramental”, assunto para o
qual se volta agora o Catechism.
A obra de Deus Filho é sua atividade “através dos sacramentos que ele
instituiu para comunicar sua graça”; pela ação de Cristo e pelo poder do Espírito
Santo, os sacramentos “realizam eficazmente a graça que significam”. Mais 11
Jesus Cristo morreu e ressurgiu dos mortos somente uma vez, há cerca de dois
mil anos; ele realizou a salvação dos seres humanos decaídos de uma vez por
todas. Contudo, sua obra na cruz e sua ressurreição não podem continuar
confinadas ao passado, fechadas no espaço e no tempo como os demais eventos
históricos. Pelo contrário, esse mistério pascal é presentificado, ou
reapresentado, em todas as épocas (conforme veremos, isso tem implicação
especial para a celebração do sacramento da eucaristia) porque esse evento
ocorrido uma vez e para sempre compartilha do atributo divino da eternidade, ou
atemporalidade (observe, uma vez mais, as linhas inferiores do diagrama
anterior). A existência de Deus não é temporal, com começo e fim, e uma
sucessão de eventos, e ele mesmo não é e não pode ser limitado pelo tempo;
antes, Deus existe fora do tempo e, por conseguinte, está presente por toda parte
e em todas as épocas. Como a obra de salvação de Cristo participa do seu
atributo divino, também ela não é e não pode ser limitada no tempo, existindo
fora dele e, portanto, é reapresentada, ou presentificada, nas celebrações
eucarísticas da igreja.
Essa reapresentação está associada à igreja: Cristo, pelo poder do Espírito
Santo, realiza esta obra de representificação por intermédio de seus apóstolos e
daqueles a quem os apóstolos, pelo poder do mesmo Espírito, transferiram seu
poder por meio da sucessão apostólica — os bispos da igreja. Portanto, Cristo
está presente na liturgia da igreja de dois modos concretos: no sacerdote e na
eucaristia. Cristo está presente “na pessoa do seu ministro, ‘o mesmo que agora
oferece, pelo ministério dos sacerdotes, que anteriormente ofereceu a si mesmo
na cruz’”. Cristo também está presente “sobretudo na espécie eucarística”, isto
13
é, nos dois elementos do pão e do vinho (misturado à água). É crucial para essa
14
realidade a convicção de que Cristo “associa sempre a igreja a ele mesmo nessa
grande obra em que Deus é perfeitamente glorificado, e o homem, santificado”. 15
Como aquele que instiga a fé, o Espírito vai ao encontro do fiel da igreja em
resposta à fé, estimula desse modo a cooperação sinergística e suscita a
colaboração entre o divino e o humano na liturgia da igreja. Além disso, o
Espírito Santo “prepara a igreja para seu encontro com o Senhor; ele traz a
lembrança de Cristo e o torna manifesto à fé da assembleia [...] ele torna o
mistério do Cristo presente aqui e agora [...] e une a igreja à vida e à missão de
Cristo”. A obra preparatória do Espírito é acompanhada da preparação do
17
próprio fiel e do trabalho dos ministros da igreja para o encontro dos crentes com
Cristo. A graça do Espírito Santo estimula a fé, a conversão e o
comprometimento com a vontade Deus, disposições que são precondições para o
acolhimento de outras graças acessíveis por meio da liturgia. 18
Escritura diz respeito não apenas a partes dela que são lidas durante a liturgia e
sobre a qual a homília, ou sermão, se baseia. A Escritura, pelo contrário, está no
âmago dos cânticos, das orações, coletas (em suma, nas orações estruturadas),
bem como nas ações litúrgicas. Além disso, o Espírito ilumina a Palavra de
Deus, conferindo uma “compreensão espiritual” a seus ouvintes/leitores “de
acordo com a disposição do seu coração”. Além disso, a Palavra de Deus
21
Avaliação evangélica
A teologia evangélica praticamente não tem nada em comum com o conceito e a
prática da teologia católica no que se refere à economia sacramental, exceto pelo
mesmo objeto de adoração (o Deus trino), os mesmos participantes (os líderes da
liturgia e a congregação) e os mesmos ritos ou atividades externos de adoração
(e. g., oração, leitura e pregação da Palavra de Deus, cânticos, celebração da ceia
do Senhor). Além dessas semelhanças formais, porém, a economia sacramental
da teologia católica e a doutrina da adoração da teologia evangélica estão muito
longe uma da outra.
A teologia evangélica rejeita o ponto central da economia sacramental
segundo o qual a salvação em Jesus Cristo ocorreria continuamente, e que é
particularmente associada à Igreja Católica, à sua hierarquia e aos seus
sacramentos. Não há dúvida de que Jesus Cristo, como Sumo Sacerdote, morreu
uma vez na cruz, e somente uma vez. Na verdade, a teologia evangélica insiste
com seus membros para que não entendam mal a teologia católica nesse ponto: a
teologia católica não ensina que Cristo é sacrificado novamente todas as vezes
que o sacramento da eucaristia é celebrado. Hoje, na missa católica, Jesus não
está sendo morto pela milésima milionésima vez. Ele morreu uma única vez, e
tanto a teologia evangélica quanto a teologia católica ensinam essa verdade.
A diferença entre uma e outra diz respeito à ideia de representificação do
sacrifício feito uma única vez e para sempre toda vez que o sacramento da
eucaristia é ministrado. A ideia católica de que a obra de Cristo na cruz participa
do atributo divino da eternidade (i.e., que nunca deixa de existir), ou de sua
atemporalidade (sem limitação de tempo; observe novamente o diagrama supra),
não tem garantia alguma. Consequentemente, o sacrifício de Cristo há dois mil
anos, a exemplo dos demais eventos históricos, ocorreu uma única vez no
passado e não transcende os séculos de modo que continue ainda hoje (ou, a
propósito, em qualquer época depois que ocorreu). A ideia de atemporalidade
pode ser invocada na tentativa de explicar de que maneira o corpo e o sangue de
Cristo estão presentes na eucaristia, mas tudo isso se deve à interpretação
equivocada das palavras de Cristo quando se referiu ao pão na hora em que
instituiu a ceia do Senhor: “Isto é o meu corpo” (Mt 26.26). Assim como não era
seu corpo físico quando os discípulos comeram o pão na ceia — como poderia
sê-lo, uma vez que ele ainda não fora crucificado? —, tampouco se trata de seu
corpo físico agora, quando o fiel ingere a hóstia durante a celebração eucarística.
Além disso, a interpretação sacramental do discurso de Jesus, o “Pão da Vida”,
em João 6, do qual depende a teologia católica para seu conceito de economia
sacramental em geral, e da eucaristia em particular, não é muito plausível.
Trataremos desses pontos mais diante.
O ponto de vista da teologia católica da representificação de Cristo,
associando-a à igreja por meio de sua hierarquia, padece especialmente de sua
fundamentação na interconexão Cristo-Igreja, um axioma já analisado (cap. 1).
Cristo não está presente agora na igreja como cabeça e corpo. Ele não está aqui
na terra na plenitude de todo o seu ser; pelo contrário, em sua natureza humana,
o Senhor exaltado está sentado à mão direita do trono divino no céu. Dessa
implicação seguem-se duas verdades, que contradizem a teologia católica nesse
assunto: Cristo não está e não pode estar presente no sacerdote quando este
conduz a liturgia. E Cristo não está e não pode estar presente no pão e no cálice
do sacramento da eucaristia. Nesse ponto, a teologia evangélica não afirma que
Cristo está ausente da sua igreja, da sua adoração, da sua celebração da ceia do
Senhor etc. Pelo contrário, como Filho pleno de Deus, ele está onipresente —
presente em toda parte. Além disso, ele manifesta sua presença espiritual de
modos específicos e em épocas específicas — por exemplo, para revestir de
poder a mobilização missional da igreja (Mt 28.18-20), para dar respaldo ao
exercício de disciplina da igreja (Mt 18.15-20) e para abençoar a ministração
conveniente ou julgar a observação indigna da ceia do Senhor (1Co 10.14-22;
11.17-33). Consequentemente, ele não está ausente da sua igreja; pelo contrário,
está presente nela quando ela evangeliza, adora, ensina etc. Contudo, essa
presença espiritual é mediada pela ação do Espírito Santo, a quem Cristo enviou
na condição de “outro Auxiliador” (Jo 14.16) para tomar seu lugar na terra
durante sua ausência entre sua ascensão e seu retorno. Além disso, a presença
espiritual de Cristo é mediada pela instrumentalidade do registro escrito da
Escritura, a qual ele deu mediante o Espírito pelo ministério de autores humanos
para que fosse sua Palavra inspirada, verdadeira, revestida de autoridade,
suficiente, necessária, clara e cheia de poder. Não bastasse isso, ela é mediada
pelas ordenanças da nova aliança, do batismo e da ceia do Senhor, que Cristo
ordenou à igreja que ministrasse até seu retorno. Contudo, a presença da qual
esses elementos são intermediários não é a da plenitude do Cristo total,
incluindo-se sua natureza humana, corpo e sangue, mas tão somente sua
presença espiritual. 27
Dada sua qualidade indelével, esses três sacramentos jamais podem ser
repetidos.
Os sacramentos também são sacramentos de fé. Tomando como referência a
Grande Comissão (Mt 28.19), o Catechism explica: “A missão de batizar,
portanto a missão sacramental, está implicada na missão de evangelizar; porque
o sacramento é preparado pela Palavra de Deus e pela fé, que é assentimento à
dita Palavra”. De fato, o ministério da Palavra de Deus é necessário para a
35
ministração dos sacramentos porque estes encontram sua fonte na Palavra e dela
obtêm sustento. Por conseguinte, são sacramentos de fé num duplo sentido: eles
pressupõem a fé e também “a nutrem, fortalecem e a expressam”. Além disso, 36
ministra — isto é, do padre que batiza ou celebra a eucaristia — assim como não
depende de quem os recebe —, isto é, da criança que é batizada ou do fiel que
recebe a hóstia e toma do cálice (ou seja, a pessoa que comunga). Sua
legitimidade e seu benefício dependem unicamente do poder de Cristo e do seu
Espírito Santo que age por meio dos sacramentos “independentemente da
santidade pessoal do ministro. No entanto, os frutos dos sacramentos dependem
também das disposições de quem os recebe”. Como meio pelo qual a graça
40
sacramental é conferida por Cristo e por seu Espírito por meio da igreja, os
sacramentos são necessários para a salvação. Por fim, eles prefiguram a glória
futura, a vida eterna que ainda está por vir à igreja quando Cristo voltar.
Em suma, essa discussão geral dos sacramentos priorizou seus pontos em
comum da perspectiva da doutrina. A próxima discussão geral tratará dos pontos
em comum dos sacramentos no que diz respeito à sua celebração na igreja e pela
igreja. Antes de tratar da celebração litúrgica dos sacramentos, vale a pena fazer
uma avaliação da ideia geral da teologia católica dos sacramentos.
Avaliação evangélica
Como herdeira da Reforma protestante, a teologia evangélica discorda
amplamente da teologia católica dos sacramentos. Há quatro grandes
divergências: a terminologia usada para esses ritos, o número de sacramentos, os
sacramentos como meios de graça e a base de sua validade e eficácia.
Antes de lidar com a questão terminológica, é importante que se levem em
conta os antecedentes do termo “sacramento” e como ele veio a ser associado à
ministração desses ritos pela igreja. Conforme observamos anteriormente, o
Novo Testamento usa a palavra μυστήριον (mustērion = mistério) para se referir
a um segredo há tempos guardado e que agora foi revelado pela proclamação do
evangelho, bem como pela sã doutrina a que a igreja está obrigada. Ao longo da
história, o termo foi aplicado às celebrações do batismo e da ceia do Senhor pela
igreja primitiva no contesto das religiões de mistério, em que havia cerimônias
secretas que canalizavam bens espirituais e poder para seus participantes. O
entendimento que a igreja tem de “mistério” no contexto das religiões de
mistério produziu o seguinte resultado: o batismo e a ceia do Senhor revelam um
mistério da graça divina, conferindo bens espirituais e poder a quem os recebe.
Além disso, à medida que o grego, língua universal, cedia lugar à nova língua
internacional, o latim, o grego μυστήριον (mustērion) recebeu em latim a
tradução de sacramentum. Essa palavra podia se referir a um objeto ou rito
sagrado ou a um juramento de lealdade. O uso que a teologia católica fazia de
sacramentum dependia em grande medida de Agostinho, que definiu
“sacramento” como “sinal externo e visível de uma graça interna e invisível”;
além disso, trata-se de um sinal sagrado divinamente escolhido para indicar uma
realidade divina, o que inclui essa realidade em si mesma. Portanto, o batismo e
a ceia do Senhor, na condição de ritos sagrados, eram considerados sinais e
meios da graça divina.
Quando a Reforma protestante rompeu com a Igreja Católica, ela pôs em
movimento efeitos que se propagaram e que, por fim, resultaram em mudanças
em praticamente tudo o que estava associado à teologia e à prática católicas. Um
desses desafios foi a terminologia mais adequada aos ritos da liturgia. Ainda que
um largo segmento da teologia protestante continuasse a usar o termo
“sacramento” (embora com um entendimento diferente do seu significado), outro
grande segmento descartou o termo em virtude de sua vinculação com o
catolicismo e optou pelo termo “ordenança”. Esse termo foi escolhido porque
aponta para ritos que foram instituídos, ou ordenados, por Cristo e, por
conseguinte, impostos à observância da igreja. 41
Essa questão dos ritos ordenados por Cristo introduz o assunto seguinte
referente ao número apropriado dos sacramentos. Enquanto a teologia católica
reconhece sete sacramentos — batismo, confirmação, eucaristia, penitência e
reconciliação, unção dos enfermos, ordem e matrimônio —, a teologia
evangélica reconhece apenas dois: batismo e ceia do Senhor. A razão para essa
redução no número de sacramentos de sete para dois se deve ao fato de que
somente o batismo e a ceia do Senhor foram ordenados por Cristo e vêm
acompanhados de sinais tangíveis. Como parte de sua Grande Comissão, Jesus
ordenou à igreja “[fazer] discípulos de todas as nações, batizando-os em nome
do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28.19). O batismo foi ordenado por
Cristo, e o sinal que o acompanha é a água; portanto, trata-se de um rito a ser
observado pela igreja. Além disso, na ceia do Senhor, a última que fez com seus
discípulos, Jesus instituiu sua observância: “Enquanto comiam, Jesus tomou o
pão e, abençoando-o, partiu-o e o deu aos discípulos, dizendo: Tomai e comei;
isto é o meu corpo. E, tomando um cálice, rendeu graças e o deu a eles, dizendo:
Bebei dele todos; pois isto é o meu sangue, o sangue da aliança derramado em
favor de muitos para perdão dos pecados. Mas digo-vos que desde agora não
mais beberei deste fruto da videira até aquele dia em que beberei o vinho novo
convosco, no reino de meu Pai” (Mt 26.26-29). A ceia do Senhor foi ordenada
por Cristo, e os sinais que a acompanham são o pão e o cálice com fruto da vinha
(vinho ou suco de uva); portanto, é um rito a ser observado pela igreja.
Os outros cinco sacramentos católicos foram descartados um a um pelos
reformadores pelos seguintes motivos: a confirmação não aparece na Escritura e
não tem nenhum sinal tangível associado a ela. O sacramento da penitência e
reconciliação baseia-se em um equívoco da ordem de Jesus: “Arrependei-vos,
porque o reino de Deus está próximo” (Mt 4.17). Jesus não instituiu uma ação
sacramental que envolvesse a contrição, a confissão de pecados a um sacerdote,
a absolvição e o cumprimento de uma penitência que satisfizesse o malfeito.
Pelo contrário, ele fez um apelo de mudança de mente e de vida, de rompimento
com o pecado e com o eu, acompanhado da decisão de buscar a Deus. A unção
dos enfermos tem respaldo em Tiago 5.13-17 e é acompanhada de óleo, mas
Jesus não ordenou essa prática. A ordem, o rito pelo qual homens são
consagrados ao sacerdócio, não tem fundamento bíblico. O matrimônio, embora
tenha sido ordenado pela Escritura (Gn 1.28; 2.24) e endossado por Jesus (Mt
19.1-9), é uma ordenação da Criação, estabelecida por Deus no início da criação
da raça humana (Gn 1.28). Não se trata de rito tipicamente cristão, e Jesus
mesmo não o instituiu. Consequentemente, como esses cinco sacramentos
católicos não foram ordenados por Cristo e/ou lhes faltam os sinais que os
acompanham para sua observação, a teologia evangélica não os considera ritos
impostos à observância da igreja.
Os dois itens seguintes — sacramentos como meios de graça e as bases de sua
validade e eficácia — caminham juntos e serão discutidos juntamente. A
Reforma protestante rompeu não só com o número dos sacramentos católicos,
mas também com a teologia sacramental católica. A teologia católica afirma que
os sacramentos são meios de graça que, de fato, comunicam benefícios divinos
dos quais são sinais. Além disso, a graça comunicada mediante os sacramentos é
infundida nos que os recebem, transformando assim sua natureza e tornando-os
merecedores da vida eterna. Embora um grande segmento da teologia protestante
continuasse a acolher os sacramentos como meios de graça, outro grande
segmento optou por um entendimento que se distancia drasticamente de qualquer
ideia de meios de graça. A teologia evangélica, portanto, compreende essas duas
posições.
Em relação à primeira delas, Charles Hodge resumiu a teologia reformada dos
sacramentos dizendo se tratar de “meios reais de graça, isto é, meios indicados e
empregados por Cristo para comunicar os benefícios da sua redenção a seu
povo”. Diferentemente da teologia sacramental, essa perspectiva reformada os
considera meios, porém não exclusivos, de graça. E não os considera meios de
infusão da graça da salvação. Pelo contrário, quando os sacramentos são
ministrados, “faz-se uma promessa aos que, com razão, recebem os sacramentos
que eles, por meio dos sacramentos, e neles, se tornam participantes das bênçãos
das quais os sacramentos são sinais e selos por Deus indicados”. Em relação às
42
crianças que são batizadas, para a teologia reformada seu batismo é sinal de sua
inclusão na comunidade da nova aliança, a igreja, e de promessa de
arrependimento e fé no futuro. No caso da ceia do Senhor, a teologia reformada
vê nos elementos do pão e do vinho sinais do favor divino por meio da
participação no corpo e no sangue de Cristo (que está espiritualmente presente
na celebração da ceia) e também meios de sustento espiritual que mantêm e
aumentam a fé. Portanto, a água do batismo e o pão e o vinho da ceia do Senhor
são sinais, mas não são sinais vazios, uma vez que são meios de graça que
conferem a bênção e a misericórdia divinas aos que deles participam.
Essa teologia reformada dos sacramentos pode parecer semelhante à teologia
sacramental católica, mas não é. A grande distância entre as duas se explica pela
validade ou eficácia dos sacramentos. Para a teologia católica, os sacramentos
são meios de graça ex opere operato (lit., “pela obra operada”), ou simplesmente
por sua ministração. Sua validade está inteiramente associada ao seu sinal, que é
virtuoso ou poderoso em si mesmo e por si mesmo. Por exemplo, quando um
padre batiza uma criança de acordo com o rito católico do sacramento do
batismo, sua ação de ministrar a água da maneira cristã adequada cancela o
pecado original e a faz nascer de novo e ser incluída na Igreja Católica. A
eficácia do sacramento não depende de modo algum da situação do padre que
ministra o batismo (i. e., ele poderá ser um santo ou alguém em estado de pecado
mortal), e certamente não tem ligação alguma com a fé da criança ou com sua
disposição para o batismo. A teologia reformada dos sacramentos faz objeção à
sua validade ex opere operato. Diferentemente disso, ela sustenta que sua
eficácia depende unicamente de Deus que promete abençoar, da obra do Espírito
nos que recebem os sacramentos e da Palavra de Deus sobre a qual a instituição
dos sacramentos se baseia. Portanto, “há em todo sacramento uma relação
espiritual, ou união sacramental, entre o sinal e a coisa significada; de tal modo
que os nomes e efeitos de um são atribuídos a outro”. Nada disso nos permite
43
participa dessa “liturgia eterna” quando celebra sua liturgia sacramental. Nesse
último caso, a igreja que celebra consiste na comunidade dos batizados (o
sacerdócio batismal ou comum), em seus ministros ordenados (o sacerdócio
hierárquico ou ministerial), e outros ministros (não ordenados) em particular,
ministros como “acólitos, leitores, comentadores e membros do coro”, todos os
quais “exercem um ministério litúrgico genuíno”. 47
Esses sinais e símbolos recebem seu significado quando são associados a uma
aliança. Por exemplo, “circuncisão, unção e consagração de reis e sacerdotes,
imposição de mãos, sacrifícios e, sobretudo, na Páscoa” são os sinais e símbolos
que marcam a vida litúrgica da antiga aliança e prefiguram os sacramentos da
nova aliança. 51
Filho encarnado, sua cruz, sua mãe Maria, os anjos e os santos; entre os meios
artísticos apropriados incluem-se pinturas, mosaicos e outros materiais
adequados; fazem parte da exibição apropriada de tais imagens e pinturas os
prédios das igrejas, recipientes sagrados como o sacrário (receptáculo onde são
postas as hóstias que sobraram da celebração da eucaristia), as vestimentas
sacerdotais, os lares e objetos de uso externo. 57
Dirigindo nossa atenção à questão de quando a liturgia é celebrada, “alguns
dias ao longo do ano” devem ser reservados para essas observações. São eles: (1)
uma vez a cada semana no domingo, ou no dia do Senhor, em lembrança da
ressurreição de Cristo; (2) uma vez por ano na Sexta-Feira Santa/Páscoa, em
lembrança da paixão, morte e ressurreição de Cristo; e (3) nas celebrações anuais
especiais do ano litúrgico. Esse último ponto decorre do princípio de fé da
58
limiar que o fiel cruza para entrar na casa de Deus simbolizando “a passagem do
mundo ferido pelo pecado para o mundo da nova vida para a qual todos são
chamados”. 68
missão de Cristo, que é levar “Cristo, luz e salvação de todos os povos [...] ao
povo e à cultura em particular aos quais a igreja é enviada e em que se radicou”. 70
Avaliação evangélica
Seguindo a ordem de discussão do Catechism, já avaliamos aqui os pontos
doutrinários em comum dos sacramentos. Avaliaremos agora os pontos em
73
comum dos sacramentos no que diz respeito à celebração na igreja e por meio
dela. Aqui a teologia católica e a teologia evangélica compartilham alguns
pontos em comum, mas há também discordâncias.
No que diz respeito a quem celebra a liturgia, a teologia católica e a teologia
evangélica estão de acordo que são dois os tipos que participam da adoração: de
um lado, as multidões celestiais já participam de forma ininterrupta da adoração
em torno do trono de Deus, conforme as imagens das cenas de adoração no céu
(e.g., Ap 4 e 5). Essa multidão celestial não se limita aos cristãos da igreja
universal que morreram e agora estão vivos no céu como seres incorpóreos à
espera do retorno de Cristo e da ressurreição do corpo (“a igreja dos
primogênitos registrados nos céus”; Hb 12.23). Fazem parte dessa multidão de
adoradores “incontável número de anjos em reunião festiva” e santos da antiga
aliança (“os espíritos dos justos aperfeiçoados”; v. 22,23), para não falar dos
quatro seres viventes com olhos e asas (Ap 4.6-9) e os 24 anciãos (v. 10,11). Por
outro lado, os cristãos na terra se reúnem regularmente para adorar a Deus nas
igrejas locais. De certa forma, essas assembleias locais de adoração se unem à
sua análoga celestial na adoração a Deus; assim no céu como na terra, ainda que
a plenitude da adoração não seja e não possa ser, por enquanto, experimentada
por sua análoga na terra.
Esse acordo deve ser abrandado por dois pontos de discordância. Como a
teologia evangélica discorda da interconexão proposta pelo axioma Cristo-Igreja,
ela não radica sua assembleia de adoração celestial-terrenal na ideia de que as
igrejas evangélicas sejam extensões da encarnação do Cristo que subiu ao céu.
Além disso, como ela discorda da ideia católica da comunhão dos santos — o
intercâmbio de bens espirituais entre a igreja no céu e a igreja na terra (a teologia
católica acrescentaria ainda a igreja no purgatório) —, a teologia evangélica não
interpreta esse duplo ajuntamento de adoradores da mesma maneira.
Como a liturgia é celebrada? Em certo sentido, as missas católicas e os cultos
de adoração evangélicos têm muitas semelhanças formais, entre elas a oração, o
cântico, a leitura da Escritura, a pregação, a celebração da eucaristia/ceia do
Senhor etc. Por trás dessas semelhanças, porém, há duas diferenças importantes.
Uma diferença, o que para muitos evangélicos também é facilmente
perceptível, é a natureza meticulosamente estruturada ou ritualística da missa
católica. Os evangélicos, como estão habituados a um estilo de adoração menos
meticulosamente estruturado e, não raro, mais livre em seus cultos, percebem
imediatamente o que chamam comumente de diferença entre a liturgia da “igreja
alta” e a da “igreja baixa”. A primeira, exemplificada pela missa católica, segue
74
qual “uma imagem vale mais do que mil palavras” está incorreto. A revelação
soprada por Deus não é pictórica por natureza, e sim verbal, e nada é equivalente
à Palavra de Deus escrita/falada em matéria de veracidade, autoridade e clareza.
Além disso, a suficiência dessa Palavra significa que seu relato, por exemplo,
das instruções de Jesus à sua mãe, Maria, e a João, quando ele estava na cruz (Jo
19.25-27) traz tudo o que a igreja precisa saber sobre esse momento tocante em
que um filho se preocupa em suprir as necessidades de sua mãe, uma vez que “a
partir daquele momento, o discípulo manteve-a sob seus cuidados” (v. 27).
Nenhuma pintura ou estátua pode representar fielmente, e de modo adequado,
essa troca registrada na Escritura, a tal ponto que a imagem exagera o papel de
Maria, fazendo dela a nova mãe constituída sobre todos os fiéis, o que não
reflete o evangelho; em vez disso, transforma-se num obstáculo a ele.
Certamente é verdade que histórias registradas por escrito como essa, e pinturas
e estátuas dessa cena, requerem interpretação. Contudo, a narrativa bíblica tem
pistas contextuais e restrições que faltam às imagens, de tal modo que uma
pintura ou estátua poderá suscitar uma imaginação sem freios, que não leva à
compreensão verdadeira do que Jesus fez, mas a mera especulação, talvez até ao
erro. Outro problema referente às imagens da perspectiva evangélica é que elas
são necessariamente limitadas na forma de se apresentarem. Portanto, se uma
imagem não é complementada por outras, disso resulta uma mensagem truncada.
Por exemplo, o crucifixo católico — Jesus pendurado na cruz — talvez capture
um aspecto importante da obra de Cristo a favor do ser humano pecador. Ao
mesmo tempo, o crucifixo aparece isolado em sua representação das realizações
de Cristo, porque ele não comunica — na verdade, não pode comunicar — que
Jesus não permaneceu morto, mas ressuscitou ao terceiro dia. Nesse caso, surge
outra dificuldade porque o crucifixo é um instrumento útil para trazer à
lembrança a representificação de Cristo na cruz durante a missa, uma ideia que a
teologia evangélica corretamente rejeita. Além disso, a teologia evangélica
rejeita as imagens de Maria e dos santos.
Em relação à questão de quando a liturgia é celebrada, a teologia católica e a
teologia evangélica concordam que a adoração semanal no domingo, dia da
ressurreição, é adequado. Embora a Escritura aponte só minimamente nessa
direção (e.g., 1Co 16.2; ilustrado em At 20.7), a literatura da igreja primitiva
respalda esse padrão semanal tendo se fixado amplamente na igreja. Alguns
80
em certo sentido — Deus está em ação para salvar o ser humano decaído em sua
realidade concreta —, ele não é verdadeiro, assim acreditam, no sentido de uma
repetição cíclica desses pontos importantes da salvação, isto é, eles não devem
predominar no ano da igreja. Além disso, a teologia evangélica não acrescenta
nenhuma celebração em honra a Maria e aos santos por motivos óbvios. Por fim,
embora a teologia evangélica não siga a liturgia católica das horas, ela acolhe o
conceito e a importância da oração diária (bem como, ela acrescentaria, a leitura
e o estudo da Escritura), embora não prescreva horas específicas para sua
prática.
Onde a liturgia é celebrada? Em conformidade com a teologia católica, a
teologia evangélica insiste que a localização da adoração não é fundamental, à
luz da instrução de Jesus segundo a qual a adoração genuína não está confinada
ao monte Gerizim e tampouco ao Templo de Jerusalém (Jo 4.20,21), mas deve
ser exercida “em espírito e em verdade” (Jo 4.24). A adoração genuína requer
crentes genuínos, aqueles que, por meio do Espírito Santo, foram transportados
do reino da “carne” para o reino do “espírito” (Jo 3.5,6) — o reino de Deus
(“Deus é espírito”; 4.24) — e que acolheram a verdade de Jesus, que é “o
caminho, a verdade e a vida” (14.6). Reunidos para louvar e honrar o Deus trino
de acordo com as formas que ele fixou para sua própria adoração, esses
adoradores genuínos compõem as “pedras vivas” do templo do Deus vivo (1Pe
2.4,5; cf. 2Co 6.16).
Além disso, a teologia católica e a teologia evangélica concordam que,
quando fatores culturais e contextuais permitem ao fiel ter um prédio para cultos
regulares de adoração, a reflexão teológica sobre a natureza, o design, a
arquitetura e a mobília do edifício, não há por que não o ter. Enquanto os
edifícios da Igreja Católica têm numerosos elementos específicos — altar,
sacrário, santo crisma (mirão, ou óleo), cadeira (cathedra), ambão (leitoril),
batistério, a fonte de água consagrada, confessionário e limiar —, só algumas
igrejas evangélicas são assim tão elaboradas, e certamente nenhuma delas tem
todos esses itens. Por um lado, muitos prédios da igreja evangélica são
intencionalmente simples em reação à ornamentação suntuosa do prédio de
qualquer Igreja Católica. No âmago dessa rejeição está o sentimento evangélico
de que tal exibição pomposa diminui, em vez de elevar, a adoração a Deus, e que
a grande quantidade de dinheiro gasta em tal arquitetura elaborada e em sua
decoração poderia ter sido mais bem empregada em campanhas missionais,
ministérios, pessoal, assistência aos pobres e outras prioridades. Por outro lado,
alguns edifícios de igrejas evangélicas são bastante suntuosos, mas por outros
motivos. Uma motivação trágica para isso se deve a homenagens feitas a um
pastor em particular, erigindo em memória dele um legado físico notável que
durará pelas próximas décadas. Outro motivo ainda mais decepcionante é que
alguns pastores se envolvem em campanhas sofisticadas de construção para com
isso ampliar sua reputação e garantir sua memória. De uma perspectiva positiva,
a natureza mais elaborada de alguns prédios de igrejas evangélicas é sinal de
uma reflexão teológica cuidadosa e de uma visão de impacto significativo para
acomodar o crescimento dado por Deus. Como o ser humano é uma criatura que
tem corpo, o impacto de seu contexto físico sobre a adoração a Deus é
significativo, mesmo que a ideia seja negligenciada ou mesmo descartada. Uma
reflexão teológica cuidadosa sobre o edifício que abrigará a igreja tem seu lugar,
contanto que não se desvie na direção da Igreja Católica, mas que nem por isso
deixe de ser expressivo. 82
1
Edição em português: Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Loyola, 1999).
2
A palavra “pascal” tem origem no hebraico e no grego e significa “passar por cima”, como na Páscoa
judaica, e foi transformada na Sexta-Feira da Paixão e no Domingo de Páscoa.
3
CCC 1067; citação do Concílio Vaticano II, Sacrosanctum concilium 5.2.
4
CCC 1068; citação do Concílio Vaticano II, Sacrosanctum concilium 2.
5
CCC 1069. A expressão “obra divina” alude à declaração de Cristo em João 17.4.
6
CCC 1070; a citação é do Concílio Vaticano II, Sacrosanctum concilium 7.2-3.
7
CCC 1071.
8
CCC 1072.
9
CCC 1074-1075.
10
CCC 1082.
11
CCC 1084.
12
CCC 1085.
13
CCC 1088; citação do Concílio Vaticano II, Sacrosanctum concilium 7.
14
Ibidem.
15
CCC 1089.
16
CCC 1091.
17
CCC 1092.
18
CCC 1098.
19
CCC 1099.
20
CCC 1100.
21
CCC 1101.
22
CCC 1102.
23
CCC 1103.
24
CCC 1104.
25
CCC 1105.
26
CCC 1109.
27
Quem contestar essa posição e disser que ela separa a natureza divina da natureza humana de Cristo (a
heresia nestoriana) terá de confrontar a seguinte questão: não é possível afirmar de forma significativa que
Cristo, o Deus-homem, subiu ao céu quarenta dias depois da sua ressurreição, está sentado atualmente à
mão direita do trono de Deus no céu e voltará à terra em seu segundo advento sem dizer ao mesmo tempo
que isso se aplica somente à sua natureza humana, e não à sua natureza divina (que é onipresente). Minha
posição está firmemente alicerçada na afirmação precedente (com a qual concordo), portanto não está aberta
à acusação de nestorianismo.
28
Essas apresentações detalhadas serão discutidas e avaliadas nos capítulos 7—10.
29
CCC 1113.
30
CCC 1114; citação dos Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 7.a sessão (3 de março de 1547),
Decreto sobre os Sacramentos, cânone 1 (Schaff, 2:119).
31
CCC 1116; a base bíblica para esse primeiro elemento de descrição é Lucas 5.17; 6.19; 8.46,
passagens que descrevem o poder que emanava de Jesus Cristo durante seu ministério terreno.
32
CCC 1118; a segunda citação é de Augustine, The city of God 22.17 [edição em português: Agostinho,
A cidade de Deus, tradução de Oscar Paes Leme (Petrópolis: Vozes de Bolso, 2012), 2 vols.].
33
CCC 1120.
34
CCC 1121.
35
CCC 1122 (grifo do autor).
36
CCC 1123; citação do Concílio Vaticano II, Sacrosanctum concilium 59.
37
CCC 1124.
38
CCC 1127.
39
CCC 1128.
40
Ibidem.
41
Alguns protestantes evitaram também esse último termo para não associar o batismo e a ceia do
Senhor à teologia e prática desses sacramentos pela Igreja Católica.
42
Charles Hodge, Systematic theology (Grand Rapids: Eerdmans, 1946), vol. 3, p. 499.
43
Confissão de Fé de Westminster, “Dos sacramentos”, 27.2.
44
Fé e Mensagem Batista, art. 7 “Batismo e ceia do Senhor” (grifo do autor). Essa declaração de fé
representa as convicções geralmente sustentadas pelas igrejas da Convenção Batista do Sul.
45
CCC 1136.
46
CCC 1138.
47
CCC 1143.
48
CCC 1145.
49
CCC 1146.
50
CCC 1148.
51
CCC 1150.
52
CCC 1153.
53
CCC 1154. O lecionário é um livro com leituras da Escritura para o ano litúrgico. O ambão é o pódio
ou leitoril de onde a Escritura é lida. As litanias são orações que consistem em pedidos ou invocações
expressas pelo ministro ou líder seguidas das respostas dadas pela congregação.
54
CCC 1155.
55
CCC 1159.
56
CCC 1160. Na verdade, o Catechism salienta que uma imagem sagrada “confirma que a encarnação do
Verbo de Deus foi real, e não imaginária”.
57
Conforme estabelecido pelo Concílio de Niceia II.
58
CCC 1163.
59
CCC 1168.
60
CCC 1173.
61
CCC 1174.
62
CCC 1179; referências bíblicas: 1Pedro 2.4,5 e 2Coríntios 6.16.
63
CCC 1180-1181; citação de Presbyterorum ordinis 5; cf. Sacrasanctum concilium 122-127.
64
CCC 1182.
65
CCC 1183.
66
CCC 1184.
67
CCC 1185.
68
CCC 1186.
69
CCC 1200.
70
CCC 1202.
71
CCC 1204.
72
CCC 1205.
73
Veja acima no subtítulo “O mistério pascal nos sacramentos da igreja” (seção 1, capítulo 1, artigo 2).
74
Esses termos não estão sendo usados para diferenciar os tipos de igreja anglicana, conforme são
normalmente usados.
75
Frank L. Smith, “What is worship?”, in: Frank L. Smith; David C. Lachman, orgs., Worship in the
presence of God (Greenville: Greenville Seminary Press, 1992), p. 16-7.
76
Confissão de Fé de Westminster, 21.1.
77
Veja, e.g., Confissão de Fé de Westminster, 20.
78
CCC 1148.
79
CCC 1160.
80
E.g., Justin Martyr [Justino Mártir], First apology 67 (ANF 1:186).
81
CCC 1168.
82
Para uma breve discussão, veja Allison, SS, p. 148-52.
83
Veja, e.g., A. Scott Moreau, Contextualization in world missions: mapping and assessing evangelical
models (Grand Rapids: Kregel, 2012).
7
A CELEBRAÇÃO DO MISTÉRIO
CRISTÃO
(segunda parte, seção 2, capítulo 1, artigos
1-2)
Os sete sacramentos; os sacramentos da iniciação cristã: batismo
e confirmação
prefiguração da salvação pelo batismo, uma vez que “poucas pessoas, isto é,
oito, salvaram-se nela por meio da água” (1Pe 3.20). As águas do grande dilúvio
são “um símbolo da morte. Por isso é que podia prefigurar o mistério da cruz. E,
por esse simbolismo, o batismo significa a comunhão com a morte de Cristo”. A 9
infantil como forma usual de ministração do sacramento, “ato único, que integra,
de um modo muito abreviado, as etapas preliminares da iniciação cristã”. Com 15
relação à catequese de crianças que foram batizadas, o Catechism diz: “Pela sua
própria natureza, o batismo das crianças exige um catecumenato pós-batismal.
Não se trata apenas da necessidade de uma instrução posterior ao batismo, mas
do desenvolvimento necessário da graça batismal no crescimento da pessoa”. 16
seu instigador”, dos quais fazem parte a unção com óleo (ou a imposição de
mãos) e a renúncia a Satanás; bem como a consagração da água por meio de
19
uma oração de epiclese por meio da qual “a igreja pede a Deus que, pelo seu
Filho, o poder do Espírito Santo desça a essa água, para que os que nela forem
batizados ‘nasçam da água e do Espírito’”. No que se refere ao ato
20
solene.
A participação nesse sacramento é aberta a “todo ser humano ainda não
batizado, e só ele é capaz de receber o batismo”. Nos lugares “em que a
24
As crianças são batizadas por causa do pecado original: “Nascidas com uma
natureza humana decaída e manchada pelo pecado original, as crianças também
têm necessidade do novo nascimento no batismo para serem libertas do poder
das trevas e transferidas para o domínio da liberdade dos filhos de Deus, a que
todos os homens são chamados. A pura gratuidade da graça da salvação é
particularmente manifesta no batismo das crianças. Por isso, a igreja e os pais
privariam a criança da graça inestimável de se tornar filho de Deus se não lhe
conferissem o batismo pouco depois do seu nascimento”. O Catechism apela ao
26
que se batiza é o dom da fé dada a ele pela igreja, e no caso de uma criança, que
não pode crer de modo pessoal, sua fé é a fé da igreja conforme recebida
vicariamente por seus pais e padrinhos. Além disso, a fé do adulto e da criança
que foram batizados “deve crescer depois do batismo”, assim como a nova vida
em Cristo, iniciada no batismo, deve ser nutrida. Uma ajuda fundamental para o
30
em sua missão.
Ao mesmo tempo, o Catechism afirma: “Deus ligou a salvação ao sacramento
do batismo; mas ele próprio não está prisioneiro dos seus sacramentos”. 34
caso, “[das] crianças que morrem sem batismo, a igreja não pode senão confiá-
las à misericórdia de Deus”. Animada pelo desejo divino de que todos se
39
salvem (1Tm 2.4) e da compaixão de Jesus pelas crianças (Mc 10.14), a igreja
tem esperança em sua salvação e se vê impelida a se empenhar por seu batismo
com esforço redobrado.
Os dois principais efeitos do batismo, conforme simbolizados pelos elementos
do sacramento — imersão na água — são a purificação dos pecados e a
regeneração no Espírito Santo. Com relação ao primeiro efeito, “todos os
40
do batismo são a inclusão na igreja (Ef 4.25); participação nos ofícios sacerdotal,
profético e real de Cristo, bem como no sacerdócio comum de todos os crentes;
responsabilidades para com a igreja e privilégios por ser parte dela; participação
na missão da igreja; e “vínculo sacramental da unidade” com todos os cristãos,
“mesmo com aqueles que ainda não estão em plena comunhão com a Igreja
Católica”. 44
convertem à fé católica. Contanto que seu batismo tenha sido realizado “por
46
vida eterna” e ao atender às suas exigências até a morte, o cristão “partirá desta
vida ‘marcado com o sinal da fé’, com sua fé batismal, na esperança da visão
beatífica de Deus — a consumação da fé — e na esperança da ressurreição”. 49
Avaliação evangélica
Questões preliminares
Como o batismo é um sacramento muito importante para a teologia católica,
conforme ficou evidenciado na ampla discussão do tema na seção precedente,
sua avaliação será mais meticulosa. Em parte, a teologia evangélica em suas
várias vertentes subscreve o tratamento dado pela teologia católica ao batismo e
também discorda dele, o que confere à tarefa de avaliação um caráter objetivo.
Contudo, a questão se complica em outras partes por causa da variedade
evidente de teologias evangélicas do batismo, o que torna a tarefa mais
desafiadora.
Há concordância em relação ao nome desse rito. Batismo é a transliteração de
um termo grego corriqueiro, βαπτίζειν (baptizein), cujo significado é
“mergulhar” ou “imergir”. Além disso, tanto para a teologia evangélica quanto
50
argumento contrário a essa interpretação pode ser sintetizado nos pontos que se
seguem: Em primeiro lugar, essa é uma interpretação anacrônica da passagem,
55
versículo 5 se refere ao batismo significaria que Jesus teria feito uma censura a
Nicodemos (v. 10) por não compreender algo que ele certamente não estava em
condições de compreender. Em segundo lugar, se a água se refere ao batismo,
que se torna então necessária à salvação, “é de surpreender que o restante da
discussão jamais a mencione novamente: a atenção toda está voltada para a obra
do Espírito (v. 8), a obra do Filho (v. 14,15), a obra do próprio Deus (v. 16,17) e
o lugar da fé (v. 15,16)”. Em terceiro lugar, se a água for uma referência ao
57
1Pedro 1.23, que assegura aos cristãos: “Fostes regenerados não de semente
perecível, mas imperecível, pela Palavra de Deus, que vive e permanece”. A
teologia evangélica chama a atenção para o contexto da afirmação de Pedro para
a regeneração por meio da Palavra. Ele apela ao profeta Isaías (40.6,8) para
justificar sua argumentação: “Uma voz diz: Clama. Eu digo: O que clamarei?
Toda pessoa é como a relva, e toda a sua glória, como a flor do campo. Seca a
relva e cai a sua flor [...] mas a palavra de nosso Deus permanece para sempre”.
O apóstolo concluiu: “E essa é a palavra que vos foi evangelizada” (1Pe 1.23-
25). Em nenhum momento Pedro junta a Palavra de Deus, que é a proclamação
da mensagem do evangelho, ao batismo. Sua ênfase está na instrumentalidade da
palavra pregada para efetuar a regeneração, e não há qualquer associação ao
batismo na exposição de Pedro.
Com isso, resta outra passagem, juntamente com a citação de Agostinho, para
dar respaldo à associação entre o batismo e a Palavra de Deus. Conforme diz
Paulo: “Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela, a fim de santificá-
la, tendo-a purificado com o lavar da água, pela palavra, para apresentá-la a si
mesmo como igreja gloriosa, sem mancha, nem ruga, nem qualquer coisa
semelhante, mas santa e irrepreensível” (Ef 5.25-27). Se o “lavar da água” se
referir ao batismo, e se a “palavra” se referir à Palavra de Deus, então esse
versículo é o único que liga explicitamente o batismo à Palavra de Deus. Só isso
já basta que se faça com cautela a interpretação desse versículo dessa forma.
Conforme diz Markus Barth, pode-se entender esse versículo de forma
metafórica. Segundo esse entendimento, a frase “tendo-a purificado com o lavar
da água, pela Palavra” de modo figurado e, portanto, sucinto, comunica tudo o
que Jesus Cristo fez para efetuar a salvação pelos seres humanos pecadores.
Com sua morte sacrifical e amorosa na cruz, ele se entregou pela igreja para
santificá-la, ou separá-la, para os propósitos divinos, os quais têm uma
orientação futura que compreende a santidade plena no dia do retorno de Cristo.
Essas verdades foram tematizadas no início da carta (Ef 1.13,14): em primeiro
lugar, Paulo destaca a obra de Cristo: “Nele temos a redenção, o perdão dos
nossos pecados pelo seu sangue” (v. 7); são os seguintes os demais atos
concretos de poder por meio dos quais o ser humano decaído é resgatado e
abençoado: eleição, adoção, revelação do desígnio eterno de Deus, herança,
predestinação e o selo do Espírito Santo. Em segundo lugar, o apóstolo assinala
que Deus tinha como objetivo concretizar essa salvação: “Em amor nos
predestinou para si mesmo, segundo a boa determinação de sua vontade, para
sermos filhos adotivos por meio de Jesus Cristo, para o louvor da sua glória” (v.
5,6; cf. v. 9,12,14). Em terceiro lugar, Paulo enfatiza o desígnio da santificação:
“como também nos elegeu nele [Cristo], antes da fundação do mundo, para
sermos santos e irrepreensíveis diante dele” (v. 4). É importante notar que a obra
e o desígnio divinos são ativados quando as pessoas “ouviram a palavra da
verdade, o evangelho da salvação e creram nele [Cristo]” (v. 13). Sobre o “lavar
com água”, a expressão talvez lembre a profecia de Ezequiel que usa a ideia de
aspersão com água como metáfora para a purificação ou perdão dos pecados,
associada à ideia de que é Deus quem dá um novo coração/um coração de carne,
um novo espírito, e ao Espírito Santo, que concretiza a obediência à aliança (Ez
36.25-27). Portanto, o que Paulo defende em sua argumentação é “um louvor da
nova vida dada em comum a todos os membros da igreja por meio da morte de
Cristo e do Espírito de Deus” conforme anunciado pela palavra do evangelho. 64
Dessa forma, Efésios 5.26 não sustenta a ideia sacramental de que a Palavra de
Deus provoca uma mudança na água comum, de modo que ela se torne capaz de
transmitir graça. Tal interpretação reflete a teologia agostiniana (próximo
tópico), mas é certamente uma compreensão anacrônica da intenção de Paulo ao
escrever.
A respeito do pensamento de Agostinho de que a Palavra de Deus, quando
unida à água, faz desta o sacramento do batismo, trata-se de uma ideia que
reflete o axioma do sistema católico de interdependência natureza-graça. Como a
natureza — nesse caso, a água — tem capacidade para a graça, e como a graça
deve ser comunicada concretamente pela natureza, a água se torna um canal ou
meio de graça: o sacramento do batismo. Como esse axioma já foi avaliado e
concluímos que é deficiente, nada mais diremos aqui.
Desenvolvimento histórico
Há ainda outras divergências relativas ao batismo que decorrem do
questionamento que a teologia evangélica faz do impacto do desenvolvimento
histórico desse rito na atual compreensão e prática que tem dele a teologia
católica. Conforme observa corretamente o Catechism, numerosos elementos
foram acrescentados à ministração desse rito, e tais acréscimos influenciaram
profundamente a teologia batismal da igreja primitiva. Uma vez que faltam a
esses elementos respaldo bíblico objetivo, a teologia evangélica deve confrontar
novamente a tradição indigna de confiança do catolicismo. Analisaremos um a
um esses elementos.
Embora o padrão bíblico prescrevesse claramente o batismo imediato aos que
haviam ouvido o evangelho, estavam arrependidos dos seus pecados e criam em
Jesus Cristo, essa prática comum deu lugar a um período de catequese inserido
entre a comunicação da mensagem de salvação e o batismo. Na catequese, os
catequistas ensinavam a Escritura e as doutrinas da fé cristã, e os que
participavam dessa aprendizagem eram chamados de catecúmenos. Eles estavam
sendo preparados para o rito cristão da iniciação. Uma razão fundamental para
esse desenvolvimento pode ser encontrada na legalização do cristianismo como
religião do Império Romano. À medida que um grande contingente de novos
adeptos entrava para a igreja — e nem sempre pelas razões certas —, a
genuinidade e a seriedade do seu compromisso tinham de ser avaliados, e que
melhor maneira de fazê-lo senão tornar a entrada na igreja um processo longo e
exigente? Portanto, o batismo era adiado à espera de que o candidato terminasse
com sucesso o período de catequese.
Uma parte significativa da teologia evangélica avalia como negativa essa
demora. Embora seja compreensível que se queira avaliar de forma pragmática a
autenticidade do comprometimento do cristão e talvez seja mais compreensível
ainda que isso se dê sob certas circunstâncias, há três questões que merecem
reflexão: por que razão questões pragmáticas teriam permissão para romper com
um padrão bíblico de conversão seguido rapidamente pelo batismo? Por que a
igreja primitiva não se antecipou melhor e se preparou para as consequências
negativas do seu relacionamento crescente com o Estado? Se o Senhor da igreja
enfatizou que seu reino não é deste mundo, por que essa igreja se identificaria
com um reino mundano? Os resultados deixam claro o equívoco da relação entre
Estado e igreja: os imperadores seculares participaram dos debates teológicos
sagrados; a igreja, antes perseguida, se tornou perseguidora; as Cruzadas
tentaram retomar a Terra Santa (ou a Constantinopla da cristandade) pela força,
ao mesmo tempo que guerreavam contra as forças islâmicas; o papado reinava
como reino único ou como uma monarquia entre outras onde não faltavam as
mesmas intrigas políticas, condutas financeiras impróprias, imoralidade e
subterfúgios militares como qualquer outra potência terrena; acordos com
déspotas internacionais como Napoleão, Mussolini e Hitler. Esses resultados não
se deveram à demora do batismo; a questão não é essa. Pelo contrário, o
adiamento do batismo para preparar os candidatos para o rito representava uma
capitulação às questões pragmáticas, o rompimento de um padrão bíblico claro,
uma confusão em torno do que significava fazer novos discípulos (sendo o
batismo parte dessa responsabilidade) e, pelo batismo, acolher os membros
maduros da igreja; além de transportar à água do batismo um peso jamais
intencionado. Esse último ponto leva à discussão do batismo infantil.
A maior mudança introduzida no rito do batismo na igreja primitiva foi o
batismo infantil. Embora a Escritura apresente consistentemente os que
receberão o batismo como pessoas que já ouviram o evangelho e dele se
apropriaram pelo arrependimento e fé, na última parte do segundo século, a
igreja também passou a considerar as crianças aptas para o batismo, tendo a
prática se estabelecido firmemente no quinto século. É importante lembrar que
esse desenvolvimento histórico contava com apoiadores e detratores. Às vezes,
esse fato é negligenciado. Por exemplo, o Catechism apela ao respaldo com que
o batismo infantil contava no segundo século para justificar a prática, mas nada
diz sobre o fato de que o relato existente então sobre o batismo infantil consiste
na objeção de Tertuliano a essa nova prática, queixando-se de que “infantes
inocentes” não têm por que “se apressar pelo perdão de pecados”. Pelo contrário,
disse Tertuliano: “Que se tornem cristãos quando forem efetivamente capazes de
conhecer a Cristo” e sejam então batizados. De igual modo, quando em meados
65
batismo infantil surgiu marcada por uma forte ligação entre o batismo e a
remoção do pecado original. Portanto, é preciso lidar com o pecado original — a
doutrina segundo a qual Adão transmitiu sua culpa e corrupção a todos os seres
humanos, de modo que todos nasceram neste mundo culpados perante Deus e
manchados por uma natureza corrupta e pecaminosa —, caso contrário o
resultado será o juízo que leva à condenação. Como o batismo era considerado o
efeito do perdão de pecados, e como as crianças nascem com a culpa e a
corrupção adâmicas (pecado original), elas precisam ser batizadas para que
sejam salvas. Com essa teologia firmemente estabelecida no início do quinto
século, o batismo infantil se tornou a prática oficial da igreja.
A teologia evangélica contesta com veemência a teologia e prática do batismo
infantil. Para ser preciso, embora alguns setores da teologia evangélica
pratiquem o batismo infantil — portanto, há uma semelhança familiar entre essas
igrejas e a Igreja Católica no que se refere à ministração do batismo a crianças
—, a teologia que justifica a prática evangélica é completamente distinta de sua
congênere católica. Conforme observamos, a teologia batismal católica gira em
torno do pecado original e do seu perdão por meio do batismo infantil. A
teologia batismal evangélica, com suas inúmeras variedades, tem um foco
bastante diferente. Por exemplo, a teologia reformada fundamenta sua prática do
batismo infantil no pertencimento à aliança: os filhos de pais crentes devem ser
batizados, pois, a exemplo de seus pais, eles fazem parte da comunidade da
aliança (a igreja), tendo o direito ao sinal da filiação à aliança, que é o batismo.
Ao longo da história, Ulrico Zuínglio chamou a atenção para a analogia entre a
prática da antiga aliança da circuncisão e a prática da nova aliança do batismo
infantil. Assim como a circuncisão era feita no oitavo dia depois do nascimento
de um menino, da mesma forma o batismo deveria ser ministrado às crianças,
meninos e meninas. João Calvino também enfatizou essa analogia, salientando
os benefícios dessa prática tanto para os crentes quanto para seus filhos. Os pais
são incentivados a ver a aliança de misericórdia divina estendida à sua prole
quando seus filhos recebem esse benefício: “Ao serem enxertados no corpo da
igreja, eles são, de algum modo, entregues mais confiadamente aos outros
membros. Dessa maneira, ao crescerem, são vivamente incentivados a
cultivarem um zelo sincero pela adoração a Deus, por meio de quem foram
recebidos como filhos por meio de um símbolo solene de adoção antes que
tivessem idade suficiente pra reconhecê-lo como Pai”. Note-se que a teologia da
68
Apesar desse claro padrão bíblico, a teologia católica aponta para casos de
batismos de famílias como “possíveis” respaldos para o batismo infantil.
Analisaremos uma a uma as quatro passagens: o batismo de Lídia e de sua
família (At 16.15) nos dá informações sobre como sua família era constituída. O
pressuposto de que alguns dos batizados eram crianças é tão sem fundamento
quanto o de que não havia criança alguma. O que fica claro é que essa mulher
ouviu o evangelho e, por causa disso, foi batizada. O carcereiro de Filipos,
depois de indagar sobre o que teria de fazer para se salvar, recebeu a seguinte
ordem de Paulo e Silas: “Crê no Senhor Jesus, e tu e tua casa sereis salvos. Então
pregaram a Palavra de Deus a ele e a todos os que eram de sua casa. E [...] logo
foi batizado, ele e todos os seus” (At 16.25-33). Neste caso de batismo familiar
há informações suficientes sobre os que foram batizados: todos eles
primeiramente ouviram o evangelho e depois foram todos batizados. O caso dos
coríntios é parecido. Enquanto Paulo “dedicava-se inteiramente à palavra,
testemunhando aos judeus que Jesus era o Cristo” (At 18.5), o resultado foi
surpreendente: “Crispo, chefe da sinagoga, creu no Senhor com toda a sua casa.
Também muitos coríntios, quando o ouviam, criam e eram batizados” (v. 8).
Uma vez mais, há um padrão comum em ação: Paulo anunciou o evangelho, e
Crispo e toda a sua família, a exemplo de muitos outros coríntios, creram e
foram batizados. A quarta passagem está na primeira carta de Paulo à igreja de
Corinto, em que ele lembra: “É verdade que batizei também a família de
Estéfanas” (1Co 1.16). Embora não haja informações suficientes sobre a
composição dessa família, seria um equívoco trabalhar com a possibilidade de
que havia crianças nela e que foram então batizadas, tomando por base mais
informações em outra parte. Em suas instruções finais na carta, o apóstolo diz
que “a família de Estéfanas são os primeiros frutos da Acaia; eles têm se
dedicado ao serviço dos santos” (1Co 16.15). É claro que a família de Estéfanas
era composta por pessoas que haviam abraçado o evangelho e participavam de
um ministério frutífero, o que excluía a presença de crianças.
Portanto, o padrão bíblico, que persistiu como prática comum na igreja
primitiva, consistia no batismo que era consequência de ouvir e de acolher o
evangelho em arrependimento e fé. Portanto, os evangélicos que propõem o
batismo de crentes têm sólido respaldo bíblico para sua teologia e prática
batismais e chamam justificadamente a atenção para a fragilidade da
argumentação do pedobatismo.
Embora admita que o apoio bíblico para o batismo infantil é somente
“provável”, a teologia batismal católica apela em segundo lugar ao precedente
histórico para dar sustentação a essa prática. Conforme observamos acima, a
evidência para esse desenvolvimento, pelo menos em suas fases iniciais, é
heterogêneo: alguns na igreja apoiavam o batismo infantil, enquanto outros o
lamentavam. Contudo, no início do quinto século, a prática oficial era o batismo
infantil. De que maneira a teologia católica avalia essa evolução?
Para os credobatistas evangélicos, esse desenvolvimento contradiz o padrão
inequívoco do batismo do crente conforme estabelecido pela Escritura e está
fundamentado num mal-entendido a respeito do batismo — a purificação do
pecado original e a regeneração dos que o recebem. Consequentemente, para a
teologia evangélica, que assim crê, o batismo de crianças é um acréscimo
injustificado, e até mesmo trágico, da teologia e prática batismais da igreja
primitiva que remonta à sua origem no dia de Pentecostes. De igual modo, os
pedobatistas evangélicos discordam dessa avaliação porque, embora sua prática
guarde semelhança próxima com o batismo infantil católico, eles rejeitam as
bases católicas do pedobatismo. O batismo infantil evangélico não está baseado
na necessidade de purificação do pecado original e na necessidade de
regeneração batismal; pelo contrário, ele aponta para a analogia entre o rito da
antiga aliança da circuncisão e o rito da nova aliança do batismo e,
consequentemente, aplica esse sinal de pertencimento à aliança às crianças dos
pais crentes. Portanto, tanto o credobatismo evangélico quanto o pedobatismo
não subscrevem esse precedente histórico e seu uso em apoio ao pedobatismo
católico.
A teologia evangélica também lamenta que outros acréscimos ao rito do
batismo tenham sido feitos pela igreja primitiva. Por exemplo, a celebração
desse rito é precedida por um exorcismo e pela renúncia a Satanás. Certamente,
a Escritura descreve o ser humano pecador como alguém que se comportava
“segundo o príncipe do poderio do ar, do espírito que agora age nos filhos da
desobediência” (Ef 2.2) e como “filhos do Diabo” (1Jo 3.8,10; cf. Jo 8.44) que
estão sob o “poder de Satanás” (At 26.18). A teologia católica associa essa
dominação satânica ao pecado original e aos pecados de fato como uma de suas
consequências. O Diabo é o instigador do pecado e, portanto, domina aqueles
que estão sob o controle do pecado. A libertação do pecado e de sua jurisdição
demoníaca é um dos efeitos da regeneração. Como ela é efetuada pelo batismo, o
exorcismo e a renúncia a Satanás se tornaram um elemento do rito batismal da
igreja primitiva. A teologia evangélica critica esse acréscimo em razão da falta
de suporte bíblico para ele e lamenta o fato de outra tradição equivocada na
teologia e prática católicas. 70
teologia católica não oferece suporte algum para tais alegações. O inclusivismo
77
católico ignora ainda a ênfase bíblica explícita que junta a expiação de Cristo
(ponto 1) e seu anúncio por meio do evangelho e a resposta de fé (ponto 2), sem
a qual não pode haver salvação. Por fim, ela não leva em conta a
pecaminosidade intratável das pessoas — cristãos, bem como não cristãos —, o
que esvazia a suposição de que, se um não evangelizado tivesse pelo menos
ouvido falar da necessidade do batismo, ele o teria desejado explicitamente. 78
católica observa que essa teoria não se baseia em nenhum ensino explícito da
revelação divina e jamais foi definida dogmaticamente pelo Magistério;
portanto, trata-se apenas de uma hipótese. Consequentemente, a atenção atual da
teologia católica está voltada para a entrega das crianças não batizadas à
misericórdia divina. Enquanto algumas variedades de teologia evangélica vão
além dessa posição — algumas afirmam que as crianças que morrem estão
salvas; outras dizem que os filhos dos crentes estão salvos; outras, ainda, que as
crianças que morrem estão condenadas ao inferno por causa da culpa adâmica
decorrente do pecado original —, a análise cuidadosa dessa questão pela teologia
católica deve servir de advertência contra tais posicionamentos definitivos. Por
esse motivo, outras variedades de teologia evangélica nada dizem a respeito do
destino das crianças mortas. 80
Uma última questão: a teologia católica propõe o batismo para quem quer que
não seja ainda batizado, e não permite o batismo de pessoas que já foram
batizadas em razão do caráter indelével do sacramento. Dada a natureza
permanente do sacramento, a teologia católica nega que os protestantes que
tenham sido batizados com o batismo cristão, e que queiram se converter ao
catolicismo, possam ser rebatizados. A teologia evangélica trata esse assunto de
diferentes maneiras. Em relação a quem pode receber o batismo, os pedobatistas
evangélicos geralmente restringem o batismo de alguma forma — por exemplo,
às crianças de pais crentes —, ao passo que os credobatistas evangélicos
limitam-no àqueles que possam apresentar uma profissão de fé crível. Sobre o
rebatismo, muitos tipos de teologia evangélica exigem das pessoas que foram
batizadas na Igreja Católica que sejam batizadas novamente para se tornarem
membros de uma igreja evangélica. Essa posição se deve ao fato de que (1) o
pedobatismo católico se equivoca ao acreditar que remove o pecado original e
produz a regeneração (portanto, é inválido), ou (2) todo tipo de pedobatismo
(católico, ortodoxo ou protestante) não é batismo verdadeiro. Nesse último caso,
as pessoas não são batizadas novamente porque o batismo infantil a que foram
submetidas não é considerado um batismo válido.
Em suma, a teologia e prática batismais católica e evangélica, embora tenham
alguns pontos em comum, são basicamente distintas dadas as diferentes
interpretações das passagens bíblicas que narram ou apresentam o batismo,
diferentes avaliações de precedentes históricos do batismo, diferentes
entendimentos dos significados e efeitos do batismo e muito mais.
Cristo, comunicaram aos neófitos, pela imposição das mãos, o dom do Espírito
para completar a graça do batismo. [...] A imposição das mãos é justificadamente
reconhecida, pela tradição católica, como a origem do sacramento da
confirmação que, de certo modo, perpetua na igreja a graça do Pentecostes.” 85
conferido pela unção do santo crisma sobre a fronte, feita com a imposição da
mão, e por estas palavras: accipe signaculum doni Spiritus Sancti [recebe por
este sinal o Espírito Santo, o dom de Deus]”. A celebração termina com um
90
sinal de paz, que expressa e manifesta a plena comunhão com o bispo e com
91
outros fiéis.
O efeito do sacramento, claramente expresso e concretizado, “é o pleno
derramamento do Espírito Santo conforme um dia concedido aos apóstolos no
dia de Pentecostes”. Esse derramamento resulta em “um aumento e
92
batismo, esse sacramento confere uma marca espiritual indelével e não pode ser
repetido.
Em relação aos beneficiários e ministros do sacramento, a confirmação pode e
deve ser concedida a todos os que foram batizados. De fato, como os três
sacramentos da iniciação cristã formam uma unidade, todos os batizados são
obrigados a participar da confirmação. Para os que foram batizados na infância,
a hora adequada é a da “idade da discrição”, ou entre os sete e os dezesseis anos
95
Avaliação evangélica
Embora inúmeras variedades de teologia evangélica acolham a confirmação
como parte da preparação das pessoas para a conversão ou para o crescimento na
fé cristã, para nenhuma delas a confirmação é um sacramento. Conforme
dissemos acima, a razão para essa rejeição é que Jesus não a ordenou como rito a
ser ministrado pela igreja.
No âmago da teologia católica da confirmação encontra-se a interconexão
natureza-graça. Esse axioma enfatiza a concessão da graça por meio da natureza
(nesse caso, o óleo), que tem a capacidade de comunicar a graça, uma
capacidade que é concretizada pela consagração do óleo pela igreja. Essa graça,
infundida nos confirmandos, eleva ainda mais sua natureza (humana) para além
dos efeitos da graça concedida a ela por seu batismo. Com base nesse
entendimento, a graça batismal inicia o processo, remove o pecado original e faz
os batizados (na maior parte dos casos, crianças) adquirirem uma nova natureza
pela regeneração efetuada pelo Espírito. A graça batismal também os introduz na
igreja e os lança em missão por Cristo. Quando as crianças batizadas atingem a
idade da discrição, entre sete e dezesseis anos, uma infusão maior de graça é
necessária, e esse aumento de graça vem pelo sacramento da confirmação. Na
verdade, os termos usados pela teologia católica para descrever esse sacramento
enfatizam o aumento que ele confere aos que o recebem: ele
aumenta/aprofunda/aperfeiçoa a graça batismal, une os batizados mais
perfeitamente à igreja, enriquece-os com uma força especial por meio do pleno
derramamento do Espírito Santo, intensifica sua obrigação missional, ao mesmo
tempo que amplifica os dons do Espírito, aprofunda as raízes da filiação, une
mais firmemente a Cristo. A natureza quantitativa da graça e sua elevação da
natureza (humana) mediante a confirmação é evidente. 98
Messias, Jesus de Nazaré, pelo Espírito Santo é bem atestada pela Escritura. De
igual modo a profecia de Cristo do derramamento do Espírito sobre os discípulos
de Cristo de uma maneira inédita, nova e sem precedentes, uma promessa que
foi cumprida no dia de Pentecostes. Contudo, a Escritura ressalta que o dom do
Espírito Santo é recebido na conversão, conferido pelo próprio Jesus. São as
seguintes as evidências disso: João Batista explicou que o Messias batizaria as
pessoas com o Espírito Santo (Lc 3.15-17); de fato, João identificou Jesus como
“aquele que batiza com o Espírito Santo” (Jo 1.33). No dia de Pentecostes,
juntamente com o Pai, Cristo derramou o Espírito sobre seus seguidores (At 2.1-
4,33), e esse mesmo dom foi recebido pelas três mil pessoas que ouviram a
mensagem de Pedro (v. 38). O apóstolo Paulo explica ainda que esse batismo
com o Espírito — que se aplica a todos os cristãos, uma vez que se trata de uma
experiência inicial que acompanha os outros atos de poder de Deus para a
salvação das pessoas — as introduz no corpo de Cristo, a igreja (1Co 12.13).
Consequentemente, todos os cristãos foram batizados com o Espírito como parte
de sua conversão. O fato de que enchimentos sucessivos e múltiplos do Espírito
(e.g., At 4.8,31; 13.9) ocorram e devam ser desejados para que haja revestimento
de poder no ministério não deve esvaziar a realidade de que todos os seguidores
de Cristo foram galardoados com o Espírito desde o início de sua jornada cristã.
E o fato de que ao cristão é ordenado que seja cheio do Espírito, guiado e
dominado por ele como modo de vida (Ef 5.18) não deve diminuir o fato de que
o dom do Espírito Santo foi concedido quando ele abraçou o evangelho de Jesus
Cristo.
Portanto, a teologia evangélica questiona a base bíblica para a afirmação da
teologia católica de que, depois do derramamento do Espírito Santo em
Pentecostes, “os apóstolos comunicaram aos neófitos, pela imposição das mãos,
o dom do Espírito para completar a graça do batismo”. Essa ideia depende da
100
Cristo, entravam em comunhão com ele e formavam com ele um corpo” (1Co
10.16,17). 5
cujo corpo e sangue eles compartilham para formar um corpo só (1Co 10.16,17).
Outros nomes: coisas santas, pão dos anjos, pão do céu, remédio da
imortalidade e viático. Por fim, o sacramento é chamado de santa missa, porque
8
Antigo Testamento pela ação de Melquisedeque, que “trouxe pão e vinho” (Gn
14.18). Outras prefigurações veterotestamentárias: os pães ázimos do Êxodo, o
maná do deserto e o cálice da bênção na conclusão da Páscoa judaica.
Quanto às prefigurações do Novo Testamento, a multiplicação dos pães e os
cinco mil que foram alimentados (Mt 14.19), bem como os quatro mil (Mt
15.36), e o milagre da transformação da água em vinho nas bodas de Caná (Jo
2.11) foram precursores dos elementos eucarísticos. O discurso do “Pão da Vida”
de Jesus no Evangelho de João (6.25-71) é considerado o “primeiro anúncio
eucarístico”, com essa importante explicação: assim como o anúncio da
eucaristia por Jesus dividiu os discípulos, assim também o anúncio de sua paixão
iminente os escandalizou. Consequentemente, “a eucaristia e a cruz são pedras
de tropeço. É o mesmo mistério, e ele jamais cessa de ser motivo para divisão”. 14
* * *
pela sua obra da criação, redenção e santificação. “Na epiclese, a igreja pede ao
Pai que envie o Espírito Santo” para transformar o pão e o vinho para que se
tornem o corpo e o sangue de Cristo. O sacerdote pede então especificamente:
23
entregue”, ele eleva o pão sobre o altar e prossegue, “ele tomou o pão em suas
mãos [o sacerdote eleva os olhos], elevou os olhos a vós, ó Pai, deu graças, o
partiu e o deu a seus discípulos, dizendo [o sacerdote se curva discretamente]:
‘Tomai, todos, e comei: isto é o meu corpo, que será entregue por vós’”.
Expondo a hóstia consagrada aos fiéis, o sacerdote a deposita na patena (disco de
ouro ou de metal dourado, que serve para cobrir o cálice e receber a hóstia) e se
ajoelha em adoração. Em seguida, anuncia: “Do mesmo modo, ao fim da ceia”,
26
o sacerdote eleva o cálice sobre o altar e prossegue, “ele tomou o cálice em suas
mãos, deu graças novamente e o deu a seus discípulos, dizendo [o sacerdote se
curva discretamente]: ‘Tomai, todos, e bebei: este é o cálice do meu sangue, o
sangue da nova e eterna aliança, que será derramado por vós e por todos para
remissão dos pecados. Fazei isto em memória de mim’”. Expondo o cálice aos
fiéis, o sacerdote o deposita em seguida sobre o corporal (tecido de linho que
recobre o altar), ajoelhando-se em adoração. Em seguida, ele diz: “Eis o
27
mistério da fé”. 28
conduz os fiéis na recitação do Pai-Nosso, depois do que eles dão a paz uns aos
outros. O sacerdote então pega a hóstia, parte-a e coloca uma pequena parte dela
no cálice, dizendo: “Que a comunhão do corpo e sangue de nosso Senhor Jesus
Cristo nos conduza à vida eterna a nós que a recebemos”. A congregação diz:
33
tomada como trina realidade: ações de graças (ao Pai), sacrifício (do Filho) e
presença (pela Palavra e pelo Espírito). Em relação à primeira realidade, e em
39
De fato, “Cristo dá aquele mesmo corpo que entregou por nós na cruz, aquele
mesmo sangue que ‘derramou por muitos em remissão dos pecados’”. Trata-se 44
O sacrifício expiatório de Cristo realizado uma vez por todas na cruz do Calvário
há dois mil anos não está limitado no tempo àquele momento, mas é
reapresentado, ou presentificado, quando o sacerdote celebra a liturgia da
eucaristia.
Essa realidade sacrifical da eucaristia não se limita à obra sacrifical de Cristo,
mas inclui também o sacrifício da igreja quando ela participa da oferta de Cristo:
“Com ele, ela própria é oferecida integralmente. Ela une-se à sua intercessão
junto do Pai em favor de todos os homens. Na eucaristia, o sacrifício de Cristo
torna-se também o sacrifício dos membros do seu corpo”. De fato, a cada
47
reconhecer que Cristo “está presente de diversas maneiras para sua igreja” —
por exemplo, na Palavra de Deus e quando ela ora —, o Catechism enfatiza que
“ele está presente [...] sobretudo na espécie eucarística” do pão e do cálice
consagrados. Isso acontece porque a maneira da presença de Cristo nesse
51
“Cristo está presente todo em cada uma das espécies e todo em cada uma das
suas partes, de maneira que a fração do pão não divide Cristo”. Em outras 59
também separa o fiel do pecado por meio de dois valores específicos: ele
purifica dos pecados passados e preserva de pecados futuros. Em relação ao
primeiro valor, “a eucaristia não está ordenada ao perdão dos pecados mortais.
Isso é próprio do sacramento da reconciliação. O que é próprio da eucaristia é
ser o sacramento daqueles que estão na plena comunhão da igreja”. Assim, “tal
67
como o alimento corporal serve para restaurar as forças perdidas, assim também
a eucaristia fortifica a caridade que, na vida cotidiana, tende a enfraquecer-se; e
essa caridade vivificada apaga os pecados veniais [pecados menos graves que
ferem a graça, embora não a extingam]”. Em referência ao segundo valor, “pela
68
ela o fiel fica mais unido a Cristo e, portanto, unido em um corpo. Como
70
benefício final, o sacramento compromete a igreja com o pobre, porque
reconhece Cristo nele. É importante salientar que o volume de bons resultados
71
para o fiel depende da vida e da atitude dos participantes: “Assim como a paixão
de Cristo, esse sacrifício, embora oferecido a todos, ‘não tem efeito algum,
exceto nos que se acham unidos à paixão de Cristo pela fé e pela caridade [...]. A
essas coisas ele traz um benefício maior ou menor na proporção da sua
devoção’”. 72
Avaliação evangélica
O fato de a Igreja Católica proibir os protestantes/evangélicos de participarem do
sacramento da eucaristia chama a atenção para a grande brecha entre a teologia
católica e a teologia evangélica em relação a esse tema. De fato, talvez não seja
exagero dizer que esse sacramento constitui uma das duas divergências mais
importantes entre as duas teologias. Consequentemente, mesmo que haja alguma
semelhança entre o sacramento católico da eucaristia e os vários tipos de
celebrações evangélicas dessa ordenança, essas semelhanças — por exemplo, os
elementos do pão e do vinho, a recitação da narrativa da instituição da ceia, a
solenidade e a regularidade da observação, as ações de graças no momento da
celebração — são, na melhor das hipóteses, semelhanças familiares externas.
A crítica da teologia evangélica a esse sacramento se concentra nos seguintes
tópicos: a interpretação sacramental do discurso do “Pão da Vida” de Jesus (Jo
6); as prefigurações da eucaristia no Antigo e no Novo Testamentos; o dogma da
transubstanciação; a ideia de tornar presente o sacrifício de Cristo por meio do
partilhamento na eternidade ou da atemporalidade de Deus daquele evento; a
participação da igreja na oferta de Cristo; a infusão de graça por meio do
sacramento; a adoração contínua de Cristo presente nas hóstias consagradas e
não consumidas guardadas no sacrário; e a relação desse sacramento com o
sacramento da penitência.
Interpretação sacramental do discurso do “Pão da Vida”
O entendimento sacramental do discurso do “Pão da Vida” de Jesus em João
6.22-58, uma interpretação que é crucial para a doutrina da teologia católica da
presença real de Cristo no sacramento da eucaristia, é extremamente improvável.
Na primeira parte do seu discurso (v. 22-48), Jesus enfatiza a necessidade de fé
nele para que haja salvação:
A obra de Deus é esta: Crede naquele [o Filho] que ele [o Pai] enviou (v.
29).
Porque esta é a vontade de meu Pai: que todo aquele que vê o Filho e nele
crê tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia (v. 40).
Em verdade, em verdade vos digo: Quem crê tem a vida eterna (v. 47).
várias razões para isso: conforme ele fez na primeira parte do seu discurso (“Eu
sou o pão da vida”; v. 35,48), Jesus se apresenta na segunda parte como “pão
vivo” (v. 50,51). Ele explica posteriormente o que quis dizer com a metáfora do
pão: “E o pão que eu darei pela vida do mundo é a minha carne” (v. 51). Embora
essa expressão lembre suas palavras de instituição da ceia (“Isto é o meu corpo”;
Mt 26.26), Jesus usa a palavra “carne” (do gr., σαρξ; sarx), e não a palavra
“corpo” (do gr., σωμα, soma), conforme se lê na narrativa institucional.
Contudo, uma melhor associação é a que se encontra no prólogo do
Evangelho de João: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1.14). O
Verbo de Deus (Jo 1.1,2), o Filho que existe desde toda a eternidade, se
encarnou, assumiu a carne humana (toda a natureza humana, e não apenas o
corpo); como Deus-homem encarnado, “Jesus pode oferecer sua ‘carne’ pela
vida do mundo”. Este é o sacrifício de Jesus: não seu corpo presente no pão da
79
diretamente sobre crer nele para a vida eterna, culminando com a ressurreição no
último dia. Na segunda parte, ele repete metaforicamente a primeira ideia, agora
se referindo à sua carne, que deve ser comida, e ao seu sangue, que deve ser
bebido, culminando com a ressurreição. Tomar essa expressão metafórica como
referência ao pão e ao cálice da eucaristia torna o sacramento necessário à
salvação, contradizendo assim a ênfase de Jesus na fé mencionada na parte
anterior do seu discurso. Em segundo lugar, quando Jesus diz que, no último dia,
ele ressuscitará pessoas que o tiverem consumido, “prova que ele não acredita
que comer sua carne e beber seu sangue confiram imediatamente ressurreição/
imortalidade”. Contudo, é isso precisamente o que a teologia católica da
81
discurso — “O Espírito é o que dá vida, a carne não serve para nada; as palavras
que eu vos tenho falado são espírito e vida” (v. 63) — adverte contra uma
interpretação sacramental do discurso. Claramente, “carne” nessa passagem não
se refere à encarnação de Jesus, que vale efetivamente para tudo no que diz
respeito à vida eterna. Pelo contrário, “é impossível não ver em ‘carne’ uma
referência direta à discussão anterior e, portanto, uma rejeição a toda
interpretação essencialmente sacramental. Contudo, se a carne não dá vida, o que
dá?”. Jesus diz que o Espírito Santo é quem dá vida. Tal afirmação vai ao
83
assentado à mão direita do Pai; e.g., Rm 8.34), de sua ausência da terra (no
tocante à sua natureza humana, Cristo não está presente aqui e agora, mas enviou
seu Espírito Santo para tomar seu lugar; e.g., Jo 14.26; 16.7) e do seu futuro
retorno (que sentido pode ter essa volta de Cristo à terra se ele já está presente
aqui na plena forma do seu ser, inclusive em sua natureza humana?). A crítica da
teologia evangélica a esse axioma da interconexão Cristo-Igreja como
fundamento da presença eucarística de Cristo — “No santíssimo sacramento da
eucaristia estão contidos, verdadeira, real e substancialmente, o corpo e o
sangue, conjuntamente com a alma e a divindade de nosso Senhor Jesus Cristo e,
por conseguinte, Cristo completo” — significa que a transubstanciação também
86
é criticada.
Há outras razões específicas para a rejeição da transubstanciação por parte da
teologia evangélica. Se fizermos um ligeiro apanhado histórico (o que o
Catechism não faz), veremos que a transubstanciação foi proclamada posição
oficial da Igreja Católica no Quarto Concílio de Latrão (1215), tendo Tomás de
Aquino (1225-1274) providenciado os sustentáculos filosóficos da doutrina.
Aquino recorreu à filosofia de Aristóteles, concretamente à distinção entre
substância — essência ou natureza que existe por si mesma (e não em outra
coisa) — e acidente — características ou atributos que não se acham em seu
âmago e que, portanto, podem ser perdidas sem que se perca a coisa em si.
Alguns desses acidentes podem ser percebidos pelos sentidos. Mantendo-se essa
distinção, Aquino propôs o seguinte: no caso do pão e do vinho eucarísticos,
embora os acidentes continuem os mesmos — o pão e o vinho ainda se parecem,
têm aroma e sabor de pão e vinho —, a substância do pão é transformada no
corpo de Cristo e a substância do vinho é transformada no sangue de Cristo. Essa
mudança de substância é chamada de transubstanciação. Em última análise,
Aquino apelou ao poder divino para explicar esse milagre:
Ora, Deus é o ato infinito. Por isso, sua ação se estende a toda a natureza do ser. Portanto, ele não só
pode realizar a conversão formal de modo que as diversas formas se sucedam num mesmo sujeito,
mas também a conversão de todo o ser, de modo que toda a substância de um ser se converta em toda
a substância de um outro. E isso se realiza, portanto, neste sacramento pelo poder divino. Com efeito,
toda a substância do pão se converte em toda a substância do corpo de Cristo, e toda a substância do
vinho, em toda a substância do sangue de Cristo. Por isso, esta conversão não é formal, mas
substancial. Não se classifica entre as diversas espécies de movimento natural, mas pode-se chamar
com o nome apropriado de “transubstanciação”.87
filosóficos, e não bíblicos, e por isso ela não pode se impor à consciência do fiel.
Conforme Lutero objetou: “O que é afirmado sem as Escrituras ou revelação
provada pode ser considerado uma opinião, mas não deve ser crido”. Em 89
respaldo bíblico claro e substancial do suposto poder de Deus para realizar esse
milagre, a teologia evangélica se recusa a abraçar a transubstanciação.
Contudo, embora se coloque de maneira uniforme contra a ideia católica da
eucaristia, a teologia evangélica não tem apenas uma única visão que lhe sirva de
alternativa, mas várias. Embora a teologia católica critique asperamente as
91
reformada que seguiu seus passos continua a afirmar a presença real de Cristo no
rito. Deve-se salientar, porém, o fato de que essa perspectiva não é a da
transubstanciação, e que ela não acolhe a reapresentação do sacrifício de Cristo
na cruz, por várias das diversas razões apresentadas acima.
A participação da igreja na oferta de Cristo
Outra crítica à teologia católica diz respeito à sua ideia de que, durante a missa,
as pessoas — representadas pelos leigos, e não pelo clero — depositam perante o
altar os sacrifícios necessários: “Fruto da terra e a obra das mãos humanas” (o
pão oferecido a Deus) e o “fruto da videira e obra das mãos humanas” (o vinho
oferecido a Deus). Esses sacrifícios são recebidos pelo sacerdote, que
95
Infusão da graça
Uma consequência da crítica evangélica à interdependência natureza-graça é sua
discordância com a ideia da teologia católica de que a graça é infundida no fiel
por meio da eucaristia. De acordo com esse axioma, não apenas a natureza é
capaz de comunicar graça, mas também a graça precisa se manifestar de forma
concreta. Portanto, a graça opera pela natureza no intuito de elevá-la e
aperfeiçoá-la. Sobre a eucaristia, a graça do Cristo reapresentado no sacramento
produz uma mudança na natureza (humana) do fiel que a recebe. Como se trata
de um axioma equivocado, a ideia de graça infundida baseada no axioma
também está errada. Essa crítica evangélica específica da graça infundida será
feita posteriormente durante a discussão da justificação e da retidão que nos é
imputada por Cristo.
Adoração contínua a Cristo
O outro axioma do sistema católico, a interconexão Cristo-Igreja, dá respaldo à
prática católica de adoração contínua a Cristo que está presente na hóstia
consagrada não consumida depositada no sacrário. O raciocínio é preciso: a
Igreja Católica é a continuação da encarnação do Cristo que subiu ao céu. Por
meio da mediação da Igreja Católica, o Cristo total se torna presente nos
elementos do sacramento da eucaristia. Portanto, quando sobram hóstias da
celebração da liturgia da eucaristia, o Cristo total continua presente nessas
hóstias e, portanto, deve-se adorá-las. Esse raciocínio faz sentido no sistema
católico. A teologia evangélica, que discorda da interconexão Cristo-Igreja,
rejeita a adoração contínua do Cristo nas hóstias não consumidas e sustenta que
essa ideia está fundamentada em um axioma equivocado que resulta no
desmoronamento de todo o sistema católico.
O Catechism suscita uma questão importante e responde a ela: Por que esse
sacramento pós-batismal é necessário? Certamente, a obra da graça de Deus é
generosa e diversa — ela envolve a purificação, a santificação e a justificação
(1Co 6.11) — nos sacramentos da iniciação cristã, uma generosidade que realça
“até que ponto o pecado é algo inadmissível” para o fiel. Ao mesmo tempo, a 5
realidade do seu pecado persistente é inegável (1Jo 1.8). Além disso, Jesus
mesmo enfatizou que a oração do fiel — “Perdoai nossas ofensas” (Lc 11.4; Mt
6.12) — está associada ao perdão que este concede ao pecado alheio.
Consequentemente, a nova vida recebida pela conversão a Cristo e os
sacramentos da iniciação “não aboliram a fragilidade e a debilidade da natureza
humana, tampouco a inclinação ao pecado” — a concupiscência. Dada essa 6
ao chamado de Cristo que “continua a ressoar na vida dos cristãos”. Como tal,
ela exige “uma tarefa ininterrupta por parte de toda a Igreja”, juntamente com “o
caminho da penitência e da renovação”, além de trazer consigo um esforço de
cooperação entre a obra humana e a graça divina: “É o movimento de um
‘coração contrito’ atraído e movido pela graça em resposta ao amor
misericordioso de Deus que nos amou primeiro”. Essa segunda conversão é
9
pela participação na eucaristia, que é um “remédio para nos libertar das nossas
falhas diárias e nos preservar dos pecados mortais”. Outros elementos que
17
Conforme dissemos acima, o pecado tem dois lados: antes de tudo, ele é uma
ofensa a Deus, mas também prejudica a comunhão com a igreja. “É por isso que
a conversão traz consigo, ao mesmo tempo, o perdão de Deus e a reconciliação
com a Igreja, o que é expresso e realizado liturgicamente pelo sacramento da
penitência e reconciliação.” Em relação à primeira realidade, o Catechism
19
destaca que somente Deus perdoa pecados (Mc 2.5,10; Lc 7.48). Contudo, além
disso, por sua autoridade divina, Cristo “dá esse poder aos homens para que o
exerçam em seu nome”. De modo concreto, “ele confiou o exercício do poder
20
Em relação aos atos do penitente, são três os que dele se exigem: contrição,
confissão de pecados e satisfação. Em primeiro lugar, está a contrição, que é
“uma dor da alma e uma detestação do pecado cometido, com o propósito de não
mais pecar no futuro”. Há dois tipos de contrição: (1) contrição perfeita
29
remissão dos pecados veniais, bem como “o perdão dos pecados mortais se
houver a firme resolução de se buscar a confissão sacramental tão logo quanto
possível”. O fruto da contrição imperfeita é a disposição de iniciar o processo
31
que conduz à absolvição; todavia, por si mesma, tal contrição “não obtém o
perdão dos pecados graves”. 32
caso de pecado mortal não confessado, mesmo que a pessoa “se sinta
profundamente contrita”, mas não teve ainda seu pecado absolvido por meio do
sacramento da penitência. As crianças devem participar desse sacramento antes
36
oferece o argumento para esses atos de satisfação: eles “nos ajudam a configurar-
nos com Cristo, que, por si só, expiou os nossos pecados uma vez por todas.
Essas penitências fazem que nos tornemos coerdeiros de Cristo ressuscitado,
‘uma vez que também sofremos com ele’ [Rm 8.17; 3.25; 1Jo 2.1,2]”. 40
para os quais o sacerdote impõe uma penitência, a qual, por sua vez, é aceita
pelo penitente. O sacerdote então absolve o penitente do seu pecado ou dos seus
pecados, oferece uma oração de ação de graças e de louvor e despede o penitente
com uma bênção. Esse sacramento requer uma rigorosa confidencialidade. De
fato, “a Igreja declara que todo sacerdote que ouve confissões está obrigado a
guardar segredo absoluto sobre os pecados que os seus penitentes lhe
confessaram, sob penas severíssimas. Tampouco pode servir-se dos
conhecimentos que a confissão lhe proporciona sobre a vida dos penitentes. Esse
segredo, que não admite exceções, é chamado ‘sigilo sacramental’, porque
aquilo que o penitente manifestou ao sacerdote fica ‘selado’ pelo sacramento”. 42
São dois os efeitos desse sacramento: restauração à graça de Deus, que reúne
os penitentes junto de si em íntima amizade, e reconciliação com a igreja, que
revitaliza a vida da comunidade. Além disso, o resultado é geralmente de “paz e
a tranquilidade da consciência, acompanhadas de uma grande consolação
espiritual [...] e dignidade e [...] bens próprios da vida dos filhos de Deus”. 44
Além disso, nesse sacramento, o fiel antecipa, de certo modo, o juízo final que
virá com sua morte, escolhendo a vida, para que ‘não seja julgado’ [Jo 5.24]”. 45
A terceira explicação trata da obtenção das indulgências : elas são obtidas por
intermédio da igreja, que “em virtude do poder de ligar e desligar que lhe foi
concedido por Jesus Cristo, intervém a favor do cristão e lhe abre o tesouro dos
méritos de Cristo e dos santos, para obter do Pai das misericórdias o perdão das
penas temporais devidas pelos seus pecados”. É importante notar que é possível
50
Avaliação evangélica
A penitência não é um sacramento
Dos quatro sacramentos católicos apresentados até agora, esse sacramento,
juntamente com o da confirmação, não é considerado como tal pela teologia
evangélica. Como já discutimos, a razão para essa rejeição se deve ao fato de
que Jesus não o ordenou para que fosse um rito a ser administrado pela sua
igreja. Apelar às palavras de Jesus “fazei penitência, porque o reino de Deus está
próximo” (Mt 4.17) e usá-las como argumento de que ele instituiu efetivamente
a penitência como sacramento se equivoca porque essa citação, baseada na
Vulgata Latina, é uma tradução errônea do mandamento conforme se acha
expresso no grego do Novo Testamento. A ordem foi a seguinte: “Arrependei-
vos, porque o reino de Deus está próximo”. Jesus nunca ordenou ao seu povo
51
que fizesse atos penitenciais de jejum, oração, esmolas e coisas parecidas como
se fossem prescritas por um rito penitencial eclesiástico, e sim para que dessem
meia-volta, reorientassem sua vida, mudassem de mente e coração. Martinho
Lutero excluiu a penitência da lista dos sacramentos, embora inicialmente ele a
tivesse incluído, uma vez que não há nenhum sinal tangível associado a ela. A 52
tempo, no que se refere à Bíblia, esse processo contínuo deve ser mais
apropriadamente chamado de santificação, e não de conversão. Essa precisão
ajuda a evitar dois problemas com a apresentação da conversão contínua pela
teologia católica. Primeiro, a Escritura diz que a santificação, e não a conversão,
é um esforço contínuo e cooperativo entre a graça divina e o agir humano. Deus,
agindo adequadamente de acordo com sua ação divina, concede graça e guia,
disciplina, confere poder, corrige e abençoa seu povo, que, agindo
adequadamente de acordo com sua ação humana, lê e memoriza a Escritura, ora,
jejua, tem comunhão com outros cristãos, evita o pecado e muito mais. Chamar
essa segunda conversão de “santificação” produz certo grau de precisão e uma
conformidade maior com a Escritura. Evita também a dificuldade da frágil base
bíblica para a “segunda conversão” conforme proposta pela teologia católica. A
“conversão” de Pedro depois de negar três vezes a Cristo, que depois o
restaurou, parece estar mais relacionada com sua restauração ao ministério do
que a um modo pelo qual o fiel deverá se converter continuamente. Contudo, o
processo sinergético constante de santificação tem amparo bíblico muito maior
(e.g., Fp 2.12,13; 1Ts 5.23; Hb 13.20,21).
Todas as vertentes da teologia evangélica elogiam a ênfase da teologia católica
na conversão como resultado mais importante da graça divina para a
conscientização da existência do pecado, para induzir ao arrependimento,
suscitar a fé etc. Nesse sentido, duas convicções teológicas procuram discernir a
ordem real dos acontecimentos que ocorrem na salvação. O debate se restringe
particularmente à relação entre regeneração e conversão. Segundo a teologia
arminiana, em primeiro lugar, em resposta à graça preveniente, as pessoas que
ouvem o evangelho se arrependem e expressam fé em Cristo (conversão) e
depois Deus lhes dá uma nova natureza (regeneração). A teologia reformada
argumenta que Deus primeiramente regenera a pessoa, que, em seguida, se
converte por meio do arrependimento e da fé. É importante atentar para o fato
54
em 1João 1.9 é mais do que uma mera declaração de palavras; pelo contrário, é
uma declaração que torna o perdão um fato.
Em segundo lugar, a teologia evangélica do perdão encoraja o cristão a
confessar seus pecados a outro cristão. Conforme dissemos acima, alguma coisa
muito poderosa acontece na confissão coletiva. Às vezes, é preciso trazer à luz
pecados ocultos que até então isolaram e sobrecarregaram aquele que agora os
confessa. Às vezes, requer que se lembre a uma pessoa esquecida, distraída ou
deprimida a divina promessa do perdão. Embora muitas igrejas — igrejas
evangélicas, bem como a Igreja Católica — incentivem as pessoas a exibir uma
fachada de piedade cristã, desestimulando a transparência em torno da maneira
que as coisas são de fato, as igrejas deveriam ser portos seguros que tomam a
frente da confissão de pecados e de arrependimento entre seus membros, lugares
cheios de graça que não se sintam chocados com a imoralidade, as fraudes, o
orgulho, a preguiça, os relacionamentos rompidos, a ira e outros pecados, mas
que migrem rapidamente para um ambiente de consolo, repreensão, correção e
perdão. Essa teologia evangélica de confissão de pecado não depende do
sacramento da penitência para sua realidade ou para que dê frutos.
Indulgências
Um último tópico relacionado com o sacramento da penitência é a doutrina e a
prática de indulgências. A relação se dá da seguinte forma: por meio do
sacramento, o castigo eterno do pecado é perdoado; contudo, a penitência não
remove a mancha do pecado mortal perdoado, e a mancha do pecado venial
persiste. Se o fiel não for totalmente obediente nesta vida, sua alma vai para o
purgatório, onde ele terá de passar por uma purificação adicional por causa da
corrupção que persiste.
A teologia evangélica, seguindo as pegadas de reformadores como Martinho
Lutero e João Calvino, condena esse aspecto da doutrina católica. São os
seguintes os principais pontos de discordância: criadas com o propósito de
cancelar o castigo temporal pelos pecados perdoados, as indulgências são
supérfluas porque Jesus Cristo, por meio de seu sacrifício supremamente
suficiente em favor do ser humano pecador, já cancelou todo o castigo resultante
do pecado. Ele pagou totalmente o que era devido; portanto, não resta culpa
alguma e não há castigo temporal algum que paire sobre o pecador. Além disso,
a salvação não depende da purificação completa da natureza pecaminosa do ser
humano nesta vida; antes, é uma questão de justificação, que é a declaração
forense de Deus de que o pecador arrependido não é culpado, e sim justo, porque
a justiça perfeita de Cristo é creditada em sua conta. Embora a justificação não
seja a única obra de poder de Deus em favor da salvação do ser humano decaído,
é sobre ela que repousam promessas como: “Portanto, agora já não há
condenação alguma para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8.1). Nenhuma
condenação significa nenhuma culpa, e, se não há culpa alguma, não há castigo
temporal pelo qual pagar no purgatório, de onde se sai com a ajuda das
indulgências.
Além disso, o conceito de tesouro dos santos, por meio do qual uma troca de
bens espirituais aplica os méritos de Cristo, juntamente com as orações e as boas
obras de Maria e dos santos, às almas dos fiéis no purgatório, não tem base
bíblica alguma e é ilógico. Se os méritos de Cristo são efetivamente indefinidos,
conforme assevera a teologia católica, então que possível benefício poderia ser
sobreposto ao que já é infinito pelas obras e orações de Maria e dos santos? E
que juros seriam acrescentados ao tesouro pela remissão total ou parcial do
pecado obtida ou comprada pelos fiéis vivos? No âmago dessas indagações
reside a crítica da teologia evangélica à interconexão Cristo-Igreja, para a qual a
Igreja Católica é a extensão da encarnação de Cristo, tornando necessária a
mediação do perdão pela igreja, além de outros bens espirituais imprescindíveis.
A teologia evangélica se recusa a aceitar a doutrina e prática das indulgências.
Em suma, o sacramento da penitência e reconciliação, que proporciona o
perdão dos pecados mortais, mas não remove a mácula dos pecados perdoados,
tampouco a dos pecados veniais, não é considerado um sacramento pela teologia
evangélica. Embora ela saúde aspectos como a afirmação de que Deus somente
perdoa pecados, o chamado aos cristãos para que confessem seus pecados, a
insistência de que a genuína conversão leva a resultados concretos, e alguns
outros pontos, esse sacramento apresenta muitas áreas de discordância
significativa com a teologia evangélica.
com ele se unge o doente próximo da morte (esse era o uso praticamente
exclusivo desse sacramento antes do Concílio Vaticano II) e ainda sacramento
dos que partem (sacramentum exeuntium).
A base bíblica desse sacramento começa com a experiência comum da
enfermidade e do sofrimento humanos, que podem levar ao desespero e até
mesmo à revolta contra Deus, ou pode resultar em amadurecimento e até na
busca por Deus. No Antigo Testamento, a doença se acha intimamente associada
ao pecado e ao mal, juntamente com a esperança de que Deus cura toda
enfermidade, se não durante a vida terrena da pessoa, certamente em um tempo
futuro. Quando Jesus anunciou a inauguração desse tempo em sua mensagem de
que o reino de Deus estava próximo (Mc 1.15), ele juntou à sua proclamação a
compaixão pelos enfermos e curas de vários tipos (Mc 1.21—2.12). Com
frequência, ele pedia aos doentes que cressem (Mc 5.34,36; 9.23), tendo
recorrido a sinais (e.g., saliva, Mc 7.32-37; barro e abluções, Jo 9.6,7), bem
como imposição de mãos (Mc 8.22-25). Em outras ocasiões os doentes tentavam
tocá-lo, “porque dele saía poder que curava a todos” (Lc 6.19; cf. Mc 1.41; 3.10;
6.56). O Evangelho de Mateus apresenta a cura de um enfermo por Jesus como
cumprimento da profecia de Isaías: “Ele tomou sobre si as nossas enfermidades e
carregou as nossas doenças” (Mt 8.17; Is 53.4). No entanto, Jesus não curou a
todos, uma vez que suas curas eram sinais da chegada do reino e apontavam para
além de si mesmas, em direção a “uma cura mais radical: a vitória sobre o
pecado e a morte”. Com sua morte na cruz, “Cristo tomou sobre si todo o fardo
62
do mal e tirou o ‘pecado do mundo’ [Jo 1.29; cf. Is 53.4-6], do qual a doença é
apenas uma consequência”. O sacramento da unção é um meio pelo qual Jesus
63
A graça específica concedida por esse sacramento produz vários efeitos: como
dom especial do Espírito Santo, o efeito consiste na renovação da confiança em
Deus que fortalece a decisão do fiel de não cair nas tentações de Satanás de
desânimo e angústia ao se aproximarem da morte. Esse revestimento do Espírito
opera na alma e a cura e, se for da vontade de Deus, cura também o corpo. Além
disso, o enfermo experimenta a união com a paixão de Cristo: “Ele é, de certo
modo, consagrado para produzir frutos pela configuração com a paixão
redentora do Salvador [...]. O sofrimento [...] recebe um sentido novo:
transforma-se em participação na obra salvífica de Jesus”. Além disso, quem
68
Avaliação evangélica
A teologia evangélica concorda com boa parte do que afirma a teologia católica
sobre a cura. Há pontos específicos de acordo como a conexão entre o pecado e a
doença; a compaixão que Jesus manifestou pelos enfermos; a cura de alguns,
mas não de todos, os aflitos; seu ministério de restauração física como sinal do
advento do reino de Deus (que aponta por si mesmo para uma intervenção mais
radical de conquista do pecado e da morte); a cura como parte indissociável da
comissão dada por Jesus a seus discípulos; bem como as instruções de Tiago
sobre a maneira pela qual a igreja deve participar do ministério da oração de cura
atualmente. Como essas últimas instruções não limitam esse ministério à oração
e à unção somente no caso de cristãos que estejam às portas da morte, a teologia
evangélica concorda com a mudança introduzida pelo Concílio Vaticano II,
abrindo esse ministério a todo aquele que esteja em perigo de morte, com a
saúde precária em razão de alguma enfermidade ou idade avançada, próximo de
fazer uma operação séria etc.
A unção dos enfermos não é um sacramento
O ponto central de discordância é a determinação da teologia católica de que
esse ministério de cura é um sacramento. Para a teologia evangélica, o rito
atende efetivamente a um requisito necessário a um sacramento ou ordenança: a
unção com óleo é seu sinal tangível. Falta-lhe, porém, a instituição como tal por
Cristo. Certamente, ele curou os doentes e, por vezes, seu ato de restauração foi
acompanhado de um sinal físico — por exemplo, saliva, imposição de mãos,
barro e abluções. Contudo, a variedade desses símbolos tangíveis, os quais Jesus
por vezes empregou e, por vezes não, serve de advertência para que não se veja
esse ministério como se tivesse sido ordenado por Cristo com um sinal
específico. Sem dúvida, Jesus ordenou aos discípulos que curassem os enfermos,
mas, como esse ministério de cura era apenas um aspecto de um ministério mais
amplo que Cristo lhes deu (e que também incluía exorcismos e pregação do
evangelho), não se deve isolá-lo desses outros aspectos e, em seguida, elevá-lo à
condição de sacramento. A teologia católica também aponta a expressão “em
nome do Senhor” como parte da instrução de Tiago para esse rito (Tg 5.14) e a
toma como respaldo para a ordem de Cristo de que seja ministrado como
sacramento. A expressão, porém, não indica a origem em Jesus desse ministério,
e sim a autoridade divina com a qual é executado. Um exemplo que serve de
apoio à natureza revestida de autoridade do nome de Jesus é o caso do homem
coxo de nascença, a quem Pedro e João curaram “em nome de Jesus Cristo de
Nazaré” (At 3.1-16, esp. v. 6,16). Quando, mais tarde, ao ser indagado pelo
Sinédrio: “Com que poder ou em nome de quem fizestes isso?”, Pedro explicou:
“se hoje somos questionados acerca do benefício feito a um doente, e pelo modo
em que foi curado, seja do conhecimento de todos vós e de todo o povo de Israel
que, em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, aquele a quem crucificastes e a quem
Deus ressuscitou dentre os mortos, sim, por meio desse nome, este homem está
aqui com boa saúde diante de vós” (4.7-10). Consequentemente, no momento
72
em que os presbíteros da igreja oram por um doente e o ungem com óleo “em
nome do Senhor”, eles exercitam seu ministério debaixo da autoridade soberana
de Jesus Cristo, sem que essa expressão indique que ele ordenou que tal
ministério seja um sacramento para a igreja.
Outras discordâncias
Outros pontos de discordância aparecem na ministração ideal desse sacramento
pela teologia católica em conjunto com a penitência (que o precede) e com a
eucaristia (que a segue). Tendo já tratado do sacramento da eucaristia ministrado
como viático e do sacramento da penitência como poder para os pecados
mortais, basta aqui repetir que uma infusão final de graça por meio desses
sacramentos não é necessária para quem está deixando esta vida e entrando na
salvação da vida por vir. Além disso, a teologia evangélica questiona o
argumento da teologia católica segundo o qual, pela comunicação da graça nesse
sacramento de unção dos enfermos, o Espírito Santo cura a alma de quem o
recebe e, se for da vontade de Deus, cura também seu corpo. Em lugar nenhum a
Escritura indica que a cura interior é o resultado pretendido da oração pela cura
física; pelo contrário, a ênfase da Bíblia — no ministério de cura de Jesus, ao
comissionar os discípulos para que participem da cura, e nas instruções de Tiago
acerca desse ministério — é sempre na cura física. Em resposta a isso, a teologia
católica talvez aponte para a promessa que o acompanha: “e, se houver cometido
pecados, será perdoado” (Tg 5.15); dessa expressão, a teologia católica conclui
que a cura da alma é consequência do sacramento. Contudo, esse efeito a mais
está associado não à unção com óleo, mas à confissão desses pecados: “Portanto,
confessai vossos pecados uns aos outros e orai uns pelos outros para serdes
curados” (v. 16).
Além disso, a proposta da teologia católica de que o sofrimento do fiel o une
mais intimamente à paixão de Jesus Cristo, de modo que seu sofrimento seja
uma participação em sua obra salvadora, está longe do que diz a Escritura. Os
sofrimentos de Jesus são redentores, e não os do fiel. O fato de Cristo prometer
sofrimentos a seus seguidores (Fp 1.29), de lhes deixar um exemplo de como
sofrer piamente (1Pe 2.21-25), de convocá-los para que os suportem (1Pe 1.6-9)
e de proporcionar todos os recursos necessários para que resistam em meio às
provações e ao sofrimento (2Co 12.10) encontra sem dúvida respaldo na
Escritura. Mas não se apresentam os sofrimentos do fiel como algo que participa
com Cristo de sua obra redentora, tampouco os que recebem esse sacramento
somam os seus sofrimentos ao sofrimento da igreja. Essa visão se baseia na
interconexão Cristo-Igreja: a Igreja Católica é a continuação da encarnação do
Cristo total, é tanto a cabeça quanto seu corpo unidos e presentes na igreja.
Portanto, os sofrimentos do corpo (os fiéis) se unem aos da cabeça (Jesus
Cristo). Já demonstramos que tal axioma é fundamentalmente equivocado.
Mais concretamente, essa posição parece se basear em uma interpretação
equivocada da afirmação de Paulo de que “Agora me alegro nos meus
sofrimentos por vós e completo no meu corpo o que resta do sofrimento de
Cristo, por amor do seu corpo, que é a igreja, da qual me tornei ministro
segundo o chamado de Deus, que me foi concedido para convosco, a fim de
tornar plenamente conhecida a Palavra de Deus” (Cl 1.24,25, grifo do autor). O
apóstolo, por meio do seu sofrimento, não está compensando nenhuma
deficiência do sacrifício de Jesus Cristo. Pelo contrário, ele preenche o que falta
à igreja de Colossos tornando-se seu servo, “para que a Palavra de Deus seja
plenamente conhecida” concretamente por meio do seu ministério pioneiro aos
gentios, pelo que ele combate vigorosamente por meio do poder de Deus (v. 26-
29). As narrativas das viagens missionárias do apóstolo no Novo Testamento
destacam a perseguição feroz que ele enfrentou ao apresentar o evangelho de
Cristo em regiões até então não evangelizadas. Consequentemente, com
referência aos colossenses, Paulo explica:
que está indo à frente da igreja em território desconhecido para tornar conhecido pela primeira vez o
evangelho. Ao fazê-lo, ele suporta o antagonismo do mundo em relação a Deus e à sua Palavra.
Como servo da igreja, ele se adianta a ela para receber os primeiros golpes da espada que virá atingi-
la. Paulo pode dizer que esse sofrimento semelhante ao de Cristo está em “falta” no que diz respeito à
igreja porque é obra inevitável da experiência da igreja baseada no evangelho. Como a Palavra
seguirá inevitavelmente adiante, e o mundo odeia a Palavra, a perseguição implacável também é
inevitável. Paulo se adianta espontaneamente e com alegria à igreja para sofrer uma perseguição mais
pública e extrema.73
conclui sua discussão dos sete sacramentos com dois sacramentos ao serviço da
comunhão: ordem e matrimônio. Esses ritos são “ordenados para a salvação de
2
que consiste em um “pôr à parte e uma investidura feita pelo próprio Cristo para
a sua igreja”. O sinal dessa ordenação ou consagração é a imposição de mãos
6
por um bispo.
Em relação à base bíblica para esse sacramento, a antiga aliança do sacerdócio
levítico, que se ocupava do serviço litúrgico para o povo de Israel, trata-se de
uma prefiguração do sacerdócio da nova aliança da igreja. Consagrados por um
rito específico, esses levitas eram “[designados] dentre os homens, em favor dos
quais [são] constituído[s] nas coisas relativas a Deus, para que apresente[m]
ofertas e sacrifícios pelos pecados” (Hb 5.1; cf. Êx 29.1-30; Lv 8). Outra
prefiguração do ministério ordenado é o estabelecimento dos setenta anciãos
(Nm 11.24,25). A Tradição da igreja também “considera Melquisedeque,
‘sacerdote do Deus Altíssimo’, uma prefiguração do sacerdócio de Cristo, o
único ‘sumo sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque’; ‘santo, inocente,
sem mancha’, que ‘com uma única oblação, tornou perfeitos para sempre os que
foram santificados’, isto é, pelo único sacrifício da sua cruz”. Conforme
7
sem suas celebrações dos sacramentos, os ministros deixam “vestígios, que nem
sempre são sinais de fidelidade ao evangelho e podem, por conseguinte,
prejudicar a fecundidade apostólica da igreja”. Consequentemente, o Catechism
13
ressalta o fato de que o “poder sagrado” conferido aos sacerdotes pela ordem
torna seu sacerdócio ministerial, isto é, a serviço da igreja. Além disso, esse
sacerdócio ministerial é duplamente direcional: representa Cristo para a igreja e
“age em nome da igreja toda ao apresentar a Deus a oração da igreja e,
principalmente, ao oferecer o sacrifício da eucaristia”. 14
em que “exercitam sem grau supremo seu ofício sagrado” e do qual “todo o seu
ministério extrai sua força”. Os padres, juntamente com seu bispo, constituem
22
consagração de um bispo são “a unção com o crisma [...] a entrega do livro dos
Evangelhos, do anel, da mitra [chapéu] e do báculo [cajado]”. O óleo “é um sinal
de unção especial do Espírito Santo que torna frutífero seu ministério”, e os dons
são sinais da “missão apostólica [do bispo] de proclamar a Palavra de Deus, sua
fidelidade à igreja, a noiva de Cristo, e seu ofício de pastor do rebanho do
Senhor”. Para a ordenação de um padre, os ritos são a unção com óleo e a
entrega da patena (bandeja sobre a qual serão depositadas as hóstias) e do cálice
(copo para o vinho e a água eucarísticos); esses sinais são a “oferenda do povo
santo” que o sacerdote “é chamado a apresentar a Deus”. Para a ordenação de
um diácono, a unção com óleo é acompanhada por um presente, o livro dos
Evangelhos, um sinal da missão do diácono de “proclamar o evangelho de
Cristo”.28
O próprio Cristo é quem confere os três graus desse sacramento por meio dos
bispos; como sucessores dos apóstolos, “transmitem ‘o dom espiritual’, a
‘semente apostólica’”. O ordinando deverá ser do sexo masculino, batizado,
29
será homem para manter o costume de Jesus escolher homens para ser seus
apóstolos, os quais, por sua vez, escolhem outros homens. “A igreja reconhece-
30
se vinculada por essa escolha feita pelo Senhor em pessoa. É por isso que a
ordenação das mulheres não é possível.” Portanto, no caso dos bispos e dos
31
Avaliação evangélica
Conforme dissemos na discussão e avaliação da teologia católica da doutrina da
igreja (cap. 4), um dos principais pontos de divergência entre a teologia católica
e a teologia evangélica é essa doutrina específica. Essa profunda divisão vem à
tona novamente no sacramento da ordem. Para uma crítica abrangente desse
sacramento, a teologia evangélica volta, uma vez mais, aos dois axiomas sobre
os quais está construído o sistema teológico do catolicismo e mostra como esses
falsos pilares constituem o fundamento da ordem. Em primeiro lugar, a
interdependência natureza-graça contribui de modo especial com o sacramento:
a natureza humana (nesse caso, os homens consagrados pela ordem) tem a
capacidade de mediar a graça. Consequentemente, os padres ordenados agem na
pessoa de Cristo Cabeça, conforme fica particularmente claro quando ministram
os sacramentos que comunicam graça sobre os fiéis. Imediatamente, observa-se
o segundo axioma em ação: a interconexão Cristo-Igreja significa que a Igreja
Católica é a continuação da encarnação de Cristo, que está presente em seu
corpo na igreja (nesse caso, em seus ministros consagrados, os padres) e age por
meio deles para dispensar a graça. A interdependência natureza-graça também
aparece na base de apoio da estrutura hierárquica da igreja: como há uma
hierarquia entre a natureza (na extremidade inferior) e a graça (na extremidade
superior), uma hierarquia semelhante deve estar presente na igreja. Portanto, a
diferença essencial entre os leigos (na extremidade inferior) e o clero (na
extremidade superior) encontra justificativa nesse axioma. De igual modo, a
estrutura dos três graus da ordem: o grau de serviço, ou o diaconato (na
extremidade inferior), o segundo grau de participação sacerdotal, ou presbiterato
(no meio) e o primeiro grau de participação sacerdotal, ou episcopado (na
extremidade superior). Por fim, esses três graus são consagrados pela ordem à
medida que esse sacramento “confere um dom do Espírito Santo que permite o
exercício de um ‘poder sagrado’ (sacra potestas) que só pode vir do próprio
Cristo, pela sua igreja”. De modo transparente, a interconexão Cristo-Igreja
36
pelo próprio Jesus (Mc 3.13-18), exigia que seus membros tivessem estado com
Jesus desde o início do seu ministério e que tivessem testemunhado uma de suas
aparições posteriores à ressurreição (At 1.15-26); eles constituíam o
38
igrejas mais antigas eram governadas por uma pluralidade de líderes, sem que
houvesse um ofício separado para o bispo. Além disso, Jerônimo subscrevia as
razões pragmáticas para a adoção, pela igreja primitiva, do triplo ofício de
liderança em que um bispo era posto acima de outros presbíteros, um 48
desdobramento que ele não aceitava de bom grado. Até mesmo o episcopalismo
49
Acabar com a diferença essencial entre clero e leigos não significa, para Lutero,
pôr fim a todas as diferenças entre eles, uma vez que ele continua a afirmar o
ofício de ministro encarregado de liderar a igreja. Ampliando o que ele disse
acima, Lutero afirmava que os homens ordenados “estão incumbidos da
administração da Palavra de Deus e dos sacramentos, que é sua obra e ofício”, 53
tendo incluído o ofício de liderança da igreja como uma das sete marcas da
igreja.54
De acordo com a teologia católica, essa diferença essencial entre leigos e clero
é conferida ao segundo pelo sacramento da ordem, que confere uma marca
espiritual indelével sobre o clero. Por causa disso, mesmo que um padre seja
destituído do seu ofício ministerial, isso não significa que ele tenha voltado à
condição de leigo. A teologia evangélica procura em vão alguma base bíblica
para a existência de seres humanos cuja natureza seja de leigo do sexo
masculino, seres humanos cuja natureza seja de leigo do sexo feminino, e seres
humanos cuja natureza seja sacerdotal masculina. Pelo contrário, o apóstolo
Paulo lista as qualificações dos presbíteros/bispos (1Tm 3.1-7; Tt 1.5-9), e a
única exigência para os homens consagrados a esse ofício que difere dos traços
previstos e promovidos para todos os cristãos é que “saibam ensinar” (1Tm 3.2),
ou, de forma mais ampla, “que se mantenha[m] firme[s] na palavra fiel,
conforme a doutrina, para que seja[m] capaz[es] tanto de exortar na sã doutrina
quanto de convencer os seus opositores” (Tt 1.9). Vale observar que essa
ressalva qualificativa não é questão de caráter, mas de capacidade. Voltando ao 55
que disse Lutero, nenhuma diferença de natureza distingue o leigo do clero; pelo
contrário, a distinção é de ofício, cabendo ao último as responsabilidades de
pregar/ensinar a sã doutrina, liderando e pastoreando a igreja etc.
Eficácia ministerial
De acordo com a teologia evangélica, à medida que esses
presbíteros/pastores/bispos participam de várias responsabilidades, devem
manter e promover as qualidades que, presentes em sua vida desde o início de
sua candidatura ao ofício, tornaram-nos adequados para entrar nele. Contudo, a
razão pela qual tal desenvolvimento pessoal (requisito para todos os cristãos) é
necessário por parte desses líderes não é que sua eficácia no ensino, na liderança,
no pastoreio, na ministração dos sacramentos e outras responsabilidades dependa
de sua santidade pessoal. Pelo contrário, a fertilidade desse ministério depende
da Palavra de Deus que eles proclamam, sendo o poder divino (Rm 1.16,17)
aquele que chama os seres humanos pecadores à salvação (2Ts 2.13,14), causa a
regeneração (1Pe 1.22-25), expõe a desobediência (Hb 4.12), ensina a sã
doutrina, repreende, corrige e prepara na justiça (2Tm 3.16,17). Além disso, a
validade da sua ministração do batismo e da ceia do Senhor depende igualmente
de que essas ordenanças sejam palavras do evangelho postas em prática, uma
vez que o batismo reflete de forma vívida a identificação com a morte, o
sepultamento e a ressurreição de Jesus Cristo (Rm 6.3-5), e a ceia do Senhor
retrata de forma concreta seu corpo partido e o sangue derramado (Mt 26.26-29),
ao mesmo tempo que torna seus celebrantes partícipes do seu sague e corpo
(1Co 10.16).
Conforme já explicamos, essa ênfase no evangelho por parte da teologia
evangélica difere da doutrina ex opere operato da teologia católica, isto é, os
sacramentos são válidos em decorrência de serem ministrados por um padre. Por
causa da ordem, a marca espiritual indelével da consagração garante que a
situação pessoal do padre (e. g., estando ele em pecado) não pode obstruir os
efeitos da graça que é conferida pelos sacramentos. A teologia evangélica
concorda que a santidade ou a pecaminosidade do pastor não pode impedir a
eficácia do sacramento, mas discorda que isso se dá porque os sacramentos
sejam válidos ex opere operato. Ela insiste, pelo contrário, que o batismo e a
ceia do Senhor são eficazes porque são ordenanças do evangelho que
representam; são sacramentos da Palavra de Deus que lhes comunicam
sustentação e poder.
Celebração e recipientes do sacramento
No tocante à ministração da ordem, a teologia evangélica não se opõe, em
princípio, à celebração católica do sacramento, inclusive à imposição de mãos,
oferecimento de dons que representam a missão do ordinando e a fidelidade a
Cristo etc. A maior parte das igrejas evangélicas tem algum tipo de serviço de
ordenação a que recorre para a confirmação da vocação do candidato, do seu
caráter, de suas competências teológicas e pastorais etc., bem como para um ato
de reconhecimento público de sua instalação como pastor/ancião. Para as
variedades de teologia evangélica não episcopais, rejeita-se a exigência de que
os bispos confiram o sacramento. Até mesmo as versões que seguem
efetivamente essa política negam que a consagração episcopal transmita a
linhagem apostólica da sucessão apostólica católica.
Em relação a quem pode ser ordenado, a teologia católica estipula que o
indivíduo deve ser do sexo masculino e batizado; ela proíbe a ordem para
mulheres. Isso se deve ao fato de que Jesus escolheu apenas homens para
discípulos. Embora ao longo da história a teologia evangélica tenha acolhido na
totalidade essa restrição, eventos recentes levaram a uma divisão em suas fileiras
no tocante ao papel da mulher no ministério. Os que delimitam o ofício de
pastor/ancião a homens idôneos (esse posicionamento é com frequência
chamado de “complementarismo”) o fazem com base na proibição de Paulo de
que a mulher ensine e exerça autoridade sobre o homem (1Tm 2.11-15), também
com base no paralelismo bíblico entre a liderança masculina no lar e liderança
masculina na igreja, no paralelismo bíblico entre autoridade e submissão na
Trindade e autoridade e submissão na igreja (1Co 11.3-16), além de outros
argumentos. Os que permitem que as mulheres tenham ofícios de pastora/anciã
(esse posicionamento é chamado com frequência de “igualitarismo”) apelam à
base bíblica tomada da afirmação de Paulo sobre a igualdade entre homens e
mulheres (Gl 3.28), às aparições do Cristo ressurreto às mulheres (Mt 28.1-10),
ao dom do Espírito e seu poder conferido às mulheres (Jl 2.28-32; profecia
cumprida em At 2.17), aos diversos papéis importantes que as mulheres
desempenharam na igreja primitiva (e.g., Evódia e Síntique, Fp 4.2,3; Febe, Rm
16.1,2), além de outros argumentos. Portanto, alguns proponentes da teologia
56
evangélica estão de acordo com a limitação imposta pela teologia católica que
restringe a ordenação a homens idôneos, ao passo que outros discordam.
Apesar dessa discordância interna, a teologia evangélica se mantém coesa no
tocante à objeção que faz à limitação desse sacramento, por parte da teologia
católica, a “homens que vivem uma vida celibatária e que pretendem continuar
celibatários”, recorrendo a Mateus 19.12. A exigência do celibato sacerdotal
57
uma exigência: casar-se — seja como for, essa instrução paulina vai ao encontro
dos homens casados nesse ofício. Essa interpretação é reforçada por uma
passagem paralela em que o apóstolo descreve um ancião como alguém que é
“marido de uma só mulher e que tenha filhos crentes que não sejam acusados de
libertinagem, nem desobedientes” (Tt 1.6; cf. 1Tm 3.4,5). Uma vez que essas
passagens apresentam o ensino apostólico sobre o ofício episcopal ou sacerdotal,
não se pode exigir o celibato de bispos e padres consagrados a essa posição. A
teologia católica chama a atenção para o peso dessas passagens bíblicas,
assinalando que não havia a exigência do celibato clerical na igreja primitiva. De
fato, ela admite que o celibato “que a princípio foi recomendado aos padres, foi
posteriormente, na igreja latina [romana] imposto por lei a todos os que seriam
promovidos à ordem”. A teologia evangélica rejeita tal decisão porque vai além
59
Igreja Católica por meio do seu sacramento da ordem conferido somente aos
ministros celibatários.
Em suma, o sacramento da ordem, pelo qual a Igreja Católica ordena certos
homens ao ministério, embora lembre de algum modo a ordenação encontrada
em muitas variedades de teologia evangélica, está, na verdade, muito distante do
que diz sua congênere evangélica. A ordem se baseia em ambos os falsos
axiomas do sistema católico. Além disso, é suscetível de inúmeras críticas
específicas pela teologia evangélica.
foram criados um para o outro. ‘Não é bom que o homem esteja só’ [Gn 2.18]”. 67
A mulher, que foi tirada do corpo do homem — “‘carne da sua carne’ [Gn 1.23],
isto é, sua congênere, sua igual, a que dele está mais próxima entre todas as
coisas” — “lhe é dada por Deus como ‘auxiliadora’; ela, portanto, representa
Deus, de onde vem nosso auxílio”. Os dois se tornam uma só carne (Gn 2.24),
68
sua mãe” ), Jesus transformou água em vinho nas bodas de Caná (Jo 2.1-11). A
74
Jesus veio “restaurar a ordem original arruinada pelo pecado”, dando “força e
graça para a vida conjugal na nova dimensão do reino de Deus [...]. Essa graça
do matrimônio cristão é fruto da cruz de Cristo, fonte de toda a vida cristã”,
77
são conferidos por Cristo por meio do sacramento do matrimônio, assim também
são concedidos em virgindade. Portanto, a igreja associa e aprecia enormemente
o casamento e a virgindade.
A celebração do sacramento do matrimônio ocorre durante a missa — evento
apropriado em razão de sua celebração da nova aliança, “em que Cristo se uniu
para sempre à igreja, sua noiva amada, por quem se deu a si mesmo. Por isso, é
conveniente que os esposos selem o seu consentimento à doação recíproca pela
oferenda da própria vida, unindo-a à oblação de Cristo pela sua igreja, tornada
presente no sacrifício eucarístico, e recebendo a eucaristia, para que,
comungando o mesmo corpo e o mesmo sangue de Cristo, ‘formem um só
corpo’ em Cristo”. O sacramento da penitência é uma preparação para o
80
caso, o casamento a ser selado por meio de aliança se dará entre um católico e
um não católico batizado (e.g., um cristão protestante). Essa situação “não
constitui obstáculo intransponível para o casamento”, mas certamente comporta
sérios desafios. Os casamentos mistos requerem a “permissão expressa da
autoridade eclesial”. No segundo caso, o casamento a ser selado por meio de
aliança se dará entre um católico e uma pessoa não batizada (e.g., um hindu).
Essa situação exige uma apreciação ainda mais cuidadosa, uma vez que as
dificuldades assinaladas acima ganham facilmente um peso maior aqui. Os
casamentos com disparidade de culto requerem “dispensação expressa de
impedimento” pela autoridade eclesial. Além disso, ambos os cônjuges devem
estar abertos aos “fins e propriedades essenciais do casamento”, e o cônjuge
católico é obrigado a assegurar que os filhos do casamento serão batizados na
Igreja Católica e educados na fé católica. 85
Além disso, esse amor conjugal tem algumas exigências. Primeiro, “exige
indissolubilidade e fidelidade em entrega mútua definitiva”. É evidente que
87
Avaliação evangélica
A teologia evangélica aplaude muitas áreas da doutrina do matrimônio da
teologia católica, sobretudo sua defesa dessa instituição e seu apoio irrestrito em
favor de uma cultura de vida contra uma cultura intrusa de morte — tipificada
pelo aborto, infanticídio, suicídio assistido, geronticídio etc. — especialmente no
mundo ocidental. São as seguintes as áreas de concordância: o casamento é uma
aliança que requer duas pessoas, um homem e uma mulher, que fazem votos
diante de Deus e de outras pessoas em busca de um compromisso exclusivo; por
desígnio divino, esse estado conjugal tem significado, propósito, origem e leis
que o governam. Dois desses requisitos são a indissolubilidade e a fidelidade,
excluindo desse modo a imoralidade, a poligamia e o divórcio. Embora a
separação, em face de circunstâncias difíceis, possa ser permitida, ela é sempre
posta em prática tendo por objetivo a reconciliação. As vantagens do casamento
são inúmeras, sendo a principal delas o bem do marido e da mulher, que não
foram feitos para ficarem sós, além da procriação e da educação — seja ela de
ordem espiritual, moral, social, civil ou vocacional — dos filhos assim gerados.
Entre os benefícios pessoais contam-se o auxílio para superar atitudes
pecaminosas e práticas como a do egoísmo e preocupação exclusiva com si
mesmo; isto é, o casamento é um meio de santificação para o marido e para a
esposa. Embora o Catechism não mencione explicitamente outros benefícios
(que são especialmente o bom fruto da relação sexual expressa no casamento), a
teologia evangélica acrescentaria a unidade do casal (ele se torna “uma carne”
mediante a relação sexual; Gn 2.24), consolo em meio à tragédia (e.g., 2Sm
12.24) e proteção contra a imoralidade sexual (1Co 7.5).
Há ainda outros pontos de concordância na excelente discussão do respaldo
bíblico ao casamento, a começar pela referência aos capítulos iniciais do
Gênesis. Depois de uma deliberação divina (“façamos o homem à nossa
imagem”; Gn 1.26), “Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus os
criou; homem e mulher os criou” (v. 27). A duplicidade de gênero na sociedade
humana reflete a pluralidade de pessoas na sociedade divina da Trindade. Além
disso, assim como o Pai, o Filho e o Espírito Santo se amam uns aos outros,
homens e mulheres refletem essa realidade em seu amor mútuo com a mais
elevada, embora não exclusiva, expressão desse amor conjugal. A vontade divina
de que o ser humano não fosse assexuado permite ao homem e à mulher
igualmente realizar o assim chamado “mandato cultural” (v. 28), que consiste na
procriação (“frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra”) e vocação, ou
construção da civilização (“sujeitai-a; dominai”). A teologia católica sublinha
corretamente que o chamado ao casamento está gravado na natureza mesma dos
portadores da imagem de Deus, razão pela qual a imensa maioria das pessoas se
casa e muitas delas têm filhos.
Outra área de concordância diz respeito à ruptura do casamento como
consequência trágica do pecado. Essa desordem não é natural, não pela vontade
de Deus; ela é anormal, é resultado do pecado. A desobediência de Adão e Eva
resultou em sofrimento no momento do parto e em trabalho árduo. Muitos
proponentes da teologia evangélica acrescentariam que uma disrupção da relação
hierárquica divinamente planejada — em que o marido exerce autoridade gentil
e confirmadora e em que a esposa se submete alegremente e de livre vontade —
foi outro resultado desastroso de sua queda no pecado. Em alguns casos, o
impacto devastador dessa queda levou ao desastre conjugal. Quando, por
exemplo, ocorre o divórcio por motivos não bíblicos e há um novo casamento,
cria-se uma situação de adultério (Mc 10.11,12); a Igreja Católica,
consequentemente, barra os envolvidos do sacramento da eucaristia e os tira de
alguns ministérios eclesiais. Alguns proponentes da teologia evangélica
concordam com a aplicação da disciplina da igreja em casos de pecado desse
tipo. Como o pecado é insidioso, um marido cristão e uma esposa cristã
precisarão da graça de Deus para vencer seus pecados pessoais, o rompimento da
sua relação, os passos errados que deram na criação dos filhos e muito mais. De
fato, como o casamento em si mesmo tem tantas dificuldades internas, a teologia
católica e a teologia evangélica concordam que o ideal é que a união a ser
estabelecida o seja por dois cristãos (embora cada uma dessas teologias defina
essa realidade de forma diferente, conforme veremos).
Há aqui e ali nesse acordo generalizado pontos específicos de discordância.
Em primeiro lugar, o matrimônio não é sacramento para a teologia evangélica. A
razão principal para essa rejeição é que o casamento é um mandado da criação;
isto é, Deus ordenou o casamento àqueles que têm sua imagem desde o primeiro
momento da criação do ser humano (Gn 1.26-28; 2.18-25). Embora Jesus Cristo
tenha certamente ratificado o casamento e elucidado as bases para sua dissolução
pelo divórcio (Mt 19.3-9), tenha abençoado um casamento em especial com seu
primeiro milagre (Jo 2.1-11) e fortaleça o casamento por meio de sua obra
salvadora na vida de mulheres e homens cristãos, tais ações de Jesus não deram
origem a essa relação entre marido e mulher. O casamento não é exclusivamente
cristão; é, antes, uma instituição humana universal.
No que se refere à defesa do casamento apresentada pela teologia católica,
alguns adeptos da teologia evangélica propõem dois esclarecimentos. Primeiro,
quando se apela à avaliação divina da condição de Adão — “Não é bom que o
homem esteja só” (Gn 2.18) —, é preciso deixar claro que esse pronunciamento
se aplica a pessoas que Deus planejou que se casassem, e não aos solteiros.
Neste último caso, Deus os abençoou em seu estado de solteiros, de gente só que
vive sem um cônjuge. Portanto, esse estado de solteiro para essas pessoas é bom.
Segundo, a implicação que a teologia católica estabelece da formação de Eva, a
“auxiliadora” de Adão — “portanto ela representa Deus, a quem recorremos em
busca de ajuda” —, precisa de ressalvas. Sem dúvida, o termo hebraico ‘ezer é
usado para descrever Deus como auxiliador, mas serve também para descrever a
ação humana, a assistência dos anjos, suporte militar e até a intervenção de
falsos deuses. Consequentemente, é preciso cuidado na hora de transferir as
conotações do divino para usos particulares da palavra. De fato, como foi Deus
quem formou Adão do pó da terra, e como foi Deus que formou Eva do corpo de
Adão, é difícil ver como ela pode representar Deus nesse contexto. Na verdade, é
o contexto que nos dá uma explicação mais plausível de seu papel de auxiliadora
(Gn 1.28): Eva ajudaria Adão à medida que os dois juntos desempenhassem o
mandato cultural planejado por Deus de serem férteis (procriação) e exercerem
domínio (vocação).
A teologia evangélica também vê com suspeita o apelo de sua congênere
católica ao Filho de Deus encarnado unindo “a si mesmo, de certa forma, toda a
humanidade salva por ele, preparando desse modo a ‘festa das bodas do
Cordeiro’ [Ap 19.7,9]”. Seria essa uma nova forma de inclusivismo —
97
subsequente pode declarar desfeito o que já foi feito e como tal assim declarado.
A explicação da teologia católica — anulação não significa que o casamento
jamais ocorreu, e sim que o sacramento do matrimônio jamais se realizou —
significa que a anulação cabe à Igreja Católica, e que o sacramento do
matrimônio só pode ser realizado por seu clero. O interesse pelas anulações se dá
principalmente em decorrência dos casamentos católicos que acabam em
divórcio. Como a igreja não permite o divórcio, os católicos divorciados que
queiram se casar na igreja devem primeiramente conseguir a anulação do
casamento; caso contrário, não terão permissão para se casar. Muitos adeptos da
teologia evangélica discordam da proibição de novo casamento para divorciados
defendida pela teologia católica. O Novo Testamento apresenta dois motivos
para o divórcio: Jesus o permite em caso de adultério (Mt 19.9), e Paulo o
permite quando, num casamento misto, o cônjuge descrente procura o divórcio
(1Co 7.12-16). Consequentemente, a teologia evangélica e a teologia católica
discordam no tocante à anulação do casamento e ao divórcio.
A afirmação acima de que a teologia católica e a teologia evangélica
concordam que o casamento deve ser entre dois cristãos requer um pouco mais
de esclarecimento, uma vez que a afirmação geral mascara áreas específicas de
discordância. A teologia evangélica, de modo geral, insiste no casamento entre
dois cristãos definidos como um homem e uma mulher que acolheram o
evangelho, se arrependeram de seus pecados e confiaram em Cristo para
salvação. Uma vez que o evangelicalismo compreende um vasto espectro de
cristãos, um evangélico presbiteriano e um evangélico batista, ou um evangélico
episcopal e um evangélico metodista poderiam prontamente se casar. Embora
reconheçam que pode haver algumas dificuldades adiante em razão de diferenças
denominacionais, esses evangélicos de espectros variados poderiam se casar. A
teologia católica diz que o ideal é que dois católicos se casem entre si, mas ela
também dá espaço para duas outras categorias de casamento. Primeiro, os
casamentos mistos são aqueles que compreendem um católico e um não católico
batizado (e.g., um cristão protestante); segundo, os casamentos com disparidade
de culto são os que envolvem um católico e uma pessoa não batizada (e.g., um
hindu). Essas duas categorias requerem alguma ação eclesial especial para que
seu casamento seja permitido, e o cônjuge católico tem obrigações no que diz
respeito ao batismo e à educação dos filhos na fé católica. Nos casamentos
mistos, em que tanto o católico quanto o não católico são cristãos genuínos no
sentido definido acima, os proponentes da teologia evangélica discordariam da
conveniência do casamento: alguns não o permitiriam por duvidarem de que a fé
da parte católica seja genuína; outros não o permitiriam porque as dificuldades
seriam intransponíveis, especialmente as obrigações do cônjuge católico no
tocante aos filhos; outros permitiriam, mas advertiriam fortemente sobre os
desafios que inevitavelmente haveriam de surgir. No caso de um casamento com
disparidade de culto, como tal casamento supõe um cristão e um não cristão, e a
Escritura claramente requer o casamento entre dois cristãos (1Co 7.39), os
defensores da teologia evangélica, de modo geral, não o permitiriam.
A concordância em relação a alguns requisitos para o casamento —
especificamente sua indissolubilidade e fidelidade — já foi tratada aqui. Outro
requisito da teologia católica, como a abertura à fertilidade, é um ponto de
discordância. Essa diferença tem uma aplicação prática no que se refere à
proibição por parte da teologia católica do uso de contraceptivos e a permissão
de uso deles pela teologia evangélica (contanto que o método contraceptivo não
induza o aborto). No âmago dessa diferença se encontra a doutrina evangélica da
autoridade e suficiência da Escritura, e o uso pela teologia católica da lei natural,
bem como os ensinos oficiais da igreja que proporcionam uma maior orientação
sobre o assunto e adesão mais significativa a ele. Para a teologia evangélica, a
instrução suficiente e plena de autoridade sobre a procriação é expressa pelo
mandado “frutificai-vos e multiplicai-vos e enchei a terra” (Gn 1.28). Essa
ordem não diz quantos filhos o casal deve ter, tampouco diz que ele deve estar
aberto a procriar em todas as relações sexuais que tiver. Além disso, a Escritura
não proíbe o uso de meios contraceptivos (não abortivos). A teologia evangélica,
embora não rejeite de imediato a lei natural, faz uso cauteloso dela e questiona
se um de seus princípios seria a abertura à fertilidade. É importante frisar
também que a teologia evangélica rejeita quaisquer princípios fora da Escritura
como suposta fonte de autoridade e adesão. Isso inclui a instrução moral
adicional proporcionada pela Igreja Católica. 100
TERCEIRA PARTE:
A VIDA EM CRISTO
11
A VIDA EM CRISTO
(terceira parte, seção 1, capítulos 1—2)
A vocação humana: a vida no Espírito; a comunidade humana
satisfazer esse desejo divinamente implantado nele. Por fim, “as Bem-
Aventuranças revelam a meta da existência humana, o fim último dos atos
humanos: Deus nos chama à sua própria felicidade”. 10
razão e na vontade, de agir ou não agir, de fazer isto ou aquilo, praticando assim,
por si mesmo, ações deliberadas”. Quando dirigida a Deus, essa liberdade
14
morais, seja qual for a intenção — o segundo elemento — com a qual são
empreendidas. Para fins de ilustração, outro exemplo (que é negativo) consiste
em exagerar as capacidades e realizações de um colega no trabalho.
O segundo elemento, o fim em vista ou intenção, consiste no agente moral
humano que age, e não no ato propriamente dito. Esse elemento é o objetivo da
intenção, o propósito que se busca na ação. “A intenção é um movimento da
vontade em direção ao fim: diz respeito ao objetivo da atividade. Sua meta é o
bem que se antecipa à ação empreendida.” No primeiro exemplo, o objetivo ou
24
habilidades de um colega no trabalho (o ato) para que ele ganhe uma promoção
merecida (a intenção) não torna o ato bom, porque mentir é inerentemente mau.
Em relação ao terceiro elemento, as circunstâncias da ação trazem consigo
suas consequências e “contribuem para agravar ou atenuar a bondade ou malícia
moral dos atos humanos [...]. Podem também diminuir ou aumentar a
responsabilidade do agente”. Contudo, essas “circunstâncias não podem, por si
próprias, modificar a qualidade moral dos próprios atos”. No primeiro exemplo,
26
Paixões/sentimentos
apreensão pelo mal causa o ódio, a aversão e o receio do mal futuro; este
movimento termina na tristeza pelo mal presente ou na cólera que a ele se
opõe”. Consequentemente, as paixões “são más se o amor for mau, e boas se ele
31
for bom”. 32
Essa última afirmação significa que as paixões não são nem boas nem ruins
em si mesmas, mas recebem qualificação moral à medida que “dependem
efetivamente da razão e da vontade” e são por elas governadas. Quando a
33
Romanos 2.14-16.
De modo concreto, essa lei do coração, ou da consciência, foi inscrita por
Deus e é o julgamento da razão humana (não das paixões ou dos apetites
físicos). Uma consciência reta opera das seguintes formas: ela reconhece os
princípios morais; percebe sua aplicação em determinadas circunstâncias; julga
ações concretas, aprovando as que são boas e condenando as que são más;
promove a participação no bem e a necessidade de evitar o mal; e reconhece a
verdade a respeito do bem moral, de modo que ele se torna objeto de ações. A
interioridade é necessária para que a consciência funcione adequadamente; isto
é, o ser humano deve ser “suficientemente presente para si mesmo para ouvir e
seguir a voz de sua consciência”. A dignidade humana “implica e requer a
38
que o ser humano deve ser livre para agir de acordo com a consciência e não
forçado a agir contrariamente a ela.
Embora implantada por Deus, a consciência deve ser formada por um
processo educativo ao longo da vida. Desse modo, ela se torna reta e verdadeira,
formulando seus juízos de acordo com o bem desejado por Deus. Tal formação
da consciência é indispensável à luz das influências e tentações negativas que
induzem ao pecado e que procuram prejudicar o ser humano. A Palavra de Deus,
os dons do Espírito Santo, o conselho alheio e os ensinos oficiais da igreja são
imprescindíveis à formação da consciência. São três os princípios da consciência
que se aplicam o tempo todo: “Nunca é permitido fazer o mal para que daí
resulte um bem; a Regra de Ouro é: ‘Portanto, tudo o que quereis que os homens
vos façam, fazei também a eles’ (Mt 7.12); e a caridade passa sempre pelo
respeito ao próximo e à sua consciência [1Co 8.12; Rm 14.21]”. 41
(“razão reta em ação”), justiça (dar a Deus e a outros o que lhes é devido),
46
amor (Gl 5.6). A fé deve se fazer acompanhar da esperança e do amor, e deve ser
professada. De fato, “a fé sem obras é morta” (Tg 2.26), no sentido de que a “fé
não une plenamente o crente a Cristo e não o torna membro de seu corpo”. 50
amor é o novo mandamento que Jesus dá (Jo 13.34), e o amor entre seus
discípulos imita o amor de Jesus por eles (15.9,12). Como fruto do Espírito e
plenitude da lei divina (Rm 13.8), o amor obedece aos mandamentos divinos (Jo
15.9,10). Assim como Jesus demonstrou seu amor pelos pecadores morrendo por
eles, seus discípulos devem amar os pecadores (Rm 5.10; Mt 5.44). O amor é
descrito principalmente no hino de Paulo à caridade (1Co 13.1-7), que o situa no
topo das outras virtudes teologais. Consequentemente, o amor anima, inspira,
liga, articula e ordena a fé e a esperança; ele é “a forma das virtudes”, sua
origem e seu destino. 54
Além das virtudes humanas e das virtudes teologais, os dons do Espírito Santo
sustentam a vida moral do fiel. Esses sete dons — sabedoria, entendimento,
conselho, fortaleza, conhecimento, piedade e temor do Senhor — torna o fiel
submisso às animações do Espírito e “completam e levam à perfeição as virtudes
de quem os recebe”. 55
O pecado (seção 1, capítulo 1, artigo 8)
À medida que sua discussão sobre a dignidade da pessoa humana se aproxima do
final, o Catechism se detém na realidade do pecado, que é o pano de fundo para
a necessidade da misericórdia divina e da graça eucarística que conduz à
salvação. Citando Agostinho, o Catechism afirma: “Deus, que nos criou sem
nós, não quis salvar-nos sem nós”. Em outras palavras, embora a criação fosse
56
Outros elementos do pecado são a ofensa contra Deus e seu amor pelo ser
humano (Sl 51.4); desobediência ou rebelião do ser humano contra a vontade de
Deus em busca de autonomia — autodeterminação (exemplificada no primeiro
pecado; Gn 3.5); amor-próprio a ponto de desprezar a Deus; autoexaltação
orgulhosa, em oposição à obediência a Cristo que realizou a salvação do ser
humano. Sobre esse último ponto, a paixão de Cristo revela “a violência e a sua
multiplicidade: incredulidade, ódio assassino, rejeição e escárnio por parte dos
líderes e do povo, covardia de Pilatos e crueldade dos soldados, traição de Judas
tão dura para Jesus, negação de Pedro e abandono dos discípulos”. Contudo,
60
cometido por meio da malícia, pela escolha deliberada do mal, é o mais grave de
todos”; de fato, Jesus mesmo falou da blasfêmia contra o Espírito Santo, que
66
penitência e reconciliação.
O pecado venial diz respeito a questões menos sérias do que o pecado mortal:
o padrão preconizado pela lei moral não é observado, ou a lei é desobedecida
“em questão grave, mas sem o pleno conhecimento ou sem o consentimento
completo”. Dois exemplos disso são “as conversas irrefletidas ou o riso
68
ferida imposta a ele, mas não sua destruição, como no caso do pecado mortal.
Manifestação de uma afeição desordenada por um bem inferior (i.e., criado), o
pecado venial também impede o progresso no exercício da virtude e da prática
do bem moral, que é um segundo resultado imediato. Em relação ao seu
resultado eterno, diferentemente do pecado mortal, o pecado venial não resulta
na perda da graça santificadora; a amizade da aliança com Deus, o amor e a
felicidade eterna permanecem. Contudo, o pecado venial implica também o
castigo temporal no purgatório. A solução para o pecado venial não é o
sacramento da penitência e reconciliação; pelo contrário, “ele é humanamente
reparável com a graça de Deus” por meio da confissão e do arrependimento. Há 70
Avaliação evangélica
Boa parte desta seção sobre “A vida em Cristo” trata de tópicos de antropologia
(a doutrina da humanidade) e de moralidade (ética) de uma perspectiva
filosófica. Consequentemente, uma avaliação desses tópicos deve ser mensurada
e seletiva, detendo-se naquelas áreas das quais a Escritura e a teologia
evangélica tratam diretamente. De modo geral, como o ensino da teologia
católica sobre esses tópicos não é explicitamente bíblico, tampouco
explicitamente não bíblico, pode-se saudá-lo como uma contribuição bem-vinda
da antropologia e da moralidade, sem, contudo, considerá-lo definitivo e
obrigatório. São áreas como a da liberdade humana, moralidade das paixões
76
É importante frisar que, no caso do pecado por ignorância, será preciso fazer um
sacrifício de expiação e, no caso do pecado consciente, o sacrifício permitirá
perdoá-lo. Contudo, essa distinção bíblica não tem paralelo nenhum com a ideia
da teologia católica de que o pecado venial não requer uma nova infusão de
graça santificadora para ser perdoado, ao passo que o pecado mortal requer
efetivamente o sacramento da penitência para que possa ser perdoado.
Além disso, a Escritura faz distinção entre graus de pecado, pelo menos no
que diz respeito às consequências que diferentes pecados produzem: “Alguns
pecados são piores do que outros no sentido de que têm consequências mais
danosas em nossa vida e na vida de outros, e, no que diz respeito à nossa relação
pessoal com Deus como Pai, eles suscitam uma maior dose de descontentamento
nele e induzem a um rompimento mais sério em nosso relacionamento com
ele”. A base bíblica para a distinção entre pecados maiores e pecados menores
84
propósitos para os quais ele foi criado — não acaba nele mesmo, mas em Deus.
Conforme disse Paulo em uma oração de glorificação a Deus: “Porque todas as
coisas são dele, por ele e para ele. A ele seja a glória eternamente! Amém” (Rm
11.36). Em outro lugar, o apóstolo assinalou que o propósito eterno de Deus
87
era, em certo sentido, a glorificação futura do seu povo; contudo, além dessa
exaltação do ser humano havia uma coisa mais: a preeminência do seu Filho.
“Pois os que conheceu por antecipação, também os predestinou para serem
conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre
muitos irmãos” (8.29). Desde toda a eternidade, o plano divino (presciência,
predestinação) é que o ser humano seja resgatado pela graça divina para que se
conforme plenamente um dia à imagem do Filho; contudo, entre esses irmãos e
irmãs distintos e redimidos, a preeminência do Filho (“o primogênito” no tocante
à sua condição exaltada) se distinguirá. Portanto, a teologia evangélica enfatiza o
plano divino para a humanidade, e não a bem-aventurança humana, a felicidade,
a glorificação etc., por mais importante que seja tudo isso. Pelo contrário, o mais
importante na visão da teologia evangélica é a glória de Deus e a preeminência
de Cristo — o ser humano existe para a glória do seu Criador e Salvador.
Consequentemente, a teologia evangélica lamenta a ênfase mal colocada, por
parte da teologia católica, na bem-aventurança humana.
sistêmico — por exemplo, quando as pessoas são tratadas como meios para um
fim —, “é preciso, portanto, apelar à capacidade espiritual e moral da pessoa
humana e à necessidade permanente de sua conversão interior, para que haja
mudanças sociais que lhe sirvam de fato”. Na verdade, o evangelho é a única
89
17). “Por bem comum deve entender-se ‘o conjunto das condições sociais que
permitem, tanto aos grupos quanto a cada um dos seus membros, atingir a sua
perfeição, do modo mais completo e adequado’”. Esse bem comum consiste em
91
três elementos essenciais: respeito pelo ser humano e pelo seu desenvolvimento
como tal e por seus direitos fundamentais; prosperidade, ou o bem-estar e o
desenvolvimento da sociedade; e paz, ou a estabilidade e segurança da sociedade
por meio da manutenção e do desenvolvimento de uma ordem justa.
Evidentemente, o pressuposto que subjaz a essa discussão é a existência de um
bem comum universal, cuja busca é necessária para assegurar e promover a
dignidade do ser humano. Tal responsabilidade de promoção do bem comum é
primeiramente pessoal, depois institucional, sobretudo no que diz respeito ao
Estado e à família.
Avaliação evangélica
De modo geral, como o tratamento dispensado pela teologia católica a essas
questões é reflexo de uma teoria social e política que não é explicitamente
bíblica, tampouco não bíblica, pode-se acolhê-la como uma possível
contribuição para a discussão das dimensões coletivas da existência humana,
sem, contudo, considerá-la definitiva e obrigatória. A teologia evangélica está de
acordo em áreas como o plano divino para que o ser humano floresça em
comunidade, as duas instituições da família e do governo, conforme ordenadas
por Deus, os perigos inerentes às associações e instituições voluntárias em razão
do mal sistêmico, a necessidade de uma autoridade exercida de maneira
adequada, a promoção dos direitos humanos sancionados pela Bíblia, a bênção
da prosperidade e da paz (pela qual a igreja deve orar; 1Tm 2.1,2), a busca de
um bem comum universal, a igualdade de todos os seres humanos em
decorrência da criação à imagem de Deus e a solidariedade da raça humana.
Quando há disparidade, ela é encontrada em áreas como a do princípio da
subsidiariedade e da visão relativamente otimista que a teologia católica tem da
comunidade humana, do governo e de outras instituições.
Antes de concluir este capítulo, é preciso olhar com atenção uma área ainda
não avaliada. Em sua discussão da vida em Cristo, especialmente quando diz que
essa existência foi arruinada pela realidade do pecado, o Catechism cita
positivamente Agostinho: “Deus, que nos criou sem nós, não quis salvar-nos sem
nós”. Não avaliamos tal afirmação porque o próximo capítulo se concentrará na
96
redentora que Deus oferece em Cristo vem por meio da lei que guia o ser
humano e da graça que o sustenta, conforme assinalado em Filipenses 2.12,13.
A lei moral (seção 1, capítulo 3, artigo 1)
Em sua sabedoria, Deus deu a lei moral ao homem para sua salvação. “Ela
prescreve ao homem os caminhos, as regras de procedimento que o levam à
bem-aventurança prometida e lhe proíbe os caminhos do mal, que desviam de
Deus e do seu amor.” A lei tem quatro expressões inter-relacionadas: “lei eterna
3
— a fonte, em Deus, de toda a lei; lei natural; lei revelada, que compreende a lei
antiga e a nova lei, ou lei do evangelho; por fim, a lei civil e a eclesiástica”. 4
Ela é universal, foi inscrita na consciência humana por Deus, expressa nos Dez
Mandamentos, firmada pela razão, é supracultural (i.e., aplicável a todas as
pessoas em todos os tempos e lugares), imutável e permanente, fundacional para
a construção humana das regras morais para a edificação da comunidade humana
e base da lei civil. Dada a presente condição de pecaminosidade do homem, “os
preceitos da lei natural não são percebidos por todos de maneira clara e
imediata”. Pelo contrário, a humanidade pecaminosa “precisa da graça e da
6
remover o pecado humano, “continua a ser uma lei de escravidão”. De fato, seu 11
caminhos” — entrada pela porta estreita, e não pela porta larga; construção da
casa sobre a rocha, e não sobre a areia (Mt 7.13,14,21-27) — e requer obediência
a suas palavras conforme resumido pela Regra de Ouro (Mt 7.12; cf. Lc 6.31).
Além disso, a lei inteira está resumida no novo mandamento de Jesus: “amar uns
aos outros como ele nos amou” (Jo 15.12; 13.34).
Além do Sermão da Montanha, acrescenta-se “a catequese moral dos ensinos
apostólicos, tais como Romanos 12—15, 1Coríntios 12 e 13, Colossenses 3 e 4,
Efésios 4 e 5 etc”. Esses elementos a mais da nova lei se detêm sobretudo “nas
21
consciência do fiel à luz da sua relação com Cristo e com a igreja. Fazem parte
também da nova lei os conselhos evangélicos: castidade, pobreza e obediência.
Esses conselhos se referem aos preceitos da lei no tocante à caridade: “Os
preceitos destinam-se a afastar tudo o que é incompatível com a caridade. Os
conselhos têm por fim afastar o que, mesmo sem lhe ser contrário, pode
constituir impedimento à expansão da caridade”. Os três conselhos chamam a
23
atenção de modo concreto para “caminhos mais diretos, meios mais adequados”
de amar a Deus e ao próximo, e cabe ao fiel obedecer aos conselhos apropriados
à sua vocação, posição na vida, oportunidade, força etc. 24
Por fim, essa nova lei atende por nomes diversos. É a lei do amor, porque a
obediência a ela não vem do temor, mas do amor do Espírito Santo que é
infundido no fiel. É chamada de lei da graça, porque confere graça para
obedecer, pela fé e pelos sacramentos. É conhecida como lei da liberdade,
porque liberta o fiel das “observâncias rituais e jurídicas da antiga lei”,
inclinando-o a agir de forma espontânea pelo amor, e, no lugar de uma relação
de senhor e servo, promove uma relação entre amigos com Cristo ao elevar o fiel
à condição de filho de Deus, e até mesmo coerdeiro com Cristo. 25
Por último, o quarto tipo de lei se refere à lei civil e à eclesiástica, contudo
essa categoria jurídica não é mais extensamente desenvolvida.
Graça e justificação; mérito (seção 1, capítulo 3, artigo 2)
Além da ajuda conferida pela lei de Deus, a obra da salvação que Deus
providencia para o ser humano pecador requer também graça e justificação.
Antes de definir esses dois termos, o Catechism afirma que a graça do Espírito
Santo opera com poder para justificar as pessoas. Essa obra divina está associada
com a purificação de pecados e a comunicação da “‘justiça de Deus pela fé em
Jesus Cristo’ [Rm 3.22] e pelo batismo”, conforme exposto pelo apóstolo Paulo
26
Além disso, a justificação “conforma-nos com a justiça de Deus, que nos torna
interiormente justos pelo poder da sua misericórdia”. O fundamento da
33
excelente do amor de Deus”. Ao recorrer uma vez mais ao apóstolo Paulo (Rm
37
definida como “favor, o socorro gratuito que Deus nos dá, a fim de
respondermos ao seu chamamento para nos tornarmos filhos de Deus, filhos
adotivos participantes da natureza divina e da vida eterna”. O fruto da graça é a
40
Além disso, essa iniciativa divina “exige a livre resposta do homem” para que
possa conhecer e amar a Deus; “só livremente [uma pessoa] entra na comunhão
de amor”. Graças sacramentais são aquelas cujos “dons são próprios aos
45
é a obra divina por meio da qual Deus sustenta e reveste de poder o fiel até o
fim, ocasião em que o recompensa “pelas boas obras realizadas com sua graça
em comunhão com Jesus”. 48
respeito de modo algum ao início da salvação, porque essa graça pertence tão
somente à iniciativa divina: “Ninguém pode merecer a graça primeira, que está
na origem da conversão, do perdão e da justificação”. Contudo, o mérito entra
55
em cena quando o fiel, sob a moção do Espírito Santo e do amor, alcança para si
e para outros, por merecimento, “as graças úteis para a santificação e para o
aumento da graça e da caridade, bem como para a obtenção da vida eterna”. 56
dessa lei de Deus e deve ensiná-la aos fiéis, que têm tanto o direito de ser
instruídos nela quanto o dever de obedecer-lhe. Embora a consciência do fiel
deva ser livre e não possa ser coagida, ela não é livre para seguir “considerações
individualistas em seus juízos morais dos atos da pessoa” e “não deve ser posta
em oposição à lei moral ou ao Magistério da Igreja”. Um católico, por exemplo,
59
não pode adotar uma posição favorável ao aborto; na verdade, até mesmo sua
afirmação de que está seguindo sua consciência ao defender o aborto mostra uma
consciência malformada e deve ser rejeitada.
Além de todos esses ensinamentos, a igreja oferece também seus preceitos aos
fiéis. Essas instruções “são situadas no contexto de uma vida moral vinculada à
vida litúrgica e por ela nutrida”. Há cinco preceitos, conforme se seguem: (1)
60
“ouvir missa inteira aos domingos e nos dias santos de guarda”; (2) “confessar
os pecados pelo menos uma vez por ano”; (3) “comungar ao menos pela Páscoa
da Ressurreição”; (4) “guardar os dias determinados pela Igreja”; (5) “guardar os
dias de jejum e abstinência conforme prescritos”. Há outro preceito segundo o
qual é dever do fiel contribuir com o sustento financeiro da igreja. 61
salvação para se referir a uma fonte única que opera a redenção; isto é, Deus é o
único agente que opera o resgate do ser humano decaído. Já o termo
“sinergismo” se refere a duas (ou mais) fontes que operam juntas na salvação;
64
isto é, Deus e o ser humano caído, juntos, operam o resgate deste último. A
teologia evangélica, seguindo os princípios fundamentais da Reforma
protestante, subscreve a salvação monergista, ao passo que a teologia católica
defende a salvação sinergista. Essa comparação e a crítica implícita ao
sinergismo não menosprezam a insistência da teologia católica de que a salvação
é obra da graça de Deus, tampouco discordam dela; o Catechism está repleto de
discussões sobre a graça divina como fundamento da salvação. Pelo contrário, a
crítica que se faz diz respeito à aplicação da salvação e à ideia de que Deus
planejou a salvação para que nela fosse incluída a participação do fiel, seu
revestimento de poder, para que merecesse a vida eterna. No âmago de tal
sinergismo se nota a presença da interdependência natureza-graça: a natureza —
nesse caso, o ser humano caído — tem uma capacidade para a graça, que opera
na natureza a fim de elevá-la e aperfeiçoá-la; ocorre então uma participação
colaborativa. A crítica a tal axioma já foi feita (cap. 1). Consequentemente, ao
iniciarmos aqui a crítica evangélica à perspectiva católica da salvação, é
importante frisar que os dois lados têm visões antagônicas a respeito desse
assunto.
Lei
Antes, porém, de nos aprofundarmos na discussão do monergismo e do
sinergismo, começaremos esta avaliação com o ponto de partida da teologia
católica, que é a apresentação da lei moral como meio ordenado por Deus pelo
qual ele proporciona auxílio para a redenção do ser humano caído. Sem entrar
nos detalhes dos quatro tipos de lei que constituem a lei moral, é o conceito de
lei como auxílio divinamente concedido para a salvação que é objeto de
contestação pela teologia evangélica. Sabendo que a teologia evangélica
compreende um amplo espectro de perspectivas acerca da lei, o resumo a seguir
pode ser considerado uma versão bastante típica (todos os pontos seguintes
dizem respeito, especialmente, à antiga lei da aliança, ou Lei de Moisés, que a
teologia católica também chama de antiga lei). 65
Oriunda de Deus, a lei é santa, justa e boa (Rm 7.12). Ela revela quem Deus é,
articula aquilo de que seu povo tem necessidade para ser justo diante dele e
promete bênçãos para quem obedece e ameaça com maldições os desobedientes.
De modo concreto, à medida que estabelece as exigências divinas, ela demanda
perfeição, conforme disse Moisés insistentemente ao povo: “Ouve e guarda
todas estas palavras que te ordeno, para que vivas bem para sempre, tu e teus
filhos depois de ti, por fazer o que é bom e correto aos olhos do S , teu Deus” ENHOR
(Dt 12.28, grifo do autor). Essa exigência de perfeição está em sintonia com a
santidade perfeita do Deus que deu a lei (“Sede santos, porque eu sou santo”; Lv
11.44; 1Pe 1.16) e se reflete em toda a extensão da lei, que regulava toda a vida
do povo de Deus. É importante frisar que a lei “exige obediência, mas falta a ela
o poder para produzir essa obediência, embora jamais fosse seu propósito ser a
fonte de tal obediência”; antes, “pela lei vem o conhecimento do pecado” (Rm
66
3.20). Além disso, “a lei veio para que a transgressão se ressaltasse” (5.20). O
impacto concreto da lei foi tornar o povo de Israel pior do que era; por exemplo,
imediatamente depois de receber os Dez Mandamentos, ele forjou o bezerro de
ouro e mergulhou numa horrenda idolatria (Êx 32). Como a lei mostrou o que
era de fato o pecado — portanto, ninguém pode fingir ignorância —, a lei traz
consigo a ira divina (Rm 4.15) e a morte (7.24), o exato oposto da bênção e da
vida. Consequentemente, a lei — e as obras a ela associadas — não pode
promover a justificação, conforme assinala Paulo:
Porque ninguém será justificado diante dele pelas obras da lei; pois pela lei vem o pleno
conhecimento do pecado. Mas agora a justiça de Deus se manifestou, sem a lei, atestada pela Lei e
pelos Profetas; isto é, a justiça de Deus por meio da fé em Jesus Cristo para todos os que creem; pois
não há distinção (Rm 3.20-22).
Sabemos, contudo, que o homem não é justificado pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo.
Nós também temos crido em Cristo Jesus, para sermos justificados pela fé em Cristo, e não pelas
obras da lei, pois ninguém será justificado pelas obras da lei (Gl 2.16).
Consequentemente, “Paulo não condena ninguém por ter em alta conta a lei; ele
condena as pessoas por tentarem usar a lei para alicerçar sua justiça própria”. 67
para a raça humana, e sim uma lei direcionada especificamente ao povo de Israel
(e.g., Dt 4.8). Em segundo lugar, “a comunicação da lei é um ato de graça
conferido a Israel porque se acha inserido no contexto de redenção do Egito e
funciona como uma resposta da parte de Israel à sua relação de aliança com
Deus”. Em outros termos, a lei da antiga aliança não criou uma relação entre
69
Deus e seu povo; essa aliança já havia sido firmada com Abraão e as promessas
de Deus feitas a ele (e.g., Gn 15). “A lei, portanto, não foi dada como uma forma
de encontrar Deus; ela foi dada depois que Deus proveu um meio para que Israel
saísse da escravidão do Egito e se tornasse seu povo.” 70
quem for, ser justificado porque guarda a lei, quer seja a Lei de Moisés, quer
outro código qualquer.
Portanto, se é impossível firmar a justiça com base na lei, sobre que base
poderá ela ser firmada? A Escritura aponta para Jesus Cristo, o Justo, e para a fé
nele, fundamento e meio de apropriação da justiça divina. Em sua forma
seminal, esse direcionamento começa com Abraão, que “creu no S ; e o S ENHOR ENHOR
Muito antes de ser dada a lei, Abraão creu em Deus e em sua promessa de uma
prole incontável no futuro. Se a justiça pudesse provir da lei — o que não é
possível, porque a lei suscita a ira —, disso se segue que os beneficiários de uma
relação com Deus estariam limitados ao povo de Israel, que recebeu a lei.
Contudo, a justiça não vem desse modo; pelo contrário, como ela repousa sobre
o fundamento da graça divina, a justiça se dá a todos os que, como Abraão, têm
fé.
Essa provisão de graça foi profetizada no Antigo Testamento (Rm 3.21).
Pouco antes de encerrada a redação do Pentateuco, Moisés previu a falha abjeta
de Israel incapaz de obedecer à Lei. Ele ofereceu então a seguinte esperança: “O
S , teu Deus, circuncidará o teu coração, e o coração da tua descendência, a
ENHOR
fim de que ames o S , teu Deus, de todo o teu coração e com toda a alma, para
ENHOR
que vivas” (Dt 30.6). Com essa profecia, “Moisés evidencia o fato de que não se
trata apenas de um problema da lei, mas de um problema do coração. A lei
apresenta os padrões de justiça de Deus e mostra o que é preciso para se chegar à
justiça, mas o problema é que a lei não proporciona aquilo que é necessário para
guardá-la — um novo coração”. Essa esperança de transformação repercutiu na
72
profecia de Jeremias sobre uma nova aliança em que a lei seria escrita no
coração das pessoas e Deus perdoaria completamente seus pecados (Jr 31.31-
34), e na profecia de Ezequiel segundo a qual Deus purificaria seus pecados,
daria a eles um novo coração e colocaria neles seu Espírito (Ez 36.25-27).
A esperança do Antigo Testamento apontava para Jesus Cristo e sua obra de
salvação como fundamento da justiça, que seria apropriada pela fé. Depois da
sua profecia sobre a circuncisão do coração (Dt 30.6), Moisés volta à
apresentação da lei dizendo que “não é difícil demais, nem está fora do teu
alcance [...]. A palavra está muito perto de ti, na tua boca e no teu coração, para
que a cumpras” (Dt 30.11,14). De acordo com Paulo, a palavra de Moisés é o
evangelho, “a palavra de fé” que é proclamada e que proporciona não “a justiça
proveniente da lei”, mas “a justiça que vem da fé [...]. Porque, se com a tua boca
confessares Jesus como Senhor, e em teu coração creres que Deus o ressuscitou
dentre os mortos, serás salvo” (Rm 10.5-9). Portanto, pode-se dizer que a lei
apontava para Jesus Cristo, e para a fé nele, para obtenção da justiça perante
Deus.
A maior parte do povo judeu, tragicamente, errou o alvo, e Paulo lamenta a
sorte deles: “Pois, não reconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer
a sua própria, não se sujeitaram à justiça de Deus. Pois Cristo é o fim da lei para
a justificação de todo aquele que crê” (Rm 10.3,4). Acabou-se, portanto, a época
da lei. Como a antiga aliança se tornou obsoleta e foi substituída por uma nova
aliança — a forma pela qual Deus agora se relaciona com seu povo, a igreja —,
assim também a lei da antiga aliança chegou naturalmente ao seu fim. “A lei não
é da fé”, explica Paulo; é, antes, uma maldição sobre todo aquele que não guarda
a lei em todas as suas partes. Contudo, prossegue Paulo: “Cristo nos resgatou da
maldição da lei, tornando-se maldição em nosso favor, pois está escrito: ‘Maldito
todo aquele que for pendurado em um madeiro’” (Gl 3.13). Com sua morte na
cruz, Jesus resgata as pessoas das exigências da lei e do desespero da antiga e
fracassada aliança. A era anterior chegou ao fim; Cristo ocupa seu lugar: “Mas,
antes que viesse a fé, éramos mantidos debaixo da lei, nela confinados para a fé
que haveria de ser revelada. Desse modo, a lei se tornou nosso guia para nos
conduzir a Cristo, a fim de que pela fé fôssemos justificados. Mas, tendo
chegado a fé, já não estamos sujeitos a esse guia. Pois todos sois filhos de Deus
pela fé em Cristo Jesus” (v. 23-26). A fé em Cristo e a justiça de Deus que é
apropriada pela fé, sempre foi o objetivo da lei. Agora que veio a fé em Cristo, a
lei que era como um guardião não tem mais papel algum a desempenhar. A fé é
essencial à igreja, o que ecoa alegremente a afirmação de Paulo: “Pois, pela lei,
eu morri para a lei, a fim de viver para Deus. Já estou crucificado com Cristo.
Portanto, não sou mais eu quem vive, mas é Cristo quem vive em mim. E essa
vida que vivo agora no corpo, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se
entregou por mim” (2.19,20). É a vida da fé, e não a vida da lei, que a igreja vive
agora.
Com esse arcabouço de uma teologia evangélica da lei, podemos expor aqui
os principais pontos de discórdia em relação à teologia católica e sua
apresentação da salvação. Em primeiro lugar, a ideia de lei como ajuda divina
que conduz à bem-aventurança prometida está equivocada. Nada na discussão
acima nem sequer se aproxima dessa ideia. Isso se aplica, primeiramente, à lei
natural, cujo desenvolvimento pela teologia católica vai muito além da menção
limitada que a Escritura faz a seu respeito. Ainda que, numa concessão nossa,
aceitemos, por amor à argumentação, essa ideia elevada de lei natural, é limitada
demais a proposição da teologia católica de que a pecaminosidade do homem
cria um problema para a percepção clara e imediata dos princípios da lei natural
— com a consequência de que a humanidade pecadora necessita da graça e da
revelação para vencer sua miopia. O problema da humanidade pecadora não é
apenas de ordem epistemológica. Trata-se, antes, de um drama moral — e que
resulta na avaliação de Paulo de que “todos os que sem lei pecaram, sem lei
também perecerão” (Rm 2.12). Os que não têm a Lei de Moisés ainda têm a lei
“escrita em seu coração” — a lei natural, ou “consciência” (v. 14,15) —, mas são
incapazes de guardá-la e, portanto, perecerão. Consequentemente, a lei natural
não proporciona um fundamento para a lei revelada e para a graça; antes, a
desobediência pecaminosa da humanidade aos preceitos da lei natural cria a
necessidade da revelação divina e da graça.
Em segundo lugar, é errônea a ideia da antiga lei como ajuda divina que leva à
bem-aventurança prometida de toda a humanidade. Nunca foi intenção da lei
atender um público geral; pelo contrário, ela foi dada como presente da graça
divina às pessoas a quem Deus havia tirado da escravidão no Egito, e seu
propósito era distinguir Israel do restante das nações (Dt 4.8). Além disso, sua
função de tutora não era apenas a de mostrar “o que deveria ser feito”, como se 73
esse fosse um papel positivo que ela tivesse de desempenhar. Pelo contrário,
como guardiã, a antiga lei, que operava “antes da vinda da fé”, mantinha as
pessoas cativas, “nela confinadas para a fé que haveria de ser revelada” em Jesus
Cristo e por meio dele, que satisfaria seu povo por meio da fé (Gl 3.23-26). Com
a fé em seu lugar, o guardião fica desalojado; ele deixa de ter função para a
igreja. Na verdade, a teologia católica destaca alguns pontos muito bons em
relação a essa lei: ela é santa e boa em si e por si mesma, ainda que imperfeita;
ela não proporciona em si mesma os recursos necessários para seu cumprimento.
Não retira o pecado humano; antes, ela o expõe. Contudo, quando a teologia
católica faz da lei “o primeiro passo em direção ao reino”, uma preparação para a
conversão e a fé, fica faltando a base bíblica. São os seguintes os principais
74
nenhuma das leis que ele e os apóstolos ab-rogaram (e.g., as leis sacrificais e as
leis alimentares; Mc 7.19; 1Tm 4.3,4; Hb 8—10). Certamente, ela incluiria
também as leis reveladas no Novo Testamento, das quais fazem parte o Sermão
da Montanha e os ensinos apostólicos. Como os conselhos evangélicos de
castidade e de pobreza contradizem a Escritura (conforme discutimos
anteriormente), esses não estão incluídos na nova lei. Essa estratégia baseada em
princípios para determinar o conteúdo da nova lei, embora tenha seus problemas,
consegue estabelecer um equilíbrio entre a continuidade absoluta entre o Antigo
e o Novo Testamentos e a descontinuidade absoluta entre ambos.
A teologia evangélica faz uma correção final, ou melhor, requer uma ênfase
maior no que diz respeito à relação do Espírito Santo com a lei. A teologia
católica afirma que a nova lei se torna a lei interna do amor por obra do Espírito,
que também comunica fé e amor, dos quais fluem as virtudes exigidas pela nova
lei. A teologia evangélica, porém, quer ver mais enfatizado o papel do Espírito
em relação à lei, tanto a antiga quanto a nova. O apóstolo Paulo destaca esse
ponto: “Portanto, agora já não há condenação alguma para os que estão em
Cristo Jesus. Porque a lei do Espírito da vida, em Cristo Jesus, te livrou da lei do
pecado e da morte. Pois o que para a lei era impossível, uma vez que se achava
fraca por causa da carne, Deus o fez na carne, condenando o pecado e enviando
o seu próprio Filho em semelhança da carne do pecado e como sacrifício pelo
pecado, para que a justa exigência da lei se cumprisse em nós, que não andamos
segundo a carne, mas segundo o Espírito” (Rm 8.1-4). Paulo expõe o fracasso da
lei — a Lei de Moisés dada ao povo debilitado por sua natureza pecadora —
para libertá-lo da morte e do pecado. Tal salvação, embora impossível para a lei,
foi o que Deus realizou pela morte do seu Filho, o que nos leva ao veredito de
não condenação para todos aqueles unidos a Cristo. Outro componente
importante daquilo que Cristo fez consiste na obediência de seus seguidores à
lei, uma realidade que é concretizada na vida no Espírito. À medida que o fiel
caminha com o Espírito, ele realiza “a justa exigência da lei”, que, de acordo
com a Escritura, se resume aos dois grandes mandamentos sobre amar a Deus e
amar ao próximo. É importante frisar que a obediência não vem da lei, nem da
78
forense, ou legal, de Deus em que ele não declara inocente o ser humano
pecador, mas justo. Ele o faz ao atribuir, ou creditar, a justiça perfeita de Jesus
Cristo na sua conta, de tal modo que, embora não seja efetivamente justo, Deus o
vê assim por causa da justiça de Cristo. Por intermédio da sua obediência em
vida e na morte, Cristo cumpriu todas as exigências da lei, e pelo poderoso ato
divino da justificação o homem pecador é creditado com sua justiça e posição
perante Deus como aquele que “vive à altura da vontade divina em sua
plenitude”. 81
Contudo, conforme diz Vickers, essa definição não é muito correta, porque
“graça em sua conexão com a salvação não é apenas favor imerecido, mas
também favor em que há desmerecimento”. O respaldo bíblico para essa
83
está usando uma linguagem legal aqui? “No Novo Testamento, a mesma palavra
traduzida por ‘feito’ em [Romanos] 5.19 é muito comumente usada para designar
o lugar e/ou a posição que uma coisa ou pessoa tem ou para que uma coisa ou
pessoa é designada. Mais raramente a palavra tem o sentido de tornar-se, causar
ser ou fazer, e se refere a algum estado do ser”. Um motivo fundamental para
86
“justo” não seja usado com frequência para se referir ao “comportamento e/ou
caráter pessoal”. “Quando Paulo, porém, a coloca ao lado de feito, que se refere
88
a ser designado ou colocado em uma posição, justo então não diz respeito ao
comportamento ou ao caráter, mas à nossa posição em relação a Deus. Fomos
feitos para manter a posição daqueles cujos atos e comportamentos são justos
tomando por base a obediência de Cristo.” Consequentemente, Deus declara
89
Cristo, e com base na obra de Deus em Cristo, o ser humano pecador “se coloca
diante dele sem culpa e como se tivesse feito tudo o que a obediência exige”. 94
Contudo, tal justiça não deve ser considerada como se fosse algum tipo de
substância ou commodity infundida na pessoa; pelo contrário, “a justiça em
questão é encarnada, e a imputação consiste em partilhar do Cristo que é nossa
justiça”.95
disso, não havia nada de errado com a fé de Abraão — pela fé, Abraão foi
considerado justo perante Deus! —, porém tal fé salvadora resultou em boas
obras.
A segunda ilustração de Tiago da fé salvadora é Raabe: “De igual modo, a
prostituta Raabe não foi também justificada pelas obras, quando acolheu os
espias e os fez sair por outro caminho?” (Tg 2.25). Como podemos saber se a fé
dessa prostituta não passava de um último esforço desesperado para salvar sua
própria vida, um exemplo da falsa fé que Tiago está combatendo nessa
passagem? A fé fictícia não teria resultado em ato tão corajoso, mas, porque ela
resgatou os espias israelitas, sua boa obra nos permite distinguir em sua fé uma
fé salvadora. Como destaca a Carta aos Hebreus, em seu capítulo sobre a fé:
“Pela fé, a prostituta Raabe não morreu com os desobedientes, pois acolheu em
paz os espias” (Hb 11.31). A conclusão que Tiago tira dessa ilustração é que “a
fé sem obras é morta” (Tg 2.26). A fé de Raabe não era do tipo fictício ou morto;
pelo contrário, era uma fé genuína — uma fé salvadora — que assim se mostrou
ser por suas obras.
O próprio Paulo, em vez de se opor à exposição de Tiago, concorda
completamente com ela e usa até a mesma ilustração de Abraão em apoio a ela.
Conforme discutimos acima, o apóstolo cita Gênesis 15.6 em sua Carta aos
Romanos, destacando que Abraão não foi justificado pelas obras, mas pela fé
(Rm 4.1-5). Vale a pena notar que no final de sua discussão sobre a justificação
pela fé, e não pelas obras (no final de Rm 4), Paulo cita novamente a vida do
patriarca e faz referência outra vez a Gênesis 15.6. Embora esteja plenamente a
par das muitas falhas reais de Abraão, Paulo o descreve da seguinte forma:
Abraão, ao contrário do que se podia esperar, creu com esperança, para que se tornasse pai de muitas
nações, conforme o que lhe havia sido dito: “Assim será a tua descendência”. E, sem enfraquecer na
fé, considerou que o seu corpo já não tinha vitalidade (pois já contava cem anos), e o ventre de Sara
já não tinha vida. Contudo, diante da promessa de Deus, não vacilou em incredulidade; pelo
contrário, foi fortalecido na fé, dando glória a Deus, plenamente certo de que ele era poderoso para
realizar o que havia prometido (Rm 4.18-21).
Paulo cita então Gênesis 15.6 pela segunda vez — “Por essa razão, isso ‘lhe foi
atribuído como justiça’” (Rm 4.22) — confirmando duas coisas: “(1) A vida de
fé de Abraão era evidência de sua justificação; (2) o que Deus declarou na
Escritura sobre Abraão era verdade”. Esses pontos correspondem aos que Tiago
97
que foi discutida. A respeito do outro tipo, “a segunda espécie de justiça é nossa
própria justiça não porque somente nós a trabalhamos, mas porque trabalhamos
com aquela primeira justiça externa. Esse é aquele tipo de vida gasta com
proveito em boas obras”. Importante para Lutero, o primeiro tipo “é
99
Consequentemente, os que foram justificados pela fé, tendo por isso a justiça de
Jesus Cristo imputada a eles, se dedicam a obras reais de justiça. Lutero
claramente uniu a fé (em uma justiça externa) e obras (a justiça do indivíduo que
decorre de sua justiça externa).
A relação desses dois tipos de justiça é paradoxal, de acordo com Lutero, que
estabeleceu duas proposições referentes à liberdade e à escravidão do espírito
humano: “O cristão é um senhor de tudo perfeitamente livre, que não se submete
a ninguém. O cristão é um servo perfeitamente obediente de todos, sujeito a
todos. Essas duas teses parecem contradizer uma à outra”. Sobre a primeira
101
tese, Lutero afirmou que a justificação pela graça por meio da fé somente, e não
pelas obras, liberta completamente o cristão, especialmente da lei divina. Além
disso, “se buscamos as obras como meio de justiça [...] e se elas são feitas sob a
falsa impressão de que por seu intermédio a pessoa é justificada, tornam-se
necessárias, destruindo desse modo a fé e a liberdade. Essa adição a elas faz com
que deixem de ser boas, tornando-se verdadeiramente condenáveis”. Em 102
relação à sua segunda tese, Lutero disse que a justificação estabelece o serviço
cristão e o dever de participar das boas obras pelo bem de outros: “Essa é a
verdadeira vida cristã. Aqui, a fé é verdadeiramente ativa por meio do amor [Gl
5.6], isto é, ela encontra expressão nas obras do serviço mais livre, feito com
alegria e amor, com o qual o homem serve ao outro sem esperar recompensa”. 103
justifica resulta em boas obras, mas não está associada a elas. Portanto, não há
“uma dupla base de justificação, isto é, constituída de fé e obras. Contudo, a fé, o
único fundamento para a justificação, opera”. Isso significa que o veredito da
108
justificação não espera por evidências para lhe dar respaldo, sendo declarada
antes de apresentada a evidência. Voltando à ilustração de Abraão, “a fé de
Abraão foi considerada justiça antes da evidência manifestada em sua vida, e
não com base nela”. A base da justificação é a obra de Cristo em favor dos
109
esses dois outros atos divinos. Pelo contrário, embora afirme que a justificação
se acha associada com a regeneração e a santificação, a teologia evangélica faz
distinção entre essas três coisas, assim como o faz a Escritura (e.g., 1Co 6.11).
Infelizmente, fundir a justificação, a regeneração e a santificação resulta na falsa
ideia de justificação da teologia católica.
Igualmente importante, é errônea a ideia na teologia católica da justiça como
“retidão do divino amor” que é infundido nas pessoas, especialmente por meio
dos sacramentos. Pode-se perceber essa ênfase na infusão na lista do fruto da
111
não é necessário para a salvação, mas isso não significa que não o consideremos
importante, embora ele rompa o elo católico entre a fé e o sacramento do
batismo para justificação. A teologia católica cria o elo entre fé e batismo por
causa da interdependência natureza-graça, o axioma segundo o qual a graça deve
ser concretamente transmitida por meios tangíveis — nesse caso, água. Outra
razão para essa ligação é a interpretação católica da afirmação de Jesus de que
“se alguém não nascer da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus”
(Jo 3.5), mas, conforme já expusemos, essa é uma interpretação equivocada das
palavras de Jesus.
Para uma crítica final da doutrina da justificação da perspectiva católica,
retomamos aqui uma discussão anterior. A teologia católica afirma que a
justificação estabelece uma relação de cooperação entre a graça divina e a
liberdade humana. Essa fórmula se traduz naquilo a que nos referimos
anteriormente como sinergismo : dois agentes, Deus e o seres humanos,
trabalham juntos para operar o resgate desse grupo. Da parte de Deus, os muitos
tipos de graça operam de maneira poderosa para produzir a justificação do fiel,
cabendo a este “assentir com fé à Palavra de Deus”, responder com a conversão
e obedecer “ao impulso do Espírito Santo que se lhe adianta e o guarda”. 114
entra em cena quando o fiel, impelido pelo Espírito Santo e pelo amor, alcança
para si e para os outros a graça da santificação permanente, o aumento da graça e
do amor e alcança a vida eterna.
Embora respeite essa diferenciação entre graça inicial, que não pode ser
merecida, e graça permanente, que se pode alcançar por mérito, a teologia
evangélica nega qualquer possibilidade de se conquistar a graça de qualquer tipo
— inicial, permanente ou final — e considera supérfluo o esforço humano em
direção à conquista da vida eterna. É evidente que a ideia de mérito se baseia no
axioma da interdependência natureza-graça. A natureza — nesse caso, a natureza
humana decaída — é capaz de receber a graça divina e, tendo obtido tal graça
por meio dos sacramentos, torna-se livre e pode, portanto, se tornar merecedora
da vida eterna. Como já foi demonstrado, a interdependência natureza-graça é
um equívoco, portanto a ideia de mérito que repousa sobre esse axioma é
igualmente errônea. Além disso, a doutrina correta da justificação defendida pela
teologia evangélica ressalta o erro do mérito: como o ser humano decaído não é
declarado “inocente!”, mas “justificado!”, não se alcança a vida eterna por meio
desse ato gratuito de Deus somado ao esforço humano (mesmo que seja um
esforço sustentado pela graça divina), e sim exclusivamente pela declaração de
Deus recebida pela fé e nada mais. Considerado plenamente justo por causa da
justiça de Cristo que lhe foi imputada pela fé, o cristão nada precisa agregar a
essa salvação. Como se não bastassem o perdão e o resgate do pecado, ele
também é recompensado por suas boas obras que decorrem da sua união com
Cristo, da nova natureza dada a ele por meio da regeneração pelo Espírito Santo
e pelo derramamento de um coração cheio de gratidão por sua salvação.
A teologia evangélica enfatiza que essas recompensas, porém, nada dizem
respeito à doutrina do mérito da teologia católica. Conforme ressaltou João
Calvino, o exemplo de Abraão elucida a diferença entre recompensa e mérito.
Antes de Isaque nascer, Abraão recebeu pela fé a promessa de que sua
descendência seria tão numerosa quanto as estrelas do céu (Gn 15.5); isto é, ele
se tornaria pai de muitas nações (Gn 17.4-6). Anos mais tarde, o patriarca
levantou obediente a faca sobre a cabeça do seu filho Isaque, provando que
temia a Deus (22.12). Tendo agido em obediência a Deus, Abraão recebeu a
seguinte promessa: “Por mim mesmo jurei, diz o S , porque fizeste isso e não
ENHOR
me negaste teu filho, teu único filho, que com certeza te abençoarei e
multiplicarei grandemente a tua descendência, como as estrelas do céu e como a
areia na praia do mar; e a tua descendência dominará a cidade dos seus inimigos;
e todas as nações da terra serão abençoadas por meio da tua descendência, pois
obedeceste à minha voz” (22.16-18).
Conforme explicou Calvino, “o que foi que ouvimos? Abraão, por sua
obediência, mereceu a bênção cuja promessa lhe fora feita antes da ordem [de
matar seu filho]? Aqui, certamente, mostramos sem ambiguidade que o Senhor
recompensa as obras dos crentes com os mesmos benefícios que ele lhes havia
concedido antes que contemplassem quaisquer obras, já que ele não tem razão
alguma para beneficiá-los, exceto sua própria misericórdia”. Abraão não
117
mereceu — na verdade nem sequer podia merecer — por suas boas obras, algo
que já lhe havia sido prometido e recebido pela fé. Deus prometera, Abraão creu
pela fé, foi declarado justo, obedeceu e foi recompensado — mas não de modo
que fosse salvo pela graça e por mérito. Conforme dissemos: “Deus planeja
manter sua Palavra com um tipo específico de povo — aqueles que o seguem em
obediência” praticando boas obras. Sua justificação é firme e incondicional.
118
Sua realidade não depende de suas boas obras, sendo simultânea ou sincronizada
com elas. Em outras palavras, a fé salvadora que justifica resulta em boas obras,
mas não depende da cooperação do fiel com a graça divina para que o fiel
mereça a vida eterna por meio de graça e obras. É verdade que o cristão é
recompensado por Deus, conforme acentua com frequência a Escritura (e.g., Mt
16.27; Lc 6.23; 1Co 3.8,15; 2Co 5.10). Que tal prática de boas obras faz o fiel
merecer a vida eterna e seja necessária para a obtenção da salvação consiste em
erro.
A igreja, mãe e educadora
O Catechism conclui sua discussão da doutrina da salvação situando na doutrina
da igreja essa obra divina de resgate do ser humano (decaído) do pecado, que é
então conduzido à bem-aventurança eterna. Dois temas já tratados são
retomados: a igreja é mãe e educadora. Ambos os tópicos são sustentados pelo
axioma da interconexão Cristo-Igreja: como a igreja é extensão da encarnação
do Cristo total (tanto a cabeça quanto o corpo), então a Igreja Católica, e
somente ela, é mediadora da salvação. Conforme esse axioma já foi criticado,
basta ressaltar que o fundamento da ideia católica de igreja mãe e educadora é
incorreto.
Em relação à crítica específica da metáfora materna da igreja, a teologia
evangélica enfatiza que a Escritura emprega uma imagem feminina vívida para a
igreja — ela é a noiva de Cristo (2Co 11.1-4; Ef 5.25-33; Ap 19.7; 21.2,9,17) —
ela não emprega a metáfora de mãe. Além disso, a teologia evangélica critica a
ligação que a teologia católica faz entre a igreja mãe e Maria, mãe da igreja. Ao
mesmo tempo, e entendido de maneira diferente, a igreja mãe dos cristãos, que
serve como ministra ungida pelo Espírito da graça de Deus pela pregação do
evangelho e pela celebração das ordenanças, faz sentido dentro de uma estrutura
teológica evangélica. Com relação a críticas específicas da igreja educadora, um
aspecto dessa ideia, a doutrina da infalibilidade papal, é veementemente rejeitada
pela teologia evangélica, pelas seguintes razões: ela se baseia em uma
interpretação equivocada da promessa de Cristo segundo a qual “as portas do
inferno não prevalecerão contra ela [a igreja]” (Mt 16.18); ela erra por não
reconhecer a efetiva falibilidade dos papas; o dogma foi promulgado muito
posteriormente (1870) e em circunstâncias questionáveis; a elaboração de
ensinos oficiais mediante esse dogma viola a suficiência da Escritura. 119
incômoda dessas leis a mais que a Igreja Católica prescreve aos fiéis e os obriga
a obedecer. Ela questiona: em que momento chegam ao fim essas exigências
para a salvação? Ao ligar esse ponto ao primeiro tópico deste capítulo, a teologia
evangélica chama a atenção (e rejeita) a ênfase exagerada sobre a lei como
componente essencial da teologia católica da doutrina da salvação. Nem a lei
nem as boas obras cooperam com a graça para merecer a vida eterna, mas o
evangelho “é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê; primeiro
do judeu e também do grego. Pois a justiça de Deus se revela no evangelho, de
fé em fé, como está escrito: ‘O justo viverá pela fé’”(Rm 1.16,17).
Conclusão
“A vida em Cristo”, terceira parte do Catechism, tratou até o momento da
vocação humana da vida no Espírito (seção 1), analisando a dignidade da pessoa
humana (capítulo 1) e da comunidade humana (capítulo 2), e a salvação divina
especialmente no que diz respeito à lei, à justificação e à graça, ao mérito e à
igreja, mãe e educadora (capítulo 3). Embora apresente outra seção em que
discorre sobre os Dez Mandamentos (seção 2), não daremos a perspectiva
evangélica do assunto. Há três razões importantes para isso. Em primeiro lugar, a
apresentação da teologia católica dos Dez Mandamentos repousa sobre sua
ênfase na lei como componente essencial da salvação. Conforme salientou o
Concílio Vaticano II, “todo homem pode obter a salvação pela fé, pelo batismo e
pela observância dos [Dez] Mandamentos”. Como já criticamos a ênfase na lei,
124
outras críticas dirigidas à explicação detalhada que a teologia católica faz dessa
lei, conforme exposta nos Dez Mandamentos, parece supérflua. Em segundo
lugar, o tratamento do Catechism dessa seção apresenta uma grande
interpretação bíblica das passagens de Êxodo 20.2-17 e Deuteronômio 5.6-21.
Como este livro foi planejado para ser uma avaliação teológica da doutrina e
prática católicas, uma avaliação da interpretação bíblica do catolicismo levaria
este livro demasiadamente além. Em terceiro lugar, mesmo quando a
interpretação bíblica dessas passagens entra na reflexão teológica e na discussão
doutrinária, as questões teológicas apresentadas repetem os tópicos já cobertos
nas seções precedentes do Catechism, o que dispensa quaisquer outros
comentários.
De igual modo, a parte 4, “A oração cristã”, não será analisada aqui. A seção 1
trata da oração na vida cristã. Parte dessa discussão repercutirá junto aos
evangélicos, e deve mesmo repercutir, ao passo que outras partes devem ser
criticadas, da mesma forma e pelos mesmos motivos que essa avaliação
evangélica tem criticado a teologia e prática católicas nas seções precedentes do
Catechism. A seção 2 consiste na exposição detalhada dos sete pedidos do Pai-
Nosso (Mt 6.9-13). Como uma avaliação dessa interpretação bíblica nos
desviaria muito dos nossos propósitos, não a faremos aqui.
1
Edição em português: Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Loyola, 1999).
2
CCC 1949.
3
CCC 1950.
4
CCC 1952.
5
CCC 1954.
6
CCC 1960.
7
Ibidem; citação do papa Pio XII, Humani generis (12 de agosto de 1950), 3, disponível em:
http://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_12081950_humani-
generis_en.html.
8
CCC 1961.
9
CCC 1962.
10
CCC 1963.
11
Ibidem.
12
Ibidem (grifo removido).
13
CCC 1963.
14
CCC 1964 (grifo removido).
15
CCC 1965.
16
Ibidem.
17
CCC 1966 (grifo removido).
18
Ibidem. “Esse sermão apresenta [...] todos os preceitos necessários para modelar a vida das pessoas”
(CCC 1966, citando Augustine [Agostinho], The Sermon on the Mount 1.1 [NPNF1 6:2]).
19
CCC 1968.
20
CCC 1969 (grifo removido).
21
CCC 1971 (grifo removido).
22
CCC 1971.
23
CCC 1973.
24
CCC 1974.
25
CCC 1972. Essa seção toma como base bíblica João 15.15; Tiago 1.25; 2.12; Gálatas 4.1-7,21-23;
Romanos 8.15.
26
CCC 1987.
27
CCC 1989 (grifo removido). Cf. 1990: “A justificação continua a iniciativa da misericórdia de Deus,
que oferece o perdão”.
28
CCC 1989.
29
Ibidem; citação dos Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 6.ª sessão (13 de janeiro de 1547),
Decreto sobre a Justificação 7 (Schaff, 2:94).
30
CCC 1991 (grifo do autor).
31
CCC 1990 (grifo removido).
32
CCC 1991.
33
CCC 1992.
34
Ibidem.
35
CCC 1993.
36
Ibidem; citação dos Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 6.ª sessão (13 de janeiro de 1547),
Decreto sobre a justificação 5 (Schaff, 92).
37
CCC 1994 (grifo removido).
38
CCC 1995 (grifo removido).
39
CCC 1996.
40
Ibidem (grifo removido). Essa seção toma como base bíblica João 1.12-18; 17.3; Romanos 8.14-17;
2Pedro 1.3,4.
41
CCC 1999.
42
CCC 2000.
43
Ibidem.
44
CCC 2001. O Catechism discute esse tipo de graça como “preparação do homem para o recebimento
da graça” (grifo removido). Do latim praevenire (ir antes), a graça preveniente tem base bíblica, segundo
Agostinho, por causa de Salmos 59.10 (tradução latina): “Lemos na Sagrada Escritura [...] que a
misericórdia de Deus ‘me encontrará’ [praevenient] [...]. Ela vai adiante do que reluta para demovê-lo de
sua relutância” (Augustine, Enchiridion on faith, hope, and love 32 [NPNF1 3:248]). Para uma discussão
mais ampla, veja Augustine, On nature and grace 35[31] (NPNF1 5:133); Treatise against two letters of the
pelagians 2.21 (NPNF1 5:401).
45
CCC 2002 (grifo removido).
46
CCC 2003.
47
Ibidem.
48
CCC 2016.
49
CCC 2005 (grifo removido).
50
CCC 2005.
51
CCC 2006 (Introdução); citação do Missal Romano, prefácio 1 de Sanctis, da declaração de Agostinho
em Exposition on the Psalms 102.7; cf. Letter 194.
52
CCC 2006 (grifo removido).
53
CCC 2008 (grifo removido).
54
CCC 2008.
55
CCC 2010 (grifo removido).
56
CCC 2010.
57
CCC 2035.
58
CCC 2036 (grifo removido).
59
CCC 2039.
60
CCC 2041.
61
CCC 2042-2043.
62
CCC 1847; citação de Augustine, Sermon 169, in: John E. Rotelle, org., The works of Saint Augustine:
a translation for the 21st Century, tradução para o inglês de Edmund Hill (Hyde Park: New City, 1992),
vol. 5, p. 231.
63
“Monergismo” é um termo derivado de duas palavras gregas: μόνος (monos = somente, somente um) e
ἔργον (ergon = trabalho).
64
“Sinergismo” é um termo derivado de duas palavras gregas: σύν (syn = com, junto) e ἔργον (ergon =
trabalho).
65
Boa parte do que vem a seguir reflete a discussão em Brian Vickers, Justification by grace through
faith: finding freedom from legalism, lawlessness, pride, and despair, in: Robert A. Peterson, org.,
Explorations in Biblical Theology (Phillipsburg: P&R, 2013).
66
Ibidem, p. 99; cf. p. 133, 155, 175.
67
Ibidem, p. 99. Vale a pena enfatizar que o apóstolo distingue entre a antiga lei, pela qual ninguém pode
ser justificado, e o Antigo Testamento, ao qual a expressão “a Lei e os Profetas” se referem. O Antigo
Testamento dá testemunho da manifestação da justiça de Deus independentemente das obras da antiga lei.
68
Ibidem, p. 100.
69
Ibidem, p. 100-1.
70
Ibidem, p. 106.
71
Ibidem, p. 33. De igual modo, Vickers emprega o fracasso de Adão para tratar da sina dos demais
seres humanos, observando que, “afinal de contas, se Adão não obedeceu em sua inocência, o que
acontecerá às pessoas que vivem sob sua maldição quando receberem ordens de Deus?” (ibidem, p. 28-9).
72
Ibidem, p. 114.
73
CCC 1963.
74
Ibidem.
75
Embora Lutero tenha feito dessa distinção um princípio fundamental a ser observado na interpretação
da Bíblia, sua aplicação pode ser ampliada.
76
A questão do quarto mandamento, sobre o sábado, suscita a única indagação significativa a seu
respeito, isto é, se continua intacto ou se foi modificado.
77
“Cumpridos” no sentido de que Jesus oferece sua interpretação definitiva dessas leis do Antigo
Testamento. Embora algumas vertentes da teologia evangélica concordem com a teologia católica que a
linguagem contrastante usada por Jesus — “ouvistes o que foi dito [...] eu, porém, vos digo” — significa
que suas novas leis liberam o potencial oculto das antigas leis e trazem novas demandas internas que brotam
de dentro delas, muitas vertentes discordariam disso.
78
Vickers, Justification by grace through faith, p. 159-60.
79
Conforme disse Martinho Lutero: “Se perdermos a doutrina da justificação, perderemos a doutrina
cristã por inteiro” (Martin Luther, Lectures on Galatians: chapters 1–4 [LW 26:9]). João Calvino
subscreveu a convicção de Lutero chamando a justificação de “eixo principal sobre o qual se movimenta a
religião” e instou com a igreja para que “[dedicasse] a maior atenção e cuidados possíveis a ela” (Calvin,
Institutes 3.11.1 [LCC 20:726] [edições em português: João Calvino, As institutas, tradução de Waldyr
Carvalho Luz (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), 4 vols.; e A instituição da religião cristã, tradução de
Carlos Eduardo Oliveira; José Carlos Estêvão (São Paulo: Ed. Unesp, 2008)]).
80
Por causa de sua novidade, para não falar dos inúmeros desafios suscitados por ela, a chamada “nova
perspectiva sobre Paulo” não será discutida aqui.
81
Vickers, Justification by grace through faith, p. 2; cf. p. 31. Na página 48, Vickers cita John Piper:
“Em Cristo, somos considerados como tendo feito toda a justiça que Deus exige” (ibidem, p. 48, n. 30);
citação de John Piper, The future of justification: a response to N. T. Wright (Wheaton: Crossway, 2007), p.
171.
82
CCC 1996 (grifo removido).
83
Vickers, Justification by grace through faith, p. 27.
84
Ibidem.
85
Ibidem, p. 47.
86
Para “feito” como designação de condição ou posição, ele lista Mateus 25.21,23; Lucas 12.14; Atos
6.3; Tito 1.5; Hebreus 5.1 (ibidem, p. 47, n. 28). Para “feito” como designação de um estado do ser, ele lista
Tiago 4.4; 2Pedro 1.8 (ibidem, p. 48, n. 29). Em outro lugar ele ilustra essa ideia com Fineias (Sl
106.30,31), que foi tido como justo em virtude de sua justa ação de matar um israelita e uma moabita com
ele, uma relação idólatra que havia sido rigorosamente proibida por Moisés. De acordo com o salmista, a
atitude de Fineias “lhe foi atribuída como justiça” (ibidem, p. 59).
87
Ibidem, p. 48.
88
Vickers cita José (Mt 1.19), Simeão (Lc 2.25), José de Arimateia (Lc 23.50) e Cornélio (At 10.22); ele
chama a atenção ainda para o uso que Paulo emprega nesse sentido (Rm 3.10; Cl 4.1; Tt 1.8; 2Tm 4.8)
(ibidem, p. 49).
89
Ibidem, p. 49.
90
Ibidem (grifo do original).
91
Ibidem, p. 60.
92
Ibidem, p. 135-6.
93
Ibidem, p. 76 (grifo do original).
94
Ibidem, p. 74.
95
Ibidem.
96
Ibidem, p. 153.
97
Ibidem, p. 90.
98
Martin Luther, Two kinds of righteousness (LW 31:297).
99
Ibidem (LW 31:299).
100
Ibidem (LW 31:298).
101
Luther, The freedom of a Christian (LW 31:344).
102
Ibidem (LW 31:349–350).
103
Ibidem (LW 31:365).
104
Ibidem (LW 31:363).
105
Luther, Treatise on good works 3.
106
Vickers, Justification by grace through faith, p. 152.
107
Ibidem.
108
Ibidem, p. 153.
109
Ibidem, p. 90.
110
CCC 1989; a citação é dos Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 6.ª sessão (13 de janeiro de
1547), Decreto sobre a justificação 7 (Schaff: 2:94).
111
CCC 1991.
112
CCC 1992.
113
Allison, SS, p. 358.
114
CCC 1993.
115
CCC 2008 (grifo removido).
116
CCC 2010 (grifo removido).
117
Calvin, Institutes 3.18.2 (LCC 21:822-823).
118
Vickers, Justification by grace through faith, p. 152.
119
Veja críticas anteriores no capítulo 2.
120
CCC 2035.
121
CCC 2036 (grifo removido).
122
CCC 2041-2042.
123
CCC 2043.
124
CCC 2068; a citação é do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 24.
CONCLUSÃO
MINISTÉRIO EVANGÉLICO COM
CATÓLICOS
O presente livro, Teologia e prática da Igreja Católica Romana, deteve-se na
análise evangélica da teologia e prática católicas conforme expostas no
Catechism of the Catholic Church. Ele foi concebido exclusivamente com o
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