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Teologia e prática da

IGREJA CATÓLICA ROMANA


55.10,11). A Escritura é suficiente e contém tudo o que as pessoas precisam
saber para se salvar e viver de um modo tal que agrade plenamente a Deus (Sl
19.7-11; 2Tm 3.16,17). Ela é necessária, isto é, o ser humano decaído precisa
dela para compreender o caminho da salvação, para conhecer a vontade de Deus
e adquirir sabedoria para viver em santidade (Mt 4.4; 1Pe 2.1-3). Na verdade,
sem a Escritura, a igreja não existiria ou não teria como existir. A Escritura é
clara, escrita de tal modo que o ser humano comum que possua a capacidade
adquirida normal de entender a comunicação escrita/oral possa lê-la com
entendimento, ou, se não for capaz de entendê-la, possa ouvir sua leitura e
compreendê-la (Dt 29.29). Por fim, a Escritura consiste em 66 livros — 39 dos
quais no Antigo Testamento e 27 no Novo Testamento. Esses livros constituem o
cânon bíblico, ou a lista dos livros que Deus quis incluir em sua Palavra
inspirada (soprada por Deus), verdadeira (inerrante), dotada de autoridade, eficaz
(poderosa), suficiente, necessária e clara.
De posse dessa revelação divina da Escritura, o ser humano decaído pode
conhecer e compreender o evangelho, que é obra da salvação operada por Deus
em Cristo e concretizada na vida humana. No tocante à efetivação da salvação, o
ponto central do evangelho é a morte e a ressurreição de Jesus Cristo (1Co 15.1-
4). Mediante seu sacrifício expiatório, Jesus Cristo pagou a penalidade do
pecado ao assumir o lugar do pecador; ou seja, Cristo morreu em nosso lugar,
por nós (Ef 5.2). Sua morte venceu quatro consequências terríveis do pecado
humano: ela foi expiatória, isto é, removeu o castigo da morte e da punição
eterna em razão da culpa perante Deus (Hb 10.5-18); foi propiciatória, pois
aplacou a ira impetuosa de um Deus furiosamente justo (Rm 3.23-26); foi
reconciliadora porque removeu a inimizade entre Deus e o ser humano por meio
da mediação de Cristo, restaurando a amizade entre as partes antes em conflito
(2Co 5.17-21); e foi salvadora porque libertou o ser humano escravizado ao
pecado de tal cativeiro pelo pagamento de um preço de compra ou de resgate, o
sangue de Cristo (1Pe 1.18-21). Por meio dessa reparação
expiatória/propiciatória/reconciliatória/redentora, Cristo operou a salvação do ser
humano pecador. A natureza satisfatória desse sacrifício foi confirmada quando
o Pai levantou seu Filho dos mortos, porque a ressurreição significava que Cristo
havia feito tudo o que era necessário para a salvação (Rm 1.4; 4.24,25). Além
disso, mediante sua morte e ressurreição, Jesus derrotou Satanás (Hb 2.14-18) e
triunfou sobre todas as coisas criadas (Ef 1.19-21; Cl 2.15), uma vitória cósmica
que será plenamente manifestada no final desta era, quando ele voltar em poder e
glória triunfantes.
Em relação à concretização desse plano divino de salvação, o ponto central do
evangelho é a obra graciosa de Deus independentemente de todo e qualquer
esforço ou mérito humanos. Essa aplicação multifacetada consiste nos seguintes
atos poderosos de Deus:
Eleição, ou a escolha soberana, graciosa e eterna de algumas pessoas a serem
salvas de seus pecados e que experimentarão a salvação não por alguma coisa
que sejam ou que tenham feito, mas porque Deus teve prazer nisso: salvar alguns
daqueles portadores da sua imagem do pesadelo infernal no qual todos caíram.
Essa decisão divina é inescrutável e misteriosa, pessoal, não aleatória ou volúvel,
graciosa e incondicional e independente da personalidade humana, de suas
inclinações religiosas, obras ou quaisquer outras coisas semelhantes (Ef 1.4;
2Tm 1.9). Embora se trate de escolha eterna e oculta, a eleição ganha
10

concretude por meio de uma série de atos de poder de Deus no espaço e no


tempo e, com isso, pode se conhecer a escolha divina (1Ts 1.4,5).
A convicção do pecado é obra realizada pelo poder do Espírito Santo (Jo 16.8-
11), que convence os descrentes do seu pecado (especificamente, de sua
descrença em Jesus), da sua autojustificação (de suas tentativas inúteis de
agradar a Deus e merecer a salvação pela prática de boas obras, frequência à
igreja e assim por diante, sem necessitar da graça divina) e de seu julgamento
falho (que avalia as pessoas pela mera aparência e por padrões mundanos). Essa
obra de convencimento do Espírito expõe os descrentes e sua culpa perante
Deus, deixando clara sua necessidade de salvação.
O chamado eficaz é o ato de poder por meio do qual Deus atrai para si seu
povo, um chamado que certamente resultará em seu abraço de salvação (Rm
8.29,30). Não é uma convocação coercitiva, mas é segura, e vem pela
comunicação da mensagem do evangelho (2Ts 2.13,14).
A regeneração é o ato de poder por meio do qual o Espírito Santo faz as
pessoas, mortas em seu pecado, nascerem de novo (Jo 3.1-8; Tt 3.5). Onde antes
não havia nada, senão indiferença pelas coisas de Deus, agora há nova vida
espiritual; as pessoas são novas criaturas (2Co 5.17), transformadas em seu ser, e
assim feitas filhos e filhas de Deus (Jo 1.12).
11

A justificação é o ato de poder por meio do qual Deus declara que o pecador
não é culpado, justificando-o, perdoando seus pecados e atribuindo a ele a justiça
de Cristo. A justificação está alicerçada na graça de Deus alcançada por meio da
morte expiatória de Cristo mediante a qual Deus, em sua justiça, proclama que a
penalidade pelo pecado foi paga e, portanto, o pecador não é culpado (Rm 3.25).
Em vista da exigência divina de retidão perfeita, a perfeita retidão de Jesus
Cristo, conquistada por sua obediência na vida e na morte, é atribuída ao
pecador. Esse ato declaratório não se baseia em qualquer bondade inerente ou
justiça pessoal alcançada pelos seres humanos decaídos (Rm 3.19-22) e não os
torna efetivamente justos; pelo contrário, a justiça de Jesus Cristo é apropriada
pela fé (Gl 2.15,16), e o pecador é justificado completamente, de tal modo que
jamais terá de enfrentar a condenação divina (Rm 8.1).
A adoção é a obra de poder por meio da qual Deus leva o pecador à sua
família e o acolhe como filho (Ef 1.5).
A união com Cristo é o ato de poder multifacetado do qual fazem parte os
crentes que estão em Cristo (Rm 6.1-11), ou que se identificam com sua morte,
ressurreição e ascensão; estando Cristo em seus seguidores (Gl 2.20); e sendo
todos os crentes um em Cristo (Jo 17.21-23).
Todos esses atos de poder de Deus — eleição, convicção do pecado, chamado
eficaz, regeneração, justificação, adoção e união com Cristo — se concretizam
no início da obra graciosa de salvação de Deus. A resposta humana a essa ação
multifacetada é a conversão, que implica ouvir e compreender a mensagem do
evangelho, arrependimento do pecado (dar-lhe as costas, renunciar a ele,
comprometendo-se a não viver mais em pecado; Lc 24.46,47; At 17.30) e fé
(crer que Cristo morreu pelos seus pecados, confiar em sua obra de salvação e
abandonar todo esforço humano, confiando em Cristo e em Cristo somente; Ef
2.8,9; Rm 10.9). Arrependimento e fé não são obras humanas, tampouco
respostas meramente humanas. Como virtudes evangélicas, estão atreladas ao
evangelho e são, portanto, inspiradas pela graça (At 18.27) e motivadas pelos
mensageiros do evangelho (1Co 3.5; 2Co 5.17-21). Contudo, constituem a
resposta humana adequada e necessária ao evangelho. De fato, sem
arrependimento e fé genuínos, não pode haver salvação.
A salvação, entretanto, é muito mais do que assunto individual, porque as
obras poderosas de Deus que resgatam o ser humano decaído também conduzem
os redimidos à igreja. O ato de poder específico nesse caso é o batismo com o
Espírito: Jesus batiza (Jo 1.33) os novos crentes com o Espírito Santo (Lc 3.15-
17), acolhendo-os em seu corpo, a igreja (1Co 12.13). O cristão está unido à
igreja universal e à igreja local.
12

A igreja universal é a junção dos crentes falecidos, atualmente no céu, com os


crentes vivos do mundo todo. Essa igreja universal (pelo menos seus membros
vivos) é manifestada (por Cristo, sua cabeça, e pelo Espírito) e se manifesta a si
mesma (mediante a associação dos cristãos uns com os outros) nas igrejas locais.
Essas comunidades são lideradas por pastores, ou presbíteros, preparados e
publicamente reconhecidos, responsáveis pelo ensino da sã doutrina (1Tm 3.2;
5.17; Tt 1.9), pelo governo [da igreja] (1Tm 3.4,5), pela oração (especialmente
pelos enfermos; Tg 5.13-18) e pelo pastoreio (proteção do rebanho e uma
liderança cujo estilo de vida deve ser exemplar; 1Pe 5.2,3). Essas assembleias
também são servidas por diáconos (1Tm 3.8-13), membros preparados e
publicamente reconhecidos que servem a Jesus Cristo nos inúmeros ministérios
da igreja. As igrejas locais se reúnem regularmente para adorar a Deus,
proclamam sua Palavra por meio da leitura e da pregação da Escritura, celebram
as ordenanças do batismo e da ceia do Senhor, comunicam o evangelho a não
cristãos, exercem dons espirituais, discipulam seus membros, ministram às
pessoas por intermédio de orações e auxílio financeiro, praticam a disciplina da
igreja e se colocam a favor e contra o mundo, ajudando os pobres e os
marginalizados por meio de ministérios holísticos. As igrejas locais também são
fortemente interligadas e cooperam umas com as outras na realização de
ministérios de alto impacto em suas cidades.
Duas outras obras de poder de Deus acompanham esses atos e prosseguem
pelo resto da vida. A santificação é a obra colaborativa de Deus e do cristão (Fp
2.12,13) pela transformação contínua na semelhança cada vez maior com Cristo,
particularmente por meio da obra do Espírito Santo (2Co 3.18; Gl 5.16-23).
Diferentemente de outras obras divinas que são monergistas (operadas por “um”
[gr., mono] que “trabalha” [gr., ergon], i. e., Deus somente), a santificação é um
processo sinergístico (“trabalhando [gr., ergon] juntos [gr., sun]”) em que Deus
trabalha por meios próprios de sua atividade divina (e.g., convencimento do
pecado, revestimento de poder pelo Espírito, disposição e esforço para realizar o
que lhe apraz) e os cristãos trabalham em conformidade com sua atividade
humana (e.g., lendo a Escritura, orando, mortificando o pecado, entregando-se
ao Espírito).
A perseverança é o ato de poder por meio do qual Deus protege
poderosamente o cristão mediante o exercício contínuo da fé para levá-lo em
segurança à posse da plenitude da sua salvação no retorno de Cristo (1Pe 1.5).
Como o poder de preservação de Deus é fundacional nesse processo; como a fé
salvadora, por definição, persevera plenamente a vida toda (1Jo 2.18,19); e como
a Escritura está repleta de afirmações e de promessas da vontade resoluta de
Deus de salvar completamente todos aqueles em quem ele iniciou sua obra
redentora (e.g., Rm 8.28-35; Fp 1.6), o cristão desfruta do privilégio da
segurança de sua salvação. 13

No decorrer da jornada do cristão pela vida, ele espera por vários outros atos
de poder de Deus tanto no plano pessoal quanto no cósmico. Pessoalmente, à
medida que envelhece, sofre, adoece e se aproxima inexoravelmente da morte,
ele antevê com alegria, e sem sucumbir ao medo, sua chegada ao lar. A chegada
ao lar é o ato de poder de Deus no final da vida pelo qual o cristão se desprende
do corpo e vai viver com o Senhor. Ele passa imediatamente desta vida terrena
para a presença de Deus, apesar de estar sem corpo (2Co 5.1-10).
Consequentemente, ele espera ansiosamente pelo próximo ato de poder de Deus,
sua glorificação, que é o término da sua salvação quando Cristo retornar (Fp
3.20,21). A glorificação se caracteriza pela ressurreição do corpo; o cristão sem
corpo recebe seu corpo glorificado — imperecível, glorioso, poderoso e
totalmente dominado pelo Espírito Santo (1Co 15.42-44).
Cosmicamente, a consumação da presente era começará com o retorno de
Jesus Cristo. Ao descer do céu, acompanhado de seu povo fiel, o Rei dos reis e
Senhor dos senhores esmagará seus inimigos e se manifestará como o
Governante supremo (Ap 19). Dependendo da sua escatologia (visão do futuro),
o cristão acredita que o Governante supremo reinará por mil anos — durante o
milênio (Ap 20.1-6) — na terra antes de inaugurar o novo céu e a nova terra, ou
que imediatamente depois do seu retorno triunfante ele estabelecerá o novo céu e
a nova terra. Na esteira desses eventos cósmicos virão outros atos de poder de
Deus: o juízo final (At 17.30,31), em que Deus avaliará as obras de todos (2Co
5.10) e manifestará sua justiça recompensadora, premiando as boas obras, ou sua
justiça retributiva, condenando as más obras, o que culminará com o castigo
eterno dos ímpios (Mt 25.46). O último ato de poder de Deus consistirá na
remoção do céu e da terra como hoje existem e de tudo o que eles contêm (2Pe
3.10), dando lugar a um novo céu e uma nova terra (Ap 21 e 22) em que não
haverá mais pecado, sofrimento, doenças e morte. Os seres humanos redimidos,
plenamente renovados à imagem de Deus, habitarão ali para sempre, adorando o
Senhor.

A teologia católica como um sistema coerente e


abrangente
Será com base na Escritura e na teologia evangélica, conforme exposta
anteriormente, que se fará a avaliação da teologia e prática católicas. Tal
avaliação do catolicismo pela teologia evangélica não é inédita, contudo a
estratégia usada aqui será única por duas razões. Em primeiro lugar, a estrutura a
ser seguida consistirá em percorrer a teologia sistemática católica conforme
articulada no Catechism of the Catholic Church. Pelo que sei, a teologia
14

evangélica jamais se propôs a avaliar a teologia e prática católicas desse modo.


Em segundo lugar, a maior parte das avaliações evangélicas já feitas se
concentrou quase exclusivamente em comparar os pontos de acordo e de
discordância entre as duas posições de modo isolado e desconectado — uma
abordagem fragmentada que resultou na descrição e na crítica das crenças
católicas da transubstanciação, do purgatório, da imaculada concepção de Maria
e da sucessão apostólica como coisas à parte e sem ligação umas com as outras.
Embora tal estratégia se justifique e seja de fato necessária, é incompleta porque
não compreende a natureza sistêmica da fé católica. Por conseguinte, a avaliação
que faremos será diferente, no sentido de que tratará a teologia católica como um
sistema coerente e abrangente e a avaliará tomando por base esse ponto de
partida. Portanto, o restante desse capítulo se ocupará da teologia católica como
um sistema coerente e abrangente. Em seguida, ele se deterá nos dois axiomas
sobre os quais o sistema doutrinário católico está erigido (a interdependência
natureza-graça e a interconexão Cristo-Igreja), avaliando, cada um por vez, esses
princípios fundamentais. O restante do livro percorrerá o Catechism propondo
concordâncias e expressando diferenças a cada tópico, procurando ao mesmo
tempo associar as discordâncias evangélicas à crítica evangélica do sistema
doutrinário católico baseado em seus dois axiomas.
Essa estratégia sistêmica, necessária porque a teologia católica é um sistema
coerente e abrangente, deve muito à convicção original e perspicaz de Leonard
De Chirico. Sua dissertação de doutorado modificada intitulada Evangelical
theological perspectives on post-Vatican II roman Catholicism [Perspectivas
teológicas evangélicas sobre o catolicismo romano pós-Vaticano II] avalia vários
teólogos evangélicos e diálogos evangélico-católicos e ressalta que suas
avaliações do catolicismo padecem de um enfoque exclusivamente ou quase
exclusivamente atomístico do catolicismo — uma avaliação de doutrinas e
15

práticas individuais entendidas como questões distintas. Para ele, as vantagens


de uma estratégia sistêmica consistem no seguinte: (1) tal sistema permite uma
avaliação evangélica da teologia católica que vê essa última como “um padrão
estável, embora dinâmico, que permite ao sistema agrupar diferentes elementos e
outras orientações teológicas [como a teologia evangélica] consideradas
incompatíveis”; e (2) ele prepara a avaliação evangélica para que “trate [a
16

teologia católica] como catolicismo romano, isto é, uma religião que desfruta, ou
diz desfrutar, de amplitude e visão católicas, além de especificidade institucional
e histórica”.
17

Analisada do ponto de vista sistêmico, o pressuposto é que a teologia católica


consiste em uma “unidade complexa que tem efetivamente um núcleo central, e
a vasta fenomenologia [manifestações concretas] por ela expressa pode ser
genuinamente compreendida sob a perspectiva desse elemento central”. De 18

Chirico demonstra de forma convincente que o catolicismo como sistema é


unificado, mas não uniforme; na verdade, como ele mesmo salienta, dentro da
unidade sistêmica da teologia católica prospera um grau fantástico de
diversidade. Por causa de sua unidade e diversidade, o catolicismo é um sistema
dinâmico capaz de assimilar novas ideias, de se tornar mais complexo, preservar
a tensão entre elementos díspares e de se desenvolver de forma significativa sem
alterar sua identidade unificada básica. Além disso, o catolicismo tem uma
natureza global e abrangente: ele é impulsionado por seu projeto de ampliação
de sua catolicidade ou universalidade, por isso busca interagir, influenciar e
acolher a realidade toda. Juntando esses dois elementos de unidade e de
universalidade, De Chirico explica que “para o catolicismo romano, a
catolicidade é um termo impregnado de nuanças associado simultaneamente à
unidade e à totalidade das quais a igreja já desfruta e é chamada a ampliar. A
premissa básica é que a realidade toda, que já é essencialmente uma, embora tal
unidade protológica [imbuída de propósito pela divindade] esteja arruinada pelo
pecado, seja levada à unidade católica”. Nesse momento, a firme convicção de
19

que “a unidade católica pode ser alcançada, deve ser alcançada e, no fim das
contas, será alcançada por obra do sistema” assume o controle e se torna o
objetivo do sistema, com a chave dessa unidade — a Igreja Católica — em seu
centro.
20

Outro elemento essencial desse sistema católico é sua epistemologia, ou


método do conhecimento. A teologia católica se caracteriza pela integração de
elementos divergentes: sua estratégia é do tipo “e-e” [includente], a não “ou-ou”
[excludente]. Esse princípio de integração torna difícil para a teologia
21

evangélica compreender o sistema católico, porque o evangelicalismo está


edificado sobre os cinco solas (“somente”) do protestantismo: sola Scriptura (a
Escritura somente), e não a Escritura e a Tradição, como no catolicismo; sola
gratia (a graça somente), e não a graça e a cooperação humana, como na
teologia católica; solus Christus (Cristo somente), e não Cristo e a igreja, como
no sistema católico; sola fide (a fé somente), e não a fé e as boas obras/amor
para merecimento da vida eterna; e soli Deo gloria (glória somente a Deus), e
não glória a Deus e honra especial, por exemplo, a Maria. Ao mesmo tempo,
essa abertura à integração não é uma estratégia indisciplinada ou anárquica,
porque o sistema católico filtra e controla o que pode entrar no sistema e
assimila elementos novos e díspares aos seus fundamentos tradicionais.
Contudo, qualquer avaliação evangélica adequada do catolicismo como sistema
coerente e abrangente deve estar ciente desse elemento epistemológico
integrador e dar a ele especial atenção.
Além disso, a catolicidade do sistema católico “nunca é um conceito abstrato
ou imaginário; antes, está sempre entremeado por estruturas visíveis, materiais,
imanentes, organizadas, sociais, jurídicas e históricas”. Na verdade, tal
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catolicidade concreta se manifesta na Igreja Católica e somente nela, que é uma


realidade visível, material e concreta. O fundamento dessa ideia é o “princípio
encarnacional” — “a graça deve estar corporificada de forma tangível” —, que é
o padrão normativo para a maneira de Deus manifestar sua graça neste mundo. 23

O protótipo desse princípio é a encarnação do Filho de Deus como o Deus-


homem Jesus Cristo: Deus manifesta sua graça de uma forma tangível,
encarnada, nesse caso por meio do Filho, que assume a natureza humana.
Contudo, esse princípio também entra em ação no conceito da teologia da Igreja
Católica como a encarnação — a manifestação tangível, visível, social e
concreta — da graça de Deus.
Esses últimos dois exemplos — o princípio da integração da teologia católica,
unindo a Escritura mais a Tradição, graça mais esforço humano, fé mais boas
obras etc.; e o princípio da encarnação da teologia católica, que se manifesta na
perspectiva da Igreja Católica como meio de graça — enfatizam esta ideia: a
teologia católica é um sistema coerente e abrangente. Por conseguinte, para
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fazer uma avaliação apropriada dessa teologia, a teologia evangélica deve se


aproximar dela como um sistema e submeter à avaliação não apenas seus tópicos
específicos e cruciais — transubstanciação, purgatório, Maria — como itens
autônomos, separados, mas também todo o sistema. Conforme argumenta De
Chirico, “é preciso, em vez [de um enfoque exclusivamente atomístico de
avaliação da teologia católica], apropriar-se de uma visão efetivamente sistêmica
para a análise de cada um dos temas, sejam eles fundacionais ou periféricos, mas
sempre como expressão do sistema todo [...]. Cada uma das partes do sistema
está, de algum modo, diretamente conectada à teologia do sistema, ou dele
depende operacionalmente, à medida que a tentativa de compreender o centro
abre caminho para um entendimento do todo”. Assim, o objetivo dessa
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avaliação evangélica é transpor essa estrutura sistêmica para a teologia católica


e, ao lidar com “a estrutura, ao mesmo tempo que se procura fazer justiça aos
detalhes”, oferecer uma apreciação sólida do catolicismo. 26

Contudo, podemos e devemos falar mais sobre os elementos principais da


teologia católica como sistema coerente e abrangente. De Chirico identifica dois
axiomas no sistema católico: o continuum natureza-graça (o que chamarei de
interdependência natureza-graça) e a Igreja Católica como encarnação
ininterrupta do Cristo que subiu ao céu (o que chamarei de interconexão Cristo-
Igreja). Cada um desses dois pilares será discutido e analisado individualmente.
27

A interdependência natureza-graça
De Chirico define dois conceitos principais da natureza e graça: “No vocabulário
cristão, a natureza é considerada o equivalente ao mundo criado em sua
totalidade, que é tanto resultado da atividade criadora de Deus quanto recipiente
de seus propósitos salvíficos. No que diz respeito a esse último, as interações de
Deus com o mundo (i. e., com a natureza) foram entendidas teologicamente sob
o aspecto da ‘graça’. Graça é o que Deus faz em relação ao mundo, tanto no que
se refere à providência quanto à redenção”. Em outras palavras, a natureza,
28

como produto da atividade criadora de Deus, corresponde à totalidade da ordem


criada e inclui a realidade inorgânica (os mares, as montanhas), o mundo das
plantas, o reino animal, anjos e demônios, seres humanos, água, petróleo, pão e
vinho etc. A graça, num sentido bem abrangente, é a atividade providencial de
Deus para que a natureza criada continue a existir direcionando-a para seu fim
divinamente designado; é também sua atividade redentora cujo propósito é
resgatar a ordem criada da queda que sofreu por causa do pecado.
Sem intenção de achatar os diversos modelos de relacionamento entre
natureza e graça, conforme elaborados por diferentes teólogos e movimentos
católicos no âmbito do sistema teológico católico, é possível estabelecer uma
29

ampla caracterização desse relacionamento: natureza e graça são


interdependentes porque existem em um continuum ou continuidade. As duas
foram divinamente projetadas para operar em mútua dependência, de tal modo
que a natureza seja um canal de graça, e a graça eleve ou aperfeiçoe a natureza.30

Para dar um exemplo simples, a água (no reino da natureza) pode receber e se
tornar um canal de graça quando, consagrada pela Igreja Católica, é usada para o
sacramento do batismo, que confere graça aos que o recebem. De fato, George
Weigel afirma que “é por intermédio do material comum da vida — o material
dos sete sacramentos, tal como o pão, o vinho, o óleo e a água — que a graça
extraordinária de Deus entra na história, alimenta os amigos de Jesus e lhes dá
poder em seu discipulado missionário”. 31

Prosseguindo com sua descrição de natureza e graça, De Chirico explica que


“há uma ligação constitutiva e irreversível entre as duas que o pecado, quaisquer
que sejam suas consequências, não rompeu e não pode romper”. Em outros
32

termos, na queda de Adão e Eva, uma das consequências daquele trágico evento
foi o abalo dessa interdependência original natureza-graça. É importante
destacar, entretanto, que, embora desfigurada pelo pecado, a natureza maculada
ainda é capaz de receber e transmitir a graça e cooperar com ela. O sistema
teológico católico tem dois polos, natureza e graça, e situa o pecado (levado a
sério por esse sistema) na esfera da natureza, relativizando desse modo os efeitos
negativos do pecado sobre a natureza:
elementos proporcionam a revelação divina e sua interpretação oficial para a
igreja.
A Sagrada Escritura (artigo 3)
Com relação ao primeiro desses três elementos, a Escritura, o Catechism afirma
sua importância, sua inspiração divina e sua verdade; ele dá instruções para a
interpretação da Bíblia; discute seu cânon e incentiva sua leitura na igreja.
Com relação à importância da Escritura, o Catechism faz a íntima ligação da
Escritura com o corpo de Cristo, a Eucaristia, e requer igual veneração de ambos
para sua prática histórica. A Escritura é inspirada porque Deus é seu autor.
24

Contudo, essa supervisão divina da redação da Escritura não minimiza, diminui


ou destrói a redação humana da Escritura, uma vez que os autores bíblicos
empregaram plenamente sua personalidade e sua capacidade para a escrita.
Como a Escritura é inspirada, ela também é confiável: “Uma vez, portanto, que
tudo aquilo que os autores inspirados ou escritores sacros afirmam deve ser
recebido como afirmação do Espírito Santo, devemos reconhecer que os livros
da Escritura ensinam firmemente, fielmente e sem erro a verdade que Deus, por
causa da nossa salvação, quis ver confiada às Sagradas Escrituras”. 25

O mesmo Espírito Santo que inspirou a Escritura deve iluminar a mente de


seus leitores para que a compreendam à medida que obedecem atentamente a
seus princípios de interpretação. Fazem parte desses princípios a atenção dada ao
objetivo do autor/autores de suas palavras, seu contexto histórico, o gênero que
usaram (e. g., gênero narrativo, profético, poético), a gramática e a sintaxe. Esses
critérios de interpretação adequada da Escritura em harmonia com o Espírito
Santo dão atenção especial “ao contexto e à unidade de toda a Escritura”, lendo-
a “dentro da Tradição viva da igreja toda”, e com consideração “pela analogia da
fé” (enfatizando a coerência das verdades em toda a revelação divina). Mediante
o processo interpretativo, deve-se buscar o quádruplo sentido da Escritura. Os
dois sentidos da Escritura, que se tornam seu significado quádruplo, são:

o sentido literal: o significado das palavras da Escritura que se descobre


pela aplicação de princípios interpretativos saudáveis;
o sentido espiritual: o significado não das palavras da Escritura, mas das
coisas — as realidades, os acontecimentos, as instituições — a respeito das
quais a Escritura fala; esse sentido pode ser:
o sentido alegórico: o significado cristológico; por exemplo, a
travessia do mar Vermelho como sinal do batismo;
o sentido moral: o significado comportamental; por exemplo, como
viver de acordo com a justiça;
o sentido anagógico: o significado futuro ou a importância eterna; por
exemplo, a igreja na terra aponta para a Jerusalém celestial.
26

É claro que todas as interpretações da Escritura devem se conformar ao


julgamento oficial do Magistério.
A Igreja Católica afirma o cânon da Escritura, ou seja, a lista dos escritos que
devem pertencer à Bíblia conforme sua tradição apostólica; portanto, o Antigo
Testamento católico contém sete escritos a mais (e várias seções adicionais em
dois livros) em comparação com o Antigo Testamento protestante. Os sete
escritos adicionais são: Tobias, Judite, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico 27

(também chamado de Sirácida), Baruque e 1Macabeus e 2Macabeus. As seções


adicionais são encontradas nos livros de Ester (seis capítulos adicionais) e
Daniel (três capítulos adicionais). Esses escritos e seções adicionais constituem
os Apócrifos, um termo que significa “escondido”. O cânon do Novo Testamento
da Igreja Católica é exatamente o mesmo das igrejas protestantes. O Catechism
enfatiza a necessidade tanto do Antigo quanto do Novo Testamentos. O Antigo,
como preparação para Cristo, deve ser lido à luz do que Cristo fez para realizar a
salvação; e o Novo, como realidade máxima da revelação divina, deve ser lido
como cumprimento do Antigo.
Em vista de tudo o que é afirmado a respeito da Escritura, não deveria ser
motivo algum de surpresa que o Catechism encoraje a leitura da Bíblia. A igreja
deve incentivar a prática regular da leitura e do estudo da Escritura garantindo o
rápido acesso a ela, incentivando o ministério da Palavra em sua pregação e
catequese e exortando os católicos com as palavras de Jerônimo: “A ignorância
das Escrituras é ignorância de Cristo”.28

Avaliação evangélica
Revelação divina
A teologia evangélica está de acordo com alguns elementos da doutrina da
revelação do Catechism, a começar com sua afirmação da insuficiência da
revelação geral para estabelecer e desenvolver uma relação pessoal com Deus e a
consequente necessidade da revelação divina (revelação especial, no jargão
evangélico) para que haja tal relacionamento. Há outros acordos no que se refere
à liberdade de Deus de se revelar, ou não, e de comunicar seus caminhos ao ser
humano decaído por amor à sua salvação. A revelação especial é um dom da
graça divina e com uma implicação muito importante que a teologia evangélica
enfatizará no devido tempo: a posição da igreja no tocante à revelação divina
deve ser a de receptora, e não sua doadora ou determinadora. Além disso, a
teologia evangélica concorda em princípio com a afirmação do Catechism a
respeito de ações e obras divinas em operação conjunta para a revelação de Deus
e de seus caminhos. O episódio da travessia do mar Vermelho, por exemplo, foi
uma revelação do poder da fidelidade de Deus; o texto de Moisés narrando esse
acontecimento (Êx 14) também é revelação divina. Certamente, esse ato de
poder de Deus estava acessível a todos os que cruzaram em terra seca as
muralhas de água, bem como a outros a quem a história foi contada e recontada
oralmente; mais tarde, a narrativa foi escrita sob a forma de texto. É importante,
porém, que a igreja conheça esse ato de poder e se beneficie dele somente por
meio do texto escrito. Toda e qualquer narrativa oral que tenha sobrevivido sem
dúvida conteria inúmeras e sérias distorções e não daria nenhuma autoridade à
igreja hoje. De fato, a autoridade é conferida exclusivamente ao registro escrito
do Êxodo conforme narrado por Moisés em Êxodo 14, uma vez que essa é a
narrativa inspirada pelo Espírito Santo.
Além disso, há concordância sobre a questão da natureza progressiva da
revelação divina: Deus se revelou efetivamente a Adão e Eva antes da Queda
(e.g., Gn 2.15-17) e, depois que caíram, por meio de uma comunicação direta
(e.g., 3.8-13). Essa revelação prosseguiu por meio de uma fala divina mais direta
(e.g., 12.1-3), sonhos e visões (e.g., o sonho de Abimeleque, 20.1-7; os sonhos
de José, 37.1-11), acontecimentos históricos (e.g., o dilúvio; Gn 6—9), e a
Escritura em registro escrito (e.g., Dt 31.9). Essa comunicação incessante
também foi progressiva. Por exemplo, Deus ensinou seu povo a adorá-lo no
Tabernáculo (e.g., Êx 40); mais tarde, ele lhe deu instruções para adorá-lo no
Templo (e.g., 2Cr 5). Pode se ver também claramente essa revelação progressiva
na profusão de alianças que Deus estabeleceu com seus parceiros humanos: as
alianças com Adão, Noé, Abraão, Moisés (ou antiga aliança) e a que fez com
Davi estavam em operação antes da vinda de Jesus Cristo. Foi profetizada então
uma nova aliança (e.g., Jr 31.31-34; Ez 36.25-27) que, por fim, tornou-se a
relação estruturada entre Deus e os membros da igreja. Essa nova aliança
convergiria em direção ao ápice da revelação divina tanto em ações quanto em
palavras: Jesus Cristo. Suas obras miraculosas foram o apogeu de muitos atos
poderosos de Deus feitos anteriormente, e suas palavras marcaram o auge do
discurso divino — a realização de tudo o que fora ordenado e profetizado (e.g.,
Mt 5.17-19) e o fundamento de tudo o que seria exigido e praticado
posteriormente (e.g., 1Co 11.23). Conforme prometido, Jesus Cristo é a Palavra
final de Deus (Hb 1.1,2), portanto não se deve esperar ou acolher nenhuma nova
revelação até a sua segunda vinda.
A transmissão da revelação divina/Sola Scriptura
Com relação à transmissão da revelação divina, há um grande distanciamento
entre a teologia católica e a evangélica. Enquanto a teologia católica afirma um
duplo padrão de comunicação da revelação divina (tradição oral e o texto da
Escritura), a teologia evangélica segue o princípio fundacional (chamado
princípio formal) do protestantismo: a fonte por excelência da revelação divina é
a Palavra de Deus escrita (sola Scriptura), e não a Escritura mais a Tradição.
Há diversas razões importantes para a rejeição, por parte da teologia
evangélica, da Tradição como modo distinto de revelação divina, não importa
quanto o Catechism insista na “mesma fonte divina” de Tradição e Escritura, no
elo próximo e na mútua comunicação entre os dois — até mesmo sua
singularidade em essência e objetivo. Uma razão para isso é a ideia da Tradição
29

como suplemento ao texto da Escritura, o que não conta com um bom respaldo
bíblico. A teologia católica busca esse apoio para sua Tradição nas palavras de
Jesus aos seus discípulos: “Ainda tenho muito que vos dizer; mas não podeis
suportá-lo agora” (Jo 16.12). Calvino contestou a (má) interpretação dessa
passagem:
Mas que afronta é essa? Admito que os discípulos ainda eram ignorantes e que era praticamente
impossível instruí-los quando ouviram isso do Senhor. No entanto, quando registraram por escrito
sua doutrina, será que estavam acossados por tal estupidez que precisavam, posteriormente,
completar com viva voz [Tradição] o que haviam omitido dos seus escritos em virtude do erro da
ignorância? Ora, se já haviam sido guiados a toda a verdade pelo Espírito da verdade [Jo 16.13, o
versículo imediatamente seguinte], o que os teria impedido de abraçar e de deixar registrado por
escrito o conhecimento perfeito e específico da doutrina evangélica?30

A crítica de Calvino expõe o equívoco católico do lamento de Jesus a seus


discípulos na época em que o expressou: dado o seu lugar no progresso da
história da salvação — antes da morte, do sepultamento, da ressurreição, da
ascensão de Jesus Cristo e do envio do Espírito Santo por ele —, os discípulos
não puderam compreender tudo o que Jesus queria lhes comunicar. Contudo, do
outro lado desses acontecimentos por meio dos quais se deu a salvação e a
inauguração da igreja, os discípulos tinham, de fato, o Espírito Santo, que os
guiou a toda verdade (Jo 16.13) e lhes ensinou todas as coisas, trazendo à sua
memória tudo o que Jesus havia dito a eles (Jo 14.26). Em outras palavras, o
obstáculo que antes impedia os discípulos de receber a plena revelação de Jesus
— e que foi motivo de lamento dele — fora removido. Nada impedia que eles
escrevessem por inteiro a revelação divina nos Evangelhos, na narrativa da igreja
primitiva (Atos), nas cartas (de Paulo, Tiago, Pedro, João e Judas) e no escrito
apocalíptico (Apocalipse). Os discípulos não tinham necessidade de nenhum
corpo complementar de comunicação oral — Tradição — que não teriam podido
registrar em seus escritos em razão de seu (anterior) estado de ignorância.
Uma segunda razão para a rejeição da Tradição pela teologia evangélica se
deve à demora por que passou o desenvolvimento de tal conceito. Em defesa da
inclusão da Tradição como parte da revelação divina, a teologia católica apela à
difusão da teologia e prática da igreja mediante a palavra falada e da letra escrita
nos primeiros séculos de sua existência (2Ts 2.15; cf. Jd 3). Tal comunicação
dupla foi certamente uma maneira de transmitir o evangelho e a sã doutrina na
igreja primitiva, mas não há indício algum de que consistisse em dois conjuntos
cujo conteúdo revelado fosse distinto — um conjunto que complementava o
outro. Por fim, a verdade original que havia sido necessariamente comunicada
oralmente foi registrada por escrito e se tornou o Novo Testamento. Conforme
explicou Ireneu, líder da igreja primitiva e defensor da fé cristã, no tocante aos
apóstolos e ao texto da Escritura:
Não foi de outros que aprendemos o plano da nossa salvação, mas daqueles por meio dos quais o
evangelho chegou até nós, e que eles, decisivamente, em dada época, proclamaram em público, e,
num período posterior, pela vontade de Deus, nos transmitiram por meio das Escrituras. Esse plano
de salvação, portanto, é fundamento e coluna da nossa fé. Assim, não é certo dizer que pregaram
antes de ter conhecimento perfeito, conforme alguns ousam dizer, vangloriando-se de ser
aperfeiçoadores dos apóstolos. Por conseguinte, depois que nosso Senhor se levantou dos mortos, [os
apóstolos] foram revestidos de poder do alto quando o Espírito Santo desceu [sobre eles], enchendo-
os [com seus dons], dando-lhes conhecimento perfeito: eles partiram para os confins da terra,
pregaram as boas-novas das coisas boas [enviadas] por Deus a nós.31

Os comentários de Ireneu são muito semelhantes à censura de Calvino à ideia da


teologia católica de Tradição baseada em João 16.12: o “conhecimento perfeito”
dos discípulos decorrente de um dom do Espírito Santo e espalhado
originalmente de modo amplo como comunicação oral foi por fim registrado por
escrito e se tornou a Escritura do Novo Testamento. Contudo, Ireneu não dá pista
alguma de que essa comunicação oral e sua forma em texto escrito da Escritura
fosse diferente no tocante ao seu conteúdo em que um complementaria o outro.
Mas Ireneu abraçou também e promoveu um conceito genuíno de tradição da
igreja. Quando a igreja primitiva denunciou as heresias expondo sua contradição
com a Escritura, os promotores da falsa doutrina acusaram a Escritura de
incorrer em erro, de falta de autoridade e de uma ambiguidade que só poderia ser
esclarecida por meio da tradição dos hereges. De fato, esses hereges diziam que
“a verdade não fora dada por meio de um documento escrito, mas vivâ voce, de
viva voz”. A reação da igreja primitiva foi insistir em uma tradição específica
32

que teve origem com os apóstolos e que foi preservada por meio da sucessão de
líderes das igrejas apostólicas. Os hereges deram sua resposta: a tradição da
igreja estava errada porque teve origem nos líderes da igreja, nos apóstolos e, em
última análise, no próprio Jesus Cristo, todos eles inferiores em conhecimento e
verdade se comparados aos hereges, os únicos que detinham o mistério oculto e
não adulterado. Ireneu resumiu o problema com os hereges: “Esses homens não
toleram nem a Escritura nem a tradição”. Por conseguinte, para Ireneu, a
33

tradição da igreja é a doutrina apostólica, que dispõe sobre o entendimento


adequado da Escritura. Tal doutrina está preservada nas igrejas apostólicas. 34

Contudo, ele não propôs uma tradição eclesiástica que fosse a “viva voz”
contendo a verdade que não estava igualmente registrada na Escritura. Se essa
tivesse sido a tática, seu argumento seria o mesmo dos hereges, o que resultaria
num empate.
Essa tradição propriamente dita — a doutrina apostólica em conformidade
com a Escritura e que proporcionou a estrutura correta para a interpretação da
Escritura — foi expressa pelo próprio Ireneu:
A igreja, embora dispersa pelo mundo todo até os confins da terra, recebeu dos apóstolos e de seus
discípulos esta fé: ela crê em um único Deus, o Pai todo-poderoso, Criador do céu, da terra e do mar,
e de todas as coisas que neles há; e em Jesus Cristo, o Filho de Deus, que se encarnou para nos
salvar; e no Espírito Santo, que proclamou pelos profetas as dispensações de Deus, e os adventos, e o
nascimento de uma virgem, a paixão e a ressurreição dos mortos, e a ascensão ao céu na carne do
amado Jesus Cristo, nosso Senhor, e sua [futura] manifestação do céu na glória do Pai “[para]
convergir todas as coisas em um” [Ef 1.10] e levantar de novo toda carne da raça humana inteira,
para que diante de Jesus Cristo, nosso Senhor, Deus, Salvador e Rei, conforme a vontade do Pai
invisível, “se dobre todo joelho, das coisas no céu, e das coisas na terra, e debaixo da terra, e toda
língua o confesse” [Fp 2.10,11], e para que ele execute o justo juízo para com todos; para que mande
os “malvados espirituais” [Ef 6.12] e os anjos que transgrediram e apostataram, juntamente com os
ímpios, os que não praticam a justiça, os perversos e os profanos entre os homens para o fogo eterno;
mas possa, no exercício da sua graça, conferir imortalidade aos justos, aos santos, e aos que
guardaram seus mandamentos e perseveraram em seu amor, alguns desde o princípio [de sua
trajetória cristã], e outros desde o dia do seu arrependimento, cercando-os de eterna glória.35

A tradição de Ireneu, chamada de cânon da verdade, era um esboço ou sumário


36

de doutrinas bíblicas fundamentais. Essas verdades não eram um acréscimo à


Escritura; na verdade, elas buscavam sua fonte e garantia na Escritura, conforme
afirmou Ireneu em sua justificação das doutrinas dos apóstolos: “Contudo,
enquanto apresento por meio dessas provas as verdades da Escritura, e exponho
brevemente, de forma resumida, coisas que se acham declaradas de várias
maneiras, vocês também se ocupam delas com paciência, e não as consideram
prolixas [verborrágicas]; levando isto em consideração, que as provas [das coisas
que se acham] contidas nas Escrituras não podem ser demonstradas, exceto pela
própria Escritura”. A doutrina apostólica tinha de ser decorrência da Escritura e
37

por ela garantida, não sendo suplemento da Escritura.


Essa ideia de tradição da igreja primitiva persistiu na primeira parte do
período medieval, conforme evidenciada pelo argumento de Tomás de Aquino
em defesa da supremacia da Escritura em relação aos escritos dos pais da igreja
para a determinação da teologia correta: “A teologia recorre especificamente à
autoridade das Escrituras canônicas como prova incontroversa e à autoridade dos
doutores da igreja como uma autoridade de uso recomendável, mas apenas
provável. Isso porque nossa fé repousa sobre a revelação feita aos apóstolos e
aos profetas que escreveram os livros canônicos, e não sobre revelações (se
houver) dadas a outros doutores”. Essa ideia de tradição, portanto, certamente
38

não é a que veio finalmente a se estabelecer no catolicismo medieval tardio,


conforme exemplificado nas novas alegações relativas à tradição — articuladas
primeiramente no século 14: 39

“a doutrina e tradição dos apóstolos [...] sem [fora da] Escritura”; 40

“as palavras não escritas dos apóstolos e suas tradições não escritas que
pertenceriam ao cânon da Escritura se tivessem sido escritas”; 41

“tal é a dignidade das tradições apostólicas que não foram registradas nas
Escrituras, que a mesma veneração e a mesma fé fervente são devidas a elas
como as que foram registradas por escrito”; 42

“as verdades que procedem verbalmente dos apóstolos ou que se acham nos
escritos dos fiéis, muito embora não se encontrem nas Sagradas Escrituras e
não se possa inferi-las com certeza das Escrituras apenas”;43

“há uma infinidade de doutrinas católicas verdadeiras às quais não se pode


chegar de forma evidente a partir do conteúdo da Escritura Sagrada”. 44

Essa ideia de Tradição posteriormente desenvolvida está muito distante da ideia


de tradição da igreja primitiva e da igreja da baixa Idade Média.
Um terceiro motivo para a rejeição, por parte da teologia evangélica, da ideia
de Tradição da teologia católica é que a alegação da igreja de ser a mantenedora
e promotora de tal revelação divina se resume, basicamente, à declaração de ser
conduzida de maneira infalível pelo Espírito Santo sem a Escritura. Reitero,
conforme já foi dito, que tal alegação é nova, sem precedente antes do século 14,
numa época em que a Igreja Católica se empenhava para manter não apenas sua
autoridade espiritual, mas também sua autoridade sociopolítica.
Calvino chamou a atenção para duas passagens fundamentais às quais a Igreja
Católica recorria como base bíblica para sua alegação de infalibilidade: “Que a
igreja havia sido purificada ‘com o lavar da água na Palavra da vida, para
apresentá-la a si mesmo [...] sem ruga nem mancha’ [Ef 5.26-27], e, portanto, é
chamada em outra parte de ‘coluna e alicerce da verdade’ [1Tm 3.15]”. Com
relação à primeira passagem da Bíblia, Calvino objetou que ela “ensina o que
Cristo faz todos os dias na igreja, e não o que ele já fez”; de fato, a necessidade
da purificação diária da igreja por Cristo, algo tão empírico e prontamente óbvio
para todos, mostra que ela não atingiu ainda a santificação plena. Por
conseguinte, a igreja não tem nem pode ter, por enquanto, tal infalibilidade. Com
relação ao segundo versículo, Calvino disse que seu significado é totalmente
diferente da forma que a Igreja Católica o compreende: a igreja é “coluna e
alicerce da verdade” não porque ela — a igreja — é infalível, mas porque “a
verdade de Deus é preservada na igreja, isto é, pelo ministério da pregação”.
Como “guardiã fiel” da verdade, a igreja deve preservá-la contra toda perversão
e desafio; de fato, “essa preservação da verdade depende totalmente da Palavra
do Senhor, isto é, se ela é mantida e preservada fielmente em sua pureza”. 45

Portanto, a Palavra de Deus é infalível, e não a igreja que a preserva e a


sustenta.
Calvino deu um passo além ao criticar a insistência da Igreja Católica de que é
infalível por meio do Espírito Santo ao romper o vínculo indissociável entre a
Palavra de Deus e o Espírito de Deus. Apelando a passagens observadas
anteriormente em conexão com a defesa da Tradição pela Igreja Católica,
Calvino disse que as promessas de Jesus em relação ao Espírito Santo, isto é, que
ele “vos guiará a toda verdade” (Jo 16.13) e que “vos fará lembrar de tudo o que
tenho dito” (Jo 14.26), significam que “não devemos esperar nada mais do seu
Espírito, exceto que ele iluminará nossa mente para que percebamos a verdade
do seu ensinamento [a respeito de Cristo]”. Por conseguinte, embora a Igreja
Católica alegue uma infalibilidade conferida pelo Espírito para promoção de
doutrinas fora da Escritura, Calvino insistia em que todo o tempo “o Espírito
deseja estar unido à Palavra de Deus por um elo indissolúvel, e Cristo professa
isso em relação a si mesmo quando promete o Espírito à sua igreja”. 46

Uma quarta razão para que a teologia evangélica rejeite a Tradição é que a
estrutura Escritura mais Tradição é inerentemente instável. Na prática, quando as
duas entram em conflito, a autoridade da Tradição sobrepuja a da Escritura.
Embora a Igreja Católica diga que as duas se acham em perfeita harmonia, a
história mostra que não é bem esse o caso, e, quando os dois aspectos realmente
entram em conflito, um dos dois se torna a autoridade suprema. A colisão de
ambos, resultando na elevação da autoridade da Tradição em detrimento da
Escritura, pode ser claramente observada na promoção da doutrina da imaculada
concepção de Maria pela igreja. A Escritura afirma sem sombra de dúvida o
estado de pecaminosidade do ser humano e não permite exceções. Todo ser
humano, como descendente de Adão, é concebido em pecado, tem uma natureza
pecadora e peca em palavras, ações, pensamentos, intenções etc. De acordo com
a Tradição católica, porém, há uma pessoa que foi concebida sem pecado, não
tinha natureza pecaminosa e jamais pecou em palavra, ações, pensamentos,
intenções ou de qualquer outro modo. Nesse caso evidente, a Escritura e a
Tradição se acham em posições diametralmente opostas. Também fica evidente
aqui que a igreja tomou o partido da Tradição em detrimento da Escritura e
afirmou a concepção imaculada de Maria. Conforme observa James Warwick
Montgomery, toda autoridade que bebe em duas fontes é inerentemente instável
porque, quando as duas entram em conflito, uma se ergue inevitavelmente sobre
a outra, submetendo a ela sua autoridade. A primeira se torna autoridade de
facto, apesar das alegações em contrário. Portanto, a instabilidade inerente da
47

estrutura formada pela Escritura mais Tradição é motivo para que a teologia
evangélica rejeite a Tradição como modelo de revelação divina.
Por fim, a ideia da Tradição como revelação divina em acréscimo à Escritura
contradiz tanto a suficiência quanto a necessidade da Escritura, duas doutrinas
protestantes caras à teologia evangélica. A suficiência da Escritura significa que
tudo o que você precisa saber para ser salvo e para viver de um modo que agrade
plenamente a Deus está contido na Escritura. Faz parte da garantia bíblica desse
atributo da Escritura o testemunho de Davi de que “a lei do S ENHORé perfeita” (Sl
19.7) e a afirmação de Paulo de que a Escritura, como é inspirada por Deus, “é
proveitosa para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir em justiça”, o
cristão tem “pleno preparo para realizar toda boa obra” (2Tm 3.16,17). A 48

Escritura é suficiente para resgatar o pecador e prepará-lo para andar de um


modo que agrade a Deus à medida que pratica boas obras. Por conseguinte,
nenhuma formulação de doutrina ou de prática que venha de fora da Escritura —
purgatório, transubstanciação, indulgências, orações pelos mortos, penitência —
pode constranger a consciência do cristão como se fosse crença ou ação
complementar necessária à salvação e a uma vida santa. Contudo, é exatamente
isso o que diz a Tradição católica: “a igreja não deriva sua certeza acerca das
verdades reveladas unicamente das Santas Escrituras. Tanto a Escritura quanto a
Tradição devem ser aceitas e honradas com sentimentos iguais de devoção e
reverência”. Tal afirmação nega a suficiência da Escritura.
49

De igual modo, a ideia católica de Tradição contradiz a necessidade da


Escritura, já que o conceito ressalta que a igreja precisa da Escritura assim como
“o pão diário é necessário, porque não podemos passar sem ele nesta vida”. 50

Embora a Igreja Católica concorde que a Escritura é necessária para o bem-estar


da igreja, ela afirma — por causa da Tradição — que a Escritura não é necessária
para o ser da igreja; isto é, a igreja ainda assim existiria mesmo que a Escritura
deixasse de existir, porque ela seria guiada pela Tradição. A teologia evangélica
critica essa posição e insiste na necessidade da Escritura.
Por esses motivos, a teologia evangélica defende o sola Scriptura: a Escritura,
e não a Escritura mais a Tradição, é a fonte da revelação divina. É preciso
atenção especial na hora de promover e de discutir esse conceito, porque são
muitos os equívocos. O sola Scriptura, conforme originalmente concebido,
atribuía autoridade primordial à Escritura. Ela não é a única autoridade — na
verdade, o princípio não é uma rejeição de outras autoridades —, mas em todos
os assuntos teológicos a Escritura é a autoridade máxima. Assim, por exemplo,
51

enquanto Lutero e seu movimento luterano em formação rejeitavam a Tradição


da Igreja Católica e insistiam na suficiência da Escritura, a Igreja Luterana não
52

dispensava ou negligenciava a sabedoria acumulada pela igreja ao longo de


muitos séculos. Embora afirmasse a autoridade suprema da Escritura, a 53

Formula of Concord [Fórmula de Concórdia](1580) acentuava a importância de


certas tradições da igreja (chamadas “símbolos”):
Dado que imediatamente depois da época dos apóstolos — na verdade, enquanto ainda viviam —
surgiram falsos mestres e hereges, contra os quais foram criados símbolos na igreja primitiva, isto é,
confissões breves e explícitas que continham o consentimento unânime da fé cristã católica, e a
confissão da igreja ortodoxa e verdadeira (tal como o Credo dos Apóstolos, o Credo Niceno e o
Credo Atanasiano). Confessamos publicamente que os abraçamos e rejeitamos todas as heresias e
dogmas que um dia foram trazidos à igreja de Deus contrariamente à sua decisão.54

Por conseguinte, o sola Scriptura, quando corretamente definido e defendido,


não é uma rejeição das tradições da igreja como os credos antigos que são
resumos da sã doutrina, sinopses que refletem o entendimento adequado da
Escritura e nela estão alicerçados. “Sola Scriptura não é nuda Scriptura ” — a 55

Escritura e nada mais — e assim deve ela ser defendida e apresentada hoje. 56

Várias objeções importantes ao princípio evangélico do sola Scriptura foram


articuladas por líderes católicos e merecem uma resposta breve. Por exemplo,
Peter Kreeft, ao rejeitar o princípio, afirma que “nenhum cristão antes de Lutero,
nos dezesseis séculos que o precederam, ensinou tal princípio”. A teologia 57

evangélica indaga o que deve ser feito de afirmações como as seguintes,


atribuídas aos pais da igreja:

Atanásio (quarto século): “As Escrituras santas e inspiradas são suficientes


para a comunicação da verdade”; 58

Cirilo de Jerusalém (quarto século): “Com relação aos mistérios divinos e


santos da fé, nem mesmo uma declaração incidental deve ser feita sem as
Escrituras Sagradas [...]. Porque a salvação na qual cremos depende [...] da
comprovação pelas Santas Escrituras”; 59

Vicente de Lérins (morto aproximadamente em 450): “O cânon da Escritura


é completo e suficiente por si mesmo para tudo, e mais do que suficiente”. 60

Esses exemplos afirmando a suficiência da Escritura podem ser multiplicados.


Uma vez que a doutrina evangélica da suficiência da Escritura e seu princípio do
sola Scriptura se acham em sintonia, a teologia evangélica se pergunta por que
Kreeft diz que tal ideia é tardia.
Kreeft objeta novamente: “A primeira geração de cristãos nem sequer tinha o
Novo Testamento”. Veja, porém, o que diz o apóstolo Paulo sobre a suficiência
61

do Antigo Testamento, que a igreja primitiva tinha efetivamente como sola


Scriptura: “pois [...] sabes as Sagradas Letras, que podem fazer-te sábio para a
salvação, pela fé que há em Cristo Jesus. Toda a Escritura é divinamente
inspirada e proveitosa para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir
em justiça; a fim de que o homem de Deus tenha capacidade e pleno preparo
para realizar toda boa obra” (2Tm 3.15-17). Antes de surgir o Novo Testamento,
a igreja primitiva tinha “as Sagradas Letras”/“Escritura” — a Bíblia hebraica, o
sola Scriptura para os judeus, o que os cristãos chamam agora de Antigo
Testamento — e que um de seus fundadores considerava ser suficiente para dar
sabedoria que conduz à salvação pela fé em Cristo preparando o cristão para
toda boa obra — e não apenas umas poucas, algumas ou muitas — que Deus
lhes daria para que praticassem. Portanto, antes de ter os escritos adicionais que
hoje compõem o Novo Testamento, a igreja primitiva tinha a Palavra de Deus
suficiente em seu Antigo Testamento. Essa atitude refletia claramente o ponto de
vista do seu fundador, Jesus Cristo, que apelava constantemente à Bíblia do seu
povo, que ele citava, usava em suas argumentações, obedecia, tornava realidade
e na qual confiava. Portanto, se Jesus Cristo e a igreja primitiva exprimiam tal
confiança e dependiam da Palavra de Deus totalmente suficiente — o Antigo
Testamento —, não era de esperar que, quando a Escritura adicional viesse e
expandisse aquela Palavra, a igreja continuasse a exprimir sua confiança na
Palavra de Deus escrita totalmente suficiente — o Antigo Testamento e mais o
Novo Testamento?
Uma última objeção: “A Escritura jamais ensina sola Scriptura. Portanto, sola
Scriptura é um termo contraditório em si mesmo. Se cremos na Escritura, não
devemos crer no sola Scriptura”. A teologia evangélica se pergunta o que
62

Kreeft tem em mente quando diz que a Escritura ensina ou não ensina alguma
coisa. A Escritura, por exemplo, ensina a doutrina da Trindade articulando em
diversas palavras que Deus existe eternamente como Pai, Filho e Espírito Santo,
cada um dos quais é plenamente Deus. Contudo, existe apenas um Deus? A
Escritura não ensina claramente a doutrina da Trindade desse modo. Se for isso o
que Kreeft quer dizer, então a teologia evangélica concorda alegremente que a
“Escritura jamais ensina o sola Scriptura”. Contudo, Kreeft deverá concordar
que até mesmo a Igreja Católica crê em certas doutrinas — por exemplo, na
doutrina da Trindade — que a Escritura não ensina de modo semelhante à
doutrina descrita. Contudo, se for legítimo que a teologia católica abrace a
doutrina da Trindade pelo fato de que tal doutrina é um resumo adequado da
afirmação da Escritura sobre a natureza da Divindade, ou porque tal crença é
uma decorrência lógica de outras crenças, então, pelo menos em princípio, seria
legítimo para a teologia evangélica abraçar o sola Scriptura, uma vez que tal
crença resume adequadamente as afirmações da Escritura sobre sua natureza e
seus benefícios, ou porque tal crença é uma decorrência lógica de outras. Por
conseguinte, o argumento de que “a Escritura jamais ensina o sola Scriptura e,
portanto, a crença no sola Scriptura” é contraditória em si mesma não se
sustenta, porque tanto a teologia católica quanto a evangélica acreditam em
crenças que a Escritura não ensina, mas que são resumos ou decorrências da
Escritura e/ou de outras crenças.63

A Escritura e sua interpretação


Uma concordância maior entre a teologia católica e a teologia evangélica se dá
na discussão do Catechism sobre a importância, a inspiração divina e a verdade
da Escritura. Embora as duas posições fundamentem de forma distinta a
importância da Escritura — a teologia católica associa intimamente a Escritura à
eucaristia, ao passo que a teologia evangélica apela à inspiração, à autoridade, à
64

suficiência, à necessidade, à clareza, ao poder e à veracidade —, as duas


insistem em seu papel vital na igreja. Além disso, a forma de o Catechism
65

apresentar a inspiração da Escritura vai ao encontro do entendimento evangélico


dessa doutrina. Deve-se ressaltar, principalmente, o excelente equilíbrio do
Catechism, ecoando 2Pedro 1.21, ao enfatizar tanto a autoria da Escritura
(“homens [autores bíblicos] falaram da parte de Deus”) e sua autoridade divina
(“conforme movidos pelo Espírito Santo”). Usando a metáfora da confluência,
da união de dois corpos de água para formar uma mesma corrente, a teologia
evangélica abraça normalmente um modelo de inspiração de “confluência”: o
Espírito Santo uniu-se aos autores bíblicos na redação da Escritura para produzir
a Palavra de Deus inspirada por ele e escrita por homens. A inspiração
“concursiva” (con = com; cursiva = escrita) é outro modelo usado pela teologia
evangélica: o Espírito Santo estava escrevendo [juntamente] com os autores
bíblicos para produzir a Escritura. Por conseguinte, eles estavam plenamente
envolvidos quando escreveram a Escritura, usando sua personalidade, suas
habilidades gramaticais, seus estilos de escrita, suas ênfases teológicas etc., e o
Espírito Santo estava plenamente envolvido também, supervisionando todo o
processo. Além disso, a teologia evangélica concorda com a proposição da
teologia católica que passa da sua afirmação sobre a inspiração da Escritura à
sua veracidade: porque a Escritura é inspirada por Deus — isto é, porque os
autores bíblicos foram supervisionados pelo Espírito Santo quando escreveram a
Escritura — seja o que for que afirmem, o Espírito Santo também o afirmou;
portanto, os escritos bíblicos ensinam a salvação “firmemente, fielmente e sem
erro”.
66

Com relação à interpretação bíblica, há semelhanças e diferenças entre a


teologia católica e a evangélica. Uma das principais diferenças diz respeito ao
fundamento da abordagem que adotam para interpretar a Escritura. A teologia
evangélica, na esteira da herança teológica herdada do protestantismo, afirma a
clareza da Escritura; dessa doutrina decorre sua convicção de que a Escritura é
compreensível para os cristãos, que são também responsáveis pela tarefa de
interpretá-la e capazes de fazê-lo. A clareza da Escritura significa que ela foi
67

redigida de tal modo que seres humanos comuns, dotados da capacidade


adquirida normal de compreender a comunicação escrita e/ou oral, podem ler a
Escritura e compreendê-la, ou, se não forem capazes de compreendê-la, podem
ouvir sua leitura e compreendê-la. Homens e mulheres, jovens e idosos, pessoas
que moram na cidade e nômades do deserto, indivíduos com formação em
seminário e outros sem cultura podem ler e compreender a Bíblia.
Como podem os evangélicos afirmar tal clareza? A Escritura em si mesma se
caracteriza pelo pressuposto da inteligibilidade contínua; isto é, ela supõe que
quando a Palavra de Deus é lida/ouvida, até em contextos muito distantes do
cenário original em que foi escrita, as pessoas a compreenderão. Moisés, por
exemplo, disse que a Palavra de Deus que ele estava escrevendo para o povo de
Deus era plenamente acessível ao povo:
Porque este mandamento que hoje te ordeno não é difícil demais, nem está fora do teu alcance. Não
está no céu, para dizeres: Quem subirá ao céu por nós, e o trará, e o anunciará para nós, para que
obedeçamos a ele? Nem está do outro lado do mar, para dizeres: Quem atravessará o mar por nós, e o
trará, e o anunciará para nós, para que obedeçamos a ele? Sim, a palavra está muito perto de ti, na tua
boca e no teu coração, para que a cumpras (Dt 30.11-14).

Para o cristão, hoje, essa exortação significa que a Escritura não precisa ser um
livro obscuro e distante dele. Na verdade, toda vez que ele se senta na beira da
cama com os filhos e recita uma história da Bíblia, quando consola os amigos
que sofrem citando uma passagem que tenha memorizado, quando ouve uma
passagem bíblica lida em seu iPod a caminho de suas atividades diárias, ou
quando discute um sermão baseado na Bíblia na reunião de grupo da
comunidade, a Palavra de Deus inteligível está presente — não “fora do [...]
alcance”, mas “muito perto”.
Tal postura explica as instruções subsequentes de Moisés em relação aos seus
escritos:
Moisés escreveu esta lei e a entregou aos sacerdotes, filhos de Levi, que levavam a arca da aliança do
SENHOR, e a todos os anciãos de Israel. Moisés deu-lhes esta ordem: Ao fim de cada sete anos, no ano
da remissão, na festa dos tabernáculos, quando todo o Israel comparecer perante o SENHOR, teu Deus,
no lugar que ele escolher, esta lei será lida diante de todo o Israel, para que todos a ouçam. Reuni o
povo, homens, mulheres e crianças, e os estrangeiros dentro das vossas cidades, para que ouçam,
aprendam e temam o SENHOR, vosso Deus, e tenham o cuidado de obedecer a todas as palavras desta
lei; e para que seus filhos que não conhecem esta lei ouçam e aprendam a temer o SENHOR, vosso Deus,
todos os dias que viverdes sobre a terra que ireis possuir quando atravessardes o Jordão (Dt 31.9-13).

Moisés enfatiza a clareza da Escritura até mesmo em contextos muito distantes


do cenário original de seus escritos. Embora ele, por sua rebeldia pecaminosa,
não tenha entrado na Terra Prometida com seu povo (Nm 20.10-13), ele ordena a
leitura regular da Escritura em contextos sociais, econômicos, políticos,
religiosos e culturais certamente novos do outro lado do rio Jordão. Sua
expectativa era que o povo de Israel — homens, mulheres, crianças e viajantes
agregados a Israel — pudessem compreender a Palavra de Deus lida para eles,
onde quer que Deus os levasse. De uma perspectiva futura, o Antigo Testamento
se caracteriza pelo pressuposto da inteligibilidade contínua.
Uma expectativa semelhante caracteriza os escritos do Novo Testamento.
Abraão, fundador do povo de Israel e da fé judaica, é o exemplo por excelência
da justificação gratuita de Deus do povo pela fé independentemente das obras —
um exemplo não apenas para os judeus, mas também para cristãos gentios de
fala grega em Roma (Rm 4.22-25) e na Galácia (Gl 3.7-29) governados pelo
Império Romano. Na verdade, Paulo relata quatro episódios de pecado dos
judeus e do juízo divino — idolatria (Êx 32), imoralidade sexual (Nm 25.6-9),
pôr Deus à prova (Nm 21.4-9) e murmuração (Nm 14) — e antecipa que os
coríntios gentios seriam advertidos por esses exemplos para que não cometessem
os mesmos crimes hediondos (1Co 10.6-13). Como resume o apóstolo: “Porque
tudo o que foi escrito no passado foi escrito para nossa instrução, para que
tenhamos esperança por meio da perseverança e do ânimo que provêm das
Escrituras” (Rm 15.4). Em retrospectiva, a Escritura se caracteriza pelo
pressuposto da inteligibilidade contínua.
Acrescente a essa evidência as exortações bíblicas à igreja — a todos os seus
membros, e não apenas aos líderes — para que deem atenção à Palavra de Deus
e sejam alimentados por ela (1Pe 2.1-3; 2Pe 1.19-21) e a leiam publicamente
(1Tm 4.13), juntamente com exemplos que mostrem que foi lida e compreendida
(e.g., Ne 8; At 17.10-12). Deve-se ainda fazer uma sólida defesa da Bíblia. No
âmago disso há o princípio de Moisés: “As coisas encobertas pertencem ao S , ENHOR

nosso Deus, mas as reveladas pertencem a nós e a nossos filhos para sempre,
para que obedeçamos a todas as palavras desta lei” (Dt 29.29). Muita coisa sobre
Deus continua obscura e misteriosa para nós, mas o que ele, em sua soberania,
quis revelar a seu povo é suficientemente claro. Embora a Escritura não esgote a
categoria de coisas “reveladas”, ela certamente está aí contida. Isso significa que
a Escritura é acessível e inteligível para o povo de Deus — aí está a clareza da
Escritura.
68

Essa doutrina é uma das razões pelas quais os reformadores se envolveram na


tradução da Escritura nas línguas do povo comum, motivo pelo qual os
protestantes distribuem milhares de exemplares da Escritura e por que os
evangélicos incentivam a leitura pessoal da Bíblia e os estudos bíblicos
familiares participando ativamente dessas coisas. Embora tenha havido um
movimento animador depois do Concílio Vaticano II, em que a igreja incentivou
a leitura e o estudo da Bíblia pelos católicos, isso empalidece em comparação
com a prevalência do estudo bíblico nas igrejas evangélicas, e uma razão
importante para isso é a doutrina da clareza da Escritura conforme afirmada pela
teologia evangélica.
O cânon da Escritura
No cânon da Escritura, isto é, a lista de escritos oficiais inspirados por Deus que
fazem parte da Escritura, percebe-se imediatamente semelhanças e diferenças.
Católicos e evangélicos estão de acordo em dois pontos importantes: o cânon do
Novo Testamento — composto por 27 livros (nunca houve um conflito sério
nesse sentido ) — e o reconhecimento por parte da igreja de quais escritos
69

deveriam ser incluídos no Antigo Testamento e no Novo foi resultado de um


processo histórico relativamente longo com acordos e desacordos e que foi
guiado pelo Espírito Santo.
Uma das principais diferenças entre a Igreja Católica e as igrejas protestantes
é o cânon do Antigo Testamento. O Antigo Testamento protestante consiste em
39 livros, ao passo que o dos católicos é mais extenso. Dele fazem parte os
Apócrifos, sete livros a mais — Tobias, Judite, Sabedoria de Salomão,
Eclesiástico (Sirácida), Baruque, 1Macabeus e 2Macabeus — bem como seções
adicionais aos livros protestantes de Ester e Daniel.
Essa diferença importante surgiu na igreja primitiva graças à presença de duas
versões diferentes da coleção de livros que foram escritos antes do advento de
Jesus Cristo. Por um lado, a Bíblia hebraica consistia em 22 livros (ou 24, de
acordo com um sistema de numeração diferente), distribuídos em três divisões:
Lei, Profetas e Escritos:

Lei: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio.


Profetas: Josué, Juízes-Rute (um livro), Samuel (um livro), Reis (um livro),
Jeremias-Lamentações (um livro), Ezequiel, Isaías, os Doze Profetas
Menores (um livro), Jó, Daniel, Esdras-Neemias (um livro), Crônicas (um
livro), Ester.
Escritos: Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos. 70

Por outro lado, a tradução grega da Bíblia hebraica — chamada de Septuaginta e


abreviada LXX — continha escritos adicionais que jamais fizeram parte da
Escritura judaica. Como judeu palestino bem versado na língua hebraica, Jesus
usou a Bíblia hebraica (e.g., o rolo de Isaías que ele leu na sinagoga [Lc 4.16-20]
estava escrito em hebraico), e essa coleção não incluía os livros adicionais
encontrados na LXX. Contudo, a igreja primitiva, ao se expandir pelo mundo
gentio de fala grega, usou a Septuaginta com seus escritos adicionais.
Essa situação suscita uma pergunta: qual cânon do Antigo Testamento era
reconhecido pela igreja primitiva? Será que era um cânon que refletia a
Septuaginta, de textos mais extensos, ou será que era o cânon mais curto da
Bíblia hebraica? Há evidências a favor de ambas as posições. Em favor da
primeira perspectiva há o fato de que os autores do Novo Testamento e líderes da
igreja primitiva citaram diretamente a Septuaginta em seus vários escritos.
Entende-se que tal evidência dá respaldo à ideia de endosso da igreja primitiva a
um cânon mais extenso do Antigo Testamento, inclusive com os escritos
apócrifos. Em defesa da segunda posição, há várias listas da igreja primitiva da
Escritura veterotestamentária canônica que correspondem ao cânon da Bíblia
hebraica e que negam explicitamente que os escritos apócrifos pertençam ao
cânon. Melito de Sardes, por exemplo, compôs a primeira lista existente dos
“livros da antiga aliança” (170 d.C.), que incluía todos os livros da Bíblia
hebraica, com exceção de Ester, mas não continha nenhum dos escritos
apócrifos. O cânon de Orígenes (morto em 254) correspondia ao cânon hebraico,
exceto pelo fato de que ele incluiu a Carta de Jeremias. Atanásio, cuja Thirty-
71

ninth Easter letter [Trigésima nona carta da Páscoa] (367 d.C.) apresenta uma
lista de livros do Novo e do Antigo Testamentos, deu prosseguimento a essa
tradição de se espelhar no cânon hebraico (embora tenha incluído a Carta de
Jeremias e Baruque em sua lista do Antigo Testamento). Além disso, Atanásio
rejeitou a “Sabedoria de Salomão, o Sirácida [Eclesiástico], Ester, Judite e
Tobias”, embora tenha ressaltado que esses livros, ainda que “não estejam
efetivamente incluídos no cânon”, haviam sido “indicados pelos Pais [líderes da
igreja primitiva] para leitura por aqueles que haviam se juntado há pouco a nós e
que desejam se instruir no mundo da santidade”. Cirilo de Jerusalém listou 22
72

livros do Antigo Testamento que correspondiam aos escritos da Escritura


hebraica e advertiu que “em nada se relacionam com os escritos apócrifos.
Estudem com fervor apenas os que lemos abertamente na igreja. Muito mais
sábios e piedosos do que vocês foram os apóstolos, e os bispos de antigamente,
os presidentes da igreja que nos legaram esses livros. Sendo vocês, portanto,
filhos da igreja, não transgridam seus estatutos”.
73

Em 382 d.C., o bispo de Roma incumbiu Jerônimo de fazer uma nova


tradução em latim da Bíblia. Para seu trabalho no Antigo Testamento, Jerônimo
começou pela Bíblia hebraica, e não pela Septuaginta. Em seu prefácio a suas
traduções dos livros de Samuel e de Reis, ele elaborou uma lista da Escritura
canônica. Os escritos correspondiam aos da Bíblia hebraica; esses, e apenas
esses, disse ele, eram Escritura. E acrescentou: “Este prefácio às Escrituras
poderá servir de introdução geral [“capacete”, no original] a todos os livros que
traduzimos [“transformamos”, no original] do hebraico para o latim, de modo
que tenhamos certeza de que aquilo que não for encontrado em nossa lista deve
ser situado entre os escritos apócrifos”. Esses livros não canônicos do Antigo
74

Testamento, de acordo com Jerônimo, eram Sabedoria (de Salomão), o Livro de


Jesus ben Siraque (Eclesiástico), Judite, Tobias, 1Macabeus e 2Macabeus. Em75

outro lugar, Jerônimo descarta Baruque e, embora tenha traduzido as partes


adicionais de Daniel da LXX, ele as colocou no apêndice do livro. Além disso,
ao comentar Sabedoria de Salomão e Eclesiástico, Jerônimo disse qual era o
propósito dos Apócrifos: “Como na época a igreja lia Judite, Tobias e os livros
de Macabeus, mas não os admitia entre as Escrituras canônicas, que esses livros
sejam então lidos para a edificação do povo, e não para que confiram autoridade
às doutrinas da igreja”. É importante observar que Jerônimo prosseguiu na
76

tradição que havia sido traçada a partir de Melito e da qual faziam parte líderes
da igreja como Orígenes, Cirilo de Alexandria e Atanásio.77

A intervenção decisiva que levou a igreja a incluir os escritos apócrifos no


cânon do seu Antigo Testamento foi obra de Agostinho, para quem “um e o
mesmo Espírito” havia falado por meio dos autores da Bíblia hebraica e dos
tradutores da Septuaginta. Deve ter sido esse o caso, supôs Agostinho, uma vez
que os apóstolos citaram tanto a Bíblia hebraica quanto a Septuaginta em seus
escritos do Novo Testamento. Portanto, Agostinho adotou a perspectiva
apostólica sobre o assunto: “Eu também, segundo a minha capacidade, e
seguindo as pegadas dos apóstolos, os quais citaram os testemunhos proféticos
de ambos, isto é, da Bíblia hebraica e da Septuaginta, creio que ambas devem ser
usadas com igual autoridade, já que são uma só e também divinas”. 78

Em uma série de cartas trocadas com Jerônimo, Agostinho insiste com o


colega para que traduza o Antigo Testamento em latim tomando por base a
Septuaginta, e não a Bíblia hebraica. Jerônimo cede ao pedido do amigo e inclui
as traduções dos escritos apócrifos em sua Vulgata Latina. A partir do momento
em que essa nova Bíblia se torna amplamente conhecida, seu Antigo Testamento,
incluídos os Apócrifos, se tornaram a Bíblia da igreja. Pouco tempo depois, esse
cânon ampliado do Antigo Testamento foi ratificado por três concílios regionais:
o Concílio de Hipona (393), o Terceiro Concílio de Cartago (397) e o Quarto
Concílio de Cartago (419). Portanto, o Antigo Testamento com os escritos
apócrifos (incluindo Tobias, Judite, adições a Ester, 1Macabeus, 2Macabeus, o
Livro da Sabedoria, Eclesiástico, Baruque e os acréscimos a Daniel), juntamente
com o Novo Testamento, seriam a Escritura canônica da igreja.
Essa perspectiva seguiu sem contestação significativa até a Reforma do século
16. Impulsionada pelo humanismo — um movimento cultural e educacional
significativo do século 14 ao 16 que promoveu a eloquência da fala e da escrita e
defendeu o retorno às fontes clássicas da sociedade ocidental —, a igreja
redescobriu seus escritos fundamentais: o Antigo Testamento hebraico, o Novo
Testamento grego e os escritos da igreja primitiva. A diferença entre a Bíblia
hebraica mais sintética e o Antigo Testamento ampliado da Bíblia latina se
tornou um problema e suscitou a seguinte questão: em quais dessas duas versões
o Antigo Testamento da igreja deveria se basear? Além disso, a antiga distinção
de Jerônimo entre os escritos canônicos e os Apócrifos veio novamente à tona,
bem como sua alegação de que os Apócrifos poderiam ser lidos para edificação,
mas não autorizavam a igreja a formular doutrinas, levou a outra indagação: se a
igreja houvesse apelado a um escrito apócrifo para justificação de uma de suas
crenças ou práticas, deveria ela abrir mão dessas doutrinas e interromper tais
práticas? Assim, por exemplo, se a base para a crença da igreja na doutrina do
purgatório e na prática de orar pelos mortos for o escrito apócrifo de 2Macabeus
(12.38-45), deveria a igreja continuar a afirmar tais doutrinas?
Os reformadores protestantes, a começar por Martinho Lutero, diziam que o
Antigo Testamento da igreja deveria se basear na versão mais curta da Bíblia
hebraica e não deveria incluir os escritos apócrifos simplesmente porque eles
constavam da Septuaginta. Foi fundamental para sua decisão o fato de que a
Escritura judaica, com seus 22 (ou 24) livros, fora a Palavra de Deus usada por
Jesus e seus discípulos. Além disso, alguns dos escritos apócrifos continham
79

detalhes históricos ou cronológicos incorretos, e muitos deles não eram tidos


como confiáveis pela igreja primitiva. Ao recorrer à clássica distinção de
Jerônimo, os reformadores insistiam que a igreja deveria apelar somente à
Escritura canônica como fundamento para suas doutrinas e práticas. Como os
apócrifos não eram canônicos, não poderiam ser usados como base para as
crenças da igreja. Por conseguinte, uma das principais diferenças entre a Igreja
Católica e a nascente igreja protestante era o cânon do Antigo Testamento.
A Igreja Católica reagiu com veemência a esse desafio protestante às
Escrituras canônicas. No Concílio de Trento (1546), a igreja afirmou que “se
alguém não recebe como sagrados e canônicos esses livros, em todas as suas
partes, conforme lidos pela Igreja Católica e contidos na antiga edição da
Vulgata Latina, rejeitando de forma consciente e deliberada as tradições
mencionadas, que seja anátema [amaldiçoado]”. Assim, os protestantes foram
80

ameaçados de condenação pela igreja por adotarem uma Bíblia sem os escritos
apócrifos. Essa condenação gerou outra diferença maior em relação à versão
oficial da Escritura canônica: com base na decisão do Concílio, a Vulgata Latina
passou a ser a Bíblia oficial da Igreja Católica. Embora a teologia protestante
não promovesse uma versão oficial, sua prática sempre consistiu em apelar à
Bíblia hebraica e ao Novo Testamento grego.
A oposição insistente do catolicismo a essa reformulação protestante do cânon
da Escritura (o Antigo Testamento, especificamente) com frequência parte do
princípio de que a Igreja Católica foi divinamente apontada para ser a
responsável pela determinação do cânon. Kreeft afirma: “A igreja (apóstolos e
santos) escreveu o Novo Testamento, e a igreja (bispos subsequentes) definiu seu
cânon”. Trata-se de uma perspectiva equivocada por pelo menos dois motivos:
81

em primeiro lugar, ignora o desenvolvimento real do reconhecimento do cânon,


especificamente durante os primeiros cinco séculos da igreja. Negligencia-se
com frequência o fato de que Agostinho rompeu com uma tradição bem
desenvolvida representada por seu contemporâneo Jerônimo, que não incluía os
escritos apócrifos do cânon do Antigo Testamento e, além disso, não leva em
conta que os concílios responsáveis pela aprovação desse cânon mais extenso do
Antigo Testamento eram concílios regionais — e não ecumênicos — e que
refletiam a influência de Agostinho. Em segundo lugar, há uma questão mais
82

problemática que decorre do segundo axioma do sistema católico, a interconexão


Cristo-Igreja, segundo a qual Cristo delegou sua autoridade à Igreja Católica
para ser, nesse caso, a responsável pela fixação do cânon da Escritura. Como
esse axioma já foi criticado (cap. 1), basta apenas um comentário, um lembrete
de John Webster: “A Escritura não é a Palavra da igreja; a igreja é a igreja da
Palavra [...]. A igreja existe no espaço constituído pela Palavra”. A teologia
83

evangélica reprova duramente a insistência da Igreja Católica em priorizar a


igreja em detrimento da Palavra de Deus. Tal insistência não leva em conta a
Escritura judaica já redigida anteriormente, que profetizava um derramamento
inédito, novo e sem precedentes do Espírito Santo, evento que, historicamente,
84

deu lugar ao nascimento da igreja. Em outras palavras, a Escritura precedeu


85

efetivamente a igreja no tempo e a trouxe à existência, e não o contrário. Além


disso, apesar de inúmeras negativas em contrário, tal insistência eleva a Igreja
Católica acima da Escritura. Ela se torna a instância determinadora da Palavra de
Deus, e não a beneficiária agradecida dela. Contudo, se a revelação divina é um
ato livre do Deus de graça, como pode a igreja se posicionar de qualquer outro
modo, senão como beneficiária agradecida dessa graça divina depositada na
Escritura?
A interpretação oficial da Escritura
Outra diferença crucial entre a teologia católica e a teologia evangélica no
âmbito da Escritura diz respeito à interpretação oficial da Bíblia. A Igreja
Católica insiste que a prerrogativa de determinar a interpretação adequada e
oficial da Escritura pertence exclusivamente ao seu Magistério, ou ofício de
ensino (constituído pelo papa e pelos bispos). Essa foi uma decisão tomada em
resposta ao crescente movimento protestante pelo Concílio de Trento (1546),
segundo o qual “ninguém que confie em seu próprio julgamento deverá, no que
diz respeito à fé e à moral próprias à edificação da doutrina cristã, distorcer a
Escritura Sagrada de acordo com seus próprios conceitos, ousar interpretá-la de
forma contrária ao sentido que a santa madre igreja, a quem pertence o
julgamento de seu verdadeiro sentido e interpretação, propôs e ainda propõe...”.
86

Portanto, a Igreja Católica diz ter direito exclusivo sobre a interpretação da


Escritura.
As igrejas evangélicas não têm um Magistério que julgue a interpretação da
Escritura, se é autêntica e autorizada. Contudo, elas insistem com todos os
crentes para que participem de forma cautelosa e responsável da interpretação da
Bíblia observando princípios sólidos de interpretação (inclusive os que foram
destacados no Catechism) sob a orientação do Espírito Santo (conforme afirma
também o Catechism) e com ajuda de líderes divinamente ordenados e
capacitados (1Tm 3.2; 5.17; Tt 1.9) ou pastores-mestres (Ef 4.11).
Diferentemente da estratégia de interpretação católica, que procura discernir um
quádruplo sentido na Escritura, os evangélicos seguem uma herança protestante
que converge para o significado histórico-gramático-(salvífico) da Escritura e
com uma preocupação com a tipologia, especialmente se tal tipologia vê nas
pessoas, nos acontecimentos, nas instituições etc. do Antigo Testamento um
prenúncio de cumprimento posterior na pessoa e obra de Jesus Cristo.
São inúmeras as razões para que a teologia evangélica trate dessa maneira a
interpretação bíblica. Conforme discutimos acima, essa estratégia de
interpretação bíblica está alicerçada na doutrina da clareza da Escritura. Ela
reflete também uma profunda desconfiança em relação ao quádruplo sentido da
Escritura. A abordagem católica está fundamentada na interdependência
natureza-graça: as palavras da Escritura — ou, para ser mais preciso, as coisas
para as quais essas palavras apontam (o reino da natureza) — apresentam
sentidos ocultos que podem comunicar graça. Já demonstramos a falsidade do
axioma natureza-graça. A história mostra que Martinho Lutero, embora tenha
sido formado nessa escola de interpretação, rejeitou-a porque o método,
conforme praticado na Igreja Católica, enfatizava de tal forma o sentido
espiritual — os sentidos alegóricos, morais (tropológicos) e anagógicos — que o
sentido literal ficava obscurecido ou era negligenciado. Lutero defendeu o
sentido literal, ou “gramatical e histórico”, que é “o mais elevado, o melhor, o
87

mais forte, em suma, a substância, a natureza e fundação da Santa Escritura em


toda a sua inteireza”. De fato, Lutero insistia que os intérpretes da Bíblia
88

“deveriam se empenhar, tanto quanto possível, para chegar a um significado


simples, verdadeiro e gramatical das palavras do texto”. De igual modo, João
89

Calvino rejeitava a interpretação alegórica da Escritura insistindo, em vez disso,


“que o verdadeiro significado da Escritura é o sentido natural e óbvio [não
oculto]”, o sentido que os autores bíblicos quiseram que seus leitores
90

compreendessem. Portanto, a tarefa do intérprete é discernir o propósito do


autor: “Sua única tarefa consiste, na prática, em abrir a mente do autor que
deseja explicar”. Para instruir o número cada vez maior de protestantes, Lutero
91

e Calvino defendiam princípios de interpretação bíblica que guiassem os crentes


ao entendimento apropriado da Escritura: familiaridade com a Carta de Paulo
aos Romanos, uma sólida estrutura teológica, uma visão cristocêntrica, atenção
92

ao contexto, cultivo da analogia da fé (interpretação de qualquer passagem em


conformidade com toda a Escritura) e se empenhar para ser o tipo certo de
intérprete no que diz respeito à santidade, humildade, disposição para aprender e
obedecer, persistência etc. Além disso, os dois reformadores acentuaram a
necessidade de iluminação do Espírito Santo para compreender corretamente a
Escritura. Lutero e Calvino também pregaram a Palavra de Deus e escreveram
comentários para sua correta interpretação, responsabilidades que lhes cabiam
como pastores de suas igrejas. Ao defender a clareza da Escritura e levar a sério
seu ofício de pastores-mestres preocupados em ajudar os cristãos a compreender
a Palavra de Deus corretamente, os reformadores romperam com a posição que
prevalecia havia séculos na Igreja Católica do quádruplo sentido da Escritura e a
prerrogativa exclusiva de interpretação do Magistério da igreja.
Contudo, a rejeição evangélica do Magistério não para por aí. Ao longo da
história, os protestantes contestaram o suposto respaldo bíblico da Igreja
Católica ao ofício do ensino autorizado que gira em torno dos seus bispos com o
papa à frente. Como tenho outras coisas a dizer a esse respeito mais adiante, não
farei nenhum comentário aqui.
Em suma, as teologias católica e evangélica sobre a doutrina da Escritura
apresentam áreas de concordância e discordância. Com relação aos pontos em
que há concordância, ambas as teologias afirmam a necessidade da revelação
divina/especial (em face da insuficiência da revelação geral para a salvação); da
natureza gratuita, concedida como dom, e o caráter progressivo dessa revelação;
a operação em conjunto das ações e das palavras divinas na constituição da
revelação divina; a importância, a inspiração divina e a veracidade da Escritura;
bem como alguns princípios importantes da interpretação bíblica. As duas
teologias colidem, porém, em relação a várias questões fundamentais: (1) a
transmissão da revelação divina: a teologia católica insiste nos dois modos da
Escritura registrada por escrito e da Tradição da igreja, ao passo que a teologia
evangélica defende o sola Scriptura (somente a Escritura); (2) a interpretação da
Escritura: a teologia católica se concentra no quádruplo significado da Escritura
e insiste que o Magistério da igreja tem prerrogativa exclusiva de sua
interpretação, ao passo que a teologia evangélica ressalta a clareza da Escritura e
segue uma estratégia gramatical-(salvífica) e histórico-tipológica para discernir o
significado da Escritura; e (3) o cânon do Antigo Testamento: a teologia católica
inclui os escritos apócrifos e adições ao seu cânon, enquanto a teologia
evangélica afirma que esses escritos adicionais não são inspirados, oficiais e
totalmente verdadeiros.

A doutrina da fé: a resposta humana a Deus (seção 1,


capítulo 3)
A resposta adequada e deliberada à revelação divina é a fé, o Catechism trata, a
seguir, da doutrina da fé. Ele realça o papel instrumental da fé: pela fé, o
indivíduo submete o intelecto e a vontade a Deus. Em face desse conceito de
submissão, a expressão bíblica da “obediência da fé” (Rm 1.5; 16.26) ganha
mais ênfase. Exemplos dos que se submeteram livremente à palavra que ouviram
são Abraão e Maria. A definição de fé acentua a ideia de adesão pessoal a Deus,
que é também “um consentimento livre a toda a verdade que Deus revelou”. O 93

objeto da fé do cristão é Jesus Cristo, e a convicção cristã é suscitada pelo


Espírito Santo. Especificamente, a fé:

é uma graça/dom: é “dom de Deus, uma virtude sobrenatural por ele


infundida”; 94

é um ato humano: “o intelecto e a vontade humanos cooperam com a graça


divina”;95

está associada ao entendimento: a fé não é contrária à razão; ela vai além da


razão com o objetivo de produzir certeza, porque está alicerçada na Palavra
verdadeira de Deus: a fé busca entendimento à medida que o cristão cresce
no conhecimento de Deus e em sua revelação; ela está de acordo, e não em
conflito, com a ciência;96
é livre: não pode ser imposta; 97

é necessária: a fé em Cristo é necessária à salvação;


98

pode ser perdida: como a fé é um dom gratuito, o ser humano pode perdê-
la; para impedir que isso aconteça, portanto, a fé deve se alimentar da
Palavra de Deus; ela requer “trabalho por meio da caridade” tendo seu
alicerce na fé da igreja;
99

é um começo: ela é o aperitivo da visão face a face de Deus; portanto, a fé é


o começo da vida eterna; 100

não está nas proposições, mas nas realidades que elas expressam: porque a
revelação divina é a um só tempo proposicional (inclui tanto a Tradição
transmitida oralmente quanto o registro escrito da Escritura) e pessoal
(revelando Deus, com quem as pessoas podem se relacionar intimamente),
aquilo em que o cristão crê em última análise é a realidade de Deus dada a
conhecer por meio das doutrinas da fé. 101

Contudo, a fé é mais do que uma questão individual, um ato pessoal, porque


ninguém pode crer somente. Na verdade, a fé é recebida de outros,
especificamente, da Igreja Católica: “É a igreja que crê em primeiro lugar, e
desse modo sustenta, alimenta e conserva minha fé”. Em parte alguma a
102

natureza eclesial da fé fica mais evidente do que no sacramento do batismo. À


criança que está sendo batizada, a igreja concede fé. Ao adulto que é batizado, o
sacerdote faz a pergunta: “O que você deseja da igreja de Deus?”. A resposta:
“Fé”. Por conseguinte, uma das ricas metáforas da igreja é que ela é mãe:
103

“Cremos que a igreja é mãe do nosso novo nascimento; não cremos na igreja
como se fosse ela autora da nossa salvação”. É a Igreja Católica que, do
104

começo ao fim, confessa essa fé herdada dos apóstolos.

Avaliação evangélica
Essa ideia de fé guarda semelhanças com sua contraparte evangélica, mas
evidencia também várias diferenças. Com relação às semelhanças, a teologia
evangélica e a católica afirmam igualmente que a fé é adesão pessoal, uma
disposição de confiar, que é, de fato, um ato humano vinculado ao entendimento
(especialmente alicerçado na Palavra de Deus), que é livre (sem coerção) e
necessário à salvação. Além disso, o objeto da fé é Deus, conforme ele se
revelou, e seu caminho de salvação por meio do evangelho, que foi comunicado
ao ser humano decaído por intermédio da verdade proposicional expressa
mediante vários gêneros (narrativa, poesia, cartas, profecia etc.) na Escritura (e
não Escritura e Tradição). Essa revelação serve efetivamente para criar uma
relação pessoal entre o Deus da Revelação e da Redenção e os que têm fé nele.
Em relação às diferenças, a teologia evangélica enfatiza a influência dos dois
axiomas do sistema católico (a interdependência natureza-graça e a interconexão
Cristo-Igreja) na formulação da doutrina e da fé católica. Aliado a esse primeiro
axioma, a teologia católica ressalta que a natureza humana — intelecto e vontade
— é capaz de cooperar com a graça divina de tal modo que a fé é um ato
humano, mas também pode deixar de cooperar com a graça, de modo que perca
a fé. Além disso, a teologia católica salienta que a graça divina recebida pela fé é
infundida na natureza humana para elevar e aperfeiçoar essa natureza. Com base
no segundo axioma, a teologia católica destaca o fato de que a Igreja Católica,
como encarnação permanente de Cristo, faz a mediação entre a natureza e a
graça de tal maneira que a igreja é a primeira a crer e a conceder, efetivamente, a
fé (o reino da graça) ao ser humano (reino da natureza). A crítica evangélica
desses dois axiomas já foi feita, o que significa que os pontos do sistema católico
da doutrina da fé que estão baseados nesses axiomas não têm fundamento.
Com relação a críticas específicas, a teologia evangélica concorda que a fé é
um dom de Deus (e não uma disposição arraigada ou reação natural), mas nega o
conceito de que seja infundida por Deus. Em sua discussão sobre o tema, o
Catechism apela à confissão de Pedro sobre a identidade de Jesus, o Cristo, o
Filho do Deus vivo, bem como o subsequente comentário de Jesus de que “essa
revelação não veio de ‘carne e sangue’, mas do ‘meu Pai que está no céu’”. Ao 105

que tudo indica, o Catechism tira essa implicação da seguinte passagem: “A fé é


um dom de Deus, uma virtude sobrenatural por ele infundida”. Na verdade,
106

porém, Jesus não trata da fé de Pedro como um dom, mas respalda a revelação
divina que Pedro recebeu; a revelação da identidade de Jesus, e não a fé de
Pedro, era um dom divino. Portanto, é difícil ver quanto essa passagem se
relaciona com a fé como dom. Além disso, a teologia evangélica insiste que,
antes de alguém expressar sua fé, a graça dos atos poderosos de Deus de
convicção do pecado, vocação, justificação, regeneração, adoção e união com
Cristo possibilita que um povo endurecido e rebelde, que agora foi efetivamente
chamado, seja declarado inocente e justo e receba uma nova natureza espiritual
receptiva a Deus, seja acolhido na família de Deus e, unido com Cristo, responda
verdadeiramente com fé a essa obra divina da graça. De fato, Paulo diz: “Porque
pela graça sois salvos, por meio da fé, e isto não vem de vós, é dom de Deus;
não vem das obras, para que ninguém se orgulhe” (Ef 2.8,9). Paulo diz que toda
essa realidade — salvação pela graça por meio da fé — é um dom de Deus, e
não apenas fé. Conforme discutiremos mais adiante, a graça não é uma coisa
infundida nas pessoas; tampouco a fé. Em vez disso, ela é a bondade de Deus
manifesta a todos os que merecem apenas a condenação. Essa bondade divina
suscita e permite uma resposta positiva ao evangelho e fé nele, resultando na
salvação.
Um segundo ponto importante de discordância diz respeito à fé salvadora: é
possível perdê-la? A teologia católica acredita que sim. Há uma corrente da
teologia evangélica que também pensa assim; outra corrente — à qual pertenço
— afirma que a fé genuína é permanente e não pode ser abandonada. O
Catechism dá o exemplo de “certas pessoas que naufragaram na fé” (1Tm
1.18,19) em apoio à possibilidade da perda da fé. Contudo, o exemplo de
107

Himeneu, uma das pessoas citadas na passagem sobre o naufrágio na fé (v. 20),
não parece convincente, já que ele é um falso mestre, “dizendo que a
ressurreição já havia ocorrido”; de fato, a doutrina herética de Himeneu
“[perverteu] a fé em alguns” (2Tm 2.17,18). Em seu comentário apostólico sobre
a situação, Paulo explica: “Todavia, o firme fundamento de Deus permanece e
tem este selo: O Senhor conhece os seus, e: Aparte-se da injustiça todo aquele
que profere o nome do Senhor” (v. 19). Em outras palavras, Paulo estabelece um
contraste entre os que pertencem genuinamente a Cristo (e.g., aqueles cuja fé foi
abalada pelo falso ensino) e os que são cristãos nominais apenas e praticam a
iniquidade (e.g., Himeneu, que propagava falsos ensinamentos). Por
conseguinte, Himeneu não é um exemplo confiável de cristão que perdeu a fé.
Outros supostos exemplos de cristãos que perderam a fé poderiam ser usados
em defesa dessa posição: Ananias e Safira (At 5.1-11); os seguidores de Jesus
que profetizavam, expeliam demônios e realizavam milagres em nome de Jesus
(Mt 7.21-23); os crentes descritos na Carta aos Hebreus como “aqueles que uma
vez foram iluminados, experimentaram o dom celestial e se tornaram
participantes do Espírito Santo, e experimentaram a boa Palavra de Deus e os
poderes do mundo vindouro, e caíram, [esses não podem ser] outra vez
renovados para o arrependimento; visto que eles estão crucificando de novo o
Filho de Deus e expondo-o à vergonha pública” (Hb 6.4-6) e outros.
Mas será que essas passagens afirmam, de fato, que as pessoas ali descritas
perderam sua salvação? No caso de Ananias e Safira, Lucas não dá detalhes
suficientes para que possamos saber se eram crentes genuínos ou não. Por um
lado, eles eram crentes dedicados à prática de um pecado horrível que ameaçava
subverter a oferta sacrifical que produzia uma unidade notável na igreja
primitiva (conforme descrito em At 2.42-47; 4.32-37); assim, Deus os retirou
mediante uma intervenção severa para evitar que seu exemplo se espalhasse
como câncer na comunidade. Por outro lado, o casal havia se associado à igreja
108

de Jerusalém e procurava imitar a generosidade manifesta por aquela


comunidade; contudo, essa fraude chocante mostrou que eles não eram
realmente seguidores de Cristo.
No exemplo seguinte, embora os seguidores de Jesus praticassem sinais
poderosos e maravilhas em seu nome, Jesus explica que no dia do juízo ele
“[dirá] claramente: nunca vos conheci; afastai-vos de mim, vós que praticais o
mal” (Mt 7.23). Não eram pessoas de fé genuína.
Com relação às pessoas citadas na Carta aos Hebreus, à primeira vista a
descrição delas pode dar a entender que se tratava de cristãos reais, mas o
comentário do autor a seus leitores (Hb 6.9,10) nos afasta dessa conclusão: “Mas
acerca de vós, ó amados, ainda que falemos assim, estamos certos de coisas
melhores...”. Mas que coisas poderiam ser melhores do que ter a iluminação,
saborear o dom celestial, partilhar do Espírito, experimentar a bondade da
Palavra de Deus e o poder da era por vir? O autor prossegue: “... estamos certos
de coisas melhores — coisas relativas à salvação. Porque Deus não é injusto para
se esquecer do vosso trabalho e do amor que mostrastes para com o seu nome,
pois servistes os santos, e ainda os servis”. Em outras palavras, o autor primeiro
descreve as pessoas que participaram da igreja com grande bênção, tiveram
respostas às suas orações, experimentaram o mover do Espírito Santo em ação
na comunidade e coisas semelhantes, mas, como não eram cristãos genuínos,
caíram — não da fé salvadora (que nunca tiveram), mas da convicção religiosa
que um dia os atraiu à igreja. No caso dos seus leitores, o autor está convencido
de que sua fé é verdadeira, resultando em salvação, conforme evidenciado pelo
fruto persistente de sua vida.
Uma passagem que ajuda a compreender esse fenômeno é 1João 2.19: “Eles
saíram dentre nós, mas não eram dos nossos, pois se fossem dos nossos teriam
permanecido conosco; mas todos eles saíram, para que se manifestasse que não
são dos nossos”. O que o apóstolo quis dizer pode ser esquematizado e
personalizado em relação aos membros da igreja de duas maneiras, uma positiva
e outra negativa. De maneira positiva:

Se são pessoas que estão em nosso meio (“dentre nós”) — isto é, se têm fé
salvadora —, então elas continuarão conosco; isto é, permanecerão de
maneira fiel na comunidade da igreja até o fim.
Sua fé é salvadora.
Portanto, você permanece fielmente conosco na igreja.

De forma negativa:

Se foram pessoas que saíram do nosso meio, não eram “dos nossos” — isto
é, não tinham a mesma fé salvadora.
Você não tem fé salvadora.
Portanto, sairá do nosso meio — você sairá da comunidade da igreja.

Especificamente, a fé salvadora, por definição, persevera. Um elemento


constitutivo da fé genuína é a perseverança. Quem não tem fé genuína acabará
109

caindo. Isso porque sua fé não era fé salvadora, mas uma fé espúria; não é da
salvação que se afastam, mas da fé religiosa que um dia tiveram. Diferentemente
disso, os que têm fé salvadora no evangelho de Jesus Cristo serão cristãos até o
fim. É claro que tal perseverança não depende exclusivamente deles e de seus
melhores esforços de permanecerem fiéis. Na verdade, “sois protegidos pelo
poder de Deus, mediante a fé, para a salvação preparada para se revelar no
último tempo” (1Pe 1.5). O poder protetor de Deus operando por meio da fé
diária e consistente desses fiéis preserva-os em seu futuro, enquanto aguardam a
salvação.
Como a salvação não pode ser perdida depois de genuinamente obtida, a fé
salvadora não pode ser perdida. Esse é o ensinamento consistente da Escritura.
Cristo prometeu que não perderia nenhum de seus seguidores (Jo 10.27-29; 6.37-
40) e sua intercessão permanente por eles resulta em sua salvação final (Hb
7.25). O Espírito Santo selou os crentes verdadeiros, e sua marca serve de
garantia da obra divina de preservação da sua vida (2Co 1.22; 3.18; Ef 1.13,14;
4.30), e seu testemunho interno mostra que são verdadeiramente filhos de Deus
(Rm 8.16). Para aqueles que têm o Filho de Deus, sua Palavra promete vida
eterna, dando a eles a segurança de que tal é sua posse (1Jo 5.11-13); de fato,
não há nada que possa separar o cristão do amor de Deus em Jesus Cristo (Rm
8.31-39). Além disso, a fidelidade perseverante dos crentes genuínos é coerente
com sua fidelidade a Deus e está nela fundamentada (1Co 1.9; Fp 1.6). Foi Deus
quem os escolheu (Rm 8.32; Ef 1.4), justificou (Rm 3.21-31; 8.1), regenerou (Jo
3.1-8), adotou (Rm 8.14,15; Gl 4.5,6) e os uniu a Cristo (Rm 6.1-11), que
também os batizou com o Espírito Santo em seu corpo (1Co 12.13).
Um último contraste importante se dá entre a visão católica de que a fé vem
de outros, especialmente da Igreja Católica, e a visão evangélica de que a fé é
uma responsabilidade pessoal que, embora ajudada e alimentada pela igreja, não
provém dela. Conforme já observamos, a visão católica depende de pressupostos
em segundo plano vinculados à interconexão Cristo-Igreja. Além disso, uma
fragilidade do Catechism na discussão desse ponto é sua falta de respaldo
bíblico. Sua alegação de que a igreja é a mãe dos cristãos porque eles
“receberam a vida de fé através da igreja” — especificamente, por meio da
administração do batismo pela igreja — é certamente uma parte importante da
110

Tradição da igreja; em meados do terceiro século, Cipriano, bispo de Cartago (no


norte da África), disse: “Não pode ter Deus por Pai aquele que não tem a igreja
por mãe”. Embora a Escritura recorra a uma imagem feminina muito explícita
111

para a igreja — ela é a noiva de Cristo (2Co 11.1-4; Ef 5.25-33; Ap 19.7; 21.2,9;
22.17) —, ela não emprega a metáfora de mãe.
Ao mesmo tempo, a teologia evangélica não se furta necessariamente à
imagem da igreja-mãe, contanto que seja compreendida sob um aspecto
específico. Por exemplo, João Calvino citou o dictum de Cipriano ao defender
112

a necessidade da igreja, “em cujo seio Deus se alegra em reunir seus filhos, não
apenas para que sejam alimentados por sua ajuda e ministério enquanto forem
bebês e crianças, mas também para que sejam guiados por seu cuidado maternal
até que amadureçam e alcancem, por fim, o objetivo da fé”. Ele insistiu com os
113

crentes para que conheçam a igreja como sua mãe, “pois não há outra maneira de
entrar na vida, a não ser que essa mãe nos conceba em seu útero, nos alimente
em seu seio [...]. Nossa fraqueza não nos permite que abandonemos sua escola
até que sejamos alunos por toda a vida. Além disso, longe do seu seio não se
pode ter esperança de qualquer perdão de pecados ou de qualquer salvação [...].
Deixar a igreja é sempre desastroso”.114

É evidente que Calvino não estava promovendo o conceito de mãe de todos os


crentes conforme defendido pela Igreja Católica. Na verdade, pode-se dizer que
a discussão por ele proposta tinha como objetivo corrigir a ideia católica cujo
foco era Maria. Para Calvino, o objetivo da metáfora da igreja-mãe é o
ministério da Palavra de Deus conforme pregada pelos pastores da igreja e sua
administração dos sacramentos, cujo poder e eficácia são obra do Espírito Santo.
Contudo, a autoridade desses pastores não é como a do Magistério na Igreja
Católica; sua autoridade é ministerial. É para a natureza ministerial do ofício
pastoral que Paulo chama a atenção da igreja de Corinto da seguinte forma:
“Quem é Apolo? E quem é Paulo? São apenas servos por meio de quem crestes,
conforme o Senhor concedeu a cada um” (1Co 3.5, grifo do autor) — e não de
quem receberam graça para que tivessem fé. Essa mesma autoridade ministerial
é enfatizada para Apolo em outro contexto: “Quando ali chegou, auxiliou muito
os que, pela graça, haviam crido” (At 18.27, grifo do autor) — não de quem
receberam graça para ter fé. A igreja, mãe dos cristãos, quando entendida na
condição daquela que serve como ministra, ungida pelo Espírito, da graça de
Deus pela pregação do evangelho e pela celebração dos sacramentos, tem seu
lugar na estrutura teológica evangélica.
Em suma, a doutrina da fé encontra alguma sobreposição entre a teologia
católica e a evangélica: a fé é adesão pessoal, uma disposição para confiar; ela
está associada à livre (não forçada) compreensão, necessária à salvação e
direcionada para Deus, que é seu objeto, e aquele a quem os crentes são reunidos
em uma relação pessoal. Contudo, há também diferenças fundamentais: fé
infundida (teologia católica) versus fé como virtude não infundida vinculada aos
atos gratuitos de Deus de convicção de pecado, de vocação, justificação,
regeneração, adoção e união com Cristo (teologia evangélica); a possibilidade da
perda da fé e a relação da fé com a igreja.
1
Edição em português: Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Loyola, 1999).
2
O papa deu sua aprovação em 25 de junho de 1992 e promulgou o Catechism em 11 de outubro do
mesmo ano em sua constituição apostólica Fidei Depositum, que pode ser acessada neste endereço:
http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/apost_constitutions/documents/hf_jp-ii_apc_19921011_fidei-
depositum.html.
3
Depois de traduzido da versão original francesa em 1992 para o texto latino oficial em 1997, o
Catechism passou por algumas revisões em suas traduções, inclusive no texto em inglês em 1997.
4
Este livro não discutirá ou avaliará a quarta parte do Catechism.
5
Quando cito as seções do Catechism em que há citações bíblicas, elas serão tomadas da Revised
Standard Version ou da New Revised Standard Version, mas sem qualquer indicação de que versão se trata.
6
Todas as citações do Catechism serão abreviadas com as letras CCC e trarão o número do parágrafo da
referência, e não o número da página. Os números dos parágrafos são os mesmos para todas as edições do
Catechism, mas os números das páginas variam. Para mais explicações, veja novamente meus comentários
no penúltimo parágrafo da Introdução a este livro.
7
É interessante observar que o Catechism, em sua discussão dessas provas, não cita o argumento
ontológico, uma das provas clássicas e consagradas da existência de Deus.
8
CCC 36; a citação é do Concílio Vaticano I, Dei Filius 2; há também referências ao Concílio Vaticano
II, Dei Verbum 12.
9
CCC 36; a citação é do Concílio Vaticano I, Dei Filius 2; há também referências ao Concílio Vaticano
II, Dei Verbum 12.
10
Concílio Vaticano II, Dei Verbum 6 (VC II-1, 752-753); a citação é do Concílio Vaticano I, Dei Filius
2.
11
Como exemplo desses dois passos de exclusão e de excelência no mundo evangélico, veja o best-seller
de J. I. Packer, Knowing God (Downers Grove: InterVarsity, 1973), cap. 8 [edição em português: O
conhecimento de Deus, tradução de Paulo César Nunes dos Santos (São Paulo: Cultura Cristã, 2014)].
12
CCC 53; a citação é do Concílio Vaticano II, Dei Verbum 2.
13
CCC 65. Essa afirmação não exclui as revelações “particulares” (e.g., as aparições de Maria)
reconhecidas pela igreja, porém tais revelações não constituem parte do depósito de fé e tampouco
contribuem para a revelação definitiva de Jesus Cristo (CCC 67).
14
CCC 76; a citação é do Concílio Vaticano II, Dei Verbum 7.
15
CCC 77; a citação é do Concílio Vaticano II, Dei Verbum 7.
16
CCC 80; a citação é do Concílio Vaticano II, Dei Verbum 9.
17
CCC 81.
18
Ibidem.
19
Papa Pio IX, Ineffabilis Deus (8 de dezembro de 1854), disponível em:
http://www.papalencyclicals.net/Pius09/p9ineff.htm.
20
Papa Pio XII, Munificentissimus Deus (1 de novembro de 1950), disponível em:
http://w2.vatican.va/content/pius-xii/pt/apost_constitutions/documents/hf_p-
xii_apc_19501101_munificentissimus-deus.html.
21
CCC 82; a citação é do Concílio Vaticano II, Dei Verbum 9.
22
Talvez ajude a pensar nas palavras de Judas sobre a “fé entregue aos santos de uma vez por todas” (Jd
3).
23
CCC 85; a citação é do Concílio Vaticano II, Dei Verbum 10.
24
Essa reverência é demonstrada liturgicamente nos dois movimentos que constituem a missa: a Liturgia
da Palavra (com leituras do Antigo Testamento e do Novo Testamento e de um dos Evangelhos) e a Liturgia
da Eucaristia. Os dois movimentos são necessários.
25
CCC 107; a citação é do Concílio Vaticano II, Dei Verbum 11.
26
CCC 116-117. Os três sentidos espirituais se baseiam no sentido literal. O sentido moral é também
chamado de sentido tropológico, que é derivado do termo grego τρόπος (tropos) e que significa “maneira”
ou “caminho”; portanto, a maneira em que se deve viver à luz da passagem da Escritura. O sentido
anagógico é derivado do termo grego νάγω (anagō), que significa “subir” ou “conduzir”; portanto, refere-se
ao cumprimento futuro da passagem.
27
O título desse escrito apócrifo não deve ser confundido com o do livro canônico de Eclesiastes.
28
CCC 133; a citação é de Jerome [Jerônimo], Commentary on Isaiah, livro 18, prólogo.
29
CCC 80; a citação é do Concílio Vaticano II, Dei Verbum 9.
30
Calvin, Institutes 4.8.14 (LCC 21:1163-1164) [edições em português: João Calvino, As institutas,
tradução de Waldyr Carvalho Luz (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), 4 vols.; e A instituição da religião
cristã, tradução de Carlos Eduardo Oliveira; José Carlos Estêvão (São Paulo: Ed. Unesp, 2008)].
31
Irenaeus [Ireneu], Against heresies 3.1.1 (ANF 1:414, grifo do autor).
32
Irenaeus, Against heresies 3.2.1 (ANF 1:415).
33
Irenaeus, Against heresies 3.2.2 (ANF 1:415).
34
Com relação à identidade dessas igrejas apostólicas, Ireneu disse: “Suponhamos que surja uma disputa
entre nós sobre uma questão importante: não deveríamos apelar às igrejas mais antigas com as quais os
apóstolos mantiveram constante relação [discussão], e aprender com elas o que é certo e claro no que diz
respeito à presente questão? Como faríamos se os apóstolos não nos tivessem deixado seus escritos? Não
seria necessário, [nesse caso], seguir o curso da tradição que eles transmitiram àqueles que confiaram
efetivamente às igrejas?” (Irenaeus, Against heresies 3.4.1 [ANF 1:417]). As igrejas apostólicas foram
fundadas pelos apóstolos (e.g., Corinto, Éfeso, Galácia, Filipos) ou tiveram sua participação (e.g., Roma), e
assim preservaram a doutrina apostólica, que deveria ser consultada quando houvesse disputas. Seria esse o
caso mesmo que os apóstolos não tivessem registrado por escrito sua doutrina; contudo, é claro, a doutrina
apostólica foi registrada por escrito na Escritura.
35
Irenaeus, Against heresies 1.10.1 (ANF 1:330).
36
Irenaeus, Against heresies 1.9.4 (ANF 1:330). “Cânon” quer dizer padrão ou regra.
37
Irenaeus, Against heresies 3.12.9 (ANF 1:434).
38
Thomas Aquinas, Summa theologica, pt. 1, q. 1, art. 8 [edição em português: Tomás de Aquino, Suma
teológica (São Paulo: Loyola, 2001), 9 vols.].
39
Para uma discussão mais ampla a respeito do desenvolvimento dessa nova ideia de tradição, veja
Allison, HT, p. 82-7.
40
Gerald of Bologna [Geraldo de Bolonha], Commentary on the sentences, 457, citado em George
Tavard, Holy writ or holy church (London: Burns & Oates, 1959), p. 27.
41
Thomas Netter Waldensis, Doctrinale Antiquatum Fidei Catholicae Ecclesiae, cap. 23, in: Tavard,
Holy writ or holy church, p. 58.
42
Ibidem.
43
William of Ockham [Guilherme de Occam], Dialogue against heretics, livro 2, cap. 5, in: Tavard,
Holy writ or holy church, p. 35.
44
William of Waterford, LXXII Quaestiones de Sacramento Altaris, in: Tavard, Holy writ or holy church,
p. 43.
45
Calvin, Institutes 4.8.12 (LCC 21:1161).
46
Calvin, Institutes 4.8.13 (LCC 21:1162-1163).
47
John Warwick Montgomery, “The theologian’s craft: a discussion of theory formation and theory
testing in theology”, Journal of the American Scientifc Association 18 (September 1966): 65-77, 92-5.
48
Em outra carta, Paulo ordena: “Recorda-lhes [aos cristãos] que devem estar [...] preparados para toda
boa obra” (Tt 3.1). Juntando essa exortação apostólica à afirmação de Paulo de que toda a Escritura é
inspirada por Deus e proveitosa para preparar o cristão para toda boa obra, a teologia evangélica indaga
para o que a Tradição poderia preparar o cristão?
49
CCC 82; a citação é do Concílio Vaticano II, Dei Verbum 9.
50
Amandus Polanus a Polandsdorf, Syntagma Theologiae Christianae (Hanover, 1624), 1.35, citado em
Heppe, p. 32.
51
Conforme diz a seção da Confissão de Fé de Westminster quando trata do assunto em questão: “O Juiz
Supremo, pelo qual todas as controvérsias religiosas têm de ser determinadas e por quem serão examinados
todos os decretos de concílios, todas as opiniões dos antigos escritores, todas as doutrinas de homens e
opiniões particulares, o Juiz Supremo em cuja sentença nos devemos firmar não pode ser outro senão o
Espírito Santo falando na Escritura” (Confissão de Fé de Westminster, “Sobre a Escritura Sagrada”, 10).
52
Conforme formulada pela Confissão de Augsburgo, a suficiência da Escritura significa que “é
contrário à Escritura ordenar ou exigir a observação de quaisquer tradições cujo fim seja o de nos conceder
o mérito para remissão de pecados e satisfação dos pecados por meio delas” (Confissão de Augsburgo, “Do
poder eclesiástico”, art. 7 [Schaff, 3:64]). Conforme dissemos anteriormente, a ideia de Tradição contra a
qual Lutero se insurgiu era em si mesma um evento recente na igreja.
53
Formula of Concord, Epítome 1, “Of the Compendious Rule and Norm” (Schaff, 3:93-94).
54
Ibidem (Schaff, 3:94-95).
55
Timothy George, Theology of the reformers (Nashville: Broadman, 1988), p. 81, cf. p. 315 [edição em
português: Teologia dos reformadores, 2. ed. rev. e ampl. (São Paulo: Vida Nova, 2017)]. Cf. Alister
McGrath, Reformation thought, 2. ed. (Oxford; Cambridge: Blackwell, 1993), p. 144-7 [edição em
português: O pensamento da Reforma, tradução de Jonathan Hack (São Paulo, Cultura Cristã, 2014)]. Cf.
Chris Castaldo, “A journey to Evangelicalism”, in: Robert L. Plummer, org., Journeys of faith:
evangelicalism, Eastern orthodoxy, catholicism, and anglicanism (Grand Rapids: Zondervan, 2012), p. 156-
8.
56
De fato, veja Gregg R. Allison, “The Corpus Theologicum of the church and presumptive authority”,
in: Derek Tidball; Brian Harris; Jason S. Sexton, orgs., Revisioning, renewing, and rediscovering the triune
center: essays in honor of Stanley J. Grenz (Eugene: Wipf & Stock, 2014), cap. 16. Uma definição clara do
sola Scriptura em harmonia com o princípio articulado pelos reformadores protestantes responde a
contento, por exemplo, a réplica de Frank Beckwith ao meu “Response to Catholicism”, in: Plummer,
Journeys of faith, p. 115-28. Frank parece compreender meu apelo ao sola Scriptura como se com isso eu
rejeitasse todo e qualquer recurso às fontes extrabíblicas — por exemplo, aos credos da igreja primitiva e
suas listas de escritos canônicos do Antigo e do Novo Testamentos —, mas seu entendimento desse
princípio protestante está muito distante do que ele realmente significa, assim como a implicação que ele
tira disso (Francis J. Beckwith, “Catholicism rejoinder”, in: ibidem, p. 129-34).
57
Kreeft, p. 20.
58
Athanasius [Atanásio], Against the Heathen 1 (NPNF2 4:4). Em outro lugar, ele disse: “A Escritura
Sagrada é, em todas as coisas, mais do que suficiente para nós” (To the bishops of Egypt 4 [NPNF2 4:225]) e
“A Escritura Divina é suficiente sobre todas as coisas” (Councils of Ariminum and Seleucia, pt. 1, 6 [NPNF2
4:453]).
59
Cyril of Jerusalem [Cirilo de Jerusalém], Catechetical Lectures 4.1 (NPNF2 7:23).
60
Vincent of Lérins, Commonitory 2.5 (NPNF2 11:132). Para uma discussão mais ampla de Vicente de
Lérins e seu papel na formulação da ideia de Tradição, veja Thomas G. Guarino, Vincent of Lérins and the
development of Christian doctrine, Foundations of Theological Exegesis and Christian Spirituality (Grand
Rapids: Baker Academic, 2013).
61
Kreeft, p. 20.
62
Ibidem.
63
É interessante observar que Kreeft apela à doutrina da infalibilidade em suas objeções ao sola
Scriptura: “Se a Escritura é infalível, conforme crê o protestantismo tradicional, então a igreja deve ser
infalível também, porque uma causa falível não pode produzir um efeito infalível, e a igreja produziu a
Bíblia. A igreja (apóstolos e santos) escreveu o Novo Testamento, e a igreja (por meio dos bispos) definiu
seu cânon” (ibidem). Valendo-nos dessa lógica, cabe-nos concluir que a nação de Israel era infalível porque
produziu o Antigo Testamento. Ninguém, nem mesmo a Igreja Católica, jamais expressou ou defendeu tal
ideia absurda. Portanto, se não há alegação de infalibilidade da nação de Israel com base na ideia de que
uma causa infalível é necessária para que se produza um efeito infalível (o Antigo Testamento), por que
então Kreeft argumenta desse modo em favor da infalibilidade da Igreja Católica na produção de um efeito
infalível (o Novo Testamento)? O que a teologia evangélica propõe não é a infalibilidade da nação de Israel,
mas a inspiração do Espírito Santo quando os profetas, sábios, salmistas e narradores escreviam a Escritura
judaica; não se alega também a infalibilidade da igreja, mas a inspiração do Espírito Santo no momento em
que os autores dos Evangelhos, o narrador de Atos, os autores das cartas e o profeta de Apocalipse
escreviam a Escritura cristã. Para uma discussão mais ampla do assunto, veja Chris Castaldo, “Journey to
Evangelicalism” (p. 155-6).
64
Para as igrejas evangélicas que se colocam conscientemente dentro da herança protestante das “marcas
da igreja” — a verdadeira pregação da Palavra de Deus e a administração correta do batismo e da ceia do
Senhor —, essa vinculação próxima entre Escritura e essa última ordenança é muito apreciada, ainda que o
entendimento protestante da eucaristia/ceia do Senhor/comunhão seja muito diferente da doutrina católica
da transubstanciação.
65
A declaração do Catechism de igual veneração da Escritura e da Eucaristia por sua posição histórica
— “a igreja sempre venerou as Escrituras como venera o Corpo do Senhor” (CCC 103) — é extremamente
desconcertante se submetida ao crivo da prática atual da igreja. Por exemplo, não foi sem razão histórica e
empírica que os reformadores criticaram asperamente a Igreja Católica do seu tempo por diminuir a Palavra
de Deus e destacar a parte eucarística na missa. O equilíbrio entre Liturgia da Palavra e a Liturgia da
Eucaristia na missa católica foi obra do Concílio Vaticano II, e muito bem-vinda, mas ela foi precisamente
isso — uma obra que superou séculos de desequilíbrio entre os dois elementos.
66
CCC 107; citação do Concílio Vaticano II, Dei Verbum 11. A linguagem da Dei Verbum — “cabe-nos
reconhecer que os livros da Escritura, com firmeza e de maneira fiel e sem erro, ensinam aquela verdade
que Deus, por amor à nossa salvação, quis confiar às Escrituras Sagradas” (grifo do autor) — tem sido
motivo de controvérsia significativa e debate incessante. De um lado estão os que não se identificam com a
inerrância, para quem a frase se refere a partes da Escritura nas quais as questões relativas à salvação estão
isentas de erros. Apontam também para o desenvolvimento histórico dessa seção da Dei Verbum,
particularmente para a intervenção do cardeal Franz König no Concílio Vaticano (2 de outubro de 1964),
insistindo que a existência de erros na Escritura (e.g., quando se diz que Mc 2.26 está em conflito com 1Sm
21.1s., ou que Mt 27.9 cita equivocadamente uma passagem desconhecida de Jeremias, e não Zc 11.12),
significa que o Concílio não poderia afirmar a inerrância da Escritura. Do outro lado estão os que defendem
a inerrância, aqueles que, levando a frase toda em consideração, insistem que sua primeira frase
explanatória — “uma vez, portanto, que tudo o que os autores inspirados, ou autores santos, afirmam deve
ser entendido como afirmação do Espírito Santo” — impede a leitura do documento pela perspectiva dos
que acreditam na existência de erros. Eles apontam ainda para as notas de rodapé da Seção 11 da Dei
Verbum, que faz referência a Agostinho, Tomás de Aquino, ao Concílio de Trento, à encíclica
Providentissimus Deus, de Leão XIII, e à encíclica Divino Afflante Spiritus, de Pio XII, para confirmar sua
interpretação, uma vez que esses autores, concílio e encíclicas defendiam a inerrância da Escritura. Para
uma discussão desse debate, veja, do cardeal Alois Grillmeier, “The divine inspiration and the interpretation
of Sacred Scripture”, in: Herbert Vorgrimler, org., Commentary on the Documents of Vatican II (New York:
Crossroad, 1989), vol. 3, p. 199-246.
67
A discussão que se segue encontra-se em Gregg R. Allison, The protestant doctrine of the perspicuity
of Scripture: an evangelical reformulation (dissertação de doutorado, Trinity Evangelical Divinity School,
1995).
68
É importante observar que em momento algum dessa discussão usei as palavras “óbvio” ou “fácil” no
tocante à interpretação da Escritura. Esse equívoco é frequentemente impingido à doutrina, conforme deixa
claro mais uma vez a réplica de Frank Beckwith a mim em meu “Response to Catholicism”, in: Plummer,
Journeys of faith, p. 131. Conforme disse Pedro em relação aos escritos do apóstolo Paulo, “há pontos
difíceis de entender, que os ignorantes e inconstantes distorcem, como fazem também com as demais
Escrituras, para sua própria destruição” (2Pe 3.16). Embora devamos agradecer a Pedro por sua
honestidade, é importante observar que seu comentário é bastante circunscrito. Ele não diz que todas as
coisas ou muitas coisas nos escritos de Paulo têm essas mesmas características; “há pontos”, diz Pedro. É
importante observar também que Pedro não lamenta as muitas coisas impossíveis de compreender; “difíceis
de entender”, diz o apóstolo. Portanto, a admissão franca de Pedro de que os escritos do apóstolo Paulo
apresentam coisas difíceis de compreender não pode de modo algum ser entendida como se toda a Escritura
fosse obscura ou que os leigos deveriam ser impedidos de ler e de estudar a Bíblia. Portanto, clareza da
Escritura não quer dizer que ela seja fácil de interpretar, não se deve cometer esse equívoco. Na verdade,
minha argumentação não segue nessa linha. Fora isso, se para Beckwith a posição católica se opõe à clareza
da Escritura, disso se segue que esse modo de revelação divina é obscuro também para a Igreja Católica,
incluindo-se aí todas as passagens (e.g., Mt 16.13-20) às quais a igreja apela para dar fundamentação às
suas doutrinas de justificação, tradição, transubstanciação, purgatório, Maria etc. — e também à sua
doutrina da infalibilidade papal no que diz respeito à revelação divina. Vitórias aparentes podem resultar em
vitórias de Pirro para os que as alcançaram.
69
A conhecida dificuldade de Martinho Lutero com quatro livros do Novo Testamento — Hebreus,
Tiago, Judas e Apocalipse — e sua inserção no final de sua tradução da Bíblia em alemão depois dos outros
23 “livros verdadeiros e confiáveis do Novo Testamento” — foi evidentemente uma anomalia e não
representa um desafio sério ao cânon do Novo Testamento (Martin Luther, Prefaces to the New Testament
[LW 35:394-399]). Para uma discussão mais ampla do assunto, veja Allison, HT, p. 53-4n66.
70
Josephus [Josefo], Against Apion 1.37. No cômputo posterior dos judeus aparecem listados 24 livros.
Em seguida vem o cânon do Talmude: a Lei (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio); os
Profetas (Josué, Juízes, Samuel, Reis, Jeremias, Ezequiel, Isaías, os Doze Profetas Menores); os Escritos
(Rute, Salmos, Jó, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Lamentações, Daniel, Ester, Esdras-
Neemias e Crônicas) (Baba Bathra 14b-15a).
71
Esse escrito não canônico complementar foi por fim acrescentado ao final de Baruque (outro escrito
apócrifo) e incluído no cânon católico romano.
72
Ele também listou dois escritos complementares não canônicos do Novo Testamento: a Didaquê, ou,
Ensino dos Doze, e O pastor de Hermas (Athanasius, Thirty-ninth Easter letters [367] 7 [NPNF2 4:552]).
73
Cyril of Jerusalem, Catechetical Lectures 4.35 (NPNF2 7:27). A redação do texto foi revisada para
torná-la mais clara.
74
Jerome, Preface to the books of Samuel and Kings (NPNF2 6:490).
75
Ibidem.
76
Jerome, Preface to the books of Proverbs, Ecclesiastes, and Song of Songs (NPNF2 6:492).
77
Sabendo certamente da existência desses defensores históricos de um cânon menor para o Antigo
Testamento, a Igreja Católica não se colocou ao lado deles. Mas por que não? A Catholic encyclopedia dá
um exemplo dessa rejeição: “Obviamente, o ranking inferior a que os escritos apócrifos foram relegados
por autoridades como Orígenes, Atanásio e Jerônimo se deveu a uma concepção rígida demais de
canonicidade, do tipo que exige de um livro, para que seja digno dessa dignidade suprema, que seja
acolhido por todos, aprovado pela antiguidade judaica e seja, sobretudo, próprio não apenas para a
edificação, mas também para a ‘confirmação da doutrina da igreja’, para tomar emprestada a expressão de
Jerônimo” (Catholic encyclopedia, “Canon of the Old Testament”; disponível em:
http://www.newadvent.org/cathen/03267a.htm). A pergunta que se faz é a seguinte: em um estudo histórico
como o do desenvolvimento da consciência canônica da igreja primitiva, baseado em que se pode julgar
esses que contribuem para essa consciência de “concepção de canonicidade rígida demais”? A abordagem
anacrônica da Enciclopédia e a avaliação que ela faz é evidente e equivocada.
78
Augustine, The city of God 18:43-44 (NPNF1 2:386-387) [edição em português: Agostinho, A cidade
de Deus, tradução de Oscar Paes Leme (Petrópolis: Vozes de Bolso, 2012), 2 vols.].
79
Jesus, um judeu da Palestina, sabia bem o hebraico e usava a Bíblia hebraica, conforme mostra a
leitura que fez do rolo de Isaías na sinagoga de Nazaré (Lc 4.16-20). É também o caso dos autores do Novo
Testamento citados na Septuaginta, portanto eles estavam evidentemente familiarizados com a tradução da
Bíblia hebraica. É importante frisar, porém, que nenhum autor do Novo Testamento cita os escritos
apócrifos.
80
Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 4.ª sessão (8 de abril de 1546), Decreto sobre as Escrituras
Canônicas (Schaff, 2:80). A redação do texto foi revisada para torná-la mais clara.
81
Kreeft, p. 20.
82
Foi só quando o Concílio de Trento proclamou o cânon do Antigo Testamento e nele incluiu os
escritos apócrifos que um concílio ecumênico da Igreja Católica determinou oficialmente esse cânon
(Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 4.ª sessão [8 de abril de 1546]; Decreto sobre as Escrituras
Canônicas [Schaff, 2:80]).
83
John Webster, Holy Scripture: a dogmatic approach, Current Issues in Theology (Cambridge:
Cambridge University Press, 2003), p. 46; cf. Michael Horton, People and place: a covenant ecclesiology
(Louisville: Westminster John Knox, 2008), p. 72-98.
84
E.g., Ezequiel 36.25-27; Joel 2.28-32; retomado por João Batista (Lc 3.15-17) e Jesus (Lc 24.44-49;
At 1.4,5).
85
Atos 2.1-4 explicado como realização da profecia de Joel (At 2.16-21).
86
Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 4.ª sessão (8 de abril de 1546); Decreto sobre as Escrituras
Canônicas (Schaff, 2:82).
87
Martin Luther [Martinho Lutero], Answers to the hyperchristian, hyperspiritual, hyperlearned book by
Goat Emser in Leipzig (LW 39:181).
88
Ibidem (LW 39:178).
89
Martin Luther, Lectures on Genesis: chapters 45–50 (LW 8:146).
90
John Calvin, Commentaries on Galatians and Ephesians, tradução para o inglês de William Pringle
(reimp., Grand Rapids: Baker, 2005), p. 136.
91
Calvin, Institutes 4.11.1 (LCC 21:1212).
92
Essa ênfase se deveu ao fato de que a Carta aos Romanos é uma clara articulação entre o evangelho e a
obra poderosa de justificação pela graça divina por meio da fé em Jesus Cristo.
93
CCC 150.
94
CCC 153.
95
CCC 155.
96
CCC 156-159
97
CCC 160.
98
CCC 161.
99
CCC 162; as citações bíblicas são Gálatas 5.6 e Romanos 15.13.
100
CCC 163.
101
CCC 170.
102
CCC 168.
103
Ibidem. A pergunta e a resposta fazem parte do ritual romano, rito do batismo de adultos.
104
CCC 169; a citação é de Faustus de Riez, On the Holy Spirit 1, 2.
105
CCC 153; a citação é de Mateus 16.17.
106
Ibidem.
107
CCC 162.
108
Um possível paralelo é a disciplina divina administrada à igreja de Corinto pelos abusos cometidos na
ceia do Senhor, em que alguns se achavam enfermos e outros até morriam prematuramente (1Co 11.17-34).
109
Para uma discussão mais ampla, veja Gregg R. Allison, “Eternal security”, in: A. Scott Moreau, org.,
Evangelical dictionary of world missions, Baker Reference Library (Grand Rapids: Baker, 2000), p. 318-9.
110
CCC 168-169.
111
Cipriano, Treatise, “On the unity of the church”, 1.6 (ANF 5:423).
112
Martin Luther, Large catechism, segunda parte, o Credo, art. 3 [edição em português: Catecismo
maior do dr. Martinho Lutero, tradução de Walter O. Schlupp (São Leopoldo/Porto Alegre:
Sinodal/Concórdia, 2012)].
113
Calvin, Institutes 4.1.1 (LCC 21:1012).
114
Ibidem, 4.1.4 (LCC 21:1016).
3
A PROFISSÃO DA FÉ
(primeira parte, seção 2, capítulo 1, artigo 1
– capítulo 3, artigo 8)
As doutrinas de Deus, dos anjos, da humanidade e do pecado; as
doutrinas da Pessoa de Jesus Cristo; a encarnação e a imaculada
concepção de Maria; a doutrina da obra de Jesus Cristo; as
doutrinas da ressurreição, da ascensão e da segunda vinda de
Cristo; a doutrina do Espírito Santo

Depois de tratar das doutrinas da revelação e da fé, o Catechism of the Catholic


Church se volta a seguir para as doze doutrinas que decorrem dos credos da
1

igreja, especificamente do Credo dos Apóstolos conforme complementado pelo


Credo Niceno-Constantinopolitano (daqui por diante, Credo Niceno).

As doutrinas de Deus, dos anjos, da humanidade e do


pecado: “Creio em Deus Pai todo-poderoso, criador
do céu e da terra” (seção 2, capítulo 1, artigo 1)
Existe apenas um Deus cujo nome é “Eu sou quem eu sou” e que é verdade e
amor. Esse Deus único e vivo é trino, existindo eternamente como Pai, Filho e
Espírito Santo. Cada uma das três Pessoas é eterna e plenamente Deus e se
distingue por sua relação eterna com os outros dois (que juntos são conhecidos
como Trindade ontológica: “É o Deus Pai que gera, o Filho que é gerado e o
Espírito Santo que procede”) e por sua obra pessoal, que é, não obstante, obra
2

comum dos três (conhecida como Trindade econômica). Além disso, Deus é
3

todo-poderoso, e ele criou o Universo e tudo o que nele há ex nihilo (do nada); o
4

Catechism condena explicitamente o panteísmo, o dualismo (maniqueísmo), o


deísmo, o materialismo e evita qualquer discussão explícita da evolução. Além
5
de criar tudo o que há, Deus preserva e sustenta a criação existente e realiza seu
eterno propósito por meio da obra da providência. O problema do mal deve ser
tratado no contexto da fé cristã em geral — Criação, Queda, redenção e
consumação — e a defesa do livre-arbítrio parece ser a estratégia preferida para
o problema.
A confissão do Credo dos Apóstolos de que Deus é “Criador do céu e da
terra” (Credo Niceno: “de todas as coisas, visíveis e invisíveis”) leva a uma
breve discussão sobre os anjos, que são seres espirituais, incorpóreos,
pertencentes a Cristo e que o assistem em sua missão de salvação. Dá-se alguma
atenção ao papel dos anjos na liturgia da igreja — sua assistência é invocada
especificamente na adoração a Deus — e à proteção dos anjos da guarda.
No que diz respeito à criação do universo visível, Deus criou os seres
humanos como criaturas que carregam sua imagem, o que significa que somente
o ser humano é “capaz de conhecer e de amar seu Criador”, é “a única criatura
na terra que Deus quis por si mesmo” e é chamado a partilhar da vida de Deus. 6

Em face dessa dignidade de ser pessoal, o indivíduo humano é “capaz do


autoconhecimento, do autocontrole, de se dar livremente e manter comunhão
com outras pessoas”. Como todos os seres humanos são portadores da imagem
7

de Deus, e por ele criados, a unidade da raça humana estimula a solidariedade e


o amor entre as pessoas por toda parte.
Especificamente, ser criado à imagem de Deus significa que a pessoa é um ser
complexo formado por um aspecto material e outro imaterial. Esse último
elemento, a alma, “se refere ao aspecto mais íntimo do homem, aquele que é de
maior valor para ele, aquele pelo qual a imagem de Deus que traz consigo ganha
maior especificidade”. Contudo, essa ênfase não tem como objetivo
8

menosprezar ou minimizar o aspecto físico do ser humano, uma vez que “o


corpo humano partilha da dignidade da ‘imagem de Deus’: ele é um corpo
humano precisamente porque é animado por uma alma espiritual”. Esses 9

elementos imaterial e material se acham de tal modo unidos íntima e


intricadamente que “se torna necessário entender a alma como ‘forma’ do
corpo”, de tal modo que, num ser humano, ambos “não são duas naturezas
unidas; antes, sua união forma uma única natureza”. Teologicamente, portanto,
10

a antropologia católica sustenta (1)a dicotomia, e não a tricotomia, isto é, a


constituição humana é formada de dois aspectos (corpo e alma), e não de três
(corpo, alma e espírito); (2) o criacionismo, e não o traducianismo, isto é, a
11

alma é criada imediatamente por Deus, portanto não é transmitida dos pais para
os filhos; e (3) a imortalidade da alma, isto é, “ela não perece quando se separa
do corpo na morte”. 12

Os seres humanos foram criados por Deus com identidade de gênero, o que
significa que homem e mulher são “iguais em sua condição de pessoa”, feitos à
imagem de Deus, mas são também diferentes entre si para serem “‘auxiliares’
um do outro”. Juntos, portanto, homens e mulheres, como servos de Deus,
13

participam da vocação de governar o mundo criado.


Adão e Eva, as primeiras criaturas humanas criadas por Deus, “foram feitos
originalmente em um ‘estado de santidade e justiça’”. Santidade original
14

significa que compartilhavam da vida de Deus, sem medo do sofrimento ou da


morte. Justiça original significa que: (1) individualmente, Adão e Eva
experimentaram harmonia interna em seu íntimo; (2) em seu relacionamento, os
dois experimentaram mútua harmonia; e (3) no tocante ao meio ambiente,
viviam em harmonia com o mundo criado à sua volta. Especificamente, no que
se refere ao primeiro ponto, as faculdades espirituais da alma de Adão (o mesmo
se aplica a Eva) controlavam seu corpo e suas paixões, de modo que “ele estava
livre da tríplice concupiscência que o subjugava aos prazeres dos sentidos
[lascívia], à cobiça de bens terrenos [ganância] e à autoafirmação [orgulho]
contra os imperativos da razão”. Colocados no jardim do Éden, Adão e Eva
15

colaboravam um com o outro e com Deus no desenvolvimento da ordem criada.


Nesse estado harmonioso, introduziu-se outra realidade em algum momento
da origem da humanidade. Embora haja quem interprete essa interrupção “como
mera falha de desenvolvimento, uma debilidade psicológica, um erro ou a
consequência necessária de uma estrutura social inadequada etc.”, a revelação
divina a apresenta como Queda, “um acontecimento fundamental, um feito que
ocorreu no início da história humana”. Antes mesmo dessa derrocada, houve a
16

queda de uma parte dos anjos, que foram originalmente criados como seres bons.
Eles abusaram do livre-arbítrio que tinham para se rebelar, rejeitaram a Deus e
ao seu reino e assim cometeram um pecado imperdoável. Satanás e seus
asseclas, os demônios, ao mesmo tempo que levam a destruição à raça humana,
são providencialmente confinados por Deus e só podem agir em conformidade
com a vontade dele. Foi esse Satanás ou Diabo que levou a cabo uma “sedução
enganadora que induziu o homem a desobedecer a Deus”. 17

Em meio a essa tentação satânica, Adão e Eva lutavam com a ordem divina
que não lhes permitia comer da árvore do conhecimento do bem e do mal que,
“simbolicamente, evoca os limites intransponíveis que o homem, sendo uma
criatura, deve livremente reconhecer e, confiante, respeitar”. Eles não
18

obedeceram a Deus: “O homem, tentado pelo Diabo, deixou que sua confiança
no Criador morresse em seu coração e, abusando da liberdade que tinha,
desobedeceu à ordem de Deus. Esse foi o primeiro pecado do homem [...]. Ao
cometer esse pecado, o homem preferiu a si mesmo a Deus e, por esse ato,
zombou dele. Ele escolheu a si mesmo em detrimento de Deus, insurgindo-se
contra as exigências de sua condição de criatura e, portanto, contra seu próprio
bem”. Essa rebeldia teve consequências devastadoras. Em primeiro lugar, a
19

perda da santidade original: Adão e Eva imediatamente tiveram medo de Deus,


e a morte — o castigo que os ameaçava por desobedecerem à proibição divina
— entrou na raça humana. Em segundo lugar, a perda da justiça original : as
faculdades espirituais da alma já não dominavam mais seus corpos com suas
paixões; a harmonia que havia entre os dois fica arruinada e seu relacionamento
agora se caracteriza por tensões, lascívia e dominação; a harmonia que tinham
com a ordem criada é destruída, e o trabalho se torna penoso e árduo.
Contudo, as consequências da Queda se espalham e afetam não apenas Adão e
Eva; pelo contrário, o pecado se dissemina universalmente e atinge a todos os
seres humanos, já que todos estão implicados no pecado de Adão. O pecado
original, ou “a morte da alma”, passou de Adão para todos os seres humanos, e
20

é o pecado com que nascemos. O Catechism explica essa transferência sobretudo


sob seu aspecto de realismo (“a raça humana inteira está em Adão ‘como um só
corpo de um único homem’”); isto é, todos os seres humanos estavam presentes
21

em Adão e, portanto, todos pecaram quando ele pecou. Essa explicação, porém,
tem igualmente um elemento de representação : “Adão havia recebido uma
santidade e uma justiça originais não apenas para si, mas para toda a natureza
humana”. A transmissão do pecado original ocorre por propagação; a natureza
22

humana decaída, destituída de santidade original e de justiça original, é


transmitida a toda a raça humana. Este não é, especificamente, um pecado
pessoal; o pecado original é um estado que se contraiu, e não um ato pecaminoso
que se cometeu. Além disso, o pecado original não resulta em total depravação e
total inabilidade: a natureza humana “se acha ferida nos poderes naturais que lhe
são próprios; está sujeita à ignorância, ao sofrimento e ao domínio da morte;
inclina-se ao pecado — uma inclinação ao mal denominada de
‘concupiscência’”. A solução da Igreja Católica para o problema do pecado
23

original é o sacramento do batismo, de modo especial o batismo infantil, que


perdoa o pecado original e remove a corrupção pela regeneração, ou pela
concessão de uma nova natureza espiritual.

Avaliação evangélica
A doutrina de Deus conforme afirmada pelo Catechism é totalmente bíblica,
consistente com a fé histórica da igreja ao longo de sua existência e defendida
por todos os católicos, protestantes e também pelos ortodoxos. A única diferença
se dá com a Trindade ontológica, especificamente com a eterna processão do
Espírito Santo. O Catechism, que representa a tradição da igreja ocidental —
católica e protestante/evangélica — afirma que “o Espírito Santo procede do Pai
e do Filho” e explica por que a adição da cláusula filioque (“e do Filho”) era
adequada. A tradição ortodoxa confessa a processão do Espírito Santo do Pai e
24

nega o filioque.
25

Há forte respaldo bíblico para essa dupla processão. Entre outras coisas: o
Espírito Santo é descrito (Rm 8.9) como Espírito Santo de Deus (i.e., do Pai) e
Espírito de Cristo (i.e., do Filho); tanto o Pai quanto o Filho enviam o Espírito
no dia de Pentecostes (Jo 14.16,26; 15.26; 16.7), dando a entender com isso que
ele procede de ambos; Cristo soprou seu Espírito nos discípulos, dando a
entender com isso que, juntamente com o Pai, o Filho comunica o Espírito Santo
(At 2.33). Além disso, a objeção ortodoxa (de que a teologia ocidental cria uma
situação em que há dois princípios ou fontes do Espírito Santo) foi bem
respondida por teólogos como Agostinho. Ele disse que o Espírito procede de
uma ação conjunta do Pai e do Filho. A teologia católica e a teologia evangélica
26

acerca da processão do Espírito não apresentam discordância.


Entre as teologias católica e evangélica da Criação, há conflitos intramuros
sobre o evolucionismo teísta, o antigo criacionismo, criacionismo da Terra
jovem e outros pontos de vista. Com relação à doutrina da providência e seu
corolário, o problema do mal, o catolicismo propõe a defesa do livre-arbítrio, 27

uma perspectiva que é também sustentada por alguns defensores da teologia


evangélica.
A teologia católica dos anjos está em sintonia com a angelologia evangélica,
exceto por duas coisas. Em primeiro lugar, a ênfase litúrgica da igreja no que diz
respeito à união com os anjos na adoração a Deus, acarretando com isso a
invocação da sua assistência, não tem base bíblica e parece contradizer a
Escritura. Certamente os anjos adoram a Deus. Além disso, a igreja —
incluindo-se aí os cristãos que morreram e estão agora com o Senhor no céu na
condição de membros da igreja celestial, e os cristãos que, pela fé, caminham
como membros da igreja terrena — junta-se à hoste angélica em sua adoração a
Deus (Hb 12.18-24). Contudo, quanto à perspectiva de que esses anjos que
adoram a Deus assistam a igreja em sua adoração, a Escritura enfatiza que os
“anjos anseiam por ver” as coisas que dizem respeito à salvação (das quais
somente os seres humanos podem desfrutar; 1Pe 1.12) e que os anjos tomam
conhecimento da “multiforme sabedoria divina” por meio da igreja (Ef 3.10),
porém a ideia de que assistem a igreja em sua adoração não tem apoio bíblico.
Em segundo lugar, a declaração do Catechism de que “cada fiel tem a seu lado
um anjo como guardião e pastor para o conduzir na vida” deve ser afirmada
28

com cautela, se é que deve ser afirmada. De acordo com o livro de Daniel
(10.13,20; 12.1), parece que esses anjos em especial têm uma missão específica
nas nações da terra, e Jesus diz que as crianças têm a proteção de anjos especiais
(Mt 18.10). O respaldo mais convincente desse ponto de vista se encontra em
Atos (12.15), que narra a história um tanto cômica da libertação de Pedro do
cárcere e de como ele aparece na porta da igreja que havia se reunido para orar
pela sua soltura. Quando alguém disse que o apóstolo estava na porta da igreja
pedindo para entrar, os discípulos, chocados, disseram: “É o seu anjo!”.
Contudo, concluir dessas passagens que todos têm um anjo da guarda específico
é pura especulação. Além disso, essa perspectiva parece negligenciar a ênfase
bíblica de que Deus providencia um exército de anjos para defender e ajudar seu
povo (e.g., 2Rs 6.17; Lc 16.22). Nesse sentido, Calvino talvez tenha ido mais
direto ao ponto: “Há um fato que é preciso acatar, que o cuidado com cada um
de nós não é tarefa de um anjo apenas, senão de todos, que, unânimes, zelam por
nossa salvação”.29

Com relação à doutrina da humanidade, a teologia católica e a evangélica têm


muita coisa em comum, mas têm também áreas de divergência. Há consenso nas
seguintes afirmações: em primeiro lugar, somente o ser humano foi criado à
imagem de Deus, que é a fonte de sua dignidade, razão e de sua capacidade sem
igual de desfrutar de uma relação pessoal com Deus, além de ser o fundamento
da solidariedade da raça humana. Em segundo lugar, o ser humano é um ser
complexo que consiste em um aspecto material (o corpo) e (pelo menos um)
aspecto imaterial. Com relação a esse último elemento, a maioria dos
evangélicos defende a existência de uma dicotomia (dois aspectos constitutivos
da natureza humana — o corpo e a alma, que é também chamada de espírito),
em consonância com a teologia católica. Contudo, alguns evangélicos sustentam
a existência de uma tricotomia (três aspectos constitutivos do ser humano: um
elemento material [o corpo] e dois elementos imateriais [a alma e o espírito]). 30

Tanto a dicotomia quanto a tricotomia se opõem ao monismo, visão segundo a


qual a natureza humana é simples, composta de um aspecto material apenas. Tal
31

posição está fora dos limites da fé cristã ortodoxa, uma vez que contradiz a
exposição bíblica do estado intermediário (2Co 5.1-9) e investe contra a posição
32

histórica do cristianismo. Além disso, a teologia evangélica se encontra dividida


em relação ao problema da origem do elemento imaterial da natureza humana.
Há os que defendem o criacionismo, crendo que Deus cria a alma do nada e a
une à realidade material na concepção; posição que está de acordo com a
33

teologia católica. Outros evangélicos sustentam o traducianismo, perspectiva


34

segundo a qual a alma é passada dos pais para os filhos. Há ainda outros
35

indecisos nessa questão ou que propõem uma explicação mais holística — por
exemplo, o dualismo emergente de William Hasker ou o personalismo emergente
—, que é provavelmente melhor. Em terceiro lugar, a teologia católica e a
36

evangélica concordam que a existência humana não termina na morte, mas que
continua eternidade afora.
37

Em quarto lugar, a teologia católica e a evangélica concordam com o fato de


que tanto homens quanto mulheres foram feitos à imagem de Deus. Isso
significa que são iguais em sua personalidade humana e que, juntos, são
administradores da ordem criada. O desprezo histórico e contemporâneo por um
ou por outro sexo não tem respaldo na Escritura e é contrariado pela criação à
imagem divina. De fato, a igreja deveria liderar homens e mulheres encorajando-
os a honrar, amar e respeitar uns aos outros como portadores que são da imagem
divina. Ao mesmo tempo, a teologia católica e a protestante afirmam as
diferenças divinamente concebidas entre homem e mulher, porém muitos
evangélicos não concordam que o propósito dessa diferença de criação era que
ambos fossem “ajudadores” um do outro. Que homem e mulher complementam
38

um ao outro ao cumprirem o mandato cultural — “Frutificai e multiplicai-vos;


enchei a terra e sujeitai-a; dominai” (Gn 1.28) — é certamente verdadeiro: o
propósito divino é que a maior parte dos homens e das mulheres se case e tenha
filhos, e que tanto uns quanto outros contribuam para a construção da
civilização. Contudo, a narrativa bíblica da criação da primeira mulher (2.18-25)
com o propósito de fazer dela “uma ajudante idônea” para o primeiro homem (v.
18) diz respeito ao plano de Deus de moldar Eva para que fosse a esposa de
Adão; a ideia de reciprocidade — isto é, ambos são auxiliadores um do outro —
não está presente na história. De fato, essa narrativa se torna a base para a
instrução bíblica posterior sobre a liderança amorosa do marido e a submissão da
mulher (1Co 11.2-16; cf. Ef 5.22,23). Certamente, a interdependência homem-
mulher é afirmada pela Escritura. Por exemplo, Eva foi tirada de Adão e, desde
esse fato, todo homem que já viveu nasceu de uma mulher (1Co 11.11,12).
Contudo, a mutualidade e a interdependência que tipificam a relação entre
homens e mulheres em certas áreas da vida não se aplicam à relação entre
marido e mulher.
A primeira grande área de discordância na doutrina da humanidade diz
respeito ao conceito católico do estado original de Adão e Eva. A teologia
evangélica compartilha com a visão católica a ideia de que o primeiro homem e
a primeira mulher foram criados em estado de integridade com (1) harmonia
interior individual, sem a natureza do pecado que pudesse produzir uma
tendência para o mal; (2) com um relacionamento harmônico entre ambos, sem
embaraço e sem vergonha de provocar uma separação entre os dois; e (3) com
harmonia externa em relação à ordem criada, sem transtornos no meio ambiente
que resistam ao seu exercício de domínio. Contudo, o ponto de discórdia vem
com a ideia católica de que a alma de Adão (assim como a de Eva) —
especificamente, sua racionalidade — governava suas paixões e seu corpo. A
primeira objeção levantada é a aparente identificação da imagem de Deus com a
razão ou o intelecto, elevando assim um aspecto da natureza humana sobre os
demais. Embora a teologia católica tenha antecedentes históricos nesse sentido
— por exemplo, Ireneu e Tomás de Aquino enfatizaram o intelecto em sua
teologia da imagem de Deus —, as narrativas bíblicas da criação humana à
39

imagem divina não sustentam tal ideia; na verdade, elas não apresentam indício
algum de que alguma possível luta interior tenha sido vencida pela razão, que
teria passado a controlar as paixões do corpo. Pelo contrário, a Escritura
apresenta a criação divina do ser humano de maneira holística — “E Deus criou
o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou”
(Gn 1.27) — seguida por uma ênfase na forma que esse ser humano criado
holisticamente deve operar: como administrador que procria e cuja vocação é
estabelecer e erigir uma civilização humana que prospere na terra (v. 28). Além
40

disso, a ênfase católica na alma humana — razão, intelecto — como sede da


imagem de Deus parece revelar um apego maior à filosofia gnóstica/platônica do
que à Escritura.
A segunda discordância principal introduz o próximo tópico e, portanto,
merece apenas uma breve menção aqui: a teologia católica acredita que a queda
de Adão e Eva resultou na subversão do controle da alma sobre as paixões e o
corpo. Portanto, houve uma grande reversão quando o pecado entrou na raça
humana, em que o ser humano experimentou a perda de sua integridade
deixando-se dominar por seus elementos mais baixos. Conforme explicaremos
posteriormente, a teologia evangélica diz que essa crença católica falseia o
impacto da Queda sobre todos os aspectos da natureza, da razão e do intelecto
humano.
Em relação à doutrina do pecado, observa-se ampla concordância entre a
teologia católica e a evangélica. Mais do que uma interrupção, e certamente não
um mito, a Queda foi um fato no espaço e no tempo que devastou tudo o que
Deus havia planejado. Ela foi precedida pela subversão no reino dos anjos, que
introduziu um ser espiritual maléfico, Satanás, cujo objetivo era matar — isto é,
roubar a vida dada por Deus (Jo 8.44) — os primeiros seres humanos,
seduzindo-os pela mentira. Criando uma atmosfera de ardis, Satanás, disfarçado
de serpente, tentou Eva para que ela duvidasse da Palavra de Deus, questionasse
a bondade divina e desobedecesse à autoridade de Deus (Gn 3.1-7). Adão,
embora não se deixasse enganar pelas maquinações do Maligno, pecou de olhos
bem abertos (1Tm 2.14). Desobediência, infidelidade, desconfiança, rebelião,
transgressão, violação, abuso da liberdade humana, desrespeito pela limitação
humana divinamente imposta, usurpação do lugar do Criador por suas criaturas
— todas essas expressões captam algum aspecto do acontecimento catastrófico
da queda no pecado, a respeito do qual há amplo acordo nas teologias católica e
evangélica.
Há outros pontos de concordância: Adão e Eva tiveram imediatamente receio
de Deus, e a ameaça de morte se tornou realidade. Num duplo sentido, essa
morte foi primeiramente uma realidade espiritual: Adão e Eva morreram porque
estavam separados de Deus, cortados da relação aberta, face a face, que
desfrutavam com ele até o momento em que caíram. Mais tarde, morreriam
fisicamente, voltando ao pó da terra de onde haviam sido tomados (Gn 2.7;
3.19). Além disso, a mútua harmonia que havia entre os dois fora rompida, seu
relacionamento seria caracterizado pela competição, lascívia, rebelião e por uma
severa dominação (3.16), bem como pela vergonha (2.25; 3.7). O rompimento da
antiga harmonia prosseguiria na criação em que Adão e Eva viviam, já que a
fertilidade do mundo puro e original seria atenuada, obrigando-os a trabalhar
pelo resto da vida (3.17-19). Por fim, essas consequências devastadoras da
Queda reverberaram muito além do seu impacto sobre os primeiros seres
humanos, espalhando-se a partir deles para muito longe, arruinando os demais
seres humanos.
Antes de lidar com a doutrina do pecado original, é preciso lidar com uma
questão importante já mencionada. Trata-se de uma discordância relativa à queda
de Adão e Eva que teria como consequência a subversão do controle da alma
sobre as paixões e o corpo. Essa perspectiva eleva o elemento imaterial humano
— especificamente, a razão humana ou intelecto — sobre os elementos
emocionais e físicos. Conforme discutimos anteriormente, essa compreensão da
imagem de Deus no ser humano é extremamente reducionista, cheia de
dificuldades e deveria ser abandonada. Além disso, a posição católica minimiza
o efeito devastador do pecado sobre a razão ou o intelecto humano. Essa
perspectiva é coerente com o primeiro axioma do sistema teológico católico — a
interdependência natureza-graça — que coloca o pecado no reino da natureza,
suavizando com isso seu impacto sobre a natureza ou, nesse caso, sobre a
natureza humana governada pela razão. Uma teologia evangélica que tenha uma
visão holística da imagem de Deus — o ser humano em toda a sua inteireza é
criado à imagem de Deus — não permitirá um papel dominante para a razão
humana ou o domínio do intelecto sobre as paixões e o corpo. Tal visão introduz
uma instabilidade original no ser humano conforme criado, em vez de ver Adão
e Eva como seres existentes em um estado original de integridade.
Consequentemente, sua queda no pecado não resulta em perda de controle por
parte de sua natureza mais elevada, de modo que sua natureza inferior se torna
dominante, mas produz, em vez disso, um estado de corrupção, cuja extensão e
intensidade é total e que é passada como pecado original a todo ser humano
desde então. Por fim, a crítica evangélica da interdependência natureza-graça,
com seu efeito atenuado do pecado sobre a natureza humana, já foi feita (cap. 1).
É com essa doutrina do pecado original que surgem outras diferenças
importantes entre a teologia católica e a evangélica. Embora ambas concordem
que o pecado original é o estado ou a condição em que nasce todo ser humano
como consequência do pecado oriundo de Adão (Rm 5.12-21; 1Co 15.21,22), a
teologia evangélica tem vários pontos de discordância com o entendimento da
teologia católica a esse respeito. Em primeiro lugar, os evangélicos não estão de
acordo entre si em relação ao modo que o pecado original é transmitido. Alguns
evangélicos — por exemplo, os de perspectiva luterana — concordam com a
teologia católica do realismo segundo o qual o pecado original é passado dos
pais para os filhos. Outros evangélicos — por exemplo, de perspectiva
reformada — sustentam a visão da representação; isto é, como Adão foi
constituído por Deus como cabeça da raça humana, quando ele pecou, pecou
como representante de toda a humanidade. Assim como Adão, o restante da
humanidade pecou e com isso todos herdaram o pecado original. Outros
evangélicos ainda combinam realismo e representação. Eles afirmam que todos
os seres humanos estavam presentes de forma seminal em Adão quando ele
pecou (realismo); portanto, o pecado original é transmitido dos pais para os
filhos. Como o realismo tem dificuldade em explicar por que somente o primeiro
pecado de Adão, e não todos os seus pecados, foi transmitido para a raça
humana, essa perspectiva combinada também sustenta que Adão foi o cabeça de
toda a raça humana (representação). Quando ele pecou quebrando a aliança com
Deus, esse seu pecado afetou todos os seres humanos, a quem ele representava.
Por conseguinte, todos herdaram o pecado original da cabeça que os
representava.41

Em segundo lugar, embora a teologia católica afirme que a natureza humana


foi fragilizada pelo pecado original, ela não defende a total depravação e a total
incapacidade do homem, como fazem algumas versões da teologia evangélica. A
total depravação é a perspectiva segundo a qual o pecado original afeta a
natureza humana sob todos os aspectos. Isso não significa que o ser humano seja
tão mau quanto possível, ou que lhe falte um desejo ou uma atitude moral. Pelo
contrário, a total depravação diz respeito à extensão do pecado original.
Significa que todos os elementos da natureza humana — intelecto/razão,
sentimentos/opiniões, desejo/volição, corpo, motivações, propósitos — estão
infectados pelo pecado. Nenhum elemento — por exemplo, a razão, o intelecto,
a vontade — escapa da influência corruptora do pecado original. A total
inabilidade é a posição segundo a qual o pecado original torna o ser humano
incapaz de fazer o que quer que seja para ganhar ou merecer o favor divino; a
intensidade da influência corruptora do pecado original é de tal ordem que o
torna intransponível. Especificamente, a liberdade que o ser humano pecador
tem jamais é exercida para a prática do bem, pelo menos do bem que agrada a
Deus. O livre-arbítrio humano se acha escravizado pelo pecado, portanto o ser
humano peca porque é algo que lhe é natural.
Por isso, a teologia evangélica junta-se à teologia católica na condenação ao
pelagianismo, segundo o qual o pecado de Adão não afetava de modo algum o
ser humano. Contudo, algumas correntes da teologia evangélica se afastaram da
negação por parte da teologia católica da total depravação e da total inabilidade.
Elas discordam da visão católica segundo a qual, de certa forma, a razão/vontade
humana é livre de tal maneira que, quando movida pela graça de Deus, é capaz
de cooperar com ela. Elas discordam da ideia católica de que o pecado original
não traz consigo a concupiscência, a inclinação para o mal que é intransponível.
De acordo com o Concílio de Trento, “essa concupiscência, que o apóstolo às
vezes chama de pecado, o santo Sínodo declara que a Igreja Católica jamais
entendeu que devesse ser chamado de pecado, como se fosse real e efetivamente
pecado naqueles nascidos de novo, mas porque é do pecado e inclina-se para o
pecado”. Essas versões da teologia evangélica estão em desacordo com essa
42

posição, e insistem que a natureza humana decaída, que produz a tendência para
pecar (concupiscência), é um aspecto do pecado original e, portanto, incorre na
ira de Deus (Ef 2.1-3). Em suma, para essas variedades da teologia evangélica,
dada à penetração do pecado original (que infecta todos os elementos da
natureza humana e nada deixa que não seja por ele afetado), e em razão de sua
perversidade (o pecado original torna o ser humano incapaz de fazer qualquer
coisa que possa agradar fundamentalmente a Deus), todos os seres humanos se
acham em uma situação extremamente difícil perante Deus e são merecedores do
juízo, da condenação e da ira.
A solução desse grave problema do pecado original, para a teologia católica, é
o batismo, sobretudo o batismo infantil. Por meio desse sacramento, o pecado
original é removido e a criança é regenerada, trazendo a salvação desse pesadelo
infernal. Como o tratamento pleno desse sacramento vem mais tarde no
Catechism, a avaliação evangélica do batismo será adiada.

A doutrina da Pessoa de Jesus Cristo “... e em Jesus


Cristo, seu único Filho, nosso Senhor” (seção 2,
capítulo 2, artigo 2)
O evangelho, ou as boas-novas, diz respeito ao ato de graça de Deus Pai que
enviou seu Filho com o propósito de resgatar aqueles que trazem a imagem de
Deus e que pecaram. Assim como o evangelho exalta o Deus de Deus, o Senhor
Jesus Cristo, assim também o faz o Catechism. No tratamento franco que dá a
essa doutrina, ele observa que o nome “Jesus” significa “Deus salva”; a palavra
“Cristo” é a tradução grega do hebraico “Messias” e significa “ungido”; o título
“Filho de Deus” se refere à relação única e eterna da segunda Pessoa da Trindade
com Deus Pai; e o título “Senhor” indica soberania divina.

Avaliação evangélica
A doutrina da pessoa de Cristo é plenamente acolhida pela teologia evangélica;
na verdade, essa teologia tradicional serve de fundamento histórico para o
desenvolvimento da cristologia evangélica.

A doutrina da encarnação e a doutrina da imaculada


concepção: “ele foi concebido pelo poder do Espírito
Santo, nasceu da Virgem Maria” (seção 2, capítulo 2,
artigo 3)
A segunda Pessoa da Trindade, a Palavra de Deus preexistente, o Filho eterno de
Deus, se encarnou (lit., veio “em carne”) cerca de dois mil anos atrás como Jesus
de Nazaré. A encarnação teve quatro propósitos: realizar a salvação do ser
humano caído (1Jo 4.10,14; 3.5); mostrar o amor de Deus (Rm 5.8; 1Jo 4.9); ser
modelo de santidade para o povo redimido (Mt 11.29; Jo 14.6; 15.12); e fazer
dos cristãos participantes da natureza divina (2Pe 1.4). A garantia bíblica da
doutrina da encarnação ocorre, entre outros lugares, em Filipenses 2.5-8 e
Hebreus 10.5-7; a fé na encarnação é o “sinal distintivo da fé cristã”, de acordo
com 1João 4.2.
Essa fé acarreta o compromisso com a plena divindade e plena humanidade do
Deus-homem. O Catechism condena explicitamente as seguintes heresias
históricas:

docetismo gnóstico: negação da verdadeira humanidade do Filho


encarnado;
arianismo: negação da verdadeira divindade do Filho de Deus; combatida
pelo Concílio de Niceia (325) e, mais tarde, pelo Primeiro Concílio de
Constantinopla (381), que insistia que o Filho é homoousios — de mesma
substância ou natureza do Pai;
nestorianismo: crença segundo a qual a pessoa divina do Filho de Deus
uniu-se à pessoa de Jesus de Nazaré; combatida (431) pela confissão do
Concílio de Éfeso segundo a qual as duas naturezas estavam unidas em uma
só pessoa;
monofisismo/eutiquianismo: segundo essa visão, a natureza divina absorvia
de tal modo a natureza humana que a última não persistiu na encarnação,
ou, em outras palavras, as duas naturezas se fundiram formando uma
entidade híbrida, um tipo de natureza “d i v i n a ”, combatida (451) pela
h u m a n a

afirmação do Concílio de Calcedônia de que cada uma das naturezas


preservou suas propriedades específicas, não tendo mudado, tampouco se
fundido à outra natureza;
apolinarismo: mutilação da humanidade de Cristo em que o Logos, ou
Verbo divino, substitui o aspecto imaterial do Deus-homem de tal modo que
o único elemento da natureza humana por ele assumido foi seu corpo;
refutada pela afirmação do Concílio de Éfeso (e também, posteriormente,
pelo Concílio de Calcedônia) de que o Filho assumiu uma alma racional
(i.e., humana).

A cristologia da igreja também é permeada pelo Segundo Concílio de


Constantinopla (553), segundo o qual a pessoa que foi crucificada era uma e a
mesma com a segunda Pessoa da Trindade; o Terceiro Concílio de
Constantinopla (681), que condenou o monotelitismo, visão segundo a qual
Cristo teria apenas uma vontade; e o Segundo Concílio de Niceia (787), que
permitiu a representação do corpo de Cristo em imagens santas.
Consequentemente, a igreja afirma que, na encarnação, o Filho eterno de Deus
assumiu uma natureza humana completa, ou dela se revestiu, consistindo ela em
um aspecto material (um corpo) e outro imaterial (uma alma, com intelecto e
vontade). Ela confessa que o Deus-homem tem duas naturezas — uma natureza
plenamente divina e outra plenamente humana — em uma pessoa, Jesus Cristo.
Associada à encarnação, há um aspecto importante da teologia católica, que é
a porção referente à sua doutrina de Maria. Jesus Cristo “foi concebido pelo
poder do Espírito Santo”, isto é, o Espírito foi “enviado para santificar o ventre
da Virgem Maria e fecundá-lo divinamente [i.e., torná-lo fértil], fazendo-a
conceber o Filho eterno do Pai em uma humanidade originada da sua”. O 43

respaldo bíblico para essa obra poderosa do Espírito Santo encontra-se em Lucas
1.34,35 (cf. Mt 1.18-25). Esse foi o lado divino da encarnação.
Com relação ao lado humano da encarnação, o Catechism afirma vários
pontos importantes em sua doutrina de Maria, a começar por sua predestinação:
Maria se tornaria a mãe de Jesus porque isso havia sido ordenado eternamente.
De fato, “desde toda a eternidade, Deus escolheu, para ser a mãe do seu Filho,
‘uma virgem que era noiva de um homem da casa de Davi, chamado José. O
nome da virgem era Maria’ [Lc 1.26,27]”. É importante notar que Deus “quis
44

que a aceitação, por parte da que ele predestinara para mãe, precedesse a
encarnação, para que, assim como uma mulher contribuiu para a morte [Eva],
também outra mulher contribuísse para a vida [Maria]”. 45

A participação de Maria na parte que lhe coube foi preparada por sua
concepção imaculada. Essa doutrina, que foi proclamada pelo papa Pio IX em
sua encíclica Ineffabilis Deus (8 de dezembro de 1854), diz: “Por uma graça e
favor singular de Deus onipotente e em previsão dos méritos de Jesus Cristo,
salvador do gênero humano, a bem-aventurada Virgem Maria foi preservada
intacta de toda a mancha do pecado original no primeiro instante da sua
concepção”. Além disso, Maria foi “remida de um modo mais sublime, em
46

atenção aos méritos de seu Filho” e foi abençoada por Deus mais do que
47

qualquer outro ser humano. Ademais, por meio dessa mesma graça divina,
“Maria manteve-se pura de todo o pecado pessoal ao longo de toda a vida”. 48

Graças a essa realidade singular, Maria estava bem preparada para se tornar a
mãe do Salvador, e as palavras do anjo Gabriel na anunciação ecoaram com
justiça: ele a saúda como “cheia de graça”. A resposta de Maria, um livre
assentimento ao anúncio angélico, foi a obediência de fé: “Aqui está a serva do
Senhor; cumpra-se em mim a tua palavra” (Lc 1.28-38). “Aceitando de todo o
coração, sem que nenhum pecado a retivesse, a vontade divina da salvação,
entregou-se totalmente à pessoa e à obra do seu Filho.” É forte o contraste entre
49

a obediência de fé de Maria e a resposta de Eva quando tentada, conforme


salientaram vários pais da igreja primitiva: “O nó da desobediência de Eva foi
desatado pela obediência de Maria; e aquilo que a virgem Eva atou, com a sua
incredulidade, desatou-o a Virgem Maria com a sua fé [...]. A morte veio por
Eva, a vida veio por Maria”.50

De sua imaculada concepção e obediência de fé ao se unir ao plano divino da


salvação decorre a maternidade divina de Maria: ela é theotokos, literalmente
“aquela que carrega [aquele que é] Deus”, ou, resumidamente, “a Mãe de
51

Deus”. Consequentemente, o Filho de Deus foi concebido em seu ventre pelo


52

Espírito Santo, e não por meio de relações sexuais com José (ou com outro
homem qualquer); ela concebeu virgem. Além disso, Maria permaneceu virgem
durante o parto; sua integridade física não foi comprometida pelo processo de
nascimento. E mais, ela permaneceu virgem por toda a vida. Maria é chamada
53

de “Aeiparthenos, a sempre Virgem”. Isso significa que Maria, mesmo depois


54

do nascimento de Jesus, jamais teve relações sexuais com José (ou qualquer
outro homem). As aparentes referências bíblicas aos irmãos e irmãs de Jesus
(Mc 3.31-35; 6.3; 1Co 9.5; Gl 1.19; Mt 13.55; 28.1) dizem respeito a pessoas
que são parentes próximos, e não a membros de fato de sua família nuclear. Essa
integridade da virgindade perpétua é “sinal da sua fé, ‘sem a mais leve sombra
de dúvida’” e manifesta a ausência de pecado em Maria por toda a sua vida. Ela
55

é também “a figura e a mais perfeita realização da Igreja”, e esta se torna mãe


56

ao dar a seus membros o novo nascimento por meio da pregação e do batismo


enquanto se conserva virgem, fiel e obediente a seu esposo, Jesus Cristo.
Concebido pelo Espírito Santo e nascido da virgem Maria, o Filho de Deus se
encarnou, nasceu de maneira normal e experimentou o desenvolvimento de um
ser humano totalmente normal. O Catechism percorre o início de sua vida e os
três anos de ministério na rubrica “Os mistérios da vida de Cristo”. Fazem parte
57

desse tópico a revelação (ele revela Deus Pai), a redenção (incluindo sua
obediência passiva e ativa na vida e na morte) e a recapitulação (ele resumiu a
história humana, ao mesmo tempo que reverteu a desobediência de Adão),
realizando por seus atos a substituição do ser humano que veio salvar servindo
de modelo a ser seguido por seus discípulos. A união com ele torna as pessoas
participantes em seus mistérios. Os eventos específicos de sua vida são
detalhados no Catechism: a promessa da vinda de Cristo no Antigo Testamento;
a preparação para sua vinda por intermédio de João Batista; o nascimento de
Jesus; sua infância e o período desconhecido dos seus primeiros anos de vida (a
única luz aqui é o episódio em que Jesus fica para trás, no templo, quando tinha
doze anos de idade); seu batismo marcando o início do seu ministério público
seguido imediatamente de suas tentações no deserto; seu anúncio do reino de
Deus por meio da proclamação, sinais messiânicos (milagres e exorcismos) e a
convocação dos doze discípulos, a quem (com Pedro à frente) Jesus entregou as
chaves do reino; sua transfiguração, subida e entrada em Jerusalém.

Avaliação evangélica
A doutrina da encarnação de Jesus Cristo, a condenação feita pelo Catechism das
heresias cristológicas ao longo da história e sua ênfase na plena divindade e
plena humanidade de Cristo estão em total acordo com a teologia evangélica. Na
verdade, essas formulações e censuras tradicionais proporcionam a infraestrutura
histórica para a doutrina evangélica da encarnação. Além disso, a afirmação do
Catechism de que Jesus Cristo “foi concebido pelo poder do Espírito Santo”, no
sentido de que o Espírito cobriu milagrosamente Maria para que a jovem
acolhesse em seu ventre o Filho de Deus (o qual, no momento de sua concepção,
assumiu plenamente a natureza humana) também é uma afirmação aceita pelos
evangélicos. Esse lado divino da encarnação encontra respaldo inquestionável na
Escritura (Mt 1.18-25; Lc 1.34,35).
Há, entretanto, uma profunda divisão entre a teologia católica e a evangélica
no ponto seguinte, isto é, no que diz respeito ao lado humano da encarnação.
Praticamente todos os ensinos do Catechism sobre Maria são contestados e
rejeitados pelos evangélicos. Contudo, há três pontos em comum partilhados por
católicos e evangélicos. Em primeiro lugar, há o reconhecimento e a gratidão
pelo papel singular desempenhado por Maria na encarnação do Filho de Deus.
Especificamente, o reconhecimento de sua condição de theotokos (lit.,
“portadora de Deus” ), de acordo com a perspectiva histórica de que aquele a
58

quem Maria deu à luz era plenamente Deus, une católicos e evangélicos. Em
59 60

segundo lugar, há o exemplo por excelência de fé e obediência de Maria,


conforme demonstrado em sua resposta à anunciação (Lc 1.26-38) e seu
sofrimento pessoal associado à vida e ao sofrimento do seu filho (Lc 2.35; Jo
19.25-27). Em terceiro lugar, outro ponto em comum consiste em chamá-la de
“bem-aventurada” (Lc 1.48) em razão da obra poderosa que Deus fez a seu favor
e, por meio dela, a favor de todos os seres humanos em cumprimento à promessa
de salvação (Lc 1.46-55).
Quanto às demais doutrinas marianas, a teologia católica e a teologia
evangélica nada têm em comum. São quatro as discordâncias que separam as
duas posições. Em primeiro lugar, a ênfase do Catechism sobre a predestinação
de Maria, que é em seguida atrelada à sua “livre cooperação” e a um suposto
desígnio divino segundo o qual haveria uma mulher que seria paralela a Eva e
desfaria sua desobediência, é a um só tempo exagerada e não tem fundamento
adequado. Que Deus predestina indivíduos para a salvação (e.g., Ef 1.4,11) e
para um serviço específico (e.g., Jr 1.5; Gl 1.15,16) é algo claramente bíblico,
portanto em certo sentido não há nada de notável na predestinação de Maria à
maternidade de Jesus Cristo. Consequentemente, é um exagero a elevação de
Maria pela teologia católica (que a descreve como a “exaltada Filha de Sião”,
acrescentando que “depois de um longo período de espera, os tempos se
cumprem nela [...] configurando-se o novo plano de salvação”). Na verdade, a
61

Escritura associa o cumprimento do longo tempo de espera não a Maria, mas a


Jesus: “Vindo, porém, a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de
mulher, nascido debaixo da lei, para resgatar os que estavam debaixo da lei, a
fim de que recebêssemos a adoção de filhos” (Gl 4.4,5, grifo do autor). Essa
62

correção não tem como objetivo negar a singularidade da predestinação de Maria


para o papel que lhe foi destinado. Afinal de contas, conforme afirma o Concílio
Vaticano II, ela “já é profeticamente anunciada com antecedência na vitória
sobre a serpente dada a nossos primeiros pais depois que caíram em pecado (cf.
Gn 3.15). De igual modo, ela é a virgem que conceberá e dará à luz um filho,
cujo nome será Emanuel (cf. Is 7.14; Mq 5.2,3; Mt 1.22,23)”. O Filho único e
63

incomparável do Pai se encarnou como o único Deus-homem, e somente uma


mulher — Maria — foi escolhida para concebê-lo. Contudo, a teologia católica
diocese sob a direção do seu bispo”; e (3) responsabilidade pessoal para
responder ao seu chamado e exercer seu ministério. 89

O colégio episcopal e seu chefe, o papa, têm origem na instituição dos Doze
por Cristo: “Ele os constituiu sob a forma de um colégio ou assembleia
permanente à frente do qual colocou Pedro, escolhido entre eles”. O 90

paralelismo é o seguinte: tal como Pedro e os outros onze apóstolos constituíam


um único colégio apostólico, assim também o papa, sucessor de Pedro, e os
bispos, sucessores dos apóstolos, formam um único colégio episcopal. O
respaldo bíblico para essa estrutura encontra-se em Mateus 16.18,19 (cf. Jo
21.15-17) interpretado da seguinte forma: “Foi só de Simão, a quem deu o nome
de Pedro, que o Senhor fez a ‘pedra’ da sua Igreja. Confiou-lhe as chaves desta e
instituiu-o pastor de todo o rebanho. ‘Mas a tarefa de ligar e desligar, que foi
dada a Pedro, também foi dada, sem dúvida alguma, ao colégio dos Apóstolos
unidos ao seu chefe’”. Consequentemente, o papado e o colégio eclesial não é
91

apenas uma conveniência administrativa ou um arranjo pragmático; ele


“pertence ao próprio fundamento da Igreja” de um modo essencial. Deve-se 92

salientar que o fato de que o papa — também chamado de “pontífice romano” —


é o bispo de Roma e sucessor de Pedro, como vigário (i. e., representante visível)
de Cristo e pastor de toda a Igreja Católica, ele tem “poder pleno, supremo e
universal sobre toda a Igreja, um poder que ele pode sempre exercer de forma
desimpedida”. 93

Unido ao papa, o colégio dos bispos, reunido em um concílio ecumênico, tem


“autoridade suprema e plena sobre a Igreja universal; mas esse poder não pode
ser exercido sem o consentimento do pontífice romano”. Os bispos têm
94

responsabilidades locais e universais: no plano local, o bispo é o centro da


unidade para sua igreja ou diocese específica, exercendo seu ministério sobre os
fiéis a ele atribuídos, assistido por sacerdotes e diáconos. No plano universal, na
condição de membro do colégio episcopal, ele se preocupa com todas as igrejas.
As reuniões regionais de bispos são chamadas de sínodos ou concílios
provinciais; as reuniões nacionais são chamadas de conferências episcopais (e.g.,
a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).
Os bispos da igreja atuam em três ministérios específicos: ensino, santificação
e governo. O ofício de ensino se preocupa com a pregação do evangelho; e, para
preservar a fé apostólica na igreja, esse ofício é caracterizado pela infalibilidade.
No nível mais geral, os membros da igreja “adere[em] de modo indefectível à
fé”, sob a conduta do Magistério. Mas é o Magistério que desfruta
95

particularmente desse “carisma [i. e., dom] de infalibilidade em questões de fé e


de moral”, cujo exercício assume várias formas: com relação ao papa, de acordo
96

com a doutrina da infalibilidade papal promulgada pelo Concílio Vaticano I, 97


“dessa infalibilidade desfruta o pontífice romano, chefe do colégio episcopal, por
força do seu ofício, quando, na qualidade de pastor e doutor supremo de todos os
fiéis, e encarregado de confirmar na fé os seus irmãos, proclama, por um ato
definitivo, um ponto de doutrina respeitante à fé ou aos costumes”. Com relação
98

ao colégio episcopal, “a infalibilidade prometida à Igreja também está presente


no corpo dos bispos quando, juntamente com o sucessor de Pedro, exercem o
supremo Magistério”, especialmente quando reunidos em concílio ecumênico.
99

Todas as definições infalíveis promulgadas pelo Magistério têm caráter


imperativo para todos os católicos (cabe a eles “aderir a elas com a obediência
da fé”), e “essa infalibilidade se estende até o depósito da própria revelação
100

divina”. Em um plano secundário, quando os bispos em comunhão com o papa


101

“sem chegarem a uma definição infalível e sem se pronunciar de ‘modo


definitivo’ [...] propõem uma doutrina que leva a uma melhor inteligência da
Revelação em matéria de fé e de costumes”, opera também a assistência divina.
Nesse caso, o fiel, embora não deva obediência da fé, deve “prestar o
assentimento religioso”, que é uma extensão da obediência da fé. 102

O ofício santificador gira em torno da administração dos sacramentos,


especialmente da celebração da eucaristia. Outras atividades desse ofício são a
oração, o trabalho, a ministração da Palavra e um estilo de vida exemplar.
O ofício de governo diz respeito às igrejas específicas atribuídas aos bispos e
é exercido “mediante os seus [dos bispos] conselhos, incentivos e exemplos [...]
naquele espírito de serviço que é próprio do seu Mestre”. Conforme dissemos
103

anteriormente, a autoridade dos bispos deve ser exercida em sintonia com o papa
e é controlada em última análise por ele. Ao mesmo tempo, a autoridade do
bispo é pessoal, ordinária e imediata porque é exercida em nome de Cristo, o
Bom Pastor, que é modelo do ofício pastoral do bispo.
O segundo segmento de fiéis consiste nos leigos da igreja; incorporados que
foram em Cristo pelo batismo, participam de seu triplo ministério ao executar a
missão da igreja. Os leigos diferem da hierarquia porque não foram ordenados
pelo sacramento da ordem, e diferem dos monges e freiras da vida religiosa
porque não fizeram os três votos evangélicos de castidade, pobreza e
obediência. Sua vocação os leva a participar de questões temporais —
104

educação, negócios, governo, ciência, artes, agricultura, construção —, as quais


procuram conduzir de acordo com a vontade de Deus e para a glória de Cristo,
tendo por dever a salvação de todas as pessoas.
Os leigos participam do ofício sacerdotal de Cristo por meio de sacrifícios
inspirados pelo Espírito que os induzem ao trabalho, à oração, ao cuidado com a
família e à vida conjugal, ao lazer etc. Sua participação no ofício profético de
Cristo se dá como testemunhas e mestres: eles participam da evangelização por
intermédio da proclamação de Cristo e do testemunho da sua vida e ajudam na
catequese ou na comunicação da fé. A participação no ofício real de Cristo
ocorre de duas maneiras: no plano pessoal, os leigos governam a si mesmos,
exercendo poder real de tal modo que sua alma/razão governa seu corpo/suas
paixões, impedindo desse modo que sejam aprisionados pelo pecado e pelo mal.
Publicamente, os leigos “remedeiam as instituições e condições do mundo
quando este induz ao pecado, para que se conformem às normas da justiça,
favorecendo, e não tolhendo, a prática da virtude”. Além disso, colaboram com
105

os membros da hierarquia para o crescimento da igreja servindo nos concílios


paroquiais, sínodos diocesanos, comissões financeiras etc.106

O terceiro setor de fiéis é constituído de homens e mulheres que se dedicam à


vida consagrada por meio da profissão dos três ofícios. Sob determinado
aspecto, Cristo chama seus fiéis para esses ofícios, para que sejam aperfeiçoados
na caridade. Para aqueles homens e mulheres chamados para a vida consagrada,
esse chamado acarreta “a obrigação de praticar a castidade no celibato por amor
do reino, a pobreza e a obediência”. A vida nesse estado religioso implica uma
107

consagração “mais íntima” a Deus, um seguimento de Cristo “mais próximo”, e 108

o seguimento da igreja. Há dois tipos de vida religiosa na igreja: uma vida em


solidão e outra em comunidade. O primeiro tipo, a vida eremítica, traz consigo a
devoção “ao louvor de Deus e à salvação do mundo por meio de um afastamento
mais severo do mundo, do silêncio na solidão, da oração assídua e da
penitência”; as ordens cartusianas e dos camaldulenses são exemplos disso. A
109

vida religiosa na comunidade é representada por ordens como a dos franciscanos


e dominicanos, cujos membros vivem uma vida em comum e colaboram com os
bispos diocesanos em seu trabalho pastoral. Virgens consagradas são mulheres
que se dedicaram a uma vida em estado de virgindade mediante um rito solene
— o Consecratio virginum —, o que as torna “esposas místicas de Cristo” para o
serviço da igreja. Alguns religiosos servem em instituições seculares buscando
110

a santificação do mundo de dentro do próprio mundo. Outros ainda, embora não


façam todos os votos religiosos, servem em sociedades de vida apostólica. O que
todos esses religiosos têm em comum é uma consagração especial a Deus que se
manifesta em uma vida totalmente dedicada a ele e à participação nos esforços
missionários.
Uma vez que se aproxima o término da discussão sobre a doutrina da igreja, o
Catechism retorna ao Credo dos Apóstolos e à sua confissão de fé na “santa
Igreja Católica”, que é seguida imediatamente pela confissão de fé na
“comunhão dos santos”. Consequentemente, “a comunhão dos santos é a
Igreja”. Esse princípio de fé se baseia na ideia de que “as riquezas de Cristo são
111
comunicadas a todos os membros através dos sacramentos”, de tal modo que
todos os bens que a igreja recebeu “se tornam, necessariamente, um fundo
comum”. Fazem parte dessa comunhão de bens espirituais a comunhão na fé,
112

os sacramentos, os carismas (dons), posses (em todos os aspectos da palavra) e a


caridade. O partilhamento desses bens não está limitado à igreja que se vê,
porque a igreja existe, na verdade, em três estados: a igreja terrena, que consiste
em residentes temporários deste mundo; a igreja purgatorial, que consiste nas
almas dos que são purificados no purgatório; e a igreja celestial, que consiste
nos cristãos aperfeiçoados na glória. Comunhão dos santos significa que a
comunhão dos membros dessas “igrejas” é ininterrupta, de modo que há uma
troca de bens espirituais. Tal troca é entendida como intercessão: o fiel na igreja
celestial ora sem cessar pelo fiel na igreja terrena e purgatorial. Em relação a
essa última intercessão, fazem-se orações pelos mortos “para que sejam libertos
de seus pecados” e, desse modo, transferidos para a igreja celestial. A troca é
113

entendida posteriormente como uma experiência de comunhão mais íntima com


os santos no céu.
Tendo tratado do papel da virgem Maria nas doutrinas de Cristo e do Espírito
Santo, o Catechism se volta para a discussão do lugar de Maria na doutrina da
igreja. Consequentemente, Maria deve ser considerada mãe de Cristo e mãe da
igreja.
Maria esteve unida a seu Filho por toda a sua vida, da sua concepção virginal
até a morte dele, mas especialmente durante seu sofrimento na cruz: “A Bem-
aventurada Virgem [...] manteve fielmente a sua união com o Filho até a cruz,
junto da qual esteve de pé, não sem um desígnio divino; padeceu acerbamente
com o seu Filho único e associou-se com coração de mãe ao seu sacrifício,
consentindo amorosamente na imolação da vítima que dela nascera; e, por fim,
foi dada por mãe ao discípulo pelo próprio Jesus Cristo, agonizante na cruz, com
estas palavras: ‘Mulher, eis aí o teu filho’”. Além disso, depois da ascensão,
114

“Maria ‘assistiu com suas orações aos começos da Igreja’ [...] implorando [...] o
dom [do] Espírito, que já na anunciação a cobrira com a sua sombra”. Por fim,
115

Maria foi unida a seu Filho em sua assunção. O dogma da assunção corporal de
Maria, promulgado pelo papa Pio XII, significa que “a Virgem Imaculada,
preservada imune de toda a mancha da culpa original, terminado o curso da vida
terrena, foi elevada ao céu em corpo e alma e exaltada pelo Senhor como rainha,
para assim se conformar mais plenamente com o seu Filho, Senhor dos senhores
e vencedor do pecado e da morte”. Consequentemente, Maria participou de
116

maneira singular da ressurreição do seu Filho, de tal forma que ela é a única
crente no céu que tem corpo. Além disso, sua assunção é “uma antecipação da
ressurreição dos demais cristãos”.117
“O papel de Maria na Igreja é inseparável de sua união com Cristo e decorre
diretamente dela.” De modo concreto, “a Virgem Maria é o modelo de fé e
118

caridade da Igreja. Portanto, ela é ‘membro eminente e inteiramente singular da


Igreja’ e constitui mesmo ‘a realização exemplar’ (o typus) da Igreja”. À luz da
119

sua obediência, fé, esperança e amor por meio dos quais ela cooperou com a
obra de salvação de Cristo, Maria é mãe da Igreja na ordem da graça. Sua graça
salvadora não cessou com sua ascensão física, mas continua desimpedidamente
mediante sua intercessão. “Por isso, a Virgem é invocada na Igreja com os títulos
de advogada, auxiliadora, socorro e medianeira.” O Catechism nega
120

explicitamente que o papel maternal de Maria na Igreja deprecie ou minimize


seu papel especial de medianeira de Cristo. 121

Em razão da pessoa e obra singulares de Maria, reconhecidas desde muito


cedo na Igreja que lhe deu o título de theotokos, ou “Mãe de Deus”, a Igreja tem
uma devoção especial por ela. Essa devoção especial não é latria (do gr. latreia,
adoração), porque adoração é exclusivamente dada a Deus; tampouco é
simplesmente dulia (do gr. doulia, serviço), porque veneração é algo dado a
todos os santos; contudo, trata-se de hyperdulia, ou superveneração, que é
reservada a ela.
O Catechism conclui sua doutrina da igreja atribuindo a Maria a condição de
ícone escatológico, imagem futura da Igreja: “[Nela contemplamos] o que a
Igreja já é no seu mistério, na sua ‘peregrinação da fé’, e o que será na pátria ao
terminar a sua caminhada”. 122

Avaliação evangélica
A primeira parte (parágrafos 1-3) da longa discussão do Catechism a respeito da
doutrina da Igreja já foi avaliada; a segunda parte (parágrafos 4-6) será avaliada
agora. Conforme já foi observado, e se tornará ainda mais evidente, essa
doutrina separa significativamente a teologia católica da teologia evangélica.
Assim como anteriormente, as áreas de concordância serão apresentadas antes da
discussão das muitas áreas de conflito.

Clero e hierarquia católicos


Na conclusão da primeira parte da avaliação evangélica, dissemos que Jesus
Cristo não transferiu sua autoridade e atividade por meio dos seus apóstolos para
seus sucessores mediante uma linha de sucessão apostólica. O desafio que a
teologia evangélica lança ao conceito de apostolicidade da teologia católica não
significa, porém, que Cristo tenha eliminado o ministério humano na igreja, que
é ordenado por ele mesmo. Conforme explica John Webster, “porque todos os
atos de Cristo são incomunicáveis, não representáveis, Cristo mesmo escolhe
livremente se representar por meio do ministério humano [...]. Ele não é entregue
nas mãos dos seus servos, que permanecem totalmente à sua disposição.
Contudo, em sua liberdade senhorial, ele decide que juntamente com sua
manifestação pessoal há também lugar para o serviço humano na igreja”. 123

Assim sendo, a teologia evangélica acolhe o ministério humano dedicado à


Palavra de Deus e revestido de poder pelo Espírito de Deus, mas de um modo
significativamente diferente do que o faz a teologia católica.
No entanto, há pontos de concordância em ambas as posições. A natureza
hierárquica da igreja é um deles, com ressalvas: enquanto a Igreja Católica está
estruturada de acordo com um sistema hierárquico episcopal, as igrejas
evangélicas, em sintonia com o amplo espectro da teologia evangélica, estão
organizadas de acordo com várias formas diferentes de governo. Algumas são
episcopais, portanto partilham algumas semelhanças com a organização da Igreja
Católica: a autoridade emana do bispo (do gr. episkopos). Outras igrejas
evangélicas adotam o formato presbiteriano de governo, em que presbíteros (do
gr. presbyteroi) representam a igreja, os quais ensinam e lideram as igrejas locais
reunidos em um concílio, além de governar uma série de organizações com
diferentes gruas de poder — presbitério, sínodo, assembleia geral — que estão
acima do nível da igreja. Outras igrejas evangélicas são de tipo congregacional,
em que os membros da congregação exercem autoridade em sua esfera de
responsabilidade; o pastor ou conselho de presbíteros têm autoridade em sua
esfera de responsabilidade, e ninguém, nenhuma organização, tem jurisdição
sobre a igreja local. Consequentemente, as igrejas evangélicas, mesmo aquelas
de organização episcopal, são governadas de formas significativamente distintas
da forma de governo da Igreja Católica.
A teologia evangélica rejeita a estrutura episcopal católica tendo o papa como
chefe por vários motivos. O mais importante deles se deve à falta de respaldo
bíblico, tendo em vista que a teologia evangélica não acredita que a promessa de
Jesus de edificar sua igreja sobre Pedro e sua confissão, bem como a entrega das
chaves a Pedro e aos apóstolos (Mt 16.18,19), possa suportar o peso da
interpretação (errônea) da Igreja Católica. Além disso, enquanto o papa
124

(sucessor de Pedro) e os bispos, sucessores dos apóstolos, constituem um colégio


episcopal único do qual resulta a Igreja Católica hoje, a teologia católica procura
em vão uma estrutura paralela durante o ministério de Cristo e depois dele na era
apostólica, em que Pedro e os apóstolos teriam constituído um colégio apostólico
liderando a igreja em seus dias. Pelo contrário, Jesus convocou seus discípulos
para que proclamassem o evangelho, curassem e exorcizassem demônios em seu
ministério itinerante (Mt 10). Ele não os estruturou em uma hierarquia de
comando; na verdade, a única autoridade com função de governo que Jesus
prometeu a eles estava reservada para a era futura: “Vós sois os que têm
permanecido comigo nas minhas provações; e assim como meu Pai me conferiu
um reino, eu o confiro a vós; para que comais e bebais à minha mesa no meu
reino e vos senteis sobre tronos para julgar as doze tribos de Israel” (Lc 22.28-
30). Esse reino prometido em que os apóstolos reinariam não corresponde à
igreja terrena, conforme fica evidenciado na promessa anterior de Jesus, quando
ele instituiu a ceia do Senhor e disse que não celebraria essa festa “até que
[viesse] o reino de Deus” (Lc 22.18) — isto é, no seu retorno em glória.
Tomando aqui certa liberdade criativa, o colégio apostólico que Jesus instituiu é
um corpo de governo futuro no reino de Deus que virá. Além disso, só por força
da imaginação pode o Concílio de Jerusalém (At 15) servir de prova desse
colégio, com Pedro à frente. Por fim, a instituição de fato do colégio episcopal
125

católico e o papado tem um histórico de um longo debate e intensa luta na igreja


primitiva (e. g., o debate conflituoso entre Estêvão, bispo de Roma, e Cipriano,
bispo de Cartago [no norte da África] em relação à interpretação adequada de
Mateus 16.18,19), um acontecimento que foi alimentado por inúmeros fatores
126

políticos, econômicos e também sociais e religiosos. 127

No topo do colégio episcopal da Igreja Católica está o papa, e aqui a teologia


evangélica se junta a outras teologias cristãs não católicas (e. g., a das igrejas
ortodoxas) ao rejeitar a ideia católica do papado. Afirmar que o papa atual,
mediante uma linha ininterrupta de sucessão apostólica, é o herdeiro de Pedro
nos obriga a fechar os olhos para a verdadeira história dos papas, muitos dos
quais nada mais foram do que príncipes mundanos, os quais reinaram sobre
imensas extensões de terra exercendo sobre elas poder político, econômico e
militar. Além disso, o “cativeiro babilônico da igreja”, período de setenta anos
128

em que o papado foi sequestrado e transferido para Avignon, na França, quando


os papas nada mais eram do que marionetes do governo francês, e também o
Grande Cisma, uma época em que dois e por vezes três homens reivindicavam
para si o título de papa, marcaram a natureza turbulenta e até anticristã desse
ofício. Se o papa é o vigário de Cristo, seu representante visível na terra, então a
Igreja Católica deveria admitir francamente o fato de que durante épocas
extensas da história o vigário esteve ausente ou não esteve representado.
Outra coisa ainda mais importante é que toda a estrutura da Igreja Católica,
juntamente com a ideia do vigário de Cristo atrelada ao papado, se baseia em
dois axiomas equivocados que se encontram no âmago do sistema católico. A
interdependência natureza-graça respalda a estrutura hierárquica da Igreja
Católica porque a hierarquia existe da natureza (na parte inferior) para a graça
(na parte superior). Essa hierarquia natureza-graça deve estar refletida na Igreja
Católica e se manifesta, de fato, na organização dos leigos (a parte inferior) e do
clero (parte superior). Esse continuum natureza-graça exige também que a graça
se manifeste de modo concreto na natureza. A essa exigência, a interconexão
Cristo-Igreja remete à Igreja Católica como prolongamento da encarnação de
Jesus Cristo e realiza a mediação necessária entre natureza e graça. Além disso,
esse axioma serve de base para a ideia de que o papa é o vigário — o
representante concreto, tangível e visível — de Cristo. Já fizemos a crítica desses
dois axiomas.
Contudo, resta fazer ainda uma crítica evangélica concreta. Jesus Cristo,
sentado à mão direita do Pai, governa seu corpo, a igreja, do céu, e o vigário que
ele prometeu e de fato enviou para representá-lo na terra é o outro Paráclito, o
Espírito Santo, que age como tal na igreja. Conforme disse João Calvino:
Ele [Cristo] usa o ministério dos homens para declarar abertamente sua vontade para nós por meio da
boca, numa espécie de trabalho delegado, e não pela transferência a eles do seu direito e honra, de
modo que pela boca deles ele faça a obra que é sua — assim como o operário usa uma ferramenta
para fazer seu trabalho [...]. Através dos ministros a quem ele confiou esse ofício e a graça de
executá-lo, ele concede e distribui seus dons à igreja; e se mostra como se estivesse presente pela
manifestação do poder do seu Espírito nessa sua instituição, porque seu poder não será vão nem
ocioso.129

A associação do papa, vigário de Cristo, à doutrina da infalibilidade papal é


outra grande discordância entre a teologia católica e a teologia evangélica da
igreja. O apoio para essa doutrina é encontrado na Escritura e na Tradição. Entre
suas bases bíblicas, temos a promessa de Jesus a Pedro, chefe da igreja, de que
“os portões do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16.18), bem como sua
promessa aos discípulos de que o Espírito Santo os guiaria a toda a verdade (Jo
16.13). A teologia evangélica questiona essa suposta base bíblica. Em primeiro
lugar, há uma enorme diferença entre a promessa que Cristo fez de proteger a
igreja contra a derrota total e sua promessa de aperfeiçoar seu conhecimento; em
relação à primeira promessa, que é certamente a natureza de uma garantia dada
por Jesus, ela não implica necessariamente a segunda. Com relação à promessa
de guiar os discípulos por meio do Espírito, a manifestação do seu cumprimento
se vê justificadamente na doutrina da inerrância da Escritura. O Espírito Santo
supervisionou os autores bíblicos de modo que aquilo que escreveram — os
Evangelhos, Atos, as Epístolas, Apocalipse — foi exatamente o que Deus queria
que escrevessem: a palavra verdadeira de Deus.
Foi certamente essa a perspectiva que os líderes da igreja primitiva adotaram,
uma vez que honraram a veracidade da Escritura que tinham como autoridade. 130

Essa perspectiva dá conta mais satisfatoriamente do fato de que, apesar da


afirmação da Igreja Católica de que o bispo de Roma sempre defendeu a
ortodoxia e refutou a heresia, o bispo de Roma teve papel secundário em alguns
dos primeiros concílios ecumênicos (e. g., o Concílio de Niceia [325]), e há 131
exemplos contraditórios que maculam essa reputação impecável (e. g., Vigílio
[537-555] e Honório I [625-638]). Não há dúvida de que a cristandade toda
132

está em dívida com bispos romanos como Leão I e sua articulação da doutrina
ortodoxa de Cristo que abriu caminho para o Credo de Calcedônia. Contudo,
133 134

a defesa sistemática da ortodoxia pelo bispo de Roma e a afirmação da


infalibilidade papal são duas questões distintas. Além disso, a referida defesa
pode ser empiricamente atestada, ao passo que a infalibilidade pode ser
empiricamente refutada.
É possível fazer outra crítica da doutrina da infalibilidade papal. Embora se
possa dizer que antes da promulgação do Concílio Vaticano I a Igreja Católica
afirmasse a infalibilidade, para muitos, entretanto, não foi senão em meados do
século 19 que ela foi proclamada oficialmente. Muitos fatores não religiosos
convergiram para influenciar essa decisão: a Igreja Católica estava sob intenso
ataque político e social por estar do lado errado do fervor nacionalista italiano,
sobretudo quando o papa Pio IX (1846-1878) se indispôs com o povo italiano ao
se recusar a participar de uma guerra contra as forças austríacas e desse modo
liberar os estados papais, permitindo que fizessem parte da confederação
italiana. Não bastasse isso, a Igreja Católica ainda se recuperava da derrocada da
Igreja Constitucional durante o Império Napoleônico na França no início daquele
século, e o espectro das ideologias modernas — panteísmo, naturalismo,
racionalismo, indiferentismo e o latitudinarismo (tipos de pluralismo
soteriológico), socialismo, comunismo, liberalismo etc. — levou a Igreja
Católica a assumir uma forte postura defensiva. Além disso, concordatas
135

recentes — acordos políticos entre o papa e os soberanos de outras nações —


haviam reduzido a um número cada vez menor as possessões temporais do
papado. Portanto, no dia seguinte à proclamação da infalibilidade papal pelo
Concílio Vaticano I, estourou a Guerra Franco-Prussiana e, passados dois meses,
o papado havia perdido uma quantidade enorme de terras. Sobrou para o papa o
Vaticano, a Basílica de São João de Latrão (em Roma) e Castel Gandolfo
(residência de verão do papa fora de Roma). Em outras palavras, a convergência
maciça de inúmeros fatores não religiosos estimulou a promulgação da doutrina
da infalibilidade que, por sua vez, incitou uma reação de defesa a esses fatores.
Uma última crítica da teologia evangélica à infalibilidade papal é que ela
resulta em proclamações dogmáticas — por exemplo, a assunção corporal de
Maria — que se tornam coercitivas, impondo-se à consciência dos fiéis (elas
“obrigam à adesão pela obediência à fé”). Mesmo que se argumente que tais
136

dogmas não contradizem a Escritura, o fato é que eles vão além dela e, portanto,
contradizem sua suficiência.
Leigos católicos
Em relação à exposição que a teologia católica faz da laicidade da Igreja, a
teologia evangélica aplaude várias de suas afirmações. Uma delas diz respeito à
posição elevada conferida aos leigos, resultado do estímulo encorajador posto
em prática pelo Vaticano II. A participação dos leigos na missão da igreja
encontra amplo respaldo na teologia evangélica, que, em suas muitas variedades,
conclama os leigos a executar o triplo ofício — sacerdotal, profético e real — de
Cristo. Consequentemente, todos os cristãos são chamados a pregar o evangelho
uns aos outros e a orar uns pelos outros, exercendo o sacerdócio de todos os
crentes. Além disso, eles são chamados para ser embaixadores de Cristo para
evangelizar os não crentes pela participação no ministério da reconciliação (2Co
5.14-21). Embora a teologia evangélica não veja na participação no ofício real de
Cristo um exercício de autodomínio — já criticamos a ideia da teologia católica
de que a razão/intelecto humano deve reinar sobre as paixões do corpo —, ela
certamente afirma que a função real requer de todos os cristãos
responsabilidades vocacionais. Esses cristãos, também, em caso de males
pessoais e sistêmicos, são chamados a se opor à injustiça e a defender a causa
dos marginalizados, dos pobres, órfãos e viúvas etc. Por fim, a exemplo de sua
congênere católica, a teologia evangélica incentiva a colaboração dos leigos com
o clero para o progresso da igreja.
Religiosos católicos
Com relação à estratégia da teologia católica para a vida de consagração dos que
entraram para as ordens religiosas, a teologia evangélica concorda em parte e
discorda também em parte. Em primeiro lugar, a concordância se justifica pelo
fato de que Cristo chama todos os seus fiéis para que vivam uma vida de total
devoção consciente a ele. Tudo o que separa o cristão de sua santidade ou
espiritualidade alija-o da discussão e da realidade. Não importa qual seja a
distinção (e os exemplos a seguir são encontrados no evangelicalismo): cristãos
batizados no Espírito e cristãos comuns (como se vê na teologia
pentecostal/carismática), cristãos espirituais e cristãos carnais (como na teologia
de Keswick), discípulos e crentes (conforme a Grace Evangelical Society), ou
um outro tipo de combinação, a perspectiva bíblica da santidade a repudia. 137

Por conseguinte, a teologia evangélica discorda da tríplice divisão que a


teologia católica faz do fiel classificando-o em santo, religioso e cristão comum.
A necessidade de tal estrutura hierárquica alicerçada no axioma da
interdependência natureza-graça já foi criticada aqui, assim como a escatologia
super-realizada da doutrina católica da santidade. Portanto, nos restringiremos
aqui à sua visão do estado religioso e dos conselhos evangélicos relativos à
castidade, à pobreza e à obediência. A principal objeção da teologia evangélica
diz respeito à ideia de que esse estado leva a uma vida de consagração “mais
íntima” a Deus e ao seguimento “mais próximo” de Cristo. A começar por
138

Marinho Lutero e, de modo especial, seu Treatise on good works [Tratado sobre
as boas obras], de 1520, a teologia evangélica se recusa a elevar a atividade
“religiosa” acima de outras obras humanas no que diz respeito ao que é mais
agradável a Deus e ao que contribui mais efetivamente para a santificação
pessoal. Em razão do chamado divino para a busca da santidade e a capacitação
para tal (e.g., 2Pe 1.3,4), essa busca se estende a todos os cristãos, não importa
sua vocação. Eles podem ser profissionais da religião — por exemplo, padres e
religiosos no caso da teologia católica, pastores/presbíteros e missionários no
caso da teologia evangélica —, mas isso não significa que estejam em posição
mais favorável diante de Deus, tampouco em posição mais vantajosa para
agradá-lo.
Tomando os conselhos evangélicos um por um, a teologia evangélica afirma
que o celibato é uma escolha que o crente poderá fazer contanto que receba de
Deus o dom para o celibato (1Co 7.7). Um sinal de que a pessoa tem esse dom é
a alegria por não ser casado e a capacidade dada por Deus de controlar o desejo
sexual de maneiras que honrem a Deus (v. 8,9,36-38). Além disso, a teologia
evangélica diz que o celibato temporário é concedido, porém não ordenado, aos
casados, nas seguintes condições: quando há um acordo temporário comum e
com um propósito espiritual que chega ao fim com a retomada das relações
sexuais (v. 5,6). Além disso, a teologia evangélica reconhece que o celibato
cristão fica livre de “dificuldades na vida terrena” e de ansiedades próprias da
vida conjugal e familiar, preocupando-se o indivíduo apenas com as “coisas do
Senhor” (v. 32-35). Consequentemente, o celibato e a vida de solteiro são um
dom maravilhoso para a igreja.
Contudo, a teologia evangélica discorda quando o celibato se torna um
requisito para determinado tipo de serviço na igreja. Embora seja
conceitualmente possível que o dom do celibato corresponda ao grupo de
homens e mulheres não casados em estado consagrado (poderíamos acrescentar
também o grupo de sacerdotes que recebeu o sacramento da ordem), a realidade
da imoralidade sexual, tanto no que diz respeito ao pecado heterossexual quanto
homossexual, entre os que fizeram o voto de celibato é evidência contrária a ele.
De fato, a teologia evangélica questiona se a compreensão errônea do celibato
não seria um fator que contribuiu para o fracasso nessa área. Afinal de contas,
quando Paulo diz que “quem não se casa faz melhor” (v. 38), ele está se
referindo aos que estão prontos para se casar, mas se abstêm de fazê-lo “por
causa da dificuldade do momento” (v. 26; provavelmente uma referência à
intensa perseguição da igreja) e porque são capazes de controlar seus desejos
sexuais (v. 36-38). Essa instrução não é um manifesto a favor do celibato para
todos em todas as épocas.
Com relação ao conselho evangélico da pobreza, a teologia evangélica
enfatiza a compaixão de Jesus pelos pobres e marginalizados da sociedade (e. g.,
Mc 14.7; Lc 4.18) e a missão da igreja em favor dos pobres (At 4.32-35; Gl 2.10;
1Tm 5.3-16; Tg 1.27; 2.15,16). A teologia evangélica não concorda, porém,
139

com a ideia de que a pobreza contribua para aumentar a santificação. São várias
as disciplinas espirituais bíblicas: oração, leitura e meditação na Escritura, jejum,
prestação de contas, tempo a sós com Deus etc. Até mesmo dar é uma disciplina
imposta a todos os cristãos (2Co 8 e 9). E, embora exemplos de grande
generosidade estejam presentes na Escritura (Zaqueu, e. g., prometeu dar metade
da sua riqueza aos pobres; Lc 19.1-10), eles se fixam em uma pessoa específica
(e.g., a recusa de um homem importante em se desfazer do seu dinheiro expôs
sua idolatria; Lc 18.18-30) ou em atos concretos de generosidade (e.g., os
cristãos que dispunham de meios financeiros e físicos na igreja de Jerusalém
contribuíam com espírito de sacrifício, At 2.44,45; 4.32-35; Barnabé vendeu um
campo, At 4.36,37). Contudo, o ato de dar na Escritura nunca é apresentado
como obrigação de se livrar de tudo o que se possui. Ananias e Safira, por
exemplo, pecaram não porque retiveram parte do lucro da venda de sua
propriedade, mas porque deram a entender que haviam dado tudo o que haviam
apurado com a venda (At 5.1-11). Dar é uma disciplina, mas a pobreza, não.
Além disso, o apóstolo Paulo encoraja os que são ricos a “que pratiquem o bem e
se enriqueçam com boas obras, sejam solidários e generosos” (1Tm 6.17-19). É
importante também observar que Paulo se dirige à situação financeira dos
presbíteros da igreja: “Os presbíteros que governam bem devem ser dignos de
honra em dobro [respeito e remuneração], principalmente os que trabalham na
pregação e no ensino. Porque a Escritura diz: Não amarres a boca do boi quando
ele estiver debulhando; e: O trabalhador é digno do seu salário” (5.17,18). Não
há recomendação para que os que servem na igreja sejam pobres.
O conselho evangélico da obediência encontra respaldo da teologia evangélica
no fato de que a submissão a Deus, a conformidade a todos os seus
mandamentos — e todas as proibições — da Escritura e o acolhimento de todas
as diretrizes boas e lícitas dos que detêm autoridade (autoridades do governo,
pais, empregadores, líderes de igreja) são adequadas ao cristão. Contudo, se a
obediência é o curso normal da vida cristã, como pode ser mais ainda do que é
para os que vivem a vida consagrada, a menos que signifique submissão a regras
e regulamentos que vão além da Escritura e que as autoridades legalmente
constituídas prescrevem de forma legítima? Neste último caso, a questão não é
de obediência, mas de adições não bíblicas e de autoridades ilegítimas ou de
prescrições ilegítimas de autoridades legítimas.
Portanto, a teologia evangélica tem sérias preocupações com os conselhos
evangélicos de castidade, pobreza e obediência adotados por homens e mulheres
que procuram viver a vida consagrada.
Uma última questão em que há acordos e discordâncias: a teologia evangélica
concorda com a vida comunitária, que é um tipo de vida religiosa na Igreja
Católica. Mas discorda de outro tipo de vida, a vida do eremita, que exige
solidão pelo distanciamento do mundo. Uma questão fundamental desse
desacordo é que essa retirada planejada contradiz a essência daquilo pelo que
Jesus orou ao Pai pensando em seus discípulos:
Eu lhes dei a tua palavra; o mundo os odiou, pois não são do mundo, assim como eu também não
sou. Não rogo que os tires do mundo, mas que os guardes do Maligno. Eles não são do mundo, assim
como eu também não sou. Santifica-os na verdade, a tua palavra é a verdade. Assim como tu me
enviaste ao mundo, eu também os enviei ao mundo. E por eles me santifico, para que também eles
sejam santificados na verdade (Jo 17.14-19).

Retirar-se do mundo, que por meio de suas filosofias carnais e sistemas ímpios
se coloca contra a igreja e procura poluí-la e sabotá-la, não é uma opção para o
cristão, e também não foi para Jesus: assim como Jesus estava no mundo, mas
não pertencia a ele, a igreja deve estar no mundo, embora não pertença a ele. De
fato, assim como o Pai enviou o Filho ao mundo para concretizar a salvação,
assim também o Filho envia a igreja ao mundo para anunciar como essa salvação
conquistada deverá ser apropriada (cf. Jo 20.21). A consagração que Jesus faz de
si mesmo por amor à igreja, bem como a Palavra de Deus que ele traz, é
suficiente para que a igreja esteja no mundo e não seja do mundo, participando
de seus esforços missionais e sendo fiel e obediente a Deus.

A comunhão dos santos


A teologia católica e a evangélica também concordam e discordam em parte no
que diz respeito à comunhão dos santos. O ponto de acordo consiste na
afirmação de que a igreja existe em dois estados, como a igreja terrena, da qual
fazem parte todos os cristãos vivos deste mundo, e a igreja celestial, que
consiste nos cristãos aperfeiçoados na glória. A discordância se dá em torno do
terceiro estado da igreja, a purgatorial. Conforme observamos anteriormente, e
conforme será discutido posteriormente, a doutrina do purgatório da teologia
católica depende do axioma errôneo da interdependência natureza-graça, carece
de suporte bíblico e contradiz a doutrina da justificação. Além disso, a ideia de
que a comunhão dos santos implica a troca de bens espirituais entre os vários
estados da igreja não tem respaldo bíblico. Consequentemente, crer que os
membros da igreja celestial estejam em constante intercessão pelos membros da
igreja terrena (e também pelos membros da igreja purgatorial) é, no máximo,
especulação. O que a Bíblia diz, e não há consolo maior e mais sólido do que
este para o cristão que hoje vive, é que o Espírito Santo e Jesus Cristo
intercedem por ele (Rm 8.26,27,34). A suficiência da Escritura traz à
140

lembrança do cristão que aquilo que Deus proporcionou a ele, a dupla


intercessão da Segunda e da Terceira Pessoas da Trindade, é recurso suficiente
no qual ele pode confiar.
Maria como mãe da igreja
Uma vez mais, o Catechism retorna a uma discussão do papel de Maria não em
relação a Cristo e ao Espírito Santo, conforme fez anteriormente, mas agora em
relação à igreja. Aqui, a ênfase recai sobre Maria, a mãe da igreja. A teologia
católica associa intimamente os sofrimentos de Cristo na cruz e os sofrimentos
de Maria no momento da crucificação do seu Filho, tendo ela se unido a ele em
seu sacrifício e consentido em sua execução como vítima entregue em sacrifício.
A teologia evangélica contesta esse retrato do papel de Maria. Ela certamente
deve ter ficado horrorizada com o espetáculo do seu Filho sofrendo a execução
pela crucificação, e deve ter sofrido uma dor excruciante por causa de sua perda.
Contudo, além dessas emoções humanas esperadas, e que são possíveis de
imaginar pela simples afirmação do texto da Escritura — “Em pé, junto à cruz
de Jesus, estavam sua mãe, a irmã de sua mãe, a mulher de Clopas, chamada
Maria, e Maria Madalena” (Jo 19.25) —, tudo o mais não passa de especulação.
Mas não é só isso. A narrativa prossegue: “Vendo ali sua mãe, e ao lado dela o
discípulo a quem ele amava, Jesus disse à sua mãe: Mulher, aí está o teu filho.
Então disse ao discípulo: Aí está tua mãe. E, a partir daquele momento, o
discípulo manteve-a sob seus cuidados” (Jo 19.26,27). A teologia católica
interpreta erroneamente essa passagem e cria um papel exagerado para Maria —
a de mãe de toda a humanidade: “A mãe de Cristo, que está bem no centro desse
mistério [...] é dada como mãe de todos e de toda a humanidade. O homem ao pé
da cruz é João [...]. Mas não só ele”. João representa, de forma concreta, a
141

descendência de Adão e da igreja. Para seu crédito, a teologia católica reconhece


que “encontramos ali a expressão da solicitude própria do Filho por sua Mãe, a
quem está deixando em meio a tão grande sofrimento”. Contudo, a teologia
142

católica prossegue: “E, no entanto, o ‘testamento da cruz de Cristo’ diz mais”.143

Na verdade, essa interpretação encontra mais coisas na passagem do que ali


existe e tende “não tanto a ver Maria entregue aos cuidados do discípulo amado,
e sim o contrário”: João passa a seus cuidados. Mediante uma reviravolta
144

simbólica, essa interpretação considera João o modelo de todo discípulo


verdadeiro, abrindo assim caminho para que Maria seja mãe da humanidade e
mãe da Igreja. No entanto, o que diz na verdade o texto? O discípulo levou
Maria para a casa dele. Em um de seus atos finais antes de morrer, Jesus
manifestou de maneira adequada e amorosa sua preocupação com sua mãe no
instante em que ela testemunhava a crucificação horrenda e trágica do seu Filho.
A oração temporal (“e a partir daquele momento”) chama novamente a atenção
para a morte de Jesus Cristo. De fato, os três versículos seguintes recontam os
últimos momentos lancinantes de vida: suas palavras “tenho sede”; a oferta de
vinagre para lhe matar a sede; e sua afirmação final “está consumado” quando
“inclinou a cabeça e entregou o espírito” (Jo 19.28-30). A narrativa é toda sobre
Jesus e sua obra que foi concluída na cruz e não há nenhuma indicação de
qualquer papel que Maria possa ter desempenhado na condição de mãe da
humanidade e da Igreja.
Tampouco sua maternidade é confirmada na observação de Lucas segundo a
qual, depois da ascensão de Jesus, os onze apóstolos se reuniram no aposento
superior e estavam orando “juntamente com as mulheres, com Maria, mãe de
Jesus, e com os irmãos dele” (At 1.12-14). Enquanto a Igreja Católica exalta a
presença de Maria por causa do nascimento da igreja e de certo tipo de
apostolado, isso não aparece na narrativa de Lucas. Em vez disso, ele enfatiza a
145

anormalidade de apenas onze apóstolos — a ausência de Judas entre os Doze é


notória e serve de fio condutor para a narrativa subsequente de Lucas (v. 15-26)
— e a presença contínua das principais mulheres no ministério de Jesus e dos
discípulos, conforme Lucas havia enfatizado previamente (Lc 8.1-3). Atos 1.14
introduz dois itens novos: “Maria, mãe de Jesus, com seus irmãos” também
estavam reunidos com os apóstolos em oração. Aprendemos com isso que Maria,
sua mãe, continuava a seguir Jesus. Embora essa informação fique em dúvida no
Evangelho de Lucas (Lc 8.19-21), felizmente ficamos sabendo que Maria
continuava a ser discípula. A ela somam-se seus filhos, os irmãos de Jesus.
Embora não tivessem crido nele quando estava vivo (Jo 7.5), tornaram-se
discípulos de Jesus depois de sua morte e ressurreição. Lucas não permite que
imaginemos um papel com algum destaque para Maria (e para nenhuma outra
mulher e os irmãos de Jesus) além desse. Ela não é um tipo de apóstolo,
tampouco ajuda na criação da igreja.
A teologia evangélica vê com preocupação ainda maior o dogma da assunção
corporal de Maria. A doutrina se baseia em sua condição destituída de pecado:
destituída do pecado original e de quaisquer pecados, Maria não passou pela
corrupção que é consequência do pecado; seu corpo foi elevado ao céu. A
teologia evangélica se opõe principalmente à condição de ausência de pecados
em Maria; removida essa condição, não há razão para crer que seu corpo não
tenha se degradado na morte e, em seguida, se deteriorado na sepultura onde foi
enterrada. Uma segunda objeção é que o céu não é lugar para o corpo dos
falecidos, e sim para a alma deles, conforme diz o apóstolo Paulo (2Co 5.1-9).
No estado intermediário — o período entre a morte e o retorno de Jesus Cristo,
que será acompanhado pela ressurreição do corpo —, o cristão sem corpo físico
desfruta da presença do Senhor. Trata-se de um tipo de existência própria do céu.
Somente depois que Cristo voltar e estabelecer seu reino é que o cristão terá
outra vez um corpo, porém glorificado (1Co 15.42-44,49); a vida no corpo é o
tipo de existência próprio desse estado. Portanto, a teologia católica erra em sua
doutrina da assunção corporal.
Consequentemente, as doutrinas marianas da imaculada concepção, ausência
de pecado, obediência perfeita à fé, cooperação na obra redentora do seu Filho,
auxílio no nascimento da igreja e maternidade de toda a humanidade e da igreja
são coisas que se baseiam na interpretação deficiente da Escritura e na Tradição
corrompida que contraria a Escritura. Além disso, essas doutrinas marianas são
implicações fundamentais dos dois axiomas do sistema teológico católico que,
conforme observamos, deixam a desejar. Com profunda perplexidade e grande
temor, a teologia evangélica lamenta e rejeita a invocação de Maria pela Igreja
Católica “com os títulos de advogada, auxiliadora, socorro e medianeira”. 146

Embora a teologia católica negue que o papel maternal de Maria deprecie e


minimize o papel mediador singular de Cristo, a teologia evangélica insiste que é
o contrário o que se passa. Pela concepção imaculada do Filho de Deus, sua
ausência de pecado, obediência perfeita à fé, paixão, morte, sepultamento,
ressurreição, ascensão, envio do Espírito Santo para dar à luz a igreja, batismo
do cristão com o Espírito para sua inclusão no corpo de Cristo e união com ele,
Jesus Cristo realizou plenamente a salvação. Nada mais se pode ou se deve
acrescentar ao que ele fez para salvar de forma perfeita o ser humano decaído, e
Deus não planejou a salvação, que só por meio do seu Filho seria possível, para
que nela fosse incluída também a mãe de seu Filho. Sim, Maria é theotokos, mãe
daquele que é Deus. Não, Maria não é theotokos, Mãe de Deus e da igreja, o que
implica a hiperdulia — superveneração — de Maria na condição de advogada,
auxiliadora, socorro e medianeira. Seu papel de mediação é errado, pois é
desnecessário, conforme afirma o autor de Hebreus:
Portanto, tendo um grande sumo sacerdote, Jesus, o Filho de Deus, que entrou no céu, mantenhamos
com firmeza nossa declaração pública de fé. Porque não temos um sumo sacerdote que não possa
compadecer-se das nossas fraquezas, mas alguém que, à nossa semelhança, foi tentado em todas as
coisas, porém sem pecado. Portanto, aproximemo-nos com confiança do trono da graça, para que
recebamos misericórdia e encontremos graça, a fim de sermos socorridos no momento oportuno (Hb
4.14-16).
Com Jesus na condição do Deus-homem, que é o perfeito advogado, auxiliador,
socorro e mediador, não há necessidade que Maria exerça esses papéis a ela
atribuídos pela teologia católica.
1
Edição em português: Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Loyola, 1999).
2
CCC 750.
3
Ibidem.
4
CCC 752.
5
CCC 753-757. Em parte alguma da Escritura a igreja é chamada de “nossa mãe”, e o Catechism (757),
em várias passagens, apresenta passagens que respaldam a descrição bíblica da igreja “como esposa sem
mancha do Cordeiro imaculado”.
6
CCC 765; a referência é a Marcos 3.14,15.
7
CCC 766.
8
CCC 775. O termo grego μυστήριον (mystērion), usado inúmeras vezes no Novo Testamento, foi
traduzido em latim por duas palavras: mysterium e sacramentum. Este último termo foi definido por
Agostinho como “sinal visível de uma graça invisível”, que é a realidade oculta da salvação a que se refere
o termo anterior. Os sete sacramentos da igreja são, de modo concreto, os sinais e os meios pelos quais o
Espírito Santo comunica a graça de Cristo por meio do seu corpo, a igreja. “Dessa forma, a Igreja possui e
comunica a graça invisível da qual ela (a igreja) é o principal exemplo. É nesse sentido analógico que a
Igreja é chamada de ‘sacramento’” (CCC 774).
9
CCC 795.
10
CCC 799-801 apresenta uma breve discussão desses carismas, os quais são comumente conhecidos
entre os evangélicos como dons espirituais.
11
CCC 813.
12
CCC 815.
13
CCC 816; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 8.2.
14
CCC 816; citação do Concílio Vaticano II, Unitatis redintegratio 3.5.
15
CCC 818; citação do Concílio Vaticano II, Unitatis redintegratio 3.1
16
CCC 819; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 8.2.
17
CCC 819; citação do Concílio Vaticano II, Unitatis redintegratio 3.2; cf. Lumen gentium 15.
18
CCC 819.
19
CCC 820-821.
20
CCC 825; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 48.3.
21
CCC 827; referência a Mateus 13.24-30.
22
CCC 828.
23
CCC 829; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 65.
24
CCC 830; citação de Inácio, Letter to the Smyrneans 8 (versão abreviada; ANF 1:90).
25
CCC 833-834.
26
CCC 836; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 13.
27
CCC 837; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 14.
28
CCC 838; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 15.
29
CCC 838; citação do Concílio Vaticano II, Unitatis redintegratio 3.
30
CCC 839; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 16.
31
CCC 840.
32
CCC 841; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 16; cf. Nosta aetate 3. O Catechism
também se refere a Evangelii nuntiandi 53 do papa Paulo VI, disponível em:
http://www.vatican.va/holy_father/paul_vi/apost_exhortations/documents/hf_p-
vi_exh_19751208_evangelii-nuntiandi_en.html.
33
Embora o Catechism não apresente uma lista das religiões não cristãs de que trata em sua discussão,
são elas as religiões representadas no primeiro Dia Mundial de Oração pela Paz em 27 de outubro de 1986,
em Assis (e novamente em 24 de janeiro de 2002).
34
CCC 843; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 16; cf. Nosta aetate 2.
35
Lumen gentium 16 (VC II-1, 368).
36
CCC 845; citação de Agostinho, Sermon 96.7, 9.
37
O primeiro a fazer tal afirmação foi Cipriano em sua Epistle 73.21 (Letter 72.21 em ANF 5:384); ele
desenvolveu posteriormente a ideia em seu Treatise 1: on the unity of the church 1.6 (ANF 5:423).
38
CCC 846; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 14, tomando por base Marcos 16.16 e João
3.5.
39
Ibidem.
40
CCC 847.
41
Ibidem; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 16.
42
Na realização desses esforços, o Catechism estimula “um diálogo respeitoso” entre a igreja e os que
ainda não aceitam o evangelho e observa que os crentes podem ganhar com essa interação um melhor
entendimento daqueles “elementos de verdade e graça encontrados entre os povos e que são, por assim
dizer, uma presença secreta de Deus”. De fato, o evangelho funciona de tal modo a “consolidar, completar e
elevar a verdade e o bem que Deus espalhou entre os homens e os povos, e para os purificar do erro e do
mal, ‘para glória de Deus, confusão do demônio e felicidade do homem’” (CCC 856); citações do Concílio
Vaticano II, Ad gentes 9.
43
CCC 857; citação do Concílio Vaticano II, Ad gentes 5.
44
CCC 858.
45
CCC 861; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 20. A base bíblica apresentada é Atos
20.28, e o testemunho da igreja primitiva é dado por Clemente de Roma, Letter to the Corinthians 42, 44
(ANF 1:16-17).
46
Para que se faça um pequeno ajuste à discussão do Catechism da palavra “igreja”, é importante
observar que o latim ecclesia vem do grego ἐκκλησία (ekklēsia), que é empregada regularmente para se
referir a uma assembleia. Embora esse último termo seja derivado do grego ἐκκαλειν (ekkalein), é preciso
cuidado para não cometer a falácia da raiz da palavra e dar importância exagerada ao fato de que ἐκκαλειν
significa “evocar”.
47
Entre as diferenças se encontram a rejeição da teologia evangélica do totus Christus e sua redefinição
dos sacramentos conforme concedidos e dotados de poder pela Palavra de Deus e pelo Espírito Santo, e
não pela igreja.
48
Allison, SS, p. 29.
49
Para uma discussão mais detalhada, veja ibidem, p. 61-89.
50
Ibidem, p. 31.
51
Confissão de Augsburgo 7 (Schaff, 3:11-12).
52
Calvin, Institutes 4.1.8 (LCC 21:1022) [edições em português: João Calvino, As institutas, tradução de
Waldyr Carvalho Luz (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), 4 vols.; e A instituição da religião cristã, tradução
de Carlos Eduardo Oliveira; José Carlos Estêvão (São Paulo: Ed. Unesp, 2008)].
53
Trinta e Nove Artigos (anglicana), 19 (Schaff, 3:486); Confissão Belga (reformada), 29 (Schaff,
3:383); Confissão de Fé Escocesa (reformada), 18 (Schaff 3:461-462).
54
Todas as missas celebradas pela Igreja Católica no mundo todo seguem a mesma liturgia, as mesmas
orações, leituras da Escritura, eucaristia etc.
55
Confissão de Augsburgo 7 (Schaff 3:11-12).
56
Allison, SS, p. 168.
57
CCC 816; citação do Concílio Vaticano II, Unitatis redintegratio 3.5.
58
CCC 816; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 8.2.
59
Este ponto foi ressaltado e esclarecido pelo motu proprio do papa Bento XVI, “Respostas a algumas
questões referentes a certos aspectos da doutrina da Igreja” (10 de julho de 2007) disponível em:
http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20070629_responsa-
quaestiones_en.html.
60
CCC 819.
61
CCC 828.
62
Esta discussão está também associada ao conceito da teologia católica de salvação como esforço
sinergístico entre a graça divina e a cooperação humana, na expectativa de que a salvação se estenda
àqueles que façam o que está ao seu alcance (facere quod in se est) — portanto, a salvação não é, conforme
sustentam os evangélicos, concedida aos que são perfeitamente justos (não porque o tenham alcançado
mediante uma justiça própria, mas porque Jesus Cristo lhes imputa a justiça perfeita). A crítica dessa ideia
será feita posteriormente neste livro.
63
CCC 830; citação de Unitatis redintegratio 3; Ad gentes divinitus 6.
64
CCC 843.
65
CCC 847; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 16.
66
Para um resumo do desenvolvimento histórico do inclusivismo na Igreja Católica, veja Francis A.
Sullivan, “Vatican II on the salvation of other religions”, in: James L. Heft, org., After Vatican II:
trajectories and hermeneutics (Grand Rapids: Eerdmans, 2012), p. 68-95.
67
No caso de não cristãos com algum conhecimento de Deus, sua graça os leva a buscá-lo e a reforçar
suas tentativas de fazer sua vontade obedecendo à sua consciência; no caso dos não cristãos que não têm
conhecimento de Deus, sua graça suscita neles um esforço para viver uma boa vida.
68
Concílio Vaticano II, Lumen gentium 48 (VC II-1, 407).
69
Sullivan propõe uma conjectura que associa o papel instrumental da igreja na salvação dos não cristãos
com a oferta de Cristo na igreja no sacramento da eucaristia, que é universalmente eficaz como sacrifício:
“O fato de que somente a igreja pode oferecer esse sacrifício justifica que seja descrita como sinal eficaz da
salvação dos não cristãos mesmo quando ela não pode desempenhar um papel mais diretamente
instrumental pela pregação do evangelho a eles” (Sullivan, “Vatican II on the salvation of other religions”,
p. 76).
70
Concílio Vaticano II, Lumen gentium 16 (VC II-1, 368); cf. CCC 843.
71
Concílio Vaticano II, Lumen gentium 17 (VC II-1, 368-369).
72
Embora várias combinações de inclusivismo possam ser encontradas hoje em dia, o inclusivismo
descrito corresponde àquele promovido pela teologia católica, conforme se vê em um documento do
Concílio Pontifício para Diálogo Inter-Religioso: “Todos os homens e todas as mulheres que são salvos
partilham, ainda que de diferentes maneiras, do mesmo mistério da salvação em Jesus Cristo por meio do
seu Espírito. O cristão sabe disso pela fé, ao passo que outros continuam na ignorância de que Jesus Cristo é
a fonte de sua salvação [...]. De forma concreta, será pela prática sincera do que é bom em suas tradições
religiosas e pelo seguimento do que lhes dita a consciência que os membros de outras religiões responderão
positivamente ao convite de Deus e receberão a salvação em Jesus Cristo, embora não o reconheçam como
Salvador e não admitam tal fato” (Pontifical Council for Interreligious Dialogue, “Dialogue and
Proclamation”, 29, disponível em:
http://www.vatican.va/roman_curia/pontifIcal_councils/interelg/documents/rc_pc_interelg_doc_19051991_dialogue-
and-proclamatio_en.html).
73
Papa Pio IX, Quanto conficiamur moerore (10 de agosto de 1863), parágrafo 7, disponível em:
http://www.papalencyclicals.net/Pius09/p9quanto.htm).
74
Papa Pio XII, Mystici corporis Christi (29 de junho de 1943), disponível em:
http://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_29061943_mystici-
corporis-christi_en.html.
75
Sullivan chama a atenção para essas contribuições ao tópico e aponta para vários outros documentos
pós-conciliares — o Evangelii nuntiandi de Paulo VI; de João Paulo II, Redemptor hominis, Dominum et
vivificantem; Redemptoris missio, Ecclesia in Asia — cujo desenvolvimento prosseguiu na teologia católica
(Sullivan, “Vatican II on the salvation of other religions”, p. 77-88).
76
Esse fato é muito importante e é discutido e defendido em Ralph Martin, Will many be saved? What
Vatican II actually teaches and its implications for the new evangelization (Grand Rapids: Eerdmans, 2012).
77
Conforme diz Sullivan, essa ênfase sobre o sopro não regulado do Espírito Santo — isto é, sua obra
fora da Igreja Católica — foi um dos temas prediletos do papa João Paulo II (e.g., Dominum et vivificantem)
(Sullivan, “Vatican II on the salvation of other religions”, p. 82).
78
Se essa atividade do Espírito estiver associada à regeneração, e se a Igreja Católica insiste que tal
regeneração se dá pelo batismo, como as pessoas podem então experimentar essa atividade semelhante ao
vento, ou regeneração, do Espírito sem o sacramento? Discutiremos mais sobre o assunto posteriormente
neste livro.
79
Concílio Vaticano II, Ad gentes 7 (VC II-1, 821, grifo do autor).
80
CCC 840.
81
Para respaldo a essa afirmação, veja Allison, SS, p. 211-2.
82
Veja, e.g., Clement of Rome, Letter to the Corinthians 44 (ANF 1:16); Didache 15 (ANF 7:381).
83
Allison, SS, p. 94. Essa interpretação não deve ser entendida como se minimizasse o privilégio
histórico-salvífico entre os apóstolos; afinal de contas, Pedro é o primeiro a anunciar o evangelho aos
judeus (At 2.14-41), confirmar (juntamente com João) a inclusão dos samaritanos na igreja (At 8.14-25),
além de ser o apóstolo instrumental na conversão dos primeiros gentios (At 10 e 11). Contudo, Mateus
16.13-20 deve ser situado no contexto do Evangelho inteiro de Mateus: “Os discípulos [todos eles] foram
chamados para ser pescadores de homens (4.19), sal (5.13), luz (5.14-16), pregar as boas-novas do reino
(10.6-42) e, depois da ressurreição, discipular as nações e ensinar-lhes tudo o que Jesus ordenou (28.18-
20)” (D. A. Carson, “Matthew”, in: Frank E. Gaebelein, org., Expositor’s Bible Commentary [Grand
Rapids: Zondervan, 1984], 12 vols., 8:370-2). Aos discípulos de Cristo (a todos eles, com destaque para
Pedro) é dada a responsabilidade do exercício das chaves e, mais tarde no Evangelho, essa responsabilidade
é dada a toda a igreja (Mt 18.15-20; cf. 1Co 5.1-13; 2Co 13.10; Tt 2.15; 3.10,11).
84
Allison, ibidem.
85
Para o desenvolvimento histórico do uso de Mateus 16 como respaldo para o papado, veja Michael A.
G. Haykin, “The development and consolidation of the papacy”; Gregg R. Allison, “The papacy from Leo I
to Vatican II”, in: Thomas Schreiner; Benjamin Merkle, orgs., Shepherding God’s flock (Grand Rapids:
Kregel, 2014).
86
John Webster, Word and church: essays in Christian dogmatics (Edinburgh/New York: T&T Clark,
2001), p. 199-200.
87
Mateus 17.1-9 e paralelos narram o evento da transfiguração.
88
CCC 875.
89
CCC 876-878.
90
CCC 880; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 19.
91
CCC 881; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 22.2.
92
CCC 881.
93
CCC 882; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 22.
94
CCC 883; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 22.
95
CCC 889; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 12; cf. Dei Verbum 10.
96
CCC 890.
97
Concílio Vaticano I (1870), First dogmatic constitution on the church of Christ, sessão 4, disponível
em: http://www.papalencyclicals.net/Councils/ecum20.htm#papal infallibility defined.
98
CCC 891; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 25; cf. Concílio Vaticano I.
99
CCC 891.
100
Ibidem; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 25.2.
101
CCC 891.
102
CCC 892; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 25.
103
CCC 894; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 27; cf. Lucas 22.26,27.
104
O adjetivo “evangélico” nessa expressão significa “relacionado ao evangelho” (no gr., euaggelion).
105
CCC 909; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 36.3.
106
CCC 910.
107
CCC 915.
108
CCC 916.
109
CCC 920; citação do Código de Lei Canônica 603.1. O Código de Lei Canônica é um sistema
centenário de leis e de princípios legais que governam a Igreja Católica Romana. Sua última revisão é de
1983.
110
CCC 923; citação do Código de Lei Canônica 604.1. Esse rito solene de consagração é um
sacramental, e não um sacramento. Os sacramentais são “sinais santos que guardam semelhança com os
sacramentos” e que dispõem os fiéis “a receber os efeitos principais dos sacramentos” (CCC 1667; citação
do Concílio Vaticano II, Sacrosanctum concilium 60).
111
CCC 946.
112
CCC 947; as citações são de Tomás de Aquino, On the Apostles’ Creed 10, e Roman Catechism 1.10,
24. Roman Catechism, ou Catechism of the Council of Trent, foi publicado em 1566, disponível em:
http://www.cin.org/users/james/ebooks/master/trent/tindex.htm.
113
CCC 958; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 50, que toma por base o escrito apócrifo de
2Macabeus 12.45.
114
CCC 964; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 58; citação bíblica de João 19.26,27.
115
CCC 965; as citações são do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 69, 59; alusão bíblica a Atos 1.14.
116
CCC 966; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 59; para a proclamação do dogma, veja Pio
XII, Munificentissimus Deus (1.o de novembro de 1950), disponível em:
http://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/apost_constitutions/documents/hf_p-
xii_apc_19501101_munificentissimus-deus_en.html.
117
CCC 966.
118
CCC 964.
119
CCC 967; as citações são do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 53; 63.
120
CCC 969; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 62.
121
CCC 970.
122
CCC 972.
123
Webster, Word and church, p. 200.
124
Veja novamente a seção sobre “apostolicidade” no início deste capítulo.
125
Para uma discussão mais extensa, veja Allison, SS, p. 261, 298-301.
126
Cipriano, Treatise 1.4, “On the unity of the church” (ANF 5:422); Letter 51.21 (ANF 5:332); Letter
71.3 (ANF 5:379); Letter 70.3 (ANF 5:377).
127
Veja Haykin, “Development and consolidation of the papacy”; e Allison, “Papacy from Leo I to
Vatican II”, in: Schreiner; Merkle, org., Shepherding God’s flock.
128
A afirmação de que o papa tem “poder pleno, supremo e universal sobre toda a Igreja, um poder que
ele só pode exercer de forma desimpedida” (CCC 882) deve ser justaposta às afirmativas papais,
mencionadas na igreja primitiva e durante a ascensão particularmente do período medieval, não apenas de
reinar sobre a Igreja, mas de estender esse poder de modo que seu reino se estenda sobre o mundo inteiro.
Por exemplo, Gelásio, To the Emperor Anastasius, in: Eric G. Jay, org., The church: its changing image
through twenty centuries, vol. 1: The first seventeen centuries (London: SPCK, 1977), p. 98. Tais
afirmações foram baseadas em interpretações evidentemente ridículas de passagens bíblicas (e.g., papa
Inocêncio VIII, “O Sol e a Lua”, baseado em Gênesis 1.16-18; papa Bonifácio VIII, “As duas espadas”,
baseado em Lucas 22.38) e eram indefensáveis. Veja Allison, HT, p. 599.
129
Calvin, Institutes 4.3.1, 2 (LCC 21:1053, 1055).
130
E.g., Allison, HT, caps. 4 e 5.
131
Consequentemente, a afirmação de Gelásio, bispo de Roma de 492-496, de que os concílios
ecumênicos da igreja — já haviam sido celebrados quatro concílios àquela altura (Niceia, Constantinopla I,
Éfeso e Calcedônia) — derivavam sua autoridade do bispo de Roma, era historicamente imprecisa (embora
tivesse contribuído muito para o desenvolvimento do papado em Roma).
132
Vigílio sucumbiu aos encantos da princesa Teodora ao se comprometer com o Credo de Calcedônia.
Seu comprometimento ficou manifesto pelo Segundo Concílio de Constantinopla (553). Honório sustentava
o monotelismo, visão segundo a qual na encarnação o Deus-homem tinha apenas uma vontade. O Terceiro
Concílio de Constantinopla (680-681) condenou Honório por heresia. O papa Leão II (682-683) também
condenou Honório, criando uma situação embaraçosa em que um papa denunciava outro. Infelizmente, o
papa Gregório VII (1073-1085), dizendo em seu Memorandum (Dictatus papae; 1075) que o papa jamais
havia errado e não erra, negligenciou o caso de Honório.
133
Leo I, “The tome of Leo”, in: Henry Bettenson; Chris Maunder, orgs., Documents of the Christian
church, 3. ed. (Oxford/New York: Oxford University Press, 1999), p. 54-5 [edição em português:
Documentos da igreja cristã, tradução de Helmuth Alfredo Simon (São Paulo: Aste, 1967)].
134
“The definition of Chalcedon”, in: Bettenson, Documents of the Christian church, p. 56.
135
Todos esses movimentos e ideologias foram condenados pelo papa Pio IX, Quanta cura (8 de
dezembro de 1864), com o Syllabus of Errors, disponível em:
http://www.archive.org/stream/QuantaCuraTheSyllabusOfErrors_247/pius_ix_pope_quanta_cura_and_the_syllabus_of_error
136
CCC 891. Além disso (com base em CCC 891-892), qual a diferença concreta, além da semântica,
entre um pronunciamento papal infalível ao qual se deve “obediência de fé” e um ensino magisterial
subinfalível ao qual se deve “assentimento religioso”, e que “não obstante, é uma extensão da obediência da
fé” (CCC 892)?
137
Para uma discussão mais ampla, veja Grudem, ST, p. 775-6 [edição em português: Wayne Grudem,
Teologia sistemática (São Paulo: Vida Nova, 2011)].
138
CCC 916.
139
Para um exemplo de afirmação evangélica de ajuda aos pobres e marginalizados, veja The Gospel
Coalition’s, “Theological Vision for Ministry”, vol. 5, disponível em:
http://thegospelcoalition.org/about/foundation-documents/vision/.
140
Conforme afirmação dos participantes evangélicos do Evangélicos e Católicos Juntos: “A Bíblia nada
diz se Maria e outros crentes que partiram com o Senhor podem ouvir as palavras dirigidas a eles nesta vida
e responder a elas. Os evangélicos creem que pela obra consumada de Cristo na cruz, e pelo poder do
Espírito que intercede por nós, podemos chegar diretamente e ‘com confiança ao trono da graça’ (Hb 4.16).
Embora a igreja triunfante [a igreja celestial] e a igreja militante [a igreja terrena] se unam em comum
adoração por meio do Espírito (Ap 5.6-14), não há menção de orações a Maria ou aos santos no testemunho
do Novo Testamento e dos dois primeiros séculos da igreja” (“Do whatever he tells you: the blessed Virgin
Mary in Christian faith and life” [November 2009], seção intitulada “An evangelical word to catholics”, p.
4), disponível em: http://www.firstthings.com/article/2009/11/do-whatever-he-tells-you-the-blessed-virgin-
mary-in-christian-faith-and-life.
141
Papa João Paulo II, Redemptoris Mater, p. 23.
142
Ibidem.
143
Ibidem.
144
D. A. Carson, The Gospel according to John (Leicester/Grand Rapids: Inter-Varsity Press/Eerdmans,
1991), p. 617.
145
Papa João Paulo II, Redemptoris Mater, p. 24, 26.
146
CCC 969.
5
A PROFISSÃO DA FÉ
(primeira parte, seção 2, capítulo 3, artigos
10-12)
As doutrinas da salvação, da ressurreição futura e da vida eterna

A doutrina da salvação: “Creio no perdão dos


pecados” (seção 2, capítulo 3, artigo 10)
Seguindo a estrutura do Credo — “Creio no Espírito Santo, na santa Igreja
Católica, na comunhão dos santos” —, o Catechism of the Catholic Church 1

observa que o Credo “associa a fé no perdão dos pecados não apenas com a fé no
Espírito Santo, mas também com a fé na Igreja e na comunhão dos santos”. O 2

Catechism aponta para Cristo, que concede o Espírito Santo, juntamente com
“divino poder para perdoar pecados”, por intermédio dos apóstolos, como base
bíblica para esse princípio de fé. No dia da ressurreição, Jesus disse a seus
discípulos: “Recebei o Espírito Santo. Se perdoardes os pecados de alguém,
serão perdoados; se os retiverdes, serão retidos” (Jo 20.22,23). Além disso,
3

Cristo associou o perdão dos pecados à fé e ao batismo; a Grande Comissão de


Jesus, conforme narrada no Evangelho de Marcos, é a base bíblica para essa
associação: “E disse-lhes: Ide por todo o mundo, e pregai o evangelho a toda
criatura. Quem crer e for batizado será salvo” (Mc 16.15,16). Mais adiante
veremos em detalhes que a purificação pelo batismo apaga completamente o
pecado original das crianças batizadas, bem como apaga completamente o
pecado original de todos os atos pessoais pecaminosos dos jovens e adultos
batizados; consequentemente, não há mais “absolutamente nada por apagar”. O4

batismo é um dos usos possíveis das chaves do reino conferidas por Cristo à sua
Igreja (Mt 16.13-20).
Ao mesmo tempo, “a graça do batismo não isenta ninguém de nenhuma das
enfermidades da natureza. Pelo contrário, resta-nos ainda combater os
movimentos da concupiscência, que não cessam de nos arrastar para o mal”. 5

Para vencer essa inclinação que seduz a pecar e que culmina com o pecado, o
fiel precisa de outro remédio além do batismo. Portanto, a Igreja recorre
novamente às chaves do reino e nelas encontra o sacramento da penitência, que
lhe dá poder para “perdoar as faltas a todos os penitentes”. A penitência,
6

tradicionalmente descrita como “‘batismo laborioso’ [...] é necessária para a


salvação dos que caíram depois do batismo”. Por meio desse sacramento, os
7

pecados cometidos depois do batismo (mais adiante especificaremos que os


pecados visados pelos sacramentos são os mortais, e não os veniais) são
perdoados pela Igreja, e os penitentes são restaurados à comunhão com Deus
pela graça da justificação.

Avaliação evangélica
Como a doutrina do perdão dos pecados se acha intimamente associada ao
batismo e à penitência, sua avaliação completa só ocorrerá no momento que o
Catechism fizer a exposição dos sacramentos. Contudo, conforme observamos
anteriormente, a associação íntima da teologia católica do perdão aos apóstolos
— e, portanto, aos seus sucessores, os bispos da Igreja Católica — é motivo de
dificuldades porque se acha baseada em dois axiomas do sistema católico: a
interdependência natureza-graça se manifesta na necessidade de graça a ser
conferida de uma maneira tangível; portanto, ela deve ser conferida
concretamente, primeiro pelos apóstolos e, depois de sua morte, pelos bispos da
Igreja Católica. A interconexão Cristo-Igreja se expressa por meio da exigência
de mediação entre os dois reinos, isto é, natureza e graça. Portanto, a Igreja
Católica deve comunicar graça à natureza. Esses dois axiomas já foram
analisados (cap. 1).
Pode-se fazer igualmente uma crítica específica desse ponto. Sem dúvida, a
teologia evangélica reconhece o dom e a comissão confiados por Cristo a seus
discípulos: “E havendo dito isso, soprou sobre eles e disse-lhes: Recebei o
Espírito Santo. Se perdoardes os pecados de alguém, serão perdoados; se os
retiverdes, serão retidos” (Jo 20.22,23). A pergunta que se coloca é a seguinte:
como a Escritura apresenta a iniciativa apostólica para o cumprimento dessa
tarefa missional? Seguindo o Evangelho de João pela ordem canônica, o livro de
Atos narra o período de espera e de oração em antecipação à vinda do Espírito
Santo (At 1.12-14) e sua descida no dia de Pentecostes para dar início a seu novo
ministério de aliança e inaugurar a igreja (At 2). Os discípulos de Jesus — e não
apenas os Doze por ele instituídos (At 1.15-26), e sim 120 no total (v. 15) —
foram batizados, ou cheios do Espírito Santo, recebendo desse modo o dom do
Espírito prometido por Cristo (v. 4,5; 2.4). Tendo recebido poder do alto com o
recurso divino necessário (1.8), esses discípulos foram lançados em sua missão
evangélica, que é narrada em todo o livro de Atos. Os aspectos desse esforço
missionário consistiram no anúncio da obra de Jesus de Nazaré a favor dos seres
humanos decaídos; instrução de arrependimento do pecado e fé em Jesus Cristo;
promessa de perdão e o dom do Espírito; batismo; afiliação à igreja (2.22-47). A
participação na Grande Comissão não era restrita aos apóstolos; Estêvão (At 7),
Filipe (At 8) e os homens de Chipre e Cirene (At 11.19-26) são mencionados
especificamente como arautos não apostólicos do evangelho. Consequentemente,
o perdão de pecados não é uma prerrogativa de uma casta especial de homens,
tampouco algo que pertence exclusivamente ao seu ministério. Sejam quais
forem as realidades institucionais e hierárquicas introduzidas posteriormente na
história para que a remissão de pecados fosse restrita aos sacerdotes/bispos da
Igreja Católica, eles não podem alterar o que a Escritura ordena a todos os
seguidores de Cristo que receberam poder pelo Espírito de Deus. Quando uma
mãe cristã partilha o evangelho de Jesus Cristo e seu filho perdido se arrepende e
crê, a declaração dessa mãe — “Seus pecados estão perdoados” — expressa a
verdade de pecados já desligados no céu por causa do sacrifício de Cristo (Mt
16.19,21), e é motivo de “alegria perante os anjos de Deus” por causa do filho
pródigo que voltou ao lar e foi encontrado (Lc 15.10,11-32).
A conexão específica desse perdão de pecado com os sacramentos do batismo
e da penitência da Igreja Católica será analisada e avaliada posteriormente.

A doutrina da ressurreição futura: “Creio na


ressurreição do corpo” (seção 2, capítulo 3, artigo 11)
A obra de salvação realizada por Jesus Cristo por meio da sua morte e
ressurreição e a concretização dessa salvação na vida dos seres humanos
decaídos não estarão completas durante a presente era, mas aguardam o
eschaton, ou a era por vir, do qual a ressurreição física dos cristãos e sua
experiência de vida eterna são elementos essenciais.
A doutrina da ressurreição do corpo, um princípio de fé sustentado pela igreja
desde o início, significa que a obra de salvação de Deus se aplica não apenas à
alma (o aspecto imaterial do ser humano que continuará a viver após a morte),
mas também ao corpo (o aspecto material, descartado na morte, voltará
novamente à vida). Biblicamente, essa é uma doutrina revelada aos poucos, mas
8

que encontra sua expressão mais clara e completa na associação que Jesus faz da
“fé na ressurreição à sua pessoa: ‘Eu sou a ressurreição e a vida’. É Jesus quem,
no dia final, levantará aqueles que creram nele, que comeram seu corpo e
beberam seu sangue”. Desde o início, a fé na ressurreição enfrentou forte
9
resistência: “Não há ponto em que a fé cristã encontre mais contradição do que o
da ressurreição da carne”.
10

Para explicar a ressurreição, o Catechism discute primeiramente a morte: “Na


morte, separação da alma e do corpo, o corpo do homem cai na corrupção,
enquanto sua alma vai ao encontro de Deus, embora ficando à espera de se
reunir ao seu corpo glorificado”. Consequentemente, a existência de crentes no
11

céu com Cristo se dá em forma incorpórea (com exceção de Maria, cujo corpo
subiu ao céu no fim de sua vida). Quando Cristo voltar, todos os crentes
destituídos de corpo ressurgirão e receberão um corpo novo e glorioso; eles terão
novamente um corpo pelo poder de Cristo e do Espírito Santo (1Co 15.35-53; Fp
3.21; Rm 8.11).
Embora tal esperança seja futura, certo aperitivo da ressurreição é concedido
durante esta vida terrena. A participação no sacramento do corpo e do sangue de
Cristo significa que “nossos corpos, que participam da eucaristia, não são mais
corruptíveis, mas possuem a esperança da ressurreição”. A participação no
12

sacramento do batismo significa que os fiéis já foram identificados com a


ressurreição de Cristo; na verdade, eles “já participam realmente na vida celeste
do Cristo ressuscitado” de um modo oculto. Entre as implicações da esperança
13

da ressurreição, há o respeito pelo próprio corpo e pelo corpo de outras pessoas


(1Co 6.13-15,19,20).
É claro que para ressuscitar com Cristo é preciso morrer com ele, e o
Catechism volta então a discutir a morte. Em certo sentido, a morte terrena é
natural — é comum a todas as pessoas; contudo, em outro sentido, não é natural,
já que é a penalidade do pecado (Rm 6.23; cf. Gn 2.17). A morte é: (1) o fim da
vida terrena; (2) a consequência do pecado; e (3) a transformação efetuada por
Cristo. Concretamente, para o cristão, a morte tem um significado novo e
positivo: ele ganha a presença de Cristo quando vive com ele (Fp 1.21; 2Tm
2.11), e seu morrer com Cristo, que começou no batismo, se torna completo. A
morte também marca o fim das oportunidades de autoavaliação da graça divina
para salvação; depois da morte, não há mais chance de salvação (Hb 9.27). Em
preparação para a morte, o fiel ora: “Duma morte repentina e imprevista, livrai-
nos, Senhor” e pede a Maria que interceda por ele “na hora da nossa morte”; e se
confia a “São José, padroeiro da boa morte”.14

Avaliação evangélica
Com poucas exceções, a teologia católica e a teologia evangélica estão de acordo
em relação à doutrina da ressurreição. A esperança derradeira do cristão não é
morrer e ir para o céu em alma sem corpo; pelo contrário, a expectativa correta é
a que espera a ressurreição do corpo. Somente quando o crente for revestido
novamente de um corpo imperecível, glorioso, forte e espiritual (i.e., totalmente
controlado e dominado pelo Espírito Santo; veja 1Co 15.42-44,49) é que ele
experimentará a plenitude da salvação. Todos os que estão unidos a Cristo —
identificados com sua morte, sepultamento e ressurreição vividamente expressos
no batismo — têm essa esperança. A condição do cristão já é o de ressuscitado
com Cristo, e a realidade da sua cidadania celestial deve motivar e guiar sua
cidadania terrena (Fp 3.20; Cl 2.12; 3.1-4). Por fim, a ressurreição será obra
milagrosa do Espírito Santo (Rm 8.11), que reunirá a alma do crente ao seu novo
corpo glorificado.
O ponto fundamental de discordância diz respeito à fonte do antegozo do
corpo ressurreto durante a vida terrena do crente. A teologia evangélica não crê
que o sacramento da eucaristia confira incorruptibilidade ao corpo, o resultado
da transformação interior por meio da graça de Deus infundida no crente,
conforme afirma a teologia católica. Ouvem-se aí ecos da interdependência
15

natureza-graça: a graça opera no intuito de elevar e, por fim, aperfeiçoar a


natureza (humana). A teologia evangélica, pelo contrário, aponta para a
ressurreição de Cristo como prenúncio da ressurreição de seus seguidores (1Co
6.13,14). Esse princípio de fé também é aceito pela teologia católica, mas a
teologia evangélica insiste que a ressurreição de Cristo é o único prenúncio da
ressurreição. O batismo, pelo qual o cristão se identifica com a ressurreição de
Cristo, manifesta essa esperança de forma concreta.
A doutrina da ressurreição ganha destaque contra o pano de fundo de uma
teologia da morte, e aqui ambas as teologias partilham muita coisa em comum. A
morte é a cessação do funcionamento do aspecto material da natureza humana,
bem como o “desvestir” desse elemento material do elemento imaterial.
Portanto, o corpo morre e é descartado, ao passo que a alma, ou espírito,
continua a existir, agora separada temporariamente do corpo. Consequentemente,
a morte é o fim da vida terrena, mas não de toda a existência. Além disso,
embora natural no sentido de ser comum a todos, a morte não é natural, sendo
ela o castigo decorrente do pecado, e não parte da ordem original criada. O
cristão não enfrenta a morte com medo (Hb 2.14-18), mas com alegm ad iegmad i
egmad i
egm
ad i
egm
a
A liturgia — obra da Santíssima Trindade (seção 1,
capítulo 1, artigo 1)
O Catechism trata dessa dispensação sacramental, ou “mistério pascal na era da
igreja”, detendo-se nos vários agentes e instrumentos em operação na liturgia.
De modo concreto, essa é a obra do Deus trino.
A obra de Deus Pai, como fonte da liturgia, consiste em dispensar uma
bênção. Além disso, ele é reconhecido e adorado como objetivo da liturgia, na
verdade “como fim de todas as bênçãos da criação e da salvação”. 10

A obra de Deus Filho é sua atividade “através dos sacramentos que ele
instituiu para comunicar sua graça”; pela ação de Cristo e pelo poder do Espírito
Santo, os sacramentos “realizam eficazmente a graça que significam”. Mais 11

concretamente, o Filho significa e torna presente sua obra de salvação como


evento único ao qual se aplica um atributo divino:
Seu mistério pascal é um acontecimento real, ocorrido na nossa história, mas único: todos os outros
acontecimentos da história acontecem uma vez e passam, devorados pelo passado. Pelo contrário, o
mistério pascal de Cristo não pode ficar somente no passado, já que, pela sua morte, ele destruiu a
morte; e tudo o que Cristo é, tudo o que fez e sofreu por todos os homens, participa da eternidade
divina, e assim transcende todos os tempos e em todos se torna presente. O acontecimento da cruz e
da ressurreição permanece e atrai tudo para a vida.12

Jesus Cristo morreu e ressurgiu dos mortos somente uma vez, há cerca de dois
mil anos; ele realizou a salvação dos seres humanos decaídos de uma vez por
todas. Contudo, sua obra na cruz e sua ressurreição não podem continuar
confinadas ao passado, fechadas no espaço e no tempo como os demais eventos
históricos. Pelo contrário, esse mistério pascal é presentificado, ou
reapresentado, em todas as épocas (conforme veremos, isso tem implicação
especial para a celebração do sacramento da eucaristia) porque esse evento
ocorrido uma vez e para sempre compartilha do atributo divino da eternidade, ou
atemporalidade (observe, uma vez mais, as linhas inferiores do diagrama
anterior). A existência de Deus não é temporal, com começo e fim, e uma
sucessão de eventos, e ele mesmo não é e não pode ser limitado pelo tempo;
antes, Deus existe fora do tempo e, por conseguinte, está presente por toda parte
e em todas as épocas. Como a obra de salvação de Cristo participa do seu
atributo divino, também ela não é e não pode ser limitada no tempo, existindo
fora dele e, portanto, é reapresentada, ou presentificada, nas celebrações
eucarísticas da igreja.
Essa reapresentação está associada à igreja: Cristo, pelo poder do Espírito
Santo, realiza esta obra de representificação por intermédio de seus apóstolos e
daqueles a quem os apóstolos, pelo poder do mesmo Espírito, transferiram seu
poder por meio da sucessão apostólica — os bispos da igreja. Portanto, Cristo
está presente na liturgia da igreja de dois modos concretos: no sacerdote e na
eucaristia. Cristo está presente “na pessoa do seu ministro, ‘o mesmo que agora
oferece, pelo ministério dos sacerdotes, que anteriormente ofereceu a si mesmo
na cruz’”. Cristo também está presente “sobretudo na espécie eucarística”, isto
13

é, nos dois elementos do pão e do vinho (misturado à água). É crucial para essa
14

realidade a convicção de que Cristo “associa sempre a igreja a ele mesmo nessa
grande obra em que Deus é perfeitamente glorificado, e o homem, santificado”. 15

A obra de Deus Espírito Santo na liturgia da igreja é variada. Ele é “mestre da


fé do povo de Deus e artesão das ‘obras-primas de Deus’, os sacramentos”. 16

Como aquele que instiga a fé, o Espírito vai ao encontro do fiel da igreja em
resposta à fé, estimula desse modo a cooperação sinergística e suscita a
colaboração entre o divino e o humano na liturgia da igreja. Além disso, o
Espírito Santo “prepara a igreja para seu encontro com o Senhor; ele traz a
lembrança de Cristo e o torna manifesto à fé da assembleia [...] ele torna o
mistério do Cristo presente aqui e agora [...] e une a igreja à vida e à missão de
Cristo”. A obra preparatória do Espírito é acompanhada da preparação do
17

próprio fiel e do trabalho dos ministros da igreja para o encontro dos crentes com
Cristo. A graça do Espírito Santo estimula a fé, a conversão e o
comprometimento com a vontade Deus, disposições que são precondições para o
acolhimento de outras graças acessíveis por meio da liturgia.18

De modo concreto, a obra do Espírito Santo na liturgia quer trazer à tona


novamente o mistério de Cristo. Como a teologia “é o memorial do mistério da
salvação”, o Espírito “é a memória viva da igreja”. Essa obra diz respeito
19

principalmente à Palavra de Deus: “O Espírito Santo lembra à assembleia


litúrgica, em primeiro lugar, o sentido do acontecimento salvífico, dando vida à
Palavra de Deus, que é anunciada para ser recebida e vivida”. Esse papel da
20

Escritura diz respeito não apenas a partes dela que são lidas durante a liturgia e
sobre a qual a homília, ou sermão, se baseia. A Escritura, pelo contrário, está no
âmago dos cânticos, das orações, coletas (em suma, nas orações estruturadas),
bem como nas ações litúrgicas. Além disso, o Espírito ilumina a Palavra de
Deus, conferindo uma “compreensão espiritual” a seus ouvintes/leitores “de
acordo com a disposição do seu coração”. Além disso, a Palavra de Deus
21

“suscita a resposta de fé como consentimento e compromisso”. Nutrir desse


modo a fé faz a igreja crescer. Concretamente, na liturgia da Palavra (primeira
22

parte da celebração litúrgica da igreja, sendo a liturgia da eucaristia a segunda


parte), o Espírito “lembra” à igreja a obra de Cristo para sua salvação. Essa
lembrança, ou despertamento da memória da igreja, é chamada de anamnese.
Desse modo, “a celebração ‘faz memória’ das maravilhas de Deus numa
anamnese”. 23

Conforme dissemos acima, porém, a liturgia não implica uma simples


memória de eventos da obra salvífica de Cristo, mas ela “os atualiza, torna-os
presentes. O mistério pascal de Cristo celebra-se, e não se repete; as celebrações
é que se repetem. Mas em cada uma delas sobrevém a efusão do Espírito Santo,
que atualiza o único mistério”. Essa obra do Espírito está associada
24

particularmente ao elemento litúrgico conhecido como epiclese: “A epiclese


(invocação sobre) é a intercessão mediante a qual o sacerdote suplica ao Pai que
envie o Espírito santificador para que as oferendas se tornem o corpo e o sangue
de Cristo e para que, recebendo-as, os fiéis se tornem eles próprios uma oferenda
viva para Deus”. Esses dois elementos, a anamnese e a epiclese, estão no
25
âmago da celebração litúrgica, especialmente do sacramento da eucaristia. Com
o Espírito Santo e por meio dele, a igreja se acha intimamente unida com Cristo
e toma a forma do seu corpo, tornando-se seus membros “um sacrífico vivo a
Deus por sua transformação espiritual à imagem de Cristo”, unidos por seu
entrelaçamento e equipados para a “missão da igreja através do testemunho e do
serviço da caridade”.26

Avaliação evangélica
A teologia evangélica praticamente não tem nada em comum com o conceito e a
prática da teologia católica no que se refere à economia sacramental, exceto pelo
mesmo objeto de adoração (o Deus trino), os mesmos participantes (os líderes da
liturgia e a congregação) e os mesmos ritos ou atividades externos de adoração
(e. g., oração, leitura e pregação da Palavra de Deus, cânticos, celebração da ceia
do Senhor). Além dessas semelhanças formais, porém, a economia sacramental
da teologia católica e a doutrina da adoração da teologia evangélica estão muito
longe uma da outra.
A teologia evangélica rejeita o ponto central da economia sacramental
segundo o qual a salvação em Jesus Cristo ocorreria continuamente, e que é
particularmente associada à Igreja Católica, à sua hierarquia e aos seus
sacramentos. Não há dúvida de que Jesus Cristo, como Sumo Sacerdote, morreu
uma vez na cruz, e somente uma vez. Na verdade, a teologia evangélica insiste
com seus membros para que não entendam mal a teologia católica nesse ponto: a
teologia católica não ensina que Cristo é sacrificado novamente todas as vezes
que o sacramento da eucaristia é celebrado. Hoje, na missa católica, Jesus não
está sendo morto pela milésima milionésima vez. Ele morreu uma única vez, e
tanto a teologia evangélica quanto a teologia católica ensinam essa verdade.
A diferença entre uma e outra diz respeito à ideia de representificação do
sacrifício feito uma única vez e para sempre toda vez que o sacramento da
eucaristia é ministrado. A ideia católica de que a obra de Cristo na cruz participa
do atributo divino da eternidade (i.e., que nunca deixa de existir), ou de sua
atemporalidade (sem limitação de tempo; observe novamente o diagrama supra),
não tem garantia alguma. Consequentemente, o sacrifício de Cristo há dois mil
anos, a exemplo dos demais eventos históricos, ocorreu uma única vez no
passado e não transcende os séculos de modo que continue ainda hoje (ou, a
propósito, em qualquer época depois que ocorreu). A ideia de atemporalidade
pode ser invocada na tentativa de explicar de que maneira o corpo e o sangue de
Cristo estão presentes na eucaristia, mas tudo isso se deve à interpretação
equivocada das palavras de Cristo quando se referiu ao pão na hora em que
instituiu a ceia do Senhor: “Isto é o meu corpo” (Mt 26.26). Assim como não era
seu corpo físico quando os discípulos comeram o pão na ceia — como poderia
sê-lo, uma vez que ele ainda não fora crucificado? —, tampouco se trata de seu
corpo físico agora, quando o fiel ingere a hóstia durante a celebração eucarística.
Além disso, a interpretação sacramental do discurso de Jesus, o “Pão da Vida”,
em João 6, do qual depende a teologia católica para seu conceito de economia
sacramental em geral, e da eucaristia em particular, não é muito plausível.
Trataremos desses pontos mais diante.
O ponto de vista da teologia católica da representificação de Cristo,
associando-a à igreja por meio de sua hierarquia, padece especialmente de sua
fundamentação na interconexão Cristo-Igreja, um axioma já analisado (cap. 1).
Cristo não está presente agora na igreja como cabeça e corpo. Ele não está aqui
na terra na plenitude de todo o seu ser; pelo contrário, em sua natureza humana,
o Senhor exaltado está sentado à mão direita do trono divino no céu. Dessa
implicação seguem-se duas verdades, que contradizem a teologia católica nesse
assunto: Cristo não está e não pode estar presente no sacerdote quando este
conduz a liturgia. E Cristo não está e não pode estar presente no pão e no cálice
do sacramento da eucaristia. Nesse ponto, a teologia evangélica não afirma que
Cristo está ausente da sua igreja, da sua adoração, da sua celebração da ceia do
Senhor etc. Pelo contrário, como Filho pleno de Deus, ele está onipresente —
presente em toda parte. Além disso, ele manifesta sua presença espiritual de
modos específicos e em épocas específicas — por exemplo, para revestir de
poder a mobilização missional da igreja (Mt 28.18-20), para dar respaldo ao
exercício de disciplina da igreja (Mt 18.15-20) e para abençoar a ministração
conveniente ou julgar a observação indigna da ceia do Senhor (1Co 10.14-22;
11.17-33). Consequentemente, ele não está ausente da sua igreja; pelo contrário,
está presente nela quando ela evangeliza, adora, ensina etc. Contudo, essa
presença espiritual é mediada pela ação do Espírito Santo, a quem Cristo enviou
na condição de “outro Auxiliador” (Jo 14.16) para tomar seu lugar na terra
durante sua ausência entre sua ascensão e seu retorno. Além disso, a presença
espiritual de Cristo é mediada pela instrumentalidade do registro escrito da
Escritura, a qual ele deu mediante o Espírito pelo ministério de autores humanos
para que fosse sua Palavra inspirada, verdadeira, revestida de autoridade,
suficiente, necessária, clara e cheia de poder. Não bastasse isso, ela é mediada
pelas ordenanças da nova aliança, do batismo e da ceia do Senhor, que Cristo
ordenou à igreja que ministrasse até seu retorno. Contudo, a presença da qual
esses elementos são intermediários não é a da plenitude do Cristo total,
incluindo-se sua natureza humana, corpo e sangue, mas tão somente sua
presença espiritual.
27

Com relação de modo concreto à ação do Espírito Santo na liturgia, a teologia


evangélica concorda em parte com sua congênere católica de que o Espírito
suscita a fé, é intermediário da presença de Cristo na igreja e no mundo, ensina a
fé ao povo de Deus e ilumina a Escritura. Ela não concorda, porém, que o
Espírito, qual artesão, confeccione os sacramentos; torne o sacrifício de Cristo
presente aqui e agora na igreja, sobretudo por meio dos seus sacramentos; que
ele estimule certas disposições que predisponham as pessoas a receber a graça
divina por meio da liturgia; e que funcione como memória viva da igreja do
mistério da salvação. Uma ação litúrgica especialmente preocupante é a epiclese,
a invocação a Deus Pai feita pelo sacerdote para que ele envie o Espírito Santo e
transubstancie o pão e o cálice no corpo e sangue de Cristo durante a celebração
da eucaristia. A teologia evangélica também hesita em concordar com a ideia da
teologia católica de uma sinergia estimulada pelo Espírito entre Deus e seu povo
na liturgia. Embora a teologia evangélica afirme a dupla dimensionalidade
presente na adoração da igreja — segundo a conveniência de sua ação divina,
Deus é ativo; e segundo maneiras próprias de sua ação humana, o clero e os
leigos são ativos —, ela atribui um papel muito diferente ao clero do que o faz a
teologia católica.
Com relação à instrumentalidade da Escritura na liturgia, a teologia evangélica
concorda com a teologia católica que a Palavra e o Espírito de Deus se acham
intimamente associados nesse aspecto. De modo concreto, isso significa que o
Espírito reveste de poder a proclamação da Palavra, ele a ilumina, de modo que
seja entendida e posta em prática e alimente a resposta de fé a ela. Além disso,
essa proclamação não está limitada a passagens específicas lidas e pregadas
durante a liturgia, porém a Escritura reforça os cânticos, as orações, as respostas
e outras ações litúrgicas. A teologia evangélica, porém, se mostra cautelosa
quando a teologia católica fala do Espírito e como ele concede compreensão
espiritual ao leitor/ouvinte da Palavra de Deus. A hesitação se deve à
possibilidade de que essa compreensão espiritual se torne um código para
interpretações equivocadas que vão além do sentido gramatical-
histórico(salvífico)-tipológico da Escritura. Outra dúvida diz respeito à ideia de
que o Espírito dá vida à Palavra de Deus, que descreve a si mesma como “viva e
eficaz” (Hb 4.12) em si mesma.
Em suma, embora haja semelhanças formais entre a teologia católica e a
teologia evangélica, na maior parte das vezes o conceito católico da economia
sacramental da igreja está muito distante do conceito evangélico de adoração. A
divergência se torna ainda mais pronunciada quando se trata dos sacramentos.

O mistério pascal nos sacramentos da igreja (seção 1,


capítulo 1, artigo 2)
Conforme dissemos acima, os sete sacramentos constituem o coração da
economia sacramental da Igreja Católica, e o Catechism apresenta uma
discussão generalizada desses sacramentos antes de passar a uma exposição mais
detalhada deles. Essa discussão geral se refere aos pontos em comum dos
28

sacramentos tanto do ponto de vista doutrinário quanto no que diz respeito à


celebração; a exposição detalhada acentua seus elementos característicos.
De acordo com a definição clássica de Agostinho, um sacramento é um sinal
tangível ou visível de uma graça invisível. O batismo, por exemplo, requer a
imersão na água ou só um pouco dela, de tal modo que a ação praticada com a
água é um sinal concreto. Ao mesmo tempo, esse não é um sinal vazio, uma vez
que o sacramento efetua de fato aquilo que simboliza: a graça batismal limpa o
pecado original (e todos os pecados de fato, no caso dos adultos) e leva à
regeneração. Para a Igreja Católica, são sete os sacramentos de Cristo: “batismo,
confirmação ou crisma, eucaristia, penitência, unção dos enfermos, ordem e
matrimônio”. Diferentemente das igrejas protestantes, segundo as quais Jesus
29

Cristo ordenou apenas duas ordenanças ou sacramentos — batismo e ceia do


Senhor —, a Igreja Católica professa que foram sete os sacramentos “instituídos
por Jesus Cristo”. Outros termos usados para descrever esses sete sacramentos
30

de Cristo são “‘poderes que emanam’ do corpo de Cristo”, “ações do Espírito


Santo” em operação na igreja e “as obras-primas de Deus”. 31

Esses sacramentos de Cristo também são sacramentos da igreja em duplo


sentido: eles são “por ela” e “para ela”. Eles são “por ela” no sentido de que a
igreja é o “sacramento da ação de Cristo que nela opera, graças à missão do
Espírito Santo”. E são “para ela”, pois são esses “sacramentos que fazem a
igreja” ao apresentar o mistério da comunhão com o Deus trino e amoroso por
meio de ações sacerdotais. Esse sacerdócio traz consigo um duplo aspecto: o
32

“sacerdócio batismal” consiste em todos os fiéis que foram batizados e


confirmados e, portanto, foram preparados como povo sacerdotal para celebrar a
liturgia. O “sacerdócio ministerial” consiste em todos os homens ordenados que
estão “a serviço do sacerdócio batismal” e que, quando ministram os
sacramentos, asseguram que “de fato, é Cristo que age nos sacramentos por meio
do Espírito Santo para a igreja”. Portanto, há um “laço sacramental” a partir de
Cristo, que prossegue com os apóstolos e continua com os que são ordenados, e
que “une a ação litúrgica” àquilo que o sacerdócio ministerial realiza para
“Cristo, fonte e fundamento dos sacramentos”. 33

Há três sacramentos especiais no que diz respeito à marca indelével que


apresentam: “Batismo, confirmação e ordem conferem, além de graça, um
caráter ou ‘selo’ sacramental por meio do qual o cristão partilha do sacerdócio
de Cristo e se torna membro da igreja segundo estados e funções diversos”. 34

Dada sua qualidade indelével, esses três sacramentos jamais podem ser
repetidos.
Os sacramentos também são sacramentos de fé. Tomando como referência a
Grande Comissão (Mt 28.19), o Catechism explica: “A missão de batizar,
portanto a missão sacramental, está implicada na missão de evangelizar; porque
o sacramento é preparado pela Palavra de Deus e pela fé, que é assentimento à
dita Palavra”. De fato, o ministério da Palavra de Deus é necessário para a
35

ministração dos sacramentos porque estes encontram sua fonte na Palavra e dela
obtêm sustento. Por conseguinte, são sacramentos de fé num duplo sentido: eles
pressupõem a fé e também “a nutrem, fortalecem e a expressam”. Além disso,
36

“a fé da igreja precede a fé do crente que é convidado a aderir a ela”, e, à


37

medida que ela celebra a liturgia, a igreja crê.


Além de serem sacramentos de Cristo, os sacramentos da igreja, e os
sacramentos da fé, os sacramentos são também sacramentos de salvação; isto é,
“celebrados dignamente na fé, os sacramentos conferem a graça que significam.
Eles são eficazes, porque neles é o próprio Cristo que opera: é ele que batiza, é
ele que age nos sacramentos para comunicar a graça que o sacramento
significa”. A expressão que se usa para essa realidade é ex opere operato : o
38

sacramento é eficaz, literalmente, “pelo próprio fato de a ação ser executada”,


quer dizer, “em virtude da obra salvífica de Cristo, realizada uma vez por
todas”. A validade e a eficácia dos sacramentos não dependem de quem os
39

ministra — isto é, do padre que batiza ou celebra a eucaristia — assim como não
depende de quem os recebe —, isto é, da criança que é batizada ou do fiel que
recebe a hóstia e toma do cálice (ou seja, a pessoa que comunga). Sua
legitimidade e seu benefício dependem unicamente do poder de Cristo e do seu
Espírito Santo que age por meio dos sacramentos “independentemente da
santidade pessoal do ministro. No entanto, os frutos dos sacramentos dependem
também das disposições de quem os recebe”. Como meio pelo qual a graça
40

sacramental é conferida por Cristo e por seu Espírito por meio da igreja, os
sacramentos são necessários para a salvação. Por fim, eles prefiguram a glória
futura, a vida eterna que ainda está por vir à igreja quando Cristo voltar.
Em suma, essa discussão geral dos sacramentos priorizou seus pontos em
comum da perspectiva da doutrina. A próxima discussão geral tratará dos pontos
em comum dos sacramentos no que diz respeito à sua celebração na igreja e pela
igreja. Antes de tratar da celebração litúrgica dos sacramentos, vale a pena fazer
uma avaliação da ideia geral da teologia católica dos sacramentos.
Avaliação evangélica
Como herdeira da Reforma protestante, a teologia evangélica discorda
amplamente da teologia católica dos sacramentos. Há quatro grandes
divergências: a terminologia usada para esses ritos, o número de sacramentos, os
sacramentos como meios de graça e a base de sua validade e eficácia.
Antes de lidar com a questão terminológica, é importante que se levem em
conta os antecedentes do termo “sacramento” e como ele veio a ser associado à
ministração desses ritos pela igreja. Conforme observamos anteriormente, o
Novo Testamento usa a palavra μυστήριον (mustērion = mistério) para se referir
a um segredo há tempos guardado e que agora foi revelado pela proclamação do
evangelho, bem como pela sã doutrina a que a igreja está obrigada. Ao longo da
história, o termo foi aplicado às celebrações do batismo e da ceia do Senhor pela
igreja primitiva no contesto das religiões de mistério, em que havia cerimônias
secretas que canalizavam bens espirituais e poder para seus participantes. O
entendimento que a igreja tem de “mistério” no contexto das religiões de
mistério produziu o seguinte resultado: o batismo e a ceia do Senhor revelam um
mistério da graça divina, conferindo bens espirituais e poder a quem os recebe.
Além disso, à medida que o grego, língua universal, cedia lugar à nova língua
internacional, o latim, o grego μυστήριον (mustērion) recebeu em latim a
tradução de sacramentum. Essa palavra podia se referir a um objeto ou rito
sagrado ou a um juramento de lealdade. O uso que a teologia católica fazia de
sacramentum dependia em grande medida de Agostinho, que definiu
“sacramento” como “sinal externo e visível de uma graça interna e invisível”;
além disso, trata-se de um sinal sagrado divinamente escolhido para indicar uma
realidade divina, o que inclui essa realidade em si mesma. Portanto, o batismo e
a ceia do Senhor, na condição de ritos sagrados, eram considerados sinais e
meios da graça divina.
Quando a Reforma protestante rompeu com a Igreja Católica, ela pôs em
movimento efeitos que se propagaram e que, por fim, resultaram em mudanças
em praticamente tudo o que estava associado à teologia e à prática católicas. Um
desses desafios foi a terminologia mais adequada aos ritos da liturgia. Ainda que
um largo segmento da teologia protestante continuasse a usar o termo
“sacramento” (embora com um entendimento diferente do seu significado), outro
grande segmento descartou o termo em virtude de sua vinculação com o
catolicismo e optou pelo termo “ordenança”. Esse termo foi escolhido porque
aponta para ritos que foram instituídos, ou ordenados, por Cristo e, por
conseguinte, impostos à observância da igreja.41

Essa questão dos ritos ordenados por Cristo introduz o assunto seguinte
referente ao número apropriado dos sacramentos. Enquanto a teologia católica
reconhece sete sacramentos — batismo, confirmação, eucaristia, penitência e
reconciliação, unção dos enfermos, ordem e matrimônio —, a teologia
evangélica reconhece apenas dois: batismo e ceia do Senhor. A razão para essa
redução no número de sacramentos de sete para dois se deve ao fato de que
somente o batismo e a ceia do Senhor foram ordenados por Cristo e vêm
acompanhados de sinais tangíveis. Como parte de sua Grande Comissão, Jesus
ordenou à igreja “[fazer] discípulos de todas as nações, batizando-os em nome
do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28.19). O batismo foi ordenado por
Cristo, e o sinal que o acompanha é a água; portanto, trata-se de um rito a ser
observado pela igreja. Além disso, na ceia do Senhor, a última que fez com seus
discípulos, Jesus instituiu sua observância: “Enquanto comiam, Jesus tomou o
pão e, abençoando-o, partiu-o e o deu aos discípulos, dizendo: Tomai e comei;
isto é o meu corpo. E, tomando um cálice, rendeu graças e o deu a eles, dizendo:
Bebei dele todos; pois isto é o meu sangue, o sangue da aliança derramado em
favor de muitos para perdão dos pecados. Mas digo-vos que desde agora não
mais beberei deste fruto da videira até aquele dia em que beberei o vinho novo
convosco, no reino de meu Pai” (Mt 26.26-29). A ceia do Senhor foi ordenada
por Cristo, e os sinais que a acompanham são o pão e o cálice com fruto da vinha
(vinho ou suco de uva); portanto, é um rito a ser observado pela igreja.
Os outros cinco sacramentos católicos foram descartados um a um pelos
reformadores pelos seguintes motivos: a confirmação não aparece na Escritura e
não tem nenhum sinal tangível associado a ela. O sacramento da penitência e
reconciliação baseia-se em um equívoco da ordem de Jesus: “Arrependei-vos,
porque o reino de Deus está próximo” (Mt 4.17). Jesus não instituiu uma ação
sacramental que envolvesse a contrição, a confissão de pecados a um sacerdote,
a absolvição e o cumprimento de uma penitência que satisfizesse o malfeito.
Pelo contrário, ele fez um apelo de mudança de mente e de vida, de rompimento
com o pecado e com o eu, acompanhado da decisão de buscar a Deus. A unção
dos enfermos tem respaldo em Tiago 5.13-17 e é acompanhada de óleo, mas
Jesus não ordenou essa prática. A ordem, o rito pelo qual homens são
consagrados ao sacerdócio, não tem fundamento bíblico. O matrimônio, embora
tenha sido ordenado pela Escritura (Gn 1.28; 2.24) e endossado por Jesus (Mt
19.1-9), é uma ordenação da Criação, estabelecida por Deus no início da criação
da raça humana (Gn 1.28). Não se trata de rito tipicamente cristão, e Jesus
mesmo não o instituiu. Consequentemente, como esses cinco sacramentos
católicos não foram ordenados por Cristo e/ou lhes faltam os sinais que os
acompanham para sua observação, a teologia evangélica não os considera ritos
impostos à observância da igreja.
Os dois itens seguintes — sacramentos como meios de graça e as bases de sua
validade e eficácia — caminham juntos e serão discutidos juntamente. A
Reforma protestante rompeu não só com o número dos sacramentos católicos,
mas também com a teologia sacramental católica. A teologia católica afirma que
os sacramentos são meios de graça que, de fato, comunicam benefícios divinos
dos quais são sinais. Além disso, a graça comunicada mediante os sacramentos é
infundida nos que os recebem, transformando assim sua natureza e tornando-os
merecedores da vida eterna. Embora um grande segmento da teologia protestante
continuasse a acolher os sacramentos como meios de graça, outro grande
segmento optou por um entendimento que se distancia drasticamente de qualquer
ideia de meios de graça. A teologia evangélica, portanto, compreende essas duas
posições.
Em relação à primeira delas, Charles Hodge resumiu a teologia reformada dos
sacramentos dizendo se tratar de “meios reais de graça, isto é, meios indicados e
empregados por Cristo para comunicar os benefícios da sua redenção a seu
povo”. Diferentemente da teologia sacramental, essa perspectiva reformada os
considera meios, porém não exclusivos, de graça. E não os considera meios de
infusão da graça da salvação. Pelo contrário, quando os sacramentos são
ministrados, “faz-se uma promessa aos que, com razão, recebem os sacramentos
que eles, por meio dos sacramentos, e neles, se tornam participantes das bênçãos
das quais os sacramentos são sinais e selos por Deus indicados”. Em relação às
42

crianças que são batizadas, para a teologia reformada seu batismo é sinal de sua
inclusão na comunidade da nova aliança, a igreja, e de promessa de
arrependimento e fé no futuro. No caso da ceia do Senhor, a teologia reformada
vê nos elementos do pão e do vinho sinais do favor divino por meio da
participação no corpo e no sangue de Cristo (que está espiritualmente presente
na celebração da ceia) e também meios de sustento espiritual que mantêm e
aumentam a fé. Portanto, a água do batismo e o pão e o vinho da ceia do Senhor
são sinais, mas não são sinais vazios, uma vez que são meios de graça que
conferem a bênção e a misericórdia divinas aos que deles participam.
Essa teologia reformada dos sacramentos pode parecer semelhante à teologia
sacramental católica, mas não é. A grande distância entre as duas se explica pela
validade ou eficácia dos sacramentos. Para a teologia católica, os sacramentos
são meios de graça ex opere operato (lit., “pela obra operada”), ou simplesmente
por sua ministração. Sua validade está inteiramente associada ao seu sinal, que é
virtuoso ou poderoso em si mesmo e por si mesmo. Por exemplo, quando um
padre batiza uma criança de acordo com o rito católico do sacramento do
batismo, sua ação de ministrar a água da maneira cristã adequada cancela o
pecado original e a faz nascer de novo e ser incluída na Igreja Católica. A
eficácia do sacramento não depende de modo algum da situação do padre que
ministra o batismo (i. e., ele poderá ser um santo ou alguém em estado de pecado
mortal), e certamente não tem ligação alguma com a fé da criança ou com sua
disposição para o batismo. A teologia reformada dos sacramentos faz objeção à
sua validade ex opere operato. Diferentemente disso, ela sustenta que sua
eficácia depende unicamente de Deus que promete abençoar, da obra do Espírito
nos que recebem os sacramentos e da Palavra de Deus sobre a qual a instituição
dos sacramentos se baseia. Portanto, “há em todo sacramento uma relação
espiritual, ou união sacramental, entre o sinal e a coisa significada; de tal modo
que os nomes e efeitos de um são atribuídos a outro”. Nada disso nos permite
43

entender que os sacramentos sejam salvíficos. Esse não é o propósito nem o


efeito do batismo ou da ceia do Senhor. Embora não seja eficaz para a salvação,
eles outorgam a bênção e a misericórdia de Deus em quem os recebe.
A segunda posição evangélica enfatiza que esses ritos funcionam
especialmente como lembretes concretos do que Deus, em Cristo, fez para os
cristãos, além de servir de testemunho de fé e de obediência por parte do cristão
que deles participa. Essa posição está bem representada pelo artigo sobre as
ordenanças na Fé e Mensagem Batista da Convenção Batista do Sul:
O batismo cristão é a imersão de um crente em água em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. É
um ato de obediência que simboliza a fé do crente no Salvador crucificado, sepultado e ressurreto, a
morte do crente para o pecado, o sepultamento da velha vida e a ressurreição para que se ande em
novidade de vida em Cristo Jesus. É um testemunho da sua fé na ressurreição final dos mortos. Sendo
uma ordenança da igreja, é um pré-requisito dos privilégios de ser membro da igreja e de participar
da ceia do Senhor.
A ceia do Senhor é um ato simbólico de obediência pel] S
natureza a vocação para o casamento. Consequentemente, trata-se de uma
instituição universal com certas características comuns e permanentes e pensada
para que proporcionasse bem-estar aos indivíduos e a multiplicação da sociedade
humana. Além disso, a criação à imagem de Deus — a imagem de Deus que ama
— significa que o ser humano é chamado a amar como reflexo do amor divino.
Esse reflexo se dá de maneira especial por meio do amor conjugal, que é
também frutífero no tocante à procriação e “se dá na obra comum de zelar pela
criação” (Gn 1.28). De fato, “a Santa Escritura afirma que o homem e a mulher
66

foram criados um para o outro. ‘Não é bom que o homem esteja só’ [Gn 2.18]”. 67

A mulher, que foi tirada do corpo do homem — “‘carne da sua carne’ [Gn 1.23],
isto é, sua congênere, sua igual, a que dele está mais próxima entre todas as
coisas” — “lhe é dada por Deus como ‘auxiliadora’; ela, portanto, representa
Deus, de onde vem nosso auxílio”. Os dois se tornam uma só carne (Gn 2.24),
68

formando “uma união inquebrantável de duas vidas”, conforme Cristo mesmo


enfatizou (Mt 19.6).
69

Tragicamente, essa imagem e plano divinos do casamento humano foram


arruinados pelo governo do pecado, de tal modo que este é caracterizado
universalmente por discórdia, dominação, infidelidade, ciúme, conflitos, ódio,
separação, luxúria etc. Essa desordem não é natural no casamento — não é coisa
própria e original da natureza humana, tampouco das relações entre o homem e a
mulher; é coisa própria do pecado. De fato, o pecado original de Adão e Eva
“teve como primeira consequência a ruptura da comunhão original entre o
homem e a mulher” [Gn 3.12]. A procriação agora se dá em meio a dores, e a
70

vocação implica o trabalho fatigante (Gn 3.16-19). “Não obstante, a ordem da


criação persiste, ainda que gravemente arruinada” pelo pecado, e para curar
71

suas feridas é preciso a intervenção da graça de Deus, que é propiciada pelo


sacramento do matrimônio. Além disso, depois da queda no pecado, “o
casamento ajuda a vencer a autoabsorção, o egoísmo, a busca do próprio prazer e
permite que o ser humano se abra ao outro, ao auxílio mútuo e ao sacrifício
pessoal”.
72

O Antigo Testamento tentou desenvolver e regular a instituição do casamento.


O uso que ele faz da “imagem do amor conjugal exclusivo e fiel” para retratar a
relação de aliança de Deus com Israel preparou o caminho para a nova aliança,
em que o Filho de Deus aparece “unindo a si mesmo, de certo modo, a
humanidade toda salva por ele, preparando desse modo para as ‘bodas do
Cordeiro’ [Ap 19.7,9]”. No primeiro sinal miraculoso que operou (“a pedido de
73

sua mãe” ), Jesus transformou água em vinho nas bodas de Caná (Jo 2.1-11). A
74

igreja vê nesse evento “a confirmação da bondade do matrimônio e o anúncio de


que, doravante, o matrimônio seria um sinal eficaz da presença de Cristo”. 75
Jesus também “ensinou de forma inequívoca o significado original” do
casamento — ele é indissolúvel — conforme a vontade de Deus desde o início;
concretamente, a concessão feita por Moisés ao divórcio não era intenção do
Criador para o casamento e se deve à dureza do homem (Mt 19.8). Portanto,
76

Jesus veio “restaurar a ordem original arruinada pelo pecado”, dando “força e
graça para a vida conjugal na nova dimensão do reino de Deus [...]. Essa graça
do matrimônio cristão é fruto da cruz de Cristo, fonte de toda a vida cristã”, 77

conforme disse o apóstolo Paulo (Ef 5.25,26,31,32). Caracterizada em toda a sua


inteireza pelo amor esponsal entre Cristo e sua igreja, a vida cristã começa com
um “mistério nupcial”, o batismo, ou com “o banho de núpcias que precede o
banquete das bodas, a eucaristia”. De igual modo, como o matrimônio cristão
78

simboliza e comunica a graça, torna-se um novo sacramento de aliança.


Ao mesmo tempo que enaltece o casamento, a igreja também enaltece a
virgindade. Essa renúncia ao bom casamento significa dedicação total a Cristo e
ao seu chamado (Ap 14.4; 1Co 7.32; Mt 25.6). Além disso, seu convite para que
nos tornemos “eunucos por causa do reino do céu” (Mt 19.12) constitui um estilo
de vida do qual ele foi modelo. Esse celibato é o “desenvolvimento da graça
batismal, um sinal poderoso da preeminência da união com Cristo e da espera
fervorosa do seu regresso, um sinal que lembra também que o matrimônio é uma
realidade do tempo presente, que é passageiro”. Assim como o sentido e a graça
79

são conferidos por Cristo por meio do sacramento do matrimônio, assim também
são concedidos em virgindade. Portanto, a igreja associa e aprecia enormemente
o casamento e a virgindade.
A celebração do sacramento do matrimônio ocorre durante a missa — evento
apropriado em razão de sua celebração da nova aliança, “em que Cristo se uniu
para sempre à igreja, sua noiva amada, por quem se deu a si mesmo. Por isso, é
conveniente que os esposos selem o seu consentimento à doação recíproca pela
oferenda da própria vida, unindo-a à oblação de Cristo pela sua igreja, tornada
presente no sacrifício eucarístico, e recebendo a eucaristia, para que,
comungando o mesmo corpo e o mesmo sangue de Cristo, ‘formem um só
corpo’ em Cristo”. O sacramento da penitência é uma preparação para o
80

sacramento do matrimônio para que seja recebido de forma conveniente. “Ao 81

expressar perante a igreja o seu consentimento, os esposos, como ministros da


graça de Cristo, mutuamente se conferem o sacramento do matrimônio.”
Estão aptos a receber esse sacramento o homem e a mulher batizados “livres
para contrair matrimônio”; isto é, não estão “sob pressão”; ninguém, nem
mesmo o homem ou a mulher, está coagindo ou está sendo ameaçado
externamente para se casar; também não estão “impedidos por nenhuma lei
natural ou eclesial”, isto é, não são parentes de sangue (e.g., irmãos biológicos),
tampouco estão casados atualmente. Como o mútuo consentimento é o
82

“elemento indispensável que ‘configura o casamento’”, se estiver ausente, “não


haverá casamento”. Tal consentimento é manifesto por meio de votos — “Eu te
83

recebo como esposa/marido” — e consumado pela relação sexual. Se


posteriormente à cerimônia ficar estabelecido que não houve consentimento de
uma das partes, o casamento poderá ser anulado — isto é, ficará registrado que
jamais existiu. Antes de entrar no estado de casamento por meio do seu
sacramento, as duas partes deverão fazer uma preparação.
Em seguida, o Catechism lidará com duas categorias especiais de casamento:
os casamentos mistos e os casamentos com disparidade de culto. No primeiro
84

caso, o casamento a ser selado por meio de aliança se dará entre um católico e
um não católico batizado (e.g., um cristão protestante). Essa situação “não
constitui obstáculo intransponível para o casamento”, mas certamente comporta
sérios desafios. Os casamentos mistos requerem a “permissão expressa da
autoridade eclesial”. No segundo caso, o casamento a ser selado por meio de
aliança se dará entre um católico e uma pessoa não batizada (e.g., um hindu).
Essa situação exige uma apreciação ainda mais cuidadosa, uma vez que as
dificuldades assinaladas acima ganham facilmente um peso maior aqui. Os
casamentos com disparidade de culto requerem “dispensação expressa de
impedimento” pela autoridade eclesial. Além disso, ambos os cônjuges devem
estar abertos aos “fins e propriedades essenciais do casamento”, e o cônjuge
católico é obrigado a assegurar que os filhos do casamento serão batizados na
Igreja Católica e educados na fé católica. 85

Os efeitos do sacramento do matrimônio são a criação de um elo permanente e


exclusivo entre os cônjuges e a comunicação de uma graça especial a eles. Em
relação ao primeiro efeito, o próprio Deus sela a aliança, tornando-a indissolúvel
e garantida por sua fidelidade. Quanto ao segundo efeito, a graça desse
sacramento tem Cristo como sua fonte e “tem como objetivo aperfeiçoar o amor
do casal e fortalecer sua unidade indissolúvel”. 86

Além disso, esse amor conjugal tem algumas exigências. Primeiro, “exige
indissolubilidade e fidelidade em entrega mútua definitiva”. É evidente que
87

essa obrigação exclui a poligamia e recebe apoio da “fidelidade de Deus à sua


aliança” e do evangelho do amor de Deus como “amor definitivo e
88

irrevogável”. Sob uma perspectiva prática, essa primeira exigência impede o


89

divórcio; entretanto, em situações difíceis, permite a separação do casal.


Contudo, a melhor solução é a reconciliação. A igreja denuncia os católicos que
se divorciam e se casam novamente em união civil porque esse ato cria a
situação de adultério e contraria as instruções de Jesus (Mc 10.11,12). Enquanto
persistir essa situação, estarão barrados do sacramento da eucaristia e proibidos
de exercer certas responsabilidades eclesiásticas. Somente pelo sacramento da
penitência — incluindo-se aí o arrependimento pela quebra da aliança conjugal e
a promessa de viver em completa abstinência — que será possível a
reconciliação.
A segunda exigência do amor conjugal é a abertura à fertilidade. Esse dever
se baseia em uma lei natural: “Pela sua própria natureza, a instituição
matrimonial e o amor conjugal estão ordenados à procriação e à educação dos
filhos, que constituem o ponto alto da sua missão e a sua coroa”. Fertilidade,
90

portanto, consiste tanto na procriação física — concepção, desenvolvimento in


utero, nascimento e desenvolvimento físico — bem como a educação moral,
espiritual e social dessas crianças. No caso de casais inférteis, o amor conjugal
ainda pode ser pleno de significado e “irradiar uma fertilidade de caridade, de
hospitalidade e de sacrifício”. Ao afirmar que “não pode haver conflito algum
91

entre as leis divinas que governam a transmissão da vida e a promoção do


verdadeiro amor”, a igreja insiste na proteção da vida “com o máximo cuidado
desde o momento da concepção: o aborto e o infanticídio são crimes
abomináveis”. Além disso, a igreja estabeleceu certos critérios objetivos no
92

tocante ao planejamento familiar permitindo o planejamento da família por meio


do método natural — a prática séria da “abstinência conjugal” — e proibindo o
uso de contraceptivos — “métodos não aprovados pela autoridade de ensino da
igreja em sua interpretação da lei divina”. 93

O Catechism conclui a discussão do sacramento do matrimônio com uma


breve exposição da “igreja doméstica” (ecclesia domestica), que se refere, em
geral, à igreja como “família de Deus” e, mais especificamente, ao âmago da
igreja como formada por crentes e todo o seu lar (At 18.8; 16.31; cf. 11.14). Por
meio de palavras e exemplos, os pais são “os primeiros arautos da fé no que diz
respeito a seus filhos” e têm a responsabilidade de promover seu
desenvolvimento de acordo com “a vocação própria a cada filho”, inclusive
“qualquer vocação religiosa”. Todos os membros da igreja doméstica
94

“exercitam o sacerdócio do batizado de maneira privilegiada ‘pelo recebimento


dos sacramentos, da oração e da ação de graças, testemunho de uma vida santa,
de autossacrifício e de caridade ativa’”. Por fim, o Catechism reconhece a
95

existência de muitas pessoas solteiras na igreja e diz que “elas estão


especialmente próximas do coração de Jesus e, portanto, merecem afeição
especial e solicitude ativa da igreja, sobretudo dos pastores”. Elas são
encorajadas a encontrar um lar na igreja doméstica e adquirir sua família humana
“na grande família que é a igreja”. 96

Avaliação evangélica
A teologia evangélica aplaude muitas áreas da doutrina do matrimônio da
teologia católica, sobretudo sua defesa dessa instituição e seu apoio irrestrito em
favor de uma cultura de vida contra uma cultura intrusa de morte — tipificada
pelo aborto, infanticídio, suicídio assistido, geronticídio etc. — especialmente no
mundo ocidental. São as seguintes as áreas de concordância: o casamento é uma
aliança que requer duas pessoas, um homem e uma mulher, que fazem votos
diante de Deus e de outras pessoas em busca de um compromisso exclusivo; por
desígnio divino, esse estado conjugal tem significado, propósito, origem e leis
que o governam. Dois desses requisitos são a indissolubilidade e a fidelidade,
excluindo desse modo a imoralidade, a poligamia e o divórcio. Embora a
separação, em face de circunstâncias difíceis, possa ser permitida, ela é sempre
posta em prática tendo por objetivo a reconciliação. As vantagens do casamento
são inúmeras, sendo a principal delas o bem do marido e da mulher, que não
foram feitos para ficarem sós, além da procriação e da educação — seja ela de
ordem espiritual, moral, social, civil ou vocacional — dos filhos assim gerados.
Entre os benefícios pessoais contam-se o auxílio para superar atitudes
pecaminosas e práticas como a do egoísmo e preocupação exclusiva com si
mesmo; isto é, o casamento é um meio de santificação para o marido e para a
esposa. Embora o Catechism não mencione explicitamente outros benefícios
(que são especialmente o bom fruto da relação sexual expressa no casamento), a
teologia evangélica acrescentaria a unidade do casal (ele se torna “uma carne”
mediante a relação sexual; Gn 2.24), consolo em meio à tragédia (e.g., 2Sm
12.24) e proteção contra a imoralidade sexual (1Co 7.5).
Há ainda outros pontos de concordância na excelente discussão do respaldo
bíblico ao casamento, a começar pela referência aos capítulos iniciais do
Gênesis. Depois de uma deliberação divina (“façamos o homem à nossa
imagem”; Gn 1.26), “Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus os
criou; homem e mulher os criou” (v. 27). A duplicidade de gênero na sociedade
humana reflete a pluralidade de pessoas na sociedade divina da Trindade. Além
disso, assim como o Pai, o Filho e o Espírito Santo se amam uns aos outros,
homens e mulheres refletem essa realidade em seu amor mútuo com a mais
elevada, embora não exclusiva, expressão desse amor conjugal. A vontade divina
de que o ser humano não fosse assexuado permite ao homem e à mulher
igualmente realizar o assim chamado “mandato cultural” (v. 28), que consiste na
procriação (“frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra”) e vocação, ou
construção da civilização (“sujeitai-a; dominai”). A teologia católica sublinha
corretamente que o chamado ao casamento está gravado na natureza mesma dos
portadores da imagem de Deus, razão pela qual a imensa maioria das pessoas se
casa e muitas delas têm filhos.
Outra área de concordância diz respeito à ruptura do casamento como
consequência trágica do pecado. Essa desordem não é natural, não pela vontade
de Deus; ela é anormal, é resultado do pecado. A desobediência de Adão e Eva
resultou em sofrimento no momento do parto e em trabalho árduo. Muitos
proponentes da teologia evangélica acrescentariam que uma disrupção da relação
hierárquica divinamente planejada — em que o marido exerce autoridade gentil
e confirmadora e em que a esposa se submete alegremente e de livre vontade —
foi outro resultado desastroso de sua queda no pecado. Em alguns casos, o
impacto devastador dessa queda levou ao desastre conjugal. Quando, por
exemplo, ocorre o divórcio por motivos não bíblicos e há um novo casamento,
cria-se uma situação de adultério (Mc 10.11,12); a Igreja Católica,
consequentemente, barra os envolvidos do sacramento da eucaristia e os tira de
alguns ministérios eclesiais. Alguns proponentes da teologia evangélica
concordam com a aplicação da disciplina da igreja em casos de pecado desse
tipo. Como o pecado é insidioso, um marido cristão e uma esposa cristã
precisarão da graça de Deus para vencer seus pecados pessoais, o rompimento da
sua relação, os passos errados que deram na criação dos filhos e muito mais. De
fato, como o casamento em si mesmo tem tantas dificuldades internas, a teologia
católica e a teologia evangélica concordam que o ideal é que a união a ser
estabelecida o seja por dois cristãos (embora cada uma dessas teologias defina
essa realidade de forma diferente, conforme veremos).
Há aqui e ali nesse acordo generalizado pontos específicos de discordância.
Em primeiro lugar, o matrimônio não é sacramento para a teologia evangélica. A
razão principal para essa rejeição é que o casamento é um mandado da criação;
isto é, Deus ordenou o casamento àqueles que têm sua imagem desde o primeiro
momento da criação do ser humano (Gn 1.26-28; 2.18-25). Embora Jesus Cristo
tenha certamente ratificado o casamento e elucidado as bases para sua dissolução
pelo divórcio (Mt 19.3-9), tenha abençoado um casamento em especial com seu
primeiro milagre (Jo 2.1-11) e fortaleça o casamento por meio de sua obra
salvadora na vida de mulheres e homens cristãos, tais ações de Jesus não deram
origem a essa relação entre marido e mulher. O casamento não é exclusivamente
cristão; é, antes, uma instituição humana universal.
No que se refere à defesa do casamento apresentada pela teologia católica,
alguns adeptos da teologia evangélica propõem dois esclarecimentos. Primeiro,
quando se apela à avaliação divina da condição de Adão — “Não é bom que o
homem esteja só” (Gn 2.18) —, é preciso deixar claro que esse pronunciamento
se aplica a pessoas que Deus planejou que se casassem, e não aos solteiros.
Neste último caso, Deus os abençoou em seu estado de solteiros, de gente só que
vive sem um cônjuge. Portanto, esse estado de solteiro para essas pessoas é bom.
Segundo, a implicação que a teologia católica estabelece da formação de Eva, a
“auxiliadora” de Adão — “portanto ela representa Deus, a quem recorremos em
busca de ajuda” —, precisa de ressalvas. Sem dúvida, o termo hebraico ‘ezer é
usado para descrever Deus como auxiliador, mas serve também para descrever a
ação humana, a assistência dos anjos, suporte militar e até a intervenção de
falsos deuses. Consequentemente, é preciso cuidado na hora de transferir as
conotações do divino para usos particulares da palavra. De fato, como foi Deus
quem formou Adão do pó da terra, e como foi Deus que formou Eva do corpo de
Adão, é difícil ver como ela pode representar Deus nesse contexto. Na verdade, é
o contexto que nos dá uma explicação mais plausível de seu papel de auxiliadora
(Gn 1.28): Eva ajudaria Adão à medida que os dois juntos desempenhassem o
mandato cultural planejado por Deus de serem férteis (procriação) e exercerem
domínio (vocação).
A teologia evangélica também vê com suspeita o apelo de sua congênere
católica ao Filho de Deus encarnado unindo “a si mesmo, de certa forma, toda a
humanidade salva por ele, preparando desse modo a ‘festa das bodas do
Cordeiro’ [Ap 19.7,9]”. Seria essa uma nova forma de inclusivismo —
97

tomando-se a expressão em itálico com o sentido de que as pessoas se salvam


por meio do Filho encarnado mesmo que não tenham ouvido o evangelho — ou
deveria ser ela entendida de forma exclusivista com o sentido de que somente
quem é salvo pelo Filho encarnado está unido a ele e desfrutará das bodas
celestiais? Outra dúvida que se levanta em decorrência da implicação que a
teologia católica estabelece do fato de Jesus ter feito seu primeiro milagre nas
bodas de Caná: “Desse modo o casamento será um sinal eficaz da presença de
Cristo”. Essa aproximação alegórica parece negligenciar o ponto óbvio
98

apresentado pela narrativa, isto é, a presença de Cristo no casamento: “Esse


sinal, em Caná da Galileia, foi o primeiro que Jesus fez. Ele manifestou a sua
glória, e os seus discípulos creram nele” (Jo 2.11). Este ponto combina bem com
o propósito geral do evangelho: “Jesus, na verdade, realizou na presença de seus
discípulos ainda muitos outros sinais que não estão registrados neste livro. Estes,
porém, foram registrados para que possais crer que Jesus é o Cristo, o Filho de
Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome” (Jo 20.30,31). De todos os
milagres que o apóstolo poderia ter incluído nesse relato de Jesus, João escolheu
sete — o primeiro dos quais é a transformação da água em vinho em um
casamento — para o propósito explícito de suscitar a fé que conduz à vida
eterna. Suscitar a fé salvadora é o propósito de João ao narrar a presença de
Jesus e a realização de um milagre no casamento. Não era sua intenção fazer do
matrimônio um sacramento da presença e da graça de Cristo.
Outra discordância vem da cláusula da teologia católica que permite a
anulação do casamento e a rejeição do divórcio por qualquer motivo. Antes de
discutirmos esses tópicos contenciosos, é bom lembrar alguns pontos de
concordância. A teologia evangélica concorda com sua congênere católica que
esse rito é administrado mais propriamente a dois cristãos que concordam em se
casar (ninguém os obriga a fazê-lo) e o fazem legalmente. O consentimento é
expresso por meio de votos, e a aliança é consumada pela relação sexual. O
anúncio do oficial da igreja que preside a cerimônia — um ato de fala
declarativo comumente expresso pela frase “Eu vos declaro marido e mulher” —
concretiza a situação em curso; os dois estão casados, e a consumação é uma
conclusão compulsória. Para a teologia evangélica, nenhuma anulação
99

subsequente pode declarar desfeito o que já foi feito e como tal assim declarado.
A explicação da teologia católica — anulação não significa que o casamento
jamais ocorreu, e sim que o sacramento do matrimônio jamais se realizou —
significa que a anulação cabe à Igreja Católica, e que o sacramento do
matrimônio só pode ser realizado por seu clero. O interesse pelas anulações se dá
principalmente em decorrência dos casamentos católicos que acabam em
divórcio. Como a igreja não permite o divórcio, os católicos divorciados que
queiram se casar na igreja devem primeiramente conseguir a anulação do
casamento; caso contrário, não terão permissão para se casar. Muitos adeptos da
teologia evangélica discordam da proibição de novo casamento para divorciados
defendida pela teologia católica. O Novo Testamento apresenta dois motivos
para o divórcio: Jesus o permite em caso de adultério (Mt 19.9), e Paulo o
permite quando, num casamento misto, o cônjuge descrente procura o divórcio
(1Co 7.12-16). Consequentemente, a teologia evangélica e a teologia católica
discordam no tocante à anulação do casamento e ao divórcio.
A afirmação acima de que a teologia católica e a teologia evangélica
concordam que o casamento deve ser entre dois cristãos requer um pouco mais
de esclarecimento, uma vez que a afirmação geral mascara áreas específicas de
discordância. A teologia evangélica, de modo geral, insiste no casamento entre
dois cristãos definidos como um homem e uma mulher que acolheram o
evangelho, se arrependeram de seus pecados e confiaram em Cristo para
salvação. Uma vez que o evangelicalismo compreende um vasto espectro de
cristãos, um evangélico presbiteriano e um evangélico batista, ou um evangélico
episcopal e um evangélico metodista poderiam prontamente se casar. Embora
reconheçam que pode haver algumas dificuldades adiante em razão de diferenças
denominacionais, esses evangélicos de espectros variados poderiam se casar. A
teologia católica diz que o ideal é que dois católicos se casem entre si, mas ela
também dá espaço para duas outras categorias de casamento. Primeiro, os
casamentos mistos são aqueles que compreendem um católico e um não católico
batizado (e.g., um cristão protestante); segundo, os casamentos com disparidade
de culto são os que envolvem um católico e uma pessoa não batizada (e.g., um
hindu). Essas duas categorias requerem alguma ação eclesial especial para que
seu casamento seja permitido, e o cônjuge católico tem obrigações no que diz
respeito ao batismo e à educação dos filhos na fé católica. Nos casamentos
mistos, em que tanto o católico quanto o não católico são cristãos genuínos no
sentido definido acima, os proponentes da teologia evangélica discordariam da
conveniência do casamento: alguns não o permitiriam por duvidarem de que a fé
da parte católica seja genuína; outros não o permitiriam porque as dificuldades
seriam intransponíveis, especialmente as obrigações do cônjuge católico no
tocante aos filhos; outros permitiriam, mas advertiriam fortemente sobre os
desafios que inevitavelmente haveriam de surgir. No caso de um casamento com
disparidade de culto, como tal casamento supõe um cristão e um não cristão, e a
Escritura claramente requer o casamento entre dois cristãos (1Co 7.39), os
defensores da teologia evangélica, de modo geral, não o permitiriam.
A concordância em relação a alguns requisitos para o casamento —
especificamente sua indissolubilidade e fidelidade — já foi tratada aqui. Outro
requisito da teologia católica, como a abertura à fertilidade, é um ponto de
discordância. Essa diferença tem uma aplicação prática no que se refere à
proibição por parte da teologia católica do uso de contraceptivos e a permissão
de uso deles pela teologia evangélica (contanto que o método contraceptivo não
induza o aborto). No âmago dessa diferença se encontra a doutrina evangélica da
autoridade e suficiência da Escritura, e o uso pela teologia católica da lei natural,
bem como os ensinos oficiais da igreja que proporcionam uma maior orientação
sobre o assunto e adesão mais significativa a ele. Para a teologia evangélica, a
instrução suficiente e plena de autoridade sobre a procriação é expressa pelo
mandado “frutificai-vos e multiplicai-vos e enchei a terra” (Gn 1.28). Essa
ordem não diz quantos filhos o casal deve ter, tampouco diz que ele deve estar
aberto a procriar em todas as relações sexuais que tiver. Além disso, a Escritura
não proíbe o uso de meios contraceptivos (não abortivos). A teologia evangélica,
embora não rejeite de imediato a lei natural, faz uso cauteloso dela e questiona
se um de seus princípios seria a abertura à fertilidade. É importante frisar
também que a teologia evangélica rejeita quaisquer princípios fora da Escritura
como suposta fonte de autoridade e adesão. Isso inclui a instrução moral
adicional proporcionada pela Igreja Católica. 100

Em suma, a teologia evangélica acolhe de bom grado muita coisa que a


teologia católica diz a respeito do casamento — a interpretação que faz dele, o
apoio que lhe concede, a defesa de sua santidade, ainda que discorde de alguns
aspectos do sacramento do matrimônio.
Conclusão
A segunda parte do Catechism, “A celebração do mistério cristão”, chega ao fim
depois de tratar da economia sacramental da Igreja Católica juntamente com
seus sete sacramentos. Ao trabalhar seção por seção desta segunda parte, e tendo
ciência dos dois axiomas do sistema católico, apresentamos aqui uma avaliação
evangélica dessa teologia e prática sacramental à luz da Escritura e da teologia
evangélica, o que resultou em áreas de intriga e de crítica. A terceira parte, “A
vida em Cristo”, com sua preocupação com a vocação humana e com a
comunidade humana será nosso próximo tópico de discussão.
1
Edição em português: Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Loyola, 1999).
2
“Comunhão” no sentido de que quem comunga desse sacramento recebe graça para servir em um
relacionamento com os outros.
3
CCC 1534.
4
CCC 1535; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 11.2.
5
CCC 1538 (grifo removido).
6
Ibidem.
7
CCC 1544; citações bíblicas de Hebreus 5.10; 6.20; 7.26; 10.14; Gênesis 14.18.
8
CCC 1545; citação de Thomas Aquinas [Tomás de Aquino], Commentary on the Epistle to the
Hebrews 8:4.
9
CCC 1547.
10
CCC 1548; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 10; 28; cf. Sacrosanctum concilium 33;
Presbyterorum ordinis 2; 6.
11
Papa Pio XII, encíclica, Mediator Dei (20 de novembro de 1947), 69, disponível em:
http://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_20111947_mediator-
dei_en.html.
12
CCC 1550.
13
Ibidem.
14
CCC 1552. Cf. Concílio Vaticano II, Sacrosanctum concilium 33; Lumen gentium 10.
15
CCC 1557; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 21.2.
16
CCC 1558; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 21.
17
CCC 1559.
18
CCC 1560 (grifo removido).
19
CCC 1562 (grifo removido); citação do Concílio Vaticano II, Presbyterorum ordinis 2.2.
20
CCC 1563; citação do Concílio Vaticano II, Presbyterorum ordinis 2.
21
CCC 1565.
22
CCC 1566; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 28; cf. 1Co 11.26.
23
CCC 1567; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 28.2.
24
CCC 1569; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 29.
25
CCC 1570; alusão bíblica às palavras de Jesus em Marcos 10.45; Lucas 22.27.
26
CCC 1571.
27
CCC 1574.
28
Ibidem.
29
CCC 1576; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 20.
30
CCC 1577. Base bíblica: Marcos 3.14,15; Lucas 6.12-16; 1Timóteo 3.1-13; 2Timóteo 1.6; Tito 1.5-9.
A confirmação pós-neotestamentária é de Clement of Rome [Clemente de Roma], Letter to the Corinthians
42, 44 (ANF 1:16-17).
31
CCC 1577. Cf. papa João Paulo II, Mulieris dignitatem (15 de agosto de 1988), 26–7, disponível em:
http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/apost_letters/documents/hf_jp-ii_apl_15081988_mulieris-
dignitatem_en.html.
32
CCC 1579.
33
Ibidem.
34
CCC 1584.
35
CCC 1585-1586.
36
CCC 1538.
37
Paulo (At 26.12-18); Barnabé (At 14.14; 1Co 9.6; Gl 2.9); Tiago (Gl 1.19; 2.9).
38
O apóstolo Paulo salientou as circunstâncias incomuns de seu ofício (1Co 15.8).
39
A defesa da natureza intercambiável desses termos faz referência a Atos 20.17; Tito 1.5-7; Efésios
4.11.
40
E.g., as primeiras igrejas fundadas por Paulo e Barnabé (At 14.23); a igreja de Jerusalém (15.1-29); a
igreja de Éfeso (At 20.17; 1Tm 5.17); as igrejas de Creta (Tt 1.5).
41
Para uma discussão mais ampla, veja Allison, SS, p. 206-47.
42
Clement of Rome, Letter of the Romans to the Corinthians 42 (ANF 1:16).
43
Didaquê 15 (ANF 7:381).
44
Polycarp [Policarpo], Letter to the Philippians 5 (ANF 1:34).
45
Ignatius [Inácio de Antioquia], Letter to the Magnesians 6 (ANF 1:61); cf. ibidem, Letter to the
Smyrneans 8 (ANF 1:89).
46
Para uma discussão mais ampla, veja Allison, SS, p. 249-95.
47
Jerome [Jerônimo], Letter 146, para Evangelus 1-2 (NPNF2 6:289).
48
Ibidem, 1 (NPNF2 6:288).
49
Jerome, Commentary on Titus 1.6-7, in: John Harrison, org., Whose are the fathers? (London:
Longmans, Green, 1867), p. 488.
50
O ministério anglicano, a estrutura de liderança da comunhão anglicana, reconhece a sucessão
apostólica, mas não da mesma forma que a teologia católica, e não reconhece o papa como seu líder
supremo. Pelo contrário, o arcebispo da Cantuária é o primeiro entre iguais em sua relação com outros
bispos anglicanos.
51
O Missal Romano, Ordem da Missa, 23, 25. Outras oblações, assim como as ofertas aos pobres,
também podem ser apresentadas. Além disso, durante a celebração da missa, quando o sacramento do
matrimônio é ministrado, o homem e a mulher que se casarão unem as oblações de sua vida, que estão
dando um ao outro, à oblação de Cristo por sua igreja na eucaristia (CCC 1621).
52
Martin Luther [Martinho Lutero], To the Christian nobility of the German nation.
53
Ibidem.
54
Martin Luther, On the councils of the church (LW 41:154).
55
Alguém talvez objete ao fato de que Paulo prescreva uma outra qualificação para anciãos/bispos que
não diz respeito ao cristão comum: “Se alguém almeja ser bispo, deseja algo excelente” (1Tm 3.1). Em
certo sentido, essa objeção está correta: para que alguém seja ordenado ancião/bispo, é preciso que aspire a
esse ofício. Em outro sentido, porém, esse desejo não é um traço de caráter que se deva possuir, tampouco a
capacidade de exercer tal ofício. A teologia evangélica com frequência associa essa aspiração ao chamado
divino para o ofício. Seja como for, o desejo de ser ancião/bispo é diferente da marca espiritual indelével
conferida pela ordem, uma vez que esse desejo certamente deve existir naqueles que serão ordenados antes
que recebam o sacramento.
56
Para uma discussão detalhada, veja Allison, SS, p. 223-40.
57
CCC 1579.
58
Uma exceção a esse ponto seria a perspectiva de Agostinho, segundo a qual a instrução de Paulo
proíbe o ofício a qualquer homem que tenha sido casado mais de uma vez (e.g., depois da morte de sua
primeira mulher) (Augustine, On the good of marriage 21 [NPNF1 3:408]). Nada no contexto da discussão
de Paulo remete tal restrição a homens casados apenas uma vez, e Paulo certamente poderia ter usado o
termo grego ἁπαξ (hapax = uma vez) se tivesse pretendido dar esse sentido. Além disso, outros comentários
do apóstolo sobre ser ou não apropriado que as viúvas se casassem novamente (Rm 7.1-3; 1Co 7.39)
pareceriam contradizer a interpretação de Agostinho.
59
Concílio Vaticano II, Presbyterorum ordinis 16 (VC II-1, 893).
60
A teologia evangélica se pergunta, então, como o Concílio Vaticano II pode afirmar que “se sente
confiante no Espírito de que o dom do celibato, tão apropriado ao sacerdócio do Novo Testamento, é
liberalmente concedido pelo Pai, contanto que aqueles que partilham do sacerdócio de Cristo através do
sacramento da ordem e, de fato, a igreja toda, peçam de forma humilde e apaixonada esse dom” (Concílio
Vaticano II, Presbyterorum ordinis 16 [VC II-1, 893]).
61
Concílio Vaticano II, Presbyterorum ordinis 16 (VC II-1, 892).
62
Calvin, Institutes 4.12.23 (LCC 21:1249) [edições em português: João Calvino, As institutas, tradução
de Waldyr Carvalho Luz (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), 4 vols.; e A instituição da religião cristã,
tradução de Carlos Eduardo Oliveira; José Carlos Estêvão (São Paulo: Ed. Unesp, 2008)].
63
Nesse sentido, muitas igrejas evangélicas deixam de pôr em prática uma teologia evangélica sadia ao
não aceitarem prontamente pastores/presbíteros solteiros. Essa prática parece não levar em conta as
instruções de Paulo sobre as vantagens do estado de solteiro, e é com frequência impelida pelo receio de
que ministros solteiros usem sua posição para incursionar por práticas de imoralidade sexual (como se isso
não fosse também um grande problema para os pastores casados).
64
CCC 1601; citação do Código de Direito Canônico 1055.
65
CCC 1602-1603; citação do Concílio Vaticano II, Gaudium et spes 48.1.
66
CCC 1604.
67
CCC 1605.
68
CCC 1605. A discussão remete a Gênesis 2.18-25.
69
Ibidem.
70
CCC 1607.
71
CCC 1608.
72
CCC 1609.
73
CCC 1611-1612.
74
CCC 1613.
75
Ibidem.
76
CCC 1614.
77
CCC 1615.
78
CCC 1617. Para a ideia de banho nupcial, veja Efésios 5.26,27.
79
CCC 1619. Para essa ideia, veja Marcos 12.25; 1Coríntios 7.31.
80
CCC 1621.
81
CCC 1622.
82
CCC 1625.
83
CCC 1626. Este ponto está de acordo com o cânon 1057.1 do Código de Direito Canônico.
84
CCC 1633-1637.
85
CCC 1635. Este ponto está de acordo com o cânon 1125 do Código de Direito Canônico.
86
CCC 1641.
87
CCC 1643.
88
CCC 1647.
89
CCC 1648.
90
CCC 1652; citação do Concílio Vaticano II, Gaudium et spes 48.1; 50. A lei natural é a regra, em
conformidade com a regra eterna que Deus prescreveu para a conduta humana, encontrada na natureza
humana. Dois paralelos podem nos ajudar aqui: assim como nada deveria inibir o desenvolvimento de um
girino em sapo, e assim como nada deveria inibir o desenvolvimento de uma bolota de carvalho em um
carvalho, de igual modo nada — por exemplo, contracepção, aborto — deveria inibir a fertilização e o
desenvolvimento in utero de um feto humano em um ser humano vivente fora do útero.
91
CCC 1654.
92
Concílio Vaticano II, Gaudium et spes 51 (VC II-1, 955).
93
Ibidem.
94
CCC 1656; citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 11.
95
CCC 1657 (grifo removido); citação do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 10.
96
CCC 1658.
97
CCC 1612 (grifo do autor).
98
CCC 1613.
99
Infelizmente, num percentual elevado de casos, a consumação é fato já ocorrido.
100
Para a teologia católica, o dever de se abrir para a fertilidade se baseia na lei natural. Como isso é um
aspecto ou reflexo da lei divina, proporciona orientação moral em assuntos desse tipo. Com base nesse
fundamento, o ofício de ensino da Igreja Católica estabeleceu regras oficiais para o planejamento familiar,
permitindo o planejamento pelo método natural e, ao mesmo tempo, proibindo o uso de qualquer tipo de
contracepção. Preservativos, DIU, pílulas e os demais métodos que impedem a fertilização estão proibidos.
III
A teologia católica de acordo com o Catecismo
da Igreja Católica

TERCEIRA PARTE:
A VIDA EM CRISTO
11
A VIDA EM CRISTO
(terceira parte, seção 1, capítulos 1—2)
A vocação humana: a vida no Espírito; a comunidade humana

Depois de apresentar as doutrinas da igreja sob a rubrica “A profissão da fé” e


sua discussão ampliada da liturgia da igreja sob o título “A celebração do
mistério cristão”, o Catechism of the Catholic Church se volta para a instrução a
1

respeito da vida em Cristo. Renascidos pelo sacramento do batismo, “os cristãos


são chamados a levar, doravante, uma vida ‘digna do evangelho de Cristo’” (Fp
1.27), e são capazes de responder a esse chamado “pela graça de Cristo e os dons
do seu Espírito, os quais os crentes recebem por meio dos sacramentos e da
oração”. Essa catequese da nova vida em Cristo prioriza o Espírito Santo, a
2

graça, as bem-aventuranças, o pecado e o perdão, as virtudes humanas, as


virtudes cristãs (fé, esperança e caridade), bem como o duplo mandamento da
caridade (os Dez Mandamentos). Além disso, trata-se de uma catequese eclesial
centrada em Jesus Cristo.

A vocação humana: a vida no Espírito (seção 1)3


Esta primeira seção da vida em Cristo é dedicada à vida no Espírito Santo (cap. 1
do Catechism), vida que consiste no amor divino e na solidariedade humana
(cap. 2) e graciosamente oferecida como salvação (cap. 3). Nossa discussão e
avaliação evangélica tratarão dos temas da vida no Espírito e da solidariedade
humana em conjunto (cap. 11 deste livro) e versará sobre a doutrina da salvação
em si (cap. 12 deste livro).

A dignidade da pessoa humana (seção 1, capítulo 1)


A vida em Cristo pelo Espírito Santo é apresentada em oito artigos que vão da
imagem de Deus à vitória sobre o pecado, de modo que o fiel chegue à perfeição
do amor.
O homem: a imagem de Deus (seção 1, capítulo 1, artigo 1)
“A dignidade da pessoa humana radica na sua criação à imagem e semelhança de
Deus.” Essa imagem divina é sobretudo o intelecto ou a razão humana, a
4

capacidade “de compreender a ordem das coisas estabelecida pelo Criador”, o


livre-arbítrio, a capacidade de seguir em frente, de amar, o bem verdadeiro que
se tem, isto é, “o que é verdadeiro e bom”. A queda de Adão e Eva no pecado
5

teve um elemento trágico de abuso da liberdade de que desfrutavam. A


motivação, que os exortava a “fazer o bem e a evitar o mal”, sucumbiu à
6

tentação e optou pelo mal. Como consequência, a natureza humana, embora


quisesse o bem, “ferida pelo pecado original [...] ficou com a inclinação para o
mal e sujeita ao erro”. O resgate dessa divisão interna foi obra de Cristo e de sua
7

graça e se aplica pela fé em Cristo e pelo seguimento do seu exemplo. Tal


socorro significa o retorno à dignidade humana como portadores da imagem
divina.
Nossa vocação à bem-aventurança (seção 1, capítulo 1, artigo 2)
Tal dignidade se cumpre concretamente na vocação humana para a bem-
aventurança divina, que é o tema das Bem-Aventuranças de Jesus (Mt 5.3-12).
“As Bem-Aventuranças estão no coração da pregação de Jesus [...] retratam o
rosto de Jesus Cristo e descrevem-nos a sua caridade. Exprimem a vocação dos
fiéis [...] [e] definem os atos e as atitudes característicos da vida cristã.” Além
8

disso, “[elas] respondem ao desejo natural de felicidade. Esse desejo é de origem


divina; Deus o pôs no coração do homem para atraí-lo a si, o único que o pode
satisfazer”. Ao buscar a felicidade, o ser humano verá que somente Deus pode
9

satisfazer esse desejo divinamente implantado nele. Por fim, “as Bem-
Aventuranças revelam a meta da existência humana, o fim último dos atos
humanos: Deus nos chama à sua própria felicidade”. 10

Na Escritura, esse convite divino à bem-aventurança é também descrito como


a vinda do reino de Deus (Mt 4.17), a visão beatífica (ver a Deus; Mt 5.8; cf. 1Jo
1.2; 1Co 13.12), a entrada na alegria do Senhor (Mt 25.21-23) e no descanso
divino (Hb 4.7-11). Essas descrições chamam a atenção para o fato de que a
bem-aventurança é a meta divinamente estabelecida por Deus para a existência
humana: “Deus nos colocou no mundo para o conhecermos, servirmos e
amarmos, e assim chegarmos ao paraíso”. A entrada na bem-aventurança é algo
11

que depende totalmente da graça divina e, portanto, é sobrenatural; ao mesmo


tempo, a felicidade prometida “nos confronta com escolhas morais decisivas”,
como a purificação do nosso coração, a busca do amor de Deus acima de tudo e
a valorização correta da riqueza humana, da saúde, da fama, do poder e das
conquistas — sem neles pôr a esperança derradeira. 12
Liberdade humana (seção 1, capítulo 1, artigo 3)
A liberdade de buscar essa felicidade é a essência da existência e da dignidade
humanas; consequentemente, o Catechism retoma sua discussão da imagem
divina, que consiste na racionalidade humana e no livre-arbítrio. Como é
racional, o ser humano pode iniciar e controlar suas próprias ações, colocar-se
em busca de Deus e “aderir livremente a ele, para chegar à total e beatífica
perfeição”. A liberdade, de modo concreto, é definida pelo “poder, radicado na
13

razão e na vontade, de agir ou não agir, de fazer isto ou aquilo, praticando assim,
por si mesmo, ações deliberadas”. Quando dirigida a Deus, essa liberdade
14

alcança a perfeição; quando “não consolidada definitivamente no seu bem


último, que é Deus, existe a possibilidade de escolher entre o bem e o mal,
portanto de crescer na perfeição ou de falhar e pecar”. A liberdade de escolha
15

no primeiro caso resulta em louvor e mérito; no segundo, o abuso da liberdade


resulta em culpa e reprimenda. A escolha habitual do bem implica uma liberdade
cada vez maior; a desobediência habitual resulta na escravização ao pecado (Rm
6.17). Além disso, a liberdade torna o ser humano responsável por seus atos, na
suposição de que sejam voluntários, e não atos coercitivos. No caso de
“ignorância, inadvertência [falta de atenção], violência, medo, hábitos, afeições
desordenadas e outros fatores psíquicos ou sociais”, a responsabilidade pessoal
“pode ser diminuída ou até anulada”. A importância desse ponto é reforçada
16

pela insistência do Catechism de que “o direito ao exercício da liberdade é uma


exigência inseparável da dignidade da pessoa humana, nomeadamente em
matéria moral e religiosa”.17

Ao colocar a discussão da liberdade no contexto da obra da salvação, o


Catechism chama a atenção para vários temas importantes. O primeiro deles,
18

liberdade e pecado, ressalta que a liberdade humana, sendo limitada e falível,


falhou; Adão e Eva pecaram livremente, e com isso se tornaram escravos do
pecado e mergulharam a humanidade toda em uma multidão de outros pecados,
Ameaças à liberdade, o segundo tema, mostra que o desvio da lei moral resulta
na violação da liberdade. Em relação ao terceiro tema, libertação e salvação, o
Catechism se ocupa da obra de Cristo, que produziu salvação e liberdade de tudo
o que escraviza o ser humano (Gl 5.1; Jo 8.32); o dom do Espírito Santo também
traz liberdade (2Co 3.17), que é a glória dos redimidos (Rm 8.21). Liberdade e
graça, o quarto tema, enfatiza que os dois não são rivais “quando essa liberdade
corresponde ao sentido da verdade e do bem que Deus colocou no coração do
homem”. De fato, uma resposta cada vez mais intensa à graça divina resulta em
19

cada vez mais liberdade.


A moralidade dos atos humanos (seção 1, capítulo 1, artigo 4)
“A liberdade faz do homem um sujeito moral. Quando age de maneira
deliberada, o homem é, por assim dizer, o pai dos seus atos.” Esses atos,
“livremente escolhidos em consequência de um juízo de consciência, são
moralmente qualificáveis” em bons ou maus. A moralidade dos atos humanos
20

consiste em três fontes ou elementos constitutivos: “o objeto escolhido; o fim


que se tem em vista ou a intenção; as circunstâncias da ação”. Em primeiro
21

lugar, o objeto escolhido é o ato em si, “para o qual a vontade tende


deliberadamente”, conforme avaliação da razão humana “em conformidade com
o verdadeiro bem”. Para fins de ilustração, um exemplo muito importante (e
22

que é positivo) é a orientação de um estudante que enfrenta dificuldades na


escola. As normas objetivas de moralidade e a consciência humana entram nesse
juízo racional. Consequentemente, alguns atos são intrinsecamente desregrados
(e.g., fornicação [atividade homossexual, entre outras], blasfêmia, perjúrio,
homicídio e adultério) e não podem jamais ser interpretados como boas ações
23

morais, seja qual for a intenção — o segundo elemento — com a qual são
empreendidas. Para fins de ilustração, outro exemplo (que é negativo) consiste
em exagerar as capacidades e realizações de um colega no trabalho.
O segundo elemento, o fim em vista ou intenção, consiste no agente moral
humano que age, e não no ato propriamente dito. Esse elemento é o objetivo da
intenção, o propósito que se busca na ação. “A intenção é um movimento da
vontade em direção ao fim: diz respeito ao objetivo da atividade. Sua meta é o
bem que se antecipa à ação empreendida.” No primeiro exemplo, o objetivo ou
24

a intenção da orientação consiste em ajudar o estudante a vencer suas


dificuldades de aprendizagem e a se tornar proficiente no assunto estudado para
prosseguir rumo a estudos avançados, se formar e ter emprego garantido em uma
ocupação que requer a habilidade por ele desenvolvida. Esse auxílio é uma boa
intenção. Conforme dissemos acima, porém, “uma boa intenção [...] não torna
um comportamento que é intrinsecamente incoerente [...] em bom ou justo. O
fim não justifica os meios”. No caso do segundo exemplo, exagerar as
25

habilidades de um colega no trabalho (o ato) para que ele ganhe uma promoção
merecida (a intenção) não torna o ato bom, porque mentir é inerentemente mau.
Em relação ao terceiro elemento, as circunstâncias da ação trazem consigo
suas consequências e “contribuem para agravar ou atenuar a bondade ou malícia
moral dos atos humanos [...]. Podem também diminuir ou aumentar a
responsabilidade do agente”. Contudo, essas “circunstâncias não podem, por si
próprias, modificar a qualidade moral dos próprios atos”. No primeiro exemplo,
26

a orientação dada ao estudante para ajudá-lo a se preparar para uma carreira é


bem-sucedido; isto é, o objetivo de preparar o estudante orientando-o resulta em
uma contribuição significativa por parte dele em sua vocação. A bondade moral
do ato em si, embora não dependa de suas consequências, é ampliada por seu
desfecho bem-sucedido. No exemplo secundário, a mentira dita para promover
um colega resulta, efetivamente, na sua promoção e, como consequência disso,
abre caminho para uma expansão significativa da empresa, beneficiando todos
os funcionários. Contudo, as consequências positivas não tornam a mentira, que
é má em si mesma, boa ou correta; a culpabilidade moral pela mentira não
diminui de modo algum em face do resultado positivo. Mudando um pouco o
exemplo secundário, se a mentira for decorrência do medo de que o colega
possa, de algum modo, retaliar se a dissimulação não for efetuada, a culpa pela
mentira poderá ser atenuada em alguma medida.
Consequentemente, um ato moral consiste em três fontes ou elementos
constitutivos. É importante notar que “um ato moralmente bom pressupõe, em
simultâneo, a bondade do objeto, da finalidade e das circunstâncias”. Uma boa
27

intenção não pode tornar bom um ato que é inerentemente mau.


A moralidade das paixões (seção 1, capítulo 1, artigo 5)
Passando de atos para paixões, o Catechism enfatiza que paixões ou sentimentos
humanos podem dispor de agentes morais para a felicidade e contribuir com ela.
Segundo a definição, “sentimentos ou paixões são emoções ou movimentos da
sensibilidade que inclinam a agir, ou a não agir, em vista do que se sentiu ou
imaginou como bom ou como mau”. Eles são mediadores entre a vida da mente
28

e a vida dos sentidos, conforme demonstrado aqui:


A vida da mente
(razão, vontade)

Paixões/sentimentos

A vida dos sentidos


(corpo)

Consequentemente, as paixões “são componentes naturais do psiquismo


humano, constituem o lugar de passagem e garantem a ligação entre a vida
sensível e a vida do espírito”. Conforme discutiremos em breve, a perfeição
29

moral é resultado de todos os aspectos humanos funcionando bem em conjunto


sob as ordens da razão e da vontade.
As paixões são numerosas, mas a afeição mais fundamental é o amor,
suscitada pela atração do bem. “O amor causa o desejo do bem ausente e a
esperança de o alcançar [...] e tem o seu termo no prazer e na alegria do bem
possuído.” O amor é a fonte dos demais sentimentos. Em oposição a isso, “a
30

apreensão pelo mal causa o ódio, a aversão e o receio do mal futuro; este
movimento termina na tristeza pelo mal presente ou na cólera que a ele se
opõe”. Consequentemente, as paixões “são más se o amor for mau, e boas se ele
31

for bom”. 32
Essa última afirmação significa que as paixões não são nem boas nem ruins
em si mesmas, mas recebem qualificação moral à medida que “dependem
efetivamente da razão e da vontade” e são por elas governadas. Quando a33

razão/vontade governa as afeições ou não coloca obstáculos em seu caminho, as


paixões são voluntárias. Governadas pela razão/vontade de modo que
contribuam para uma boa ação, as paixões são moralmente boas; quando não são
governadas corretamente e desse modo contribuem para uma ação má, as
paixões são moralmente más. Em outros termos, “a vontade reta ordena para o
bem e para a bem-aventurança os movimentos sensíveis que assume; a vontade
má sucumbe às paixões desordenadas e exacerba-as”. Em suma, as paixões
34

“podem ser assumidas pelas virtudes, ou pervertidas pelos vícios”.35

O Catechism conclui sua discussão chamando a atenção para a importância da


santificação, pelo Espírito Santo, do ser humano inteiro. Quando razão e
vontade, paixões e apetites e sentidos físicos são movidos na direção do bem, o
resultado será a perfeição moral.
A consciência moral (seção 1, capítulo 1, artigo 6)
Anteriormente, na discussão do sacramento do matrimônio, o Catechism apelou
à lei natural para respaldar a vocação para o casamento. A lei natural é a regra,
36

em conformidade com a regra eterna, que Deus prescreveu para a conduta


humana e que se encontra na própria natureza humana. Agora, em sua discussão
da vida de Cristo, o Catechism revisita essa ideia e descreve essa lei como
consciência moral: “No mais profundo da consciência, o homem descobre uma
lei que não se deu a si mesmo, mas à qual deve obedecer e cuja voz ressoa,
quando necessário, aos ouvidos do seu coração, chamando-o sempre a amar e
fazer o bem e a evitar o mal”. O apóstolo Paulo explica esse fenômeno em
37

Romanos 2.14-16.
De modo concreto, essa lei do coração, ou da consciência, foi inscrita por
Deus e é o julgamento da razão humana (não das paixões ou dos apetites
físicos). Uma consciência reta opera das seguintes formas: ela reconhece os
princípios morais; percebe sua aplicação em determinadas circunstâncias; julga
ações concretas, aprovando as que são boas e condenando as que são más;
promove a participação no bem e a necessidade de evitar o mal; e reconhece a
verdade a respeito do bem moral, de modo que ele se torna objeto de ações. A
interioridade é necessária para que a consciência funcione adequadamente; isto
é, o ser humano deve ser “suficientemente presente para si mesmo para ouvir e
seguir a voz de sua consciência”. A dignidade humana “implica e requer a
38

correção da consciência moral”; de fato, por causa da consciência, o ser humano


é capaz de assumir a responsabilidade por suas ações. Quando a consciência é
39
violada pela prática do mal, o juízo da consciência convence do erro, embora
testifique ainda da verdade do bem. Além disso, a consciência “atestando a falta
cometida, lembra o perdão a pedir, o bem a praticar ainda e a virtude a cultivar
incessantemente com a graça de Deus”. Dignidade humana significa também
40

que o ser humano deve ser livre para agir de acordo com a consciência e não
forçado a agir contrariamente a ela.
Embora implantada por Deus, a consciência deve ser formada por um
processo educativo ao longo da vida. Desse modo, ela se torna reta e verdadeira,
formulando seus juízos de acordo com o bem desejado por Deus. Tal formação
da consciência é indispensável à luz das influências e tentações negativas que
induzem ao pecado e que procuram prejudicar o ser humano. A Palavra de Deus,
os dons do Espírito Santo, o conselho alheio e os ensinos oficiais da igreja são
imprescindíveis à formação da consciência. São três os princípios da consciência
que se aplicam o tempo todo: “Nunca é permitido fazer o mal para que daí
resulte um bem; a Regra de Ouro é: ‘Portanto, tudo o que quereis que os homens
vos façam, fazei também a eles’ (Mt 7.12); e a caridade passa sempre pelo
respeito ao próximo e à sua consciência [1Co 8.12; Rm 14.21]”. 41

É possível que a consciência erre. A ignorância e o juízo equivocado de


consciência resultam de uma cegueira que se desenvolve por meio do pecado
habitual, da falta de consciência ou rejeição a Cristo e ao evangelho, do mau
exemplo de outros, da escravização a paixões, de afirmações de autonomia e
consciência, da rejeição dos ensinos oficiais da igreja e da falta de conversão e
de amor. Violar a própria consciência, agir deliberadamente contra ela, resulta na
própria condenação e na culpabilidade pelo mal cometido. Pela formação da
42

consciência, é possível corrigir seus erros.


As virtudes (seção 1, capítulo 1, artigo 7)
Com base na sugestão de Filipenses 4.8, o Catechism aborda o tópico das
43

virtudes humanas e teológicas. Por definição, “a virtude é uma disposição


habitual e firme para praticar o bem”. A pessoa virtuosa se inclina toda para o
44

bem, dando o melhor de si para escolher o bem nas ações concretas.


Há dois tipos de virtudes: a humana e a teológica. Em relação à primeira
categoria, “as virtudes humanas são atitudes firmes, disposições estáveis,
perfeições habituais da inteligência e da vontade, que regulam os nossos atos,
ordenam as nossas paixões e guiam o nosso procedimento segundo a razão e a
fé”. Esses hábitos comportam quatro virtudes cardeais ou principais: prudência
45

(“razão reta em ação”), justiça (dar a Deus e a outros o que lhes é devido),
46

fortaleza (perseverança na dificuldade e na busca do bem) e temperança


(moderação nos prazeres). Essas virtudes humanas e outras que delas derivam
são “purificadas e elevadas pela graça divina”. A vida virtuosa que é difícil para
47

o ser humano pecador buscar e praticar ganha o auxílio da graça da salvação.


As virtudes humanas “estão arraigadas nas virtudes teologais”, a segunda
categoria de virtudes. Essas inclinações ou esses hábitos são direcionados para
48

Deus e permitem que os fiéis vivam em relacionamento com ele e os ajudem a


merecer a vida eterna. As três virtudes teologais são a fé, a esperança e a
caridade (amor).
“A fé é a virtude teologal pela qual cremos em Deus e em tudo o que ele nos
disse e revelou e que a santa Igreja nos propõe para acreditarmos, porque ele é a
própria verdade.” O justo vive pela fé (Rm 1.17), o que, por sua vez, opera pelo
49

amor (Gl 5.6). A fé deve se fazer acompanhar da esperança e do amor, e deve ser
professada. De fato, “a fé sem obras é morta” (Tg 2.26), no sentido de que a “fé
não une plenamente o crente a Cristo e não o torna membro de seu corpo”. 50

Além disso, de acordo com as palavras de Jesus sobre confessá-lo ou negá-lo


perante outros (Mt 10.32,33), “o serviço e testemunho da fé são requeridos para
a salvação”.51

“A esperança é a virtude teologal pela qual desejamos o reino dos céus e a


vida eterna como nossa felicidade, pondo toda a nossa confiança nas promessas
de Cristo e apoiando-nos não nas nossas forças, mas no socorro da graça do
Espírito Santo.” A esperança perseverante de Abraão (Rm 4.18) é o exemplo
52

por excelência dessa virtude. As Bem-Aventuranças de Jesus promovem a


esperança em meio às provações e à perseguição, e a oração — especialmente o
Pai-Nosso — expressa e alimenta a esperança.
“A caridade é a virtude teologal pela qual amamos a Deus sobre todas as
coisas por ele mesmo, e ao próximo como a nós mesmos, por amor de Deus.” O 53

amor é o novo mandamento que Jesus dá (Jo 13.34), e o amor entre seus
discípulos imita o amor de Jesus por eles (15.9,12). Como fruto do Espírito e
plenitude da lei divina (Rm 13.8), o amor obedece aos mandamentos divinos (Jo
15.9,10). Assim como Jesus demonstrou seu amor pelos pecadores morrendo por
eles, seus discípulos devem amar os pecadores (Rm 5.10; Mt 5.44). O amor é
descrito principalmente no hino de Paulo à caridade (1Co 13.1-7), que o situa no
topo das outras virtudes teologais. Consequentemente, o amor anima, inspira,
liga, articula e ordena a fé e a esperança; ele é “a forma das virtudes”, sua
origem e seu destino. 54

Além das virtudes humanas e das virtudes teologais, os dons do Espírito Santo
sustentam a vida moral do fiel. Esses sete dons — sabedoria, entendimento,
conselho, fortaleza, conhecimento, piedade e temor do Senhor — torna o fiel
submisso às animações do Espírito e “completam e levam à perfeição as virtudes
de quem os recebe”. 55
O pecado (seção 1, capítulo 1, artigo 8)
À medida que sua discussão sobre a dignidade da pessoa humana se aproxima do
final, o Catechism se detém na realidade do pecado, que é o pano de fundo para
a necessidade da misericórdia divina e da graça eucarística que conduz à
salvação. Citando Agostinho, o Catechism afirma: “Deus, que nos criou sem
nós, não quis salvar-nos sem nós”. Em outras palavras, embora a criação fosse
56

realizada sem a participação humana, a redenção é outra coisa. De modo


concreto, faz parte da participação humana na salvação a confissão do pecado
(1Jo 1.8,9). De fato, a graça divina, operando por meio da Palavra e do Espírito
de Deus, deve “revelar o pecado” — lançando sobre ele uma “luz viva” ou
convencendo do pecado — com o intuito de realizar sua obra, que é a conversão
e a imputação da justiça (Rm 5.21). 57

Por definição, “o pecado é uma falta contra a razão, a verdade, a reta


consciência. É uma falha contra o verdadeiro amor para com Deus e para com o
próximo, por causa de um apego perverso a certos bens”. Também pode ser
58

definido como “uma expressão, um ato ou um desejo contrário à lei eterna”. 59

Outros elementos do pecado são a ofensa contra Deus e seu amor pelo ser
humano (Sl 51.4); desobediência ou rebelião do ser humano contra a vontade de
Deus em busca de autonomia — autodeterminação (exemplificada no primeiro
pecado; Gn 3.5); amor-próprio a ponto de desprezar a Deus; autoexaltação
orgulhosa, em oposição à obediência a Cristo que realizou a salvação do ser
humano. Sobre esse último ponto, a paixão de Cristo revela “a violência e a sua
multiplicidade: incredulidade, ódio assassino, rejeição e escárnio por parte dos
líderes e do povo, covardia de Pilatos e crueldade dos soldados, traição de Judas
tão dura para Jesus, negação de Pedro e abandono dos discípulos”. Contudo,
60

desses sofrimentos decorrentes de muitos pecados vêm o perdão de pecados.


Das várias listas paulinas de pecados vêm o conceito de diferentes tipos de
61

pecados e sua categorização. Depois de assinalar vários sistemas de


classificação, o Catechism propõe que “os pecados sejam corretamente avaliados
de acordo com sua gravidade”; portanto, ele faz uma distinção entre pecado
62

mortal e pecado venial. “O pecado mortal destrói a caridade no coração do


homem por uma infração grave à Lei de Deus. Desvia o homem de Deus, que é o
seu último fim, a sua bem-aventurança, preferindo-lhe um bem inferior. O
pecado venial deixa subsistir a caridade, embora ofendendo-a e ferindo-a.”63

Mais especificamente, as duas categorias podem ser discutidas e distinguidas


observando-se o pecado propriamente dito, seus resultados imediatos, seu
resultado eterno e a solução para vencê-lo. O pecado mortal é uma violação
grave da Lei de Deus e satisfaz três condições. Em primeiro lugar, seu objeto é
um assunto grave, conforme especificado pelos Dez Mandamentos. Portanto, ele
contradiz ou o amor de Deus ou o amor pelo próximo, ou ambos. Em segundo
lugar, ele está comprometido com o pleno conhecimento do “caráter pecaminoso
do ato, de sua oposição à lei de Deus”. Em terceiro lugar, o pecado mortal está
64

comprometido com o consentimento completo, requer uma escolha pessoal


deliberada que não é diminuída — pelo contrário, é aumentada — pela
“ignorância dissimulada e pela dureza de coração”. Por exemplo, “o pecado
65

cometido por meio da malícia, pela escolha deliberada do mal, é o mais grave de
todos”; de fato, Jesus mesmo falou da blasfêmia contra o Espírito Santo, que
66

caracterizou de pecado imperdoável e mortal (Mc 3.29; cf. Mt 12.32; Lc 12.10).


Um resultado imediato do pecado mortal é a destruição do amor no coração e o
distanciamento de Deus em razão da preferência de um bem inferior (i. e.,
criado) em lugar do bem por excelência, que é Deus. Outro resultado imediato é
a perda da graça santificadora; em que não se está mais em um estado de graça.
Quanto ao seu resultado eterno, se o pecado mortal não for redimido, e se
alguém morre nesse estado, “ele provoca a exclusão do reino de Cristo e leva à
morte eterna do inferno”. A solução para o pecado mortal é o sacramento da
67

penitência e reconciliação.
O pecado venial diz respeito a questões menos sérias do que o pecado mortal:
o padrão preconizado pela lei moral não é observado, ou a lei é desobedecida
“em questão grave, mas sem o pleno conhecimento ou sem o consentimento
completo”. Dois exemplos disso são “as conversas irrefletidas ou o riso
68

desmesurado”. Um resultado imediato do pecado venial é a ofensa ao amor, a


69

ferida imposta a ele, mas não sua destruição, como no caso do pecado mortal.
Manifestação de uma afeição desordenada por um bem inferior (i.e., criado), o
pecado venial também impede o progresso no exercício da virtude e da prática
do bem moral, que é um segundo resultado imediato. Em relação ao seu
resultado eterno, diferentemente do pecado mortal, o pecado venial não resulta
na perda da graça santificadora; a amizade da aliança com Deus, o amor e a
felicidade eterna permanecem. Contudo, o pecado venial implica também o
castigo temporal no purgatório. A solução para o pecado venial não é o
sacramento da penitência e reconciliação; pelo contrário, “ele é humanamente
reparável com a graça de Deus” por meio da confissão e do arrependimento. Há
70

uma advertência: “O pecado venial deliberado e do qual não houve


arrependimento nos dispõe pouco a pouco a cometer o pecado mortal”. 71

Para concluir sua discussão, o Catechism trata da proliferação do pecado: “O


pecado cria uma tendência para pecar; ele engendra o vício pela repetição dos
mesmos atos. Isso resulta em inclinações perversas que anuviam a consciência e
corrompem o juízo concreto do bem e do mal”. Seguindo a tradição da igreja
72
primitiva, o Catechism discute os vícios não no que diz respeito às virtudes às
quais se opõe, mas no que diz respeito à sua ligação com os sete pecados capitais
(comumente conhecidos como pecados “mortais”; são “‘capitais’ porque
engendram outros pecados”): orgulho, avareza (ganância), inveja, ira, luxúria,
glutonaria e preguiça (acídia). O Catechism menciona ainda os tradicionais
73

“pecados que clamam aos céus”: o sangue de Abel; a homossexualidade


sodomita; o clamor do povo de Deus escravizado no Egito; o clamor do
estrangeiro, da viúva, do órfão e as práticas comerciais injustas. Além disso, o
74

pecado vai além da responsabilidade pessoal: “Temos uma responsabilidade


pelos pecados cometidos por outros quando cooperamos com eles” ao 75

participar, supervisionar ou aprová-los, ao acobertá-los, protegê-los e ao proteger


os que os cometem. Esses pecados são sistêmicos, sociais ou estruturais; como
tais, estimulam um reino de pecado.

Avaliação evangélica
Boa parte desta seção sobre “A vida em Cristo” trata de tópicos de antropologia
(a doutrina da humanidade) e de moralidade (ética) de uma perspectiva
filosófica. Consequentemente, uma avaliação desses tópicos deve ser mensurada
e seletiva, detendo-se naquelas áreas das quais a Escritura e a teologia
evangélica tratam diretamente. De modo geral, como o ensino da teologia
católica sobre esses tópicos não é explicitamente bíblico, tampouco
explicitamente não bíblico, pode-se saudá-lo como uma contribuição bem-vinda
da antropologia e da moralidade, sem, contudo, considerá-lo definitivo e
obrigatório. São áreas como a da liberdade humana, moralidade das paixões
76

humanas, consciência moral, virtudes humanas, as virtudes teologais e a


77 78 79

moralidade dos atos humanos.


Tomando como exemplo esse último tópico, o ensino da teologia católica
sobre a moralidade dos atos humanos é uma teoria moral bem desenvolvida e
coerente. Sua ênfase nas três fontes ou elementos constitutivos dos atos morais
humanos — o objeto escolhido, o fim que se tem em vista ou a intenção e as
circunstâncias — lembra aos proponentes da teologia evangélica que as boas
obras e as más obras não dependem unicamente da correção ou do erro dos atos
em si. E se esses atos fossem realizados para a glória de Deus (Rm 15.7; 1Co
10.31), movidos pela fé (Rm 14.23), de um “amor que brota de um coração puro,
de uma boa consciência e de uma fé sincera” (1Tm 1.5; 1Pe 1.22), em
conformidade com uma atitude adequada e sincera (1Co 4.5; Cl 3.22)? Então
seriam considerados atos bons; do contrário, serão deficientes de alguma
maneira. Jesus advertiu sobre “falsos profetas, que se vestem de ovelhas, mas
que por dentro são lobos vorazes”, e prometeu a seus discípulos que eles os
“[reconheceriam] por seus frutos”, que serão maus porque eles são pessoas más
(Mt 7.15-20). Jesus também explicou que as profecias feitas, os demônios
exorcizados e as grandes obras realizadas, tudo em seu nome, não garantem a
entrada no reino de Deus (Mt 7.21-23). O bem e o mal não dizem respeito
apenas à correção e ao erro dos atos em si. Essa filosofia católica confere relevo
ainda maior à responsabilidade moral pessoal — “o homem é, por assim dizer, o
pai de seus atos” — e à natureza intrinsecamente desordenada de certos atos
80

(e.g., a atividade homossexual, o homicídio, o adultério). Essa ênfase pode ser


útil aos proponentes da teologia evangélica em meio a um distanciamento
cultural em relação à responsabilidade pessoal pelas ações próprias até a negação
de responsabilidade (e.g., o divórcio “sem culpa”; a síndrome da vítima) e dos
absolutos morais ao relativismo da ética (e.g., propor a justificação do mal
cometido por alguém com a expressão “Deus quer que eu seja feliz” ou “foi por
uma boa causa”).
Há duas questões sobre as quais as teologias católica e evangélica têm
perspectivas diferentes: a imagem de Deus e a distinção entre pecados mortais e
pecados veniais. Sobre a primeira questão, e conforme discutimos anteriormente,
a teologia católica se debruça sobre a imagem divina conforme expressa pela
razão humana, pelo intelecto e pelo livre-arbítrio. A seu favor, ela tem uma longa
tradição iniciada por Ireneu e desenvolvida por Tomás de Aquino. Embora81

algumas variedades de teologia evangélica tenham seguido essa ênfase, outras


versões consideram a identificação da imagem de Deus com a racionalidade e a
liberdade humanas algo problemático por diversas razões. Em primeiro lugar, ela
é desnecessariamente reducionista. A Escritura não faz essa identificação
limitada. Na verdade, no capítulo inicial do Gênesis, a narrativa flui da
deliberação divina de criar o homem à imagem de Deus (Gn 1.26) à
concretização desse plano (v. 27), que é a criação de um homem e de uma
mulher em sua inteireza. Em segundo lugar, as investigações feitas no século
passado sobre a literatura do antigo Oriente Médio deslocaram a atenção da
imagem divina como função sobretudo do domínio sobre a ordem criada. Em 82

terceiro lugar, em razão da enorme influência de Karl Barth, a criação divina do


homem e da mulher como portadores dessa imagem ganhou destaque tendo
como consequência o fato de que a relação humana, refletindo a relação inerente
no Deus trino, ganhou importância. Esses desdobramentos em direção ao
83

acolhimento de uma estratégia mais holística no que diz respeito à imagem


divina servem para criticar e afastar a visão especulativa da teologia católica
segundo a qual, até mesmo antes da Queda, no caso de Adão e Eva, sua
razão/intelecto era responsável pelo governo de suas paixões e de seus apetites
físicos.
Retornando à segunda área de discordância, a teologia evangélica rejeita a
distinção da teologia católica entre pecados mortais e pecados veniais, sobretudo
porque a Escritura não faz correspondente distinção. Sem dúvida, a Escritura
distingue explicitamente entre pecados não intencionais e pecados intencionais,
ou “arbitrários”:
E se uma pessoa pecar por ignorância, oferecerá uma cabra de um ano como sacrifício pelo pecado.
E o sacerdote fará expiação por aquele que pecar diante do SENHOR, quando pecar por ignorância; feita
a expiação, será perdoado. Haverá uma só lei para todo aquele que pecar por ignorância, tanto para o
natural da terra de Israel como para o estrangeiro que viver entre eles. Mas a pessoa que pecar
conscientemente, seja natural da terra, seja estrangeira, blasfema contra o SENHOR. Tal pessoa será
eliminada do meio do seu povo, porque desprezou a Palavra do SENHOR e infringiu seu mandamento.
Certamente ela será eliminada, e o seu pecado recairá sobre ela (Nm 15.27-31; grifo do autor).

É importante frisar que, no caso do pecado por ignorância, será preciso fazer um
sacrifício de expiação e, no caso do pecado consciente, o sacrifício permitirá
perdoá-lo. Contudo, essa distinção bíblica não tem paralelo nenhum com a ideia
da teologia católica de que o pecado venial não requer uma nova infusão de
graça santificadora para ser perdoado, ao passo que o pecado mortal requer
efetivamente o sacramento da penitência para que possa ser perdoado.
Além disso, a Escritura faz distinção entre graus de pecado, pelo menos no
que diz respeito às consequências que diferentes pecados produzem: “Alguns
pecados são piores do que outros no sentido de que têm consequências mais
danosas em nossa vida e na vida de outros, e, no que diz respeito à nossa relação
pessoal com Deus como Pai, eles suscitam uma maior dose de descontentamento
nele e induzem a um rompimento mais sério em nosso relacionamento com
ele”. A base bíblica para a distinção entre pecados maiores e pecados menores
84

em relação a uma seriedade maior ou menor de suas consequências encontra-se


na visão de Ezequiel das “abominações ainda maiores” (Ez 8.6,13,15) e na
acusação de que, como Judas entregou Jesus a Pôncio Pilatos, aquele discípulo
“tem maior pecado” (Jo 19.11). Contudo, essa distinção se detém na gravidade
do pecado no que diz respeito às suas consequências danosas para a vida das
pessoas, que perdem a intimidade em seu relacionamento com Deus. Contudo,
ela não trata da questão da culpa diante de Deus. No caso da posição legal da
pessoa diante de Deus, todos os pecados, não importa se graves ou não, tornam a
pessoa culpada diante de Deus e, com isso, as coloca sob a ira divina. Conforme
Tiago explicou: “Pois qualquer um que guarda toda a lei, mas tropeça em um só
ponto, torna-se culpado de todos. Porque o mesmo que disse: Não adulterarás,
também disse: Não matarás. Se não cometes adultério, mas és homicida, tornas a
ti mesmo transgressor da lei” (Tg 2.10,11; cf. Gl 3.10, citando Dt 27.26).
Consequentemente, deixar de guardar toda a lei divina, mesmo que num só
ponto, faz com que a pessoa a viole, e essa transgressão suscita o juízo divino.
Portanto, quer seja o pecado sério, quer seja menor, o resultado é de culpa diante
de Deus. Por isso, a distinção que a teologia católica faz entre pecado mortal —
que implica a perda da graça justificadora, trazendo culpa diante de Deus,
fazendo o indivíduo incorrer na ira divina, exigindo, para ser perdoado, o
sacramento da penitência —, e pecado venial, por meio do qual não se perde a
graça, não constitui um ensinamento bíblico.
Duas áreas de séria discordância que a teologia evangélica tem com sua
congênere católica no que diz respeito à apresentação de “A vida em Cristo” são
a falta de atenção dada à Escritura como componente crítico da vivência cristã e
a atenção praticamente exclusiva com a bem-aventurança humana como
propósito estabelecido por Deus para a existência humana. Em relação à pouca
consideração pela Escritura, no início de sua discussão sobre esse tópico, o
Catechism atribui a capacidade do fiel de viver uma vida “digna do evangelho de
Cristo” à “graça de Cristo e aos dons do Espírito, que ele recebe através dos
sacramentos e da oração”. Outros elementos santificadores ordenados
85

explicitamente ao fiel compreendem a conformidade com a mente de Cristo e o


seguimento do seu exemplo, o Espírito Santo, a graça, o pecado e o perdão, as
virtudes humanas e as virtudes cristãs (fé, esperança e caridade). Quanto ao
papel da Escritura nessa vida em Cristo, há três seções fundamentais — as Bem-
Aventuranças, os Dez Mandamentos e a Regra de Ouro (Mt 7.12) — que
ocupam sua atenção, mencionando-se também a importância da Escritura na
formação da consciência, mas isso é tudo o que se diz sobre o papel explícito da
Escritura no viver cristão. Com essa crítica, a teologia evangélica não nega que
boa parte dessa seção do Catechism está fundamentada na Escritura; de fato, as
referências à base bíblica são comuns. Tampouco essa crítica faz pouco do fato
de que o Catechism, de modo geral, dedica uma discussão significativa à
revelação divina — incluindo uma apresentação à inspiração, à veracidade, ao
cânon, à interpretação, à unidade e à eficácia da Escritura — em suas páginas
iniciais. Pelo contrário, a crítica reflete aquilo pelo que a teologia evangélica é
conhecida — a Palavra de Deus e sua autoridade, suficiência e necessidade para
a vida em Cristo.
Fundamental para essa ênfase na Palavra de Deus é o que a Escritura afirma
por si mesma: “Toda a Escritura é divinamente inspirada e proveitosa para
ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir em justiça; a fim de que o
homem de Deus tenha capacidade e pleno preparo para realizar toda boa obra”
(2Tm 3.16,17). Conforme evidencia a última expressão, não há boa obra que
Deus conclame seu povo a fazer para a qual não o capacite a realizá-la por meio
da sua Palavra. O conhecimento do evangelho e da sã doutrina, a exposição ao
que desagrada a Deus, a convicção do pecado, a orientação no caminho correto,
a sabedoria para que se conheça a vontade de Deus, a certeza durante a provação
e a perseguição, a busca de pureza — a Palavra de Deus proporciona tudo isso e
muito mais para a vivência da vida cristã.
A teologia evangélica oferece uma rica apresentação da Escritura e mostra
como ela medeia essa obra salvadora de Cristo e promove a caminhada
progressiva do fiel com ele. Para um primeiro exemplo, a Escritura como atos de
fala revestidos de poder de Deus é mais do que apenas palavras, uma vez que
suas declarações realizam aquilo que comunicam. Para ilustrar isso, a declaração
divina conhecida como justificação é o pronunciamento legal de Deus, o Juiz,
segundo o qual os seres humanos pecadores “não são culpados!”, e sim
“justos!”, porque a declaração feita os torna justos. Para ilustrar ainda melhor, a
expressão comissiva divina “Quem tem o Filho tem a vida” (1Jo 5.12)
compromete a Deus, que a enunciou, com a verdade dessa promessa, que é
consequentemente verdadeira na vida do ser humano pecador que abraça a
Cristo. Um segundo exemplo apela a uma injunção bíblica explícita: “Desejai o
puro leite espiritual, como bebês recém-nascidos, a fim de crescerdes por meio
dele para a salvação, se é que já provastes que o Senhor é bom” (1Pe 2.2,3).
Consequentemente, a Escritura é o leite espiritual para a nutrição dos fiéis —
todos os quais são retratados como bebês recém-nascidos — para que progridam
na salvação. A teologia evangélica lamenta a escassa atenção que a teologia
católica dá à Palavra de Deus como elemento crucial para a vivência da vida em
Cristo e apela à sua congênere para que ressalte o papel essencial da Escritura na
vivência cristã.
Uma segunda área de profunda decepção da teologia evangélica com a
teologia católica diz respeito à apresentação que esta faz de “A vida em Cristo”
se detendo, quase exclusivamente, na bem-aventurança humana como propósito
divinamente estabelecido para a existência humana. Não se está dizendo aqui
que a salvação e a bênção eterna dos que abraçam o evangelho de Jesus Cristo
não são verdadeiras ou têm pouca importância. Pelo contrário, a exaltação futura
do fiel é descrita fartamente na Escritura: a plena conformidade à imagem de
Cristo (Rm 8.29; 1Co 15.49; 1Jo 3.1-3); corpos ressurretos imperecíveis,
gloriosos, fortes e dominados pelo Espírito (1Co 15.42-44); a experiência de ver
a Deus “face a face” (a “visão beatífica”), pois ele habita para sempre com seu
povo no novo céu e na nova terra (1Co 13.12; Ap 21 e 22). Portanto, a exaltação
futura do fiel é de importância extraordinária na visão bíblica da bem-
aventurança futura reservada aos cristãos. A crítica, pelo contrário, se detém na
oportunidade perdida de respaldar aquilo que é mais importante ainda do que a
bem-aventurança humana: o ser humano foi criado e, portanto, feito por Deus
para glorificá-lo em sua vida.
O Breve Catecismo de Westminster, uma das expressões populares da teologia
evangélica, diz de maneira sucinta: “Pergunta: Qual é o fim principal do
homem? Resposta: O fim principal do homem é glorificar a Deus e desfrutá-lo
para sempre”. O fim supremo do ser humano — sem negar os demais
86

propósitos para os quais ele foi criado — não acaba nele mesmo, mas em Deus.
Conforme disse Paulo em uma oração de glorificação a Deus: “Porque todas as
coisas são dele, por ele e para ele. A ele seja a glória eternamente! Amém” (Rm
11.36). Em outro lugar, o apóstolo assinalou que o propósito eterno de Deus
87

era, em certo sentido, a glorificação futura do seu povo; contudo, além dessa
exaltação do ser humano havia uma coisa mais: a preeminência do seu Filho.
“Pois os que conheceu por antecipação, também os predestinou para serem
conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre
muitos irmãos” (8.29). Desde toda a eternidade, o plano divino (presciência,
predestinação) é que o ser humano seja resgatado pela graça divina para que se
conforme plenamente um dia à imagem do Filho; contudo, entre esses irmãos e
irmãs distintos e redimidos, a preeminência do Filho (“o primogênito” no tocante
à sua condição exaltada) se distinguirá. Portanto, a teologia evangélica enfatiza o
plano divino para a humanidade, e não a bem-aventurança humana, a felicidade,
a glorificação etc., por mais importante que seja tudo isso. Pelo contrário, o mais
importante na visão da teologia evangélica é a glória de Deus e a preeminência
de Cristo — o ser humano existe para a glória do seu Criador e Salvador.
Consequentemente, a teologia evangélica lamenta a ênfase mal colocada, por
parte da teologia católica, na bem-aventurança humana.

A comunidade humana (seção 1, capítulo 2)


Depois de tratar da vida em Cristo como vida no Espírito Santo (seção 1,
capítulo 1), o Catechism discute a seguir as dimensões coletivas dessa vida, isto
é, a comunidade e a solidariedade humanas. Como o presente capítulo se detém
(seção 1, capítulo 2) na teoria social e política da Igreja Católica, será bastante
breve.
A pessoa e a sociedade (seção 1, capítulo 2, artigo 1)
Criado à imagem do Deus trino que existe eternamente em comunidade como
Pai, Filho e Espírito Santo, o ser humano é chamado a refletir essa comunidade
divina na sociedade humana. De fato, em razão desse desígnio divino para a
natureza humana, o ser humano precisa viver em sociedade, concretamente nas
sociedades da família e do Estado. Outras associações e instituições voluntárias
— econômicas, sociais, culturais, recreativas, atléticas, profissionais e políticas
— promovem a socialização humana, mas também apresentam perigos. Para
evitar essas possíveis ameaças, a igreja propõe o princípio da subsidiariedade e
“uma justa hierarquia de valores, os quais ‘subordinam as dimensões físicas e
instintivas às dimensões interiores e espirituais’”. Em virtude do mal humano e
88

sistêmico — por exemplo, quando as pessoas são tratadas como meios para um
fim —, “é preciso, portanto, apelar à capacidade espiritual e moral da pessoa
humana e à necessidade permanente de sua conversão interior, para que haja
mudanças sociais que lhe sirvam de fato”. Na verdade, o evangelho é a única
89

solução verdadeira para o problema social.


Participação na vida social (seção 1, capítulo 2, artigo 2)
A sociedade humana requer uma autoridade voltada para o bem comum e que
demonstre respeito por ele. “Chama-se autoridade àquela qualidade em virtude
da qual pessoas ou instituições dão leis e ordens a homens e esperam obediência
da parte deles.” Toda autoridade humana deriva de Deus (Rm 13.1,2; 1Pe 2.13-
90

17). “Por bem comum deve entender-se ‘o conjunto das condições sociais que
permitem, tanto aos grupos quanto a cada um dos seus membros, atingir a sua
perfeição, do modo mais completo e adequado’”. Esse bem comum consiste em
91

três elementos essenciais: respeito pelo ser humano e pelo seu desenvolvimento
como tal e por seus direitos fundamentais; prosperidade, ou o bem-estar e o
desenvolvimento da sociedade; e paz, ou a estabilidade e segurança da sociedade
por meio da manutenção e do desenvolvimento de uma ordem justa.
Evidentemente, o pressuposto que subjaz a essa discussão é a existência de um
bem comum universal, cuja busca é necessária para assegurar e promover a
dignidade do ser humano. Tal responsabilidade de promoção do bem comum é
primeiramente pessoal, depois institucional, sobretudo no que diz respeito ao
Estado e à família.

Justiça social (seção 1, capítulo 2, artigo 3)


A justiça social se acha vinculada ao exercício da autoridade e à busca do bem
comum, o que é garantido pela sociedade “quando ela realiza as condições que
permitem às associações e aos indivíduos obterem o que lhes é devido, segundo
a sua natureza e vocação”. No âmago da justiça social está o respeito pelo ser
92

humano e por sua dignidade transcendente como portador da imagem de Deus.


Tal respeito é demonstrado pela promoção dos direitos humanos, pela prática do
princípio segundo o qual “cada um considere o seu próximo, sem qualquer
exceção, como ‘outro ele mesmo’”, e zele por todos os seres humanos
93

igualmente, a despeito das muitas diferenças planejadas por Deus. Outras


diferenças — “desigualdades pecaminosas” contrárias ao evangelho — devem
ser contestadas e eliminadas; uma forma de fazê-lo consiste em reduzir a
disparidade social e econômica entre as pessoas e os grupos. Imprescindível 94

para isso é a virtude cristã da solidariedade humana, que leva ao


compartilhamento tanto dos bens materiais quanto dos bens espirituais da fé
cristã. 95

Avaliação evangélica
De modo geral, como o tratamento dispensado pela teologia católica a essas
questões é reflexo de uma teoria social e política que não é explicitamente
bíblica, tampouco não bíblica, pode-se acolhê-la como uma possível
contribuição para a discussão das dimensões coletivas da existência humana,
sem, contudo, considerá-la definitiva e obrigatória. A teologia evangélica está de
acordo em áreas como o plano divino para que o ser humano floresça em
comunidade, as duas instituições da família e do governo, conforme ordenadas
por Deus, os perigos inerentes às associações e instituições voluntárias em razão
do mal sistêmico, a necessidade de uma autoridade exercida de maneira
adequada, a promoção dos direitos humanos sancionados pela Bíblia, a bênção
da prosperidade e da paz (pela qual a igreja deve orar; 1Tm 2.1,2), a busca de
um bem comum universal, a igualdade de todos os seres humanos em
decorrência da criação à imagem de Deus e a solidariedade da raça humana.
Quando há disparidade, ela é encontrada em áreas como a do princípio da
subsidiariedade e da visão relativamente otimista que a teologia católica tem da
comunidade humana, do governo e de outras instituições.
Antes de concluir este capítulo, é preciso olhar com atenção uma área ainda
não avaliada. Em sua discussão da vida em Cristo, especialmente quando diz que
essa existência foi arruinada pela realidade do pecado, o Catechism cita
positivamente Agostinho: “Deus, que nos criou sem nós, não quis salvar-nos sem
nós”. Não avaliamos tal afirmação porque o próximo capítulo se concentrará na
96

doutrina da salvação da teologia católica em que esse arranjo cooperativo entre


Deus e o ser humano é discutido e defendido demoradamente. É para essa
apresentação e a sua avaliação evangélica correspondente que nos voltamos
agora.
1
Edição em português: Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Loyola, 1999).
2
CCC 1692.
3
Embora o título de fato dessa seção do Catechism seja “A vocação do homem”, o termo genérico
“humano” será usado em substituição a “homem” para assegurar que a discussão trate explicitamente do
homem e da mulher, como é de fato a intenção do Catechism.
4
CCC 1700.
5
CCC 1704; citação do Concílio Vaticano II, Gaudium et spes 15.2.
6
CCC 1706; citação do Concílio Vaticano II, Gaudium et spes 16.
7
CCC 1707.
8
CCC 1716-1717.
9
CCC 1718.
10
CCC 1719.
11
CCC 1721.
12
CCC 1723.
13
CCC 1730; citação do Concílio Vaticano II, Gaudium et spes 17; cf. Eclesiástico 15.14.
14
CCC 1731.
15
CCC 1731-1732 (grifo removido).
16
CCC 1735.
17
CCC 1738 (grifo removido).
18
CCC 1739-1742.
19
CCC 1742.
20
CCC 1749 (grifo removido).
21
CCC 1750.
22
CCC 1751.
23
CCC 1755-1756.
24
CCC 1752.
25
CCC 1753.
26
CCC 1754.
27
CCC 1755 (grifo removido).
28
CCC 1763.
29
CCC 1764.
30
CCC 1765.
31
Ibidem.
32
CCC 1766; citação de Augustine, The city of God 14.7 (NPNF1 2:267) [edição em português:
Agostinho, A cidade de Deus, tradução de Oscar Paes Leme (Petrópolis: Vozes de Bolso, 2012), 2 vols.].
33
CCC 1767.
34
CCC 1768.
35
CCC 1768 (grifo removido).
36
CCC 1603.
37
CCC 1776; citação do Concílio Vaticano II, Gaudium et spes 16.
38
CCC 1779.
39
CCC 1780-1781.
40
CCC 1781.
41
CCC 1789.
42
O Catechism leva em conta algumas situações — e.g., “a ignorância [da consciência] é invencível [i.e.,
ela é tão completamente plena que não pode ser retificada], ou o sujeito moral não é responsável por seu
juízo errôneo” — disso resultando que o mal cometido não é imputado ao agente moral (CCC 1793).
43
Paulo estabelece a verdade, a honra, a justiça, a pureza, a beleza, a graça, a excelência e o
merecimento de louvor como objetos da meditação humana.
44
CCC 1803.
45
CCC 1804 (grifo removido).
46
CCC 1806; citação de Thomas Aquinas [Tomás de Aquino], Summa theologica, 2.ª pt. da 2.ª pt, q. 47,
art. 2 [edição em português: Suma teológica (São Paulo: Loyola, 2001), 9 vols.].
47
CCC 1810.
48
CCC 1812.
49
CCC 1814; citação do Concílio Vaticano II, Dei Verbum 5.
50
CCC 1815.
51
CCC 1816.
52
CCC 1817.
53
CCC 1822.
54
CCC 1827 (grifo removido).
55
CCC 1831; referência bíblica: Isaías 11.2.
56
CCC 1847; citação de Augustine, Sermão 169, in: John E. Rotelle, org., The works of Saint Augustine:
a translation for the 21st Century, tradução para o inglês de Edmund Hill (Hyde Park: New City, 1992), vol.
5, p. 231.
57
CCC 1848.
58
CCC 1849.
59
Ibidem; citação de Augustine, Reply to Faustus the Manichean 22.27 (NPNF2 4:283); Thomas
Aquinas, Summa theologica, 1.ª pt. da 2.ª pt., q. 71, art. 6.
60
CCC 1851.
61
Gálatas 5.19-21; Romanos 1.28-32; 1Coríntios 6.9,10; Efésios 5.3-5; Colossenses 3.5-8; 1Timóteo
1.9,10; 2Timóteo 3.2-5.
62
CCC 1854.
63
CCC 1855.
64
CCC 1859.
65
Ibidem. Com relação à ignorância dissimulada e à dureza de coração, o Catechism faz referência a
Marcos 3.5,6 e Lucas 16.19-31.
66
CCC 1860.
67
CCC 1861.
68
CCC 1862.
69
CCC 1856. Os exemplos são de Thomas Aquinas, Summa theologica, 1.ª pt. da 2.ª pt., q. 88, art. 2.
70
CCC 1863.
71
Ibidem.
72
CCC 1865.
73
CCC 1866. Esses pecados capitais foram discutidos por John Cassian [João Cassiano] em The
conference of Abbot Serapion 5 (NPNF2 11:339-351) e por Gregory the Great [Gregório, o Grande],
Moralia in Job 31.45.
74
CCC 1867 (grifo removido); as referências bíblicas para esses pecados são: o sangue de Abel (Gn
4.10); o pecado de Sodoma (Gn 18.20; 19.13); o clamor de Israel (Êx 3.7-10); o clamor dos oprimidos (Êx
22.21-24); e o pagamento injusto (Dt 24.14,15; Tg 5.4).
75
CCC 1868 (grifo removido).
76
A teologia evangélica acolhe diversas perspectivas da liberdade humana, entre elas a liberdade do
livre-arbítrio, em combinação com o indeterminismo e com muita sobreposição com a postura da teologia
católica, e a liberdade compatibilista, que combina em alguma medida com o determinismo.
77
Para uma investigação das paixões da perspectiva evangélica, veja Kevin J. Vanhoozer,
Remythologizing theology: divine action, passion, and authorship, Cambridge Studies in Christian Doctrine
(New York: Cambridge University Press, 2012).
78
Embora a teologia evangélica concorde com sua congênere católica que a consciência humana foi
inscrita por Deus no coração de todos, e que ela serve para acusá-los quando erram e para elogiá-los quando
fazem o que é certo (Rm 2.14-16), muitas versões da teologia evangélica têm uma avaliação mais
pessimista do papel e da importância da consciência (corrompida pelo pecado) do que a perspectiva
católica.
79
De modo geral, a teologia evangélica, se familiarizada com a discussão das virtudes humanas proposta
pela teologia católica, questionará primeiramente os fundamentos dela (a teologia católica busca respaldo
no escrito apócrifo de Sabedoria 8.7) para, em seguida, descartar a proposição do Catechism de que “as
virtudes morais são adquiridas pelo esforço humano [...] [e] dispõem todas as potencialidades do ser
humano para comungar no amor divino” (CCC 1804). Para a teologia evangélica, as virtudes humanas
podem ser apreciadas e até elogiadas como atitudes e disposições virtuosas em nível humano, mas não o são
perante Deus, pelo menos no que diz respeito a garantir seu favor e/ou preparativos para sua graça. Que o
próximo seja uma pessoa virtuosa, exibindo padrões coerentes de prudência, justiça, fortaleza e temperança,
é motivo de ações de graças e causa de bom relacionamento com ele. Contudo, suas virtudes humanas não
são motivo de merecimento de favor perante Deus e, portanto, não devem mitigar a preocupação do cristão
de chamá-lo ao arrependimento por meio do evangelho. Até mesmo Cornélio, que temia a Deus, com quem
Pedro aprendeu a lição “de que Deus não mostra parcialidade, mas em toda nação, quem quer que o tema e
faça o que é certo e aceitável diante dele” (At 10.34,35), precisava ouvir a mensagem do apóstolo sobre
Jesus Cristo, arrepender-se, batizar-se e receber o Espírito Santo para ser salvo. É importante notar que a
teologia evangélica reconhece a interdependência natureza-graça no fundamento da posição da teologia
católica acerca das virtudes humanas. De acordo com esse axioma, a natureza — nesse caso, as virtudes
humanas — tem capacidade para a graça, que opera de modo que eleve e aperfeiçoe essas virtudes.
Conforme diz o Catechism, as virtudes cardeais, e outras que delas decorrem, “são purificadas e elevadas
pela graça divina” (CCC 1810). A crítica dessa interdependência pela teologia evangélica já foi apresentada.
80
CCC 1749 (grifo removido).
81
Irenaeus [Ireneu], Against heresies 4.4.3 (ANF 1:466); Thomas Aquinas, Summa theologica, pt. 1, q.
93.
82
E.g., Gerhard von Rad, Genesis: a commentary, tradução para o inglês de John H. Marks
(Philadelphia: Westminster, 1972), p. 60. Para um resumo desse desenvolvimento, veja J. Richard
Middleton, The liberating image: the Imago Dei in Genesis 1 (Grand Rapids: Brazos, 2005), p. 24-34.
83
Karl Barth, Church dogmatics, organização de G. W. Bromiley; T. F. Torrance (Edinburgh: T&T
Clark, 1936), 13 vols., p. 184-8.
84
Grudem, ST, p. 502 [edição em português: Wayne Grudem, Teologia sistemática (São Paulo: Vida
Nova, 2011)].
85
CCC 1692.
86
Breve Catecismo de Westminster, pergunta 1.
87
Cf. Salmos 86; Isaías 60.21; 1Coríntios 6.20; 10.31; Apocalipse 4.11.
88
CCC 1886; citação do papa João Paulo II, Centesimus annus (1 de maio de 1991), 36.2, disponível
em: http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/encyclicals/documents/hf_jp-
ii_enc_01051991_centesimus-annus_en.html.
89
CCC 1888 (grifo removido).
90
CCC 1897.
91
CCC 1906; citação do Concílio Vaticano II, Gaudium et spes 26.1; cf. 74.1.
92
CCC 1928.
93
CCC 1931; citação do Concílio Vaticano II, Gaudium et spes 27.1.
94
CCC 1938.
95
CCC 1939-1942.
96
CCC 1847; citação de Augustine, Sermon 169, in: Rotelle, org., Works of Saint Augustine, terceira
parte: Sermons, vol. 5: Sermons 148–183, p. 231.
12
A VIDA EM CRISTO
(terceira parte, seção 1, capítulo 3)
Salvação; lei; graça e justificação; mérito; a igreja, mãe e
educadora

A salvação de Deus: lei e graça (seção 1, capítulo 3)


Depois de tratar da vida em Cristo como vida no Espírito Santo (seção 1,
capítulo 1), e tendo discutido as dimensões coletivas da comunidade humana e
da solidariedade humana (seção 1, capítulo 2), o Catechism of the Catholic
Church se volta agora para a apresentação da salvação do ser humano,
1

“chamado à bem-aventurança, porém ferido pelo pecado” e, portanto,


necessitado de salvação (seção 1, capítulo 3). De modo concreto, essa ajuda
2

redentora que Deus oferece em Cristo vem por meio da lei que guia o ser
humano e da graça que o sustenta, conforme assinalado em Filipenses 2.12,13.
A lei moral (seção 1, capítulo 3, artigo 1)
Em sua sabedoria, Deus deu a lei moral ao homem para sua salvação. “Ela
prescreve ao homem os caminhos, as regras de procedimento que o levam à
bem-aventurança prometida e lhe proíbe os caminhos do mal, que desviam de
Deus e do seu amor.” A lei tem quatro expressões inter-relacionadas: “lei eterna
3

— a fonte, em Deus, de toda a lei; lei natural; lei revelada, que compreende a lei
antiga e a nova lei, ou lei do evangelho; por fim, a lei civil e a eclesiástica”.
4

Em relação ao primeiro tipo de lei, o Catechism não desenvolve a ideia da lei


eterna, mas ela parece corresponder ao caráter eterno de justiça de Deus. Como
ele é perfeitamente justo em si mesmo, Deus é a fonte da lei natural, e a lei
revelada, reflexo da lei eterna.
Quanto ao segundo tipo, “a lei natural exprime o sentido moral original que
permite ao homem discernir, pela razão, o bem e o mal, a verdade e a mentira”. 5

Ela é universal, foi inscrita na consciência humana por Deus, expressa nos Dez
Mandamentos, firmada pela razão, é supracultural (i.e., aplicável a todas as
pessoas em todos os tempos e lugares), imutável e permanente, fundacional para
a construção humana das regras morais para a edificação da comunidade humana
e base da lei civil. Dada a presente condição de pecaminosidade do homem, “os
preceitos da lei natural não são percebidos por todos de maneira clara e
imediata”. Pelo contrário, a humanidade pecaminosa “precisa da graça e da
6

revelação, de modo que as verdades morais e religiosas sejam conhecidas ‘de


todos com facilidade, com firme certeza e sem mistura com o erro’”. Dada a sua 7

importância, então, a lei natural, conforme planejada e forjada por Deus,


proporciona um fundamento para a lei e a graça reveladas.
O terceiro tipo de lei, a lei revelada, consiste em dois estágios: o da antiga lei
e o da nova lei. A antiga lei, ou Lei de Moisés, foi divinamente revelada ao povo
de Israel e “expressa muitas verdades naturalmente acessíveis à razão”, porém
recontextualizadas no âmbito da obra divina de salvação. Ela está resumida nos
8

Dez Mandamentos, ou Decálogo, que é “luz oferecida à consciência” de todo ser


humano para que conheça o chamado e os caminhos de Deus e possa se proteger
do mal. Embora em si mesma e por si mesma a antiga lei seja “santa, espiritual e
9

boa” (Rm 7.12,14,16), ela é imperfeita. De modo concreto, embora funcione


como tutora (Gl 3.24) mostrando “o que deve ser feito”, ela “não dá por si
mesma a força, a graça do Espírito, para que seja cumprida”. Como não pode
10

remover o pecado humano, “continua a ser uma lei de escravidão”. De fato, seu
11

propósito especial consiste em “denunciar e revelar o pecado, que constitui ‘uma


lei da concupiscência’ (Rm 7) no coração humano”. Ao mesmo tempo, “a lei
12

continua a ser o primeiro estágio na jornada em direção ao reino. Ela prepara e


dispõe o povo escolhido e cada cristão para a conversão e a fé no Deus
Salvador”. Em outras palavras, ela é “uma preparação para o evangelho”,
13

profetizando e prognosticando a obra de salvação do pecado realizada por


Cristo. Por fim, a antiga lei é completada pelo restante do Antigo Testamento,
14

que consiste nos Escritos e nos Profetas.


O segundo estágio da lei revelada é chamado de nova lei, ou lei do evangelho.
Trata-se da “perfeição aqui na terra da lei divina, natural e revelada” e, como 15

obra de Cristo, se exprime especialmente em seu Sermão da Montanha.


Profetizada no Antigo Testamento (e.g., Jr 31.31-34; citado em Hb 8.8-12), essa
lei da nova aliança “se torna a lei interior de caridade” pela obra do Espírito
Santo; de fato, é “a graça do Espírito Santo dada ao fiel”. Além disso, “ela usa
16 17

o Sermão da Montanha para nos ensinar o que se deve fazer e usa os


sacramentos para nos dar graça para fazê-lo”. Conforme disse Jesus, seu sermão
18

não abole ou desvaloriza as prescrições morais da antiga lei. Pelo contrário, a


nova lei cumpre os mandamentos da antiga lei (Mt 5.17-19); de modo concreto,
ela “tira deles as virtualidades ocultas, fazendo surgir novas exigências”, as19

quais não constituem preceitos externos adicionais, e sim preceitos que


reformam o coração humano para a realização do bem e da formação da fé,
esperança e amor. Além disso, a nova lei “pratica os atos da religião: a esmola, a
oração, o jejum, ordenando-os para ‘o Pai que vê no segredo’, ao contrário do
desejo ‘de ser visto pelos homens’ [Mt 6.1-6,16-18]. A sua oração é o Pai-Nosso
[Mt 6.9-13; Lc 11.2-4]”. Além disso, essa lei exige uma escolha entre “os dois
20

caminhos” — entrada pela porta estreita, e não pela porta larga; construção da
casa sobre a rocha, e não sobre a areia (Mt 7.13,14,21-27) — e requer obediência
a suas palavras conforme resumido pela Regra de Ouro (Mt 7.12; cf. Lc 6.31).
Além disso, a lei inteira está resumida no novo mandamento de Jesus: “amar uns
aos outros como ele nos amou” (Jo 15.12; 13.34).
Além do Sermão da Montanha, acrescenta-se “a catequese moral dos ensinos
apostólicos, tais como Romanos 12—15, 1Coríntios 12 e 13, Colossenses 3 e 4,
Efésios 4 e 5 etc”. Esses elementos a mais da nova lei se detêm sobretudo “nas
21

virtudes que fluem da fé em Cristo e são animados pela caridade, os dons


principais do Espírito Santo”. Eles formam também, como era de esperar, uma
22

consciência do fiel à luz da sua relação com Cristo e com a igreja. Fazem parte
também da nova lei os conselhos evangélicos: castidade, pobreza e obediência.
Esses conselhos se referem aos preceitos da lei no tocante à caridade: “Os
preceitos destinam-se a afastar tudo o que é incompatível com a caridade. Os
conselhos têm por fim afastar o que, mesmo sem lhe ser contrário, pode
constituir impedimento à expansão da caridade”. Os três conselhos chamam a
23

atenção de modo concreto para “caminhos mais diretos, meios mais adequados”
de amar a Deus e ao próximo, e cabe ao fiel obedecer aos conselhos apropriados
à sua vocação, posição na vida, oportunidade, força etc.24

Por fim, essa nova lei atende por nomes diversos. É a lei do amor, porque a
obediência a ela não vem do temor, mas do amor do Espírito Santo que é
infundido no fiel. É chamada de lei da graça, porque confere graça para
obedecer, pela fé e pelos sacramentos. É conhecida como lei da liberdade,
porque liberta o fiel das “observâncias rituais e jurídicas da antiga lei”,
inclinando-o a agir de forma espontânea pelo amor, e, no lugar de uma relação
de senhor e servo, promove uma relação entre amigos com Cristo ao elevar o fiel
à condição de filho de Deus, e até mesmo coerdeiro com Cristo. 25

Por último, o quarto tipo de lei se refere à lei civil e à eclesiástica, contudo
essa categoria jurídica não é mais extensamente desenvolvida.
Graça e justificação; mérito (seção 1, capítulo 3, artigo 2)
Além da ajuda conferida pela lei de Deus, a obra da salvação que Deus
providencia para o ser humano pecador requer também graça e justificação.
Antes de definir esses dois termos, o Catechism afirma que a graça do Espírito
Santo opera com poder para justificar as pessoas. Essa obra divina está associada
com a purificação de pecados e a comunicação da “‘justiça de Deus pela fé em
Jesus Cristo’ [Rm 3.22] e pelo batismo”, conforme exposto pelo apóstolo Paulo
26

em Romanos 6.1-11. Consequentemente, o fiel participa da morte de Cristo —


ele morre para o pecado — e de sua ressurreição — ele nasce novamente para
uma vida nova. De fato, o fiel se torna membro do corpo de Cristo (1Co 12),
ramo enxertado na vinha (Jo 15.1-4) e participante da natureza divina (2Pe
1.3,4). A conversão precede a justificação: “A primeira obra da graça do Espírito
Santo é a conversão, que produz a justificação”; a base bíblica para isso é a
27

proclamação de Jesus: “Arrependei-vos, porque o reino do céu está próximo”


(Mt 4.17). “Movido pela graça, o homem se volta para Deus e se afasta do
pecado, aceitando desse modo o perdão e a justiça que vêm do alto”. Com essa
28

apresentação como contexto, o Catechism repete a definição de justificação do


Concílio de Trento: “A justificação não é apenas a remissão de pecados, mas
também a santificação e a renovação do homem interior”. O Catechism 29

acrescenta: “a justificação é ao mesmo tempo a aceitação da justiça de Deus


pela fé em Jesus Cristo”, em que se define justiça como “retidão do amor
divino”. 30

O fruto da justificação “afasta o homem do pecado [...] e purifica seu coração


do pecado [...] reconcilia o homem com Deus, liberta da escravidão ao pecado e
cura”. Além disso, com a justificação, são difundidas no nosso coração a fé, a
31

esperança e a caridade, “e é-nos concedida a obediência à vontade divina”. 32

Além disso, a justificação “conforma-nos com a justiça de Deus, que nos torna
interiormente justos pelo poder da sua misericórdia”. O fundamento da
33

justificação é o sacrifício expiatório de Jesus Cristo; pelos seus méritos ele


justifica o fiel. A apropriação da justificação se dá pela fé e pelo batismo: “A
justificação é conferida no batismo, o sacramento da fé”. O propósito da
34

justificação é duplo: a glória de Deus e o dom da vida eterna (Rm 3.21-26).


O Catechism explica que a justificação cria uma relação de cooperação entre a
graça e a liberdade humana. Em relação ao elemento humano nessa cooperação,
“a justificação estabelece a colaboração entre a graça de Deus e a liberdade do
homem. Do lado do homem, exprime-se no assentimento da fé à Palavra de
Deus que convida à conversão, e na cooperação da caridade com o impulso do
Espírito Santo que se lhe adianta e o guarda”. Esse último, que inicia e sustenta
35

a obra da graça do Espírito, é o elemento divino da cooperação. Citando o


Concílio de Trento, o Catechism afirma: “Quando Deus move o coração do
homem pela iluminação do Espírito Santo, o homem não fica sem fazer nada ao
receber essa inspiração, que, aliás, pode rejeitar; no entanto, também não pode,
sem a graça de Deus, caminhar, por sua livre vontade, para a justiça na sua
presença”. É evidente que essa obra de justificação é maravilhosa, “obra mais
36

excelente do amor de Deus”. Ao recorrer uma vez mais ao apóstolo Paulo (Rm
37

6.19,22), o Catechism novamente associa justificação, regeneração e


santificação: “O Espírito Santo é o mestre interior. Fazendo nascer o ‘homem
interior’, a justificação implica a santificação de todo o ser”.
38

Depois de definir e discutir a obra da justificação, o Catechism oferece em


seguida sua apresentação da graça, que está intimamente associada à
justificação; de fato, “a justificação provém da graça de Deus”. A graça é
39

definida como “favor, o socorro gratuito que Deus nos dá, a fim de
respondermos ao seu chamamento para nos tornarmos filhos de Deus, filhos
adotivos participantes da natureza divina e da vida eterna”. O fruto da graça é a
40

participação na vida do Deus trino e na vocação sobrenatural para a vida eterna.


Tal graça se inicia com o sacramento do batismo, porém a graça em si “é dom
gratuito que Deus nos faz da sua vida, infundida pelo Espírito Santo na nossa
alma para curá-la do pecado e a santificar”. 41

A graça vem de maneiras diversas: a graça santificadora (também chamada


de graça divinizadora) é recebida pelo batismo; trata-se de uma “graça habitual,
de uma disposição estável e sobrenatural que aperfeiçoa a alma e a capacita a
viver com Deus, a agir por seu amor”. Tal graça habitual, “a disposição
42

permanente de viver e agir em sintonia com o chamamento de Deus”, deve ser


43

diferenciada das graças reais, atos específicos da intervenção divina no início ou


durante o desenvolvimento da sua obra de santificação. A graça preparatória
(com frequência chamada, na teologia evangélica, de graça preveniente) vai
adiante do ser humano pecador e o prepara para o recebimento da graça divina. 44

Além disso, essa iniciativa divina “exige a livre resposta do homem” para que
possa conhecer e amar a Deus; “só livremente [uma pessoa] entra na comunhão
de amor”. Graças sacramentais são aquelas cujos “dons são próprios aos
45

diferentes sacramentos”; por exemplo, a graça do sacramento da penitência


46

absolve o penitente de seu pecado mortal confessado. As graças especiais


(carismas) são dons como milagres e o falar em línguas “voltados para a graça
santificadora e visam ao bem comum da Igreja”. A graça da perseverança final
47

é a obra divina por meio da qual Deus sustenta e reveste de poder o fiel até o
fim, ocasião em que o recompensa “pelas boas obras realizadas com sua graça
em comunhão com Jesus”. 48

O Catechism conclui seu tratamento da graça assinalando dois pontos


importantes: por seu caráter sobrenatural, “a graça escapa da nossa experiência e
não pode ser conhecida, senão pela fé”. Portanto, o fiel não deve confiar em
49
seus sentimentos e em suas boas obras para ganhar a certeza da salvação. Ao
mesmo tempo, conforme a afirmação de Cristo — “Pelos frutos os conhecereis”
(Mt 7.20) —, “a consideração dos benefícios de Deus na nossa vida e na vida
dos santos oferece-nos uma garantia de que a graça de Deus opera em nós e nos
incita a uma fé cada vez maior e a uma atitude de pobreza confiante”. 50

Depois de lidar com a relação entre justificação, graça e liberdade humana, o


Catechism conclui essa seção com uma discussão sobre o mérito. Começa com
uma afirmação do Missal Romano: “Vós [Deus] sois glorificado na assembleia
dos vossos santos, pois que, ao coroar seus méritos, coroais vossos próprios
dons”. A definição de mérito “designa, em geral, a retribuição devida por uma
51

comunidade ou sociedade à ação de um dos seus membros, experimentada como


um benefício ou um malefício, digna de recompensa ou de castigo”. Por meio
52

da graça santificante, o fiel é capacitado a ganhar méritos e, com isso, a salvação


eterna. No âmago da ideia de mérito há o fato de que “Deus escolheu livremente
associar o homem à obra da sua graça”. A graça divina dá o primeiro passo, e a
53

livre resposta do homem vem a seguir; portanto, há uma cooperação divinamente


planejada entre Deus e o ser humano, “de modo que os méritos das obras devem
ser atribuídos à graça de Deus, primeiro, e depois ao fiel”. Tal mérito não diz
54

respeito de modo algum ao início da salvação, porque essa graça pertence tão
somente à iniciativa divina: “Ninguém pode merecer a graça primeira, que está
na origem da conversão, do perdão e da justificação”. Contudo, o mérito entra
55

em cena quando o fiel, sob a moção do Espírito Santo e do amor, alcança para si
e para outros, por merecimento, “as graças úteis para a santificação e para o
aumento da graça e da caridade, bem como para a obtenção da vida eterna”. 56

Há dois tipos de mérito: méritos de condigno s são méritos reais, ou méritos


de valor, realizados pelo fiel mediante a graça divina. Deus está moralmente
obrigado a recompensar o fiel que é justo com méritos de condignos. Méritos de
côngruos, ou méritos de aptidão, não são, em rigor, méritos; antes, trata-se de
obras humanas reconhecidas como méritos porque, ao praticá-las, o fiel faz o
que está em si fazer. Consideradas em si e por si mesmas, as boas obras não
alcançam nenhum mérito real — mérito de condigno — diante de Deus, porque
o fiel que pratica boas obras se acha em estado de pecado e recebeu tudo —
especialmente graça — de Deus, antes de mais nada. Contudo, enquanto o fiel
fizer o que está dentro de sua capacidade fazer, conforme Deus planejou usar sua
livre vontade para que fizesse o bem, ele será recompensado com mérito de
côngruo. Quando Deus vê as boas obras do fiel que, em outras circunstâncias,
seriam dignas de mérito, ele credita essas obras em sua conta como tais.
A igreja, mãe e educadora (seção 1, capítulo 3, artigo 3)
A obra divina de salvação realizada por meio da lei que guia o fiel, e pela graça
divina que o sustenta, está sempre situada no contexto da igreja, que é a um só
tempo mãe e educadora do fiel. De modo concreto, a igreja dá a seus filhos e
alunos a Palavra de Deus (especialmente a lei de Cristo e os Dez Mandamentos),
a graça dos sacramentos (especialmente o sacrifício da eucaristia), os exemplos
notáveis de santidade de Maria e dos santos, a verdade salvadora e os princípios
morais (o “depósito” do ensino moral cristão) por meio dos quais devem viver a
vida.
Dentro da igreja é especialmente o Magistério o instrutor autêntico da fé em
quem se deve acreditar e a quem se deve obedecer. Esse papel do Magistério
resulta do carisma da infalibilidade, o dom de ensinar sem erro. “Essa
infalibilidade se estende até onde se estende o depósito da revelação divina” —
do qual fazem parte, entre outros, a Escritura em sua forma escrita e a Tradição
da igreja —, mas vai além desse depósito, abrangendo também outras categorias
de ensinos: em primeiro lugar, estende-se “também a todos os elementos de
doutrina, mesmo moral, sem os quais as verdades salvíficas da fé não podem ser
guardadas, expostas e observadas”. Em segundo lugar, estende-se “a preceitos
57

específicos da lei natural, porque sua observância, exigida pelo Criador, é


necessária à salvação”. A igreja, por meio de seu Magistério, é encarregada
58

dessa lei de Deus e deve ensiná-la aos fiéis, que têm tanto o direito de ser
instruídos nela quanto o dever de obedecer-lhe. Embora a consciência do fiel
deva ser livre e não possa ser coagida, ela não é livre para seguir “considerações
individualistas em seus juízos morais dos atos da pessoa” e “não deve ser posta
em oposição à lei moral ou ao Magistério da Igreja”. Um católico, por exemplo,
59

não pode adotar uma posição favorável ao aborto; na verdade, até mesmo sua
afirmação de que está seguindo sua consciência ao defender o aborto mostra uma
consciência malformada e deve ser rejeitada.
Além de todos esses ensinamentos, a igreja oferece também seus preceitos aos
fiéis. Essas instruções “são situadas no contexto de uma vida moral vinculada à
vida litúrgica e por ela nutrida”. Há cinco preceitos, conforme se seguem: (1)
60

“ouvir missa inteira aos domingos e nos dias santos de guarda”; (2) “confessar
os pecados pelo menos uma vez por ano”; (3) “comungar ao menos pela Páscoa
da Ressurreição”; (4) “guardar os dias determinados pela Igreja”; (5) “guardar os
dias de jejum e abstinência conforme prescritos”. Há outro preceito segundo o
qual é dever do fiel contribuir com o sustento financeiro da igreja.
61

Se o fiel for obediente, legitimará com isso a mensagem de salvação,


contribuirá com o progresso da missão da igreja no mundo, promoverá sua
edificação e apressará a vinda do reino de Deus.
Avaliação evangélica
Na discussão anterior sobre a vida em Cristo, o Catechism citou Agostinho
endossando suas palavras: “Deus, que nos criou sem nós, não quis salvar-nos
sem nós”. Esse esforço sinergético de cooperação humana e divina ganha
62

destaque na discussão da doutrina da salvação pelo Catechism, e por esse motivo


a teologia evangélica tem críticas contundentes à teologia católica nos tópicos
que se seguem.
Em primeiro lugar, “monergismo” é um termo usado em discussões sobre a
63

salvação para se referir a uma fonte única que opera a redenção; isto é, Deus é o
único agente que opera o resgate do ser humano decaído. Já o termo
“sinergismo” se refere a duas (ou mais) fontes que operam juntas na salvação;
64

isto é, Deus e o ser humano caído, juntos, operam o resgate deste último. A
teologia evangélica, seguindo os princípios fundamentais da Reforma
protestante, subscreve a salvação monergista, ao passo que a teologia católica
defende a salvação sinergista. Essa comparação e a crítica implícita ao
sinergismo não menosprezam a insistência da teologia católica de que a salvação
é obra da graça de Deus, tampouco discordam dela; o Catechism está repleto de
discussões sobre a graça divina como fundamento da salvação. Pelo contrário, a
crítica que se faz diz respeito à aplicação da salvação e à ideia de que Deus
planejou a salvação para que nela fosse incluída a participação do fiel, seu
revestimento de poder, para que merecesse a vida eterna. No âmago de tal
sinergismo se nota a presença da interdependência natureza-graça: a natureza —
nesse caso, o ser humano caído — tem uma capacidade para a graça, que opera
na natureza a fim de elevá-la e aperfeiçoá-la; ocorre então uma participação
colaborativa. A crítica a tal axioma já foi feita (cap. 1). Consequentemente, ao
iniciarmos aqui a crítica evangélica à perspectiva católica da salvação, é
importante frisar que os dois lados têm visões antagônicas a respeito desse
assunto.
Lei
Antes, porém, de nos aprofundarmos na discussão do monergismo e do
sinergismo, começaremos esta avaliação com o ponto de partida da teologia
católica, que é a apresentação da lei moral como meio ordenado por Deus pelo
qual ele proporciona auxílio para a redenção do ser humano caído. Sem entrar
nos detalhes dos quatro tipos de lei que constituem a lei moral, é o conceito de
lei como auxílio divinamente concedido para a salvação que é objeto de
contestação pela teologia evangélica. Sabendo que a teologia evangélica
compreende um amplo espectro de perspectivas acerca da lei, o resumo a seguir
pode ser considerado uma versão bastante típica (todos os pontos seguintes
dizem respeito, especialmente, à antiga lei da aliança, ou Lei de Moisés, que a
teologia católica também chama de antiga lei). 65

Oriunda de Deus, a lei é santa, justa e boa (Rm 7.12). Ela revela quem Deus é,
articula aquilo de que seu povo tem necessidade para ser justo diante dele e
promete bênçãos para quem obedece e ameaça com maldições os desobedientes.
De modo concreto, à medida que estabelece as exigências divinas, ela demanda
perfeição, conforme disse Moisés insistentemente ao povo: “Ouve e guarda
todas estas palavras que te ordeno, para que vivas bem para sempre, tu e teus
filhos depois de ti, por fazer o que é bom e correto aos olhos do S , teu Deus” ENHOR

(Dt 12.28, grifo do autor). Essa exigência de perfeição está em sintonia com a
santidade perfeita do Deus que deu a lei (“Sede santos, porque eu sou santo”; Lv
11.44; 1Pe 1.16) e se reflete em toda a extensão da lei, que regulava toda a vida
do povo de Deus. É importante frisar que a lei “exige obediência, mas falta a ela
o poder para produzir essa obediência, embora jamais fosse seu propósito ser a
fonte de tal obediência”; antes, “pela lei vem o conhecimento do pecado” (Rm
66

3.20). Além disso, “a lei veio para que a transgressão se ressaltasse” (5.20). O
impacto concreto da lei foi tornar o povo de Israel pior do que era; por exemplo,
imediatamente depois de receber os Dez Mandamentos, ele forjou o bezerro de
ouro e mergulhou numa horrenda idolatria (Êx 32). Como a lei mostrou o que
era de fato o pecado — portanto, ninguém pode fingir ignorância —, a lei traz
consigo a ira divina (Rm 4.15) e a morte (7.24), o exato oposto da bênção e da
vida. Consequentemente, a lei — e as obras a ela associadas — não pode
promover a justificação, conforme assinala Paulo:
Porque ninguém será justificado diante dele pelas obras da lei; pois pela lei vem o pleno
conhecimento do pecado. Mas agora a justiça de Deus se manifestou, sem a lei, atestada pela Lei e
pelos Profetas; isto é, a justiça de Deus por meio da fé em Jesus Cristo para todos os que creem; pois
não há distinção (Rm 3.20-22).

Sabemos, contudo, que o homem não é justificado pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo.
Nós também temos crido em Cristo Jesus, para sermos justificados pela fé em Cristo, e não pelas
obras da lei, pois ninguém será justificado pelas obras da lei (Gl 2.16).

Consequentemente, “Paulo não condena ninguém por ter em alta conta a lei; ele
condena as pessoas por tentarem usar a lei para alicerçar sua justiça própria”. 67

A discussão de Paulo sobre a lei da antiga aliança e sua incapacidade de


produzir a justificação é parte de uma história mais ampla que o apóstolo conta.
Em primeiro lugar, “a lei distinguia Israel, separando-o de todas as nações na
terra, ao definir sua identidade e chamar a atenção para a grandeza do seu
Deus”. Em outras palavras, a Lei de Moisés não era uma lei genérica escrita
68

para a raça humana, e sim uma lei direcionada especificamente ao povo de Israel
(e.g., Dt 4.8). Em segundo lugar, “a comunicação da lei é um ato de graça
conferido a Israel porque se acha inserido no contexto de redenção do Egito e
funciona como uma resposta da parte de Israel à sua relação de aliança com
Deus”. Em outros termos, a lei da antiga aliança não criou uma relação entre
69

Deus e seu povo; essa aliança já havia sido firmada com Abraão e as promessas
de Deus feitas a ele (e.g., Gn 15). “A lei, portanto, não foi dada como uma forma
de encontrar Deus; ela foi dada depois que Deus proveu um meio para que Israel
saísse da escravidão do Egito e se tornasse seu povo.” 70

Embora direcionada rigorosamente ao povo de Israel, a Lei de Moisés — mais


precisamente a incapacidade do povo de obedecer a ela — repercutiu no mundo
de modo geral: “E então? Somos [nós, judeus] superiores a eles? De modo
nenhum, pois já demonstramos que tanto judeus como gregos estão todos
debaixo do pecado; como está escrito: ‘Não há justo, nem um sequer. Não há
quem entenda; não há quem busque a Deus. Todos se desviaram; juntos se
tornaram inúteis. Não há quem faça o bem, nem um sequer’” (Rm 3.9-12). Paulo
argumenta do específico para o geral e diz que a “a lei é a principal prova que
atesta, para além de qualquer dúvida, que o conflito de Deus com [toda] a
humanidade é justo [...]. Se aqueles que vivem debaixo da lei se mostram
incapazes e relutantes em guardar a lei, que esperança haverá para os que se
acham fora dela?”. Em nenhuma circunstância poderá o ser humano, seja ele
71

quem for, ser justificado porque guarda a lei, quer seja a Lei de Moisés, quer
outro código qualquer.
Portanto, se é impossível firmar a justiça com base na lei, sobre que base
poderá ela ser firmada? A Escritura aponta para Jesus Cristo, o Justo, e para a fé
nele, fundamento e meio de apropriação da justiça divina. Em sua forma
seminal, esse direcionamento começa com Abraão, que “creu no S ; e o S ENHOR ENHOR

atribuiu-lhe isso como justiça” (Gn 15.6). Ao comentar a fé de Abraão, Paulo


explica:
Porque não foi pela lei que Abraão, ou sua descendência, recebeu a promessa de que ele havia de ser
herdeiro do mundo; ao contrário, foi pela justiça da fé. Pois, se os que vivem pela lei são herdeiros,
esvazia-se a fé, e anula-se a promessa. Porque a lei produz a ira; mas onde não há lei também não há
transgressão. Por essa razão, a promessa procede da fé, para que seja segundo a graça, a fim de que a
promessa seja confirmada a toda a descendência, não somente aos que são da lei, mas também aos
que são da fé que Abraão teve. Ele é pai de todos nós (Rm 4.13-16, grifo do autor).

Muito antes de ser dada a lei, Abraão creu em Deus e em sua promessa de uma
prole incontável no futuro. Se a justiça pudesse provir da lei — o que não é
possível, porque a lei suscita a ira —, disso se segue que os beneficiários de uma
relação com Deus estariam limitados ao povo de Israel, que recebeu a lei.
Contudo, a justiça não vem desse modo; pelo contrário, como ela repousa sobre
o fundamento da graça divina, a justiça se dá a todos os que, como Abraão, têm
fé.
Essa provisão de graça foi profetizada no Antigo Testamento (Rm 3.21).
Pouco antes de encerrada a redação do Pentateuco, Moisés previu a falha abjeta
de Israel incapaz de obedecer à Lei. Ele ofereceu então a seguinte esperança: “O
S , teu Deus, circuncidará o teu coração, e o coração da tua descendência, a
ENHOR

fim de que ames o S , teu Deus, de todo o teu coração e com toda a alma, para
ENHOR

que vivas” (Dt 30.6). Com essa profecia, “Moisés evidencia o fato de que não se
trata apenas de um problema da lei, mas de um problema do coração. A lei
apresenta os padrões de justiça de Deus e mostra o que é preciso para se chegar à
justiça, mas o problema é que a lei não proporciona aquilo que é necessário para
guardá-la — um novo coração”. Essa esperança de transformação repercutiu na
72

profecia de Jeremias sobre uma nova aliança em que a lei seria escrita no
coração das pessoas e Deus perdoaria completamente seus pecados (Jr 31.31-
34), e na profecia de Ezequiel segundo a qual Deus purificaria seus pecados,
daria a eles um novo coração e colocaria neles seu Espírito (Ez 36.25-27).
A esperança do Antigo Testamento apontava para Jesus Cristo e sua obra de
salvação como fundamento da justiça, que seria apropriada pela fé. Depois da
sua profecia sobre a circuncisão do coração (Dt 30.6), Moisés volta à
apresentação da lei dizendo que “não é difícil demais, nem está fora do teu
alcance [...]. A palavra está muito perto de ti, na tua boca e no teu coração, para
que a cumpras” (Dt 30.11,14). De acordo com Paulo, a palavra de Moisés é o
evangelho, “a palavra de fé” que é proclamada e que proporciona não “a justiça
proveniente da lei”, mas “a justiça que vem da fé [...]. Porque, se com a tua boca
confessares Jesus como Senhor, e em teu coração creres que Deus o ressuscitou
dentre os mortos, serás salvo” (Rm 10.5-9). Portanto, pode-se dizer que a lei
apontava para Jesus Cristo, e para a fé nele, para obtenção da justiça perante
Deus.
A maior parte do povo judeu, tragicamente, errou o alvo, e Paulo lamenta a
sorte deles: “Pois, não reconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer
a sua própria, não se sujeitaram à justiça de Deus. Pois Cristo é o fim da lei para
a justificação de todo aquele que crê” (Rm 10.3,4). Acabou-se, portanto, a época
da lei. Como a antiga aliança se tornou obsoleta e foi substituída por uma nova
aliança — a forma pela qual Deus agora se relaciona com seu povo, a igreja —,
assim também a lei da antiga aliança chegou naturalmente ao seu fim. “A lei não
é da fé”, explica Paulo; é, antes, uma maldição sobre todo aquele que não guarda
a lei em todas as suas partes. Contudo, prossegue Paulo: “Cristo nos resgatou da
maldição da lei, tornando-se maldição em nosso favor, pois está escrito: ‘Maldito
todo aquele que for pendurado em um madeiro’” (Gl 3.13). Com sua morte na
cruz, Jesus resgata as pessoas das exigências da lei e do desespero da antiga e
fracassada aliança. A era anterior chegou ao fim; Cristo ocupa seu lugar: “Mas,
antes que viesse a fé, éramos mantidos debaixo da lei, nela confinados para a fé
que haveria de ser revelada. Desse modo, a lei se tornou nosso guia para nos
conduzir a Cristo, a fim de que pela fé fôssemos justificados. Mas, tendo
chegado a fé, já não estamos sujeitos a esse guia. Pois todos sois filhos de Deus
pela fé em Cristo Jesus” (v. 23-26). A fé em Cristo e a justiça de Deus que é
apropriada pela fé, sempre foi o objetivo da lei. Agora que veio a fé em Cristo, a
lei que era como um guardião não tem mais papel algum a desempenhar. A fé é
essencial à igreja, o que ecoa alegremente a afirmação de Paulo: “Pois, pela lei,
eu morri para a lei, a fim de viver para Deus. Já estou crucificado com Cristo.
Portanto, não sou mais eu quem vive, mas é Cristo quem vive em mim. E essa
vida que vivo agora no corpo, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se
entregou por mim” (2.19,20). É a vida da fé, e não a vida da lei, que a igreja vive
agora.
Com esse arcabouço de uma teologia evangélica da lei, podemos expor aqui
os principais pontos de discórdia em relação à teologia católica e sua
apresentação da salvação. Em primeiro lugar, a ideia de lei como ajuda divina
que conduz à bem-aventurança prometida está equivocada. Nada na discussão
acima nem sequer se aproxima dessa ideia. Isso se aplica, primeiramente, à lei
natural, cujo desenvolvimento pela teologia católica vai muito além da menção
limitada que a Escritura faz a seu respeito. Ainda que, numa concessão nossa,
aceitemos, por amor à argumentação, essa ideia elevada de lei natural, é limitada
demais a proposição da teologia católica de que a pecaminosidade do homem
cria um problema para a percepção clara e imediata dos princípios da lei natural
— com a consequência de que a humanidade pecadora necessita da graça e da
revelação para vencer sua miopia. O problema da humanidade pecadora não é
apenas de ordem epistemológica. Trata-se, antes, de um drama moral — e que
resulta na avaliação de Paulo de que “todos os que sem lei pecaram, sem lei
também perecerão” (Rm 2.12). Os que não têm a Lei de Moisés ainda têm a lei
“escrita em seu coração” — a lei natural, ou “consciência” (v. 14,15) —, mas são
incapazes de guardá-la e, portanto, perecerão. Consequentemente, a lei natural
não proporciona um fundamento para a lei revelada e para a graça; antes, a
desobediência pecaminosa da humanidade aos preceitos da lei natural cria a
necessidade da revelação divina e da graça.
Em segundo lugar, é errônea a ideia da antiga lei como ajuda divina que leva à
bem-aventurança prometida de toda a humanidade. Nunca foi intenção da lei
atender um público geral; pelo contrário, ela foi dada como presente da graça
divina às pessoas a quem Deus havia tirado da escravidão no Egito, e seu
propósito era distinguir Israel do restante das nações (Dt 4.8). Além disso, sua
função de tutora não era apenas a de mostrar “o que deveria ser feito”, como se
73

esse fosse um papel positivo que ela tivesse de desempenhar. Pelo contrário,
como guardiã, a antiga lei, que operava “antes da vinda da fé”, mantinha as
pessoas cativas, “nela confinadas para a fé que haveria de ser revelada” em Jesus
Cristo e por meio dele, que satisfaria seu povo por meio da fé (Gl 3.23-26). Com
a fé em seu lugar, o guardião fica desalojado; ele deixa de ter função para a
igreja. Na verdade, a teologia católica destaca alguns pontos muito bons em
relação a essa lei: ela é santa e boa em si e por si mesma, ainda que imperfeita;
ela não proporciona em si mesma os recursos necessários para seu cumprimento.
Não retira o pecado humano; antes, ela o expõe. Contudo, quando a teologia
católica faz da lei “o primeiro passo em direção ao reino”, uma preparação para a
conversão e a fé, fica faltando a base bíblica. São os seguintes os principais
74

pontos negligenciados pela teologia católica: a lei exigia perfeição, em vez de


fazer meramente o que estava na capacidade de fazer da pessoa; ela piorava a
situação do povo de Israel, em vez de melhorá-la; por causa do pecado humano,
a lei resultava em ira e morte, exatamente o oposto da bênção e da vida; a lei, e
obras associadas a ela, não pode tornar ninguém justo perante Deus; e a
justificação está alicerçada na graça de Deus e é apropriada somente pela fé sem
qualquer mistura de guarda da lei ou boas obras feitas em obediência à lei.
Trataremos novamente desses pontos quando discutirmos mais adiante a
justificação.
Em terceiro lugar, a ideia de uma nova lei, a lei do evangelho, como ajuda
divina que conduz à bem-aventurança prometida também é incorreta. Tomando
por base a instituição da antiga lei como dom gratuito de Deus ao seu povo que
já havia sido liberto da escravidão e já se relacionava com Deus por meio da
antiga aliança, para a teologia evangélica a instituição de uma nova lei, a lei de
Cristo (Gl 6.2), como dom gratuito para benefício dos cristãos que já são
justificados não pela lei (de qualquer tipo), mas pela fé em Cristo, e que já se
acham na relação da nova aliança com Deus. Portanto, a obediência à nova lei
como requisito de acesso ao povo de Deus da nova aliança, a igreja, deve ser
rejeitada; antes, a nova lei se torna o estilo de vida dos discípulos cristãos que
foram salvos pela graça de Deus por meio da fé.
Ainda soa nos ouvidos da teologia evangélica a convocação de Martinho
Lutero para que se distinga entre lei e evangelho. A distinção que ele fazia não
75

era entre o Antigo Testamento (lei) e o Novo Testamento (evangelho). Pelo


contrário, lei é qualquer coisa na Escritura que expressa as exigências de Deus
enfatizando ao mesmo tempo a incapacidade dos seres humanos pecaminosos de
viver de acordo com esses padrões (e.g., o mandamento de Jesus para que
fôssemos perfeitos como Deus é perfeito; Mt 5.48). Contrariamente a isso,
evangelho é qualquer coisa na Escritura que expressa as promessas de Deus ao
enfatizar que Jesus satisfez todas as suas exigências. O evangelho, portanto, traz
a graça para resgate dos pecadores despertos pela lei para sua necessidade. A
teologia evangélica, seguindo a trajetória de Lutero, discorda profundamente da
perspectiva da teologia católica no que diz respeito à nova lei (e, a propósito,
também à antiga lei). Não existe nenhuma lei do evangelho, uma vez que são
coisas mutuamente excludentes. A lei (de qualquer tipo) prepara o caminho ao
expor e suscitar o pecado, levando o pecador ao desespero, e desse pesadelo
infernal a única esperança de escape é o evangelho de Cristo pelo qual a graça
divina, que se acolhe pela fé, se torna conhecida e é recebida.
Ainda que não se oponha à atenção que a teologia católica dá ao Sermão da
Montanha, a teologia evangélica prefere abordar o assunto do conteúdo da lei de
Cristo de outra maneira. Em primeiro lugar, ela se preocuparia em analisar de
que modo Jesus e os apóstolos lidam com as leis do Antigo Testamento.
Consequentemente, fariam parte da lei de Cristo aquelas leis do Antigo
Testamento que entraram intactas na nova aliança (e.g., os Dez Mandamentos;
Rm 13.9; Tg 2.11) e leis do Antigo Testamento que foram modificadas para
76

observância dos novos membros da aliança (e.g., os mandamentos “cumpridos”


referentes ao homicídio, adultério etc.; Mt 5.17-48). A lei de Cristo não incluiria
77

nenhuma das leis que ele e os apóstolos ab-rogaram (e.g., as leis sacrificais e as
leis alimentares; Mc 7.19; 1Tm 4.3,4; Hb 8—10). Certamente, ela incluiria
também as leis reveladas no Novo Testamento, das quais fazem parte o Sermão
da Montanha e os ensinos apostólicos. Como os conselhos evangélicos de
castidade e de pobreza contradizem a Escritura (conforme discutimos
anteriormente), esses não estão incluídos na nova lei. Essa estratégia baseada em
princípios para determinar o conteúdo da nova lei, embora tenha seus problemas,
consegue estabelecer um equilíbrio entre a continuidade absoluta entre o Antigo
e o Novo Testamentos e a descontinuidade absoluta entre ambos.
A teologia evangélica faz uma correção final, ou melhor, requer uma ênfase
maior no que diz respeito à relação do Espírito Santo com a lei. A teologia
católica afirma que a nova lei se torna a lei interna do amor por obra do Espírito,
que também comunica fé e amor, dos quais fluem as virtudes exigidas pela nova
lei. A teologia evangélica, porém, quer ver mais enfatizado o papel do Espírito
em relação à lei, tanto a antiga quanto a nova. O apóstolo Paulo destaca esse
ponto: “Portanto, agora já não há condenação alguma para os que estão em
Cristo Jesus. Porque a lei do Espírito da vida, em Cristo Jesus, te livrou da lei do
pecado e da morte. Pois o que para a lei era impossível, uma vez que se achava
fraca por causa da carne, Deus o fez na carne, condenando o pecado e enviando
o seu próprio Filho em semelhança da carne do pecado e como sacrifício pelo
pecado, para que a justa exigência da lei se cumprisse em nós, que não andamos
segundo a carne, mas segundo o Espírito” (Rm 8.1-4). Paulo expõe o fracasso da
lei — a Lei de Moisés dada ao povo debilitado por sua natureza pecadora —
para libertá-lo da morte e do pecado. Tal salvação, embora impossível para a lei,
foi o que Deus realizou pela morte do seu Filho, o que nos leva ao veredito de
não condenação para todos aqueles unidos a Cristo. Outro componente
importante daquilo que Cristo fez consiste na obediência de seus seguidores à
lei, uma realidade que é concretizada na vida no Espírito. À medida que o fiel
caminha com o Espírito, ele realiza “a justa exigência da lei”, que, de acordo
com a Escritura, se resume aos dois grandes mandamentos sobre amar a Deus e
amar ao próximo. É importante frisar que a obediência não vem da lei, nem da
78

graça conferida pela lei, mas pelo andar no Espírito.


A mesma ideia se repete em outro lugar: “Mas eu afirmo: Andai pelo Espírito
e nunca satisfareis os desejos da carne. Porque a carne luta contra o Espírito, e o
Espírito, contra a carne. Eles se opõem um ao outro, de modo que não conseguis
fazer o que quereis. Mas, se sois guiados pelo Espírito, já não estais debaixo da
lei” (Gl 5.16-18). A relação entre o ser humano pecador e a lei é uma relação de
morte, conforme explicamos acima. Quando as pessoas vivem de acordo com
sua conexão natural pecaminosa com a lei, o que se tem é tão somente acusação,
ira, culpa, escravidão e condenação; a lei se opõe ao indivíduo. Contudo, o
inverso é verdade para quem vive de acordo com o Espírito. Essa pessoa não
está sob o juízo da lei e da condenação; ela não sente seu peso; em vez disso, dá
fruto — “o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, paciência, benignidade,
bondade, fidelidade, amabilidade e domínio próprio” —, e o apóstolo chega a
uma conclusão importante: “Contra essas coisas não existe lei” (v. 22,23).
Portanto, a teologia evangélica requer que se exalte mais a necessidade de
enchimento e direção do Espírito Santo para aqueles que pertencem a Cristo, de
modo que eles, “em conformidade com sua nova natureza”, cumpram como
discípulos as exigências da lei.
Graça e justificação
Se por um lado a teologia evangélica desaprova em grande medida a insistência
com que a teologia católica faz da lei um auxílio divino para a salvação do ser
humano decaído, ela, por outro lado, critica ainda mais a discussão da graça e da
justificação promovida pelo catolicismo. Diferentemente da crítica anterior, que
se debruçou sobre a incapacidade da lei para cooperar com a redenção —
inclusive sobre sua inadequação para o que nela se buscava —, a crítica que
faremos não negará o papel — e até mesmo a necessidade — da graça e da
justificação para a salvação, mas o fará em discordância com a interpretação que
a teologia católica dá a essas duas questões. Como a doutrina da justificação pela
graça de Deus apropriada pela fé foi o princípio material, o conteúdo principal,
da Reforma, a presente seção tratará de uma das áreas que mais profundamente
separam a teologia evangélica da católica.79

De modo geral, a teologia evangélica da justificação e da graça pode ser


resumida desta forma: no que diz respeito à definição, a justificação é um ato
80

forense, ou legal, de Deus em que ele não declara inocente o ser humano
pecador, mas justo. Ele o faz ao atribuir, ou creditar, a justiça perfeita de Jesus
Cristo na sua conta, de tal modo que, embora não seja efetivamente justo, Deus o
vê assim por causa da justiça de Cristo. Por intermédio da sua obediência em
vida e na morte, Cristo cumpriu todas as exigências da lei, e pelo poderoso ato
divino da justificação o homem pecador é creditado com sua justiça e posição
perante Deus como aquele que “vive à altura da vontade divina em sua
plenitude”.81

A graça é definida com frequência como favor imerecido; de fato, o


Catechism a define como “favor, ajuda livre e não merecida que Deus nos dá”. 82

Contudo, conforme diz Vickers, essa definição não é muito correta, porque
“graça em sua conexão com a salvação não é apenas favor imerecido, mas
também favor em que há desmerecimento”. O respaldo bíblico para essa
83

definição leva em conta, entre outras coisas, o argumento de Paulo segundo o


qual os que são “justificados gratuitamente pela sua graça” (Rm 3.24) não são
“[pessoas] moralmente neutras que simplesmente nada fizeram para merecer o
favor de Deus”; antes, elas fazem parte do grupo assim identificado: “todos
84

pecaram e destituídos estão da glória de Deus” (v. 23). Como confirmação,


aqueles que, segundo Paulo, “[eram] insensatos, desobedientes,
desencaminhados, [servindo] a várias paixões e prazeres, [viviam] na maldade e
na inveja, [eram] rancorosos e [odiavam] uns aos outros” foram “justificados
pela graça” (Tt 3.3,7). Aqueles que receberam a graça divina não apenas não a
mereciam, mas, por causa do seu pecado, se acham desamparados em sua pessoa
e em sua obrigação, por isso merecem o oposto do favor. Somente a justificação
pela graça pode resgatá-los.
A natureza forense da justificação pode ser prontamente deduzida da
Escritura. Em primeiro lugar, o termo é encontrado em oposição a “condenação”
(e.g., Dt 25.1; Pv 17.15; Rm 5.16,18); de fato, como seres justificados pela graça
divina, os cristãos podem estar seguros de que “agora já não há condenação
alguma para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8.1). Além disso, Paulo usa uma
linguagem legal quando apresenta um salmo de Davi em apoio à sua
argumentação de que Deus “justifica o ímpio” (Rm 4.5, grifo do autor): “Assim
também Davi fala da bem-aventurança do homem a quem Deus atribui a justiça
sem as obras, dizendo: ‘Bem-aventurados aqueles cujas iniquidades são
perdoadas, cujos pecados são cobertos. Bem-aventurado o homem a quem o
Senhor nunca atribuirá o pecado’” (Rm 4.6-8, grifo do autor). Embora essa
citação do Antigo Testamento (do Sl 32.1,2) afirme que Deus atribua, ou impute,
justiça às pessoas (um segundo aspecto da justificação que discutiremos em
breve), ela também enfatiza que Deus não atribui, ou não imputa pecado
(primeiro aspecto da justificação), isto é, ele perdoa. Deus, em Cristo, não leva
em conta os pecados das pessoas e não os coloca contra elas, o que seria uma
ideia de caráter totalmente legal.
Essa evidência bíblica da natureza legal da justificação serviu para introduzir
dois aspectos da justificação. O primeiro deles é o perdão dos pecados, que é
resultado da morte substitutiva de Cristo na cruz (Rm 3.25; 5.9) e que ganha
destaque na declaração de Deus de que pecadores “não são culpados”! Jeremias
profetizou que o perdão seria um elemento fundamental na nova aliança:
“Porque perdoarei a sua maldade e não me lembrarei mais dos seus pecados” (Jr
31.34). Paulo salienta esse aspecto em sua descrição da obra de Deus em Cristo
“reconciliando consigo mesmo o mundo, não levando em conta as transgressões
dos homens [...]. Daquele que não tinha pecado Deus fez um sacrifício pelo
pecado em nosso favor, para que nele fôssemos feitos justiça de Deus” (2Co
5.19-21). Ao transformar em pecado o Filho de Deus sem pecado, e pela morte
de Cristo pelo pecado, Deus agora não confronta o pecador com seu pecado.
O segundo aspecto é a imputação da justiça de Jesus Cristo. Nossa base
bíblica começa com a afirmação de Paulo: “Portanto, assim como por uma só
transgressão veio o julgamento sobre todos os homens para a condenação, assim
também por um só ato de justiça veio a graça sobre todos os homens para
justificação que produz vida. Porque, assim como pela desobediência de um só
homem muitos foram feitos pecadores, assim também pela obediência de um só
muitos serão feitos justos” (Rm 5.18,19). O paralelo é claro:
De um lado do paralelo estão Adão e sua transgressão/desobediência, o que
mergulhou todos os seres humanos na condenação, já que foram feitos
pecadores. Do outro lado do paralelo estão Cristo e seu ato de justiça, que
comunicam justificação e vida para todos os que o recebem (Rm 5.17), tendo em
vista que serão justificados. Conforme explica Vickers: “Quando Paulo diz que
muitos foram ‘feitos’ pecadores e muitos ‘serão feitos’ justos, ele está falando do
ponto de vista legal. Ele não está enfatizando, pelo menos aqui, ações
pecaminosas ou justas. Ele está se referindo a uma condição, uma posição que as
pessoas ocupam diante de Deus”. O que permite a Vickers afirmar que Paulo
85

está usando uma linguagem legal aqui? “No Novo Testamento, a mesma palavra
traduzida por ‘feito’ em [Romanos] 5.19 é muito comumente usada para designar
o lugar e/ou a posição que uma coisa ou pessoa tem ou para que uma coisa ou
pessoa é designada. Mais raramente a palavra tem o sentido de tornar-se, causar
ser ou fazer, e se refere a algum estado do ser”. Um motivo fundamental para
86

interpretar “feito pecadores” ou “serão feitos justos” com o significado de


“colocado em uma posição ou designado” se encontra em Romanos 5.18, em que
Paulo afirma que “a condição legal que o indivíduo tem diante de Deus tem por
base as ações de outra pessoa. Em relação a Adão, as pessoas pecaram; em
relação a Cristo, elas realizaram tudo o que era necessário para serem
consideradas justas”. Reitero que essa explicação não significa que o termo
87

“justo” não seja usado com frequência para se referir ao “comportamento e/ou
caráter pessoal”. “Quando Paulo, porém, a coloca ao lado de feito, que se refere
88
a ser designado ou colocado em uma posição, justo então não diz respeito ao
comportamento ou ao caráter, mas à nossa posição em relação a Deus. Fomos
feitos para manter a posição daqueles cujos atos e comportamentos são justos
tomando por base a obediência de Cristo.” Consequentemente, Deus declara
89

pecadores “justos” em sentido legal; “o que é comumente reconhecido por meio


de traços de caráter e/ou ações é declarado como algo à parte de quaisquer ações
feitas por aqueles que foram feitos justos [...]. Deus julga aqueles conectados
(pela fé) a Cristo [...] como tendo realizado plenamente todo tipo de justiça
perante seus olhos”. 90

Pode-se ver a confirmação da imputação da justiça de Cristo como segundo


aspecto da justificação no caso de Abraão. Depois de se queixar de que só tinha
a Eliézer por herdeiro, Deus disse a Abraão que seu filho seria o herdeiro,
suscitando com isso a grande nação que Deus havia prometido a Abraão (Gn
12.1-3). “Então o levou para fora e disse: ‘Olha agora para o céu e conta as
estrelas, se é que consegues contá-las’; e acrescentou: ‘Assim será a tua
descendência’. E Abrão creu no S ; e o S
ENHOR ENHOR atribuiu-lhe isso como justiça”
(15.5,6). No momento exato em que Abraão estava prestes a resolver a situação
com as próprias mãos e fazer de Eliézer seu herdeiro, o patriarca preferiu confiar
que Deus cumpriria sua promessa, e Deus considera a fé de Abraão como
justiça. “A condição ou descrição comumente reservada para ações é atribuída
aqui a Abraão tendo por base a fé. A fé de Abraão lhe é atribuída como algo que
inerentemente não é, isto é, justiça [...]. Quando posta lado a lado com atribuído
e fé, a justiça aqui se refere a um juízo e a uma declaração sobre a posição de
Abraão perante Deus.” O termo técnico teológico para isso é “imputação”.
91

O que é imputado àqueles que são justificados é a justiça de Deus. Depois de


mencionar sua ilustre ascendência que o qualificava pelo renome entre seus
compatriotas judeus, Paulo colocou todas as suas realizações na coluna das
perdas, porque, conforme explicou, elas haviam produzido “uma justiça própria
que vem da lei”. Em vez desse esterco, o apóstolo desejava a justiça que
“procede da fé em Cristo, justiça que vem de Deus pela fé” (Fp 3.8,9). Martinho
Lutero se referia a isso como “justiça alheia”, isto é, não a justiça própria da
pessoa, alcançada por meio da realização humana, mas a justiça de outro, que
vem de fora pela fé e é imputada à conta da pessoa. “A justiça que vem até nós
como dom de Deus pela fé que nos une a Cristo continua a ser justiça de Cristo.
A justiça em questão não é nossa justiça, como se Deus tivesse transferido certa
quantidade de justiça para nós como se fosse uma commodity ou alguma coisa
que pode ser quantificada com base em um sistema de pontos. Temos o próprio
Cristo e todos os seus benefícios de uma vida perfeita e sua morte e ressurreição
em nosso favor.” 92
Como um dom concedido a seres humanos pecadores por Deus, sua justiça é,
e só pode ser, apropriada pela fé. O caso de Abraão, uma vez mais, estabelece a
defesa desse ponto:
Que diremos sobre Abraão, nosso pai humano? O que ele alcançou? Porque, se foi justificado pelas
obras, Abraão tem do que se gloriar, mas não diante de Deus. Que diz a Escritura? Abraão creu em
Deus, e isso lhe foi atribuído como justiça. Ora, o salário daquele que trabalha não lhe é atribuído
como favor, mas como dívida. Contudo, ao que não trabalha, mas crê naquele que justifica o ímpio,
sua fé lhe é atribuída como justiça (Rm 4.1-5).

O trabalhador recebe salário, pagamento contratado e, portanto, devido pelo


trabalho realizado. Avaliar esse sistema é uma forma de ser justo diante de Deus.
Paulo explica que, se Abraão fosse justificado pelas boas obras que fez, ele se
sentiria orgulhoso e se jactaria de suas realizações de homem santo. Contudo, se
a ideia de jactância diante de Deus é absurda, então a ideia de ser justificado
diante de Deus por meio de obras é um equívoco, e certamente não foi esse o
caminho pelo qual Abraão optou. Pelo contrário, esse adorador de ídolos de Ur
não fez obra alguma, mas creu em Deus que justifica não o homem piedoso, mas
o ímpio. Pela fé, Abraão foi considerado justo perante Deus. Para confirmar esse
ponto, Paulo salienta que a justificação de Abraão veio antes que ele fosse
circuncidado (Rm 4.10,11) e independentemente da lei, que veio muito mais
tarde (Rm 4.13).
Essa linguagem da justiça de Deus como dom recebido pela fé é reiterada:
“Mas agora a justiça de Deus se manifestou, sem a lei, atestada pela Lei e pelos
Profetas; isto é, a justiça de Deus por meio da fé em Jesus Cristo para todos os
que creem; pois não há distinção. Porque todos pecaram e estão destituídos da
glória de Deus; sendo justificados gratuitamente pela sua graça, por meio da
redenção que há em Cristo Jesus, a quem Deus ofereceu como sacrifício
propiciatório, por meio da fé, pelo seu sangue” (Rm 3.21-25, grifo do autor).
Alcançado pela obediência perfeita de Cristo, especialmente por sua morte como
sacrifício expiatório para aplacar a ira furiosa de Deus (propiciação e seu efeito),
a justificação como dom gratuito de Deus é apropriada pela fé em Jesus Cristo.
Vale a pena observar que o fundamento da justificação que conduz ao dom da
justiça divina é a cruz de Jesus Cristo. A fé não é o fundamento do dom; ela é o
meio de recebimento do dom e é colocada em um objeto adequado, que é Jesus
Cristo. De fato, “a fé não deve ser pensada isoladamente em relação ao seu
objeto. A justiça que se tem em vista não é feita de fé, sendo encontrada no
objeto da fé. Paulo não diz que a justificação se dá por causa da fé, mas pela fé.
A fé é o meio pelo qual somos feitos justos perante Deus por meio de Cristo,
objeto da fé e fundamento da nossa justiça”. De modo concreto, pela união com
93

Cristo, e com base na obra de Deus em Cristo, o ser humano pecador “se coloca
diante dele sem culpa e como se tivesse feito tudo o que a obediência exige”. 94

Contudo, tal justiça não deve ser considerada como se fosse algum tipo de
substância ou commodity infundida na pessoa; pelo contrário, “a justiça em
questão é encarnada, e a imputação consiste em partilhar do Cristo que é nossa
justiça”.
95

Essa comunicação da justiça de Deus por seu ato declarativo de justificação, e


sua apropriação pela fé, se contrapõe a uma falsa visão exposta e condenada pela
Escritura: a justificação pelas obras. Conforme observamos anteriormente,
Abraão é o exemplo por excelência de alguém que não teve de fazer obra alguma
para ganhar a justiça de Deus; ele creu naquele que justifica o ímpio (Rm 4.1-5).
Era sua “a justiça da fé” (v. 13) que não se baseava na circuncisão, tampouco na
lei. Conforme Paulo sintetiza esse ponto comum: “Concluímos, pois, que o
homem é justificado pela fé sem as obras da lei” (3.28). O exemplo de Abraão
chama a atenção para o fato de que essa denúncia que a Escritura faz das obras
não se refere unicamente àquelas obras associadas à lei de Moisés. Aquela antiga
lei da aliança nem sequer existia quando o patriarca creu em Deus para sua
justiça. Pelo contrário, a Escritura se coloca contra as obras de qualquer tipo
feitas com o propósito de conquistar a justiça. Isso se deve ao fato de que não
apenas a justificação, mas a salvação em geral, não é ganha por meio de obras:
“Porque pela graça sois salvos, por meio da fé, e isto não vem de vós, é dom de
Deus; não vem das obras, para que ninguém se orgulhe. Pois fomos feitos por
ele, criados em Cristo Jesus para as boas obras, previamente preparadas por
Deus para que andássemos nelas” (Ef 2.8-10).
A teologia evangélica é acusada com frequência, nesse ponto, de tomar
partido do apóstolo Paulo e sua ênfase sobre a justificação pela fé em
contraposição ao apóstolo Tiago e sua alegação de que “uma pessoa é justificada
por obras e não somente pela fé” (Tg 2.24). Embora tenha havido muita
discussão em torno desse assunto, Paulo e Tiago simplesmente não estão em
desacordo em relação à forma correta de se apropriar da justificação; tampouco
que a teologia evangélica coloque a fé em confronto com as obras.
Quanto ao primeiro ponto, a ênfase de Paulo recai sobre o que significa
abraçar a justiça de Deus, que é seu dom aos seres humanos pecadores: receber
esse dom para ser justificado diante de Deus é algo que se dá pela fé, e não por
qualquer outra coisa (e.g., circuncisão, obras da lei, qualquer boa obra). Tiago
chama a atenção não para a fé salvadora, mas para a fé falsa: essa fé não pode
salvar. Sua ênfase sobre a natureza da fé fica clara a partir da ilustração que ele
emprega para caracterizar a falsa fé: “Crês que Deus é um só? Fazes bem, pois
os demônios também creem e estremecem!” (Tg 2.19). Os demônios têm um
tipo de fé, mas ela certamente não é uma fé salvadora! Saindo do reino
demoníaco, Tiago ilustra como se dá a falsa fé entre os seres humanos: “Se um
irmão ou irmã estiverem necessitados de roupas e do alimento de cada dia, e
algum de vós lhes disser: ‘Ide em paz, aquecei-vos e saciai-vos’, e não lhes
derdes as coisas necessárias para o corpo, que vantagem há nisso?” (v. 15,16).
Essa fé é chamada “fé em si mesma [...] que não tem obras”, e a avaliação de
Tiago é que tal fé “é morta” (v. 17). Consequentemente, a resposta às perguntas
de Tiago — “Meus irmãos, que vantagem há se alguém disser que tem fé e não
tiver obras? Essa fé poderá salvá-lo?” (v. 14) — é claramente: “Não, claro que
não!”. Tomando essa definição de fé, Tiago enfatiza que a justificação diante de
Deus não é, e não pode ser, por meio dessa fé. A falsa fé, ou fé fictícia, não pode
salvar ninguém.
Deixando de lado esse conceito de fé, Tiago descreve o tipo de fé que produz
justificação: a fé salvadora. Que fé é essa? Ele dá um exemplo dela
primeiramente com Abraão: “Não foi pelas obras que nosso pai Abraão foi
justificado quando ofereceu sobre o altar seu filho Isaque? Vês que a fé
cooperou com suas obras, e pelas obras a fé foi aperfeiçoada. Assim se cumpriu
a Escritura que diz: ‘Abraão creu em Deus, e isso lhe foi atribuído como justiça’,
e ele foi chamado amigo de Deus” (v. 21-23). É interessante observar que Tiago
apresenta a natureza da fé verdadeira destacando, primeiramente, que a obra de
Abraão, isto é, o sacrifício do seu filho (no monte Moriá; Gn 22), salientando em
seguida que essa obra cumpriu a Escritura ao afirmar que Abraão foi contado
como justo perante Deus pela fé (no monte Hebrom; Gn 15.6). A justificação de
Abraão perante Deus se deu pela fé e, conforme ficou demonstrado vividamente
décadas depois, por meio da oferta que o patriarca fez do seu filho, “que a fé
esteve ativa juntamente com suas obras, e a fé era completada por suas obras”,
que cumpriram a Escritura anterior. “A palavra “cumpriram” não significa que as
palavras de Abraão tornaram verdadeira a Escritura [...] mas que suas obras
fizeram com que a declaração de Hebrom chegasse ao seu fim determinado. A
declaração tinha como finalidade ser manifesta para que a Palavra de Deus fosse
justificada. Deus declarou como justiça a fé de Abraão, e as ações dele,
particularmente o teste com Isaque, confirmaram a verdade da Escritura.” Além
96

disso, não havia nada de errado com a fé de Abraão — pela fé, Abraão foi
considerado justo perante Deus! —, porém tal fé salvadora resultou em boas
obras.
A segunda ilustração de Tiago da fé salvadora é Raabe: “De igual modo, a
prostituta Raabe não foi também justificada pelas obras, quando acolheu os
espias e os fez sair por outro caminho?” (Tg 2.25). Como podemos saber se a fé
dessa prostituta não passava de um último esforço desesperado para salvar sua
própria vida, um exemplo da falsa fé que Tiago está combatendo nessa
passagem? A fé fictícia não teria resultado em ato tão corajoso, mas, porque ela
resgatou os espias israelitas, sua boa obra nos permite distinguir em sua fé uma
fé salvadora. Como destaca a Carta aos Hebreus, em seu capítulo sobre a fé:
“Pela fé, a prostituta Raabe não morreu com os desobedientes, pois acolheu em
paz os espias” (Hb 11.31). A conclusão que Tiago tira dessa ilustração é que “a
fé sem obras é morta” (Tg 2.26). A fé de Raabe não era do tipo fictício ou morto;
pelo contrário, era uma fé genuína — uma fé salvadora — que assim se mostrou
ser por suas obras.
O próprio Paulo, em vez de se opor à exposição de Tiago, concorda
completamente com ela e usa até a mesma ilustração de Abraão em apoio a ela.
Conforme discutimos acima, o apóstolo cita Gênesis 15.6 em sua Carta aos
Romanos, destacando que Abraão não foi justificado pelas obras, mas pela fé
(Rm 4.1-5). Vale a pena notar que no final de sua discussão sobre a justificação
pela fé, e não pelas obras (no final de Rm 4), Paulo cita novamente a vida do
patriarca e faz referência outra vez a Gênesis 15.6. Embora esteja plenamente a
par das muitas falhas reais de Abraão, Paulo o descreve da seguinte forma:
Abraão, ao contrário do que se podia esperar, creu com esperança, para que se tornasse pai de muitas
nações, conforme o que lhe havia sido dito: “Assim será a tua descendência”. E, sem enfraquecer na
fé, considerou que o seu corpo já não tinha vitalidade (pois já contava cem anos), e o ventre de Sara
já não tinha vida. Contudo, diante da promessa de Deus, não vacilou em incredulidade; pelo
contrário, foi fortalecido na fé, dando glória a Deus, plenamente certo de que ele era poderoso para
realizar o que havia prometido (Rm 4.18-21).

Paulo cita então Gênesis 15.6 pela segunda vez — “Por essa razão, isso ‘lhe foi
atribuído como justiça’” (Rm 4.22) — confirmando duas coisas: “(1) A vida de
fé de Abraão era evidência de sua justificação; (2) o que Deus declarou na
Escritura sobre Abraão era verdade”. Esses pontos correspondem aos que Tiago
97

defende com ênfase no fato de que a justificação é apropriada não pela fé


fictícia, mas pela fé salvadora, e essa fé salvadora resulta em boas obras.
Consequentemente, não é verdade que Paulo e Tiago estejam em lados opostos
em relação à forma correta de se apropriar da justificação, portanto a teologia
evangélica não toma o lado de Paulo em oposição a Tiago ao desenvolver e
defender sua doutrina da justificação.
Há, porém, uma segunda acusação contra a teologia evangélica, mais
concretamente que ela contrapõe a fé às obras ou, no mínimo, demonstra uma
atitude de despreocupação para com as boas obras como parte da vida em Cristo.
Para repelir tal acusação, basta à teologia evangélica voltar à sua herança
reformada. Martinho Lutero estabeleceu uma distinção entre “dois tipos de
justiça cristã [...]. A primeira é a justiça externa, isto é, a justiça de outro,
instilada de fora para dentro. Essa é a justiça de Cristo, por meio da qual ele
justifica através da fé”. Aqui, Lutero descreve a imputação da justiça de Cristo
98

que foi discutida. A respeito do outro tipo, “a segunda espécie de justiça é nossa
própria justiça não porque somente nós a trabalhamos, mas porque trabalhamos
com aquela primeira justiça externa. Esse é aquele tipo de vida gasta com
proveito em boas obras”. Importante para Lutero, o primeiro tipo “é
99

fundamental; é a base, a causa, a fonte de toda a nossa justiça de fato”. 100

Consequentemente, os que foram justificados pela fé, tendo por isso a justiça de
Jesus Cristo imputada a eles, se dedicam a obras reais de justiça. Lutero
claramente uniu a fé (em uma justiça externa) e obras (a justiça do indivíduo que
decorre de sua justiça externa).
A relação desses dois tipos de justiça é paradoxal, de acordo com Lutero, que
estabeleceu duas proposições referentes à liberdade e à escravidão do espírito
humano: “O cristão é um senhor de tudo perfeitamente livre, que não se submete
a ninguém. O cristão é um servo perfeitamente obediente de todos, sujeito a
todos. Essas duas teses parecem contradizer uma à outra”. Sobre a primeira
101

tese, Lutero afirmou que a justificação pela graça por meio da fé somente, e não
pelas obras, liberta completamente o cristão, especialmente da lei divina. Além
disso, “se buscamos as obras como meio de justiça [...] e se elas são feitas sob a
falsa impressão de que por seu intermédio a pessoa é justificada, tornam-se
necessárias, destruindo desse modo a fé e a liberdade. Essa adição a elas faz com
que deixem de ser boas, tornando-se verdadeiramente condenáveis”. Em 102

relação à sua segunda tese, Lutero disse que a justificação estabelece o serviço
cristão e o dever de participar das boas obras pelo bem de outros: “Essa é a
verdadeira vida cristã. Aqui, a fé é verdadeiramente ativa por meio do amor [Gl
5.6], isto é, ela encontra expressão nas obras do serviço mais livre, feito com
alegria e amor, com o qual o homem serve ao outro sem esperar recompensa”. 103

Lutero conclui: “Não rejeitamos as boas obras; pelo contrário, nós as


valorizamos e as ensinamos tanto quanto possível”. Digno de nota a esse
104

respeito é a reprovação de Lutero da restrição que a teologia católica faz das


obras limitando-as aos atos religiosos, como orar, jejuar e dar esmolas — uma
105

crítica já repercutida acima.


A teologia evangélica, portanto, tem uma herança centenária que a leva a
abraçar as boas obras no que diz respeito à fé e à justificação. A acusação de que
ela contrapõe a fé às obras, ou pelo menos demonstra uma atitude despreocupada
para com elas na vida cristã, é simplesmente falsa.
Para evitar confusão ou possíveis equívocos em relação à doutrina da teologia
evangélica, é preciso dizer mais alguma coisa no tocante à relação entre
justificação, graça, fé e boas obras. A justificação do ímpio pela graça divina
apropriada pela fé é um ato declarativo de Deus — que pessoas pecadoras não
são culpadas, e sim justas —, e “Deus planeja manter sua Palavra para com um
tipo especial de pessoas — aquelas que o seguem em obediência” por meio da
106

participação nas boas obras. A declaração permanece firme e é incondicional.


Sua realidade não depende das boas obras de quem a recebe; sua realidade é
“concorrente, ou paralela, à obediência”. Simplificando, a fé salvadora que
107

justifica resulta em boas obras, mas não está associada a elas. Portanto, não há
“uma dupla base de justificação, isto é, constituída de fé e obras. Contudo, a fé, o
único fundamento para a justificação, opera”. Isso significa que o veredito da
108

justificação não espera por evidências para lhe dar respaldo, sendo declarada
antes de apresentada a evidência. Voltando à ilustração de Abraão, “a fé de
Abraão foi considerada justiça antes da evidência manifestada em sua vida, e
não com base nela”. A base da justificação é a obra de Cristo em favor dos
109

seres humanos pecadores, e o meio de apropriação é a fé, e somente a fé, mas a


fé salvadora produz a evidência da justificação, que são as boas obras. Além
disso, embora o veredito público aguarde um momento futuro, ele já foi
evidenciado no presente para todos os que, pela fé, confiam em Cristo para a
justificação. Por fim, como parte da fé salvadora, a garantia de salvação é
privilégio de todos os seguidores de Cristo.
Com essa estrutura de uma teologia evangélica da justificação, graça, fé e
boas obras é possível esboçar os principais pontos de discordância no tocante à
elaboração que a teologia católica faz desses tópicos. É importante notar que a
definição de justificação da teologia católica é incorreta. A justificação é um ato
forense ou legal, é a declaração do perdão do pecado e a imputação de justiça. A
teologia católica erra quando mistura a justificação com dois outros atos de
poder de Deus — a santificação e a regeneração: “A justificação não é apenas a
remissão de pecados, mas também a santificação e a renovação do homem
interior”. Essa crítica não significa que a teologia evangélica minimiza ou nega
110

esses dois outros atos divinos. Pelo contrário, embora afirme que a justificação
se acha associada com a regeneração e a santificação, a teologia evangélica faz
distinção entre essas três coisas, assim como o faz a Escritura (e.g., 1Co 6.11).
Infelizmente, fundir a justificação, a regeneração e a santificação resulta na falsa
ideia de justificação da teologia católica.
Igualmente importante, é errônea a ideia na teologia católica da justiça como
“retidão do divino amor” que é infundido nas pessoas, especialmente por meio
dos sacramentos. Pode-se perceber essa ênfase na infusão na lista do fruto da
111

justificação, que destaca, entre outras coisas, a purificação do pecado; o


derramamento da fé, esperança e caridade no coração dos fiéis; e a conformidade
do fiel “com a justiça divina, que o torna interiormente justo pelo poder da sua
misericórdia”. Já expusemos neste livro a crítica que a teologia evangélica faz
112
da interdependência natureza-graça, da qual depende a doutrina católica da graça
infundida. Simplesmente não é verdade que a natureza — nesse caso, a natureza
humana decaída — possua a capacidade para a graça, que é infundida no fiel por
meio dos sacramentos para elevar e aperfeiçoar sua natureza. Em vez de infusão
da graça que produz conformidade interna à justiça de Deus, a teologia
evangélica acolhe a imputação da justiça perfeita de Cristo. Uma justiça
infundida é capaz de aumentar ou diminuir, dependendo da participação do fiel
no meio de graça (o sacramento) ou de sua não participação. Para a teologia
evangélica, a justiça imputada por meio de uma declaração divina significa que
o ímpio está agora diante de Deus como alguém plenamente à altura do padrão
da lei e que demonstrou perfeita obediência a ele; não pode haver (e de fato não
há) necessidade alguma de um aumento de justiça. Tampouco a justiça pode
decrescer, porque a justificação é uma declaração que faz dela o que ela é. Além
disso, a perspectiva católica da graça justificadora, que pode ser perdida,
significa que não há garantia de justificação. A justificação, porém, de acordo
com a teologia evangélica, produz essa segurança.
Além disso, é equivocado o vínculo que a teologia católica estabelece entre a
fé e o sacramento do batismo como meio de apropriação da justificação. Isso não
apenas contradiz inúmeras passagens dos escritos paulinos que insistem na fé
como instrumento único para o recebimento da graça divina da justificação, mas
parece incapaz de explicar a discussão da salvação e seu meio de apropriação no
Concílio de Jerusalém (At 15). Estava em pauta a insistência dos cristãos
judaizantes segundo os quais os cristãos gentios eram salvos pela fé em Cristo e
mais alguma coisa — a saber, pela circuncisão e obediência à Lei de Moisés (v.
1,5,24). A posição firme do Concílio — “cremos que somos salvos pela graça do
Senhor Jesus, do mesmo modo que eles” (v. 11) — ressaltou que a salvação tanto
de judeus quanto de gentios é pela graça de Deus recebida mediante a fé (v. 7-
11). “Se houve uma época para que a igreja primitiva insistisse na necessidade
do batismo para salvação, certamente esse debate teria sido um momento
oportuno para isso. Tal proposta, porém, não foi feita, nem discutida ou
ratificada naquele concílio”. Conforme explicamos anteriormente, o batismo
113

não é necessário para a salvação, mas isso não significa que não o consideremos
importante, embora ele rompa o elo católico entre a fé e o sacramento do
batismo para justificação. A teologia católica cria o elo entre fé e batismo por
causa da interdependência natureza-graça, o axioma segundo o qual a graça deve
ser concretamente transmitida por meios tangíveis — nesse caso, água. Outra
razão para essa ligação é a interpretação católica da afirmação de Jesus de que
“se alguém não nascer da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus”
(Jo 3.5), mas, conforme já expusemos, essa é uma interpretação equivocada das
palavras de Jesus.
Para uma crítica final da doutrina da justificação da perspectiva católica,
retomamos aqui uma discussão anterior. A teologia católica afirma que a
justificação estabelece uma relação de cooperação entre a graça divina e a
liberdade humana. Essa fórmula se traduz naquilo a que nos referimos
anteriormente como sinergismo : dois agentes, Deus e o seres humanos,
trabalham juntos para operar o resgate desse grupo. Da parte de Deus, os muitos
tipos de graça operam de maneira poderosa para produzir a justificação do fiel,
cabendo a este “assentir com fé à Palavra de Deus”, responder com a conversão
e obedecer “ao impulso do Espírito Santo que se lhe adianta e o guarda”. 114

Diferentemente disso, a doutrina da justificação da teologia evangélica é um


exemplo evidente de monergismo. Um agente — Deus — opera sozinho para
justificar o ímpio (Rm 4.5), que não contribui — na verdade, nem pode — com
coisa alguma para sua justificação. Um agente — Deus — trabalha sozinho para
declarar o injusto não “inocente!”, mas, “em vez disso, justo!”, o que não o torna
efetivamente justo (e, desse modo, agente cooperador), mas considerando-o justo
por meio do dom da justiça perfeita de Jesus Cristo.
Uma vez mais, no âmago da salvação sinérgica da teologia católica deparamos
com a interdependência natureza-graça. A natureza — nesse caso, o ser humano
caído — tem a capacidade de receber a graça divina, e a graça capacita a
natureza a cooperar com a operação de graça comunicada por meio dos
sacramentos. Como esse axioma está equivocado, a salvação como um
empreendimento sinérgico, de cooperação entre a natureza e a graça, entre Deus
e o ser humano, está arraigada em solo falso. Além disso, se a graça divina
imputa justiça como dom, então a ideia mesma de um dom descarta qualquer
ideia de que a pessoa que o recebe possa contribuir de algum modo com ele ou
cooperar com aquele que o concede. Além disso, a apropriação desse dom se dá
pela fé, e essa resposta de fé à graça de Deus, embora seja certamente uma
resposta humana, vista equivocadamente como cooperação humana. Conforme
afirma Paulo, salvação pela graça por meio da fé — toda ela — é em si mesma
um dom de Deus. Para o apóstolo, isso significa que a salvação “não é obra sua”
e “não é resultado de suas obras”, impedindo com isso que alguém se orgulhe ou
que assuma crédito por ela de qualquer tipo que seja. Caminhar nas boas obras,
como resposta adequada ao fruto de ser “criado em Cristo Jesus para boas obras,
que Deus de antemão preparou”, é o ponto de cooperação, mas o ser humano não
contribui em nada para sua justificação (Ef 2.8,9). O monergismo, e não o
sinergismo, é a estrutura apropriada para a justificação pela graça por meio da fé.
Mérito
Consequentemente, a estrutura da teologia evangélica do monergismo critica o
tópico seguinte da doutrina da salvação, a saber, o mérito, a recompensa que
Deus deve ao fiel pelas boas obras que pratica (recompensa) e também pelas más
obras (castigo). No âmago da ideia de mérito da teologia católica encontra-se sua
crença de que “Deus escolheu livremente associar o homem à obra de sua
graça”. A graça divina começa e é seguida pela resposta do homem
115

(sinergismo), e Deus recompensa condignamente essa resposta humana. Essa


resposta é específica para cada pessoa: todo fiel deve “fazer aquilo que está nele
fazer” (facere quod in se est). Vale a pena notar que a teologia católica nega a
possibilidade de se alcançar algum mérito no início da salvação, uma vez que o
início da salvação depende unicamente da graça de Deus. Portanto, “ninguém
pode merecer a graça inicial do perdão e da justificação”. O mérito, porém,
116

entra em cena quando o fiel, impelido pelo Espírito Santo e pelo amor, alcança
para si e para os outros a graça da santificação permanente, o aumento da graça e
do amor e alcança a vida eterna.
Embora respeite essa diferenciação entre graça inicial, que não pode ser
merecida, e graça permanente, que se pode alcançar por mérito, a teologia
evangélica nega qualquer possibilidade de se conquistar a graça de qualquer tipo
— inicial, permanente ou final — e considera supérfluo o esforço humano em
direção à conquista da vida eterna. É evidente que a ideia de mérito se baseia no
axioma da interdependência natureza-graça. A natureza — nesse caso, a natureza
humana decaída — é capaz de receber a graça divina e, tendo obtido tal graça
por meio dos sacramentos, torna-se livre e pode, portanto, se tornar merecedora
da vida eterna. Como já foi demonstrado, a interdependência natureza-graça é
um equívoco, portanto a ideia de mérito que repousa sobre esse axioma é
igualmente errônea. Além disso, a doutrina correta da justificação defendida pela
teologia evangélica ressalta o erro do mérito: como o ser humano decaído não é
declarado “inocente!”, mas “justificado!”, não se alcança a vida eterna por meio
desse ato gratuito de Deus somado ao esforço humano (mesmo que seja um
esforço sustentado pela graça divina), e sim exclusivamente pela declaração de
Deus recebida pela fé e nada mais. Considerado plenamente justo por causa da
justiça de Cristo que lhe foi imputada pela fé, o cristão nada precisa agregar a
essa salvação. Como se não bastassem o perdão e o resgate do pecado, ele
também é recompensado por suas boas obras que decorrem da sua união com
Cristo, da nova natureza dada a ele por meio da regeneração pelo Espírito Santo
e pelo derramamento de um coração cheio de gratidão por sua salvação.
A teologia evangélica enfatiza que essas recompensas, porém, nada dizem
respeito à doutrina do mérito da teologia católica. Conforme ressaltou João
Calvino, o exemplo de Abraão elucida a diferença entre recompensa e mérito.
Antes de Isaque nascer, Abraão recebeu pela fé a promessa de que sua
descendência seria tão numerosa quanto as estrelas do céu (Gn 15.5); isto é, ele
se tornaria pai de muitas nações (Gn 17.4-6). Anos mais tarde, o patriarca
levantou obediente a faca sobre a cabeça do seu filho Isaque, provando que
temia a Deus (22.12). Tendo agido em obediência a Deus, Abraão recebeu a
seguinte promessa: “Por mim mesmo jurei, diz o S , porque fizeste isso e não
ENHOR

me negaste teu filho, teu único filho, que com certeza te abençoarei e
multiplicarei grandemente a tua descendência, como as estrelas do céu e como a
areia na praia do mar; e a tua descendência dominará a cidade dos seus inimigos;
e todas as nações da terra serão abençoadas por meio da tua descendência, pois
obedeceste à minha voz” (22.16-18).
Conforme explicou Calvino, “o que foi que ouvimos? Abraão, por sua
obediência, mereceu a bênção cuja promessa lhe fora feita antes da ordem [de
matar seu filho]? Aqui, certamente, mostramos sem ambiguidade que o Senhor
recompensa as obras dos crentes com os mesmos benefícios que ele lhes havia
concedido antes que contemplassem quaisquer obras, já que ele não tem razão
alguma para beneficiá-los, exceto sua própria misericórdia”. Abraão não
117

mereceu — na verdade nem sequer podia merecer — por suas boas obras, algo
que já lhe havia sido prometido e recebido pela fé. Deus prometera, Abraão creu
pela fé, foi declarado justo, obedeceu e foi recompensado — mas não de modo
que fosse salvo pela graça e por mérito. Conforme dissemos: “Deus planeja
manter sua Palavra com um tipo específico de povo — aqueles que o seguem em
obediência” praticando boas obras. Sua justificação é firme e incondicional.
118

Sua realidade não depende de suas boas obras, sendo simultânea ou sincronizada
com elas. Em outras palavras, a fé salvadora que justifica resulta em boas obras,
mas não depende da cooperação do fiel com a graça divina para que o fiel
mereça a vida eterna por meio de graça e obras. É verdade que o cristão é
recompensado por Deus, conforme acentua com frequência a Escritura (e.g., Mt
16.27; Lc 6.23; 1Co 3.8,15; 2Co 5.10). Que tal prática de boas obras faz o fiel
merecer a vida eterna e seja necessária para a obtenção da salvação consiste em
erro.
A igreja, mãe e educadora
O Catechism conclui sua discussão da doutrina da salvação situando na doutrina
da igreja essa obra divina de resgate do ser humano (decaído) do pecado, que é
então conduzido à bem-aventurança eterna. Dois temas já tratados são
retomados: a igreja é mãe e educadora. Ambos os tópicos são sustentados pelo
axioma da interconexão Cristo-Igreja: como a igreja é extensão da encarnação
do Cristo total (tanto a cabeça quanto o corpo), então a Igreja Católica, e
somente ela, é mediadora da salvação. Conforme esse axioma já foi criticado,
basta ressaltar que o fundamento da ideia católica de igreja mãe e educadora é
incorreto.
Em relação à crítica específica da metáfora materna da igreja, a teologia
evangélica enfatiza que a Escritura emprega uma imagem feminina vívida para a
igreja — ela é a noiva de Cristo (2Co 11.1-4; Ef 5.25-33; Ap 19.7; 21.2,9,17) —
ela não emprega a metáfora de mãe. Além disso, a teologia evangélica critica a
ligação que a teologia católica faz entre a igreja mãe e Maria, mãe da igreja. Ao
mesmo tempo, e entendido de maneira diferente, a igreja mãe dos cristãos, que
serve como ministra ungida pelo Espírito da graça de Deus pela pregação do
evangelho e pela celebração das ordenanças, faz sentido dentro de uma estrutura
teológica evangélica. Com relação a críticas específicas da igreja educadora, um
aspecto dessa ideia, a doutrina da infalibilidade papal, é veementemente rejeitada
pela teologia evangélica, pelas seguintes razões: ela se baseia em uma
interpretação equivocada da promessa de Cristo segundo a qual “as portas do
inferno não prevalecerão contra ela [a igreja]” (Mt 16.18); ela erra por não
reconhecer a efetiva falibilidade dos papas; o dogma foi promulgado muito
posteriormente (1870) e em circunstâncias questionáveis; a elaboração de
ensinos oficiais mediante esse dogma viola a suficiência da Escritura.119

Por último, o Catechism explica que o carisma, ou dom, de infalibilidade da


igreja, se estende para além dos pronunciamentos ex cathedra feitos pelo papa,
já que incluem também: (1) outras doutrinas e princípios morais “sem os quais
as verdades salvíficas da fé não podem ser preservadas, explicadas ou
observadas”; (2) “os preceitos específicos da lei natural, porque sua
120

observância, exigida pelo Criador, é necessária à salvação”; (3) cinco preceitos


121

eclesiais referentes à frequência à missa, confissão de pecados, participação na


eucaristia, guarda de dias santos de obrigação e observância de dias designados
de jejum e abstinência; e (4) um preceito adicional de oferta financeira para
122

sustento da igreja. Exasperada, a teologia evangélica objeta à natureza


123

incômoda dessas leis a mais que a Igreja Católica prescreve aos fiéis e os obriga
a obedecer. Ela questiona: em que momento chegam ao fim essas exigências
para a salvação? Ao ligar esse ponto ao primeiro tópico deste capítulo, a teologia
evangélica chama a atenção (e rejeita) a ênfase exagerada sobre a lei como
componente essencial da teologia católica da doutrina da salvação. Nem a lei
nem as boas obras cooperam com a graça para merecer a vida eterna, mas o
evangelho “é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê; primeiro
do judeu e também do grego. Pois a justiça de Deus se revela no evangelho, de
fé em fé, como está escrito: ‘O justo viverá pela fé’”(Rm 1.16,17).
Conclusão
“A vida em Cristo”, terceira parte do Catechism, tratou até o momento da
vocação humana da vida no Espírito (seção 1), analisando a dignidade da pessoa
humana (capítulo 1) e da comunidade humana (capítulo 2), e a salvação divina
especialmente no que diz respeito à lei, à justificação e à graça, ao mérito e à
igreja, mãe e educadora (capítulo 3). Embora apresente outra seção em que
discorre sobre os Dez Mandamentos (seção 2), não daremos a perspectiva
evangélica do assunto. Há três razões importantes para isso. Em primeiro lugar, a
apresentação da teologia católica dos Dez Mandamentos repousa sobre sua
ênfase na lei como componente essencial da salvação. Conforme salientou o
Concílio Vaticano II, “todo homem pode obter a salvação pela fé, pelo batismo e
pela observância dos [Dez] Mandamentos”. Como já criticamos a ênfase na lei,
124

outras críticas dirigidas à explicação detalhada que a teologia católica faz dessa
lei, conforme exposta nos Dez Mandamentos, parece supérflua. Em segundo
lugar, o tratamento do Catechism dessa seção apresenta uma grande
interpretação bíblica das passagens de Êxodo 20.2-17 e Deuteronômio 5.6-21.
Como este livro foi planejado para ser uma avaliação teológica da doutrina e
prática católicas, uma avaliação da interpretação bíblica do catolicismo levaria
este livro demasiadamente além. Em terceiro lugar, mesmo quando a
interpretação bíblica dessas passagens entra na reflexão teológica e na discussão
doutrinária, as questões teológicas apresentadas repetem os tópicos já cobertos
nas seções precedentes do Catechism, o que dispensa quaisquer outros
comentários.
De igual modo, a parte 4, “A oração cristã”, não será analisada aqui. A seção 1
trata da oração na vida cristã. Parte dessa discussão repercutirá junto aos
evangélicos, e deve mesmo repercutir, ao passo que outras partes devem ser
criticadas, da mesma forma e pelos mesmos motivos que essa avaliação
evangélica tem criticado a teologia e prática católicas nas seções precedentes do
Catechism. A seção 2 consiste na exposição detalhada dos sete pedidos do Pai-
Nosso (Mt 6.9-13). Como uma avaliação dessa interpretação bíblica nos
desviaria muito dos nossos propósitos, não a faremos aqui.
1
Edição em português: Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Loyola, 1999).
2
CCC 1949.
3
CCC 1950.
4
CCC 1952.
5
CCC 1954.
6
CCC 1960.
7
Ibidem; citação do papa Pio XII, Humani generis (12 de agosto de 1950), 3, disponível em:
http://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_12081950_humani-
generis_en.html.
8
CCC 1961.
9
CCC 1962.
10
CCC 1963.
11
Ibidem.
12
Ibidem (grifo removido).
13
CCC 1963.
14
CCC 1964 (grifo removido).
15
CCC 1965.
16
Ibidem.
17
CCC 1966 (grifo removido).
18
Ibidem. “Esse sermão apresenta [...] todos os preceitos necessários para modelar a vida das pessoas”
(CCC 1966, citando Augustine [Agostinho], The Sermon on the Mount 1.1 [NPNF1 6:2]).
19
CCC 1968.
20
CCC 1969 (grifo removido).
21
CCC 1971 (grifo removido).
22
CCC 1971.
23
CCC 1973.
24
CCC 1974.
25
CCC 1972. Essa seção toma como base bíblica João 15.15; Tiago 1.25; 2.12; Gálatas 4.1-7,21-23;
Romanos 8.15.
26
CCC 1987.
27
CCC 1989 (grifo removido). Cf. 1990: “A justificação continua a iniciativa da misericórdia de Deus,
que oferece o perdão”.
28
CCC 1989.
29
Ibidem; citação dos Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 6.ª sessão (13 de janeiro de 1547),
Decreto sobre a Justificação 7 (Schaff, 2:94).
30
CCC 1991 (grifo do autor).
31
CCC 1990 (grifo removido).
32
CCC 1991.
33
CCC 1992.
34
Ibidem.
35
CCC 1993.
36
Ibidem; citação dos Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 6.ª sessão (13 de janeiro de 1547),
Decreto sobre a justificação 5 (Schaff, 92).
37
CCC 1994 (grifo removido).
38
CCC 1995 (grifo removido).
39
CCC 1996.
40
Ibidem (grifo removido). Essa seção toma como base bíblica João 1.12-18; 17.3; Romanos 8.14-17;
2Pedro 1.3,4.
41
CCC 1999.
42
CCC 2000.
43
Ibidem.
44
CCC 2001. O Catechism discute esse tipo de graça como “preparação do homem para o recebimento
da graça” (grifo removido). Do latim praevenire (ir antes), a graça preveniente tem base bíblica, segundo
Agostinho, por causa de Salmos 59.10 (tradução latina): “Lemos na Sagrada Escritura [...] que a
misericórdia de Deus ‘me encontrará’ [praevenient] [...]. Ela vai adiante do que reluta para demovê-lo de
sua relutância” (Augustine, Enchiridion on faith, hope, and love 32 [NPNF1 3:248]). Para uma discussão
mais ampla, veja Augustine, On nature and grace 35[31] (NPNF1 5:133); Treatise against two letters of the
pelagians 2.21 (NPNF1 5:401).
45
CCC 2002 (grifo removido).
46
CCC 2003.
47
Ibidem.
48
CCC 2016.
49
CCC 2005 (grifo removido).
50
CCC 2005.
51
CCC 2006 (Introdução); citação do Missal Romano, prefácio 1 de Sanctis, da declaração de Agostinho
em Exposition on the Psalms 102.7; cf. Letter 194.
52
CCC 2006 (grifo removido).
53
CCC 2008 (grifo removido).
54
CCC 2008.
55
CCC 2010 (grifo removido).
56
CCC 2010.
57
CCC 2035.
58
CCC 2036 (grifo removido).
59
CCC 2039.
60
CCC 2041.
61
CCC 2042-2043.
62
CCC 1847; citação de Augustine, Sermon 169, in: John E. Rotelle, org., The works of Saint Augustine:
a translation for the 21st Century, tradução para o inglês de Edmund Hill (Hyde Park: New City, 1992),
vol. 5, p. 231.
63
“Monergismo” é um termo derivado de duas palavras gregas: μόνος (monos = somente, somente um) e
ἔργον (ergon = trabalho).
64
“Sinergismo” é um termo derivado de duas palavras gregas: σύν (syn = com, junto) e ἔργον (ergon =
trabalho).
65
Boa parte do que vem a seguir reflete a discussão em Brian Vickers, Justification by grace through
faith: finding freedom from legalism, lawlessness, pride, and despair, in: Robert A. Peterson, org.,
Explorations in Biblical Theology (Phillipsburg: P&R, 2013).
66
Ibidem, p. 99; cf. p. 133, 155, 175.
67
Ibidem, p. 99. Vale a pena enfatizar que o apóstolo distingue entre a antiga lei, pela qual ninguém pode
ser justificado, e o Antigo Testamento, ao qual a expressão “a Lei e os Profetas” se referem. O Antigo
Testamento dá testemunho da manifestação da justiça de Deus independentemente das obras da antiga lei.
68
Ibidem, p. 100.
69
Ibidem, p. 100-1.
70
Ibidem, p. 106.
71
Ibidem, p. 33. De igual modo, Vickers emprega o fracasso de Adão para tratar da sina dos demais
seres humanos, observando que, “afinal de contas, se Adão não obedeceu em sua inocência, o que
acontecerá às pessoas que vivem sob sua maldição quando receberem ordens de Deus?” (ibidem, p. 28-9).
72
Ibidem, p. 114.
73
CCC 1963.
74
Ibidem.
75
Embora Lutero tenha feito dessa distinção um princípio fundamental a ser observado na interpretação
da Bíblia, sua aplicação pode ser ampliada.
76
A questão do quarto mandamento, sobre o sábado, suscita a única indagação significativa a seu
respeito, isto é, se continua intacto ou se foi modificado.
77
“Cumpridos” no sentido de que Jesus oferece sua interpretação definitiva dessas leis do Antigo
Testamento. Embora algumas vertentes da teologia evangélica concordem com a teologia católica que a
linguagem contrastante usada por Jesus — “ouvistes o que foi dito [...] eu, porém, vos digo” — significa
que suas novas leis liberam o potencial oculto das antigas leis e trazem novas demandas internas que brotam
de dentro delas, muitas vertentes discordariam disso.
78
Vickers, Justification by grace through faith, p. 159-60.
79
Conforme disse Martinho Lutero: “Se perdermos a doutrina da justificação, perderemos a doutrina
cristã por inteiro” (Martin Luther, Lectures on Galatians: chapters 1–4 [LW 26:9]). João Calvino
subscreveu a convicção de Lutero chamando a justificação de “eixo principal sobre o qual se movimenta a
religião” e instou com a igreja para que “[dedicasse] a maior atenção e cuidados possíveis a ela” (Calvin,
Institutes 3.11.1 [LCC 20:726] [edições em português: João Calvino, As institutas, tradução de Waldyr
Carvalho Luz (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), 4 vols.; e A instituição da religião cristã, tradução de
Carlos Eduardo Oliveira; José Carlos Estêvão (São Paulo: Ed. Unesp, 2008)]).
80
Por causa de sua novidade, para não falar dos inúmeros desafios suscitados por ela, a chamada “nova
perspectiva sobre Paulo” não será discutida aqui.
81
Vickers, Justification by grace through faith, p. 2; cf. p. 31. Na página 48, Vickers cita John Piper:
“Em Cristo, somos considerados como tendo feito toda a justiça que Deus exige” (ibidem, p. 48, n. 30);
citação de John Piper, The future of justification: a response to N. T. Wright (Wheaton: Crossway, 2007), p.
171.
82
CCC 1996 (grifo removido).
83
Vickers, Justification by grace through faith, p. 27.
84
Ibidem.
85
Ibidem, p. 47.
86
Para “feito” como designação de condição ou posição, ele lista Mateus 25.21,23; Lucas 12.14; Atos
6.3; Tito 1.5; Hebreus 5.1 (ibidem, p. 47, n. 28). Para “feito” como designação de um estado do ser, ele lista
Tiago 4.4; 2Pedro 1.8 (ibidem, p. 48, n. 29). Em outro lugar ele ilustra essa ideia com Fineias (Sl
106.30,31), que foi tido como justo em virtude de sua justa ação de matar um israelita e uma moabita com
ele, uma relação idólatra que havia sido rigorosamente proibida por Moisés. De acordo com o salmista, a
atitude de Fineias “lhe foi atribuída como justiça” (ibidem, p. 59).
87
Ibidem, p. 48.
88
Vickers cita José (Mt 1.19), Simeão (Lc 2.25), José de Arimateia (Lc 23.50) e Cornélio (At 10.22); ele
chama a atenção ainda para o uso que Paulo emprega nesse sentido (Rm 3.10; Cl 4.1; Tt 1.8; 2Tm 4.8)
(ibidem, p. 49).
89
Ibidem, p. 49.
90
Ibidem (grifo do original).
91
Ibidem, p. 60.
92
Ibidem, p. 135-6.
93
Ibidem, p. 76 (grifo do original).
94
Ibidem, p. 74.
95
Ibidem.
96
Ibidem, p. 153.
97
Ibidem, p. 90.
98
Martin Luther, Two kinds of righteousness (LW 31:297).
99
Ibidem (LW 31:299).
100
Ibidem (LW 31:298).
101
Luther, The freedom of a Christian (LW 31:344).
102
Ibidem (LW 31:349–350).
103
Ibidem (LW 31:365).
104
Ibidem (LW 31:363).
105
Luther, Treatise on good works 3.
106
Vickers, Justification by grace through faith, p. 152.
107
Ibidem.
108
Ibidem, p. 153.
109
Ibidem, p. 90.
110
CCC 1989; a citação é dos Cânones e Decretos do Concílio de Trento, 6.ª sessão (13 de janeiro de
1547), Decreto sobre a justificação 7 (Schaff: 2:94).
111
CCC 1991.
112
CCC 1992.
113
Allison, SS, p. 358.
114
CCC 1993.
115
CCC 2008 (grifo removido).
116
CCC 2010 (grifo removido).
117
Calvin, Institutes 3.18.2 (LCC 21:822-823).
118
Vickers, Justification by grace through faith, p. 152.
119
Veja críticas anteriores no capítulo 2.
120
CCC 2035.
121
CCC 2036 (grifo removido).
122
CCC 2041-2042.
123
CCC 2043.
124
CCC 2068; a citação é do Concílio Vaticano II, Lumen gentium 24.
CONCLUSÃO
MINISTÉRIO EVANGÉLICO COM
CATÓLICOS
O presente livro, Teologia e prática da Igreja Católica Romana, deteve-se na
análise evangélica da teologia e prática católicas conforme expostas no
Catechism of the Catholic Church. Ele foi concebido exclusivamente com o
1203

propósito de chamar a atenção para os inúmeros pontos em comum que partilham


a teologia católica e a evangélica, e propor também uma crítica das muitas
divergências entre ambas. Outro diferencial diz respeito à ênfase da crítica no
sistema católico de modo geral, alicerçado nos dois axiomas da interdependência
natureza-graça e na interconexão Cristo-Igreja, além de questões específicas
relacionadas a cada doutrina e prática católicas.
Enquanto escrevia este livro, ia ficando cada vez mais fascinado com as
concordâncias teológicas entre a teologia católica e a evangélica, e esse fascínio
foi um grande estímulo para mim. De forma oposta, a crítica clara e incisiva das
doutrinas e práticas em que a teologia católica discordava da teologia evangélica
não me deu prazer algum. Contudo, a crítica a essas divergências, por mais
incômoda que tenha sido, é necessária por diversos motivos. O leitor evangélico
deste livro conhece muitos católicos e deseja compreender o que eles creem e
por quê. Além disso, o leitor católico deste livro conhece muitos evangélicos e
deseja também compreender em que eles creem e por que, além de entender a
avaliação que fazem da teologia católica. Não bastasse isso, o diálogo entre
católicos e evangélicos só prosseguirá de forma construtiva se ambas as
perspectivas teológicas compreenderem plenamente uma à outra, tanto aquilo
que têm em comum quanto as suas divergências. Por fim, os católicos que estão
migrando para o evangelicalismo e os evangélicos que estão migrando para o
catolicismo precisam conhecer no que estão se envolvendo. Sei perfeitamente
que, na realidade, um dos fatores mais decisivos dessa jornada entre fés é o
conselho de um guia ou mentor espiritual da fé para a qual a pessoa está
migrando. Uma consequência disso é que as questões de ordem doutrinária e
prática das quais este livro se ocupou talvez não sejam fundamentais no processo
de tomada de decisão. Na verdade, é possível que sua influência seja mínima
nesse processo. Essa realidade, porém, não torna as questões teológicas menos
importantes, pois quando um evangélico se torna católico, por exemplo, terá de
aceitar integralmente a teologia católica. Consequentemente, terá de abraçar a
tradição da Igreja Católica e seu magistério; o papel de Maria como advogada,
auxiliadora, benfeitora e medianeira; a justificação não só como uma declaração
de isenção diante de Deus e a imputação da justiça de Cristo, mas também como
um progresso contínuo de santidade; a perda da salvação como consequência de
um pecado mortal cometido e que levará ao castigo eterno no inferno; a
impossibilidade da certeza da salvação; a realidade do purgatório; a
infalibilidade do papa e do colégio episcopal; a economia sacramental; a
transubstanciação; a participação nos sacramentos da igreja para recebimento da
graça divina com os quais deverá cooperar para merecer a vida eterna;
exigências que vão além da Escritura e que são necessárias à salvação; e muito
mais. Se este livro tiver conseguido chamar a atenção para a grande brecha que
há nas questões listadas acima, e que separam o catolicismo do evangelicalismo,
por mais difícil que tenha sido o processo da crítica, pelo menos as pessoas
ficarão cientes da distância teológica entre os dois, ainda que essas questões não
ocupem o âmago de sua jornada de fé.
Meu interesse na conclusão deste livro é me dirigir aos evangélicos que
desejam saber como se envolver em um ministério com católicos. Tomando o
conteúdo deste livro como fundamento do que será oferecido a seguir, chamo a
atenção para os seguintes pontos: em primeiro lugar, à luz da interdependência
natureza-graça como axioma do sistema católico, o ministério evangélico com
católicos precisa quebrar a dependência da graça em relação à natureza. Isso é
possível acentuando-se a profundidade e a obstinação do pecado, que torna a
natureza incapaz de receber e de transmitir graça, e enfatiza a situação
irremediável da natureza e a necessidade desesperadora não de revisão nem de
renovação, mas de recriação. Além disso, o ministério evangélico destaca a
intervenção radical da graça divina comunicada por meio de um evangelho que
vem de fora do ser humano e que proclama uma justiça alheia imputada pela
justificação — a declaração de que um povo pecador agora foi justificado — e
não de uma justiça infundida, elevando assim a natureza humana com a
possibilidade de perfeição.
Em segundo lugar, o ministério evangélico com católicos terá de desfazer a
íntima conexão entre Cristo e a igreja, sem, contanto, atacar a importância da
igreja ou torná-la menos crucial. O ministério evangélico deverá destacar o
governo soberano do Deus-homem que subiu ao céu, opera por meio do Espírito
de Deus e pela Palavra de Deus e não transmitiu suas prerrogativas de autoridade
para a Igreja Católica e sua hierarquia. Além disso, o ministério evangélico deve
enfatizar a natureza instrumental da igreja e seu ministério que não age na
pessoa de Cristo, não é infalível e não estabelece o cânon da Escritura e sua
interpretação oficial, tampouco, de modo geral, faz a mediação entre a natureza e
a graça. Reitero que esse ponto não tem como objetivo censurar a igreja, seus
líderes ou seu ministério, porém quer estabelecer uma distância apropriada
dessas realidades em relação ao axioma da interconexão Cristo-Igreja para o
qual a Igreja Católica é um prolongamento da encarnação de Jesus Cristo que
subiu ao céu.
Em relação aos conselhos práticos para o ministério evangélico com católicos,
inúmeras sugestões dão destaque ao evangelho e decorrem da doutrina da
Escritura e da sua interpretação. Uma estratégia, baseada na ignorância geral
acerca da Bíblia predominante entre os católicos, consiste em fazer com que
sejam fartamente expostos ao evangelho por meio da leitura e do estudo da
Escritura. Uma ferramenta que usamos quando trabalhamos com os católicos em
Roma consistia em nos reunirmos uma vez por semana em grupos de leitura dos
Evangelhos (e.g., Lc 19.1-10) para estudar o Evangelho programado para a
missa do domingo seguinte. Seguindo um método de estudo bíblico muito
simples — leitura do texto, observação, interpretação, aplicação e oração —,
esses grupos de leitura ajudam os católicos a se familiarizarem com a pessoa e a
obra de Jesus Cristo conforme o revela a Escritura. Crendo que “a fé vem pelo
ouvir, e o ouvir, pela palavra de Cristo” (Rm 10.17), o ministério evangélico
pode apresentar longas exposições da palavra de Cristo, inflamando a fé nele por
meio desses Grupos de Leitura do Evangelho. Uma segunda sugestão consiste no
fato de que o ministério evangélico precisa se concentrar constantemente na
autoridade bíblica em seu diálogo com católicos. Familiaridade com a Escritura,
amor à Palavra de Deus, afirmação da verdade bíblica, confiança nas promessas
da Escritura, submissão aos mandamentos bíblicos etc. não apenas enfatizam a
doutrina evangélica da Escritura, mas, igualmente importante, comunicam um
compromisso profundo e vivo com a Palavra de Deus. Entrar num debate em que
a opinião evangélica é posta em oposição ao ensino católico é pouco produtivo,
mas, se o ponto constante de referência da discussão e da disputa for a Escritura,
colocaremos no centro da conversa a devida autoridade.
Várias outras sugestões têm como objetivo ajudar a elucidar o evangelho. O
primeiro conselho é dirigido especificamente ao esclarecimento da aplicação da
obra salvadora de Deus em Cristo por meio do arrependimento e da fé. Uma
pergunta fundamental que deve ser feita antes de convidar o católico a abraçar a
salvação é a seguinte: “Você já deixou de confiar em seus esforços para ganhar o
amor e o perdão de Deus?”. O objetivo da pergunta é enfatizar que a participação
em boas obras, a frequência à missa e a dependência do batismo e a participação
em outros sacramentos etc. ainda expressam confiança na justiça própria e em
obras pessoais para que alguém possa se considerar preparado para a salvação.
Se a resposta for negativa — ou se for uma que indique que a pessoa entende a
importância da fé, mas continua comprometida em acrescentar alguma coisa à fé
somente para salvação —, é sinal de que a pessoa ainda não está pronta para
acolher Jesus Cristo. Uma resposta positiva indica que o meio prescrito de
apropriação da salvação pela graça de Deus por meio da fé foi compreendido e,
portanto, deve-se oferecer à pessoa o incentivo para que dê um passo de fé. Ao
expressar a convicção do ministério evangélico no tocante à apropriação
adequada da salvação, a simples fórmula “fé +_______” (complete com boas
obras, obediência à lei, batismo, graça sacramental, rezar o rosário etc.) cancela a
fé e torna a salvação divina nula e vazia. Esse é um tópico que precisa ser
esclarecido.
Um segundo conselho a respeito do evangelho diz respeito ao esclarecimento
do impacto que o evangelho tem sobre todas as áreas da vida. Com muita
frequência, o ministério evangélico restringe sua atenção às boas-novas como
ponto de entrada para a salvação, mas abandona em seguida a importância do
evangelho para a transformação contínua. Em vez disso, o ministério evangélico
deveria insistir nas boas-novas da graça de Deus como aquilo que suscita o
arrependimento do pecado e inflama a fé em Jesus Cristo, curando
relacionamentos arruinados, superando vícios, substituindo a mentira pela
verdade, acalmando as inseguranças e derrotando medos, salvando casamentos,
proporcionando amor e compaixão para os que não são amados e os
marginalizados, unindo gente muito diferente, promovendo a coragem para dar
testemunho de Cristo e muito mais. Como o evangelho impacta e transforma
tudo, o ministério evangélico deve pôr o evangelho sempre em plano elevado o
tempo todo.
É possível fazer várias perguntas no tocante à suficiência de Cristo e à sua
obra de salvação. É interessante observar que um elemento do catolicismo que
atrai os evangélicos para a Igreja Católica é o seu magistério e a certeza que ele
proporciona no que diz respeito à revelação, à verdade, à graça etc. Vale notar,
em contrapartida, que a teologia católica nega que o fiel possa ter certeza da
salvação, por isso parece que o ponto mais importante de certeza, que é o destino
eterno da pessoa, não pode ser encontrado na Igreja Católica. Contudo, a
teologia evangélica, pelo menos naquelas vertentes que defendem a perseverança
dos santos, oferece efetivamente tal certeza. Ao se ocupar do fruto da obra
divina da justificação — o veredito de “inocente” livra-nos da condenação; a
imputação da justiça de Cristo garante-nos lugar certo diante de Deus —, tal
certeza é comunicada. Além disso, ao enfatizar a obra intercessora de Cristo (Hb
7.25), sua promessa de preservar os cristãos firmemente até o fim e assim
garantir-lhes vida eterna (Jo 6.38-40; 10.27-29), o selo do Espírito Santo como
promessa da herança cristã (Ef 1.13,14), as promessas da Palavra de Deus (1Jo
5.11-13) e a fidelidade e o poder de Deus para efetuar a salvação completada
(1Co 1.7-9; Fp 1.6; 1Pe 1.5), o ministério evangélico oferece a verdade da
perseverança na fé e a garantia da salvação que a acompanha em contraste com a
negação dessa verdade pela teologia católica. Uma implicação desse ponto é que
o purgatório não existe, como tampouco é necessário um estado de purificação
completa para a mancha do pecado perdoado. Além disso, chama-se a atenção
para o fato de que o papel de medianeira de Maria e a obra intercessora dos
santos são desnecessários.
Outra sugestão que decorre da suficiência de Cristo e de sua obra de salvação
é que o ministério evangélico com católicos deve enfatizar a aplicação diária do
evangelho dada a sua necessidade constante de perdão. O cristão não deve
esperar para lidar de forma adequada com seu problema contínuo de pecado
acumulando pecados durante muito tempo (e. g., um ano inteiro) antes de
confessá-los. A confiança na divina promessa de que Deus é poderoso e justo
para perdoar pecados quando eles são confessados deve ser vivenciada de forma
concreta sempre que o pecado é exposto. Além disso, o ministério evangélico
não deve jamais apresentar a jornada cristã sob a fachada de uma vida perfeita.
Pelo contrário, o ministério evangélico com católicos deve ser modelo e defensor
da confissão e do arrependimento perenes.
São inúmeras as razões para a migração de evangélicos em direção ao
catolicismo, inclusive um desejo de se sentir conectado ao passado e de estar
organicamente relacionado à igreja dos tempos antigos, um desejo de unidade
entre os cristãos, um anseio por uma autoridade inconteste e o apelo do mistério
e da majestade da missa. Essas razões ressaltam o papel central que a realidade
da Igreja Católica desempenha em tais jornadas de fé. Elas também suscitam
outro conselho prático: os evangélicos envolvidos no ministério com católicos
precisam estar envolvidos em igrejas robustas que se caracterizem pela
orientação para a glória de Deus, igrejas que estejam centradas na Palavra de
Deus (entendida como a Palavra encarnada, Jesus Cristo; e Palavra inspirada, a
Escritura), animadas pelo Espírito e por ele revestidas de poder. Essas igrejas
centradas no evangelho rejeitam o entretenimento como forma de apelo para
atrair novas pessoas e não executam seus programas apenas por executar; evitam
a falsa fidelidade e obediência e, em vez disso, vivem na prática com alegre
submissão à autoridade da Escritura; dependem no mais alto grau da presença e
do poder do Espírito Santo por meio da oração; discipulam seus membros por
meio da pregação, do ensino, do cuidado pastoral, da vida comunitária,
mentoreando-os pessoalmente, e, pela disciplina da igreja; ministram as
ordenanças do batismo e da ceia do Senhor com seriedade de intenção e de
celebração daquilo que a morte de Cristo realizou, e assim por diante. Em muitas
conversas com ex-evangélicos, vêm à tona que sua experiência na igreja
evangélica foi supérflua e rasa. O ministério evangélico com católicos deve
reconhecer que tal participação superficial na igreja não segurará os evangélicos
em suas igrejas, acabando, inclusive, por incentivá-los a buscar comunhão,
unidade, autoridade e mistério em outro lugar — inclusive na Igreja Católica. O
ministério evangélico deve estar arraigado em igrejas evangélicas fortes.
Dois últimos conselhos práticos: em primeiro lugar, o ministério evangélico,
herdeiro que é da doutrina protestante do sacerdócio universal dos crentes, deve
encorajar os cristãos a participar da oração intercessora mútua, ouvir a confissão
de pecados uns dos outros e dar garantia do perdão de Deus, participar
missionalmente da causa de Cristo e ensinar e admoestar uns aos outros com o
evangelho. Viver a vida e participar do ministério juntos apresentará a fé
evangélica como algo distinto da realidade de sua congênere católica (ainda que
a teologia católica reconheça a importância do sacerdócio comum ou batismal de
todos os seus membros). Em segundo lugar, o ministério evangélico deve
acolher uma visão bíblica da vida com Deus acompanhada do florescimento
humano aliado à graça divina, ao perdão de Cristo e ao revestimento de poder do
Espírito; deve se empenhar com tudo o que é para tornar concreta essa visão,
com profunda consciência de como a Escritura e a teologia evangélica
participam tanto do respeito quanto da crítica à teologia e prática católicas.
CONHEÇA OUTRA OBRA DO AUTOR
Teologia Histórica
Um excelente recurso para entender o desenvolvimento da teologia cristã
nos últimos 2.000 anos.
Em Teologia histórica, Gregg Allison oferece a oportunidade de estudar o
desenvolvimento histórico da teologia, seguindo uma organização tópico–
cronológica e apresentando um elemento teológico por vez na história da
doutrina cristã. Essa abordagem permite que os leitores se concentrem em
apenas um princípio do cristianismo de cada vez, acompanhado de sua
formulação na igreja primitiva, na Idade Média, na Reforma, na era pós-Reforma
e no período moderno.
O livro também inclui um conjunto de fontes primárias, com citações de
Cipriano, Agostinho, Tomás de Aquino, Lutero, Calvino, Barth e outros. Allison
faz referência às edições mais acessíveis da obra desses teólogos notáveis para
que os leitores possam continuar seu estudo da teologia histórica com aqueles
que contribuíram de forma muito significativa para a história cristã.
Esta obra foi composta em Adobe Caslon Pro,
impressa em papel off-set 63 g/m2, com capa dura,
na Imprensa da Fé, em maio de 2018.
Gregg R. Allison (PhD, Trinity Evangelical Divinity School) é professor de
Teologia Sistemática no Southern Baptist Theological Seminary, em Louisville,
Kentucky. Lecionou Teologia e História da Igreja por quase uma década no
Western Seminary, em Portland, Oregon. Foi também professor adjunto da
Trinity Evangelical Divinity School, da Elgin Community College, da Judson
College, do Institute of Biblical Studies in Western Europe and the United States
e do Re:Train. É pastor da igreja Sojourn Community Church e estrategista
teológico da Sojourn Network, rede de plantação de igrejas composta por
aproximadamente 30 igrejas locais. É autor de Teologia histórica: uma
introdução ao desenvolvimento da doutrina cristã (Vida Nova).
Com profundidade e clareza características, Gregg Allison conduz o leitor à
intersecção entre catolicismo e protestantismo e analisa o que há de comum e de
diferente entre os dois sistemas teológicos. Além de proporcionar um insight
indispensável ao tema, esse livro é exemplo do tipo de abordagem cordial e
sensata extremamente necessária ao diálogo hoje.
Chris Castaldo, diretor do Ministry of Gospel Renewal, da Wheaton
College, e autor de Talking with Catholics about the gospel
Protestantes e católicos precisam inventar um novo tipo de relacionamento. O
fogo e a espada da era da Reforma não foram dignos de Cristo, assim como os
esforços precipitados de líderes irresponsáveis no século passado de negar que
jamais houve, de fato, discordância entre nós. Será possível pregarmos diferentes
perspectivas do evangelho e ainda amarmos uns aos outros? Se assim for, como
entender essa relação no plano espiritual e eclesiástico? Com esmero sistemático
digno de um Tomás de Aquino, Gregg Allison expõe as dificuldades teológicas
em jogo. O autor nos apresenta um panorama completo das questões que nos
desafiam, e seu compromisso de amar de forma irrestrita os católicos enquanto
lhes diz a verdade nos mostra como lidar com os conflitos de maneira digna de
Cristo. O leitor só terá a ganhar com o estudo diligente apresentado nesse livro.
Greg Forster, diretor do programa Kern Family Foundation e autor de Joy
for the world
Uma avaliação evangélica muito útil do catolicismo romano. Ao contrário de
tantos outros livros sobre o assunto, a obra não se detém simplesmente nos
pontos em que há diferenças, estendendo-se por toda a vastidão do ensino
católico romano.
Anthony S. Lane, professor de Teologia Histórica da London School of
Theology e autor de Exploring Christian doctrine

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