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Laerte Tardeli Hellwig Voss

A tensão já e ainda não em Oscar Cullmann:


Possibilidades e Implicações para a Missão da Igreja
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613118/CA

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Teologia do Centro de Teologia e
Ciências Humanas da PUC-Rio como requisito parcial
para obtenção do grau de Mestre em Teologia.

Orientador: Prof. Cesar Augusto Kuzma

Rio de Janeiro
Abril de 2018
Laerte Tardeli Hellwig Voss

A tensão já e ainda não em Oscar Cullmann:


possibilidades e implicações para a Missão da
Igreja

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção


do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em
Teologia do Departamento de Teologia do Centro de Teologia
e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão
Examinadora abaixo assinada.
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Prof. Cesar Augusto Kuzma


Orientador
Departamento de Teologia – PUC-Rio

Profª. Maria Clara Lucchetti Bingemer


Departamento de Teologia – PUC-Rio

Prof. Arnaldo Érico Huff Júnior


UFJF

Profª. Monah Winograd


Coordenadora Setorial de Pós-Graduação e Pesquisa do
Centro de Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 05 de abril de 2018.


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do
trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador.

Laerte Tardeli Hellwig Voss

Concluiu o Bacharelado em Teologia pela Universidade Luterana do


Brasil em 2002 e Especialização em Habilitação ao Ministério Pastoral
no Seminário Concórdia em 2004. Possui especialização em Capelania
Hospitalar Clínica e Aconselhamento Pastoral pelo College of Pastoral
Supervision and Psychotherapy em 2008 e em Liderança Missional, pelo
Pastoral Leadership Institute em 2014. Coordena e colabora em cursos e
associações eclesiais.
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Ficha Catalográfica

Voss, Laerte Tardeli Hellwig

A tensão já e ainda não em Oscar Cullmann : possibilidades e


implicações para a missão da igreja / Laerte Tardeli Hellwig Voss ;
orientador: Cesar Augusto Kuzma. – 2018.
239 f. ; 30 cm

Dissertação (mestrado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio


de Janeiro, Departamento de Teologia, 2018.
Inclui bibliografia

1. Teologia – Teses. 2. Tensão já e ainda não. 3. Temporalidade


escatológica. 4. Oscar Cullmann. 5. Missão da igreja. 6. Escatologia.
I. Kuzma, Cesar Augusto. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro. Departamento de Teologia. III. Título.

CDD: 200
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À minha esposa Diani e aos nossos filhos Nina e Benjamin, quem já enchem a
minha vida de amor e a Sara, quem ainda não nasceu, mas não tarda em chegar
para completar nossa família.
Agradecimentos

A Deus, quem já realizou em Cristo nossa salvação, mas ainda não


concretizou plenamente o seu Reino entre nós.
À minha esposa Diani, com quem já tive a alegria de compartilhar quase
20 anos de amor, amizade e parceria, e para quem ainda não encontrei maneiras
suficientes de demonstrar o quanto sou abençoado e feliz ao lado.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Cesar Augusto Kuzma. Ao entregar a
dissertação antes da defesa, ainda não tenho certeza da aprovação dela ou mesmo
de sua contribuição para a teologia, mas já posso lhe garantir que aprendi e cresci
muito nesta trajetória. Você é fonte de inspiração e esperança para aprendizes
como eu. Sua influência neste trabalho e na minha reflexão escatológica-
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missiológica tem sido marcante. Muito Obrigado!


Meus sinceros agradecimentos aos professores e professoras, funcionários
e funcionárias, alunos e alunas do Departamento de Teologia da PUC-Rio,
especialmente aos mestres com quem tive o prazer de aprender em sala de aula ou
em atividades extraclasses, e aos colegas da pós-graduação com quem tive o
privilégio de conviver e trocar conhecimento. Já fui tocado indelevelmente por
todos vocês, e ainda não pretendo desfazer nossos laços fraternos.
À CAPES e à PUC-Rio pelos auxílios concedidos, sem os quais este
trabalho não poderia ter sido realizado. À PUC Rio, sou particularmente grato
pela acolhida que me foi ofertada. Ainda não sei até quando continuarei como um
aluno desta preciosa instituição, mas já adianto que a carregarei por muito tempo
em meu coração e permanecerei sempre agradecido pelo investimento no meu
estudo e por dois anos frutíferos.
Agradeço ao Prof. Dr. Gérson Luís Linden e em seu nome a todos os
professores do Curso de Teologia do Seminário Concórdia, minha alma mater. O
Professor Gérson foi o primeiro a me inspirar nos temas da escatologia e tem me
acompanhado nas pesquisas desde o tempo da graduação. Nesta dissertação, sua
orientação e incentivo também foram valiosos. Professor... Ainda não se esgotou
minha paixão pelo diálogo entre o Reino de Deus e a missão da Igreja, nem
minhas perguntas. Mas esta pesquisa já chegou a algumas conclusões. Obrigado
pela mentoria. Espero seguir contando com seus insights.
Agradeço aos primos Gabi e Felipe Germani e à amiga Heliete Reschke. A
amizade e a ajuda de vocês nestes quatro anos aqui no Rio de Janeiro e neste
trabalho são de encher meus olhos de lágrimas. Sei que já possuo uma conta
enorme para quitar com vocês, mas ainda não posso lhes garantir que não pedirei
mais nenhum favor especial (e de última hora). Diani, as crianças e eu amamos
vocês!
E não tenho palavras para agradecer o estímulo, a paciência e o amor da
Congregação Evangélica Luterana Cristo Redentor, de Copacabana, povo de Deus
a quem tenho a satisfação de ser pastor. Especialmente à sua diretoria atual, que
demonstrou muita generosidade, permitindo-me tirar tempo para concluir este
escrito. Já experimentamos tempos de muito amadurecimento e muito trabalho no
Reino de Deus na zona sul do Rio de Janeiro, mas creio que ainda não chegamos
onde podemos chegar e que o melhor de nossa caminhada juntos ainda está por
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vir.
Resumo

Voss, Laerte Tardeli Hellwig; Kuzma, Cesar Augusto (Orientador). A


tensão já e ainda não em Oscar Cullmann: possibilidades e
implicações para a Missão da Igreja. Rio de Janeiro, 2018, 239p.
Dissertação de Mestrado – Departamento de Teologia, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.

A tensão já e ainda não em Oscar Cullmann e suas implicações e


possibilidades para a missão da Igreja caracteriza-se por um trabalho de pesquisa
que se desenvolve em perspectiva de diálogo entre a Escatologia e a Missiologia.
O objeto principal de análise é o paradoxo temporal clássico da teologia
conhecido por já e ainda não do Reino de Deus. O trabalho parte da pergunta pela
natureza temporal da esperança do povo de Deus. Ele começa na Escritura, passa
pela trajetória da Igreja através dos séculos e chega até os tempos atuais. Percebe-
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se como a expectativa pelo cumprimento das promessas de Deus alternou-se ao


longo da história. Às vezes, a orientação pendia para uma ênfase futurista e
celestial. Outras vezes, ela se concentrava em questões contemporâneas e terrenas.
A reflexão descobre então, em Oscar Cullmann, uma proposta significativa para
resolver o problema da polarização da temporalidade escatológica. Cullmann, a
partir de sua exegese do Novo Testamento, vê como o Reino de Deus e suas
promessas reivindicam uma dupla aplicação temporal, um aspecto já inaugurado
na pessoa e obra de Jesus Cristo, já presente entre nós, e outro ainda não
consumado, o qual é esperado para o futuro, para a parusia. Nascia o insight já e
ainda não. Em seguida, esta dissertação vai mostrar como a tese escatológica de
Cullmann foi recebida e reverberada por outros teólogos de seu tempo. E por
último, esta reflexão conduz ao subtítulo deste trabalho, o qual busca explorar
como a tensão já e ainda não informa a mensagem e afeta a postura missional da
Igreja.

Palavras-chave
Tensão já e ainda não; Temporalidade Escatológica; Oscar Cullmann;
Missão da Igreja; Escatologia.
Abstract

Voss, Laerte Tardeli Hellwig; Kuzma, Cesar Augusto (Advisor). The


tension already and not yet in Oscar Cullmann: possibilities and
implications to the Mission of the Church. Rio de Janeiro, 2018, 239p.
Dissertação de Mestrado – Departamento de Teologia, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The tension already and not yet in Oscar Cullmann - possibilities and
implications to the mission of the Church – is a research that proposes a dialogue
between the Eschatology and the Missiology, in which the main goal is to analyze
the classic paradox in theology known as the already and the not yet of the
Kingdom of God. The essay starts by exploring the question about the temporal
nature of the hope that God’s people have nurtured. It begins in the Scripture,
passes through different epochs in the record of the Church up to the state of the
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issue in our days, perceiving how the people’s expectation for the fulfillment of
God’s promises has alternated throughout history. Sometimes it displayed a more
futuristic and celestial emphasis. In another period, it pointed to a more present-
day and worldly orientation. The research discovers then, in Oscar Cullmann, a
significant proposal to solve the dilemma of any eventual polarization. Cullmann,
from his exegetical work in the New Testament, see how God’s Kingdom and its
promises have a double timing application: an aspect already inaugurated by the
person and work of Jesus Christ, already present among us, and another not yet
consumed, which is still awaited in the future, in the breakthrough of the
parousia. Afterwards, this dissertation will show how Cullmann’s thesis was
received and reverberated across the thought of various theologians. And lastly,
this reflection will focus in the dissertation subtitle, which seeks to address how
the tension already and not yet informs the missional message and affects the
missional attitude of the Church.

Keywords
Tension already and not yet; Eschatological temporality; Oscar Cullmann;
Mission of the Church; Eschatology.
Sumário

1. Introdução 13

2. A questão da temporalidade escatológica 16


2.1. A temporalidade escatológica na revelação bíblica 21
2.1.1. A escatologia hebreu-judaica do Antigo Testamento:
A expectativa por um futuro, que por vezes revela sinais no
presente 21
2.1.2. A escatologia crística do Novo Testamento:
O futuro visitou o presente na pessoa e obra de Cristo. 25
2.2. A temporalidade escatológica na história da Igreja 30
2.2.1. A escatologia apocalíptica da comunidade primitiva:
O futuro está logo ali, mas como já foi experimentado, ele mexe
com o presente 31
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2.2.2. A escatologia helênica e expansionista da patrística e da


cristandade: O futuro não chegou! É necessário que o presente
o redefina e o construa 37
2.2.3. A escatologia novíssima da Idade Média:
O futuro é tudo o que importa, prepare-se no presente 44
2.2.4. A escatologia iluminista da Idade Moderna:
Chega de futuro, queremos o presente! 49
2.2.5. A escatologia efervescente do Século XX:
De volta para o futuro, mas um futuro com presente 54
2.2.6. A escatologia pós-moderna e tendências contemporâneas:
O futuro e o presente liquidificados. 69
2.3. Síntese conclusiva 76

3. A tensão já e ainda não em Oscar Cullmann 78


3.1. Relevos biográficos de Oscar Cullmann 80
3.2. As digitais de Cullmann no cenário ecumênico 83
3.3. Produção literária 87
3.4. O contorno da teologia de Oscar Cullmann 90
3.4.1. O arcabouço 91
3.4.2. O conteúdo 94
3.4.2.1. História da Salvação 95
3.4.2.2. Cristologia 99
3.4.2.3. Eclesiologia 101
3.4.2.4. Escatologia 105
3.4.2.5. Missiologia 109
3.5. O insight já e ainda não na teologia de Oscar Cullmann 115
3.5.1. O já e ainda não e a metáfora do dia D 117
3.5.2. A sobreposição das duas eras e a preponderância do já 119
3.5.3. O já e ainda não, o conceito de tempo e o divórcio da
filosofia grega 120
3.5.4. O já e ainda não e o culto judaico-cristão 123
3.5.5. O já e ainda não e a ética cristã 125
3.6. Síntese conclusiva 128

4. A receptividade e a reverberação do já e ainda não de


Cullmann 129
4.1. George Elton Ladd 130
4.2. Wolfhart Pannenberg 133
4.3. Jürgen Moltmann 137
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4.4. N.T. Wright 140


4.5. José Míguez Bonino 143
4.6. Jean Daniélou & Gustave Thils 148
4.7. Vaticano II – Lumen Gentium 152
4.8. Joseph Ratzinger 155
4.9. Gustavo Gutiérrez 159
4.10. Leonardo Boff 162
4.11. Síntese conclusiva 165

5. Possibilidades e implicações missionais da tensão


escatológica já e ainda não 167
5.1. A tensão já e ainda não informa a mensagem missional:
dimensão querigmática 170
5.1.1 Uma mensagem cristocêntrica e pneumatológica 171
5.1.2 Uma mensagem basileica e soteriológica 176
5.1.3 Uma mensagem pessoal e cósmica 182
5.1.4 Uma mensagem monergista e sinergista 188
5.2. A tensão já e ainda não afeta a postura missional:
dimensão performática 192
5.2.1 Uma postura fiducial e kenótica 192
5.2.2 Uma postura peregrina e encarnada 199
5.2.3 Uma postura expectante e militante 205
5.2.4 Uma postura cultual e cultural 210
5.3. A missão para um ainda não, no já e a missão do já,
com um ainda não. 219
5.4. Síntese conclusiva 225

6. Conclusão 226

7. Referências bibliográficas 229


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“A história se mantém aberta pela missão.”


J.C.HOEKENDIJK

“... tendo provado os poderes do mundo futuro...”


HEBREUS 6.5

“Preciso preparar meu coração.


Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde,
desde as três eu começarei a ser feliz.
Quanto mais a hora for chegando, mais eu
me sentirei feliz.”
ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY
1.
Introdução

Verão de 1997. Curitiba, Paraná. Ao participar de uma oficina sobre o Livro


do Apocalipse num congresso de jovens cristãos, tive meu primeiro encontro
significativo com a escatologia. O preletor, professor de um Seminário Teológico,
com carisma e erudição mostrava de forma impressionante como aquele livro um
tanto enigmático, tenebroso, permeado de linguagem simbólica, podia ser melhor
compreendido. Elucidando o sentido e o referencial das imagens contidas,
mostrava como uma havia uma lógica plausível, e mais especialmente, como os
conteúdos que se descortinavam por trás dos ícones misteriosos eram, quase
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todos, de um consolo e de uma esperança inigualáveis. O futuro prometido por


Deus era seguro, garantido e incrível. Ainda não estava ao nosso alcance, é
verdade, mas podia ser esperado, com serenidade, perseverança e expectativa.
Ah... A parusia... A plenitude e a certeza do ainda não. Foi amor à primeira vista.
Ao término da palestra, terminamos todos naquela sala de aula suspirando...
Maranata!
Verão de 2016. Gávea, Rio de Janeiro. Quase vinte anos depois daquele
primeiro encontro com a escatologia, outro marcaria decisivamente minha relação
com a matéria. Durante a graduação, e posteriormente em algum livro ou
simpósio, já havia acrescentado algumas novas informações àquelas originais
acolhidas no congresso, mas nada que se comparara ao estava ouvindo naquelas
primeiras aulas da pós-graduação, com aplicação semelhante do educador. Era
outro ambiente. Outro nível acadêmico. Outro professor. E outro enfoque. A
parusia não era tudo o que a doutrina das últimas coisas tinha a dizer. Havia outro
lado, outro ângulo de se olhar e viver a esperança cristã. O Reino de Deus que,
num primeiro momento parecia estar relacionado apenas com eventos vindouros,
podia ser experimentado, em sinais, já no presente. Tudo porque em Cristo, o
futuro já havia começado, o Reino já havia sido inaugurado, e nós éramos parte
dele. Para fazer justiça à história, a verdade é que essa perspectiva da realidade
14

atual do Reino de Deus já havia sido articulada pelo primeiro professor. Mas de
alguma forma, o ainda não havia sobressaído na compreensão. Agora era o já que
reivindicava sua vez. E além do choque memorável, o novo enfoque também fez
suscitar uma ideia na hora certa. Eu que havia ingresso no mestrado sem projeto
de pesquisa definido, não precisaria mais pensar a respeito. Havia encontrado o
tema. Exploraria a tal tensão já e ainda não do Reino de Deus. Tentaria encontrar
suas raízes, seus desdobramentos, suas alternativas. De certa forma, essa questão
fica nítida no próximo capítulo.
Mas nem só de motivações de cunho mais intimista foi construída essa
pesquisa. Também o ministério pastoral, ao qual tenho estado dedicado desde
2004, estimulou-me a seguir por esse viés. A carência de uma teologia
escatológica mais equilibrada na paróquia, que os hinários, as liturgias, as
homilias e os planejamentos por aí atestam, bem como a desesperança ou a falta
de propósito na práxis da esperança em parte de boa parte dos irmãos e irmãs na
fé, também mexeu com a gente. O esgotamento de se observar alienação e
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obsessão com o céu, por um lado, e ativismo e promessas fakes, por outro, estava
incomodando e nos orientando a lidar com o assunto.
Ainda dentro dessa linha pastoral, outra preocupação que os temas de
escatologia despertam é quanto ao testemunho ao mundo. Num contexto cada vez
mais líquido, cansado, onde nada mais parece encantar, sensibilizar, confrontar,
como falar de fazer parte, de esperançar, construir e se engajar num movimento
contrário aos valores dominantes para construir uma realidade nova? Como falar
de trabalhar em prol do Reino de Deus? Numa sociedade cada vez mais cética,
cínica, desconfiada e hostil a Deus, como falar de perdão, cura, renovação, de
ressurreição, de vida eterna? Como falar sobre um Deus real que está a caminho,
para consertar o mundo e pôr todos os pingos nos i’s? Como comunicar o
Evangelho para pessoas que quando escutam a velha interrogação evangelística
“Você está pronto para a volta de Jesus?”, respondem “Não, tô de boa”. E não só
falar para esse ser humano, mas falar com. Esperar junto dos que esperam
sozinhos ou nem mais motivos possuem para esperar. Responder às perguntas que
eles fazem. Essas questões atormentam, se não todos os missionários e líderes
cristãos, pelo menos àqueles que estão em ambientes mais carentes, social ou
espiritualmente. Do envolvimento que temos com a Igreja, do amor que sentimos
por ela e pelos que estão à margem do amor de Deus em Cristo, também nasceu
15

nosso ímpeto desta pesquisa. Nosso capítulo conclusivo e o enfoque principal que
decidimos dar ao trabalho estão em sintonia com essa motivação particular. A
escatologia, por si só, é apaixonante. Mas quando a juntamos à missiologia, então
temos um cenário comovente, e fértil.
Um último comentário nesta introdução é o componente acadêmico. Dentre
as várias abordagens que poderíamos ter utilizado para a relação escatologia-
missiologia, ou para o paradoxo temporal-escatológico entre o passado-presente-
futuro de Deus, escolhemos uma, bem específica: A tensão já e ainda não no
teólogo Oscar Cullmann. Ela se deu por duas razões: Em primeiro lugar, uma
tentativa de descobri-lo, (re)apresentá-lo e aprofundá-lo na reflexão
contemporânea, especialmente no Brasil, onde não muito se conhece do professor
teuto-francês. Quando começamos a pesquisa tínhamos uma suspeita de sua
relevância para a questão escatológica-missiológica, e para a teologia em geral.
Depois de investigá-lo com um pouco mais de atenção, o que era uma suspeita se
tornou certeza. Esperamos mostrar o valor de sua teologia, especialmente de seu
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insight já e ainda não ao longo do trabalho. Esse argumento se evidencia, muito


especialmente, nos capítulos três e quatro. E a segunda razão pela qual
escolhemos particularmente Cullmann, para alavancar a tensão já e ainda não, é
valer-nos deste momentum sagrado que estamos desfrutando de aproximação
dialogal-ecumênica, particularmente na relação católico-luterana, e continuar
construindo no legado que Cullmann nos deixou. Não pretendemos honrá-lo neste
escrito com uma investigação mais pormenorizada de suas ações ecumênicas, o
que certamente poderia ser, sim, adequado. Ainda que deixamos transparecer, de
forma objetiva, um pouco de sua história neste labor, no capítulo três, nossa forma
de homenagem, por assim dizer, foi diferente. O tributo escolhido foi tentar deixar
Cullmann nos inspirar no espírito dialético de aproximação que o caracterizava, e
estimular a que sua teologia siga conversando com outros teólogos de tradições
diversas e fecundando. Fizemos isso no capítulo quatro.
Nossa metodologia foi a da pesquisa bibliográfica. Buscamos colher
material e embasar nossos conteúdos informativos e propositivos em subsídios de
base teórica múltipla. No que tange ao estudo de Cullmann e sua tensão já e ainda
não se destacam as obras Cristo e o Tempo, Cristologia do Novo Testamento e
Salvation in History.
2.
A questão da temporalidade escatológica

Já dizia Luis Carlos Susin que a “teologia cristã é uma encruzilhada de


muitos caminhos, e a escatologia é a chegada desses muitos caminhos”.1 Essa é
uma daquelas conclusões que não se demora muito para chegar quando se
envereda por esta área de pesquisa. Tendo tal representatividade dentro da
teologia, muitas são as possibilidades de interação que emanam dela, muitas são
as vias de acesso e, por conseguinte, muitas as questões possíveis de ser postadas.
Difícil não se apaixonar pela escatologia. Como temos visto em profusas
experiências, o próprio termo já tem a capacidade de despertar certo fascínio.2
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1
SUSIN, Luis Carlos. Assim na Terra como no Céu: Breviláquio sobre escatologia e criação.
Petrópolis: Vozes, 1995, p.11.
2
“O termo escatologia origina-se de duas palavras gregas, eschatós e logos, e significa „doutrina
das últimas coisas‟. Geralmente, tem sido entendido como referindo-se a eventos que ainda virão a
acontecer, relacionados tanto com o indivíduo como com o mundo. No que se refere ao indivíduo,
pensava-se que a escatologia se ocupava de assuntos tais como a morte física, imortalidade, e o
assim chamado „estado intermediário‟ – o estado entre a morte e a ressurreição geral. Com relação
ao mundo, a escatologia era vista como tratando da volta de Cristo, da ressurreição geral, do juízo
final e do estado final das coisas.” HOEKEMA, Anthony. A Bíblia e o Futuro: A Doutrina Bíblica
das Últimas Coisas. Trad. Karl H. Kepler. São Paulo: Cultura Cristã, 1989, p.9. Ainda sobre o
vocábulo no grego e seu uso bíblico-teológico: “Se procurarmos compreender o termo
„escatologia‟ a partir das raízes do mesmo na língua grega, então toparemos com três nuances de
significado: a) O ensino ou doutrina sobre o último – entendido como uma pessoa (masc. sing.), a
saber, sobre Jesus Cristo como o Primeiro e o Último, o Alfa e o Ômega, aquele que ontem, hoje e
eternamente é e permanece o Senhor. De acordo com esta nuance do termo, todos os temas da
escatologia estão, de alguma forma, diretamente ligados à pessoa e à obra de Jesus Cristo, não
podendo ser abordados de forma isolada da Cristologia e da Soteriologia. A ligação com a pessoa e
a obra de Jesus Cristo mostra, também, a conotação estritamente soteriológica da escatologia
cristã, em diferença para com a teologia da criação (Protologia). Escatologia tem a ver essencial- e
restritamente com salvação que veio, vêm e virá a nós graciosamente através de Jesus Cristo. b) O
ensino ou doutrina sobre a última coisa – entendida como acontecimento, fato, situação, estado de
existência etc. (neutro singular, no grego). Poderíamos pensar em acontecimentos como morte,
ressurreição, juízo final etc. que trazem viradas significativas na dimensão pessoal, histórica ou
cósmica. Mas poderíamos pensar também em situações ou estados de existência que não se deixam
delinear muito bem a partir de nossa noção cronológica de tempo, como por exemplo, a existência
pós-mortal. c) O ensino ou doutrina sobre as últimas coisas – entendidas como o conjunto dos
eventos ou estados finais e derradeiros (masc. plural), haja visto que não é possível dilacerar o
corpo da esperança cristã em eventos isolados ou separáveis do todo da obra escatológica de Deus,
como se um não estivesse intrinsecamente ligado aos outros ou ao todo. Se nos orientamos no uso
grego do conceito, o termo „escatologia‟, quando utilizado, deveria sempre levar em conta
simultaneamente estas três nuances de significado, de modo que cada parte encontre o seu espaço
em um todo maior, o qual por sua vez não pode ser desvinculado dogmaticamente da pessoa de
Jesus Cristo”. SCHWAMBACH, Claus. Escatologia como categoria sistemático-teológica: Um
17

No entanto, a deferência pela escatologia nem sempre foi respeitada, ou


ainda, valorizada. Pelo contrário, por muito tempo ela ficou relegada a um
segundo, terceiro ou depois-do-último plano. Ao fator consolador, assustador ou
alienante do epílogo das homilias. A vegetar esterilmente3 em anexos de
dogmáticas. “Ao fechar a abóboda sistêmica teológica, inseria-se uma última
cunha com os Novíssimos”4, como era até há algum tempo reputada a
escatologia.5
Felizmente a escatologia foi (ou melhor, está sendo) redescoberta. Porque de
sua apropriada consideração também depende a saúde de toda a reflexão
teológica. Jürgen Moltmann, um dos mais importantes escatologistas dos últimos
50 anos, disse com propriedade:
O Cristianismo é total e visceralmente escatologia, e não só como apêndice; ele é
perspectiva, e tendência para frente, e, por isso, renovação, e transformação do
presente. O escatológico não é algo que se adiciona ao cristianismo, mas é
simplesmente o meio em que se move a fé cristã, aquilo que dá o tom a tudo que há
nele, as cores da aurora de um novo dia esperado que tingem tudo o que existe [...]
Por isso mesmo, a escatologia não pode ser simplesmente parte da doutrina cristã.
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Ao contrário, toda pregação e mensagem cristãs têm orientação escatológica, a qual


é também essencial à existência cristã e à totalidade da igreja [...] Por conseguinte,
a teologia correta deve ser pensada a partir de sua meta futura. A escatologia não
deve ser seu fim, mas seu princípio.6

ensaio em perspectiva protestante. In Vox Scripturae. Revista Teológica Brasileira, São Bento do
Sul: União Cristã, v. XIV, n. 2, 2006, p. 136-137.
3
MOLTMANN, Jürgen. Teologia da Esperança: estudos sobre os fundamentos e as
conseqüências de uma escatologia cristã. 3. ed. rev. e atual. Tradução Helmuth Alfredo Simon.
São Paulo: Loyola, 2005, p.29.
4
LIBÂNIO, João Batista., BINGEMER, Maria Clara L. Escatologia Cristã. Petrópolis: Vozes,
1985, p.19.
5
“O termo „escatologia‟ é encontrado pela primeira vez como título do 5. volume da dogmática de
Ph. H. Friedlieb (1644). Da Escatologia fazem parte, segundo Friedlieb, seis temas: morte,
ressurreição dos mortos, juízo final, consumação do mundo, inferno ou morte eterna e vida eterna.
Embora ele não defina esta expressão artificial („escatologia‟), é provável que o pano de fundo
bíblico que serviu de base para seu uso do termo foi 1 Co 15.26. Johann Gerhard, teólogo da
Ortodoxia Luterana, ainda havia arrolado estes seis temas em sua dogmática sob o título „De
novissimis‟ – „Sobre as últimas coisas‟ [ou: Sobre os acontecimentos novíssimos][...] Embora
Gerhard ainda não tenha usado o termo „escatologia‟, o conteúdo de sua abordagem „Sobre as
últimas coisas‟ nos oferece um termo de conteúdo, em última análise, paralelo ao designado pela
expressão escatologia, introduzido por Friedlieb logo depois. Em Gerhard e Friedlieb, a
escatologia ainda figura no conjunto dos demais temas dogmáticos. Como complexo independente
de temas, o termo “escatologia” irá despontar apenas em 1677, com a publicação da Dogmática de
Abraham Calov”. SCHWAMBACH, Claus. Escatologia como categoria sistemático-teológica. Um
ensaio em perspectiva protestante. Vox Scripturae. Revista Teológica Brasileira, São Bento do Sul:
Editora União Cristã, v. XIV, n. 2, 2006, p.135-136. Em território católico, seguimos o
depoimento de Renold J. Blank. Além de confirmar que primeiramente o termo foi usado pelo
teólogo luterano A. Calov, ele vai dizer: “No contexto católico, o termo aparece primeiro na obra
de F. Oberthur, Biblische antropologie (Antropologia bíblica), publicada nos anos 1807-1810.
BLANK. Renold J. Escatologia do mundo: o projeto cósmico de Deus. São Paulo: Paulus, 2001,
p.77.
6
MOLTMANN, Teologia da Esperança, p.30-31.
18

Uma das formas de se considerar apropriadamente a escatologia e, assim, ter


uma melhor influência em toda a doutrina e fé cristãs, é identificar as suas
múltiplas categorias. Nesse intento, entrar no campo escatológico demanda do
pesquisador clareza de enfoque, porque assim como a escatologia autoriza um
multifacetado diálogo com as demais grandes áreas da teologia e seus respectivos
desdobramentos, ela possui, em si mesma, um vasto campo temático e uma
cativante variedade de significados e nuances à espera de novas explorações.
Pode-se falar de escatologia em sua viabilidade tripartida de definição
lingüística (eschata = coisas últimas; eschaton = futuro absoluto; Eschatos = o
Último, Jesus)7, ou em seu sentido amplo e restrito; abordá-la em sua dimensão
individual, coletiva, histórica e universal-cósmica, ou lê-la como juízo ou
salvação; pode-se examinar a escatologia em sua confluência crítica e nexo de
continuidade e descontinuidade entre a velha e a nova criação, em sua
temporalidade preterista-presente-futurista, ou mesmo investigá-la a partir de
suas plurais escolas tipificadoras8 emergentes, principalmente, depois da sua
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“explosão nos arraiais protestantes” e do seu “surto renovador do mundo


católico”9; e ainda, por último mas não menos importante, é passível e até salutar,
que se faça escatologia sendo fustigado e abrindo espaço para as diferentes
perguntas que se faz a ela, algumas supostamente caducas, outras angustiadas por
serem [re]trabalhadas, e, claro, estudando suas estruturações catequéticas, bem
como suas piedades populares. Estas são algumas das alternativas que entendemos
legítimas. Porém, com certeza, não esgotam o potencial de pesquisa escatológico.
Importante é, além do enfoque necessário premeditado, que se cuide para que a
abordagem escolhida dentre o grande leque de conteúdos “não se torne vítima de
reducionismos unilaterais” e que se mantenha esse “pensar em distinções como
marca registrada de um pensar escatológico”, conselhos que o professor e teólogo

7
Sobre essa linha de raciocínio, ver, por exemplo: LIBÂNIO, BINGEMER, Escatologia Cristã,
p.22-23. Ver também a nota de rodapé n.2.
8
Como por exemplo: Consequente (Schweitzer), Realizada (Dodd); Inaugurada (Florovsky),
Transcendental (Barth), Existencial (Bultmann), Atualizada (A. Althaus), Histórico Salvífica
(Cullmann), Proléptica (Pannenberg); Evolutiva (de Chardin), da Esperança (Moltmann), Política
(Metz), da Libertação (G. Gutiérrez), entre outras. Quase que a totalidade dos livros de escatologia
que se lançam na tarefa de resgatar a história da reflexão escatológica, especialmente nos últimos
séculos, trará contribuições sobre estas escolas, que nem sempre são classificadas da mesma forma
ou terão os mesmos teólogos como preceptores.
9
LIBÂNIO, BINGEMER, Escatologia Cristã, p.22-23, 64,68.
19

Claus Schwambach dará em seu artigo Escatologia como Categoria Sistemático-


Teológica.10
Nosso foco nesta dissertação é a questão da temporalidade escatológica.
Cremos que este é um tema que não se esgota facilmente e, além disso, que
sempre admite ser revisitado. O próprio Schwambach, no artigo supracitado,
também argumenta em favor da pertinência e autenticidade desta chave de leitura,
afirmando as modalidades de tempo passado, presente e futuro:
Um outro conjunto de termos que tem sido utilizado para ilustrar a abrangência da
escatologia cristã e que tem servido de meio didático para designar suas diversas
dimensões mais sob o ponto de vista das modalidades de tempo (passado, presente
e futuro) enquanto entrecruzadas pelo agir escatológico de Deus é o que
apresentaremos à seguir [escatologia preterista, presente e futurista] [...] Aquilo
que denominamos aqui de escatologia preterista abrange o evento cristológico
como acontecimento que ocorreu no pretérito perfeito – conforme o sentido da
gramática grega e não portuguesa deste tempo verbal, ou seja, como uma ação
pontual ocorrida no passado, mas com efeito linear duradouro para dentro do
presente. [...] O futuro do mundo irrompe no transcorrer de uma história que se
tornou em passado com efeito duradouro para nós. [...] Conforme o significado da
escatologia “preterista”, o futuro e o presente da salvação que experimentamos
hoje não nos trarão nenhum “há mais” em termos de conteúdo salvífico do que
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aquele passado. O presente nos traz apenas a confirmação e a validação daquilo que
já aconteceu de uma vez por todas em Cristo Jesus. E o futuro nos trará apenas a
revelação da abscondicidade da vitória passada e sempre presente de Cristo,
permitindo que aquilo que desde lá, por assim dizer, já vale em eternidade, se torne
em tempo, história e evento. [...] [Na escatologia presente] Tudo aquilo que
aconteceu por intermédio de Jesus Cristo não ficou preso e relegado ao passado,
mas tem conseqüências e implicações que marcam aquilo que chamamos de
“tempo presente” de cada época histórica post Christum natum.[...] No presente, o
velho mundo caído e a nova criação escatológica de Deus têm de conviver em
simultânea paradoxalidade. A escatologia presente se constitui, portanto, em um
campo de tensão entre o Já Agora e o Ainda Não da salvação, fé e esperança,
abscondicidade e revelação da salvação, fé e razão/experiência/visão, graça e
glória, simultaneidade da justiça e do pecado na vida do indivíduo, o gemido e a
esperança da criação (Rm 8.18ss) e assim por diante. [...] [Na escatologia futura] O
presente da salvação de Deus não anula o futuro e a consumação. O que temos já
agora pela fé, mas não ainda na visão, um dia se tornará plenamente visível e
palpável. [...] A escatologia futura abrange, dessa forma, os temas tradicionais da
escatologia em sentido mais restrito, seja em perspectiva individual ou universal-
cósmica, tais como: morte, existência pós-mortal, ressurreição dos mortos, juízo
final, parusia de Cristo, novos céus e nova terra, inferno ou morte eterna, vida
eterna, imortalidade, fim e consumação do mundo e do cosmos, superação da
abscondicidade do Deus Triuno, etc.11
Moltmann é outro quem chama à atenção para a temporalização da
escatologia. Logo no primeiro capítulo de seu livro A Vinda de Deus, descreve as
várias tendências da escatologia atual como propostas de solução para a “antítese

10
SCHWAMBACH, Escatologia como categoria sistemático-teológica, p.144, 155.
11
SCHWAMBACH, Claus. Escatologia como categoria sistemático-teológica, p.144, 145-150.
20

entre a escatologia futura e a escatologia presente”.12 Ele demonstra ser crítico e


cético quanto à eficácia de quaisquer delas para o aprendizado da escatologia. Crê
que todas as exposições da escatologia moderna, por estarem baseadas em
“concepções lineares de tempo” não representam, senão, uma “solução ilusória”
para a escatologia. Moltmann parece ser, na verdade, descrente da própria
categoria da temporalidade escatológica. Antes de apresentar sua proposta de um
Deus vindouro e de uma concepção adventícia de tempo, perguntar-se-ia da
possibilidade da “temporalidade” ser, realmente, “a essência da escatologia”.13
Não nos preocuparemos com essa avaliação nem entraremos neste debate neste
momento. O argumento agora é em prol da expressão, relevância e até mesmo
polêmica da temporalidade escatológica. E ele se sustenta, pois o próprio
Moltmann, com seus pressupostos, de certa forma, debruçara-se sobre a questão
no tomo susodito.
Não obstante, Moltmann e Schwambach não são os únicos a tocarem na
temporalidade escatológica. Não faltam estudiosos desta questão - alguns darão
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destaque inclusive para a faceta que é nosso objeto mais específico de pesquisa,
dentro dela: o paradoxo já e ainda não. Sobressaem-se os já mencionados artigo
de Schwambach, o livro de Moltmann e a seção An eschatological tension
between the already and the not yet, do livro Hope for the Earth: Vistas for a New
Century14, onde o autor, Ernst M. Conradie, afirma que a tensão já e ainda não
esteve no centro dos debates no século XX15 e prova sua afirmação elencando um
bom número de destacados teólogos que fizeram uso da índole escatológica
temporal.
A farta disseminação da tensão já e ainda não foi o primeiro dos achados de
nossa pesquisa. Quando começamos nossa investigação, não tínhamos a noção
exata de como este axioma tinha e tem sido importante na reflexão escatológica e
do quanto ele se desenvolveu e se abriu. Quanto mais avançávamos na
perscrutação, mais percebíamos seus efeitos e seus rendimentos. Tentaremos
mostrar esse fato, pelo menos parcialmente, de agora em diante.

12
MOLTMANN. Jürgen. A Vinda de Deus: Escatologia Cristã. Tradução Nélio Schneider. São
Leopoldo: Unisinos, 2003, p.22.
13
MOLTMANN. A Vinda de Deus, p.29.
14
CONRADIE. Ernst M. Hope for the Earth: Vistas for a New Century. Eugene: Wipf & Stock,
2000, p.124-136.
15
CONRADIE. Hope for the Earth, p.125.
21

Neste primeiro capítulo tentaremos entender de onde veio a ideia de uma


esperança que é, acima de tudo, futura, mas que também possui uma dimensão
real para o presente, porque está alicerçada num passado cheio de significância.
Após conhecer as raízes desta escatologia multikairológica, investigaremos o que
foi feito dela na história da igreja e na reflexão teológica, chegando até a sua
situação nos dias atuais. Começaremos com a revelação bíblica, dividindo-a
logicamente a partir dos dois testamentos, e daí partiremos para a caminhada do
povo de Deus, segmentando-a em épocas específicas, pontuando alguns de seus
expoentes e fatores histórico-teológicos na (des)construção desta esperança.

2.1
A temporalidade escatológica na revelação bíblica

Para entendermos corretamente a escatologia, aconselha-se vê-la como um


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dos aspectos integrantes de toda a revelação bíblica. A escatologia não precisa ser
vista como algo encontrado apenas em livros tais como Daniel e Apocalipse, mas
como dominando e permeando toda a mensagem da Escritura. É o que nos
disponibilizaremos a fazer.

2.1.1
A escatologia hebreu-judaica do Antigo Testamento: A expectativa
por um futuro, que por vezes revela sinais no presente

Grande parte dos escatologistas que refletiram sobre a temporalidade


escatológica, independente das conclusões obtidas, entendera que o Antigo
Testamento era merecedor de atenção no quesito. Existe a esperança de uma ação
ou de um Reino venturo de Deus contida nele, ainda que este porvir não estivesse
inteiramente delineado16 ou que os profetas não fossem propriamente unânimes na

16
William La Due e Mario Gutiérrez são dois teólogos que ressaltam os distintos períodos e as
várias fases de perspectivas sobre a expressão temporal da escatologia para o povo no Antigo
Testamento. Ver: LA DUE, William J. O Guia Trinitário para a Escatologia. Tradução Milton
Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2007, p. 11-14; GUTIÉRREZ, Mario. J. La esperanza de la
vida: Introducción a la escatología Cristiana. Bogotá: J Publicaciones,1986, p.55-77.
22

descrição da esperança17 ou do Reino. Muitos concordarão. Há sinais de eventos


passados com significação aberta, transcendental. Alguns destes estudiosos
notarão esse viés, e toda a teologia tipológica nascerá neste ensejo. Mesmo a
realidade paradoxal entre um já e um ainda não, às vezes também é
assumidamente articulada. Na temporalidade escatológica hebreu-judaica
veterotestamentário há expectativa por um futuro, e este futuro, por vezes dá
sinais no presente.
Na confirmação desta tese, começaremos citando a um dos escatologistas
que mais a defendeu, George Ladd:
Conclui-se que a esperança de Israel, pelo Reino de Deus, é uma esperança
escatológica, e esta escatologia é a conseqüência inevitável da visão que Israel tem
de Deus. O antigo criticismo Wellhauseniano insistia em que escatologia era um
desenvolvimento tardio que veio a emergir somente na época pós-exílica.
Recentemente o pêndulo tem-se inclinado para outra direção e o caráter israelita
fundamental da escatologia tem sido reconhecido. Pode-se citar um número cada
vez maior de eruditos que reconhecem ter sido o conceito de Deus, preocupado
com Israel na história redentiva, a causa do surgimento da esperança escatológica.18
Um dos eruditos citados Ladd em sua obra é T.C. Vriezen, que é da opinião
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de que a visão escatológica existente no Antigo Testamento é, inclusive, “um


fenômeno israelita que não tem sido encontrado fora de Israel”. 19 Vriezen também
vai dizer que a perspectiva escatológica é essencial à mensagem tanto do Antigo
como do Novo Testamento, é o verdadeiro cerne de ambos.20 George Ladd
também embasou sua esperança escatológica temporal multidimensionada, por
vezes numa moldura mais profética, por vezes numa moldura mais apocalíptica,
nos estudos do respeitado teólogo Von Rad.21 Gustavo Gutiérrez, teólogo peruano
que também será considerado nesta dissertação, concordará com Ladd,
percebendo que a tensão entre escatologia e história estava presente na mensagem
do Antigo Testamento, peculiarmente na atividade e anúncio dos profetas, que
carregam a característica de uma “orientação para o futuro e sua atenção à
atualidade”. Os profetas sabem que Deus é fiel e lembram das iniciativas

17
BRAKEMEIER, Gottfried. Reino de Deus e Esperança Apocalíptica. São Leopoldo: Sinodal,
1984, p.27.
18
LADD, George E. Presence of the Future: The Eschatology of Biblical Realism. Revised
edition. Grand Rapids: Eerdmans, 1996, p.52-53.
19
VRIEZEN, T.C. An Outline of Old Testament Theology. 2. ed. Tradução S. Neuijen. Oxford:
Blackwell, 1970, p.458. Apud HOEKEMA, Anthony. A Bíblia e o Futuro: A Doutrina Bíblica das
Últimas Coisas. Tradução Karl H. Kepler. 2.ed. São Paulo: Cultura Cristã, 1989. p.12.
20
VRIEZEN, An Outline of Old Testament Theology, 1970, p.123. Apud HOEKEMA, A Bíblia e o
Futuro, 2001, p.12.
21
Ver RAD. Gerhard von. Teologia do AT. Vol.II, São Paulo: Aste, 1973, p112ss.
23

libertadoras de Deus em favor do seu povo. Por isso, anunciam a ação eficaz dele
no presente e no futuro.22
Moltmann é outro quem enxerga o Antigo Testamento numa moldura
escatológica. Repetidas vezes aludirá ao mesmo reivindicando-o como
antecedente de uma esperança que é judaico-cristã. Sua noção de tempo é distinta
da de Ladd e da de Gutiérrez, mas ainda assim seus argumentos ajudam na
composição de nosso entendimento para uma escatologia veterotestamentária que
é futura, mas também tem aspectos preteristas e presênticos, sendo portanto, de
natureza histórica. Ele diz, por exemplo, que o Êxodo não era um evento mítico
de origem, mas um evento histórico que apontava para algo além de si mesmo, a
um futuro superior de Deus.23
Seguindo no raciocínio, Anthony Hoekema, um escatologista holandês de
tradição calvinista que alimentará substancialmente esta dissertação, em sua obra
A Bíblia e o Futuro, enxerga nada menos que sete conceitos específicos que
atestam o forte dado temporal escatológico no Antigo Testamento, a saber: a) a
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expectação do redentor vindouro, anunciado já na “promessa mãe” de Gênesis


3,15, que fez tudo e todos no Antigo Testamento olharem para frente; b) a ideia
do Reino de Deus, abundante nas várias literaturas veterotestamentárias
apresentando a noção do senhorio de Deus efetuado já “imperfeitamente” na
história de Israel, e aguardado em sua plenitude não somente por Israel, mas pelo
mundo inteiro; c) a compreensão da nova aliança, predita por Jeremias como
bênção futura de recomposição do pacto divino com seu povo escolhido; d) a
esperança da restauração de Israel, profetizada após o cativeiro para um
remanescente que se convertesse e mantivesse fiel; e) a expectativa de um
derramamento do Espírito no cenário futuro sobre toda a humanidade,
propagandeada por Joel, mas já sentido de forma limitada; f) o dia do Senhor,
tema abordado amplamente nos profetas, ora com ênfase no juízo, ora na
salvação, e tendo como referência tanto um dia de visitação divina numa época
atual ou iminente e para contexto parcial, como projetando um futuro distante e
com alcance mundial; g) e finalmente, como último conceito, aquele que tem o
“toque mais brilhante”: o de novos céus e nova terra, pensamento hebraico de

22
GUTIERREZ, Gustavo. Teología de la liberación: Perspectivas. 3. ed. Salamanca: Sígueme,
1973, p. 140-141.
23
MOLTMANN, Jürgen. The Experiment Hope. Londres: SCM, 1975, p.18.
24

possibilidade gloriosa para a criação, que é chamada a ser otimista quanto a um


evento de renovação completo e total.24
O ponto de Hoekema é o de que na revelação sagrada do Antigo Testamento
e, por conseguinte, na fé de Israel, não faltam promessas e idiossincrasias que
convidam a um real anseio por manifestações e eventos salvíficos no horizonte, de
certa forma iminente, e que todos estes conceitos possuem indícios de uma
esperança voltada tanto para a modalidade de tempo presente quanto para o
futuro.
Com uma perspectiva caracteristicamente profética, os profetas de Antigo
Testamento mesclavam acontecimentos relacionados à primeira vinda de Cristo
com outros relacionados à sua segunda vinda. Somente nos dias do Novo
Testamento se revelaria que seria cumprido em dois estágios – primeira e segunda
vindas – o que no Antigo Testamento era considerado uma só vinda. O que por
causa disso não era claro aos profetas do Antigo Testamento foi esclarecido no
Novo Testamento. Todavia, temos que reiterar que a fé do crente do Antigo
Testamento era completamente escatológica. Ele aguardava a intervenção de Deus
na história, tanto no futuro próximo como no distante.25
Bruce Waltke, outro professor de fé reformada e especialista no Antigo
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Testamento, corroborara a visão de Hoekema e desta seção em pelo menos dois de


seus livros. Segundo Waltke, a índole dual temporal já e ainda não não é um
fenômeno escatológico reservado ao Novo Testamento. Antes, ela já aparecia,
ainda que não tão transparente, na vida de fé e expectativa do povo de Deus do
Antigo Testamento. Waltke não tem dúvidas dos aspectos desta tensão na
primeira aliança e conectara os conceitos com os ensinamentos de Jesus, que não
teriam sido dados numa espécie de vácuo - iam ao encontro dos anseios deixados
pelas profecias anteriores que apontavam para um já e um ainda não.26 O
professor norte-americano afirma que “escritores bíblicos [do Antigo Testamento]
compartilhavam um ponto de vista do já e do ainda não com respeito às
promessas do Deus que se revelou como o “Eu Sou”. Alicerçados na revelação
deste Deus que permeia todos os tempos, por assim dizer, o qual é, era e será, as
promessas, as vitórias, as conquistas, as libertações, os rituais, os sinais, as
dádivas e as profecias são “ampliáveis” (expandables)27, e não apenas
momentâneas, mas se abrem e invocam uma perspectiva de duplicação temporal.

24
HOEKEMA, A Bíblia e o Futuro, p.12-21.
25
HOEKEMA, A Bíblia e o Futuro, p.21.
26
WALTKE, Bruce K. The Kingdom of God in the Old Testament. In: MORGAN, Christopher
W., PETERSON, Robert. A. (ed). The Kingdom of God. Wheaton: Crossway, 2012, p.49-93.
25

Ilustrando seu argumento, citamos sua interpretação, por exemplo, da entrada na


terra prometida, em Josué:
A terra prometida deve ser tomada “pouco a pouco” (Ex 23,30), mas nunca
derradeiramente (Heb 4,1-11; 11, 39-40). As futuras gerações devem participar
(Juízes 3,1-4). O Cronista (1 Cro 13,5) usa Josué 13,1-7) para apresentar a Davi
como maior que Josué porque ele governa desde Siloé no Egito até a entrada de
Hamá. Alguns dos loteamentos previstos nunca se materializam completamente
para as tribos; por exemplo, Filistéia nunca chegou a ter a população hebréia de
colonizadores (Josué 15,45-47). E em qualquer ponto durante a continuidade
[continuum] do cumprimento, pode ser dito que Deus cumpriu sua promessa. Mais
do que isso, cada cumprimento era parte de um cumprimento final [ultimate], maior
e poderia ser considerado como tal. Isaias viu o cumprimento dos limites ideais na
era messiânica (Isa 11,12-16). O Novo Testamento apresentará a mesma tensão
relacionada ao Reino de Deus: ele já está aqui mas em seu sentido de plenitude,
ainda não.28

2.1.2
A escatologia crística do Novo Testamento: O futuro visitou o
presente na pessoa e obra de Cristo.
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Vimos no Antigo Testamento que o futuro dá sinais no presente e que o


presente também, por vezes, manifesta uma dimensão escatológica, transcende a
um evento maior, convida a uma expectativa mais profunda de realização e
significado. Isso ocorre transversalmente pela narrativa veterotestamentária na
esperança hebreu-judaica, mas de forma tipológica, velada, episódica, eventual. É
no Novo Testamento que o ainda não de Deus tem sua epifania desvendada de
forma clara, consistente e culminante. E ela se dá com a entrada e a atividade de
uma pessoa. Na pessoa e obra (encarnação, ministério, paixão, morte, ressurreição
e ascensão) de Cristo, o futuro visita o presente. Nele “a vida do mundo
vindouro”29 vem, e o esperado, chega. Nele o ainda não se faz já. Declara sua
intenção, realiza sua missão, descortina sua bem-aventurança. Na plenitude do
tempo preparado por Deus, o Messias de fato veio, para dentro da história, na
pessoa de Jesus, como personificação do Reino de Deus.30 O Reino se fez

27
WALTKE, Bruce K. An Old Testament Theology: An Exegetical, Canonical, and Thematic
Approach. Gran Rapids: Zondervan, 2007, p.525.
28
WALTKE, An Old Testament Theology, p.525.
29
Credo Niceno.
30
LIBÂNIO, BINGEMER, Escatologia Cristã, p.119-124.
26

“presente na pessoa e obra de Jesus”31, que “cumpriu tudo o que havia sido
prometido pelos profetas”.32 O tema central da pregação de Jesus é o Reino de
Deus, o qual começa, torna-se efetivo e transforma a vida já agora.33 Esse dado
cristológico nos moveu a batizar a temporalidade escatológica neotestamentária
de crística.
Tal fato é depreendido por uma constelação de teólogos. Comecemos por
um exegeta do Novo Testamento que foi um dos precursores nesta apologia e é
nosso objeto focal da dissertação, Oscar Cullmann: “O elemento novo do Novo
Testamento não é a Escatologia, mas o que eu chamo de tensão entre o decisivo
„já cumprido‟ e o „ainda não completado‟, [...]. Toda a teologia do Novo
Testamento [...] é caracterizada por esta tensão”.34 Cullmann vê essa perspectiva
nos ensinos do próprio Cristo:
A escatologia de Jesus não é nem “realizada” nem “somente futura”. A tensão
existe já no ensinamento do próprio Jesus. O adiamento da parusia na igreja
nascente tem, quando muito, por conseqüência uma inexistência maior sobre o já
realizado. As palavras já mencionadas dos evangelhos sinópticos provam que o
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próprio Jesus admitiu um tempo de realização já cumprido durante sua vida, sem
deixar de esperar com intensidade a consumação final, muito próxima; porém, que
chegaria somente depois de sua morte.35
A afirmação foi feita em sua Cristologia do Novo Testamento. Sua reflexão
amadureceu e recebeu críticas, dentre as quais, uma que dizia que essa concepção
paradoxal de temporalidade escatológica, fundamentada em Jesus, não seria
realmente produto da mensagem cristã, mas um acréscimo posterior ao texto.
Cullmann considerou os contrapontos, todavia entendeu que eles não se
justificavam. Dez anos depois, numa outra obra, ele seguiu argumentando em
favor da sua tese:
[...] Ela [a expectativa de Jesus] não deve ser [...] considerada como puramente
futura ou puramente presente, mas como uma tensão no tempo entre o “já” e o
“ainda não”, entre o presente e o futuro [...] Os ensinos de Jesus somente podem ser
libertados dessa tensão [entre o presente e o futuro] por um método altamente
arbitrário e cientificamente questionável, no qual tantos os pronunciamentos sobre

31
ZABATIERO, Julio Paulo T. Reino. In: BROWN, Colin, COENEM, Lothar. Dicionário
Internacional de Teologia do Novo Testamento. v.II. 2.ed. Tradução Gordon Chown. São Paulo:
Vida Nova, 2000, p.2038.
32
VOELZ, James W. What Does This Mean?: Principles of Biblical Interpretation in the Post-
Modern World. Saint Louis: Concordia, 1995, p.245-262.
33
NOCKE, Franz-Josef. Escatologia. In: SCHNEIDER,Theodor. (org.) Manual de Dogmática.
Petrópolis: Vozes, 2002, p.383-384; BLANK. Renold. J. Escatologia do mundo: o projeto cósmico
de Deus. São Paulo: Paulus, 2001, p.205.
34
CULLMANN, Salvation in History. New York: Harper & Row, 1967, p.172.
35
CULLMANN, Oscar. Cristologia do Novo Testamento. Tradução: Daniel de Oliveira e Daniel
Costa. São Paulo: Hagnos, 2008, p.71.
27

o presente (a escola de Schweitzer) como os pronunciamentos sobre o futuro (a


escola de Dodd)36 são denominados “criações da comunidade”. A essência do que é
denominada Escatologia de Jesus consiste na justaposição de ambas essas séries de
declarações.37
Jeffrey Gibbs, professor de Novo Testamento do Concordia Seminary, uma
faculdade luterana na cidade de Saint Louis, analogamente a Cullmann, confirma
a questão da temporalidade escatológica no Novo Testamento em termos de
tensão entre os tempos e identifica em Cristo o elemento determinante:
A linha divisória é a parousia de Jesus, Seu retorno visível na consumação da era.
Visto que Cristo é o foco de nossa fé, Ele é também o conteúdo de nossa esperança.
A Escritura fixa nossos olhos em Cristo e em Sua ação – primeira vinda, segunda
vinda. Crer numa é esperar pela outra. Até as mesmas palavras são usadas, por
vezes no mesmo local. Já e ainda não. O presente e o futuro estão presentes nas
palavras de Jesus em João 5.25-29: Em verdade, em verdade vos digo que vem a
hora, e já chegou, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus; e os que a
ouvirem, viverão. Porque assim como o Pai tem vida em si mesmo, também
concedeu ao Filho ter vida em si mesmo. E lhe deu autoridade para julgar, porque é
o Filho do homem. Não vos maravilheis disto, porque vem a hora em que todos os
que se acham nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão: os que tiverem feito o bem,
para a ressurreição da vida; e os que tiverem praticado o mal, para a ressurreição do
juízo. Já ressuscitados para a vida ... e ainda não ressuscitados para a vida. A
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primeira ressurreição ocorre na conversão, no Batismo. A segunda quando Jesus


vem novamente.38
Como exegeta, Gibbs busca embasar seu posicionamento, chamando à
atenção para aspectos lingüístico-gramaticais, no caso, os verbos gregos utilizados
em diferentes textos do Novo Testamento:
Palavras de salvação, no Novo Testamento, são tanto “já” como “ainda não”. O
conteúdo do já e ainda não é Jesus e Sua ação, expressa por Aoristos Indicativos e
Futuros Indicativos: “segundo a sua misericórdia, nos salvou” (Tt 3.5); “seremos
por ele salvos da ira” (Rm 5.9); “Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de
Deus” (Rm 3.21); “Porque nós, pelo Espírito, aguardamos a esperança da justiça”
(Gl 5.5); “A lei do Espírito da vida te livrou da lei do pecado e da morte” (Rm 8.2);
“Desventurado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte?” (Rm
7.25); “Deus enviou Seu Filho, para resgatar ... a fim de que recebêssemos a
adoção de filhos” (Gl 4.4,5); “aguardando a adoção de filhos, a redenção do nosso
corpo.” (Rm 8.23). Aquilo que já recebemos... ainda não recebemos. Redimidos,
aguardamos a redenção final. O Reino de Deus já veio: os discípulos de Jesus não
podem jejuar porque o noivo está aqui e a festa de casamento está pronta – venha
para a festa! Mas as dez virgens têm de esperar e vigiar, pois o noivo ainda não
chegou e a festa do casamento ainda está para começar. 39

36
As escolas escatológicas de ambos os teólogos citados serão estudadas mais adiante neste
capítulo.
37
CULLMANN, Salvation in History. New York: Harper & Row, 1967, p.32, 175. Tradução
nossa.
38
GIBBS, Jeffrey A. Regaining Biblical Hope: Restoring the Prominence of the Parousia.
Concordia Journal. Saint Louis, v.27, n.4, October 2001, p.313-314.
39
GIBBS, Regaining Biblical Hope, p.314.
28

Outro autor que mencionaremos é Anthony Hoekema, quem já havia


confirmado esta tendência temporal em tensão, de certa forma, no Antigo
Testamento. Hoekema dirá que as esperanças escatológicas dos dois lados da
aliança estão interligadas, ainda que haja uma caracterização maior no Novo
Testamento.
Aquilo que caracteriza especificamente a escatologia do Novo Testamento é uma
tensão subliminar entre o “já” e o “ainda-não”. O crente, assim, ensina o Novo
Testamento, já está na era escatológica mencionada pelos profetas do Antigo
Testamento, mas ainda não está no estado final. Ele já experimenta a ação do
Espírito Santo em si, mas ainda espera por seu corpo ressurreto. Ele vive nos
últimos dias, mas o último dia ainda não chegou. 40
Mateus teria compreendido bem esta tendência escatológica temporal. Sua
percepção da teologia basileica que Jesus anunciava mantinha perspectivas de
uma vinda futura iminente do Reino e de uma vinda que já se fazia sentir na visita
e na presença do Rei.41 Marcos também entendeu que “o tempo está cumprido –
um perfeito de estado – o tempo do cumprimento das profecias messiânicas já
chegou, o futuro invadiu o presente”.42 Assim como em Mateus, também em
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Marcos “o Reino de Deus se encontra tanto próximo (Mc 1.15; Mt 4.17; 5.10)
como distante (Mc 13; Mt 25.1ss,31ss).43 O erudito lucano Darrell L. Bock, num
estudo enraizado no tratamento dado por Werner Kümmel em Promise and
Fullfillment44, vai argumentar com diversos indicativos textuais, que o terceiro
evangelista também segue, com as devidas nuances, a linha temporal escatológica
dos sinóticos conservando tanto o já como o ainda não em sua biografia de
Cristo.45 E João também confirmará a questão: “Uma escatologia fortemente
presente é encontrada no Evangelho de João (3.15,18,36; 5.24 – embora João
também conheça uma escatologia futura: 5.27ss; cf. 1 Jo 2.28)”.46 Quem crê no

40
HOEKEMA, A Bíblia e o Futuro, p.83.
41
ZABATIERO, Reino. In: BROWN, COENEM, Dicionário Internacional de Teologia do Novo
Testamento, 2000, p.2046.
42
ZABATIERO, Reino. In: BROWN, COENEM, Dicionário Internacional de Teologia do Novo
Testamento, 2000, p.2046.
43
SCHWAMBACH, Escatologia como categoria sistemático-teológica, p.148.
44
KÜMMEL, Werner. Promise and Fulfillment: The Eschatological Message of Jesus. London:
SCM, 1957.
45
Obtive acesso ao argumento do professor Darrell L. Bock através de uma preleção sua numa
conferência de escatologia, disponível em:
<http://ntresources.com/blog/documents/DSG2011_DBock_AlreadyNotYet.pdf>. Acesso em
14/02/2018. No entanto também temos conhecimento de que sua tese aparece na sua obra: A
Theology of Luke and Acts: God‟s Promised Program, Realized for All Nations. Grand Rapids:
Zondervan, 2012.
46
SCHWAMBACH, Escatologia como categoria sistemático-teológica, p.148.
29

Filho já tem a vida eterna, no evangelho joanino, mas “sua pregação de cunho
acentuadamente presêntico não se nega o futuro escatológico”.47
Também os demais autores do cânone neotestamentário combinam que o
Reino é presente e futuro, cristocêntrico e transcendente, dinâmico, e salvífico.48
Hoekema diz que, no fundo, “é impossível entender a teologia neotestamentária à
parte desta tensão”.49 E na companhia de outros, entenderá que o maior
responsável pela compreensão e comunicação da temporalidade escatológica fora
o apóstolo Paulo:
Essa tensão, mais tarde, também permeia os ensinos do apóstolo Paulo. Para esse
apóstolo, a vida de Jesus se auto-revela no tempo presente em nossa carne mortal
(2Co 4.10,11), mas a presença desta vida nova é provisória e imperfeita, de modo
que podemos falar dela tanto como revelada como escondida. (cp. Cl 3.3; Rm
8.19,23). Por causa disso, às vezes, Paulo escreve acerca da morada do Espírito
numa linguagem alegre e triunfante (Rm 8.9; 2Co 3.18), enquanto que outras vezes
ele fala acerca do crente gemendo intimamente e anelando por coisas melhores (Rm
8.23; 1 Co 5.2).50
As epístolas não-paulinas também não estão isentas desta escatologia: O
autor de Hebreus contrasta a primeira vinda de Cristo com a segunda, Pedro
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conecta a ressurreição de Cristo com nossa esperança futura, e Primeiro João


realça o contraste entre o que somos agora e o que devemos ser.51 “Por um lado, a
epístola acentua a atualidade da salvação [...] Por outro lado, 1 João conhece uma
esperança futura que transcende a experiência presente dos crentes”.52 E
finalmente, uma palavra sobre o Apocalipse, de acordo ao testemunho de
Hoekema:
Contrariamente à opinião de alguns, esta tensão entre o já e ainda não é também
encontrada no livro de Apocalipse [...] podemos notar aqui que nem uma visão
exclusivamente preterista deste livro, nem uma exclusivamente futurista lhe faz jus
completamente. A visão preterista afirma que maior parte do que é encontrado no
livro de Apocalipse ou já tinha acontecido à época em que o livro foi escrito, ou
estava para acontecer logo após seu surgimento. A visão futurista, ao contrário,
sustenta que a maior parte do que está no livro não somente era futuro quando o
livro foi escrito mas, mesmo hoje, ainda não aconteceu. Nenhuma destas posições
leva em conta a tensão já-ainda-não, que permeia o livro inteira. Ele constrói sua
expectativa pelo futuro sobre a obra que Cristo realizara no passado. O livro do
Apocalipse, portanto, retrata a igreja de Jesus Cristo como salva, segura em Cristo,

47
NOCKE, Franz-Josef. Escatologia. In SCHNEIDER,Theodor. (org.) Manual de Dogmática.
Petrópolis: Vozes, 2002, p.386.
48
ZABATIERO, Reino. In: BROWN, COENEM, Dicionário Internacional de Teologia do Novo
Testamento, 2000, p.2054.
49
HOEKEMA, A Bíblia e o Futuro, p.83.
50
HOEKEMA, A Bíblia e o Futuro, p.83,84.
51
HOEKEMA, A Bíblia e o Futuro, p.84.
52
NOCKE, Escatologia. In SCHNEIDER, Manual de Dogmática, p.387.
30

e destinada para uma glória futura – embora ainda sujeita a sofrimento e


perseguição enquanto o noivo demora.53

2.2
A temporalidade escatológica na história da igreja

Cremos ter identificado a temporalidade escatológica em tensão nos


registros bíblicos. No Antigo Testamento o futuro era aguardado e sinalizava sua
realidade em vestígios específicos, em mostras intencionais da ação divina na
história. No Novo, este futuro encarnou-se definitivamente no tempo e na história
de maneira explícita, na pessoa e na obra de Jesus. Importa-nos agora seguir no
encalço desta temporalidade escatológica e investigar como foi assimilada e
desenvolvida na história da igreja, dando especial atenção para as reflexões
teológicas em alguns períodos representativos. Definimos algumas épocas
principais, cientes do alerta (e fazendo nossas às palavras) de Libânio:
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Toda periodização e esquematização da história é extremamente arriscada. Pois a


cada período descrito em suas características gerais podem-se facilmente aduzir
inúmeras exceções, quantidade de fatos que a fazem explodir na sua precariedade.
Pois somos acossados por dois obstáculos extremos opostos. Ou detalhamos de tal
maneira um dado momento da história que perdemos de vista seu significado global
e desaparece a periodização. Ou restringimo-nos às características gerais que
cubram um dado período; mas se trata de elementos tão gerais que talvez pouco
ajudem. Por isso, mais que uma real periodização da trajetória escatológica da
prática e da consciência eclesiais, indicaremos somente tendências predominantes
em dado momento, cônscios dos limites de tais afirmações.
A periodização que delineamos segue as linhas gerais das obras que foram
consultadas. Somos particularmente credor das subdivisões histórico-teológicas
sugeridas por Hans Küng,54 ainda que elas não tenham sido propostas para um
projeto ou numa moldura especificamente de feição escatológica.

53
HOEKEMA, A Bíblia e o Futuro, p.84.
54
KÜNG. Hans. El cristianismo: esencia e historia. Tradução Víctor Abelardo Martínez de
Lapera. 4.ed. Madrid: Trotta, 2006. Küng subdividiu a história do cristianismo em cinco
paradigmas: 1: O paradigma apocalíptico do cristianismo primitivo; 2: O paradigma helenístico da
patrística; 3:O paradigma católico-romano da idade média; 4: O paradigma protestante da
Reforma; 5: O paradigma moderno do iluminismo. Como ficará demonstrado, não mantivemos as
mesmas categorias, mas fomos sugestionados pelo esquema.
31

2.2.1
A escatologia apocalíptica da comunidade primitiva: O futuro está
logo ali, mas como já foi experimentado, ele mexe com o presente

Começaremos analisando a escatologia da comunidade primitiva, isto é,


daqueles que foram testemunhas presenciais de Cristo e foram incumbidos e
impelidos pelo seu comissionamento e pela força da experiência a continuarem a
prática e a propagação da fé cristã, bem como de seus imediatos sucessores55.
Entendemos a complexidade da tarefa e estamos inteirados das polêmicas e
divergentes interpretações que podem surgir de um estudo como este. Não
teremos como elaborar em todas as hipóteses como, talvez, fosse oportuno, pois
essa iniciativa fugiria do nosso objetivo. Assumimos uma linha e pretendemos
conjecturar ao redor dela, a saber, que a esperança desta comunidade original
tinha relevante cunho apocalíptico56, mas, acima de tudo, estava profundamente
enraizada na crença de um reino multitemporal: O futuro está logo ali, mas como
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já o vimos no passado - pelo menos, em parte - não há como não ser afetado por
ele, e perceber como ele afeta todas as realidades e as condições vigentes. As duas
verdades não se contradizem. O apocalipsismo tem dificuldades de desligar-se de
noções dualistas, mas o apocalíptico pode conviver com paradoxos como a
simultaneidade de presença e futuridade do Reino de Deus numa relação de tensão
dialética.

55
Assumiremos como período da igreja primitiva o tempo dos apóstolos, logo após a ascensão de
Cristo até o começo do século II, ao redor dos primeiros 100 anos do cristianismo.
56
O termo apocalíptico tem sido usado e explicado de diversas maneiras, por diversos teólogos,
como por exemplo, Libânio, que diferencia apocalíptico e escatológico numa nota de rodapé (n.1,
p 21) em seu livro Escatologia Cristã; e o próprio Cullmann, que faz o mesmo em Salvation in
History, p.78-83. Há riqueza de conteúdo nessa matéria (Por exemplo: “Visões de um novo dia:
cristianismo semítico primitivo e apocalíptica cristã”, em DALEY, Brian. E. Origens da
Escatologia Cristã: A esperança da Igreja primitiva. Tradução Paulo D. Siepiersky. São Paulo:
Paulus, 1994, p.19-39). Não investigaremos a mesma, por não se tratar de um dado que
explicitamente impacte esta dissertação. Apenas faz-se necessário esclarecer que quando
etiquetamos a perspectiva escatológica da comunidade primitiva com essa palavra, fazemos num
sentido menos rígido, não diretamente vinculada a literatura judaica ou a movimentos radicais do
contexto, mas tão somente nos referindo a ideia da expectativa ansiosa por uma parusia
dramática, real, iminente, que caracterizava em parte a índole esperançosa da igreja à época.
Estamos conscientes que o termo, pressupostos e conceitos subentendidos nele (que não são os
nossos) podem ser vistos de forma crítica e até depreciativa, em estudos muito sérios, como por
exemplo, em: BLANK. Renold J. Escatologia do mundo: o projeto cósmico de Deus. Escatologia
II, São Paulo: Paulus, 2001, p.39-70, 269-320. Por outro lado, há também quem peça uma
reavaliação do termo e do seu correto conceito, sustentando seu uso. Nenhuma destas situações é o
nosso caso. Não tencionamos nem criticar, nem defender, e nem polemizar com a escolha.
32

Oscar Cullmann não era só exegeta do Novo Testamento, mas um apto


pesquisador do cristianismo em seus primeiros passos, tendo inclusive deixado
escrito suas conclusões em obras a respeito. Ele entendera que a tensão temporal
da esperança cristã não se ateve às páginas dos manuscritos neotestamentários,
mas contaminou o exercício de culto e a vivência da fé dos seguidores de Jesus.
“Jamais a comunidade primitiva situou a realeza de Jesus somente na instituição
da Igreja. A esperança escatológica do cristianismo era demasiado forte para que
esta tensão pudesse ser eliminada”.57

Cullmann tratou do assunto em dada ocasião, mediante um debate com


Martin Werner, o qual numa pesquisa58 sobre o desenvolvimento da doutrina
cristã nos primeiros séculos chegara à conclusão de que o empreendimento
escatológico dos primeiros cristãos era “essencialmente o resultado de uma
esperança escatológica falida – uma maneira de lidar intelectualmente com o não
cumprimento das fantasias apocalípticas do século I”.59 Esse pode ter sido “um
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problema deveras crucial da comunidade primitiva”, que vivia na “expectativa de


um fim iminente”.60 O suposto atrasado do retorno de Cristo, conforme vemos em
2 Pedro 3,4, deixou “profundas marcas nos escritos do Novo Testamento”.61
Werner pode ter algum grau de razão, especialmente se considerarmos estágios
mais avançados do cristianismo, cronologicamente falando (II século em diante).
No entanto, Cullmann rejeitará consideravelmente sua tese62, afirmando que a
delonga da parusia não teria sido a principal responsável na configuração dos
matizes da esperança que a igreja dos primeiros anos abraçou. Para ele, a demora
pode ter até causado algum tipo de frustração preliminar (que mais tarde se
intensificou, como veremos na próxima seção), mas não a ponto de forçar uma
espécie de plano b.
Este lapso intermediário [entre a ressurreição e a parusia] é algo totalmente novo
no tocante ao plano da salvação tal qual os judeus concebiam. Não representa,
como afirmam sem cessar os partidários da “escatologia conseqüente”, uma
solução de improviso; antes, pertence, organicamente ao pensamento do

57
CULLMANN, Cristologia do Novo Testamento, p.178
58
WERNER, Martin. Die Entestehung des christlichen Dogmas. Bern: Tübingen, 1954.
59
DALEY, Brian. E. Origens da Escatologia Cristã: A esperança da Igreja primitiva. Tradução
Paulo D. Siepiersky. São Paulo: Paulus, 1994, p.15.
60
BRAKEMEIER, Reino de Deus e Esperança Apocalíptica, p.6.
61
BRAKEMEIER, Reino de Deus e Esperança Apocalíptica, p.6.
62
A crítica de Cullmann a tese de Werner pode ser conferida em: Das wahre durch die
ausgebliebene Parusie gestellte neutestamentliche Problem. ThZ 3 (1947), pp.177-191; também:
CULLMANN, Oscar. Christ and Time. Traslation Floyd V. Filson. ed. rev. London: SCM, 1962.
33

cristianismo primitivo no qual ocupa, inclusive, como já dissemos, um lugar


central.63
O jesuíta norte-americano e professor da Universidade de Notre Dame,
Brian Daley, concorda com Cullmann. Em seu extenso estudo sobre as Origens da
Escatologia Cristã, ele escreve:
Os primeiros cristãos acreditavam que o fim estava próximo, quase certamente, e
esperavam por uma vida radicalmente melhor para si mesmos, porque acreditavam
que Jesus tinha ressuscitado dentre os mortos, e estavam convencidos de que a
nova experiência dos carismas do Espírito da comunidade era um primeiro
aperitivo do reino de Deus. O cumprimento de suas primeiras esperanças foi
certamente atrasado, e o atraso requereu – também certamente – uma constante
reconcepção e re-expressão da convicção da comunidade de que ela tinha sido
chamada a compartilhar na vida divina e no poder que tinha sido conferido ao
Senhor ressuscitado. Mas esta reorientação da linha cronológica de sua esperança
escatológica, se devemos confiar na evidência que temos à mão, parece não ter
causado nos cristãos dos séculos I e II revolta maior do que causa nos cristãos
modernos, cujas predições do fim do mundo repetidamente provam estar
enganadas. [...] E o desapontamento desta esperança, num sentido temporal, parece
ter causado pequeno efeito sobre o caráter geral e sobre o conteúdo da fé, sem
dúvida porque a proximidade de Deus que os cristãos esperam é, em seu sentido
mais fundamental, uma proximidade que transcende a história.64
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Cullmann enxerga que a “expectativa de um final eminente” que os


primeiros cristãos detinham estava enraizada em uma âncora primária de fé, a
saber, que o evento redentor já havia ocorrido. O ainda não era realmente
desejado e crido como possível, para breve, porque justamente estaria alicerçado
na confiança de um acontecimento já realizado. O teólogo teuto-brasileiro
luterano Gottfried Brakemeier também entende que a temporalidade escatológica
dos primeiros cristãos não era refém do atraso da parusia, por estar
suficientemente amparada na fé em ocorrências por demais cruciais:
É sabido que a fé cristã em sua história mostrou não depender do pronto
atendimento de sua expectativa. [Nota de rodapé: “É, pois exagerada a afirmação
de A. Schweitzer (Geschichte der Leben-Jesu-Forshchung, p.407), dizendo ser a
história da cristandade nada mais do que a história da demora da parusia.”] Ela é
capaz de dar tempo a Deus, ciente de que não lhe compete saber “a respeito
daquele dia ou daquela hora (Mc 13.22). Ainda que o advento do reino de Deus
sofra atraso, a esperança não frustra. Cumprir-se-á em todos os casos quando da
ressurreição dos mortos. Por isto o apóstolo Paulo pode tranqüilizar a comunidade
de Tessalônica, perturbada com a ocorrência de alguns casos de morte entre seus
membros: Não se encontram de modo algum em desvantagem os que porventura
venham a falecer antes da parusia de Cristo (1 Ts 4.13ss). Basta saber que Deus
“não nos destinou para a ira, mas para alcançar a salvação mediante nosso Senhor
Jesus Cristo” (1 Ts 5.9), e as preocupações relativas à sorte dos mortos se revelam
como infundadas. Essa convicção, a certeza do amor de Deus em Cristo (Rm 8.38
s), desagrava o problema da demora da parusia e lhe tira o caráter angustiante.

63
CULLMANN, Cristologia do Novo Testamento, p.304.
64
DALEY, Origens da Escatologia Cristã, p.15-16.
34

Deus haverá de cumprir as suas promessas, assim ou assim. Cruz e ressurreição de


Cristo o asseguram (cf. At 4.2; Rm 5.6ss); 1 Pe 1.3ss; etc). 65
Retornando a Cullmann, e avançando na dissertação, a espiritualidade
cúltica dos primeiros cristãos seria uma mostra dessa temporalidade escatológica
em tensão, o que pode ser verificado, por exemplo, no conteúdo de sua oração
mais paradigmática no período:
Compreendemos melhor agora tudo o que a igreja esperava quando orava:
Maranatha! “Senhor, vem!” Ela não lhe pedia meramente para que apressasse o
dia de seu retorno final, mas lhe pedia também que aparecesse no meio dela, à sua
mesa, como havia aparecido no domingo de páscoa, para consolá-la e assegurá-la
de seu próximo regresso. E para quantos, durante o partir do pão, experimentavam
sua vinda, a esperança do retorno definitivo não haveria de ser um dogma no qual
se deveria crer somente por adesão à tradição. Eles sabiam, com efeito, por
experiência pessoal, que o Senhor podia descer à terra e renovavam esta
experiência cada vez que se reuniam e oravam juntos pela vinda do ressuscitado
[...] Maranatha, esta antiga oração significava, para aqueles que a pronunciavam,
ao mesmo tempo: “Senhor, vem no fim dos tempos para estabelecer teu reino!” e:
“Vem já agora enquanto estamos aqui reunidos para a ceia!” A distinção entre o
presente e o futuro, entre a antecipação e a vinda definitiva – distinção que nos é
necessária fazer do ponto de vista teológico e teórico – quase não podia ser
percebida pelos que estavam reunidos para o culto. Para eles, as duas coisas
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deviam estar tão estreitamente ligadas que ao experimentarem a presença cultual


do Cristo experimentavam, em alguma medida antecipada, sua parusia definitiva.
Ao falarmos de escatologia crista primitiva, devíamos lembrar, muito mais do que
se costuma fazer, que a igreja de então não “esperava”somente o fim dos tempos,
mas que o “vivia”, de maneira imediata, no banquete eucarístico [...] O vínculo
íntimo que o cristianismo estabeleceu entre seu culto e o reino futuro, prova que a
antiga oração Maranatha implora ao mesmo tempo a presença atual do Cristo e seu
retorno definitivo.”66
Não só a oração Maranata confirmava a expectativa futura que já se
manifesta numa realidade presente. O culto todo tinha essa perspectiva, e em
especial, o sacramento da Ceia:
Porém sabemos que no cristianismo primitivo todo o culto era considerado como as
primícias do Reino de Deus: na igreja reunida já se produzia, o que, no fim dos
tempos, haveria de ser realidade durável. Isto caracterizava o culto conferindo-lhe
sua grandeza [...] É principalmente durante o “partir do pão” da celebração
eucarística, que a “vinda” de Cristo, ou antes, o seu anunciado regresso, acha sua
antecipação. Só no fim dos tempos ele voltará à terra; entretanto, volta já agora ao
seio de sua igreja reunida para o partir do pão. Não havia prometido que “ali onde
estivesse dois ou três reunidos em seu nome” ele estaria no meio deles? A relação
entre a eucaristia da igreja nascente e a escatologia se enquadra, ademais,
perfeitamente ao sentido que o próprio Jesus, durante sua última ceia, deu à
distribuição do pão e do vinho. Já naquele momento a relação com o fim dos
tempos é evidente já que, segundo os relatos dos três Sinópticos, aludiu, então, ao
banquete messiânico onde “beberá de novo do fruto da videira no reino de Deus”.67

65
BRAKEMEIER, Reino de Deus e Esperança Apocalíptica, p.6-7.
66
CULLMANN, Cristologia do Novo Testamento, p.278-279.
67
CULLMANN, Cristologia do Novo Testamento, p.277.
35

Cullmann não é o único a entender o culto cristão numa dimensão


escatológica em tensão. Outros teólogos também tiveram esse ponto de vista e
escreveram a respeito.68 Outra ênfase desse futuro que contagia o presente ocorre
fora dos muros do templo, ou melhor, das paredes das casas e dos porões das
catacumbas, e após o horário da liturgia comunitária. Dá-se na vida diária, em
diversificadas vocações e em uma espiritualidade concreta, encarnada, justa e
resistente ao mal. NT Wright, escatologista anglicano que conheceremos melhor
no capítulo 4, é um dos defensores desta ideia, sustentando-a vigorosamente sob
sua chave hermenêutica mestra: a ressurreição, a qual ele faz questão de enfatizar,
envolve tanto o indivíduo como a criação. Se fôssemos apenas nos guiar pela
leitura de Wright nesta subdivisão, provavelmente teríamos chamado a esperança
da igreja primitiva de pascoal ou de repente anastaciana, aludindo ao evento ou
ao termo grego para ressurreição. Quase o fizemos, tamanha força de seu
argumento. “Em que, precisamente, os cristãos primitivos acreditavam?”,
pergunta Wright. “Por que usavam a linguagem da ressurreição para expressar
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essa crença?”. Ao que responde: “O que aconteceu naquele dia [domingo da


Páscoa] gerou algo completamente novo: algo que cresceu e se desenvolveu de
maneira distinta, mas sempre a partir daquele momento”.69
A doutrina cristã clássica [de uma esperança abastecida pela ressurreição], na
verdade, é muito mais poderosa e revolucionária que a filosofia platônica. Foram as
pessoas que acreditavam piamente na ressurreição que se opuseram a César nos
primeiros séculos da era cristã, e não aquelas que preferiram uma vida mais
espiritualizada [aderentes do gnosticismo]. Aqueles que veem a morte como o
esperado momento de “ir pra casa”, em que seremos “chamados à paz eterna com
Deus”, não têm motivo para entrar em conflito com pessoas sem escrúpulos,
dispostas a destruir o mundo se isso lhes trouxer algum benefício. A crença na
ressurreição sempre vem acompanhada por uma forte visão da justiça de Deus.
Essa crença não leva a uma tolerância passiva diante das injustiças do mundo, mas
a uma firme determinação de lutar contra as injustiças.70
NT Wright tem certeza de que era esta esperança escatológica,
fundamentada no evento do passado, que estimulava as promessas do porvir e
dinamizava a experiência do presente dos primeiros cristãos. “Com a Páscoa,
Pedro [e os demais discípulos] foi chamado a viver em um mundo novo e

68
DALEY, Origens da Escatologia Cristã, 1994, p.17; BLANK. Renold J. Escatologia do mundo:
o projeto cósmico de Deus. Escatologia II, São Paulo: Paulus, 2001, p.156-158; WRIGHT. N.T.
Surpreendidos pela Esperança. Tradução Jorge Camargo. Viçosa: Ultimato, 2009, p.285-290.
69
WRIGHT, Surpreendidos pela Esperança, p.52-53.
70
WRIGHT, Surpreendidos pela Esperança, p.45.
36

diferente”.71 Com a Páscoa, o ainda não - que em Cristo se materializou num já -


altera toda a existência, humana e cósmica. O futuro mexe com o presente e os
cristãos primitivos são dotados “não apenas de uma fé, mas de uma firme
convicção quanto à ressurreição de Jesus e à vida futura prometida por Deus.”
Eles olhavam para trás e lembravam o evento da ressurreição com grande alegria,
ao mesmo tempo em que olhavam para frente e “esperavam ansiosamente por
algo ainda por vir, a conclusão do evento que havia começado na Páscoa.”72
Considerando, por último, ainda outro autor, David Bosch, podemos notar
também uma leitura que vai ao encontro de NT Wright, Daley e Cullmann, em
que se aponta para a chama expectante da Igreja primitiva que se manifestava em
uma dupla temporalidade.
Muito do Novo Testamento dá testemunho da vibrante expectativa que havia
começado com Jesus era apenas o início de uma nova era na qual Deus não se
limitará ao trato com Israel unicamente. Ainda que os primeiros cristãos estivessem
convencidos de que em Cristo a história havia acelerado sem precedentes seu
curso, que de fato o futuro havia invadido o presente esperavam eventos ainda mais
assombrosos que os que haviam experimentado: aqueles que creram em Jesus não
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somente fariam as obras que ele fazia, mas outras, ainda mais grandes. (João
14,12).73
É verdade que há estudos que indicam a presença de movimentos mais
extremistas no seio ou nas margens do cristianismo primitivo, que quer seja por
um apocalipsismo mais exacerbado, quer por uma influência precoce do
gnosticismo, focalizavam quase que totalmente em promessas relacionadas ao
tempo futuro. Sem embargo, naquele primeiro momento, estes movimentos não
representaram a maioria paradigmática, e por isso não poderiam caricaturar nossa
análise. Preferimos concluir que a perspectiva marcante da escatologia da igreja
primitiva é apocalíptica, porque possui uma esperança pelo ainda não (parusia) à
flor da pele (o futuro está logo ali), e é tempo-paradoxal, porque está convencida e
vive a partir de sua realidade já (o passado foi testemunhado e ele mexe com o
presente).

71
WRIGHT, Surpreendidos pela Esperança, p.88.
72
WRIGHT, Surpreendidos pela Esperança, p.95.
73
BOSCH, Misión en Transformación, p.607.
37

2.2.2
A escatologia helênica e expansionista da patrística e da
cristandade: O futuro não chegou! É necessário que o presente o
redefina e o construa

Se houve considerável continuidade de temporalidade escatológica entre a


revelação neotestamentária e os primeiros passos da igreja que engatinhava, neste
próximo período, onde estamos agrupando duas propriedades, Patrística e
Cristandade, a ruptura de entendimento começou a ser mais perceptível.
Decidimos unificar nesta divisão dois traços que já foram identificados tanto
como momentos distintos quanto como atributos colaterais de uma época. A rigor,
a patrística começara antes da institucionalização acentuada do cristianismo e se
estende por ela mais alguns séculos. Entretanto, é possível também que se a
delimite no terceiro século, quando o movimento administrativo conhecido por
cristandade começara a se materializar. A leitura histórica dessas realidades varia.
Nesta dissertação associaremos a patrística e a cristandade, pressupondo que elas
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compartilham o fator que identificamos como típico no que tange à questão da


temporalidade escatológica: o afastamento da tensão já e ainda não e a
ressignificação da esperança cristã e do Reino de Deus. O futuro não chegou
como ou quando era esperado, faz-se necessário redefini-lo e edificá-lo por conta
própria.
Bosch é um dos que compreende que a igreja cristã não conseguiu manter o
caráter temporal histórico escatológico da fé nesta fase do cristianismo: O
horizonte da escatologia se nublou. “A proclamação cristã mudou de posição:
passou de ser o reinado de Deus para a introdução do povo à única e religião
verdadeira e universal”.74 N.T. Wright fala de uma “versão truncada e distorcida”
que deixou efeitos devastadores na fé cristã: confusão sobre salvação, céu, vida
após a morte, parusia, e sobre esperança.75
Estudamos o desenvolvimento da temporalidade escatológica neste período
tendo três teólogos católicos como base teórica: William La Due, Mário Gutiérrez
e Brian Daley. Os dois primeiros fizeram uma pesquisa do período mais sucinta
para embasar seus livros de escatologia geral. Daley escreveu seu fascículo
especificamente sobre as origens da escatologia cristã e dedicou-se a examinar

74
BOSCH, Misión en Transformación, p.607.
38

praticamente todos os personagens e movimentos relevantes do cristianismo


primitivo e patrístico.
De William La Due, registraremos como destaques os seguintes itens: em
primeiro lugar, a lembrança que faz dos Credos, como fontes de expressão e
consenso da fé professada, e nos atenta muito mais a ausência neles de elementos
escatológicos do que propriamente vestígios de dados e controvérsias relevantes,
com exceção da questão da apokatástasis, de índole pessoal e futura, tratada no
símbolo atanasiano. La Due também menciona os principais protagonistas dentre
os padres. Quase todos, com a ressalva de Origem e suas teorias milenaristas,
estariam mais preocupados com o destino pós-morte de cada ser humano, como
que reduzindo a amplitude da esperança cristã. Percebe-se um esfriamento da
consciência escatológica relevante para a história, inclusiva à criação, centrada no
Reino de Deus que é concreto no já e no ainda não.
Mário Gutiérrez, professor em Bogotá, ajuda-nos a compor o cenário
temporal escatológico, antes de qualquer coisa, corroborando a maioria das
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conclusões já obtidas em La Due. Sua pesquisa da patrística e do magistério


também menciona os principais personagens e projetos que contribuíram na
formação das sistematizações das doutrinas escatológicas. São elas: a parusia,
“que inegavelmente sofreu progressivamente uma perda de interesse que lhe
degenerou a um individualismo da salvação”76; a ressurreição dos mortos, que se
manteve firme contra as críticas platônicas, “com abundantes testemunhos dos
padres”; o juízo final; a nova criação, que não recebe maior atenção dos padres,
aparte dos que ensinaram alguma forma de milenarismo e foram censurados por
isso; a vida eterna, que é interpretada apenas como bem-aventurança celestial no
futuro, seja pós-morte ou na parusia, e concebida especialmente como visão de
Deus ou divinização; a morte eterna, que se sobressai como verídica em termos
de condenação, mas é questionada no terceiro século na crise originista.77
Das informações obtidas em M. Gutiérrez, realçamos sua conclusão da
desvalorização da parusia e um dado valioso para nossa devassa do rastro
temporal escatológico naquela era. Segundo o colombiano, apesar da parusia

75
WRIGHT. Surpreendidos pela Esperança, p.13-48.
76
GUTIÉRREZ, La Esperanza de la vida, p.152.
77
GUTIÉRREZ, La Esperanza de la vida, p.151-180.
39

como realidade presente e futuro ter sido mormente olvidada, ela pelo menos se
mantinha de pé nas diversas liturgias eucarísticas:
O ato central do culto cristão se impregna escatologicamente. Isto é muito
significativo, pois mostra que a Igreja reconhece um caráter irrenunciável na
parusia do Senhor. Em toda celebração eucarística a comunidade de fé reafirmava
sua esperança na vinda gloriosa de Cristo, ao mesmo tempo em que confessava sua
presença atual sob as espécies sacramentais.78
Poder-se-ia dizer: é pouco, se comparada com o vigor de esperança da
geração eclesial anterior, no entanto, é existente. A temporalidade escatológica
paradoxal do Reino de Deus se mantinha, no mínimo, nas ações celebrativas
comunitárias da Igreja. Nossa última averiguação tem o principal historiador que
nos foi possível acessar: Brian Daley.
Como mencionamos anteriormente, Daley fez uma pesquisa extensa e
minuciosa. Ele discorrerá com autoridade sobre padres e apologistas, orientais e
ocidentais, dos mais famosos aos menos conhecidos. Cita os textos destes,
variedades de fontes autorais e fórmulas litúrgicas, incluindo crenças populares,
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semicristãs, especulação filosófica e os ditos apócrifos. Marca o desenvolvimento


complexo, cíclico, da esperança da Igreja primitiva e da patrística com
subdivisões muito pertinentes, repletas de riqueza de conteúdo.79 Resumiremos a
densa investigação, que entendemos que sintetiza de forma séria a personalidade
escatológica da patrística, citando as conclusões do próprio Daley, com atenção
especial a chave temporal escatológica:
Nos termos mais amplos, certa direção na evolução da escatologia cristã primitiva
[que vai, na ótica de Daley, até o fim do século VII] é evidente: de um sentimento
de iminente crise apocalíptica para uma teologia da criação bem desenvolvida, uma
antropologia e uma cosmologia orientadas para o futuro; de uma viva expectativa
do fim desta ordem histórica, seguida pela ressurreição dos mortos e pela criação de
um mundo humano inteiramente novo, para uma doutrina sistemática das “últimas
coisas” como a peça final numa perspectiva cristocêntrica da totalidade da história;
de um enfoque inicial sobre a esperança da comunidade na sobrevivência na
catástrofe cósmica vindoura, para uma posterior preocupação com a esperança do
indivíduo quando ele enfrentar a morte. Mas esse padrão, como nosso estudo

78
GUTIÉRREZ, La Esperanza de la vida, p.152.
79
As subdivisões do livro de Daley: 1) Visões de um novo dia: cristianismo semítico primitivo e
apocalíptica cristã; 2) Voltando à história inteligível: a escatologia e os apologistas; 3) recuperação
da luz: escatologia na crise gnóstica (150-200); 4) Senectus Mundi: escatologia do Ocidente (200-
250); 5) Uma escola para almas: a escatologia alexandrina e seus críticos (185-300); 6) O
alvorecer do conflito final: escatologia latina na Grande Perseguição (303-313); 7) Enfrentando a
morte com liberdade: escatologia oriental no período de Nicéia (325-400); 8) Redemptio totius
corporis: escatologia latina no século IV; 9) Graça presente e futura: escatologia grega no século
V; 10) Sinais de uma igreja triunfante: escatologia latina no século V; 11) Apokatastasis e
apocalíptica: escatologia oriental depois de Calcedônia; 12) O fim de toda a carne: escatologia
ocidental no século VI.
40

amplamente demonstrou, é geral e algo superficial, admitindo muitas variações de


ênfases e detalhe; filósofo e polemistas, poetas e escritores espirituais, bispos em
tempos de paz e profetas em tempo de perseguição, todos tiveram suas próprias
maneiras de assimilar e reformular a crescente tradição escatológica.80
A leitura multifacetada de Daley parece-nos condizente com a realidade e
merecedora de credibilidade. Aceitamos que o conteúdo escatológico refletira
uma diversidade de ênfases, e o dado temporal nem sempre fora articulado numa
perspectiva progressiva lógica81. No entanto, evitando cair num arranjo simplista,
entendemos que é possível de que reconheçamos como verdades gerais nossa tese
de uma escatologia que perdera sua perspectiva de um futuro e um presente do
Reino tensionados, como compreendida originalmente. E na falta desses
significados singulares, fixou-se em conteúdos que não se conectaram com a
potência e concretude do paradoxo temporal já e ainda não. Como enunciamos, o
futuro (como se esperava) não chegou. E por isso, julgou-se necessário uma
reorientação (num sentido de ênfases) das prioridades do presente e possivelmente
das próprias promessas do eschaton. Cremos que a pesquisa de Daley nos permite
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tirar esta conclusão, mas não temos certeza de que ele a aprovaria, uma vez que,
mostrou-se preocupado, desde a crítica inicial que fez de Werner, com leituras
parciais ou reducionistas. Não negamos que nossa perspectiva reduz, em certo
sentido, a vastidão de articulações do período para uma conclusão principal.
Também estamos cientes de que nossa assertiva não combina com o desenlace de
Daley, que arrematou fazendo uma defesa da escatologia do período e concluiu
que, apesar de desenvolvimentos cíclicos, ela foi satisfatoriamente “consistente”.
Tampouco afirmamos que a escatologia da patrística se perdeu completamente.
Porém, no objeto formal desta dissertação, a consistência não foi perceptível.
Em nosso título da seção, deixamos transparecer três causas principais para
esse deslocamento da esperança cristã: o atraso da parusia, que já havia
assombrado a fase primitiva inaugural, a helenização da fé cristã e a realidade da

80
DALEY, Origens da Escatologia Cristã, p.307.
81
Apesar de demonstrar a variação de ênfases e significados escatológicos nos primeiros sete
séculos do cristianismo, Daley, conclui seu livro indagando se, dentro daquela complicada
narrativa da esperança, não haveria “indicações de uma continuidade mais profunda”, uma
escatologia discernível para o período. Respondera mencionando alguns elementos unificadores: a
esperança no futuro escatológico, a insistência pela realização dentro da história linear enraizada
no plano e poder de Deus, uma doutrina comum dos temas morte, ressurreição, juízo, retribuição e
comunhão dos santos. Alguns campos de desacordo permaneceram mais ou menos abertos na
patrística: a) o tempo e a proximidade do fim do mundo; b) a materialidade e o caráter físico da
ressurreição; c) a extensão da salvação; d) a possibilidade de mudança e progresso para aqueles
41

cristandade. Aceitamos que essa proposta é arriscada, pela simplificação de uma


série de condições, ainda assim, decidimos mantê-la, uma vez que encontramos
subsídios sensíveis nesse sentido, que passamos a partilhar.
Em primeiro lugar, o próprio Daley, na pesquisa supracitada admite uma
forte e clara influência “da especulação apocalíptica [relacionada à questão do
atraso da parusia] e da filosofia platônica [helenização]”.82 Há outros quem vêem
“na cultura grega, por exemplo, onde o cristianismo se inculturou afastando-se das
concepções hebraicas da história e do messianismo, essa confusão de línguas” 83 a
qual começou a ocorrer na escatologia cristã. Bosch lembra a concepção que os
historiadores e filósofos gregos faziam do tempo e da história em um círculo
contínuo e da influência dessa concepção no cristianismo:
Seus filósofos interpretavam os eventos da vida história humana principalmente
como presságios do porvir, protótipos do retorno a origem. A história – os eventos
da vida humana – se converteu num manual para a filosofia moral, um espelho para
o uso humano, material ilustrativo de uma conduta correta. E este pensamento
calou profundamente no cristianismo. Não se interpretou ao Logos primordialmente
como uma referência a encarnação histórica. Antes, o mesmo foi pintado com cores
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puramente metafísicas derivadas do platonismo.84


Luis Carlos Susin, frei capuchinho gaúcho, vai erigir nos resultados dessa
infiltração helênica na escatologia:
Uma das conseqüências das matrizes platônica e aristotélica foi a perda da
dimensão histórica da salvação, uma demarcação quase intransponível e até uma
contradição entre a verdade do céu e a verdade da terra, entre alma e corpo. Em
Aristóteles a alma é absorvida na corporeidade e na ciência da terra. Em Platão o
corpo é desprezado por uma alma e uma gnose celeste. Do ponto de vista da
escatologia, a perda da dimensão histórica possibilitou um cenário cósmico-
espacial formando três grandes planos topográficos: o céu em cima, o inferno
embaixo e a terra no meio. Este aceno topográfico reconduz a escatologia à
mitologia e à fantasia. Outra conseqüência desta fratura pesou sobre o indivíduo:
através de sua morte e comparecimento ao juízo particular, o indivíduo é o único a
carregar consigo a ligação da história – da sua história particular – com a
escatologia, pois deve prestar contas ao juiz. Somente nesse caso a história e a terra
ganham valor para a eternidade: como uma carga individual para a prestação de
contas do juízo. Desta forma, a combinação do dualismo e misticismo de caráter
platônico com a ciência e as categorias aristotélicas acabou por desligar, a
desprestigiar a terra, a história, a sensibilidade, as criaturas em geral, em favor de
uma escatologia desencarnada, desmundanizada, des-historicizada. 85

cujo destino final fora determinado; e) a possibilidade de purificação do pecado após a morte.
DALEY, Origens da Escatologia Cristã, p.308-317.
82
DALEY, Origens da Escatologia Cristã, p.316.
83
SUSIN, Assim na Terra como no Céu, p.20.
84
BOSCH, Misión en Transformación, p.607.
85
SUSIN, Assim na Terra como no Céu, p.20-21.
42

Neste ensejo, Orivaldo P.L Júnior, professor da Universidade Federal do Rio


Grande do Norte, vai dar exemplos dos efeitos da helenização, lembrando Daley
de que ela não foi total:
Durante toda a história do cristianismo houve tensão entre uma tendência dualista e
uma perspectiva integral na visão de mundo. Esse dualismo não foi produto do
cristianismo, mas entrou no pensamento cristão por meio da estratégica encarnação
da fé cristã no mundo grecoromano. Ao abrir demasiadamente o flanco para a
perspectiva platônica e neoplatônica da realidade, o cristianismo comprometeu sua
metafísica, criando reinterpretações de suas doutrinas centrais. Carne se tornou
corpo ou matéria, e espírito se tornou alma ou mundo ideal. Santo se tornou
separado, culto se tornou liturgia, igreja se tornou um prédio, mundo se tornou
imundo, mal se tornou diabo. É claro que alguns dos Pais da Igreja estavam atentos
a essas transformações e ajudaram a fé cristã a manter os princípios não dualistas
originais. As duas concepções sempre conviveram, havendo, às vezes, a
preponderância de uma, outras vezes de outra, com suas consequências
missiológicas. Esse dualismo aplicado à visão do tempo provocou a ideia de que
tudo de ruim está aqui e tudo de bom está lá, isto é, no futuro. De certo modo, a
perspectiva cristã de um mundo melhor era semelhante ao marxismo
fundamentalista, que só admitia o melhor dos mundos que viria a surgir através de
um choque violento contra o mundo presente. Nada que viesse a melhorar o mundo
atual era bem-vindo, pois tais melhorias nada mais fariam do que retardar a luta
pelo melhor dos mundos. Tal visão político-escatológica foi criticada pelo filósofo
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francês Edgar Morin, que cunhou esta magnífica frase: “O maior inimigo de um
mundo melhor é o melhor dos mundos”.86
Não argumentaremos ainda mais sobre esta dimensão da cultura grega no
cristianismo, tanto devido à ausência de novidade, quanto à suficiente gama de
registros da opinião de teólogos nesse sentido.87 No entanto, vale dizer que as
expectativas escatológicas nutridas pela helenização foram canalizadas para duas
vias principais, as quais não eram mutuamente excludentes, como apontou
Bosch.88 Em primeiro lugar, existia uma tendência mística, que se manifestava em
várias formas, como por exemplo, a theosis da igreja oriental e a salvação como
felicidade individual da igreja ocidental. Em segundo lugar, havia-se a tendência
para o eclesiocentrismo. Aqui abordamos o impacto que o modelo da cristandade
teve na escatologia.

86
JUNIOR. Orivaldo Pimentel Lopes. Um outro mundo já começou: questões para a escatologia
cristã. Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 26, abr./jun. 2012, p. 641-642.
87
Para citar alguns: BOSCH, Misión en Transformación, 2005, p.248-252; DOBSCHÜTZ, E. von.
Christianity and Hellenism. Journal of Biblical Literature. v.33, n. 4, dec.1914, p. 245-265;
NOCK, Arthur D. Early Gentile Christianity and its Hellenistic Background. New York: Harper &
Row, 1964; VIVANO, Benedict T. The Kingdom of God in History. Eugene: Wipf and Stock,
1988; MCGRATH, Alister E. A Brief History of Heaven. Malden: Blackwell, 2003; VLACH.
Michael J. Platonism‟s Influence on Christian Eschatology. Disponível em <https://i-disp.com/the-
influence-of-platonism-on-christian-eschatology/>. Oscar Cullmann, NT Wright, Renold J. Blank,
João Batista Libânio, Leonardo Boff, dentre outros, também reconhecem a influência e são críticos
do platonismo e noção de tempo da religiosidade grega.
88
BOSCH, Misión en Transformación, p.608.
43

Neste modelo, a igreja se converte na extensão da encarnação e no cumprimento


lógico da pregação de Jesus sobre o reino vindouro de Jesus [...] A Igreja somente
tem que se sentar sobre o seu passado e levantar líderes para que funcionem como
guardiães do tesouro celestial que lhe foi confiado.89
Para Bosch, a igreja, que começara a experimentar as prerrogativas e as
responsabilidades do poder político, foi traduzindo a multiperspectívica esperança
para novos cenários, incumbindo-se a si mesma de detentora e oferecendo-se
como objeto central das promessas escatológicas.
Com a incorporação da igreja como religião oficial do estado Romano, ela passou a
requerer para si as presunções do mesmo, com isso, foi deixando a escatologia, que
até então tinha um poder revolucionário e mobilizador. Foi deixando de viver a
espera da volta de Cristo. Com este processo a escatologia passou a ser uma
doutrina das “últimas coisas”, restringindo-se apenas a eventos decorridos no final
quando Jesus voltar e finalizar a história a qual conhecemos, se preocupando
apenas no quando e como as coisas aconteceriam. O evento escatológico foi
perdendo sua significação orientadora, animadora e crítica sobre os eventos
ocorridos antes do fim.90
Susin também nos ajuda a entender o movimento. A sua tese é melhor
verificada na idade média, mas como a cristandade teve seu preâmbulo no quarto
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século, decidimos dividi-la nesta parte:


Poder-se-ia analisar a ação “administrativa” da Igreja nesse drama: criou mediações
para garantir “escadas” enquanto a racionalidade.aristotélica lhe garantiu um
domínio sobre os vôos místicos: quem quer se salvar deve passar pelas escadas,
pela “matéria e forma”, pelos sacramentos que dão passagem. Para uma instituição,
é mais administrável uma visão já acabada da história e da Revelação do que
discernir as surpresas da novidade. Pode ser prudente manter o controle das escadas
da salvação. Mas a igreja mesma se partiu ao meio.91
Talvez Susin tenha exagerado na sua leitura, mas ele não está sozinho nesta
opinião. Realmente, a orientação governamental que transforma o cristianismo em
cristandade, deixa marcas indeléveis na temporalidade escatológica. Libânio fala
em desescatologização:
A igreja dos mártires recebe férias de martírio. A ameaça permanente de ter que
testemunhar com a vida a própria fé a cada momento e por isso a necessidade de
uma vigilância escatológica de total desapego afasta-se com a Pax Constantiniana.
A Igreja troca as catacumbas pelos palácios. Com isso, a proximidade iminente da
Parusia já não se faz nenhum desejo ardente. A tarefa é a construção da Cidade de
Deus na terra, ou a “Cidade espiritual da Terra”. O Novo contexto sócio-político
favorece o processo de “desescatologização” da pregação cristã.92

89
BOSCH, Misión en Transformación, p.608.
90
JUNIOR, Reinaldo; et al. Pseudo-esperança neopentecostal e esperança cristã. Revista Teológica
[Online], n. 7, 10 março 2016, p.193. <http://docplayer.com.br/19079100-Pseudo-esperanca-
neopentecostal-e-esperanca-crista.html>. Acesso em 16/02/2018.
91
SUSIN, Assim na Terra como no Céu, p.21.
92
LIBÂNIO, BINGEMER, Escatologia Cristã, p.61.
44

Numa nota de rodapé, Libânio explicará o que quer dizer com o termo
desescatologização. Ele não significa, neste contexto, uma perda da dimensão
escatológica no seio da Igreja, porém uma diminuição do clima de iminente
expectativa do final dos tempos. E nessa desescatologização, o “fluxo
escatológico, ou desborda os limites da ortodoxia em seitas e grupos entusiásticos,
ou vai para as camadas profundas da religiosidade popular, ou se encastela na
espiritualidade da nascente Vida Religiosa”.93 Libânio ainda contribuirá com uma
valiosa leitura da teologia das duas cidades de Agostinho, como epítome,
diríamos, da confusão da natureza e do abandono da tensão temporal do Reino de
Deus. O futuro (irrupção do Reino) não chegou como se tinha expectativa. A
parusia demorara demais. A escatologia helênica e expansionista encarregar-se-ia
de oferecer um caminho: espiritualizá-la celestialmente ou materializá-la na
construção de um império na terra.
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2.2.3
A escatologia novíssima da Idade Média:
O futuro é tudo o que importa, prepare-se no presente

A idade media sedimenta e aprofunda a inclinação da versão helênica e


institucional da patrística. O futuro que não apareceu foi redirecionado,
amenizado, antecipado. O foco já não seria mais a parusia de Cristo e suas
implicações individuais e coletivas para o tempo presente. Mas o futuro imediato
pós-morte, que sempre está no horizonte de cada um, nunca deixa de ser uma
inquietação e que merece ser considerado com toda a seriedade. Esse futuro é o
grande dilema da humanidade. Um expediente que o gerencie com eficácia é
alçado à condição de esperança maior. Estar preparado para enfrentar a morte, e o
julgamento que dela decorre, possivelmente torna-se a tônica escatológica de um
milênio inteiro. Ensina-se a querer acima de tudo, e comercializa-se o combustível
para que a roda continue a girar: consolo pessoal, no máximo, alívio familiar para
o além túmulo. Em termos genéricos, o destino final do mundo e suas mazelas
atuais não são temas que dizem respeito à fé e à esperança que se tem. Tudo o que
importa é o meu destino. Salvação para “mim” e para “os meus”. A escatologia

93
LIBÂNIO, BINGEMER, Escatologia Cristã, p.61.
45

perde sua dupla temporalidade e também sua feição cosmológica, para concentrar-
se na antropologia. Quando se chega a pensar na coletividade é, essencialmente,
numa dimensão missionária. Deveras, o interesse pelo próximo não convertido
não desaparecera, pelo menos não o interesse pela alma dele. A cristianização dos
povos e a salvação das almas são iniciativas identificáveis no período e ligadas à
escatologia, e elas, não raras vezes, possuem um caráter expansionista, onde o que
realmente importa é o alargamento das fronteiras e o controle de novos territórios
para a organização. Será a temporada das campanhas e cruzadas missionárias
diversas, as quais podem até diferir em conteúdo soteriológico ou eclesiológico,
mas apresentarão promessa escatológica similar. O céu desbancou os novos céus e
a nova terra na expectativa fundamental (quiçá única) do querigma escatológico
medieval.
Essa perspectiva traz realidades que tocam diretamente a temporalidade
escatológica. O sonho de consumo torna-se a vida após a morte (entendida como
ir para o céu), não tanto a vida que fora prometida para depois da vida após a
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morte (vida-após-a-vida-após-a-morte). Muito menos a vida que já fora dada antes


da morte. Se perguntássemos a um cristão da idade média, sobre sua esperança
suprema, dificilmente ele responderia articulando expectativas de mudança,
resgate, transformação, novas possibilidades para si e para o mundo, no presente.
O Reino dos céus, o Reino de Deus, deve ser alguma coisa destinada a ser
acessada pelas almas, ou, então, ele deve ser a própria Igreja, com toda sua pompa
e circunstância. A célebre afirmação de A. Loisy “Jesus anunciou o reino de Deus,
mas em seu lugar veio a Igreja”94 pode até incomodar cristãos hoje em dia, mas
por mil anos, não faria ninguém na cristandade “perder o sono”.
A escatologia helênica e expansionista da igreja da cristandade empurrou a
esperança tempo-paradoxal da fé cristã para outros espaços. Esta, por sua vez, “ao
ver-se descartada da esfera pública dos feitos e relegada a esfera privada dos
valores e da opinião, buscou refugio no misticismo metahistórico, a redenção
eterna e suprahistórica da alma, ou no enclave seguro da igreja empírica.”95 Ou,
como colocara Orazzio Piazza: “A tradição cristã, que se esqueceu do aspecto
concreto da esperança messiânica de um futuro na terra, deslocou o ponto central

94
Exegeta católico (1857-1940), em sua obra: L‟evangile et L‟Eglise. Citação conforme
BRAKEMEIER, Gottfriet. Reino de Deus e Esperança Apocalíptica. São Leopoldo: Sinodal,
1984, p.6.
46

para o além.96 A esse enfoque, característico da idade média, aplicamos o nome


novíssimo, em virtude de que este era o termo que representava a doutrina das
últimas coisas (morte, ressurreição dos mortos, juízo final, purgatório97,
consumação do mundo, inferno e vida eterna, cf. nota de rodapé n.5), que tanta
significância detinha em toda a idade média.
La Due liga as primeiras articulações mais organizadas e oficiais dos
Novíssimos ao Concílio de Latrão:
Um importante credo ocidental é a profissão de fé do IV Concílio de Latrão, de
1215. Suas afirmações escatológicas são as seguintes: “Ele virá no final dos tempos
para julgar os vivos e os mortos a cada um de acordo com suas obras, tanto os
rejeitados como os eleitos; os quais também ressuscitarão com seus próprios corpos
que têm agora, de modo que possam receber de acordo com suas obras; os maus
receberão punição eterna com o diabo, os bons glória eterna com Cristo.” [citação
de ROOS, NEUNER, Teaching of the Catholic Church, p.431] Por esta época
também começam aparecer as primeiras declarações cristãs concernentes ao
purgatório, que ficam evidentes numa carta escrita pelo papa Inocêncio IV ao
núncio apostólico na Grécia. Até a reforma, a escatologia medieval navega nas
questões do futuro, dando atenção as bem-aventuranças ou flagelos pós-morte bem
como a relevância da intercessão pelos mortos.98
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O que interessa são as questões do futuro, principalmente como sorte no


pós-morte, e em termos de venturas ou terrores. Com o passar dos anos, parece
que se acentuou justamente a questão do castigo. Libânio cita uma pesquisa de
Jean Delumeau, que abrange os séculos XIV a XVIII (aproximadamente o período
que estamos expondo), onde o historiador francês traça uma “geografia dos medos
escatológicos”, constatando a expansão do temor do Anticristo e das catástrofes
finais na cristandade latina.99 Susin também notará essa tendência ao pânico e
valorizará a pesquisa de Delumeau. “Uma análise das pregações escritas que vão
do século XIV ao século XVIII mostra que às vezes as palavras „inferno‟,
„demônio‟, vinham citadas com mais freqüência do que as palavras „Deus‟ ou
„Cristo‟”.100
Sobre a escatologia Novíssima, Libânio ainda comenta:

95
BOSCH, Misión en Transformación, p.608.
96
PIAZZA, Orazzio Francesco. A esperança: lógica do impossível. Tradução João Carlos
Rosalino. São Paulo: Paulinas, 2004, p.13.
97
Com a ressalva de que a Igreja Ortodoxa, que surge após o 1º grande cisma, em 1054, e as
Igrejas oriundas da Reforma, por divergência nesta doutrina, nem sempre dedicam um espaço em
suas sistemáticas para tratar do tema.
98
LA DUE, O Guia Trinitário para a Escatologia, p.36-39
99
Jean Delumeau (1923), historiador francês especialista em história da Igreja Católica, no livro
La peur en Occident, p.228, citador em LIBÂNIO, BINGEMER, Escatologia Cristã, 1985, p.60.
100
SUSIN, Assim na Terra como no Céu, p.21.
47

Esta corrente escatológica encontrará na verdade seu ponto alto, no sentido


dogmático, na Constituição de Bento XII (1336). Sanciona, de modo definitivo, a
posição de posse da Visão Beatífica imediatamente depois da morte, feita a devida
purificação, e também da imediata condenação ao inferno para os que morrem em
pecado mortal. A escatologia individual vai ocupar o proscênio na Teologia e na
pastoral. Desaparecem do horizonte teológico e da pregação oficial os temas
milenaristas, a expectativa próxima do fim dos tempos. [...] Os manuais de
Teologia repetirão ao longo dos séculos esse esquema bipartido: escatologia
individual e escatologia coletiva. A primeira interessa mais, por dizer respeito a
cada um de nós já agora, enquanto que a escatologia coletiva perde-se no
esfumaçado horizonte de imprevisível futuro. É dado de fé, mas sem relevância
imediata para a vida espiritual e moral dos cristãos. “Lontano dagli occhi, lontano
dal cuore”, longe dos olhos, longe do coração.101
Susin abordará a escatologia novíssima, dando uma atenção para as nuances
católica e protestante. Sua perspectiva da escatologia produzida na reforma é um
tanto polêmica para ser digerida por um teólogo desta tradição, entretanto muito
legítima, do ponto de vista católico, e com bom potencial para debate, que não
teremos condições, pela limitação dessa dissertação, de favorecer.
Primeiro na área católica, no Renascimento, se estabeleceu uma ambigüidade
insuportável entre a valorização terrena e a destinação eterna que desvaloriza o
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terreno. Fora das elites renascentistas, na verdade, imperava uma obsessão pelo
além, pela salvação das almas, pelo mérito e pela graça. Na área protestante,
acentuou-se ainda mais a interiorização, a graça: “Que passe o mundo e venha a
glória”. O protestantismo acentuou uma fratura entre Igreja e escatologia: as
instituições que administram as escadas entre céus e terra estavam apodrecidas, e a
Igreja dos eleitos é “escondida”. Então a mediação comunitária perdeu ainda mais
transparência: não há intercessão dos santos, não há sufrágios. O indivíduo fica
cada vez mais sozinho na escatologia.102
La Due também abordará a escatologia da reforma em seu livro. Sua tese é
de que ela não difere muito da promovida em Roma. Baseado em Paul Althaus103,
sumariza:
A escatologia de Martinho Lutero (1483-1546) é oposta a qualquer coisa parecida
com o purgatório, mas a orientação básica de seu pensamento geralmente segue os
padrões medievais. Ele descreve a morte como resultado da ira contra a
humanidade [...] O Evangelho, no entanto, dá aos cristãos uma nova abordagem da
morte. Lutero irradia uma vigorosa convicção de que uma nova vida surgirá da
morte em virtude da vitória de Cristo sobre a morte. [...] Lutero era muito crítico a
respeito da especulação medieval sobre o destino das almas após a morte, as
punições terapêuticas e as oferendas para libertar as almas de seus tormentos. [...]
Sua teologia deixa pouco espaço para a escatologia cósmica. Embora enfatize que o
fim do mundo está se aproximando, o interesse escatológico no destino do mundo
não ocupa muito sua atenção. No entanto, ele antecipa a restauração final do

101
LIBÂNIO, BINGEMER, Escatologia Cristã, p.64.
102
SUSIN, Assim na Terra como no Céu, p.21.
103
Paul Althaus (1888-1966) teólogo luterano alemão. A pesquisa de La Due deu-se na obra The
Theology of Martin Luther, Philadelphia: Fortress, 1966, p.404-425. Conhecemos a obra e ela é
recomendada para se conhecer mais a escatologia do reformador alemão.
48

universo e sua conclusão no fim dos tempos, baseado em passagens como Romanos
8. Com freqüência ele aponta o papado como corporificarão do Anticristo [...].104
La Due também abordará a escatologia de Calvino, que pode ser conhecida
no livro 4 de sua Institutas, e a qual não está tão distante da de Lutero. Inclinamo-
nos a concordar com a interpretação de La Due, que coloca a escatologia da
reforma em sintonia com a escatologia católica no período da idade média,
especialmente na questão que norteia nossa dissertação, a temporalidade
escatológica. Ambos os arcabouços parecem estar consideravelmente dependentes
dos Novíssimos e, orientados por e para eles. Ainda que pretendamos continuar
essa pesquisa, em outro momento.105
Concluímos essa seção com um comentário final de La Due sobre a
escatologia novíssima da idade média, que não apresenta modificações na tese,
mas que, sem embargo, ajuda-nos a completar esta enorme fase histórica, com os
desdobramentos finais já adentrando na idade moderna:
No século XVII, a compreensão geral da fé cristã relativa às coisas últimas
permaneceu próxima das posições sustentadas na Europa ocidental após a Reforma.
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Pensava-se que um pequeno número de santos alcançava o céu, e os maus – que


constituíam a maioria – eram mandados para o inferno. O julgamento particular
imediatamente após a era claramente afirmado por todos, e o julgamento universal
no fim dos tempos era visto como necessário porque todos deviam ver que a justiça
era feita.[MCMANNERS, John. Death and Enlightenment. New York: Oxford
University Press. 1981, p.129]. Os pregadores e catequistas eram eloqüentes em
seus quadros detalhados dos tormentos do inferno, ao passo que não havia muito a
narrar sobre as alegrias do céu. O Paraíso reconquistado, de John Milton, nunca
foi considerado tão comovente e convincente quanto seu Paraíso perdido.106
Movimentos protestantes e católicos que fugiam deste status quo da
esperança escatológica novíssima característica da idade média, como ramos
milenaristas e o puritanismo, por exemplo, não constituem o dado predominante,
e por isso, por mais impacto que tenham tido em determinados contextos, e mais
atenção que mereçam, não são capazes de alterar substancialmente a
personalidade escatológica medieval. O futuro almejado continuava sendo o pós-
morte e o presente servia, mais do que qualquer coisa, para garantir os meios de se
chegar lá.

104
LA DUE, O Guia Trinitário para a Escatologia,, p.25-26.
105
A atenção dada por Lutero à temporalidade escatológica, é, particularmente um tema que ainda
pretendemos aprofundar, especialmente depois da leitura do artigo de SCHWAMBACH,
Escatologia como categoria sistemático-teológica. In Vox Scripturae, 2006. O teólogo luterano
defende a tese de uma perspectiva de tensão já e ainda não é possível de ser encontrada na
teologia/escatologia de Lutero, especialmente sendo ele um teólogo que entendeu a Revelação e
valorizou o esquema em paradoxos.
106
LA DUE, O Guia Trinitário para a Escatologia, p.45.
49

2.2.4
A escatologia iluminista da Idade Moderna: Chega de futuro,
queremos o presente!

Da escatologia novíssima da idade média para a iluminista da era moderna,


vemos um giro radical introduzido na temporalidade escatológica. O futuro
propagandeado na primeira perde a validade nos anseios do ser humano e na
reflexão teológica que segue em seu encalço na segunda. A glória do devir e a
espiritualidade que não passa muito de mera tentativa de alcançá-la são rejeitadas
como alienantes, ópio e têm seus fins profetizados. Clama-se pelo presente. O
iluminismo da era da razão, da economia, da política e do material implode as
expectativas de ainda não, quaisquer que sejam, e exigem alguma perspectiva do
já.107
Os milenaristas e movimentos apocalípticos continuavam marginalizados.
As vozes dissonantes não logram maiores repercussões. Para a teologia liberal,
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que se afirmou no período, a escatologia acabou tornando-se “uma casca


descartável, que em qualquer caso resultava embaraçosa”.108 Mesmo na teologia
conservadora, a escatologia não possuía nenhum papel relevante. Ernst Troeltsch
resumiu a escatologia da idade moderna dizendo que ela era “um escritório que se
encontrava a maior parte do tempo fechado”.109
Ainda assim, importa-nos tentar entender o que aconteceu com a
temporalidade escatológica neste ínterim. Não apenas para compreender seu
processo, mas também para traçar a questão da temporalidade escatológica na
história da igreja e da reflexão teológica de forma integrada, conectando esta fase
moderna com a anterior e com a que dela se deriva. Por que houve a reviravolta?
Como se chegou àquele ponto? Luis C. Susin nos ajuda na tarefa:
Os últimos cinco séculos vieram se caracterizando, desde a Europa para todas as
culturas, por um “espírito novo”, a modernidade. Juntamente com a centralidade
da racionalidade, da ação, da produção, da luta pela autonomia e pela
individualidade, a modernidade engendrou uma escatologia terrestre e
secularizada: “tempos novos” ou “tempos modernos” significam exatamente que
“o futuro é agora”, que estamos na idade adulta em que os “novíssimos” não
precisam ser mais esperados, mas estão à disposição. Podem ser realizados no
presente mediante o exercício histórico da racionalidade, da ação, da produção,

107
Karl Marx chegou a sugerir que se deixasse o céu para os passarinhos e se cuidasse da terra.
Citado de SUSIN, Assim na Terra como no Céu, 1995, p.22.
108
BOSCH, Misión en Transformación, p.609.
109
Citado em BOSCH, Misión en Transformación, p.606.
50

da ousadia da autonomia e da auto-realização [...] A modernidade é, antes de


qualquer coisa, a quebra com o proposto pelos antepassados, uma luta de
libertação de estruturas anteriores. Persistiu por muito tempo uma escatologia
onde se valorizou mais o céu que a terra, a alma mais que o corpo, o além mais
que o aquém.110
Em primeiro lugar distinguimos os Novos Tempos, isto é, tempos de se
promover os verdadeiros valores que a humanidade precisa, tais como liberdade,
igualdade, dignidade, vida para todos. Valores que não teriam sido tratados com a
devida eficácia pela ordem anterior. Por isso, em segundo lugar, essa ânsia em
romper com o legado entregue pela religião dominante. Susin usa o termo
“secularizada”, para referir ao que foi feito com a escatologia. Na verdade, em sua
análise, ele dirá que não foi só esse lócus que sofreu uma tentativa de
dessacralização ou materialização, por assim dizer, mas “cada âmbito da teologia
e da exegese cristã”: a cristologia, a pneumatologia, a eclesiologia, a protologia.111
Da escatologia novíssima vigente até então, pouco material permaneceu intocado
e sobrou para “contar a história”: céu, inferno, juízo, salvação, Deus, diabo,
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pecado, fé, esperança, Reino... Foram todos secularizados. Segundo Susin, num
exame de Delumeau, o grande problema foi o “medo escatológico”, mencionado
anteriormente, e que mantinha o querigma e a postura cristã “de joelhos”. O ranço
maior que a modernidade teria com o medievo, teologicamente falando, seria com
o (ab)uso de uma mensagem legalista sobre um Deus obstinado em julgar
pecadores. Os temores decorrentes de uma existência voltada para evitar o inferno
e alcançar o céu teriam sido a “tragédia da escatologia”.112 Libânio concordará
com ele, e agregará o coeficiente da “culpabilização”113, que normalmente se fazia
acompanhar. Também insistirá num tópico caro para sua teologia: a capacidade de
interagir e responder às perguntas que são postas.114 Libânio defende que a
escatologia perdera essa capacidade na modernidade. Ambos entendem que essas
situações não são intrínsecas ao cristianismo, mas se tratam de acréscimos nocivos
que foram sendo incrementados ao longo da história por diversas influências.

110
SUSIN, Assim na Terra como no Céu, p.14-15,19.
111
SUSIN, Assim na Terra como no Céu, p.15.
112
SUSIN, Assim na Terra como no Céu, p.22.
113
LIBÂNIO, BINGEMER, Escatologia Cristã, p.27-28.
114
LIBÂNIO, BINGEMER, Escatologia Cristã, p.20-31.
51

O quadro esboçado por La Due, também é útil para auxiliar-nos no


entendimento da escatologia iluminista da modernidade e na busca pela
perspectiva temporal escatológica:
Depois das batalhas campais pela religião no século XVII, muitas pessoas
religiosas começaram a sentir que Deus era muito sábio e amoroso para permitir
que a humanidade se apoiasse em religiões reveladas, cada uma das quais estava
convicta de que as outras eram falsas e malignas. As árduas guerras de religião,
com seu ódio e sua carnificina, especialmente no século XVII, pavimentaram o
caminho para o deísmo, que no século XVIII se tornou popular na Inglaterra, na
França, na Alemanha e na América. Pensadores como Pierre Bayle (1647-1706),
Denis Diderot (1713-1784), François Voltaire (1694-1778) e Gotthold Lessing
(1729-1781) estavam convencidos de que a abordagem mais aceitável do
cristianismo consistia em ver a Deus como um criador sábio que não intervém de
modo algum no destino e nos assuntos do mundo. Apenas a razão é o meio pelo
qual a existência e a natureza de Deus podem ser descobertas, graças a um estudo
da operação ordenada e coerente do universo. A religião natural não alimenta
disputa, nem ódio, nem guerra, como fazem as regiões reveladas. Além disso, todas
as religiões históricas começaram num certo ponto no tempo e muitas definham ao
longo dos anos. Por outro lado, a religião natural nasce do coração da humanidade
e está disponível para todos.115
Nessa esteira de pensamento intelectualista destacaram-se David Hume
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(1711-1776), quem atacou as premissas da religião natural, Immanuel Kant (1724-


1804), quem apesar de afirmar o Iluminismo como a saída do homem de sua
imaturidade auto-imposta,116 não cria que a razão pura suplantava aspectos do ser
humano que somente encontravam respostas na sua transcendência e Jean-Jacques
Rousseu (1772-1778), que defendia uma humanidade boa por natureza. O
pietismo emergiu na Europa, com sua ênfase na experiência de fé interior e na
piedade pessoal e comunitária, como, em certo sentido, resposta a uma
espiritualidade influenciada pelos paradigmas humanistas.117
Um destes pretensos pietistas foi Friedrich Schleiermacher (1768-1834),
considerado por Willian La Due como o autor do mais importante sumário da
teologia protestante produzido desde o tempo da reforma até o século XX.118 Em
seu compêndio da fé, encontramos nos parágrafos 57-69 as questões relativas à

115
LA DUE, O Guia Trinitário para a Escatologia, p.45-46
116
KANT, Immanuel. What is the Enlightenment?, In: The Philosophy of Kant: Imannuel Kant‟s
Moral and Political Writings. ed. Carl J. Friedrich, New York: Randon House, 1949 (reimpr.1977),
p.132-133.
117
LA DUE, O Guia Trinitário para a Escatologia, p.48. La Due não ressalta o movimento da
Ortodoxia Protestante, desenvolvido décadas após a reforma, e para o qual o Pietismo também
tencionou postular-se como alternativa. Não o mencionamos como relevante para nosso tema
tampouco, uma vez que entendemos que a Ortodoxia se manteve fiel à escatologia medieval.
118
LA DUE, O Guia Trinitário para a Escatologia, p.49.
52

escatologia sob a rubrica da consumação da igreja.119 Schleiermacher, em quem


continuamos a encontrar o elemento místico e transcendental, defende que o ser
humano possui uma consciência de Deus, a qual traz consigo uma fé na
imortalidade pessoal. Ele afirma que doutrinas bíblicas, que tratam das
informações sobre a escatologia - as quais chama de doutrinas proféticas - não
devem receber o mesmo peso que as doutrinas que ele examinou anteriormente.120
O pastor e professor das universidades de Halle e de Berlin divide estas doutrinas
proféticas em cinco observações: a primeira lida com o retorno de Cristo, a
segunda com a ressurreição da carne, a terceira sobre o juízo final, a quarta sobre
a bem-aventurança eterna e a quinta sobre a condenação eterna.121
Vários anos após a morte de Schleiermacher, um professor assistente de
Tübingen chamado Friedrich Strauss (1808-1874) apresentou sua contribuição
escatológica na obra Vida de Jesus. Polêmicas para a época, as teses de Strauss
reduziam muitos dados históricos à categoria de mito, que os primeiros discípulos
teriam incluído nas narrativas dos Evangelhos para aumentar a importância de
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Cristo aos olhos dos crentes. A escatologia não era um campo de empreendimento
importante para ele, pelo menos não nas questões escatológicas relativas ao
futuro, como o julgamento e os destinos finais. Tampouco para outros que se
lançaram à época em projeto semelhante. A modernidade foi um tempo onde
afloraram publicações biográficas sobre Jesus, em sua maioria, escritas por
autores alemães e com um ponto de vista positivista. Evitavam as questões
metafísicas e focavam nos eventos e ensinamentos de Cristo. 122
Outro exemplo paradigmático que nos ajuda a entender o cenário que
alimentava a reflexão escatológica do mundo moderno é conhecermos a teologia
de Albrecht Ritschl (1822-1889), considerado um dos teólogos protestantes mais
influentes de sua época. Ele ensinou, surpreendentemente no período, que o
conceito mais importante para a teologia cristã era o do Reino de Deus. Porém,
concebia esse reino não primariamente como uma ação ou dom transcendente
divino, mas como uma tarefa humana.123. Para ele o Reino de Deus é feito de

119
SCHLEIERMACHER, Friedrich. The Christian Faith. 2.ed. Edimburgh: T&T Clark, 1986,
p.696-737.
120
SCHLEIERMACHER, The Christian Faith, p.705.
121
LA DUE, O Guia Trinitário para a Escatologia, p.50-51.
122
LA DUE, O Guia Trinitário para a Escatologia, p.53-54.
123
BERKOUWER, G.C. The Return of Christ. Traslation James Van Oosterom, Grand Rapids:
Eerdmans, 1972, p.25. Apud HOEKEMA, A Bíblia e o Futuro, 2001, p.339.
53

valores e alvos que os cristãos tentam alcançar neste mundo, aqui e agora. “O
reinado de Deus é comunidade perfeita com Deus, e rumo a esse fim ele energiza
um desenvolvimento intacto do amadurecimento da humanidade em direção da
perfeição moral.”124 Em sua lógica, a escatologia não desempenhara virtualmente
papel algum.
As posições de Adolf Von Harnack (1851-1930), outro proeminente,
conforme expressas em seu famoso livro What is Christianity?, são típicas desta
compreensão ritschliana de Jesus e do Reino. Segundo Harnack, a mensagem de
Jesus acerca do Reino de Deus abarcava dois polos: “em um polo, a vinda do
Reino parece ser um evento puramente futuro, e o reino propriamente dito parece
ser o governo externo de Deus; no outro, ele aparece como algo interior, algo que
já está presente e atualmente abrindo seu caminho”.125 A esperança dramática no
futuro seria a “casca” da mensagem de Jesus e o Reino de Deus que visita o
coração do ser humano seria o “cerne”. “Deste ponto de vista, qualquer evento
significativo, no sentido histórico e externo, foi subjugado, e também terminaram
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todas as esperanças externas pelo futuro”.126 Assim como Ritschl, Harnack


rejeitou os aspectos escatológicos do Reino de Deus (escatologia no sentido futuro
ou em tensão) e viu Jesus primordialmente como um mestre da moralidade,
relevante até, para as questões do mundo presente.
Outros pensadores poderiam ser aludidos nesta reconstrução histórica, mas
os citados caracterizam, com expressividade, a escatologia da modernidade.
Enquanto no catolicismo e no protestantismo conservador, mantinha-se a ênfase
inclinada para o ainda não, num discurso um tanto crítico (profético), mas
também alheio aos anseios por um já, a teologia liberal, tentando dialogar, quiçá
ia longe demais, embarcando num projeto religioso que, de certa feita, declinava a
escatologia futura. Susin faz uma avaliação da modernidade, a qual
compartilhamos, pois não só concede um crédito justo, mas desvela algumas
falácias. Há um lado “heróico” e há um lado “decadente”. De positivo, “a audácia
da modernidade fora o desmascaramento do aspecto ideológico e interesseiro dos
Novíssimos: uma chantagem para a administração dos terrores e do destino

124
SAUTER, Gerhard. What Dare We Hope? Harrisburg: Trinity, 1999. p.27. Apud LA DUE, O
Guia Trinitário para a Escatologia, 2007, p.54.
125
HARNACK, Adolf von. What is Christianity? 3.ed. Translation R. B. Saunders. Nova York:
Putnam, 1904, p.53. Apud HOEKEMA, A Bíblia e o Futuro, 2001, p.340.
54

humano.”127Talvez àquela escatologia “capenga” fosse mesmo alienante,


analgésica e precisava ser deixada para morrer. Por outro lado, Susin apontara
aspectos de negativos da modernidade iluminista:
Para se entrar em “tempos novos”, com a racionalidade e ação se desencadeiam
projetos e processos econômicos, políticos e sociais. A “nova terra” como
sociedade de “bem-estar” se estruturou em liberalismo e capitalismo econômico.
Sobre este terreno se projetou revolucionariamente o socialismo através do
soerguimento do trabalhador. Tanto nos processos sociais como nos processos
individuais se desvelou cada vez mais o quanto de inferno o homem é capaz de
criar aqui.
Uma síntese final, também de Susin, cremos que merece ser repartida, por
que não só sugere um fechamento adequado para esta porção, como prepara o
terreno para compreendermos a próxima:
Através da concepção moderna de história aconteceu um “envelopamento” da
criação e da escatologia na história, não mais sagrada, mas como processo,
evolução, etc. [...] A história ganha um estatuto secular: não é a história de Deus
ou a história da salvação, mas história do homem-no-mundo. A história pertence
ao homem tanto quanto o homem pertence à história. Esta historicidade radical –
sem “antes” e nem “depois”, se liga a uma evolução que parte das camadas mais
obscuras que emergem “de baixo”, e não de uma criação vinda do alto. E se
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direciona para uma escatologia como realização do homem na própria aspiral


ascensional da história: pela compreensão cada vez mais racional, objetiva e
científica, pela tecnologia e pela ação incessante, pela indústria e pela produção,
enfim pelo progresso. A modernidade desejou – ou ainda deseja – cumprir a
ordem secreta de Mefistófeles a Fausto: “Pelo teu cérebro, torna-te um deus”.128

2.2.5
A escatologia efervescente do Século XX: De volta para o futuro, mas
um futuro com presente

Os últimos cem anos testemunharam um notável aumento de interesse pela


escatologia. O redescobrimento dela é, de acordo a David Bosch, “uma das
características mais sobressalentes do século XX, primeiro no protestantismo e
logo no catolicismo.” Se a escatologia fora um escritório e estivera com as portas
fechadas na idade moderna, no longo centenário anterior, este escritório esteve

126
HARNACK, What is Christianity? 1904, p.57 Apud HOEKEMA, A Bíblia e o Futuro, 2001,
p.341.
127
SUSIN, Assim na Terra como no Céu, p.22.
128
SUSIN, Assim na Terra como no Céu, p.17.
55

trabalhando a todo vapor e fazendo “horas extras”.129 Desconhecemos teólogos


que discutem essa revalorização do escatológico no século passado.
A recuperação do ingrediente escatológico para a religião não foi um
fenômeno irrelevante ou, quem sabe, científica e sociologicamente expectável no
século vinte, pois se contrapunha ao ponto de vista newtoniano de tempo e
espaço, como foram concebidos na era iluminista pelo clássico método histórico
crítico.130 Porém não faltaram razões para a renascença. Duas principais situações
se sobressaem como catalisadoras. Primeiramente, foi o dado religioso presente
no ser humano que vindicou ser reconsiderado. Havia um sentimento de saudade
da esperança no ar, que clamava por possibilidades de um futuro de índole
transcendental. O já poderia permanecer, mas ele precisava estar “casado” com
seu parceiro ainda não. De volta para o futuro, mas um futuro com o presente do
lado.
A escatologia representa o elemento de esperança na religião. Mesmo o filósofo
marxista Ernst Bloch pode afirmar: „onde há esperança, há religião‟. O iluminismo
praticamente destruiu a categoria da esperança. Descartou a teleologia e funcionou
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unicamente em termos de causa e efeito, não de propósito. „O deus da física nos dá


o que anelamos; mas não nos diz o que devemos anelar, disse George Santayana.
Unicamente a religião pode aportar isto. 131

Juntamente à esperança latente no ser humano, que encontrou um meio de


reaparecer, Roberto Zwetsch, professor luterano da Escola Superior de Teologia
em São Leopoldo, aponta para outra causa desta renovação da expectativa futura
de Reino de Deus: a decepção com a proposta messiânica que havia sido oferecida
pela escatologia secularizada e domesticada da teologia liberal iluminista. Sem
desfazer-se do presente necessariamente, ansiava-se por uma promessa de “além”
que havia sido esquecida:
Embora a ciência e a tecnologia continuem a manter seu caráter messiânico e
salvacionista, crescentemente parcelas importantes da humanidade percebem sua
ambigüidade em termos de solução para os problemas humanos. O Deus progresso,
fruto do Iluminismo, mostra seus pés de barro.132
Além disso, como desassociar a reflexão teológica que estava sendo
produzida do momento histórico dramático e ímpar que o mundo experimentava?
Sem dúvida nenhuma, os “traumas de duas guerras mundiais criaram um clima no

129
BOSCH, Misión en Transformación, p.606.
130
MARTIN, James P. Toward a Post-Critical Paradigm. New Testament Studies, vol.33, 1987,
p.272s.
131
BOSCH, Misión en Transformación, p.606.
56

qual o pensamento escatológico voltou a ter sentido nas igrejas e círculos


teológicos históricos”.133 Se na Conferência Missionária Mundial de 1910, ou
mesmo antes, a reflexão escatológica passava praticamente imperceptível nos
congressos e documentos confessionais, já a partir de 1928, numa conferência
patrocinada pelo Concílio Missionário Internacional em Jerusalém, começa-se a
fermentar os fundamentos escatológicos tão aguardados.
Assim como a grande maioria dos estudiosos concorda com a fertilidade da
reflexão escatológica do século XX, também não há considerável divergência
quanto à influência de dois precursores teólogos para a viragem: Johaness Weiss e
Albert Schweitzer. Os primeiros movimentos de quebra dos paradigmas da
escatologia iluminista e de reivindicação do retorno da dimensão futura da
mensagem do Reino de Deus, ao que parece, veio deles. Foram os dois que deram,
por assim dizer, o “grito de alerta”.134 Comecemos situando o labor de Johaness
Weiss, nas palavras de Anthony Hoekema:
Opondo-se à compreensão de Jesus e o reino de Deus representada por Ritschl e
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Harnack, [a quem poderíamos considerar como os últimos representantes da


escatologia iluminista], surgiu uma vigorosa reação durante a última década do
século 19. O primeiro protesto veio de Johaness Weiss (1863-1914), genro de
Albrecht Ritschl, em sua obra Jesus‟s Proclamation of the Kingdom of God [A
Proclamação a Respeito do Reino de Deus], cuja primeira edição foi publicada em
1892. Weiss disse que os ensinos de Ritschl acerca do reino de Deus não estavam
baseados num exame cuidadoso das palavras do próprio Jesus, mas sim no
pensamento evolucionista e não-escatológico corrente do século 19. De fato, assim
prossegue Weiss, a compreensão que o próprio Jesus tinha do reino era exatamente
o oposto da concepção de Ritschl.135
“Jesus não teria sido somente um grande mestre ético”, disse Weiss. Antes,
“tinha convicção de estar na encruzilhada decisiva dos tempos, e que ele era o
proclamador de uma salvação escatologicamente orientada”.136 Ele esperava um
Reino como uma realidade futura, não como resultado de um processo evolutivo
gradual, mas como uma total incursão na História.137 Quando vier, o Reino de
Deus será a “irrupção de uma estrondosa tempestade divina que irromperá na
138
história para destruir e renovar”. Portanto, o Reino de Deus não seria tarefa do

132
ZWETSCH, Roberto E. Missão como com-paixão: Por uma teologia da missão em perspectiva
latino-americana. 2.ed. São Leopoldo: Sinodal, 2015, p.59.
133
BOSCH, Misión en Transformación, p.609.
134
LIBÂNIO, BINGEMER, Escatologia Cristã, p.64.
135
HOEKEMA, A Bíblia e o Futuro, p.341.
136
HOEKEMA, A Bíblia e o Futuro, p.342.
137
HOEKEMA, A Bíblia e o Futuro, p.342.
138
WEISS, Johaness. Die Predigt Jesu vom Reich Gottes. 2. ed. 1900, p.5. Apud HOEKEMA, A
Bíblia e o Futuro, 2001, p.341-342
57

homem, nem poderia ser desenvolvido pela obra do homem, mas seria
inteiramente obra de Deus.
Quando Jesus eventualmente parecia dar a impressão de que o Reino já
tinha chegado, Weiss continua dizendo, ele estava falando de modo antecipatório.
As passagens que parecem falar de um Reino presente foram interpretadas por ele
como indicando para o futuro. Weiss defendia que Jesus realmente pensou que o
Reino estava vindo muito em breve, e que após se decepcionar com as
circunstâncias, percebeu que teria que morrer por seu povo para alavancar o
evento.
Para Weiss, em distinção a Ritschl e Harnack, o elemento escatológico não
era a casca, mas o cerne do ensino de Jesus. Sua contribuição ao mundo teológico
deu-se no sentido de reconhecer a escatologia futura como central na mensagem
de Jesus. Ainda que talvez tenha ido longe demais ao sustentar que, para Jesus, o
Reino de Deus era exclusivamente futuro, e não presente de forma alguma.
As posições de Weiss foram endossadas e expandidas por outro teólogo que
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marcou o pensamento escatológico dos tempos modernos, Albert Schweitzer


(1875-1966). Schweitzer argumentou que, embora estivesse Weiss basicamente
correto em sua compreensão da missão de Jesus, não foi longe o bastante.
Enquanto Weiss tinha enfatizado os elementos escatológicos na pregação de
Jesus, Schweitzer afirmava que os conceitos escatológicos não só dominavam a
pregação de Jesus, mas toda a sua vida.139 A interpretação que Schweitzer faz de
Jesus e do Reino de Deus veio a ser conhecida como Escatologia Consistente ou
Coerente.
Segundo La Due, Schweitzer apresentou suas ideias primordialmente no
livro O Mistério do Reino de Deus, em 1901, onde descreve com algum detalhe a
consciência messiânica de Cristo e sua percepção de que a vinda do Reino de
Deus era seu papel especial.140 Depois veio seu segundo e mais celebrado livro, A
Busca pelo Jesus Histórico, de 1906, onde ele reitera sua mensagem de
escatologia coerente, insistindo que a vida e a atividade de Deus são baseadas

139
SCHWEITZER, Albert. The Quest of the Historical Jesus. 3. ed. Londres: A&C Black, 1954,
p.238.
140
LA DUE, O Guia Trinitário para a Escatologia, 2007, p.55. Anthony Hoekema e outro autores
entendem que Schweitzer divulgou sua tese primeiramente na obra A Busca pelo Jesus Histórico, e
que O Mistério do Reino de Deus teria sido publicado posteriormente, em 1914.
58

exclusivamente na expectativa iminente do Reino de Deus.141 Esta busca,


escreveu Schweitzer, certamente não obteria êxito se víssemos Jesus apenas
através da lente do idealismo do século 19, não levando em conta os aspectos
escatológicos de sua vida e de seu ensino. De acordo com o teólogo e vencedor do
prêmio Nobel da Paz de 1952, as quase setenta biografias de Jesus do século XIX
que ele analisa em sua obra prima tornaram Jesus “muito pequeno” e o adaptaram
aos padrões e à psicologia humanos.142 Ele se tornou “uma figura projetada pelo
racionalismo, dotado de vida pelo liberalismo e revestido em traje histórico pela
teologia moderna”.143 Para Schweitzer, Jesus era muito mais do que isso.144
Assim como Weiss, Schweitzer doutrinava que Jesus concebia o Reino não
como uma realidade presente, mas sim futura, seguindo esta concepção do futuro
do reino com base na literatura apocalíptica judaica.145 Baseado em Mateus 10,23,
Schweitzer entendeu que Jesus esperava que a vinda do Reino ocorresse antes que
os discípulos tivessem terminado sua jornada de pregação.146 Quando os
discípulos voltaram sem o resultado esperado, Jesus teria se convencido que
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estava enganado. Esta teria sido a primeira ocasião do assim chamado “atraso” ou
adiamento da parusia, problemática dramática assídua dentro da escatologia,
como já vimos. Naquele momento, conclui Schweitzer, iniciou-se “o abandono da
Escatologia” que marcaria a história posterior do Cristianismo.147 Schweitzer vai
além e conclui que aquele aparente engano somado aos eventos de aflição
messiânicos na cruz, epitomados no clamor “Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?” (Mt 27,46), teriam causado uma total desilusão em Jesus.
Segundo sua leitura, Jesus estava entregando sua vida numa tentativa derradeira
de introduzir o Reino e este não teria vindo. Schweitzer descreve o evento como
uma espécie de tragédia da morte de Jesus para as suas expectativas escatológicas:
[...] Sabendo que ele é o Filho do Homem vindouro, [Jesus] assume a direção do
mundo para fazê-lo mover na última volta que deverá encerrar a História comum.
O mundo se recusa a mover e Jesus se lança sobre ele. Então o mundo se move o
esmaga. Em vez de inaugurar as condições escatológicas, Jesus as destruiu. O
mundo continua a se mover e o corpo destroçado do único imensuravelmente
grande Homem, que era forte o bastante para considerar-se o governador espiritual

141
SAUTER, What Dare we Hope? p.32, Apud LA DUE, William. O Guia Trinitário para a
Escatologia. p.57.
142
LA DUE, O Guia Trinitário para a Escatologia, 2007, p.55.
143
SCHWEITZER, The Quest of the Historical Jesus, 1954, p.398.
144
LA DUE, O Guia Trinitário para a Escatologia, 2007, p.55.
145
SCHWEITZER, The Quest of the Historical Jesus,1954, p.365.
146
SCHWEITZER, The Quest of the Historical Jesus,1954, p.357.
147
SCHWEITZER, The Quest of the Historical Jesus, p.358.
59

da humanidade e para dobrar a História a seu propósito ainda está nele


dependurado. Esta é sua vitória e seu reino. 148
Um dos aportes principais de Schweitzer, em sintonia com Weiss, ocorre na
aplicação de um golpe substancial à imagem de Jesus como aquele que era
meramente um exemplo moral e um mestre da ética. O que não significava que
não havia possibilidades de se encontrar bases éticas em Jesus. Muito pelo
contrário. Pensa apenas que as “exigências éticas [...] enfocam o arrependimento à
luz da proximidade do Reino, são consideradas [...] uma ética provisória que abre
149
caminho para a irrupção do Reino”. Schweitzer mostrara que toda a obra e
ensino de Jesus eram dominados por uma expectação escatológica e apocalíptica
deliberada e pujante. Não é possível desligá-lo dessa consciência. Entretanto,
como Schweitzer rematou que Jesus tornou-se uma figura trágica, com
possibilidades de impacto apenas por suas destilações éticas, por ter provocado
sua própria morte para trazer à existência aquilo que Deus, na verdade, não tinha
nenhuma intenção de realizar, sua escatologia não permaneceu isenta de crítica.
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Destaca-se o comentário de Holmström que viu que o suposto destaque dado por
Schweitzer à Escatologia, na verdade, se torna um extermínio da matéria.150
Contudo, nossa reconstrução da quota colaborativa de Schweitzer não
estaria completa se não lembrássemos a interpretação que o teólogo faz, num livro
posterior, da escatologia paulina. Ainda que a mesma ilusão que Jesus teria tido
também encontra eco no apóstolo, o destaque que Schweitzer faz e que é de
interesse particular para nossa pergunta pela temporalidade escatológica é que,
Paulo estaria convencido de que através da morte e ressurreição de Cristo, o
eschaton teria irrompido na era presente e, de certo modo, envolvido a Igreja e se
tornado disponível aos crentes, pelo batismo e mediação do Espírito Santo. 151 Não
se pode garantir que Schweitzer acreditasse na historicidade desses eventos, mas
sua apreciação da irrupção do eschaton no presente pode ser considerada um tipo
de precipitação do que viria a seguir na reflexão escatológica: a Escatologia
realizada, de Charles Harold Dodd (1884-1973).
A posição básica de Dodd era de que para Jesus, o Reino era presente, e
estava sendo realizada no seu ministério. “O eschaton moveu-se do futuro para o

148
SCHWEITZER, The Quest of the Historical Jesus, p.368-369.
149
LA DUE, O Guia Trinitário para a Escatologia, p.56.
150
HOEKEMA, A Bíblia e o Futuro, p.347.
151
SCHWEITZER, Albert. Die Mystik des Apostels Paulus. Tubingen: Mohr, 1930, p.59.
60

presente, da esfera da expectativa para a da experiência realizada”. 152 Baseado na


exegese das passagens sinópticas sobre a vinda do Reino e na teologia paulina,
Dodd afirma que o governo oculto de Deus foi revelado, a Era por vir, veio, e o
eschaton ingressou na História. Enquanto que para Weiss e Schweitzer o Reino de
Deus que Jesus proclamava não era presente, mas futuro (embora futuro
imediato), para Dodd, esse Reino chegou e está presente no ministério de Jesus.
Qualquer passagem que aparentemente faça referência a eventos futuros, tais
como a segunda vinda, o dia de juízo, a promessa dos novos céus e da nova terra,
foram tratadas por ele como adicionadas posteriormente pela Igreja, como forma
de esclarecimento para o fato de que o retorno breve de Cristo, que tinha sido
esperado, ainda não tinha acontecido.153 Dodd sustenta que a fonte da
“Escatologia futura” encontrada no Novo Testamento era a literatura apocalíptica
judaica. No princípio, os crentes esperavam que Jesus voltasse imediatamente.
Quando isto não aconteceu, explica Dodd, “a igreja [...] passou a reconstruir, em
um plano modificado, o esquema tradicional da Escatologia judaica que tinha sido
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destroçado pela declaração de que o reino já tinha vindo.154


Outro detalhe da escatologia de Dodd que nos interessa é sua abertura para a
inclusão de elementos de conceitos platônicos no pensamento bíblico, apontada
por alguns de seus críticos. Em algumas leituras que Dodd faz de passagens do
Novo Testamento, o reino vindouro parece ser uma espécie de ideal atemporal, do
qual a vida terrena é apenas um tênue reflexo. A partir dessa tese “atemporal” ou
“além do tempo e espaço”155, é possível que se afirme que Dodd não esperava
uma consumação futura do Reino, ou uma futura restauração da terra. A realidade
última estaria mais associada a alguma perspectiva mística do que histórica.
Deve ser dito, para crédito de Dodd no debate escatológico, que ele se opôs
a visão unilateral de Schweitzer para quem o Reino de Deus era essencialmente
futuro. Dodd enfatizara que este se ocupa especialmente de realidades presentes
além de acontecimentos futuros, ainda que os porvindouros fossem por ele
atenuados ou “platonizados”.
Com Weiss, Schweitzer e Dodd se dá a largada para a reflexão escatológica
efervescente do século XX. A partir deles, se abre um leque de variações. Como

152
DODD, Charles E. The Parables of the Kingdom. Londres: Nisbet, 1935, p.50.
153
DODD, The Parables of the Kingdom, p.146-153.
154
DODD, Charles E. Apostolic Preaching, p.80-81, apud HOEKEMA, p.348.
61

bem lembra Bosch, esta “nova escatologia” estaria "longe de ser uniforme".156A
efervescência foi criativa.157 Vejamos como ela se desenvolveu a partir de alguns
dos mais representativos teólogos do século XX, dando especial atenção à nossa
chave de leitura da temporalidade escatológica.
Um dos primeiros teólogos a se aproveitar desse momentum escatológico foi
o suíço Karl Barth (1886-1968), por vezes denominado como o maior teólogo
protestante do século XX. Sua teologia é rica em diversas áreas e sua ascendência
extrapola o próprio campo teológico, como atesta, por exemplo, sua exposição
como capa da revista americana Time, em abril de 1962. Barth logo disse que não
admitia a escatologia como um mero “último capítulo, breve e inofensivo, da
teologia dogmática”.158 Segundo ele, toda a teologia está colocada em um molde
escatológico. Sua escatologia pode ser conhecida ao longo de 75 parágrafos
destinados a ela em um dos 13 volumes de sua extensa Church Dogmatics, talvez
a obra de maior expressão redigida em arraiais protestantes em um bom tempo.
Suas compreensões escatológicas são extensas e profundas, e admitem uma leve
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transmutação de perspectiva, relacionadas ao Barth mais precoce e à fase mais


madura do teólogo. Fora caracterizada como escatologia vertical ou
transcendental, porque, em suma, em sua concepção de tempo como algo
qualitativamente da eternidade, “o resultado foi uma ênfase esmagadora sobre a
transcendência de Deus e sobre o fato de que não há uma ponte do homem para
Deus, mas apenas uma ponte de Deus para o homem”.159
Diante de um pensamento amplo, ficaremos concentrados no dado temporal
escatológico. Barth revelara um entendimento distinto da abordagem tradicional.
Escatologia não mais significa aguardar certos eventos que acontecerão no futuro
mas, antes, temer a Jesus Cristo em arrependimento e fé, em cada momento em que
o defrontarmos. Podemos denominar isso uma espécie de “Escatologia atemporal”,
na qual a Parousia não mais é entendida como a volta futura de Cristo, mas antes
como “um símbolo atemporal da realidade infinita da eternidade em cada situação
existencial. Também podemos denominar isso como uma espécie de Escatologia
“vertical”, em distinção à “horizontal”. O Eterno é considerado como estando
sempre sobre nós; temos de responder a ele quando ele nos fala; no momento em
que o fazemos, a eternidade interseccionou-se com o tempo – e isso é
Escatologia.160

155
DODD, The Parables of the Kingdom, p.56
156
BOSCH, Misión en Transformación, p.609.
157
SUSIN, Assim na Terra como no Céu, p.11.
158
BARTH, Karl. The Epistle to the Romans. Translation. E.C. Hoskyns. Londres: Oxford, 1933,
p.500.
159
HOEKEMA, A Bíblia e o Futuro, p.364.
160
HOEKEMA, A Bíblia e o Futuro, p.365.
62

Barth recebeu a crítica de roubar da escatologia alguns de seus significados


mais essenciais, e não dar espaço para a escatologia futura, para o telos, o alvo e
fim da história, as quais respondeu, em escritos posteriores, tendo inclusive
reconsiderado exegeses e confessado que "perdeu “a característica da passagem,
do tempo como se movendo para um fim real.”161 Em certo sentido, depura-se,
Barth parece falar de um paradoxo temporal, quando advoga que a eternidade
visita o presente, mas muitos de seus interlocutores vêem sua relação exata entre o
presente e o futuro, o já e o ainda não, como ambígua.162
Quem também marcou o século XX com sua perspectiva escatológica foi
Rudolf Bultmann (1884-1976). Ele estudou teologia nas universidades de
Tübingen, Berlim e Margburg, na Alemanha, e lecionou em Marburg de 1921 a
1951, quando se aposentou.163 Bultmann é conhecido pelo uso da ferramenta de
pesquisa do método histórico crítico, pela busca pela relevância da mensagem de
Jesus para a humanidade contemporânea e pelo projeto de desmitologizar o Novo
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Testamento. Segundo ele, há no texto evangélico muita coisa que poderia ser
descrita como mitológica. É necessário reconhecer, selecionar e retirar estes
dados. O foco deve ficar na proclamação que Cristo fez da vontade de Deus e nas
suas exigências de sacrifício, amor e decisão, informações que ainda conservavam
pertinência para o mundo moderno. Mas Bultmann não era um biblista a-
escatológico. Ele não argüia que apenas as demandas morais possuíam lugar para
a fé. A pregação escatológica também teria, desde que interpretada
existencialmente.
A escatologia mitológica, de acordo com Bultmann, antecipa o fim do mundo, o
julgamento de Deus e o início do tempo da salvação ou da punição interna. Para
ele, essas concepções mitológicas perderam todo o significado para os humanos
modernos e devem ser traduzidas para o ambiente contemporâneo. O significado
mais profundo da pregação mitológica de Jesus deve se abrir para o futuro de Deus,
porque este é iminente para cada um de nós. O momento da decisão está à mão, e
aqueles que crêem já possuem a vida eterna. 164
A escatologia proposta por Bultmann, que segundo ele, é a única capaz de
dialogar com a os padrões de pensamento da humanidade moderna é

161
BARTH, Karl. Church Dogmatics. V.II/1, p.635. Apud. Hoekema, A Bíblia e o Futuro, 2001,
p.366 [em citação de BERKOUVER, G.C. Return o f Christ. Grand Rapids: Eerdmans, 1972,
p.29].
162
HOEKEMA, A Bíblia e o Futuro, 2001, p.366; Também CULLMANN, Oscar: Cristo e o
Tempo e Salvation in History.
163
LA DUE, O Guia Trinitário para a Escatologia, p.59.
164
LA DUE, O Guia Trinitário para a Escatologia, p.61.
63

antimetafísica, se concentra nas decisões particulares do indivíduo em cada


momento da vida. Quando fala do Reino de Deus, ele não se refere a um evento
futuro, mas a cada oportunidade em que o ser humano é confrontado com uma
decisão crítica e significativa de vida. Essa hora particular é verdadeiramente a
hora última.165 E nessas horas particulares, últimas, deve-se optar por Deus e
renunciar à vontade natural.166 O eschaton é agora, é essência e exclusivamente
existencial, e está diante de nós muito mais como juízo do que como esperança.
Para Bultmann, a concepção de Reino de Deus em termos cósmicos,
futurísticos, que Jesus detinha é, de fato, fantasiosa. E a pergunta que ele faz é se
essa pregação escatológica poderia ou não ser traduzida, teria ou não algum valor
para o ser humano científico de hoje. A resposta que ele propõe, por sua vez, é
que devemos ater-nos à mensagem, ao querigma, trás do mito. Todo evento
transcendental, metafísico, misterioso deve ser descartado, porque não é digno de
crédito para as mentes esclarecidas e amadurecidas da contemporaneidade. Deve
ser reinterpretado de modo a preservar o caráter vivo e útil da por mensagem.
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De acordo com o Novo Testamento, Jesus Cristo é o evento escatológico, a ação de


Deus pela qual Deus põe um fim ao velho mundo. Na pregação da Igreja cristã, o
evento escatológico sempre se tornará presente de novo e sempre se manifesta na
fé. [...] Jesus Cristo é o evento escatológico, não como um fato estabelecido do
tempo passado, mas como repetidamente presente, dirigindo-se a você e a mim
aqui e agora na pregação. A pregação é um dirigir-se, e como tal ela exige resposta,
decisão.167
Poderíamos dizer que a perspectiva temporal escatológica bultmanniana é
anti-transcendental, substancialmente existencialista e totalmente inclinada para a
dimensão do presente.
Muitas obras que traçam o panorama escatológico do século XX sugerem
que se inclua o teólogo, professor e pastor Paul Tillich (1886-1965), a quem nós
também consideramos relevante em nossa busca pelo tratamento dado a
temporalidade. Tillich foi outro prolífico escritor protestante quem lecionou em
várias universidades alemãs, até ser demitido de sua cátedra e deixar a Alemanha
rumo ao exílio nos Estados Unidos em 1933, em razão de seu antagonismo ao
nazismo de Hitler.168 Sua escatologia pode ser encontrada na seção “A história e o
Reino de Deus” de seu compêndio Teologia Sistemática, no terceiro e último

165
BULTMANN, Rudolf. Jesus and the Word. New York: Scribner‟s, 1958, p.52.
166
BULTMANN, Jesus and the Word, p.131.
167
BULTMANN, Rudolf. History and Eschatology: The Presence of Eternity. New York: Harper
& Row, 1957, p.151-152.
64

volume da referida obra. Além desse labor que lhe custou doze anos de trabalho,
também fora aclamado pela produção de O abalo dos fundamentos, Dinâmicas da
fé e O novo ser.

Em suas considerações escatológicas, Tillich afirma a realidade histórica do


eschaton, com sua dimensão negativa (juízo final) e positiva (salvação), a bem-
aventurança do universo juntamente com a da pessoa, a importância crucial da
ressurreição do corpo para o caráter único e insubstituível de cada indivíduo, a
valorização das igrejas como representantes do Reino de Deus na história e a
necessidade de não se relegar a escatologia um papel secundário de apêndice à
pregação e à teologia.169 No entanto, o aspecto que mais importa-nos são suas
percepções temporais das últimas coisas. Em Tillich, parece que se pode verificar,
de certa maneira, a tese da tensão escatológica entre o presente e o futuro.
Segundo ele, “uma das principais tarefas das igrejas é continuar a enfatizar a
tensão entre a consciência do presente e a antecipação do dia final. 170 Como esta
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tensão ocorre, Tillich explica com seu conceito do processo de “essencialização”.


Se e como os indivíduos podem entrar no Reino do transcendente é, para Tillich, o
desafio chave da existência humana. À medida que a vida segue para o fim, os
elementos positivos na existência são elevados à vida eterna, que não é mais do
que uma participação na vida divina. Essa transformação implica libertar o positivo
de sua mistura com os elementos negativos. [...] Esse processo é chamado de
essencialização (termo de Friedrich Schelling), que significa que o que foi
atualizado no tempo fornece algo positivo para o ser essencial, e dessa maneira,
produz o que o Tillich denomina o “Novo Ser”. [...] Para Tillich, a vida divina é o
triunfo definitivo sobre o negativo. Ao mesmo, ela não é de modo algum um estado
de imobilidade. Em vez disso, a vida divina continua a evoluir e aumentar. Deus
está sempre saindo de si para superar as negatividades da vida. Tudo o que é
participará da vida divina da bem-aventurança, e assim, haverá “um novo céu e
uma nova terra” no Reino final de Deus.171
O futuro da plenitude escatológica, que o apóstolo Paulo conceituou como
“Deus sendo tudo em todos” significa para Tillich a essencialização radical de
toda a realidade criada, especialmente de todos os seres humanos. Essa
experiência já começa a acontecer de forma evolutiva no presente, no ritmo básico
da vida em nosso contexto terreno, quando se passa pela auto-realização, pelo
estranhamento e pela reconciliação. Tudo o que tem ser é impulsionado por Deus
rumo à plena atualização de suas potencialidades e de sua essencialização última.

168
LA DUE, O Guia Trinitário para a Escatologia, p.75.
169
TILLICH, Paul. Systematic Theology. v.3. Chicago: University of Chicago, 1967, p.298-418.
170
LA DUE, O Guia Trinitário para a Escatologia, p.76.
171
LA DUE, O Guia Trinitário para a Escatologia, p.76-77.
65

No entanto, quem, talvez, na controvérsia escatológica em campos


protestantes da época, propôs por primeira vez, um argumento histórico-temporal
mais nivelado ou paradoxal, não foi Tillich, mas o teólogo Geerhardus Vos (1862-
1949), professor no Princeton Theological Seminary de 1893 a 1932. Anthony
Hoekema chama à atenção tanto para sua importância na apresentação deste
pressuposto como para seu pouco reconhecimento.172 Já em 1915, pasmem o
pioneirismo, Vos antecipava as compreensões de Dodd acerca do Reino presente e
da chegada da era por vir, ao mesmo tempo em que evitava a virtual rejeição que
Dodd fazia da Escatologia futura. No artigo “Eschatology of the New Testament”,
ele falou que o Novo Testamento revelava as esperanças escatológicas do Antigo
em dois estágios: a era messiânica presente e o estado consumado do futuro.
Em alguns casos, isso assume uma forma explícita na crença em que grandes
transações escatológicas já começaram a acontecer, e que os crentes, já atingiram
pelo menos um gozo parcial dos privilégios escatológicos [...] Isso até pode se
expressar na forma paradoxal de que o estado escatológico chegou e aquela grande
incisão na História foi feita. (Hb 2.3,5; 9.11; 10.1; 12.22-24). Ainda, mesmo
quando esta consciência extrema é alcançada, em nenhum lugar ela substitui outra
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representação mais comum, segundo o qual o estado presente continua a se situar


deste lado da crise escatológica.173
Quinze anos mais tarde, ao desenvolver suas concepções através de
reflexões de Paulo, em sua obra Pauline Eschatology, Vos afirma que, em certo
sentido, o cristão do Novo Testamento vive tanto na era presente como na era por
vir: “Lado a lado... com a continuação deste esquema antigo [das duas eras
sucessivas] pode-se observar a emergência de um esquema novo, envolvendo a
coexistência dos dois mundos ou estados”.174 Por essa razão, Vos concordaria
com Dodd em que, num sentido, a era por vir já chegou. Porém discordaria de
Dodd ao sustentar que haverá uma parusia ou segunda vinda futura de Cristo, e
uma consumação futura da era ou mundo por vir, na qual todas as suas
potencialidades serão completamente realizadas.
Em seu capítulo sobre a Interação entre Escatologia e Soteriologia, Vos
defende que, para o crente neotestamentário era a escatologia que formava a
soteriologia, e não o contrário. Esse crente estava tão claramente consciente da

172
HOEKEMA, A Bíblia e o Futuro, p.352
173
VOS, Geerhardus. Eschatology of the New Testament. International Standard Bible
Encyclopedia. Grand Rapids: Eerdmans, 1939, v.II, p.979-980.
174
VOS, Geerhardus. The Pauline Eschatology. Princeton: Princeton University, 1930, p.36.
66

perfeição final que ele finalmente herdaria, após a parusia, que ele considerava
sua salvação atual à luz daquela perfeição final.175
Então chega o momento de trazer ao repasso histórico da prolífica reflexão
escatológica do século XX, o teólogo Oscar Cullmann (1902-1999), protagonista
central de nossa pesquisa e definitivamente um dos principais pensadores cristãos
do século passado a dar voz e imprimir embasamento ao nosso foco de pesquisa: a
temporalidade do escatológico em tensão. Ocupar-nos-emos de Cullmann com
mais minúcias no próximo capítulo, dando atenção a particularidades de sua
escatologia que nos interessam no diálogo missional que estamos propondo. Não
obstante, para não deixar mutilada a romagem em busca das expressões que a
tensão já e ainda não tiveram ou deixaram de ter na história, faz-se mister, pelo
menos, algumas pinceladas sobre ele nesta seção.
Oscar Cullmann vai concordar com Dodd e Vos, (embora ele não pareça
estar familiarizado com os escritos deste último)176, em que a vinda de Cristo
significou o cumprimento das expectativas escatológicas do Antigo Testamento e,
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portanto, a instauração do Reino de Deus. Ele corroboraria completamente em que


há um sentido no qual estamos agora nos últimos dias ou na nova era, e que a
grande incisão escatológica na História fora feita.177 Todavia, discordando de
Dodd e concordando com Vos, Cullmann aguarda uma consumação futura do
reino na História. Por essa razão sua posição deixa lugar tanto para a Escatologia
futura como para a Escatologia realizada. Assim Rosino Gibellini, historiador
católico o classifica:
A teologia da história da salvação desenvolvida por Cullmann, se diferencia a)
tanto de Kierkegaard, que, com sua teoria da fé como contemporaneidade com
Cristo, acaba dando um salto atrás, no passado; b) como da escatologia
subseqüente de Schweitzer, para quem tanto Jesus como o cristianismo primitivo
viviam na expectativa da parusia, projetados apenas para o futuro; c) como da
escatologia realizada de Dodd, para quem, com sua ressurreição, e portanto no
presente salvífico, Jesus realiza o advento do Reino; d) como ainda da teologia
existencial de Bultmann, que reduz a “história da salvação” (Heilsgeschichte) a
“evento da salvação” (Heilsgeschehen). Em todas estas posições, perde-se a tensão
entre o “já” e o “ainda não”, que, para Cullmann, continua a ser o elemento
neotestamentário específico.178
Provavelmente aventado preliminarmente por Vos e posteriormente
consolidado e melhor difundido por Cullmann, a tensão escatológica já e ainda

175
VOS, The Pauline Eschatology, p.60.
176
HOEKEMA, A Bíblia e o Futuro, p.356.
177
CULLMANN, Christ and Time, p.83.
67

não se firmaria ainda mais através das reflexões de outros teólogos, dentre os
quais merecem ser lembrados: a) Joachim Jeremias (1900-1979), teólogo luterano
alemão, quem escreveu em seu livro The Parables of Jesus em 1947 a respeito da
"escatologia no decurso da realização"; b) Archibald Macbride Hunter (1906-
1991), professor na Inglaterra e Escócia, que em seu Interpreting the Parables, de
1960, deu força ao termo "escatologia inaugurada"; c) Herman Ridderbos (1909-
2007), erudito holandês, que em The Coming of the Kingdom, de 1950,
argumentou com muita desenvoltura, insistindo que os dois aspectos do reino
nunca devem ser separados mas tidos sempre como complemento necessário um
do outro; e d) George Eldon Ladd (1911-1982), que tanto em The Gospel of the
Kingdom, de 1959, como em The Presence of the Future, de 1974, tratou a tensão
temporal escatológica com muita maturidade.179
Embora a efervescência escatológica do século XX tenha estreado mais do
lado protestante, ela também atingiu e foi consideravelmente rica do lado católico,
primordialmente depois do Concílio Vaticano II. Documentos importantes foram
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redigidos, a temática foi discutida em importantes conferências e teólogos do


calibre de Karl Rahner (1904-1984), Hans Urs Von Balthasar (1904-1988),
Edward Schillebeeckx (1914-2009), Ladislaus Boros (1927-1981), Joseph
Ratzinger (1927-) e Hans Küng (1928-) apresentaram percepções variadas sobre o
assunto. Sem pretender analisar a teologia de cada um destes ou de outros que
também poderiam ilustrar a tradição católica e seu pensamento escatológico do
século XX, apenas selecionaremos algumas amostras.
Karl Rahner, “alemão da floresta negra, discípulo de Heidegger”,180
começou seus trabalhos mais influentes na escatologia abordando a teologia da
morte e depois se aventurando a refletir sobre a ressurreição do corpo. Também
falou de escatologia cósmica: “Não devemos cair numa interpretação puramente
existencial que se concentra apenas nos indivíduos e seu destino, pois o cosmos
também está se aproximando do tempo de seu cumprimento.”181 Reconhecia o
valor do labor protestante182, mas “entrou em conflito com Bultmann e os

178
GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 1998, p.260.
179
HOEKEMA, A Bíblia e o Futuro, 2001, p. 64, citando LADD, GEORGE. The Presence of the
Future, p.218.
180
GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 1998, p.223
181
LA DUE, O Guia Trinitário para a Escatologia, p.91.
182
RAHNER, Karl. The Hermeneutics of Eschatological Assertions. Theological Investigations.
Baltimore: Helicon, 1966, v.4, p.324.
68

desmitologizadores que dizem que declarações escatológicas na Escritura se


referem exclusivamente a coisas que acontecem aqui e agora”.183 A estes, como
bem pontua William La Due no seu estudo, Rahner retrucou afirmando que desde
seus primórdios a igreja tem mantido o caráter futuro das promessas de Deus.

Nessa questão temporal, Rahner defendera que se mantivesse o horizonte da


esperança centrado na realidade das promessas do porvir, pois o Antigo e o Novo
Testamento revelam muita coisa sobre ele.184 Porém não propunha um tipo de
futurismo, mas diferenciando escatologia de apocalíptica, conclamara a um
movimento específico onde se projete no futuro as nossas experiências de graça
do presente. Segundo o teólogo católico, a escatologia se move do presente para o
futuro, enquanto o apocalíptico começa do futuro e opera de volta ao presente.
Importa que se deixe espaço para o senso de mistério diante dos eventos salvíficos
do futuro que não compreendemos, pois “é essencial que o escatológico seja
oculto em sua revelação”185, mas importa mais ainda, que não se concentre demais
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nesses eventos em detrimento da escatologia que já está em andamento. Numa


avaliação crítica que fez do estado da questão escatológica186, conclamava a que
se prestasse mais atenção e se avaliasse teologicamente o mundo em seu processo
de transformação neste tempo intermediário rumo aos novos céus e nova terra,
nitidamente uma perspectiva temporal voltada ao presente.
Hans Urs Von Balthasar (1905-1988), discípulo de Henri de Lubac e parte
do grupo predisposto a renovar o pensamento católico no século passado, deixara
um precioso itinerário perpassando temas da teologia, filosofia, arte e literatura
que até uma chave interpretativa se faz necessário para servir de fio condutor.187
Em nosso assunto temporal-escatológico vamos flagrar von Balthasar criticando a
escatologia medieval-escolástica católica e protestante chamando-a de “tragédia
escatológica”. Segundo ele, a linha infernista – que parte de Agostinho, passa por
Tomás de Aquino, envolve a teologia da Reforma com Calvino e chega até nossos
dias em “uma história feita de angústia e desespero”.188 Ele rejeita a posição

183
LA LA DUE, O Guia Trinitário para a Escatologia, p.88.
184
RAHNER, Karl. Foundations of Christian Faith New York: Crossroad, 1986, p.431.
185
RAHNER, The Hermeneutics of Eschatological Assertions, in Theological Investigations,
1966, p.330.
186
RAHNER, Karl. Eschatology, Encyclopedia of Theology: The Concise Sacramentum Mundi.
ed. Karl Rahner. New York: Crossroad, 1975, p.434-435.
187
GIBELLINI, A Teologia do Século XX, p.238.
188
VON BALTHASAR, Hans Urs. TeoDrammatica V, 1983, p.274
69

clássica dos Novíssimos, mas também a posição universalista apocatástica,


propondo um tipo de “esperança para todos” que não separe justiça e misericórdia.
Schillebeeckx enfatizou uma Igreja que está em jornada em direção ao
Reino e um Reino que, desde a vinda de Jesus, tem um futuro e um presente
interligados.189 Conforme pesquisa de Aldo Fernandes da Rocha, tornam-se
evidentes no pensamento do teólogo belga, as perspectivas já e ainda não
escatológicas, quando ele ensina que o Reino de Deus que vem (no futuro) se
relaciona com a práxis atual que o torna visível (no presente), através da
metanóia.190
Outros teólogos protestantes e católicos que influenciaram o pensamento
temporal escatológico do século XX serão especificamente abordados no capítulo
4 desta dissertação, onde os poremos em contato dialogal com Oscar Cullmann.
Concluímos esta sessão renovando nossa interpretação de que no século passado,
em se tratando de escatologia, uma efervescência foi produzida, e no que tange ao
pensamento pormenor da temporalidade, variadas alternativas foram ofertadas,
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mas uma preocupação tanto pelo presente quanto pelo futuro escatológicos, pôde,
quase sempre, ser identificada.

2.2.6.
A escatologia pós-moderna e tendências contemporâneas: O futuro
e o presente liquidificados

Por fim chegamos ao final deste capítulo, onde a pergunta pelo estágio atual
da escatologia, e particularmente da esperança em sua manifestação temporal,
demanda um esclarecimento. Notamos que é atividade mais simples investigar o
nosso objeto de pesquisa em tempos passados, do que é traçá-lo em suas
manifestações contemporâneas. Muito pelo fato de que o contemporâneo
permanece em movimento, é dinâmico, passível de alterações e, por isso, só
podemos falar em termos de tendência. Mas também por tratar-se de uma época
extremamente peculiar da história, essa pós-moderna, abarrotada de nuances e de

189
SCHILLEBEECKX, Edward. Jesus, a história de um vivente. São Paulo: Paulus, 2008, p.134.
70

difícil qualificação geral e sólida. Por isso a caracterizamos de líquida, aludindo


ao argumento do Zygmunt Bauman.191 Embora o filósofo polonês não faça parte
do quadro teórico desta pesquisa, entendemos que o vocábulo usado em sua tese
funciona adequadamente nesta nossa seção.
Se a pós-modernidade inteira pode ser caracterizada como líquida, seria
possível que também este adjetivo nos sirva de caricatura para a escatologia?
Cremos que sim. Não tanto por ela ser leve, fluida, mas especialmente porque as
perguntas, os dramas, as angústias e os sonhos com os quais ela é chamada a se
relacionar ultimamente, têm aparentado ser. Por vezes é o futuro que é
liquidificado, quando as expectativas de um porvir não podem ser identificadas
com certeza ou porque os ideais e as utopias se alteram com velocidade
impressionante. Por vezes é o próprio presente que é liquefeito. As ambivalências,
as indecisões e as contradições são atribuídas inclusive às realidades existenciais
na medida em que se vai vivendo. O desinteresse, por vezes a antipatia, e quem
sabe até a hostilidade pós-moderna volta-se tanto contra o já quanto contra o
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ainda não escatológicos, porque é pessimista com relação as interpretações


teleológicas da história, chegando a propor uma dissolução do significado do
próprio ser.
Apesar da dificuldade, impera-se penetrar nesta liquidez, não apenas pelo
exercício de demonstração da situação vigente que se encontra a escatologia, mas
principalmente porque do entendimento adequado dessa situação dependerão as
chances de êxito de uma missiologia que quer ser relevante e comunicar para o ser
humano de sua geração. As perguntas, as ilusões e desilusões, as esperanças com
respeito ao presente e ao futuro, e a vida do já e do ainda não, sejam advindas de
indivíduos ou de comunidades, são pertinentes para quem se dispor a fazer
teologia, na academia e na paróquia, em intenção contextual.
Alguns teólogos nos ajudaram a entender quais são os caminhos pelos quais
a escatologia tem estado se deparando recentemente. Primeiramente, alguns
comentários de Libânio sobre:
A escatologia cristã vive, de certo modo, a experiência do “baile da ilha Fiscal”, em
que às vésperas da derrocada do Império, a família imperial, os nobres,
entregavam-se às festas. Ou como a cidade de Roma que, já ameaçada pelos

190
ROCHA, Aldo Fernandes; KUZMA. Cesar Augusto. Anúncio e práxis do Reino de Deus: Uma
percepção escatológica no pensamento de Edward Schillebeeckx. Dissertação de Mestrado
Pontíficia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2015.
191
Zygmunt Bauman (1925-2017), filósofo polonês, em Liquid Modernity, 1999.
71

inimigos, bárbaros, ainda vivia na euforia de seu luxo e esplendor, concentrando-se


no prazer do presente. Tanto mais trágica é a comparação quanto já não se trata da
queda de um império, mas do extermínio de toda a humanidade.192

Ele avança em seu raciocínio, esclarecendo o drama referido e sugerindo


causas para o estado da questão:
Que esperança pode existir para um ser humano que vai desenvolvendo uma
ciência e uma técnica, cada vez menos utilizados para o homem, mas que o
obrigam a adaptar-se a elas e ser absorvidos por elas, como observa A. Huxley?
Este Admirável Mundo Novo, todo feito de técnica e uso dos meios científicos,
aspira à estabilidade social total. Para isso, o homem deve ser levado a amar sua
própria servidão. Para isso requer-se segurança econômica. Mas mais profunda
ainda deve ser “a revolução pessoal, nos espíritos e nos corpos humanos”. Essa
revolução profunda e pessoal pressupõe descobertas e invenções. Primeiro, uma
técnica muito melhorada da sugestão, que condicione desde a infância e mais tarde
com a ajuda de drogas. Segundo, tal conhecimento científico do ser humano que o
coloque no lugar conveniente na hierarquia social e econômica para evitar
descontentamentos, origem de ideias críticas perigosas. Terceiro, oferecer
instrumentos de evasão, dispensadora de prazeres sem ser nociva. Quarto, sistema
eugênico perfeito para estandardizar o produto humano e facilitar a tarefa dos
dirigentes. Estão aí os princípios do Admirável Mundo Novo. Na medida em que
caminha a humanidade na direção de “mundo novo” – e há sinais de que isso
acontece de certa maneira – a Escatologia cristã se sente altamente desafiada.193
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As palavras de Libânio foram, em algum sentido, proféticas, por terem sido


compartilhadas há quatro décadas, quando a pós-modernidade ainda não tinha
sido plenamente descoberta. O que Libânio previa há quase 40 anos tem se
materializado na atualidade. Essa realidade é perceptível quando lemos o que ele
escreveu na sequência, em termos de tendências para os dias atuais:
Essa defasagem tende a crescer. O horizonte do homem moderno, ilustrado, é
marcado pela problematicidade da existência, pela valorização da
intersubjetividade, pela consciência histórica, pela influência poderosa da ciência,
pelo crescente significado da práxis. [...] A viragem antropocêntrica esvaziou as
perguntas centradas no espaço unitário do sagrado, do objetivo, do teocentrismo. A
viragem afeta o ponto de compreensão, a inclinação da pergunta, de modo que o
líquido da Revelação terá de fluir de modo diferente.194
Há pouco mais de vinte anos, Susin similarmente se preocupava com a
situação atual com a qual a escatologia se depara e pôde refletir em cima de
informações mais frescas que seu momento histórico detinha. Ele confirmará
algumas percepções de Libânio e oferecerá outras luzes de compreensão também:
Hoje vivemos uma crise da modernidade, dos seus valores e processos, e há quem
fale de “pós-modernidade”. É um conceito muito contraditório e ainda muito
dependente da modernidade. Talvez um dos profetas desse novo tempo seja o
contraditório terceiro mestre da suspeita, Nietzsche: somos a autonomia de uma

192
LIBÂNIO, BINGEMER, Escatologia Cristã, p.36.
193
LIBÂNIO, BINGEMER, Escatologia Cristã, p.36.
194
LIBÂNIO, BINGEMER, Escatologia Cristã, p.37.
72

terra que não gira em torno de um sol mas apenas sobre si mesma. E vamos
morrendo de frio. Esgotaram-se as energias, e há uma crise de potencialidades,
tanto nas instituições como nos indivíduos. Derivamos para uma sociedade de
consumo, desperdício e poluição. Aqui “nada se cria, tudo se copia”, e a palavra, a
imagem, a expressão, são retalhos tediosos do “já-feito”. Apagaram-se as luzes
dos projetos que iam em direção a uma escatologia que, se não era além da
história, ao menos era na “frente”, no futuro histórico. Chegamos a uma espécie de
“escatologia realizada” e a uma auto-regulação que se chamou ultimamente de
“pós-história”. Esgotou-se e até se contestou o “espírito novo” da potência
racional e das utopias e projetos. Decaiu a militância secular. Administra-se para o
aqui e agora, e cada um “contente-se com o que tem”. A “Grande Marcha da
História” está hesitante. Não há mais messianismos seculares, não há um “porto
futuro” para onde navegar. Importante é bailar sobre as águas. A moral
secularizada de princípios e projetos racionais desmoronou em “moral de
oportunidade”, em comportamento de conveniência.195
Susin atentou-se, como vemos, em demonstrar o fracasso das aspirações
feitas pela modernidade, que não conseguiu cumprir o que prometera nem
entregar o produto que oferecera. Após analisar como isso se manifesta no ser
humano em suas atividades sociais, educacionais e políticas, ele explora um
pouco mais a questão da religiosidade. Vai cunhar um termo interessante: a pós-
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escatologia.
A religião se dissemina como expansão e fortalecimento do psiquismo,
religiosidade psicológica e terapêutica, espiritualizante – light – mas não
encarnante. Chamemos isso de pós-modernidade ou “pós-história”, é também algo
como “pós-escatologia”: Não há sequer perguntas últimas. Nietzsche, em suas
visões contraditórias, pregou o super-homem, mas na “morte de Deus” –
fenômeno tipicamente moderno de antagonismo com o “Pai” – e nessa perda de
um centro fora de si, ele anteviu a “morte do homem”. Pois o homem que se
contenta com os seus iguais e perde a interlocução com Deus, já não se transcende.
Só “outro” pode lhe dar potência, palavra, caminho, ressurreição, resgate. Assim
também a terra sem os céus perde sua “alteridade”, e o afastamento das
potencialidades celestes deixou a terra sem fecundidade e deserta. A terra sem
face-a-face perde o rumo. O amor à terra “às custas” do céu traz uma escatologia
de morte para a terra.196
Susin também notara a irrelevância vigente e a necessidade de se ampliar a
reflexão escatológica para dialogar com as questões da atualidade. E reivindicara
também uma postura que levasse em consideração a reflexão teológica disponível,
em detrimento de um esforço obstinado com ineditismo.
Hoje reina um mal-estar e uma confusão de línguas em torna das grandes
perguntas. Há respostas que não correspondem mais às perguntas. Há respostas
demasiado prontas, como roupas padronizadas que não se ajustam ao corpo de
questões que a sensibilidade humana porta consigo hoje [...] O que fazer com as
respostas que temos hoje em mãos e que parecem ter se tornado obsoletas? Como
proceder com as perguntas vitais que se debatem com a falta de um caminho, uma

195
SUSIN, Assim na Terra como no Céu, p.18.
196
SUSIN, Assim na Terra como no Céu, p.18-19.
73

articulação de resposta? Sem dúvida, é necessário partir das perguntas, jamais das
respostas. Mas é atitude responsável fazer uma exegese das respostas tradicionais
para compreender seu contexto e depreender recursos que ajudem a articular novas
respostas. A velha sabedoria pode se mostrar mais sólida do que muitas
novidades.197
Roberto Zwetsch também oferece informações relevantes para a
compreensão do cenário escatológico líquido pós-modernos. Numa porção de seu
livro onde examina novos paradigmas para a teologia, falando especificamente
sobre a esperança, ele apresenta a reflexão do cientista social Boaventura de Sousa
Santos, resumidamente segundo sua interpretação:
[Sobre a dicotomia espera / esperança] Vivemos numa sociedade de riscos
individuais e coletivos sem qualquer segurança à vista. São eles os responsáveis
pelo retorno da ideia de tempo cíclico, de decadência, da escatologia milenarista.
Essa situação traduz-se sociologicamente por uma atitude de espera sem esperança.
É uma atitude sem esperança porque o que vem não é bom e não há,
aparentemente, alternativa à vista.198
Até então, resumidamente, trouxemos à baia os aspectos de um sistema
maligno que escraviza em algum nível, a todos, e de uma própria crise
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antropocêntrica e subjetivista do ser humano (Libânio), esgotamento de utopias e


projetos, desencantamento e espiritualidade superficial (Susin) e espera sem
esperança (Zwetsch / Santos). Aludiremos outro dado, da pesquisa de William
Zacarias e do professor Euler Westphal, que pela proximidade de tema com a
nossa chave de leitura interessada no tempo escatológico, pode servir como um
fechamento deste panorama escatológico pós-moderno, que não se esgota. Eles,
assim como Susin, reconhecerão em Nietzsche um arauto dos tempos atuais e
tocarão na questão da linearidade do tempo.
A Pós-Modernidade rompeu não só com a Modernidade, mas também com a Pré-
Modernidade que constituiu a Modernidade. O marco divisor entre Modernidade e
Pós-Modernidade é o anúncio nietzschiano da morte de Deus. Foi Nietzsche quem
abriu o “mar vermelho” que separa a Modernidade da Pós-Modernidade. [...] Por
fim, Nietzsche reconheceu que a própria linearidade do tempo com início, meio e
fim faz parte da visão de mundo judaico-cristã e, por isso, não hesitou em substituí-
la por um retorno à concepção grega clássica do tempo cíclico que ele denominou
de Ewige Wiederkehr des Gleichen. O eterno retorno do mesmo é o fundamento
último do niilismo. Contudo, o niilismo tem sua origem já na secularização do
cristianismo, pois as instituições e a religiosidade são esvaziadas no processo de
secularização da vocação. Assim, o niilismo chega a seu escopo na eliminação da
linearidade do tempo judaico-cristã pela circularidade temporal dos gregos a.C. A

197
SUSIN, Assim na Terra como no Céu, p.14.
198
ZWETSCH, Missão como com-paixão, p.62.
74

existência humana passa a não ter fim, objetivo e alvo concreto (escatologia), pois
vive-se eternamente o mesmo como um hamster correndo na roda de sua gaiola. 199

Esta questão da linearidade do tempo voltará no próximo capítulo. Por


agora, importa-nos a informação de que ela também é um dos tabus com que a
escatologia pós-moderna tem de lidar. Finalizamos este capítulo com uma
reflexão final das tendências escatológicas que estão sendo articuladas em meio a
este cenário liquidificado, as quais se resumem em três principais ênfases. Não
fizemos uma pesquisa detalhada de todas as possibilidades e movimentos à
disposição200, nem estaremos fazendo uso nesta conclusão de comprovações
bibliográficas, por isso, entendemos o risco de estarmos postulando uma tese
menos extensa e respaldada do que deveríamos. Ainda assim, oferecemos esta
interpretação das ofertas escatológicas vigorantes, em tonalidade de conjectura.
Em primeiro lugar, nota-se que uma tendência futurística, milenarista ainda
sobrevive em alguns meios. Do além, ou do más allá. “Manca” em sua
predisposição exacerbada para o ainda não. Ela não é expressiva na reflexão
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teológica acadêmica, nem vende tantos livros201 e filmes como fazia há alguns
anos, mas permanece viva na paróquia, nas espiritualidades da comunidade de fé,
tanto em núcleos católicos, como protestantes, e muito especialmente em países
do hemisfério sul, como o Brasil. Esta tendência pode se manifestar como o cerne
querigmático de determinado magistério, ocupando o centro das pregações
discipuladoras ou evangelísticas, mais evidente em segmentos pentecostais202, ou
pode se manifestar de forma suplementar, com menos ostentação, ainda em

199
ZACARIAS, William Felipe Zacarias. WESTPHAL, Euler Renato. A pós-modernidade como
processo de secularização do logos cristão. Vox Scripturae. São Bento do Sul, vol. XXIV,– n.1,
jan-jun 2016, p.172-173.
200
Não realizamos tal pesquisa para não fugir demais do escopo do trabalho e alargar ainda mais
nossa dissertação, porém, entendemos que uma avaliação mais pormenorizada de autores e
tendências pós-moderna poderia ter enriquecido esta seção e aprofundado melhor a questão da
liquidificação (ou não) da escatologia atual.
201
A comercialização de livros e filmes de tendência escatológica futurista, com interpretações das
profecias bíblicas, em especial do livro de Apocalipse, foi extremamente marcante, especialmente
entre a década de 70 e o começo dos anos 2000. A maioria foi produzida a partir dos Estados
Unidos, mas difundiram-se no mundo inteiro. Exemplo disso: Agonia do Planeta Terra (de Hal
Lindsey) e Deixados para trás (de Tim Lahaye e Jerry B. Jenkins).
202
Para alguns comentários sobre a presença desta escatologia de perspectiva futurista no
pentecostalismo no Brasil, ver: ALBANO, Fernando. Escatologia Pentecostal: Aspectos íntimos e
implicações públicas. Caminhos. Goiânia, v. 12, n. 2, p. 407-415, jul./dez. 2014; JÚNIOR,
Orivaldo Pimentel Lopes. Um outro mundo já começou: questões para a escatologia cristã.
Horizonte. Belo Horizonte, v. 10, n. 26, p. 638-649, abr./jun. 2012; CAMPOS, Leonildo Silveira. O
apelo messiânico-milenarista na pregação dos novos pentecostais brasileiros. In: AUGUSTO,
Adailton Maciel. Ainda o sagrado selvagem. São Paulo: Paulinas, 2010.
75

grandeza de anexo nos catecismos e homilias, como nas igrejas protestantes mais
históricas e no catolicismo. Independente do espaço e capacidade de aparição do
qual desfrute, a escatologia nesta vocação tende a descuidar da tensão temporal
escatológica e a negligenciar os aspectos inaugurados, já presentes, do Reino de
Deus. Esta tendência tem se mantido sólida nas camadas religiosas onde o
impacto do pós-modernismo não fez sentir vigorosamente, mas possui muita
dificuldade de penetração nas mentes e corações contagiados pelo espírito da
época. Sua fraqueza é a competência contextualizadora. Porém, possui ponto
forte, a saber, sua proximidade de conceitos com o vocabulário bíblico mais
comum, os dogmas clássicos e a teologia conservadora, que lhe permite ter ainda
considerável acesso. Quando articula seus temas, especialmente em seu formato
menos fantasioso, e fala explicitamente de céu, salvação, juízo e retorno de Cristo,
por exemplo, é passível de ser compreendida por muitos e pode estar
apresentando uma mensagem honestamente bíblica, salvaguardando a reserva
escatológica do ainda não.
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Outra tendência que identificamos na atualidade, de alcance mais sentido no


ambiente da reflexão teológica acadêmica e literária, ainda que não restrita a esses
campos, reivindica a ênfase temporal-escatológica oposta: a do já, a do mas acá.
O peso está nas realidades existenciais, especialmente as coletivas, do tempo
presente. O porvir pode ser visto de muitas formas: mistério, dom, advento,
manifestação, plenitude, evolução, mas por vezes não é claramente delineado, e
ocasionalmente pode vir a sofrer, inclusive, uma importante omissão. Nesta
tendência, pode-se ouvir uma crítica pertinente ao futurismo da orientação
anterior, suas implicações, exageros e descomprometimentos, mas nem sempre se
percebe alguma proposta nítida e substancial para as expectativas e anseios
venturos. E aí pode residir uma desvantagem, além da omissão de alguns temas
caros ao cristianismo histórico que habitualmente possuíam vínculos com a
escatologia. Por outro lado, essa ênfase que valoriza e se encarrega das questões
candentes e palpáveis, especialmente voltadas a este mundo e seus dramas sociais
e materiais, além de serem por si só altamente justificadas, também parecem
provocar e atrair mais a atenção de boa parcela da sociedade, que encontra nestas,
questões mais válidas e urgentes do que as questões espirituais enfatizadas pela
tendência ao ainda não. Acreditamos que esta escatologia que possui os “pés mais
no chão” goza de uma abertura dialogal maior com o ser humano contemporâneo.
76

Mas novamente, trata-se apenas de suspeitas, uma vez que a pós-modernidade


líquida está em constante movimento.
Poderíamos acrescentar uma terceira tendência, que é àquela que tenta
permanecer entre os extremos, não numa atitude neutra e desapaixonada, mas
paradoxal, do tipo que pretende intencionalmente posicionar-se como uma
alternativa entre polarizações. Estamos referindo-nos à escatologia que, em algum
sentido, preserva a tensão temporal escatológica, que afirma a legitimidade e a
vitalidade tanto do já como do ainda não, e que se esforça por não cair na
armadilha do reducionismo. Nesta abordagem, procura-se incluir o novo discurso
escatológico das “últimas coisas que afetam o presente”, do “mundo novo que
começa já”, da vigência das petições “venha o teu Reino” e “assim na terra como
no céu”. É uma opção que faz a pergunta pelo qualitativo da esperança, pelo como
se vive hoje escatologicamente, o que se faz enquanto se espera, que pergunta pela
dimensão performática do verbo esperar, e até fala em esperançar, mas sem anular
a esperança do futuro, do “novo céu e da nova terra”, do mundo novo que está
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sendo gestado por Deus e foi prometido para a parusia de Cristo. É uma
perspectiva que tenciona, como teria pensado Moltmann alhures: nem o além,
nem o aquém. Mas ambos. E de alguma forma escatológica, simultaneamente.
Nem o imanente, nem o transcendente, mas uma transcendência imanente e uma
imanência transcendente. Pretendemos continuar esta dissertação explorando e
ensaiando caminhos para esta tendência.

2.3.
Síntese Conclusiva

Neste capítulo tratamos da questão da temporalidade escatológica.


Primeiramente averiguamos sua raiz bíblica. O Antigo Testamento já expressava
uma esperança para o tempo presente e futuro que era ancorada no passado. O
Novo Testamento superdimensionou esta tensão, ao introduzir Jesus Cristo e a
perspectiva de que o Reino de Deus estava irrompendo de forma cabal em sua
pessoa e obra, e detinha aspectos inaugurais e outros reservados ao porvir. Após,
pesquisamos como a temporalidade escatológica foi tratada pela Igreja ao longo
dos séculos, até a contemporaneidade. Notamos uma alteridade de ênfases. Houve
77

momentos em que as expectativas mantinham a índole tanto do já como do ainda


não, situações em que eram substancialmente orientadas para o amanhã, e outras
que se enfocavam no hoje.
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3
A tensão já e ainda não em Oscar Cullmann

No capítulo anterior fizemos um passeio pela reflexão escatológica


encontrada nas Escrituras e na caminhada do povo de Deus, dando atenção
especial à chave de leitura da temporalidade. A partir de um repasso panorâmico
crítico-histórico da tensão temporal passado-presente-futuro na escatologia,
buscamos entender de onde ela veio, para onde ela foi e o que foi feito com ela.
Tentamos também tatear o estado da questão na atualidade.
Concluímos que a temporalidade escatológica do Reino de Deus tem sua
raiz na revelação bíblica, já manifesta no Antigo Testamento, mas especialmente
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explicitada nos escritos neotestamentários. Que ela se manteve como parte


presente da esperança cristã, de forma mais prevalecente e manifesta em alguns
momentos, porém de forma ofuscada em outros. Por diferentes razões, notamos
que a escatologia volta e meia viu-se, e provavelmente ainda se encontra, minada
por ideias polarizantes, as quais podem ser definidas, em síntese, como uma
atitude escatológica mais preterista, que enxerga a realização total das promessas
escatológicas em algum lugar do passado, ou numa atitude mais futurista, que
busca no devir as respostas, o cumprimento das promessas e o acesso aos dons do
Reino de Deus. Uma tende a esquecer o lado transcendental da manifestação e da
ação de divina; já a outra, a desvalorizar sua dimensão imanente. Uma inclina-se a
viver viciada nos Novíssimos (juízo final, céu, inferno e purgatório, vida após a
morte e retorno de Cristo), mantendo uma postura em maior ou menor grau de
escape e desprezo das realidades históricas e da vida comum na terra; enquanto a
outra propende a deslumbrar-se, de tal forma, com as possibilidades existenciais,
que chega perto do ponto de se olvidar que há limitações dramáticas para as
circunstâncias presentes, bem como perspectivas e expectativas as quais, pelo
menos de forma plena, só nos foram prometidas para um tempo vindouro. Ambas
as posições dicotômicas não deixam de ser relativamente reducionistas tornando-
se, em certo sentido, elementares. Ainda, ambas se abastecem de compreensões
79

filosóficas influenciadas por dualismos entre céu e terra, corpo e alma, profano e
sagrado, material e espiritual.
Após reparar nestas posições antagônicas e constatar algumas de suas
limitações e ofertas, importa-nos neste trabalho aprofundar uma das alternativas
entre os polos, àquela que se encontra na mira desta dissertação. Referimo-nos à
tensão já e ainda não. Nossa tese é de que ela se faz imperiosa, para orientar-nos a
evitar os abismos laterais e caminhar por um terreno mais razoável na missiologia.
Neste capítulo nos propomos a examinar, um pouco mais a fundo, esta proposta
escatológica que pensamos merecer uma nova chance de difusão e desdobramento
na academia e na paróquia. Escolhemos fazê-lo tendo o teólogo Oscar Cullmann
como referencial.
Vale dizer que a tensão já e ainda não, como transparecera no capítulo
anterior, tem sido assimilada, de uma forma ou outra, na teologia de uma miríade
de autores, que nem seria necessário abordá-la a partir de Cullmann. A grande
maioria dos escatologistas de hoje recorrem a esta categoria clássica em algum
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momento de seus ensaios e a fazem ressoar com valiosas contribuições. Muitos se


sobressaem e poderiam servir de plataforma para boas teses. Contudo, a opção por
Oscar Cullmann como arquétipo enseja-se por três razões capitais: a) uma
tentativa de fazer-lhe justiça e conceder-lhe o devido crédito pelas suas
conclusões, repercutindo e atualizando um pouco a reflexão do autor no cenário
da comunidade teológica contemporânea; b) levando em consideração a estação
celebrativa, propícia e prolífica que o movimento ecumênico encontra-se,
aproveitar a brecha e construir um pouco mais sobre o fundamento e a herança
sólidos que este teólogo nos legou; c) a impressão de que implicações de seu
pensamento escatológico possam mostrar-se profícuas para uma atividade
missionária condizente com a esperança cristã.
Neste capítulo, nossa proposta será discorrer um pouco sobre a vida e a obra
do Dr. Cullmann, realçando a sua dialética do já e ainda não escatológicos e,
posteriormente, reverberando esta compreensão em outros expoentes no cenário
protestante e católico. Cremos que as raízes deste princípio teológico já foram
suficientemente identificadas no capítulo anterior. Neste capítulo, então,
ajustaremos o ―zoom‖ de nossa câmera para uma lente mais focalizada na tensão
já e ainda não, tal como fora elaborada e pretendida por Cullmann. Começaremos
com alguns breves relevos biográficos, destacando seu legado na atividade
80

ecumênica, após passando para a apresentação de algumas de suas obras e


contornos teológicos e, por fim, chegando ao prato principal: o insight já e ainda
não.

3.1
Relevos biográficos de Oscar Cullmann

Oscar Cullmann nasceu em 25 de fevereiro de 1902, na cidade de


Estrasburgo, capital da Alsácia, em uma família de nove irmãos.1 Nesta época, a
cidade francesa, a qual faz fronteira com a Alemanha, estava sob domínio alemão
por quase trinta anos. A região é próxima da Suíça, onde o teólogo também
exerceu boa parte de sua carreira catedrática. Por esse motivo, talvez, seja possível
encontrar alusões à sua pessoa como cidadão alemão, francês e até suíço.
Cullmann foi batizado e educado na fé na igreja luterana alsaciana. 2 Uma
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vez concluída sua educação secular elementar numa instituição protestante da


cidade, decidiu dedicar-se aos estudos filosóficos e, mais tarde, teológicos, em sua
cidade natal e, posteriormente, em Paris.3 Reconhecera que não havia estudado
com a finalidade de se tornar pastor, mas pelo interesse em teologia.4 Herdou a
influência especialmente dos seus professos de exegese bíblica, Maurice Goguel e
Alfred Loisy. Suas aptidões foram rapidamente reconhecidas, de tal modo que, já
em 1926, ele se tornara professor de Grego na Universidade de Estrasburgo, e em
1930, após obter seu doutorado, fora nomeado docente da matéria de Exegese do
Novo Testamento e História do Cristianismo Primitivo na mesma universidade.5
Em 1938, aceitou o convite para lecionar sobre Novo Testamento da Universidade
da Basiléia, na Suíça, posto que manteve até sua aposentadoria, em 1972. 6 Lá foi
colega de departamento de Karl Barth, quem o aproximou do pensamento de

1
CULLMANN, Oscar. An Autobiographical Sketch. Scottish Journal of Religion, v.14, n. 3, 1961,
p. 228.
2
CULLMANN, An Autobiographical Sketch, in Scottish Journal of Religion, p. 228.
3
CULLMANN, An Autobiographical Sketch, in Scottish Journal of Religion, p. 230.
4
CULLMANN, An Autobiographical Sketch, in Scottish Journal of Religion, p. 229.
5
STEGER, Carlos. Teólogos Influyentes del siglo XX. Entre Ríos: UAP, 2017, p.21.
6
STEGER, Teólogos Influyentes del siglo XX., p.22.
81

Lutero.7 Entre 1945 e 1948 retornava regularmente para ministrar aulas na


universidade de Estrasburgo. De 1950 em diante ensinou periodicamente numa
faculdade protestante em Paris e, a partir de 1953, em Sorbona, enquanto
continuava como professor titular em Basiléia. Também foi professor convidado
em importantes instituições teológicas no mundo todo, como por exemplo, em
Roma, Munique e Harvard em Boston.8 Além disso, proferiu numerosas palestras
e conferências por todo o mundo.
Com dezesseis anos de idade, lera os célebres Discursos sobre a Religião de
Friedrich Schleiermacher, assimilando as doutrinas do liberalismo teológico, o
qual, na época, ainda dominava a cena protestante européia. Durante seus estudos
teológicos, permaneceu sob a influência da teologia liberal, até ler a obra-prima de
Albert Schweitzer já citada no capítulo anterior, A Busca do Jesus Histórico.
A leitura dessa obra abriu meu os olhos, fazendo-me ver que o estudo histórico-
exegético da Bíblia foi traído não só pela Ortodoxia; mas também, ainda mais
gravemente, em época recente, pelas correntes filosóficas em voga. Por isso, recebi
o surgimento da Formgeschichte como uma libertação. Os estudiosos anteriores
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haviam tentado fazer distinções entre elementos essenciais e não-essenciais,


genuínos e espúrios, recorrendo amiúde a critérios deduzidos de diversas filosofias.
Ora, a arbitrariedade dessas tentativas foi colocada em evidência e a investigação
foi endereçada para ―as leis das formas‖ (Fonngesetzen) e para ―os motivos da fé‖
(Glaubensmotiven) que estão por trás da tradição.9
Dentre as insígnias de sua biografia, Cullmann contabiliza a honra de ter
sido um convidado especial do Papa João XXIII e de Paulo VI para o Concílio
Vaticano II na década de 60. Especificaremos esta sua participação mais adiante,
pois ela nos permite argumentar em prol de uma possível ressonância da teologia
de Cullmann na reflexão escatológica concebida na reunião. Cullmann fora
também, em 1972, condecorado membro da Academia Francesa de Moral e
Ciências Políticas, uma deferência importante que poucos eruditos possuem.
Recebeu doutorados honorários de muitas universidades, incluindo Lausanne
(1945), Manchester (1949), Edimburgo (1952), Lund (1953) e Basiléia (1972).
Foi diretor da Fundação Protestante em Estrasburgo de 1926 a 1932 e, de 1941 até
sua jubilação, foi diretor da Alummeum – a casa dos estudantes teológicos em

7
Para uma apreciação da relação destes dois teólogos, ver: An Autobiographical Sketch, 1961,
p.228-233.
8
BIRMELÉ, André. Oscar Cullmann: In the Service of Biblical Theology and Ecumenism.
Conferência Comemorativa aos 40 Anos do Ecumenical Institute de Tantur, Jerusalém, Outubro
2012. http://www.ecumenical-institute.org/wp-
content/uploads/2012/11/ActuelCullmannJerusalem2012English.pdf Acesso em 22/12/2017.
9
CULLMANN, An Autobiographical Sketch, p. 229.
82

Basiléia – a qual administrava junto de sua irmã Louise Cullmann.10 Sua relação
cordial e preocupada com seus alunos, provenientes de diversas raízes culturais e
teológicas do internato, é digna de menção. Ele morreu alguns dias antes do que
seria seu 97º aniversário, dia 16 de janeiro de 1999.
Sua protuberância no cenário mundial é atestada, por exemplo, pelo fato de
ter sido um dos escolhidos por vários teólogos historiadores que dedicam obras
tratando dos principais teólogos e teologias do século vinte, como por exemplo,
Rosino Gillenini11 e Battista Mondin12. Mesmo numa obra de maior amplitude
histórica, Bengt Hägglund13 também conclui sua História da Teologia
mencionando Cullmann. Eis como Mondin o descreve em sua notável composição
Grandes Teólogos do Século XX:
Oscar Cullmann é uma das figuras mais eminentes do protestantismo atual. Grande
estudioso da Sagrada Escritura e dos problemas da história da Igreja primitiva e
apaixonado pela causa ecumênica, ele ocupa um lugar de primeiríssimo plano entre
os teólogos contemporâneos por sua contribuição a constituição de uma nova
forma de teologia: a teologia bíblica.14
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A estima, o respeito e o afeto de que goza entre seus colegas ficaram


evidenciados pela publicação de vários tomos honoríficos (Freundesgabe) a sua
pessoa e obra.15

10
CULLMANN, An Autobiographical Sketch, p. 232-233.
11
GIBELLINI, A Teologia do Século XX. Tradução João Paixão Netto. São Paulo: Loyola, 1998.
12
MONDIN, Battista. Os Grandes Teólogos do Século Vinte. Tradução Jose Fernandes. São
Paulo: Teológica, 2003.
13
HÄGGLUND, Bengt. A História da Teologia. 6.ed. Tradução Mario Rehfeldt e Gladys
Rehfeldt. Porto Alegre: Concórdia, 1999.
14
MONDIN, Os Grandes Teólogos do Século Vinte, p. 209.
15
Neotestamentica et Patristica: Eine Freundesgabe, Herrn Professor Dr. Oscar Cullmann zu
seinem 60. Geburtstag überreicht, ed. W. C. van Unnik (Leiden, Holanda: E. J. Brill, 1962), para
seu 60º aniversário; Oikonomia: Heilsgeschichte als Thema der Theologie. Oscar Cullmann zum
65. Geburtstag gewidmet, ed. Felix Christ (Hamburg-Bergstedt, Alemania: Herbert Reich Evang.
Verlag, 1967), para seu 65º aniversário; Neues Testament und Geschichte: Historisches Geschehen
und Deutung im Neuen Testament. Oscar Cullmann zum 70. Geburtstag, ed. Heinrich
Baltensweiler y Bo Reicke (Zurich: Theologischer Verlag, 1972), quando completou 70 anos;
Testimonia Oecumenica: In Honorem Oscar Cullmann Octogenarii die xxv Februarii A.D.
MCMLXXXII (Tübingen, Alemania: Refo-Druck Hans Vogler, 1982) para celebrar seus 80 anos;
finalmente, a Revue d’Histoire et de Philosophie Religieuses 72, nº 1 (janeiro-março de 1992),
para honrar a Cullmann ao completar seus 90 anos.
83

3.2
As digitais de Cullmann no cenário ecumênico

Em 1993, já em avançada idade, Cullmann recebera um afago muito caro


por seus esforços ecumênicos: o 3º Prêmio Internacional Paulo VI. Pode-se inferir
que tal homenagem não se dera sem motivo, uma vez que consolidava, com
legitimidade, seus empenhos honestos e de alto nível no cenário ecumênico, muito
particularmente como um expoente na facilitação e perícia do diálogo entre
católicos e protestantes.
Suas digitais no labor da unidade da igreja podem ser rastreadas até, pelo
menos, 1957. Na data, Cullmann proferiu uma palestra em Zurique, onde não só
elencava pressupostos teológicos em favor da atividade ecumênica, o que, naquele
tempo, por si só, já seria digno de crédito, mas ainda sugeria que as igrejas
protestantes e católicas deixassem de ficar apenas nos círculos das mesas-
redondas e pusessem, literalmente, a ―mão na massa‖. A ideia era singela, quase
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inocente, e nem tão original, ainda que emblemática: que no contexto da semana
de oração pela unidade dos cristãos, fosse levantada uma oferta para os pobres que
pertenciam à igreja antagônica: dos protestantes para os católicos e vice-versa. Ele
apelava para o exemplo das congregações do Novo Testamento, o qual também
lhe apontava para uma compreensão das várias confissões como uma expressão
dos vários carismas existentes na igreja única. Cullmann, na ocasião, convocara
as igrejas a exercerem a paciência, o discernimento e o suporte mútuo, seguindo o
que Paulo havia pedido aos primeiros cristãos. Reconhecia ser a unidade dos
cristãos um dom do Espírito Santo e, que a aceitação dos outros com todas as suas
variedades como verdadeiros cristãos, requeria certo sacrifício, enquanto que
defendia que tais sacrifícios eram uma resposta à oração de Cristo pela unidade de
seus discípulos.16
Decisivo para a visão madura de Cullmann sobre a unidade dos cristãos e,
em certo sentido, apoteótico no cenário ecumênico fora, contudo, seu
envolvimento no Concílio Vaticano II, o evento mais importante de sua vida,
como Cullmann mais tarde admitiria.17 Talvez hoje em dia, em uma era de

16
BIRMELÉ, Oscar Cullmann.
17
BIRMELÉ, Oscar Cullmann.
84

reconciliação e comunhão18, a presença de um teólogo protestante em um


Concílio da Igreja Católica Romana não chamasse tanto à atenção da comunidade
acadêmica ou eclesiástica. Porém, à época, tal situação não passou despercebida;
ela somente ocorreu em razão de uma importante novidade inaugurada pelo
concílio Vaticano II: o fato de igrejas cristãs não católico-romanas terem sido
convidadas a enviar observadores para as ações e processos do encontro. Tais
observadores eram regularmente chamados a participar, tendo suas reações
ouvidas e registradas pelo Secretariado para a Unidade dos Cristãos. Esse fora um
desenvolvimento significativo, tendo em vista o fato de que, até aquele ponto, a
Igreja Católica Romana não havia adentrado com protagonismo no movimento
ecumênico.19
Interessantemente, Oscar Cullmann não pertencia a este grupo dos
embaixadores eclesiásticos oficiais. Sua participação não se deu como um dos
delegados enviados por alguma das igrejas cristãs. Seu status no evento era outro,
a saber, o de convidado especial pessoal de ambos os papas que presidiram o
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Concílio! Perdoem-me o ponto de exclamação, mas penso que tem seu emprego
cabido. Cullmann foi solicitado, na conferência, na qualidade de observador com
potencialidade consultiva.20 Havia apenas alguns poucos hóspedes nesse nível, e
Cullmann foi o único, nessa categoria, a ser chamado para quatro das sessões
conciliares. Sempre era importante para ele ressaltar que estava ali em caráter
individual e que não era obrigado a se reportar para nenhuma igreja em particular.
Por causa dessa situação particular, a liderança romana teria tido uma atitude mais
aberta em relação a ele. Ele fora contado entre aqueles frequentemente chamados
para engajamentos e discussões mais privadas para o fim de oferecer seu conselho
pessoal e teológico.21

18
Para mais informações sobre a trajetória e a presente situação do diálogo ecumênico,
especialmente entre luteranos e católicos, recomenda-se a obra Do Conflito à Comunhão:
Comemoração Conjunta Católico-Luterana da Reforma em 2017. Relatório da Comissão Luterana
– Católico-Romana para a Unidade. 2015. Disponível em:
https://www.lutheranworld.org/sites/default/files/dtpw-from_conflict_to_communion_pt.pdf
19
Para conhecimento sobre as primeiras iniciativas da igreja católica em direção ao movimento
ecumênico, sugerem-se os artigos: WOLFF. Elias. O ecumenismo no horizonte do Concílio
Vaticano II. Atualidade Teológica Ano XV, n. 39, setembro a dezembro/2011; LOURENÇO.
Vitor Hugo. Sinais de uma caminhada ecumênica no Catolicismo. Teocomunicação. Porto Alegre,
v. 46, n. 1, jan.-jun. 2016, p. 83-103.
20
MARTIN, David. Vatican II: A Historic Turning Point: The Dawning of a New Epoch.
Bloomington: Author House, 2011, p.101.
21
BIRMELÉ, Oscar Cullmann.
85

As razões que levaram Cullmann a ser admitido com esta prerrogativa


considerável tem sido assunto de especulação. A princípio, Cullmann teria
chamado à atenção por sua atividade como exegeta. Seu trabalho sobre o
desenvolvimento da igreja primitiva do primeiro século e, especialmente sobre o
ministério petrino e as tradições da igreja antiga, eram particularmente
valorizados por setores em Roma. De vital importância, foi sua íntima cooperação
com muitos exegetas católicos, como por exemplo, na École Biblique de
Jerusalém e no Instituto Bíblico na capital italiana. Ainda mais substancial,
provavelmente, era sua relação pessoal de amizade, não apenas com o cardeal
Agostinho Bea, líder católico no diálogo ecumênico, mas com o próprio João
XXIII, quem antes de ser eleito papa, fora núncio papal em Paris. Também
podemos agregar à lista de afeiçoados de Cullmann, Ives Congar, o qual o
conhecia bem, bem como o próprio Cardeal Montini (posteriomente papa Paulo
VI), com quem veio a estabelecer um estreito convívio em Roma.22
Outra pergunta ainda mais fascinante e pertinente é a seguinte: Teria tido
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Cullmann alguma influência expressiva na composição de algum texto do


Concílio? A resposta, ainda que não indiscutível, parece apontar para uma
tendência positiva, apesar de que não existam maiores registros do teólogo
avocando qualquer saliência neste sentido. Diferentemente de muitos cardeais,
bispos e teólogos os quais, depois do Concílio, jamais cansaram de reivindicar que
haviam tido papel importante na redação de algum documento em particular,
Cullmann sempre foi muito discreto nesta questão.23 De fato, não se conhece
manifestação dele pleiteando protagonismo, ainda que tenha tecido comentários
entusiasmados acerca dos resultados teológicos do encontro em consonância com
aspectos de sua teologia. Sabe-se que, na véspera do Concílio, muitas
conversações foram realizadas com a presença de Cullmann, o que provavelmente
sugere que ele possa ter oferecido conselhos para muitos daqueles textos.24 Sem

22
Felix Courley, no obituário que redigiu para o jornal londrino Independent, alusivo a morte de
Cullmann, no dia 30 de janeiro de 1999, lembrou que Karl Barth costumava brincar com Cullmann
dizendo: ―Oscar, no epitáfio da tua lápide deverá dizer: ‗Aqui descansa o conselheiro de três
papas!‘‖. Barth se referia a abrangência de acesso que tinha Cullmann com Pio XII, João XXIII e,
sobretudo, Paulo VI. http://www.independent.co.uk/arts-entertainment/obituary-oscar-cullmann-
1077098.html.
23
BIRMELÉ, Oscar Cullmann.
24
O sacerdote e jornalista católico americano Ralph Wiltgen, famoso por seus escritos sobre o
concílio Vaticano II, como O Reno se Lança no Tibre, lembrou em sua outra obra, The Inside
Story of Vatican II: A Firsthand Account of the Council's Inner Workings, a entrevista coletiva
(press conference) que Cullmann participou após as seis primeiras semanas da primeira sessão, e
86

pretender sucumbir a falsas especulações, teólogos apontam para algumas áreas


onde a influência de Cullmann poderia ser reconhecida. Numa entrevista para a
Detroit News, em 27 de junho de 1967, Montsenhor Baum (posteriormente
Cardeal Baum) disse que Cullmann e mais cinco teólogos protestantes ―não foram
apenas observadores, mas conselheiros que participaram ativamente em
discussões‖.25 Especificamente sobre o decreto em Ecumenismo, o Cardeal Bea
anunciou que os observadores foram ―decisivos‖ para o resultado do documento.26
O professor Battista Mondin, declarou que observadores como o Dr. Cullmann
fizeram ―uma válida contribuição‖ na redação dos documentos
conciliares.27Manfred Hoffmann fala numa influência ascendente de Cullmann
nos teólogos católicos à época do concílio.28 Nossa tese vai ao encontro dessas
afirmações e, mais adiante, enfatizaremos, especialmente a possibilidade da
teologia escatológica da Lumen Gentium ter sido iluminada – perdão pelo
trocadilho – pelo menos em alguns aspectos pela teologia de Cullmann, direta ou
indiretamente. Segue mais alguns trechos do testemunho de Mondin.
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Sua contribuição ao Concílio foi das mais apreciadas. Tanto João XXIII como
Paulo VI expressaram-lhe seu vivo reconhecimento. De sua parte, Cullmann
dedicou o seu livro, O Mistério da Redenção na História, ao Secretariado para a
Unidade dos Cristãos, "em sinal de gratidão pelo convite para participar, na
qualidade de hóspede e observador, do Concílio Vaticano II, e como contribuição
ao diálogo entre os cristãos das várias confissões, na fé e na esperança de que
mesmo aquilo que nos divide contribua para o prosseguimento da história da
salvação‖.29
A participação no Concílio Vaticano II o levou a devotar-se ainda mais pela
causa ecumênica. Alguns anos após o episódio, Cullmann formulou a sua visão
em uma série de artigos que foram publicados em 1971 no volume True and False

na qual, entre outras coisas, Cullmann revelou que teve acesso a todos os textos do Concílio, a
oportunidade de participar de todas as sessões gerais, além de ter suas percepções ouvidas em
encontros especiais com o Secretariado e a possibilidade de encontros pessoais com os Santos
Padres, periti e outras personalidades da liderança de Roma.
25
MARTIN, Vatican II, p.99.
26
MARTIN, Vatican II, p.101.
27
MARTIN, Vatican II, p.101.
28
HOFFMANN. Manfred. Church and History in Vatican II‘s Constitution on the Church: A
protestant perspective. Theological Studies. v. 29, Issue 2, 1968, p.199.
<http://journals.sagepub.com/doi/10.1177/004056396802900201>. Numa nota de rodapé,
Hoffmann sugerirá que sua tese sobre a influência de Cullmann nos teólogos católicos romanos
pode ser afirmada pelos seguintes escritos: Mysterium salutis: Grundriss heilsgeschichtlicher
Dogmatik, ed. Johannes Feiner and Magnus Löhrer, 1; Die Grundlagen heilsgeschichtlicher
Dogmatik, unter Mitarbeit von Hans Urs von Balthasar (Einsiedeln, 1965); 2: Die Heilsgeschichte
vor Christus, unter Mitarbeit von Hans Urs von Balthasar (Einsiedeln, 1967); Oscar Cullmann,
"Die Reformbestrebungen des 2. Vatikanischen Konzils im Lichte der Geschichte der katholischen
Kirche," Theologische Literaturzeitung n.92, 1967.
87

Ecumenism e, mais tarde, com a idade de 80 anos (20 anos após o Concílio),
Cullmann publicou um sumário sistemático de sua compreensão sobre a unidade
cristã em seu livro Unidade através da Diversidade, posteriormente intitulado
Unidade na Diversidade. Por todos estes fatores, fora também chamado de ―pai
do ecumenismo moderno‖.30

3.3
Produção literária

Além do engajamento de Cullmann na causa ecumênica e de seu extenso


serviço como professor de teologia, seu legado é marcado de forma
impressionante por sua produção. Seus escritos não só sintetizam paixões,
descobertas e o pensamento do teólogo franco-alemão, mas questionam o status
quo, dialogam com as perguntas da época e possuem a capacidade de influenciar
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substancialmente a teologia em vários cenários e em múltiplas matérias, muito


especialmente no espectro da teologia neotestamentária, história da Igreja
primitiva, liturgia e ecumenismo. Não faltam avalistas a endossar que, da pena de
Oscar Cullmann, originaram-se diversas obras e artigos prolíficos.31
A sua primeira publicação foi um artigo de 1925 intitulado Les Recentes
Études sur la Formation de la Tradition Évangélique, na Revue d’Histoire et de
Philosophie Religieuse. Logo, Cullmann começou a ser conhecido por seus
escritos no campo litúrgico. Entre eles, os mais memoráveis são de cunho
sacramental: O Significado da Santa Ceia no Cristianismo Primitivo, em 1936, e
A Doutrina do Batismo no Novo Testamento – Batismo das Crianças e dos
Adultos, em 1948. Outra de suas inclinações, o estudo da história da Igreja
primitiva, foi contemplada na sua tese de doutorado,32 onde ele refletira sobre as

29
MONDIN, Os Grandes Teólogos do Século Vinte, 2003, p. 209.
30
CAREY. Patrick W., LIENHARD. Joseph T. (ed). Biographical Dictionary of Christian
Theologians. Westport: Greenwood, 2000, p.139.
31
As obras de Cullmann foram publicadas em francês, alemão, inglês, espanhol, italiano,
holandês, japonês, islandês, húngaro e sueco, além do português. Uma lista destes escritos, de
1925 ao ano 2000 (portanto incompleta) contabilizava já 833 publicações. Esta lista foi compilada
pela biblioteca da Universidade da Basileia e pode ser acessada no seguinte endereço:
<http://www.ub.unibas.ch/digi/a100/kataloge/nachlassverzeichnisse/BAU_5_000085890_2_cat.pd
f>.
32
Le Problem Littèraire et Historique du roman Pseudo-Clementin (Alcan, Paris, 1930).
88

relações entre gnosticismo. Além disso, O cristianismo judaico na epístola de


Clemente aos Romanos, em 1930 e, posteriormente, Pedro: Discípulo, Apóstolo,
Mártir, publicado em 1952.
De suas obras destacam-se principalmente três, as quais formam uma
espécie de ―trinca de ouro‖ de Cullmann: Cristo e o Tempo (Christus und die
Zeit), Cristologia do Novo Testamento (Die Christologie des Neuen Testaments) e
Salvação na História (Heil als Geschichte). Nota-se que os dois primeiros
encontram-se disponíveis em português desde 2003 e 2002, respectivamente,
sendo o terceiro ainda não traduzido, de acordo ao nosso conhecimento. Estes três
livros, devido à temática abordada, constituem o pilar teórico primordial desta
dissertação.33
Rememorando brevemente estes trabalhos, em ordem cronológica, em
Cristo e o Tempo, de 1946, ―um dos livros mais belos da biblioteca teológica do
século XX‖34 segundo Gibellini, Cullmann sai em busca do eixo central do
querigma cristão. O resultado encontrado para o referido áxis outro não é do que
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Jesus Cristo, afinal, nele está centrada e recapitulada toda a obra soteriológica.
O interesse de Cullmann na pessoa e na obra de Jesus não se daria apenas
em sua figura histórica, mas também no Jesus conhecido como Kyrios o qual,
segundo sua concepção, representava a crença da igreja primitiva. Cullmann
argumenta, fundamentado em suas pesquisas sobre a história eclesiástica, que a
esperança dos primeiros cristãos era o retorno de Cristo. Ainda na obra acima,
Cullmann defenderá que o testemunho cristão deveria ser entendido na
perspectiva da História da Salvação (Heilsgeschichte), uma de suas formulações
características, e a qual será destacada melhor no texto. Na verdade, a locução
História da Salvação já havia sido usada por teólogos do fim do século XIX,
especialmente em Erlanga35, e até promovida à categoria de ―escola de
pensamento‖; todavia foi Cullmann quem mais se apropriou do conceito,

33
Acessamos ―Cristologia do Novo Testamento‖ em sua edição mais recente, em português.
―Cristo e o Tempo‖ e ―Salvação na História‖ estão sendo citados a partir de suas traduções para o
idioma inglês (―Christ and Time‖ e ―Salvation in History‖). O primeiro, pela dificuldade que
encontramos em encontrar alguma cópia em português. O segundo pelo mesmo não ter sido
traduzido para esta língua até o momento. As traduções de ambos são nossas.
34
GIBELLINI, A Teologia do Século XX, p.260.
35
RATZINGER, Joseph. Escatología: La muerte y la vida eterna. Tradução Severiano Talavero
Tovar, Barcelona: Herder, 1984, p.59. Para conhecer mais sobre a Faculdade de Teologia de
Erlanga, famoso reduto conservador da teologia luterana na Alemanha, e seus principais teólogos,
recomenda-se a obra: GREEN, Lowell C. The Erlangen School of Theology: Its History, Teaching,
and Practice. Fort Wayne: Lutheran Legacy, 2010.
89

atribuindo-lhe novos significados, em certos aspectos, e o enfatizando de tal


forma que o mesmo passou a afetar, e até mesmo tipificar, toda a sua teologia.36
Onze anos depois de Cristo e o Tempo, veio Cristologia do Novo
Testamento. Nele, percebe-se um teólogo resoluto em permanecer tão fiel quanto
possível ao retrato neotestamentário de Jesus, bem como determinado a ser guiado
pelos quatro grandes momentos da história da salvação, na divisão da matéria. É
notória a influência desta moldura teológica no caráter de seu estudo sobre a
pessoa e a obra de Cristo. Sua metodologia no livro consiste em investigar os
títulos mais importantes dados a Jesus pelos escritores do Novo Testamento,
relacionados à vida terrena, à função escatológica, à existência glorificada e à pré-
existência. Cullmann defende que o plano de trabalhar a partir dos títulos é a
forma mais coerente para se abordar a complexidade e a riqueza cristológica, sem
impedir a unidade essencial. Segundo ele, esta abordagem seria intrinsecamente
compatível a dos próprios cristãos primitivos, os quais teriam, por sua vez,
respondido à seguinte pergunta: Quem é Jesus?37
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A última obra que decidimos destacar é Salvação na História, de 1967, onde


Cullmann avança em suas reflexões sobre a atividade histórica-salvífica divina
inaugurada na sua primeira grande obra. ―Se Cristo e o Tempo delineava o
‗esquema‘ da história da salvação, Salvação como História desenvolve
38
sistematicamente seu ‗conteúdo‘‖. Além de sistemático, Cullmann também
fora, como em nenhum outro lugar, dialético e apologético, dando atenção

36
Rosino Gibellini começa o oitavo capítulo da sua obra ―A Teologia do Século XX‖, reservado ao
tópico ―Teologia da história‖, com Oscar Cullmann encabeçando os representantes que se
entregaram a tal matéria. Ele abre espaço também para teólogos católicos, como Jean Daniélou, e
para Wolfhart Pannenberg. Chama à atenção como Gibellini descortina o capítulo chamando
atenção para a importância da Teologia da História que estes teólogos (e outros) se propuseram a
recuperar. Reproduzimos aqui: ―Quando, depois da derrota da Alemanha em 1945 [...] as
universidades alemãs reabriram as portas a estudantes retornados do front e da prisão, em
Heidelberg, na mais antiga universidade da Alemanha, um professor da faculdade (evangélica) de
teologia, Hans von Campenhausen, foi eleito reitor e, na oportunidade, deu uma memorável aula
inaugural sobre um tema histórico denso de significado por seu aspecto alusivo: Agostinho e a
queda de Roma. Nessa aula, o historiador da Igreja mostrava como os fatos daquele tempo, como o
saque de Roma em 410, haviam interpelado a consciência de Agostinho, que no De Civitate Dei
(426) soube interpretar o Evangelho na linguagem de seu tempo, desenvolvendo as linhas de uma
teologia da história, que contrariamente à predominante ideologia nacional dos historiadores e
filósofos pagãos, inseria a história de Roma no contexto mais amplo da história universal. A queda
do poder imperial romano oferecera ao grande pensador cristão a ocasião de uma profunda e
renovadora reflexão histórica e teológica [...]. E Von Campenhausen concluía sua aula convidando
os estudiosos a inspirar-se na obra de Agostinho e a aventurar-se no terreno da história universal,
para saber captar também o sentido de nossa época. A recuperação da história era a nova tarefa
confiada à teologia.‖ GIBELLINI, A Teologia do Século XX, p.255.
37
CULLMANN, Cristologia do Novo Testamento, p.411.
90

especial às críticas recebidas e aos posicionamentos desenvolvidos na época.


Claramente o livro é uma tentativa de responder ao julgamento e esclarecer pontos
no seu debate com Rudolf Bulttmann, os quais, primordialmente, orbitavam em
torno da competência existencialista de sua teologia. Cullmann argumenta que, se
a tensão entre o já e o ainda não, no Novo Testamento e na mensagem cristã, é
mantida, não necessitamos chegar à encruzilhada antagonista entre ―salvação na
história‖ e ―existencialismo cristão‖. Na verdade, ambas as posições seriam
complementárias. Os ―aspectos históricos nos quais está inserida a confissão cristã
não sugerem uma objetivação desinteressada da fé cristã‖.39 Cullmann defende
ainda que a História da Salvação faça parte do núcleo essencial da mensagem
cristã e não seja, de modo algum, um elemento de superestrutura mística (como
sustenta o teólogo de Marburgo), insistindo que a existência cristã e a história da
salvação são inseparáveis e, que tanto a Igreja como o mundo, a história da
salvação permaneça como a "norma".
Salvação na História tem aproximadamente 350 páginas versadas sobre a
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discussão recente em temas da escatologia, da apocalíptica, do mito e da história.


Contêm ademais capítulos sobre os Evangelhos, a Igreja primitiva, Paulo e João.
A parte conclusiva, intitulada "Mirada à História dos Dogmas e a Sistemática: a
História da Salvação e a Época Pós-bíblica" estuda as implicações teológicas e
sistemáticas da doutrina da história da salvação. Gibellini lembra que a obra
merece destaque por ter sido redigida em ―um estágio mais maduro de reflexão‖,
no ―necessário desenvolvimento, a cerca de vinte anos de distância de Cristo e o
Tempo‖, embora a critique por não apresentar ―novidade de perspectiva‖.40

3.4
O contorno da teologia de Oscar Cullmann

Não é do escopo deste trabalho fazer uma análise pormenorizada e profunda


da teologia cullmanniana. Nossa intenção será apenas contornar os aspectos
principais, dando atenção particular a seu princípio escatológico. Começaremos

38
GIBELLINI, A Teologia do Século XX, p.260.
39
HÄGGLUND, A História da Teologia, p.354.
40
GIBELLINI, A Teologia do Século XX, p.260.
91

com algumas questões estruturais para melhor situar-nos à sua forma de fazer
teologia para, posteriormente, adentrarmos na substância.

3.4.1
O arcabouço

Segundo o professor batista brasileiro Luiz Sayão, quem prefaciou um dos


livros de Oscar Cullmann na sua tradução para o português, o protagonista desta
dissertação ―é reconhecidamente um teólogo bíblico [...] que procurou construir
uma teologia a partir do texto bíblico, isto é da exegese.‖41 O próprio Cullmann
confirmara esta preferência pela teologia exegética em detrimento da teologia
sistemática, em várias ocasiões. Na introdução da terceira edição de Cristo e o
Tempo, ele diz que, como exegeta, realiza tarefa menos difícil daquela do
dogmata. Ele exclama sua pretensão de executar a tarefa de exegeta, respeitando
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os limites da exegese e restringindo-se à essência do texto – sem necessariamente


resolver as dificuldades que emergem do ensino tampouco insistir em
pressupostos básicos.42 Seu objetivo é manter-se o mais cativo possível à
objetividade requisitada pelo princípio exegético43, captar o texto a partir de uma
distância consciente44, compreender a fé dos primeiros cristãos, o seu surgimento,
o seu conteúdo e a sua codificação escrita.45
Dentro da teologia bíblica, a erudição de Cullmann destaca-se no corpus do
Novo Testamento. O autor pode ser considerado um perito no assunto e fora por
esse viés que a grande maioria de suas contribuições aflorou. Apesar disso, ele
não pode ser classificado como um teólogo exclusivamente bíblico. Seus
empreendimentos na área histórica e litúrgica são também muito respeitados. Em
termos de setores teológicos, Cullmann é benemérito de outro elogio: ele
consegue harmonizar as diferentes disciplinas e tirar bom proveito desse diálogo
na composição de um mosaico interessante. De fato, frequentemente encontramos
insights decorrentes de seus estudos repercutindo na maneira de elucidar, ampliar

41
SAYÃO, Luiz. Prefácio. In: CULLMANN, Cristologia do Novo Testamento.
42
CULLMANN, Christ and Time, p.XXVIII.
43
CULLMANN, Christ and Time, p.65.
44
CULLMANN, Christ and Time, p.66.
45
MONDIN, Os Grandes Teólogos do Século Vinte, p.215.
92

e progredir teses relacionadas, a uma área diferente daquela que havia sido
dirigida inicialmente.
Destacamos, principalmente, o papel de Cullmann através de suas pesquisas
na área da história da igreja primitiva, onde tentava demonstrar como a discussão
entre querigma e história, candente em seu tempo, não só relacionava-se a
questões de vital importância para a interpretação do cristianismo, mas também a
discussões em que se enfatizava diferenças de opinião que já existiam no tempo
do Novo Testamento, as quais reapareciam em formas e épocas diversas no
decorrer da história da teologia.46
Particularmente em seu trabalho exegético neotestamentário, Cullmann foi
um partidário parcial da inquirição escriturística conhecida como Método
Histórico-Crítico e (se reconhecia em débito com tal forma de estudo.47 Apesar
disso, tinha convicção de que sua metodologia não era puramente dependente
deste sistema interpretativo – pelo menos não na forma como utilizavam os
teólogos das escolas liberais e existencialistas – e fazia questão de salientar que
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sua compreensão do Novo Testamento, em última análise, decorria de uma ―outra


hermenêutica‖.48 No entanto, que outra hermenêutica seria essa? Cullmann deixa
claro, pois a questão do método, para ele, é fundamental; fez isso desde os seus
primeiros escritos, como nos reporta, novamente, Mondin:
No seu primeiro artigo, intitulado "Les recentes études sur la formation de la
tradition évangélique", Cullmann critica o método histórico-crítico da escola
liberal e denuncia os seus graves limites: trata-se de um método - afirma ele —
inutilizado pelo racionalismo, incapaz de captar aquilo que há de mais genuíno na
Escritura. Em seu lugar, ele recomenda o método histórico das formas
(Formgeschichte). Mas este também, para ser eficaz, deve ser sustentado pela fé, já
que não se pode compreender aquilo que a comunidade primitiva quis dizer se não
nos colocamos em seu lugar, se não olhamos as coisas com os mesmos olhos. "O
estudioso que quer examinar a história da tradição deve encontrar o Cristo Kyrios
no Evangelho antes de empreender o seu estudo. Objetivamente, deve ser tomado,
através da tradição evangélica, pelo espírito de Cristo, do mesmo modo como
foram conquistados os primeiros cristãos no momento em que deram início a essa
tradição. Somente então estará em condições de situá-la novamente na vida
religiosa da Igreja primitiva.‖ 49
Em seguida, através do debate com Barth e Bultmann, Cullmann especificou
ainda mais o seu método, dando-lhe o nome de método histórico-soteriológico ou
da História da Salvação. Este se baseia no princípio de que, na revelação cristã,

46
HÄGGLUND, A História da Teologia, p.355.
47
CULLMANN, Salvation in History, p.73.
48
CULLMANN, Salvation in History, p.74.
49
MONDIN, Os Grandes Teólogos do Século Vinte, p.220.
93

os aspectos históricos e soteriológicos são inseparáveis, na medida em que não se


tratam nem de uma história qualquer, carente de força salvífica, nem de um ato
salvífico em si, carente de caráter histórico; mas sim de uma história da salvação.
Por isso, quem lê os textos sacros com esse método mantém seu olhar
constantemente apontado para ambas as direções, a histórica e a soteriológica.
Isso nos leva ao que investigava Cullmann. Com respeito ao teor de seu
objeto, em Cristo e o Tempo, o próprio autor indica que sua empreitada é a
determinação do elemento central (das Zentrale) do cristianismo, quer
individualizar-lhe o núcleo (kern) e a essência (Wesen) da mensagem cristã. ―E a
solução é formulada deste modo: Deus se revela numa história da salvação‖.50
Um último aspecto a ser reforçado neste proêmio indispensável para um
entendimento do arcabouço teológico de Cullmann é o relacionamento de sua
teologia com a reflexão teológica de alguns teólogos de seu tempo. Cullmann
definitivamente foi um adepto da teologia dialógica.51 Teologia se faz no debate, e
muitas vezes esse debate é reacionário, isto é, reage, busca conversar, refutar
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determinada concepção e avançar no assunto. Essa é a síntese da caminhada de


Cullmann, especialmente no que se refere à sua tese principal e aos temas desta
dissertação. Sua abordagem escatológica nasce, literalmente, da leitura que faz em
seus pares, da concordância e consequente desdobramento, bem como da
divergência e derivada crítica. A participação em debates teológicos acadêmicos,
por um lado, bem como considerável quota do que escreveu, por outro, não deixa
dúvidas: ao mesmo tempo em que Cullmann afirmou constantemente idéias de
colegas52, ele também não temeu desassociar-se de conteúdo destes, apontando
argumentativamente, o que, na sua análise, seriam imprecisões. E a diatribe de
Cullmann se deu, com ninguém menos do que, três gigantes da teologia do século
XX: Albert Schweitzer, Charles Dodd e, muito especialmente, Rudolf Bultmann –
quem sabe poderíamos dizer quatro, incluindo Karl Barth. Cullmann emerge no
―imediato pós-guerra – no auge da teologia existencial (o Manifesto da
demitização de Bultmann é de 1941, e a fase mais ardorosa do debate ocorre no

50
GIBELLINI, A Teologia do Século XX, p.256.
51
GIBELLINI, A Teologia do Século XX, p.256.
52
Por exemplo, há quem veja o cristocentrismo e a valorização do papel da fé na revelação divina
provenientes das ideias do barthianismo. De Rudolf Bultmann, Cullmann teria tomado o método
exegético da crítica formal para aplicá-lo em sua reconstrução da história do Novo Testamento. E
de Dodd e Schweitzer, teria herdado o interesse pela escatologia.
94

decênio 1942-1952).‖53 Sem dúvida as teses destes prodigiosos teólogos serviram


como um gatilho que oportunizou Cullmann a chegar às suas conclusões. Mondin
nos endossa:
A razão desse desenvolvimento [da História da Salvação, tese característica de
Cullmann para entender a essência da mensagem cristã] deve ser buscada no
debate teológico que ocasionou as pesquisas do teólogo de Strasbourg. Toda a sua
teologia, com efeito, é fruto de uma polêmica com três autores: Schweitzer, Dodd e
Bultmann. Schweitzer tinha afirmado que Jesus somente pregou a chegada
iminente do Reino de Deus, mas não efetuou a sua realização (escatologia
conseqüente). Dodd sustentava que, com sua vinda, Jesus efetivou imediata e
totalmente o Reino de Deus (escatologia simultânea). Por fim, Bultmann
asseverava que o aspecto histórico da escatologia, assim como o aspecto histórico
de toda a Revelação, não pertence ao conteúdo, mas a forma, ou seja, a sua própria
superestrutura mística. Em Cristo e o Tempo, Cullmann mostra que Cristo é o
centro da história, fazendo ver, contra Dodd e Schweitzer, que a Sagrada Escritura
não fala de uma só escatologia, em relação a qual Jesus teria vivido primeiro (como
sustentava Schweitzer) ou simultaneamente (como afirmava Dodd), mas sim de
duas, uma incipiente (a que teve lugar com a primeira vinda de Cristo) e uma final
(que terá lugar com sua segunda vinda). Portanto, Jesus encontra-se no centro da
história da salvação, na medida em que se coloca nos limites entre o período da
promessa e o período da realização final. Em O Mistério da Redenção na História,
sua pesquisa se amplia a toda a história da salvação. Nessa obra, prova a
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insustentabilidade da tese de Bultmann, demonstrando que toda a história da


salvação faz parte da essência da Revelação.54
Não desenvolveremos mais essa relação dialética de Cullmann com seus
colegas, pois, em primeiro lugar, a própria citação funciona não só no aspecto do
embasamento, mas também no elucidativo; em segundo, porque estas alternativas
escatológicas já foram abordadas no capítulo anterior. No entanto, nosso objetivo,
nesse ponto, era tão somente tonificar o aspecto dialético de Cullmann na sua
forma de fazer teologia e no conteúdo adquirido.

3.4.2
O conteúdo

Passaremos agora a conhecer um pouco da teologia de Cullmann a partir de


dois critérios: seus lócus favoritos e outros temas que interessam ao
desenvolvimento da pesquisa da dissertação.

53
GIBELLINI, A Teologia do Século XX, p.255-256.
54
MONDIN, Os Grandes Teólogos do Século Vinte, p.216-217.
95

3.4.2.1
História da Salvação

Mesmo uma rápida leitura das obras de Oscar Cullmann, especialmente da


sua ―trinca de ouro‖, permitirá ao leitor deparar-se com o conceito da História da
Salvação e confrontar-se à magnitude deste no conjunto de seu trabalho. Portanto,
qualquer tentativa de se conhecer sua teologia à parte da História de Salvação faz-
se impraticável. Em outras palavras, qualquer projeto que aborde tal princípio em
posição secundária, está arriscando ser mal-compreendido. Ela funciona como a
moldura de sua teologia, como sua chave hermenêutica basilar. Além disso, ela
não só marcou o teólogo franco-alemão, mas, de certa forma, a teologia do século
20. Já havíamos nos convencido que precisávamos começar sua exploração
teológica em nossas leituras da fonte primária. De fato, B. Mondin nos trouxe
adicional certeza:
Esta [História da Salvação] é a tese mais importante e original da teologia
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cullmanniana, especificando-a ainda melhor do que a famosa tese de que Cristo é o


centro da história. Esta última, com efeito, mesmo tendo sido proposta de maneira
original, não apresenta substancialmente nada de novo. Já a tese de que a história
da salvação constitui a essência do cristianismo não conhece precedentes. Portanto,
a grandeza de Oscar Cullmann está ligada a essa tese mais do que a qualquer outra.
E ele tem consciência disso, como se pode concluir do fato de que dirigiu os seus
maiores esforços para a demonstração dessa tese.55
Embora admitindo que a expressão História da Salvação não seja
encontrada no Novo Testamento, e que se pode contra ela levantar muitas
objeções, Cullmann também lhe expressava preferência, em forma de descrição de
sua abordagem56 e fora respeitado por isso. Vários historiadores e sistemáticos do
século 20, enquanto categorizam as diferentes teorias e opções escatológicas,
posicionam-no como fundador ou, no mínimo adepto, da Escola da História de
Salvação.57

55
MONDIN, Os Grandes Teólogos do Século Vinte, p.223. Mondin ilustra sua afirmação com a
seguinte nota de rodapé: Dentre os numerosos textos em que Cullmann manifesta o propósito de
defender a tese de que a história faz parte da essência da Revelação, pode-se consultar os
seguintes: em Cristo e il Tempo, pp. 14, 16, 20-22, 23-24, 26-27, 55; e toda a primeira parte; em il
mistero detta redenzione detta storia, pp. 17-20, 23-28, 233-235, 242, 253-254.
56
CULLMANN, Salvation in History, p.74-78.
57
Ainda que o significado e origem de Heilsgeschichte remonta aos teólogos alemães do século
XIX, como Johannes.C.K. von Hofmann, Adolf Schlater e Johann T. Beck, de Erlanda e
Tübingen, o Dr. Cullmann é a pessoa que popularizou o termo no século vinte. Sua perspectiva
também foi associada, por Gibellini, com a ―teologia da aliança‖ do teólogo reformado Johannes
Coccejus (século XVIII) e até mesmo com o enfoque patrístico de Ireneu.
96

Como já observamos há pouco, a teologia de Cullmann é produto de um


debate com, sobretudo, Albert Schweitzer, Charles Dodd, Rudolf Bultmann e Karl
Barth. A tese de que a História da Salvação constitui a essência da mensagem
cristã é, mais especificamente, fruto do embate com o teólogo de Marburgo. Este,
como sabemos, sustentava, entre outras coisas, que o componente histórico da
Revelação era estranho à sua essência, fazendo parte de sua superestrutura mística
e, tendo sido acrescentado por Lucas e os Atos, para preencher a espera do
advento do Reino de Deus.58 Cullmann sempre repeliu com radicalidade a tese de
Bultmann, argumentando que a história faz parte do núcleo essencial da
Revelação.59 Ela não foi produto do ―catolicismo inicial‖, como apregoava
Bultmann.60 Não só o nosso encontro individual e a nossa resposta ao chamado
escatológico momentâneo é importante, mas o fluxo dos eventos salvíficos, antes
de qualquer compromisso pessoal, é imprescindível.
Em defesa de sua tese, podemos dizer que apresenta um argumento de
caráter ontológico (relativo à natureza da Revelação) e, ainda, uma série de
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argumentos históricos. O argumento de caráter ontológico pode ser sintetizado do


seguinte modo: não se pode excluir, da essência da Revelação, o seu preceito;
todavia, o fundamento da Revelação está nos eventos históricos; assim, esses
eventos fazem parte da essência da Revelação. Os argumentos históricos podem
ser reduzidos a um só, este: Jesus, os Apóstolos, São Paulo, São João e toda a
Igreja dos primeiros dois séculos atribuem valor soteriológico, não só à pregação
de Jesus, mas também aos acontecimentos de sua vida.61
Por História da Salvação indica-se a posição pela qual Deus se revela na
história através de uma série de atos redentores, no centro dos quais está a
encarnação, a crucificação e a ressurreição de Jesus Cristo, por meio dos quais
traz a salvação ao seu povo. ―Os fatos salvíficos são kairói, tempos propícios
escolhidos por Deus para sua ação em favor do homem‖. 62 Era o que Paulo
denominou em Efésios 3 de o mistério divino. Por outro lado, a História da
Salvação também pode ser encontrada como o enredo da parábola dos vinhateiros

58
MONDIN, Os Grandes Teólogos do Século Vinte, p.224.
59
MONDIN, Os Grandes Teólogos do Século Vinte, p.224.
60
LA DUE, William. O Guia Trinitário para a Escatologia, p.73.
61
MONDIN, Os Grandes Teólogos do Século Vinte, p.224.
62
GIBELLINI, A Teologia do Século XX, p.256.
97

maldosos de Marcos 12; o próprio Cullmann nos fornece uma descrição sucinta da
história da salvação nestas palavras:
―O homem do Novo Testamento tinha certeza de que ele está continuando [como
um cooperador de Cristo na igreja] a obra que Deus começara com a eleição do
povo de Israel para a salvação da humanidade, que Deus cumpriu em Cristo, que
ele desdobra no presente, e que completará no fim.‖ 63
B. Mondin resume o modo como a história da salvação se desenvolve em
relação à Revelação:
Segundo Cullmann, a História da Salvação desenvolve-se, amplia-se e se constitui
em seu conjunto total de acordo com um módulo fixo, que se repete regularmente
em cada novo evento salvífico. Esse módulo é o seguinte: l) o novo acontecimento
é acolhido, com a respectiva nova Revelação, no kerygma antigo; 2) desse ponto de
vista, o antigo kerygma é reinterpretado; 3) os portadores da Revelação também
são, eles próprios, com a função que exercem, acolhidos no kerygma [...] Portanto,
no módulo que se repete no desenvolvimento da história da salvação, distinguem-se
três elementos: l) o simples acontecimento de que o portador da revelação deve ser
testemunha ocular e que também pode ser vivido pelos não-crentes, os quais,
porém, nele não podem ver qualquer Revelação; 2) a Revelação de um plano
divino, que é feita ao portador da Revelação no e através do acontecimento:
desígnio no qual ele próprio se insere, por meio da fé; 3) o relacionamento com
outras revelações feitas a outros portadores anteriores, relativas à história da
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salvação, e que agora são reinterpretadas. [...] Do suceder-se regular desse módulo
surge "um tipo de cadeia de conhecimentos e exposições histórico-soteriológicos,
na qual um novo acontecimento e a nova revelação respectiva são
progressivamente inseridos na revelação precedente, dando-lhe, ao mesmo tempo,
uma nova perspectiva. A visão de conjunto assim formada tornar-se-á, por seu
turno, objeto de uma reinterpretação sucessiva, habitualmente ocasionada por um
novo acontecimento e pela nova revelação respectiva.64
É básica para a posição de Cullmann, a sua convicção de que o grande ponto
central da História está às nossas costas. A própria datação dos calendários
ocidentais, que divide o tempo em dois períodos principais (antes de Cristo e
depois de Cristo) seria um testemunho deste fato.65 Em outras palavras, o grande
ponto central é o nascimento de Jesus Cristo – ou, antes, a totalidade dos eventos
associados com a encarnação, crucificação e ressurreição de Cristo. ―[...] No
evento central do Cristo Encarnado, um evento que constitui o ponto central dessa
linha [a linha inteira do tempo] não apenas tudo o que vem antes está cumprido,
66
mas, também, tudo o que é futuro está decidido.‖ Enquanto que para o crente

63
CULLMANN, Salvation in History, p.13.
64
MONDIN, Os Grandes Teólogos do Século Vinte, p.227-228.
65
CULLMANN, Christ and Time, p.17-19.
66
CULLMANN, Christ and Time, p.72.
98

veterotestamentário o ponto central da história está no futuro, para o crente


neotestamentário esse ponto agora está no passado.67
Outro componente da compreensão de Cullmann que carece ser esclarecido
é como ele relaciona a história da salvação com a História Universal, por assim
dizer. Consideramos esta bem resumida através das palavras de Gibellini:
Cullmann delineia também a relação entre a linha da história da salvação e a linha
do que ele denomina ―história mundial‖, ―história geral‖, ―totalidade da história‖,
―história profana‖. A história da salvação é, diante da história do mundo, uma faixa
―frágil‖ e ―tênue‖, mas obedece ao paradoxo da ―concentração extrema‖ e do
―universalismo mais aberto‖, uma vez que, mesmo em sua fragilidade como
volume de fatos, é ela que interpreta e salva a história do mundo. A história do
mundo se desenvolve ―fora‖ da história da salvação; mas, ao mesmo tempo, está
destinada a ser progressivamente ―influenciada‖ pela história da salvação e
―inserida‖ nela. A história do mundo, por um lado, serve de ―pano de fundo‖ da
história da salvação, mas, por outro lado, se situa ―no horizonte‖ da história da
salvação, na medida em que Cristo, como senhor do tempo, é o centro de toda a
realidade temporal, possuindo força de irradiação sobre toda a totalidade da
história.68
Cullmann tem a preocupação de que seu entendimento sobre a relação entre
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as duas histórias seja compreendido corretamente. Por esse motivo, faz questão de
enfatizar que, apesar de se constituir uma ―linha tênue‖, a história da salvação
realmente atravessa a história geral da criação à parusia, mas são radicalmente
distintas:
Portanto a história da salvação não é uma história ao lado da história (o que já me
acusaram de defender), mas transcorre na história e faz parte da história. [...]
Entretanto, existe uma diferença radical entre elas, pois não nos encontramos diante
de uma série ininterrupta de eventos: de acordo à fé do Novo Testamento, Deus
escolhe alguns acontecimentos especiais, ligados entre si por um nexo soteriológico
em progressivo desenvolvimento.‖69
O princípio Cullmanniano da História da Salvação representou, também,
um novo fôlego ao apreço pelo componente histórico. Ainda que não tenha sido o
único teólogo de sua geração a engajar-se em favor de uma real trajetória de
eventos divinos, com certeza foi um dos mais notórios influenciadores. Sua chave
de leitura se compromete a apregoar que a Bíblia é compreendida corretamente
através de categorias históricas, em distinção ao paganismo, o qual opera em
categorias espaciais.
Concluindo esse ponto, destacamos a avaliação de Mondin sobre como
Cullmann teria contribuído com sua História da Salvação:

67
CULLMANN, Christ and Time, p.81-82.
68
GIBELLINI, A Teologia do Século XX, p.258.
69
CULLMANN, Salvation in History, p.203,223.
99

Antes de mais nada, com o conceito de "história da salvação‖ ele restituiu à Bíblia
a unidade essencial que lhe fora negada pelos teólogos liberais, que a tinham
reduzido a uma coletânea de idéias religiosas dos hebreus e dos cristãos. Ainda
contra os liberais, que tinham exagerado a helenização do cristianismo primitivo,
evidenciou o caráter fortemente hebraico do Novo Testamento. No debate com
Bultmann, em nossa opinião, Cullmann conseguiu provar definitivamente três
coisas: que, para compreender os autores sagrados, é preciso colocar-se em seu
lugar e ver as coisas como eles as viam, servindo-se de sua epistemologia, ou seja,
a epistemologia realista ou "objetiva"; que o componente histórico da Revelação
faz parte de sua essência e não da superestrutura mística; que o kerygma
"historicizou" os mitos do início e do fim e não o contrário. 70

3.4.2.2
Cristologia

Intimamente relacionado com sua chave de leitura principal estão os loci


prediletos de Cullmann. Se História da Salvação é a armação teológica pelo qual
o autor é mais conhecido, seu pensamento é definitivamente marcado pelos
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enfoques cristológico e escatológico. No que se refere à sua cristologia, é nítida a


importância que ele dá para a pessoa e obra de Cristo. Essa verdade já pôde ser
constatada no ponto anterior, no entanto, queremos explorá-la um pouco mais
cuidadosamente agora.
Podemos notar uma primeira inclinação cristológica na sua obra As
Primeiras Confissões dos Cristãos, de 1943. Nela, ao examinar o primeiro Credo
da Igreja, Cullmann percebeu o quanto seu caráter era, acima de qualquer coisa,
cristológico. Três anos depois veio Cristo e o Tempo, onde sua pesquisa sobre a
segunda pessoa da Trindade foi aprofundada sobremaneira. Na seguinte década
foi a vez da obra Cristologia do Novo Testamento vir à tona para demonstrar que
a doutrina não foi apenas retomada, mas aperfeiçoada. Não obstante, em todo o
percurso da sua pesquisa, uma afirmação nunca deixou de aparecer como nota
forte de cada compasso: Cristo é o centro da história; como destacado por
Mondin.
Se lhe perguntássemos o que ele quer dizer, Cullmann apontaria para um
duplo significado da afirmação, bem percebidos por Mondin:
Antes de mais nada, o fato de que Cristo constitui o ponto mais importante, aquele
ponto que dá valor e significado a todos os outros pontos da trajetória da história
da salvação. Todas as épocas que constituem a história da salvação são orientadas

70
MONDIN, Os Grandes Teólogos do Século Vinte, p.237.
100

para a cruz e a ressurreição de Cristo. Toda a história da salvação, que constitui o


desígnio de Deus, está virtualmente contida nesse único evento: todo o passado da
história da salvação tende para essa intervenção, dela brota todo o presente e
representa, na sua realização universal e permanente, todo o futuro da redenção.
Cada época da história da salvação refere-se imediatamente a esse centro. A
história da salvação não se orienta para um "além" da história, mas sim para esse
evento que é o evento soteriológico por excelência. Cada uma das simples épocas
encontra no nexo que a liga a essa intervenção central o seu próprio significado e o
seu próprio fim particular: o passado, na medida em que mostra com particular
clareza que todo o desenvolvimento histórico-soteriológico move-se seguindo a
linha da eleição; o presente, na medida em que, diferentemente do passado, já brota
da etapa decisiva que se verificou e, por outro lado, exatamente por isso, tende para
a sua realização; o futuro, na medida em que descreve em sua extensão universal e
permanente a redenção que se concretizou e revelou, como objetivo de todo o
desenvolvimento histórico-soteriológico, concentrada num único ponto da linha
temporal que pode ser datado exatamente: a intervenção que determina a orientação
de todo o processo (a cruz e a ressurreição).71
Em segundo lugar, a afirmação de que Cristo é o centro também significa
que
ele não é o fim da história, como ensinaram Schweitzer, Dodd e outros. Significa
que com ele nem todo o percurso da história se exauriu, mas sim que ainda nos
resta uma parte do trajeto a percorrer. O centro tem caráter final, conclusivo
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(efapax), mas não é o fim: é o início da vitória, mas não a sua conclusão. Entre o
início e a conclusão há um intervalo, que corresponde ao tempo presente, ao nosso
tempo. O seu significado soteriológico é a espera da realização final.72
Fiel à sua chave de leitura predominante, Cullmann argumenta que ―a
cristologia do Novo Testamento foi concebida na perspectiva da salvação. Ela é
essencialmente soteriológica, e não um mito que teria sido imposto de fora a um
querigma alheio à história da salvação.73 Contrário à tendência de alguns dos
principais teólogos protestantes da época, Cullmann afirma ainda que o
fundamento de toda a cristologia é a vida de Jesus. O problema de saber quem é
Jesus, diz ele, não se formula unicamente a partir da experiência pascal da
primeira igreja. De fato, a vida de Jesus já é o ponto de partida de todo o
pensamento cristológico; por um lado, em razão da consciência que o próprio
Jesus tinha sobre si próprio e, por outro, em razão das reações que a pessoa e a
obra de Jesus suscitaram em seus discípulos e no povo.74

71
MONDIN, Os Grandes Teólogos do Século Vinte, p.230.
72
MONDIN, Os Grandes Teólogos do Século Vinte, p.230.
73
CULLMANN, Cristologia do Novo Testamento, p.413.
74
CULLMANN, Cristologia do Novo Testamento, p.414.
101

3.4.2.3
Eclesiologia

A Eclesiologia de Cullmann também precisa ser reconhecida dentro de seu


motif História da Salvação, pois o vemos constantemente, em seus escritos,
interagindo com ela. A Igreja, segundo Cullmann, é uma espécie de protagonista,
contando com a presença, poder e orientação do Espírito Santo75, durante a fase da
História da Salvação que vai desde a batalha decisiva (Ressurreição) até a vitória
final (Parusia). Trata-se de uma fase essencialmente intermediária, de um
―intervalo‖ 76 onde é posicionada por Deus para uma tarefa importante.
Para Cullmann, a Igreja não é meramente um objeto sociológico, mas o
corpo de Cristo. Não é meramente a soma dos fiéis, mas o templo do Espírito
Santo. Ninguém cria a igreja, ela é dada por Deus.77
Ela é certamente o corpo de Cristo, corpo de ressurreição, mas é composta por nós,
homens pecadores, ainda pecadores; não é simplesmente o corpo da ressurreição.
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Permanece ainda, ao mesmo tempo, um corpo terrestre, que não só pode ser
crucificado, mas que também participa das imperfeições do corpo terrestre. Isso
significa que o tempo da Igreja prolonga o tempo central, mas não é mais o tempo
central: prolonga o tempo de Cristo encarnado, mas não é mais o tempo de Cristo
encarnado e dos apóstolos, suas testemunhas oculares. A Igreja é construída sobre
o fundamento dos apóstolos e continuará a ser construída sobre esse fundamento
enquanto existir, mas não pode mais produzir apóstolos no tempo presente.78
Em sua eclesiologia, Cullmann introduz uma das teses que lhe são mais
caras e que se encontra também entre as mais características do seu pensamento: a
tese da diferença qualitativa entre Igreja apostólica e Igreja pós-apostólica.
Segundo o teólogo de Estrasburgo, a Igreja apostólica pertencia ainda ao
momento construtivo (ou da fundação) da história da salvação, tendo, portanto,
um valor soteriológico profundamente diverso do da Igreja pós-apostólica, a qual,
ao contrário, pertence ao momento de sua ampliação. Neste último momento, a
história da salvação tem apenas um desenvolvimento quantitativo; no primeiro
momento, ela ainda sofre um desenvolvimento qualitativo. A diferença qualitativa
entre Igreja apostólica e Igreja pós-apostólica manifesta-se, sobretudo, na
Tradição. A Tradição da Igreja apostólica se constitui sob a assistência
extraordinária do Espírito Santo e tem valor normativo para qualquer outra

75
CULLMANN, Salvation in History, p.301-302.
76
CULLMANN, Salvation in History, p.301.
77
CULLMANN, L’unité par la diversité, Paris: Cerf, p. 118.
102

tradição futura. Já a tradição pós-apostólica é de origem eclesiástica e não tem


valor normativo para as tradições sucessivas.79
Assim, a Igreja apostólica constitui a norma da Igreja pós-apostólica.
Contudo, aqui surge um problema: de que maneira a Igreja pós-apostólica pode
manter-se fiel à tradição apostólica e, portanto, ao querigma original? Mondin
nota que Cullmann nega que isso possa se efetuar através de uma assistência
extraordinária do Espírito Santo. Ademais, exclui também que isso possa ocorrer
mediante o órgão do magistério eclesiástico, como ensina a Igreja católica, porque
tal magistério, segundo Cullmann, não pode gozar do privilégio da
infalibilidade:80
Nenhum magistério infalível — seja ele personificado por um papa ou se exprima
num concílio ou na colaboração de ambos — pode ser comparado, nem m esmo
como interpretação da Bíblia, ao testemunho ocular, que jamais poderá ser
repetido, dado pelos apóstolos a respeito dos eventos cristológicos essenciais, a
morte e a ressurreição de Jesus, testemunho ocular que somente na Bíblia acha-se
englobado no testemunho geral. 81
Segundo Cullmann, o único instrumento com o qual a Igreja pós-apostólica
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pode certificar-se de sua fidelidade à tradição apostólica e ao querigma original é


a palavra dos apóstolos.
"O apóstolo não pode ter sucessores que exerçam o papel de reveladores em seu
lugar, mas sim deve continuar ele mesmo a cumprir essa função na Igreja presente:
na Igreja, não através da Igreja, mas através da própria palavra dia tou Togou (Jo
17.20), ou seja, através dos seus escritos. E bem verdade que a palavra oral e
escrita dos apóstolos não é idêntica à revelação objetiva, à própria palavra divina,
já que a língua humana — falada e escrita — participa da nossa fraqueza e,
conseqüentemente, não pode ser um veículo adequado para a palavra pronunciada
pelo Deus onipotente. Mas é somente através desse instrumento que Deus pode
dirigir-se a nós; e ele escolheu os apóstolos para que a boa nova nos fosse
transmitida através do seu testemunho.82
Em resumo, sobre esta característica, Cullmann vê continuidade e
descontinuidade na relação entre a igreja apostólica e pós-apostólica. Entende que
a igreja primitiva deve ser considerada como o legítimo lugar de origem da
interpretação da vida e mensagem de Jesus, mas que a vida da Igreja do tempo
presente, apesar de sua distância cronológica com àquela, também deve ser levada
em consideração. Defende apenas que se faça isso com reservas, pois no processo

78
MONDIN, Os Grandes Teólogos do Século Vinte, p.232-233.
79
MONDIN, Os Grandes Teólogos do Século Vinte, p.233.
80
MONDIN, Os Grandes Teólogos do Século Vinte, p.234.
81
CULLMANN, Salvation in History, p.400ss.
82
MONDIN, Os Grandes Teólogos do Século Vinte, p.235.
103

de continuação, às vezes, os desenvolvimentos interpretativos geram fontes de


erro.83
Digna de menção em sua eclesiologia é, por exemplo, a relação da Igreja
com o Reino de Deus. A tese de Cullmann é de que estes não são exatamente a
mesma coisa, mas estão em estreita correspondência. Diz que, por um lado, é
indiscutível, a partir do Novo Testamento, que Cristo já reina e está presente sobre
tudo e todos; por outro lado, de forma singular, esse mesmo Novo Testamento
afirma a liderança e a íntima ligação deste Cristo com a igreja. Essas duas
verdades, segundo Cullmann, inclusive aparecem no Novo Testamento em
contextos similares (Colossenses 1,18-20; Efésios 1.10,22; Mateus 28, 18-20).84.
Cullmann vê uma ―fascinante conexão‖85 no fato de que, tanto o mundo e todas as
suas coisas, quanto a igreja, a qual é uma pequena seção dentro dele, estão em
posição de submissão a Cristo, mas não exatamente na mesma classe de
submissão. A submissão da igreja ao Reino de Cristo é de natureza mais ―íntima‖.
Igreja e mundo não são duas superfícies circulares que estão lado-a-lado, por assim
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dizer, ou que, talvez, apenas se toquem ou cruzem de vez em quando. Também não
são idênticos. Devemos, ao invés, imaginar dois círculos concêntricos, que
possuem um centro comum em Cristo. A superfície circular toda (r1 + r2) é o reino
de Cristo; o círculo íntimo (r1) é a Igreja; e aquele que tem sua superfície entre os
dois (r2) é o mundo. O círculo íntimo está em relação mais próxima com Cristo do
que o círculo mais de fora, mas ainda assim, Cristo é o centro comum. Uma
alternativa entre as duas áreas não existe no Novo Testamento. A relação é mais
complexa. Isso se tornará mais claro especialmente na atitude da Igreja primitiva
para com o Estado.86
Cullmann faz questão de declarar que o círculo íntimo, isto é, a igreja,
também é composta de pessoas pecadoras. A diferença essencial é que a Igreja, de
posse do conhecimento e da fé na obra salvífica de Jesus, reconhece a governança
de Cristo sobre ela e sobre o mundo inteiro. O remanente visível e invisível do
mundo também é governado por Cristo, porém, neste momento, não sabe disso,
permanecendo em estado de inconsciência perante o reino de Deus. Diante deste
fato, a Igreja está posicionada por Deus nessa fase da história para proclamar ao
mundo que todos se encontram debaixo da mesma dependência e reinado do
Kyrios Christos, esteja a pessoa dentro da igreja ou não, consciente dessa
realidade ou não. ―Por tudo isso, a igreja deve estar permanentemente interessada

83
CULLMANN, Salvation in History, p.327.
84
CULLMANN, Christ and Time, p.186-187.
85
CULLMANN, Christ and Time, p.186.
104

em tudo o que acontece no mundo fora de suas fronteiras‖87, atitude que será
especialmente importante para a missiologia, pois dela depende o
desenvolvimento da história da salvação em nosso tempo88. Enxergar na Igreja
essa responsabilidade, e também, porque não dizer, grandeza missional, não era
problema para Cullmann. Mesmo entendendo que isso o colocava na linha de
frente dos críticos, dos quais alguns poderiam taxá-lo de ―pietista‖ ou mentecapto,
Cullmann ardentemente argumentava que seu posicionamento estava respaldado
pela narrativa neotestamentária, a qual não prevê uma compreensão, e uma fé na
mensagem da história da salvação afastada da membresia da Igreja. 89
É possível fisgar mais dados da eclesiologia Cullmanniana a partir dos
registros que este deixou de suas impressões sobre o Concílio Vaticano II.90
Baseamo-nos em seu aluno André Birmelé, e em sua preleção comemorativa que
deu no Instituto Ecumênico em Jerusalém, já citada anteriormente. Naquele dia,
Birmelé lembrou, entre outras coisas, do entusiasmo do professor que teve em
Basiléia, quando o Concílio Vaticano II referendou uma visão mais dinâmica da
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igreja91, a qual era defendida por ele, seguindo a interpretação protestante


concebida em Lutero. Não tanto em termos institucionais, mas em termos de um
povo errante de Deus, que ouve a Palavra; no qual os leigos desfrutam de uma
função decisiva, de uma comunidade que redescobria sua tarefa missionária.
Cullmann celebrou esta aproximação, desde a conclusão da primeira seção
conciliar.92 Como muitos outros comentaristas, Cullmann identificou na Lumen
Gentium o feito máximo do Concílio, ao ponto de exceder suas expectativas. Em
concordância com sua tese, viu uma compreensão mais pneumatológica e
escatológica suplantar a abordagem mais jurídica e estática da Igreja. Cullmann
acolheria, particularmente, a melhor-esclarecida distinção entre Cristo e a Igreja.

86
CULLMANN, Christ and Time, p.187-188. No livro, Cullmann traz um gráfico dessa sua
ilustração.
87
CULLMANN, Christ and Time, p.188.
88
CULLMANN, Salvation in History, p.326.
89
CULLMANN, Salvation in History, p.327.
90
Para aprofundar o conhecimento sobre a percepção de Cullmann sobre o concílio Vaticano II,
recomenda-se: CULLMANN, Oscar. Vatican Council II: The New Direction. Translation James D.
Hester. New York: Harper and Row, 1968.
91
O historiador Giuseppe Alberigo confirma essa leitura. ―O documento [Lumem Gentium], de
amplo alcance espiritual e teológico, traçava a fisionomia da Igreja, sem limitar-se à dimensão
jurídico-institucional e respeitando a dinâmica de um corpo vivo e em contínuo crescimento.‖
ALBERIGO, Giuseppe. História dos Concílios Ecumênicos. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1995, p.430.
92
CULLMANN, O. Zwischen zwei Konzilssessionen. Zurich: Polis, 1963, p.24, Apud BIRMELÉ,
Oscar Cullmann, 2012
105

Mesmo ciente do Decreto sobre Ecumenismo que afirmava que a Igreja Católica
seria a Igreja de Cristo em sua plenitude (UR 3), bem como de outras declarações
de viés mais patriotas, e contra muitos críticos protestantes, Cullmann valorizava
a herança e a caminhada histórica da igreja católica, o progresso obtido no
Concílio e, claramente, a afirmação conciliar de que muitas outras dimensões do
mistério da salvação existiam em outras formas eclesiásticas. Esse entendimento
lhe dava espaço para postular sua asserção, também muito conhecida e apreciada,
da unidade na diversidade.
Sobre esta última, resumidamente, Cullmann compreendia que as diferentes
vertentes cristãs poderiam ser expressões que mutuamente se corrigem. Cada
confissão seria uma necessária correção dos desequilíbrios de outras confissões
cristãs. Era a complementaridade das confissões. Não apregoava uma fusão, mas
convocava à aproximação. Seu argumento provinha da história da igreja
primitiva; lembrava que a diferença entre as congregações cristãs de origem
judaica e as congregações cristãs de origem pagã não as proibia de ser uma só
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Igreja. Lembrava, outrossim, dos diferentes charismas que o Espírito Santo


concedia para as diversas Igrejas e propunha que elas, dentro de limites e de uma
confissão de fé comum, fossem como o Símbolo de Nicéia, ou seja, se
esforçassem pela reconciliação e cooperação.93

3.4.2.4
Escatologia

A escatologia de Oscar Cullmann está também em direto elo com sua


moldura básica, História da Salvação. Tudo o que foi dito sobre este framework
aplica-se também à sua escatologia. Demarcando um ponto específico para a
escatologia neste capítulo queremos tão somente deixar o lócus isento de qualquer
ambigüidade. Em suma, poderíamos dizer que, para Cullmann, a escatologia
inclui todos os eventos salvadores a partir da encarnação e será concluída com a
segunda vinda de Cristo. As bênçãos da era vindoura começaram com a obra e o
testemunho de Cristo, mas sua finalização está reservada para o tempo da parusia,
quando o Reino de Deus estará presente de modo pleno, em todo o seu poder e

93
BIRMELÉ, Oscar Cullmann.
106

glória, tanto em caráter individual como cósmico. Há esperança e promessa para o


ser humano, bem como para a criação.
Em seu livro Salvação na História, no capítulo introdutório “prolegomena‖,
Cullmann dedica uma pequena síntese de sua concepção escatológica, numa
espécie de esclarecimento terminológico. Ela justamente segue a aclaração que faz
da História da Salvação e precede o do conceito apocalíptico. Cullmann nos
mostra que estava ciente da transformação de significado que a escatologia estava
sofrendo, a saber, de uma ciência teológica que lidava com os assuntos do futuro e
era conhecida por locus de novissimis,94 para uma compreensão existencialista
vigente em sua época onde se pensava que escatológica equivaleria a qualquer
situação de decisão de espectro mais transcendental para o ser humano. Cullmann
vai dizer que os escritos de Kierkegaard e o existencialismo conectado com eles,
bem como a aplicação que Bultmann fez do termo, foram os principais
responsáveis pela disseminação daquela ênfase em que ―o significado mais
profundo da escatologia de Jesus é o ‗permanente estado na situação de uma
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decisão‘‖.95 Fiel à sua expertise bíblica, Cullmann rejeita tal abordagem,


arrazoando sua inviabilidade exegética. A ideia até poderia ser atrativa para o
espírito da época, sendo dotada de aspectos positivos, no entanto, não poderia ser
considerada como uma totalmente válida interpretação da essência da expectativa
de Jesus e da igreja primitiva para o fim dos tempos. Por isso, em última análise, e
como opção segura, deveria ser rejeitada.96
As palavras escatologia e escatológico se relacionam com o fim dos tempos, e não
com o tempo de decisão. Certamente o fim dos tempos é um tempo de decisão, mas
todo o tempo de decisão não é um fim dos tempos; por essa razão deveríamos
reservar o uso dos termos no seu sentido etimológico de ―fim dos tempos‖. Isso não
quer dizer que no Novo Testamento este fim dos tempos não esteja relacionado
com o presente. Pelo contrário [...] é característico da situação do Novo Testamento
que o fim dos tempos é ao mesmo tempo um futuro e um presente [...] Isso significa
que ele permanece amarrado com o conceito da história da salvação. Falar de um
―tempo final‖ apenas tem significado quando ele está conectado com um tempo
precedente.97
A escatologia de Cullmann fora também classificada como escatologia
inaugurada. Ele mesmo emprega o termo em sua obra, mas não o reivindica como
nomenclatura preferencial. Prefere falar de ―temporal presente e futuro‖ e de

94
Cullmann menciona a antiga dogmática do sistemático luterano Johaness Gerhard, referência na
teologia desta tradição no período da Ortodoxia (século XVII).
95
CULLMANN, Salvation in History, p.79.
96
CULLMANN, Salvation in History, p.79.
107

―história da salvação‖, como poderíamos imaginar. Todavia, mais importante é


como a define: ela seria uma espécie de terceira via para as escatologias realizada
(preterista) e consistente (futurista), de Dodd e Schweitzer, respectivamente, já
abordadas no primeiro capítulo. (E de acordo a Cullmann, ele não estava sozinho
na proposição de uma solução ―meio termo‖ para as teses conflitantes dos dois
teólogos. O teólogo alemão W.G. Kümmel, já em Promise and Fullfillment,
também lhe fazia companhia na asserção.98 Talvez houvesse outros, talvez os
outros vieram um pouco depois. Difícil afirmar essa informação histórica com
certeza. Aparentemente Cullmann não tinha conhecimento de mais ninguém em
sintonia consigo e Kümmel na época que primeiramente trabalharam o assunto.
A solução escatológica proposta por eles afirmava o caráter de futuro e de
presente para a expectativa de Jesus e a realidade de seu reino, mas rejeitava a
alternativa radical uma-coisa-ou-outra (―either/or‖).99 Cullmann ensina um
paralelismo das eras, uma escatologia que é tanto presente como futuro,100 na qual
o juízo tanto já aconteceu quanto ainda acontecerá no futuro.101
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Com respeito à realidade do presente, em seu pensamento escatológico


precisou lidar com o que chamou de crise do atraso da parusia. Reconhecia que
esse suposto atraso era um questionamento legítimo para a escatologia, porém,
tinha a convicção de que ele não havia sido um grande problema para os cristãos
primitivos. Acreditava que, para estes últimos, o importante era que, uma vez que
Cristo encarnara, seu retorno era certo, e, portanto, em certo sentido, sempre
próximo.‖102 Ainda, defendia que o tempo presente, de espera, constituía uma
nova fase da história da salvação, a qual, ainda que não fizesse parte do
pensamento hebraico e bíblico, não contradizia a sua mensagem, mas era produto
dela, por mais que sua duração superasse o que se esperava.103
No que se refere às realidades futuras, Cullmann defende as verdades
conhecidas sobre o texto bíblico, as quais a Igreja historicamente havia
reconhecido. A parusia significa o retorno ou manifestação de Cristo e trará
consigo tudo associado com à ressurreição do corpo e à renovação da criação.

97
CULLMANN, Salvation in History, p.79.
98
CULLMANN, Salvation in History, p.36.
99
CULLMANN, Salvation in History, p.37.
100
CULLMANN, Christ and Time, p.83.
101
CULLMANN, Christ and Time, p. 89.
102
CULLMANN, Salvation in History, p.32, 181.
103
RATZINGER, Joseph. Escatología. La muerte y la vida eterna. Barcelona, p. 62.
108

Tudo que está associado com a ressurreição de nossos corpos e sua transformação
pelo Espírito (1 Co 15) e com a nova criação sobre-humana (Rm 8) ainda está por
vir [...] Somente na ressurreição futura nós teremos um corpo finalmente
transformado por Deus [...], quando o mesmo Espírito refizer toda a criação. Então
a vitória que já foi alcançada sobre a ‗carne‘ e o pecado, a conquista da morte pela
qual nosso homem interior já está sendo renovado (pelo Espírito) dia a dia (2 Co
4.16) produzirão seu efeito corporal. É uma modernização injustificada da
substância do pensamento paulino interpretar este evento de outra forma que não
algo que ainda esteja por vir no tempo.104
Em outras palavras, o futuro aguardado tinha estreita ligação com a
atividade salvífica de Deus. Cullmann se atinha à revelação e não se ocupava
tanto com especular sobre o ―Ser‖ de Deus. Nesse sentido, esperava que o que
está por vir é, na verdade, um novo ato de Deus, um futuro que é realmente
futuro.105 ―A história da salvação não era orientada para um ―mais além‖ (beyond)
da história, mas para um evento salvífico.106
Sobre a escatologia da pessoa, no ano de 1956, Cullmann publicou um livro
que teve grande impacto no mundo teológico: ―Imortalidade da alma ou
ressurreição dos mortos?”107 Apesar da conjunção adversativa no título da obra,
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ela na verdade é uma tentativa de construir uma síntese entre esses dois
conceitos.108 Essa questão não pertence diretamente ao escopo deste trabalho, por
isso, deixamos apenas um resumo do posicionamento de Cullmann na avaliação
de Santos:
Cullmann chega a admitir um estado intermediário para o justo. Afirma que,
quando este morre, o homem interior, despojado do homem exterior, ou seja,
desnudo de todo o elemento corpóreo, encontra-se numa situação que pode ser
qualificada de ―dormição‖, um estado que ressalta a imperfeição, inclusive no
campo da consciência, do estado intermediário. [...] Esse processo de pervivência
do homem interior não é algo natural, mas sim fruto da sua união com o Espírito
Santo. Cullmann afirma que o Espírito Santo é um dom que não perdemos ao
morrer. A união do Espírito Santo com o homem justo mantém-na, depois da sua
morte corporal, vivendo junto a Cristo, num estado de sono. Claro que isso diz
respeito somente à morte dos justos. Sobre a sorte dos ímpios, entre a morte e a
ressurreição final, Cullmann não diz nada: contudo promete voltar a esse tema em
outra obra que não chegou a escrever.109

104
CULLMANN, Salvation in History, p.177-178.
105
CULLMANN, Salvation in History, p.177.
106
CULLMANN, Salvation in History, p.166.
107
CULLMANN, Oscar. Immortalité de l’âme ou résurrection des morts? Neuchâtel; Paris:
Delachaux & Niestlé, 1956. Passim.
108
POZO, Cándido. Teología del más allá. 3.ed. Madrid : Biblioteca Autores Cristianos,1992,
p.167.
109
CULLMANN, Immortalité de l’âme ou résurrection des morts?, p. 75-84. Apud SANTOS, A
Escatologia em alguns teólogos protestantes do Século XX. In: Trim, p.544-545.
109

3.4.2.5
Missiologia

Cullmann não possui uma ampla e consagrada missiologia, a priori. Ele não
é conhecido como um especialista nesta matéria. O que encontramos, em termos
de dados no assunto, são até satisfatoriamente claros, mas nunca são os temas
prevalentes de seus escritos. Sua contribuição maior se dá no lugar e no papel que
ele confere ao empreendimento missionário para igreja, e na sua proposta de
aplicabilidade da escatologia na missão. Foi principalmente nesse sentido que sua
teologia inspirou um célebre time de missiologistas, dentre os quais, destacam-se
Walter Freytag, num primeiro instante, e David J. Bosch, posteriormente.
Chamamos à atenção para a influência de Cullmann em Bosch, por ser este, hoje,
considerado um dos maiores teólogos da missão, senão o maior, dos últimos
tempos. Sua influência nele foi atestada, por exemplo, na pesquisa de Kevin
Livingston.110 Bosch, que fora orientado por Cullmann em sua tese de doutorado,
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justamente sobre a dimensão escatológica da missão, dizia em seu bestseller


Missão Transformadora, de 1991, que era possível argumentar que a abordagem
histórico-salvífica de Cullmann e sua compreensão escatológica era a base mais
sólida para um entendimento escatológico da natureza da missão desde muito
tempo.111
Como não poderia deixar de ser, para o teólogo que se manteve apegado à
sua chave mestra hermenêutica, também o testemunho cristão deve ser entendido
como história da salvação. Não podemos ser testemunhas oculares dos eventos
salvíficos de Cristo, segundo ele. Para que sejamos testemunhas, temos que
acreditar no testemunho dos profetas e apóstolos que estiveram diretamente

110
LIVINGSTON. Kevin J. A Missiology of the Road: Early Perspectives in David Bosch's
Theology of Mission and Evangelism. Cambridge: James Clark, 2013. p.269-270.
111
BOSCH, Misión en Transformación, p.609-612. Bosch cita Ludwig Wiedenmann, que em seu
livro Mission und Eschatologiae: Eine Analyse der neueren deutschen evangelischen
Missionsheologie (p.26-49; 55-91; 131-178), de 1965, distinguia quatro escolas escatológicas
principalmente no protestantismo alemão, cada uma tendo um impacto significativo no
pensamento missionário. As quatro escolas são as seguintes: a escatologia dialética, do jovem
Barth (que influenciou missiologistas como Paul Schutz, o jovem Karl Hartenstein, Hans Scharer e
Hendrik Kraemer), a escatologia existencial de R. Bultmann (que foi aplicada a missiologia por
Walter Holsten), a escatologia atualizada de AdolfAlthaus (que inspirou a Gerhard Rosenkranz) e
a escatologia da História da Salvação de Oscar Cullmann (da qual rastros podem ser detectados no
pensamento missiológico de Walter Freytag e do Hartenstein tardio). Para Wiedemann, as três
primeiras escatologias seriam ahistóricas. Unicamente o modelo de Cullmann levaria realmente a
sério a história e possibilitaria as pessoas fazerem frente aos desafios do mundo moderno.
110

ligados a eles, isto é, depositar a fé, a qual é concedida pelo Espírito Santo, nesses
eventos. ―Chegamos à fé quando somos tão inundados pela história de salvação,
que não podemos fazer outra coisa a não ser incluir-nos a nós mesmos nesta
história e conscientemente alinhar-nos com ela.‖ 112
Por que essa história de salvação continua até nosso tempo? Por que ela não
se concluiu com a ressurreição de Cristo? Cullmann declara que a resposta que o
Novo Testamento oferece a essa questão é uma só: para que Deus complete a sua
missão de salvar a humanidade. Esse é o significado do intervalo atual do qual a
Igreja participa: há precisamente uma tarefa missionária diante dela. 113 Na
verdade, a missão é a característica e a atividade mais importante durante este
período interino; enche o presente e mantém separado os muros da história, como
também expressou Hoekendijk, na famosa frase: ―a história se mantém aberta pela
missão.‖114 Nos escritos de Cullmann, a missão é uma preparação para o final e,
nos seus escritos mais iniciais, até uma pré-condição, uma vez que interpreta a
referência ao ho katejon e to katejon (―quem o refreia‖, ―o que o detém‖) em 2
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Tessalonicenses 2,6-7, como referências à missão. Portanto, até que a tarefa


missionária seja completa, ela mesma estaria retendo o final.115Todos devem ter a
oportunidade de ouvir o evangelho.116A história de salvação é orientada,
predestinada para o mundo todo e é realizada a partir de um pequeno grupo de
eleitos. ―Este é o caminho de toda a história da salvação – universalismo como
meta, concentração como meio de realização [...] Para usar uma ilustração, a
pequena caravana vai marchando, e gradualmente, por ambos os lados mais
grupos se juntam a ela.‖ 117
Nessa perspectiva de missão alinhada com a história da salvação,
encontramos um detalhe digno de menção, pois fornece material para prevenir a
Igreja de uma atitude missionária colonialista e arrogante. Segue, nas palavras do
professor franco-alemão:
[...] nosso encontro com o mundo não-cristão pode ser pensado como um
elemento do plano divino de salvação. Já dissemos anteriormente que a
existência de não-cristãos de forma alguma significa que eles estão em

112
CULLMANN, Salvation in History, p.323.
113
CULLMANN, Salvation in History, p.307.
114
HOEKENDIJK, J.C. Kirche und Volk in der deutschen Missionswissenschaft. Munich: Chr.
Kaiser Veerlag, 1967, p.232.
115
BOSCH, Misión en Transformación, p.611.
116
CULLMANN, Christ and Time, p.39.
117
CULLMANN, Salvation in History, p.310.
111

desvantagens com respeito à salvação; sua existência deve ser vista como um
incentivo para a Igreja proclamar-lhes que somos redimidos em Cristo. A
eleição da Igreja somente significa que lhe foi confiada o cumprimento desta
tarefa, não que possui qualquer tipo de vantagem sobre os não-cristãos com
respeito à salvação. Esta tarefa da pregação é também prescrita para a Igreja
dos tempos atuais.118
Vemos uma preocupação com a atitude que o cristão sustentará no trato com
o não-cristão. A posição peculiar da igreja na história da salvação não deveria dar
a ela combustível para olhar ―de cima pra baixo‖ o seu semelhante que não
compactua de sua esperança. Não há vantagem, prerrogativa, honra intrínseca na
comunidade de fé com relação aos não adeptos. Esta, apenas, foi agraciada com a
consciência do senhorio e redenção realizada por Cristo em favor de toda a
humanidade. Então, levando em consideração o fato de se estar no mesmo nível
diante de Deus, a tarefa missionária, talvez estivesse sugerindo Cullmann, deveria
ser levada a cabo muito mais num encontro gentil do que numa cruzada
conquistadora.
Concluímos desse pensamento que missão era primordialmente vista por
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Cullmann como o testemunho respeitoso, insubstituível e premeditado que a


Igreja cristã, enquanto comunidade reduzida, oferece ao mundo. O testemunho é o
da história da salvação, história essa da qual tanto ela, igreja como ele,
testemunho, fazem parte. Esse testemunho, de acordo a Cullmann, acontece por
meio da pregação e da vida cristã vivida. Missão é uma tarefa proclamatória da
Igreja119, a qual afeta a Igreja como organismo coletivo e, também, a cada
indivíduo que é membro desse corpo.
Em termos de pregação, Cullmann afirma que a mensagem é muito clara: os
eventos salvíficos de Deus no passado. Quando a mensagem da ―história bíblica‖
é ensinada, a ação de Deus no passado deixa de ficar apenas no passado, mas
passa a vincular-se intimamente com nosso presente.120 Essa ação divina no
passado, a qual a Igreja é chamada a dar testemunho, é essencialmente ―que nós
somos salvos através de Cristo‖.121 Ainda sobre o querigma missional, Cullmann
traz a perspectiva de um conteúdo centrado no evangelho do reino de Cristo.
Refletindo no conteúdo dos sinóticos, segundo Mateus 24 e Marcos 13: ―o
evangelho do reino será pregado por todo o mundo... e então o fim virá‖.

118
CULLMANN, Salvation in History, p.312.
119
CULLMANN, Salvation in History, p.308.
120
CULLMANN, Salvation in History, p.308.
112

Menciona também a característica urgente da tarefa, recordando a ânsia de Paulo


em encontrar novos cenários para pregar este evangelho (1 Coríntios 9,17).122
Ainda, com respeito ao conteúdo da mensagem, Cullmann tece o seguinte
comentário sobre a importância do que hoje chamamos de contextualização.
Como membros da Igreja, nós deveríamos colocar o jornal do lado da Bíblia e,
mais particularmente, a Bíblia do lado do jornal. Argumentar que ―política não
pertence ao púlpito pode certamente ser justificado se política estiver sendo
promovida para sua causa própria, ou se a Igreja estiver usurpando algum tipo de
poder político que não faz parte de seu domínio. Mas um julgamento salvífico-
histórico dos eventos de nossos dias é parte da pregação, do testemunho no qual o
significado de nossa tarefa consiste. Nesta pregação a Igreja não pode permitir que
nenhuma limitação lhe seja imposta sob pretexto de algum slogan.123
Percebe-se na citação não só a preocupação com a contextualização, isto é, a
proclamação da história da salvação que dialoga e se aplica nos desdobramentos
que fazem parte do dia-a-dia da sociedade, mas também na postura de resistência
a qualquer censura que queira calar a Igreja nesse testemunho. Certamente
Cullmann, através do contexto pós-guerra que lhe rodeava, reconhecia a
importância do fator coragem para a missão.
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Em termos de vida testemunhal, Cullmann assegura que a ética para levar a


mensagem com gestos está ancorada na história da salvação. Nesse cenário ocorre
a interseção entre o horizontal e o vertical, ou seja, a vida cristã em suas múltiplas
vocações concretas é o ponto de encontro entre existencialismo e a teologia
histórico-salvífica.124 O autor não aborda exaustivamente essa vida prática,
todavia limita-se a mencionar alguns aspectos nos capítulo conclusivos de seus
livros Cristo e o Tempo e Salvação na História.

Nestes livros aprendemos, em primeiro lugar, que a missão realizada na


conduta cristã é um imperativo, por isso não deve ser confundido com o perigo de
um nihismo antinomista que ronda o existencialismo desconectado do
evangelho.125 Porém é um imperativo ético que não cai do céu no colo do cristão,
desacompanhado de um alicerce seguro e de um propósito claro; antes nasce e
está para sempre atrelado a um indicativo muito específico, a saber, Cristo e sua
obra. Ou seja, toda a ação que Deus nos convida a realizar em seu nome, com seu

121
CULLMANN, Salvation in History, p.307.
122
CULLMANN, Salvation in History, p.307.
123
CULLMANN, Salvation in History, p.310.
124
CULLMANN, Salvation in History, p.328.
125
CULLMANN, Salvation in History, p.329.
113

poder e de posse de seus valores, tem como motivação frontal não a ação em si,
ou mesmo o objeto desta ação, por mais nobre que sejam, mas o evento salvífico
divino realizado em favor do cristão. ―Todo ‗deve‘ recai sobre um ‗é‘. O
imperativo está firmemente ancorado no indicativo‖.126 Esta importante
conjuntura é notada por Cullmann em sua exegese, tanto do Antigo Testamento
quanto do Novo; ele lembra que, repetidas vezes, o chamado para agir vem
precedido de um recordar da ação de Deus.
A conexão entre mandamento com o evento salvífico é bastante óbvia no Antigo
Testamento. A combinação permeia todo ele como um fio condutor: ―Você tem
visto... portanto faça...‖ E não é diferente no Novo Testamento. Ética tem sua
fundação, por um lado, no evento decisivo de Cristo no ponto-central da história e,
por outro, no seu desenvolvimento cristológico. Poderíamos recordar Romanos 6.
A primeira parte indica a relação entre batismo e o evento realizado ―de uma vez
por todas‖ na cruz e ressurreição de Cristo. Na segunda, o imperativo (o que nós
temos que fazer) segue o indicativo (o que nós somos) contundentemente.
Colossenses 3.1-3 também links os grandes eventos de Cristo muito intimamente
com a vida do cristão: ―Portanto, já que vocês ressuscitaram com Cristo, procurem
as coisas que são do alto, onde Cristo está assentado à direita de Deus. Mantenham
o pensamento nas coisas do alto, e não nas coisas terrenas. Pois vocês morreram, e
agora a sua vida está escondida com Cristo em Deus.‖ Uma imitatio Christi
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corretamente compreendida e orientada dentro do Novo Testamento é encontrada


na história da salvação. 127
Cullmann lembra também da primazia do indicativo no anúncio de Jesus e da
Igreja primitiva:
No encargo missionário, em Mateus 10.7, Jesus dá como conteúdo da proclamação,
não um imperativo, mas somente um indicativo; é uma declaração relacionada a
história redentora no presente: ―O reino de Deus está próximo!‖ Assim também em
sua própria pregação Jesus não traz o imperativo ―arrependam-se‖ isolado, mas
agrega ―por que o reino está próximo‖. Deste fato todos os imperativos são
extraídos para cada caso individual. Fundamentalmente não é nada diferente da
proclamação da Igreja depois da ressurreição de Cristo: Kyrios Christos, ―Cristo
agora reina como Senhor‖.128

Uma vez que Cullmann esclarece de onde vem o impulso motor para a
tarefa missionária que acontece na práxis do discípulo de Jesus Cristo, ele avança
para dar alguns conselhos sobre como esta pode ser desenvolvida.
A livre decisão de nos alinharmos com os eventos da Bíblia abre a nós uma
variedade de tarefas e modos de vida nos quais nós devemos fazer uma escolha em
nosso caso específico e em nossa situação concreta. Esta variedade está relacionada
com a variedade de dons dados pelo Espírito Santo, e a variedade de dons é

126
CULLMANN, Christ and Time, p.224.
127
CULLMANN, Salvation in History, p.330.
128
CULLMANN, Christ and Time, p.225-226.
114

condicionada pela variedade de tarefas, ou ―ministérios‖, equipados pelo plano e


desenvolvimento da história da salvação. 129
Atentamos para a possibilidade de ajuste entre o plano constante de salvação
e as contingências históricas, isto é, para a sensibilidade examinar cada caso e de
se aplicar a Lei antiga em situações novas, e também para este caráter
performático dinâmico que não estabelece um código fechado de regras, mas
permanece aberto para renovados dons e oportunidades de serviço. ―Seria um
grande erro fazer dos exemplos concretos, dos paradigmas dados por Jesus uma
nova lei geral [...] ao invés de aplicar cada um deles à luz das situações e
exemplos concretos que o mandamento de Deus requer ser levado a pratica‖.130
Sem desdenhar dos mandamentos contidos na Escritura, Cullmann reforça a
história de Paulo, quem não apenas repetia os ―ditados‖ de Jesus, mas os
contextualizava, adicionando a elas suas próprias instruções, ou melhor, àquelas
que ele entendia como pertinentes para cada cenário onde era requisitado educar
os novos seguidores da fé cristã. ―Isso também mostra‖, conclui Cullmann, que ―a
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ética do Novo Testamento é sempre concreta, e que todas as instruções eram


intencionadas para serem apenas paradigmas, placas de sinalização, e que todas as
decisões devem ser sempre e constantemente atualizadas.‖131 Nesse ponto
ressalta-se a postura deliberativa dinâmica de ―por a prova, examinar, julgar,
testar‖ cada circunstância, encontrada no verbo δοκιμάζω o qual repetidamente
Paulo fazia uso. É importante para Cullmann não dogmatizar demais a postura
ética e, assim, correr o risco de torná-la estática e exageradamente arbitrária, o que
a faria incongruente com o cerne do pensamento histórico-salvífico. Antes,
tenciona deixá-la, por assim dizer, mais livre, respaldada em mandamentos
escriturísticos, porém retroalimentada, especialmente, por esta consciência, a qual
é invocada a julgar sensitiva e contextualmente.
Nesse processo responsável, Cullmann ainda acentua o papel do Espírito
Santo como o empoderador da vida cristã e do amor oriundo da obra de Cristo
como ―princípio guia para todos os julgamentos éticos nas situações concretas‖
que o cristão experimentará.132 Ele, dado ao cristão em seu batismo, é o manancial
dos charismata que são outorgados aos indivíduos e destinados ao serviço que a

129
CULLMANN, Salvation in History, p.331.
130
CULLMANN, Christ and Time, p.227.
131
CULLMANN, Christ and Time, p.229.
132
CULLMANN, Salvation in History, p.334, 335.
115

Igreja levará ao mundo. O último parágrafo da obra supracitada poderia servir


como um resumo da perspectiva cullmanniana de testemunho cristão encarnado:
Nós poderíamos resumir tudo o que dissemos sobre a base da ética do Novo
Testamento na história da salvação com a tríade que aparece com freqüência em
Paulo (1 Tessalonicenses 1.3; 5.8; 1 Coríntios 13.13): fé no evento de Cristo do
passado e presente, esperança no evento salvífico que ainda virá, amor como
princípio normativo e realização de fé e esperança. Estes três fazem a história de
salvação passado, presente e futuro real num ―agora‖ de decisão ética.133

3.5
O insight já e ainda não na teologia de Cullmann

Até o momento fizemos um apanhado de alguns dos principais conceitos


que interessam ao objetivo desta pesquisa na teologia de Oscar Cullmann: seu
esquema hermenêutico e tese fundamental, a História da Salvação, seguida dos
lócus cristológico, eclesiológico, escatológico e missiológico. Agora nos convém
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aprofundar justamente o insight pelo qual Cullmann se tornou mais popular e que
é o objeto benjamim desta dissertação: a tensão já e ainda não.
A cultura grega não conhece a espera; o judaísmo vive só da espera; já o
cristianismo primitivo, tal como se encontra expresso no Novo Testamento,
conhece a tensão (Spannung) entre um ―já‖ e um ―ainda não‖, entre um ―já
realizado‖ (schon erfüllt) e um ―ainda não plenamente realizado‖ (noch nich
vollendet).134
Já comentamos um pouco sobre ela no capítulo 2, num repasso histórico que
focou a temporalidade presente e futuro da escatologia e, também, em relances
neste capítulo. A seguir tentaremos dissecá-la ao máximo, dentro do pensamento
Cullmanniano, para posteriormente explorar suas possibilidades aplicativas na
missão.
Para Cullmann, a era na qual o crente neotestamentário vive é marcada por
uma tensão contínua entre o ponto central (Cristo) e o fim (parusia), e ela
representa a chave para se abrir toda a história da salvação135:
O elemento novo do Novo Testamento [em comparação ao Antigo Testamento] não
é a Escatologia, mas o que eu chamo de tensão entre o decisivo ―já cumprido‖ e o
―ainda não completado‖, entre o presente e o futuro. Toda a teologia do Novo
Testamento, inclusive a pregação de Jesus, é caracterizada por esta tensão.136

133
CULLMANN, Salvation in History, p.338.
134
GIBELLINI, A Teologia do Século XX, p.257.
135
CULLMANN, Salvation in History, p.335.
136
CULLMANN, Salvation in History, p.172.
116

Cullmann chegara a esta conclusão ainda cedo em suas pesquisas. A


primeira vez que ele escreveu sobre esta tensão foi na sua obra máxima Cristo e o
Tempo. Ela emergiu na primeira parte do livro, logo após a reflexão sobre o
significado de tempo e eternidade, como uma solução para a tensão entre presente
e futuro que a exegese de Cullmann percebia em Jesus e no Novo Testamento.137
Há um futuro já consumado na pessoa de Cristo, e todavia, ainda esperado.
Cullmann não crera que havia feito a descoberta desta formulação, pelo menos
não sozinho, pois ele mesmo dera ―grande mérito‖ ao seu contemporâneo W.G
Kümmel, o qual teria, através da obra Promise and Fullfillment, inspirado-o a
pensar a escatologia nesses termos. Conforme mostrado no primeiro capítulo, é
possível que outros teólogos já estivessem manejando ideia semelhante, mas
aparentemente Cullmann não tinha conhecimento destes.
Após revelar o insight em Cristo e o Tempo, Cullmann aperfeiçoa o mesmo
em Cristologia do Novo Testamento. No entanto, é no final da trilogia, em
Salvação na História, que Cullmann, em suas palavras, fará da exposição da
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tensão já e ainda não o ―nervo central‖ do trabalho.138 Em Cullmann, a índole


escatológica já e ainda não está inserida na sua moldura principal: a História da
Salvação. A vida de Cristo e o reino iniciado por ele, do qual os cristãos fazem
parte, estão firmados na tensão entre a anamnese e a expectativa de um novo
mundo. Os cristãos já estão salvos, mas sua salvação aguarda consumação.
Através da ressurreição, Jesus começou um novo mundo, o qual requer,
entretanto, o desabrochar e a revelação final no dia do retorno de Cristo.
Para falar desse quadro, a imagem da tensão é a chave para Cullmann. Sua
proposta concilia, não pelo simples desejo de ser mediador, mas por convicção
exegética, os posicionamentos polarizantes que são sempre tentadores. O reino
não é apenas uma realidade presente ou futura, ainda que o seja também; ele é
uma realidade que compreende ambos, presente e futuro. Neste instante já o
possuímos, ele já pode ser abraçado, vivido, experimentado, ele já é nosso,
embora não em sua capacidade e formato plenos. Concomitantemente, num
arranjo paradoxal, também existe um ainda não. Um ainda não, que está sendo
preparado, gestado e prometido. Estas duas dimensões temporais, aparentemente
contraditórias e incompatíveis, na verdade, coexistem, fazem parte da experiência

137
CULLMANN, Christ and Time, p.71.
138
CULLMANN, Salvation in History, p.175.
117

e da esperança cristã. Isso acontece em tensão. Cullmann chegou a ponto de,


numa roda de rodapé, considerar que o termo fosse promovido a vocabulário que
identificasse sua tese:
Infelizmente, em nossas línguas modernas, nenhum adjetivo pode ser encontrado
que expressa esta ideia. Um dos meus alunos sugeriu ―taseológico‖ porque a
palavra ―escatológico‖, estritamente falando, simplesmente se refere ao fim dos
tempos num sentido geral. Não expressa a tensão entre o presente e o futuro que
distingue a escatologia da escola História da Salvação. A palavra ―taseologia‖ (do
grego τᾰ́σῐς, ―tensão‖), até se aproximaria da proposta escatológica do Novo
Testamento. Mas nosso vocabulário de jargões teológicos já está tão carregado que
o melhor é não aumentá-lo com mais palavras estrangeiras ininteligíveis.139
Como se sabe, Cullmann não levou a ideia de mudança de vocabulário
adiante. Mas permaneceu defendendo o já e ainda não em relacionamento de
constante tensão.

3.5.1
A tensão já e ainda não e a metáfora do Dia D
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Cullmann cativou a imaginação de muitos para sua dialética já e ainda não


ao comparar a posição do crente da era neotestamentária com a da pessoa que,
durante a II Guerra Mundial, vivia entre o ―dia D‖ e o ―dia V‖. 140 Gibellini
chamou a sacada de ―célebre comparação‖, particularmente atual à época em que
o livro fora escrito.141 A invasão da Europa aconteceu em 6 de junho de 1944, este
foi chamado de ―Dia D‖. Nas praias da Normandia foi travada a batalha decisiva,
ainda que o ―Dia V‖, o dia da vitória final na Europa, somente tenha ocorrido
depois, em 8 de maio de 1945, com a capitulação alemã. Nosso ―Dia D‖, dia
crítico e decisivo, dizia o professor, já ocorreu na morte e ressurreição de Cristo.
Agora esperamos o dia da vinda de Cristo, o ―Dia V‖, o Dia da Vitória, quando o
inimigo será derrotado total e finalmente.
De acordo com esta comparação, aponta Gibellini, ―o irresistível
acontecimento de Cristo, tal como se realizou na cruz e na ressurreição, representa
a batalha decisiva já ganha, ainda que o Victory Day tenha sido relegado para a
parousia‖.142 Outra implicação que a figura também indica é a seguinte: embora já

139
CULLMANN, Salvation in History, p.172, nota de rodapé.
140
HOEKEMA, A Bíblia e o Futuro, p.357.
141
GIBELLINI, A Teologia do Século XX, p.257.
142
GIBELLINI, A Teologia do Século XX, p.257.
118

tenha sido travada a batalha decisiva contra os poderes do mal, e embora Cristo já
tenha conquistado a vitória, os crentes ainda têm de continuar a ―combater o bom
combate da fé‖ até que Jesus venha de novo para encerrar definitivamente a
guerra e a consumação final do seu reino. Portanto, o combate atual ocorre já na
certeza da vitória final. A ―espera cristã dos eventos futuros encontra, assim,
garantia nos eventos cristológicos do passado‖.143 Eles são o caráter ephápax (de
acordo com a terminologia da Carta aos Hebreus), caráter decisório para sempre,
de ―uma vez por todas‖.
A batalha decisiva duma guerra pode já ter acontecido em um estágio
relativamente inicial da guerra, e mesmo assim a guerra ainda continua. Embora
o efeito decisivo daquela batalha talvez não seja reconhecido por todos, mesmo
assim ela já significa a vitória. Mas a guerra ainda tem de ser levada adiante por
um tempo indefinido até o ‗Dia da Vitória‘. É exatamente esta a situação de que o
Novo Testamento está consciente, pelo fato de reconhecer a nova divisão do
tempo; a revelação consiste precisamente no fato da proclamação de que, aquele
evento da cruz, juntamente com a ressurreição que se seguiu, ser já a batalha
decisiva concluída. E nessa certeza da fé, que implica também, como
conseqüência, o desfrutamento dos resultados daquela vitória, que consiste a
participação da fé na soberania de Deus sobre o tempo.144
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O inimigo está, em princípio, derrotado e não pode vencer a guerra (cf. o


Dia "D"), mas ele continua a lutar e a atacar, bem ou mal, até que suas armas lhe
sejam finalmente tomadas. Assim também, no evento de Cristo, a batalha decisiva
foi travada e as dádivas da era porvir foram concedidas. Portanto, a vitória final
está assegurada, mas o inimigo não desapareceu completamente; há, ainda,
batalhas a serem travadas. Todavia é apenas uma questão de tempo até o tiro de
misericórdia.
―O passado da história da salvação torna-se a preparação para o acontecimento
central do Cristo; o futuro será a plena realização daquilo que já se cumpriu; o
presente remete ao passado e ao futuro, de acordo com a dialética do ―já‖ e do
―ainda não‖, da batalha decisiva e do Victory Day. ”145
Realmente a analogia com o Dia "D" parece ter sido útil para ajudar na
compreensão do que Cullmann estava enxergando na escatologia. Uma prova
disso é o fato de que ele fez referência à ilustração não poucas vezes e
praticamente todos os escritores que se predispõem a discorrer sobre sua teologia,
acabam mencionando a ilustração, a qual se tornou paradigmática. Sua metáfora,
mais clássica, sem sombra de dúvida.

143
GIBELLINI, A Teologia do Século XX, p.257.
144
CULLMANN, Christ and Time, p.84.
145
GIBELLINI, A Teologia do Século XX, p.258.
119

3.5.2
A sobreposição das duas eras e a preponderância do já

Algo importante na compreensão da tensão já e ainda não e de suas


implicações missionárias que abordaremos no capítulo seguinte, é perceber como
Cullmann acreditava na sobreposição das duas eras. Em um sentido, o crente já
está na nova era, pois o grande ponto central escatológico está no passado. Já em
outro, ele ainda não está nesta dimensão, pois a parusia ainda não aconteceu.
Cullmann argumenta biblicamente em favor desta justaposição e ainda a defende
como diferencial mais determinante entre a perspectiva escatológica dos primeiros
cristãos e das comunidades pseudo cristãs ligadas ao judaísmo tardio:
Toda a teologia do Novo Testamento, incluindo a pregação de Jesus, pode ser
qualificada nesta tensão. Logo, aquilo que é denominado de entusiasmo da Igreja
primitiva não foi provocado pela expectativa do fim, por assim dizer, mas pelo ―já‖
que dava a garantia desse fim. A expectativa é apenas um sintoma. Certamente que
os primeiros cristãos esperavam um fim próximo. Mas se esta expectativa era tudo
o que os caracterizava, então não seria compreensível porque este grupo teria
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despertado tal sensação, e porque ele teria prevalecido sobre os outros [grupos e
seitas judaicas da época que possuíam apenas a dimensão escatológica futurista].
Certamente o Novo Testamento inteiro aceita a mensagem do Batista (Mateus
4.17): o reino está perto. Mas ao lado dela, e amarrado a ela, há uma nova série de
afirmações que são novas: ―Eu vi Satã cair do céu como um relâmpago‖ (Lucas
10.18); ―Mas se é pelo dedo de Deus que eu expulso demônios, então chegou a
vocês o Reino de Deus.‖ (Lucas 11.20; Mateus 12.28); ―A morte foi derrotada‖ [...]
Todos os livros do Novo Testamento estão em acordo na justaposição do ―já‖ e do
―ainda não‖.146
É justamente esta superposição, presente no discurso de Jesus e dos
apóstolos, que agrega qualidade e peso à esperança da Igreja primitiva. No que
tange à expectativa futura (um lado da moeda), ela não era dramaticamente
diferente da cultivada pelo judaísmo tardio. Ela adquire novo e poderoso
significado à medida que precisamente se conecta ao presente. ―A proximidade
imediata do reino vindouro está agora baseada no presente que já foi realizado.
Aquilo que está por vir virá de fato porque o evento crucial ocorreu.‖147 A
esperança é ainda mais real e portentosa porque não descansa apenas em sinais do
fim, mas numa efetiva antecipação em Cristo.148 A tensão não é uma
conseqüência de uma (decepcionante) expectativa de um fim próximo. Pelo

146
CULLMANN, Salvation in History, p.172-173.
147
CULLMANN, Salvation in History, p.174.
148
CULLMANN, Salvation in History, p.179.
120

contrário, a expectativa no Novo Testamento era uma conseqüência da certeza de


que o reino vindouro já era existente em Cristo.
É a intensa, ―entusiasmada experiência da tensão que caracteriza a escatologia da
primeira geração cristã e que turbinava sua esperança. Em outras palavras, na
convicção que o evento decisivo para o final já aconteceu [...] a vinda desse fim
não podia falhar em materializar-se. O cerne perpétuo da esperança escatológica,
que não é de nenhuma maneira alterado pelo fracasso da vinda da parousia, é a fé
que em Cristo o tempo salvífico deu um grande salto avante imprevisto no curso
natural do tempo. Tempo salvífico entrou na sua fase final. Este é o significado do
já. 149
Por outro lado, embora essa tensão continue a existir, em paralelo, durante
todo o período entre o ponto central, a primeira vinda, a obra de Cristo e a
parusia, e seja de vital importância que a igreja não a desmembre nem a atenue,
para Cullmann o já prepondera sobre o ainda não:
É essencial, para essa tensão, que, por um lado, ela ainda exista, mas por outro lado
ela esteja abolida por implicação. Não é como se o ‗já‘ e o ‗ainda não‘
equilibrassem exatamente a balança. Nem o ponto central decisivo divide o tempo
da salvação em duas partes iguais. ―O fato de que a mudança decisiva de eventos já
aconteceu em Cristo, o ponto central – de que agora a expectação futura está
fundamentada na fé no ‗já‘-, mostra que o ‗já‘ é preponderamente sobre o ‗ainda
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não‘‖. 150
Essa ―dominância‖ ou ―posição preferencial‖, do já, defende Cullmann, é o
caráter que permite à crença no ainda não nunca perder intensidade, mas
permanecer vibrante. Uma fé centrada no ainda não ―enfraquece‖ e ―relaxa‖ à
expectativa escatológica em qualidade. Por isso devemos caminhar sempre
orientados pelo passado concretizado por Cristo. Ora, por esse motivo, para a
consciência da Igreja primitiva, era tão significativo enxergar, em Cristo, o
―cumprimento das Escrituras‖ relacionadas às promessas de Israel. O já do
presente aponta e fortalece a ambas as dimensões temporais ao mesmo tempo.151

3.5.3
O já e ainda não, o conceito de tempo e o divórcio da filosofia grega

É mister acrescentar algo acerca da compreensão de Cullmann sobre o


significado do tempo, para uma percepção mais abrangente da tensão já e ainda

149
CULLMANN, Salvation in History, p.181-182.
150
CULLMANN, Salvation in History, p.183.
151
CULLMANN, Salvation in History, p.184.
121

não. A importância da temporalidade escatológica para Cullmann é evidente


desde Cristo e o Tempo, onde mergulhou no estudo da abordagem
neotestamentária do tempo e da história. Nele, o professor enfatiza a compreensão
neotestamentária do kairós, que ele define como um ponto no tempo
especialmente favorável para um empreendimento significativo.152 Ele entende
que Jesus identificou sua paixão e morte futuras, como seu kairós especial, assim
como lida como o dia do Senhor como o kairós final, o qual virá num momento
que ninguém pode antecipar.153
Embora admitindo que os escritores do Novo Testamento não estivessem
primordialmente ocupados com o conceito de tempo como tal, Cullmann extrai do
Novo Testamento um conceito de tempo que ele considera necessário para a
compreensão de sua mensagem.154 Este conceito é por ele denominado linear155
(Hoje, Ontem e Amanhã) e se relaciona coerentemente com o processo
redentor.156 Em Cristo e o Tempo, ele diz que o símbolo do tempo, para o
Cristianismo primitivo, era uma linha oblíqua ascendente, cujo aspecto ―oblíquo
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ascendente‖ significa que o plano de Deus está em movimento progressivo para


seu alvo final.157. Entretanto, em sua obra posterior, Salvação na História, ele
insiste que, embora ainda utilize a figura da linha como orientação geral para a
história da salvação, a linha não é reta, mas uma ondulada, que pode ―demonstrar
uma variação ampla‖.158 Cullmann, com isso, quer deixar lugar no plano divino
para a resistência e pecados humanos, de modo que história da salvação também
tenha de incluir uma ―história do desastre‖.159
Cullmann contrasta esta visão de tempo com a que é encontrada no
pensamento grego. Para os gregos, o símbolo do tempo não era uma linha reta,
mas um círculo. Uma vez que para eles o tempo se movia num eterno curso
circular, no qual tudo continuava a se repetir, o fato de que o homem está preso ao

152
CULLMANN, Christ and Time, p.39.
153
LA DUE, O Guia Trinitário para a Escatologia, p.67.
154
HOEKEMA, A Bíblia e o Futuro, p.361.
155
Esse conceito de tempo linear difere consideravelmente da concepção de Bultmann. Ver:
WILLIANS: Brett. Time, History, and the Kingdom in Twentieth Century Theology: Comparing
Bultmann and Cullmann. Disponível em: https://cbts.academia.edu/BrettWilliams; Para um crítica
desta concepção, ver: BRUNNER, Emil. La Esperanza del Hombre. Tradução J. Telleria. Bilbao:
Desclée de Brouwer, 1973, p.49-65.; e MOLTMANN, Jürgen. A Vinda de Deus: Escatologia
Cristã. Tradução Nélio Schneider. São Leopoldo: Unisinos, 2003, p.26-29.
156
CULLMANN, Christ and Time, p.51.
157
CULLMANN, Christ and Time, p.51, 53.
158
CULLMANN, Salvation in History, p.15.
122

tempo era experimentado como uma escravidão e uma maldição no pensamento


grego. Portanto, a redenção, para os gregos, significava ser livre do tempo e ser
transferido para um além atemporal.160
Para Cullmann, no Cristianismo primitivo, porém, a salvação é concebida
estritamente em termos de um processo de tempo:
―A consumação vindoura é um futuro tão real quanto a obra redentora passada de
Jesus Cristo, e apesar do fato de ser ela o ponto central interpretador de todos os
tempos é, no entanto, do ponto de vista da igreja, um passado real, exatamente
como o presente da igreja, que é marcada por um caráter inteiramente condicionada
pelo tempo, e está presa a esse passado e àquele futuro.‖161
Adotando, como sua própria, o que ele denomina a posição do Cristianismo
primitivo, Cullmann, então, rejeita qualquer ―diluição e reinterpretação filosófica
do tempo em uma ―metafísica atemporal‖.162 Ele encontra um exemplo desse tipo
de metafísica em Platão. Ao passo que para os cristãos primitivos, a eternidade é
163
entendida simplesmente como uma linha de tempo interminável , para Platão a
eternidade é atemporal, qualitativamente diferente do tempo.164
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Ratzinger ilustra como Cullmann demonstra o enfrentamento de dois


conceitos de tempos contrapostos:
Primeiro está o pensamento grego, que compreende o tempo de modo cíclico:
tempo é um círculo fechado e, por conseguinte, um eterno retorno. Isso faz com
que o tempo deva ser entendido como escravidão, como maldição. Pensando dessa
maneira, parece impossível que se possa buscar a salvação no tempo. A salvação
somente pode consistir em escapar do círculo do tempo. É necessário, portanto, que
seja buscada na fuga para a eternidade atemporal. A metafísica, quer dizer, a busca
da salvação fora do tempo, se converte em expressão de uma negação do tempo e,
justamente por isso, se encontra em contraposição estrita de uma visão fundamental
da fé cristã [...] Em segundo lugar, temos o pensamento bíblico que, à diferença do
conceito cíclico do tempo próprio dos gregos, dá ao tempo uma interpretação
linear: o tempo é visto no conceito ascendente entre ontem, hoje e amanhã.
Enquanto linha ascendente, essa concepção oferece o espaço no qual podemos
verificar a realização de um plano divino. Expresso com outras palavras: a salvação
se realiza dentro de coordenadas temporais, ou seja, tempo e salvação se
relacionam mutuamente. 165
Isso nos leva a uma divisão ternária do tempo, na qual Cullmann descobre
o ―denominador comum‖ ao Antigo e ao Novo Testamentos.
Na concepção cronológica judaica, existe somente um acontecimento
fundamental no tempo depois da criação: a parusia, com o que começa um novo

159
CULLMANN, Salvation in History, p.78.
160
CULLMANN, Christ and Time, p.95.
161
CULLMANN, Christ and Time, p.53.
162
CULLMANN, Christ and Time, p.53.
163
CULLMANN, Christ and Time, p.69.
164
CULLMANN, Christ and Time, p.61.
165
RATZINGER, Joseph. Escatología, p. 60.
123

eon. Esse evento que separa os dois eons se situa no futuro. Jesus, com a sua
mensagem, mudou de modo decisivo esse conceito fundamental na partição do
tempo. A partir de Jesus, o centro do tempo deixa de situar-se no futuro e passa a
localizar-se no passado, ou no presente de Jesus e dos Apóstolos.
Cullmann defende que a metafísica fora uma transformação do
pensamento originário do cristianismo, que considerava a história da salvação
vinculada a uma linha temporal ascendente. Essa transformação, segundo
Cullmann, é a raiz da heresia escatológica que o cristianismo permitiu que fosse
disseminado em seu meio através do gnosticismo e do docetismo, por exemplo.
Sua teologia não pode ser desassociada da reafirmação do tempo e da história no
contexto da obra da salvação.166 Na cruzada contra a metafísica helênica,
Cullmann chega ao ponto de não aceitar que se aplique o conceito
―atemporalidade‖, nem ao próprio Deus, preferindo utilizar o termo
―temporalidade infinita‖.167

3.5.4
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O já e ainda não e o culto judaico-cristão

A tensão já e ainda não se manifesta de uma forma simbolicamente tangível


na vida do culto da comunidade cristã, a qual teve sua origem no culto
veterotestamentário. Cullmann articula essa ideia com especial zelo. 168 Na igreja,
no culto, na liturgia e, em especial na celebração eucarística169, num caminho
direto, o passado e o futuro da história tornam-se presentes, e a história da
salvação, com sua tensão já e ainda não, deixa de ser um conceito teológico para
transformar o coração de toda vida e fé bíblica que pulsam.170
Todo o culto que nós ouvimos na Bíblia faz o passado e o futuro presente. Isto é
verdade sobre o culto Judaico. Entretanto, uma vez que a história da salvação no
Novo Testamento é essencialmente caracterizada tensão entre o já e o ainda não,
entre realização do passado e expectativa de consumação, na Igreja Cristã, a
correspondência entre o tema da história da salvação e sai realização se torna

166
ILLANES J. L.; SARANYANA J.I., Historia de la Teología. Madrid: Biblioteca de Autores
Cristianos, 1995, p. 352.
167
RATZINGER, Escatología, p. 60.
168
Em suas ideias relacionadas ao culto, Cullmann apela para a erudição na matéria litúrgica de
outros teólogos de seu tempo, citando especialmente Theologie der Liturgie, de C. Vagaggini, e
Prophétisme sacramentel, de J.J. Von Allmen. CULLMANN, Salvation in History, 1967, p.313.
169
Para aprofundamento sobre esta interessante conexão entre a esperança escatológica e a
Eucaristia, sugere-se: BENATI, Rosemir Mauro. A Santa Ceia como um evento escatológico.
Igreja Luterana, São Leopoldo, v.72, Jun. 2013, n.1, p.5-45.
170
CULLMANN, Salvation in History, p. 313-315.
124

completa no culto. A concretização do passado e a expectativa de consumação são


experimentadas no culto cristão como realidades presentes.171
Suas pesquisas preliminares sobre o Culto Primitivo Cristão provam-se
extremamente úteis nas descobertas que Cullmann vai fazendo. A crença na
presença real do Cristo ressuscitado, o qual visitava seus discípulos de forma
antecipada na refeição do ―partir do pão‖, era tão viva e categórica, que os
primeiros cristãos, exceto em ocasiões particulares de caráter missionário, não
admitiam se reunir para uma celebração sem realizar a Ceia Sagrada.172
[...] Sabemos que no cristianismo primitivo todo o culto era considerado como as
primícias do Reino de Deus: na igreja reunida já se produzia o que, no fim dos
tempos, haveria de ser uma realidade durável. Isso caracteriza o culto conferindo-
lhe sua grandeza [...] É principalmente durante o ―partir do pão‖ da celebração
eucarística, que a ―vinda‖ de Cristo, ou antes, o seu anunciado regresso, acha sua
antecipação. Só no fim dos tempos ele voltará à terra; entretanto, volta já agora ao
seio de sua igreja reunida para o partir do pão [...] E para quantos, durante o partir
do pão, experimentavam sua vinda, a esperança do retorno definitivo não haveria
de ser um dogma no qual deveriam crer somente por adesão à tradição. Eles
sabiam, com efeito, por experiência pessoal, que o Senhor podia descer à terra e
renovavam esta experiência cada vez que se reuniam e oravam juntos pela vinda do
ressuscitado.173
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No evento sacramental, acolhia-se verdadeiramente uma antecipação da


refeição Messiânica que foi prometida quando da união final com Cristo. A
plenitude do já era manifestada.174 A conexão com o Senhor e Salvador encarnado
se fazia visível, provava-se autêntica o relacionamento íntimo que possuíam com
Ele.175 Cullmann vê provas dessa fé nas palavras da instituição que referenciam ao
vinho novo que Jesus mencionava que beberia no Reino futuro. Por outro lado, na
alusão da consumação escatológica do ainda não, Paulo, quando em 1 Coríntios
11, expressou que, em cada participação eucarística, anunciava-se a morte do
Senhor ―até que ele venha‖. Assim também reconhecia Cullmann, a oração
eucarística Maranata como um poderoso demonstrativo da personalidade
temporalmente paradoxal da esperança cristã:
Maranatha, esta antiga oração significa, para aqueles que a pronunciavam, ao
mesmo tempo: ―Senhor, vem no fim dos tempos para estabelecer teu reino!‖ e:
―Vem já agora enquanto estamos aqui reunidos para a Ceia!‖ A distinção entre o
presente e o futuro entre a antecipação e a vinda definitiva – distinção que nos é
necessário fazer do ponto de vista teológico e teórico – quase não podia ser
percebida pelos que estavam reunidos para o culto. Para eles, as duas coisas deviam

171
CULLMANN, Salvation in History, p.315.
172
CULLMANN, Salvation in History, p.315-316.
173
CULLMANN, Cristologia do Novo Testamento, p.277-278.
174
CULLMANN, Salvation in History, p.184.
175
CULLMANN, Salvation in History, p.317.
125

estar tão estreitamente ligadas que ao experimentarem a presença cultual do Cristo


experimentavam, em alguma medida de maneira antecipada, sua parusia
definitiva.176

3.5.5
O já e ainda não e a ética cristã

Já vimos que o comportamento ético está inserido no contexto da tarefa


missionária que a igreja tem diante de si nesta fase eqüidistante que participa; que
sua motivação está no evento central crístico de Deus em favor do ser humano,
que seu agente catalisador é o Espírito Santo, e que os princípios orientadores
são o amor que nasce na verticalidade do evangelho e se espalha nas múltiplas
situações horizontais concretas que nos encontramos e a consciência sensível que
interpreta cada oportunidade específica à luz da história da salvação. Nesta seção
destrincharemos um pouco em sobre a dimensão que o já e o ainda não trazem à
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plataforma comportamental do cristão.


Cullmann nota que o conflito carne e Espírito que Paulo aduz, por exemplo,
em Gálatas 4, encontra certo sossego na tensão escatológica. A impossibilidade de
amar ao próximo da mesma maneira que amamos a nós mesmos (quando somos
dirigidos pela carne) é tornada possível através do Espírito. Somente o Espírito
pode neutralizar a propensão destruidora da carne. O drama é que, no presente
período, enquanto já contamos com a presença pneumatológica, que representa os
primeiros frutos do futuro, ainda permanecemos vulneráveis aos efeitos e
fraquezas do tempo presente em que não nos desvencilhamos do poder mortal da
carne.177
É importante que se recorde que o entendimento de Cullmann do vocábulo
carne (sarks, em grego) pouco tem a ver com a noção dualista filosófica carne x
alma, como se ela representasse a matéria humana, a qual, intrinsecamente, é o
depósito de conotações negativas e maléficas em detrimento de um lado imaterial
positivo e carente de liberdade. Cullmann usa o termo carne partilhando do
significado mais aceito na teologia paulina, isto é, como uma expressão que quer
fazer referência à natureza pecadora do ser humano, a qual passou a lhe

176
CULLMANN, Cristologia do Novo Testamento, p.278-279.
177
CULLMANN, Salvation in History, p.334.
126

acompanhar após o evento da Queda e, para a qual foi providenciada solução


através do ―perdão dos pecados [...] o fruto da história da salvação.‖ 178 E, para
Cullmann, não é só a carne (natureza pecadora do indivíduo) o problema
relacionado ao ainda não; há um elemento mais societário que sofre as
conseqüências da realidade imperfeita, e que aguarda por um fenômeno redentor.
Em termos de ética, o fato de que a carne é subjugada, mas ainda não destruída,
corresponde com a tensão do já e do ainda não que nós reivindicamos ser a chave
para toda história de salvação. Relacionado ao ―ainda não‖, está o fato de que não
somente a carne, mas também toda a estrutura deste mundo continua existindo, e
isto, também, tem importantes conseqüências éticas. Nossa tarefa consiste no fato
de que nós devemos viver dentro desta estrutura divinamente ordenada que nós
sabemos que está passando, aguardando a vinda do Reino. A dialética da ética
neotestamentária descansa no fato de que devemos reconhecer esta estrutura como
uma que ainda existe pela vontade de Deus, trabalhar nela e com ela,
constantemente tentar melhorá-la, e ainda não ser absorvido por ela. Devemos
cuidar para nunca considerá-la nosso objetivo final, nem positivamente, numa
tentativa de apoiar-se nela para o estabelecimento de um reino de Deus terrenal,
nem negativamente, numa tentativa de destrocá-la através de meios humanos.179
Nesse contexto, Cullmann aborda alguns desdobramentos sociais. O
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primeiro deles, a relação da tensão no comportamento do cristão para com o


governo. Na conjuntura atual do ainda não, Cristo rege o mundo por meio de
governos civis, independentemente de serem compostos por cristãos ou não, e nós
somos chamados a colaborar com eles no cumprimento de sua missão. Mas,
mesmo diante de um governo supostamente ―bom‖, nossa atitude deve
permanecer crítica. Sabemos que ele não pode ser invocado como um valor
último e supremo para nós e, se ele nos proíbe de dar a Deus o que pertence a
Deus, ou se eleva à condição de ídolo, então devemos resisti-lo. No entanto, sem a
idéia de uma cruzada, por exemplo, porque ela é estranha ao Novo Testamento e é
irreconciliável com a tensão entre o já e o ainda não. Todos esses elementos,
incorporados à prática, não oferecem uma elucidação simplificada: ―Certamente,
nós vemos, no caso de nossas obrigações sociais para com o estado, quão difíceis
e complexas decisões éticas podem chegar a ser por causa da tensão.‖180
Assim, as afirmações positivas de Paulo sobre o estado em Romanos 13 são
referentes ao mesmo governo pagão romano mencionado no capítulo 13 de
Apocalipse. Paulo certamente teria concordado com João no contexto de
deidificação do estado (culto ao imperador, ―a besta do abismo‖). Qualquer ética
interina como uma ética do intervalo deve, portanto, ser formulada para cada caso
segundo as normas mencionadas [em suma, atitude de apoio ou resistência]. A

178
CULLMANN, Christ and Time, p.222.
179
CULLMANN, Salvation in History, p.335.
180
CULLMANN, Salvation in History, p.336.
127

ética δοκιμάζειν é o maior dom do Espírito que nós precisamos para aplicar
corretamente as normas dadas a nós. 181
Cullmann não elabora nem avança mais do que isso; oferece, outrossim,
estas diretrizes, mas deixa a questão, em última instância, em aberto, sem explorar
outras situações onde uma ética mais operante pudesse ser de grande valia para as
interações sócio-políticas. Poderíamos ver aqui algo de omissão que traria um
pouco de debilidade em sua teologia. Ou ainda, entendê-lo como exegeta que se
limitou ao objetivo de sua pesquisa sem explorar todas as possibilidades
sistemáticas que dela poderiam decorrer.
Essa mesma síntese é perceptível quando Cullmann se debruça a tocar na
relação da ética cristã com o que passou a ser chamado de valores culturais, os
quais são oferecidos na estrutura divinamente ordenada de mundo. Segundo
Cullmann, eles também precisam ser avaliados de acordo ao nosso conhecimento
do kairós na história da salvação.
A importante inferência que Paulo tira da ―brevidade do tempo‖ em 1 Coríntios
7.29, que aqueles que estavam casados deveriam viver como se não estivessem,
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que aqueles que choravam deveriam viver como se não chorassem, que aqueles que
se alegravam como se não tivessem do que se alegrar, e aqueles que compravam
como se nada possuíssem, contém a orientação mestra para toda ética caracterizada
pela tensão já e ainda não da história da salvação: ὡς μὴ [como se não, em grego].
O ponto aqui está no ―não‖, é claro. Mas há ainda casamento, há ainda luto, há
ainda festa, há ainda comércio, e tudo isso deve ser levado em consideração na
perspectiva ética de Paulo, como é demonstrado na maneira como ele aplica estas
exigências éticas em todas as suas cartas. Não ousemos desconectar os imperativos
de seus contextos temporais.182
A ética lúcida da tensão já e ainda não se faz útil para evitar duas
inferências do fato de que Deus deseja que essa estrutura ainda exista e, para
fortalecer e encorajar a caminhada como povo de Deus:
Por um lado, que não se busque nas estruturas do mundo as normas de vida. Estas
devem ser auferidas da história da salvação. Por outro, que nossa ciência do “ainda
não” ou mesmo do fato que o pecado humano está incluído no plano salvífico de
Deus, não nos sirva de pretexto para compromissos éticos. Pelo contrário, todos
nossos atos podem ser inspirados pelo ―já‖ do fim antecipado em Cristo. O
conhecimento do ―ainda não‖ linked com o conhecimento deste ―já‖ pode ter
influência ética somente se ele intensifica nossa consciência de sermos
cooperadores de Deus em levar a cabo seu plano salvador na história. É isto que
caracteriza as decisões éticas. Se essa consciência for realmente enraizada na
revelação da história da salvação que descrevemos, nosso fracasso em ver sucesso
não evocará nem complacência farisaica nem desespero em nós. Nós sabemos que
Deus está realizando seu plano salvador em nossa presença, ainda que os detalhes
de seus caminhos são escondidos de nós. Nós também sabemos que ele conta

181
CULLMANN, Salvation in History, p.336.
182
CULLMANN, Salvation in History, p.336-337.
128

conosco como seus companheiros na missão, ainda que o processo salvífico e sua
consumação não dependam de nós. Este conhecimento nos fortalece no que temos
que enfrentar para que possamos trabalhar com confiança. Também nos dá a
dignidade de trabalharmos na causa de Deus com fidelidade e perseverança, sem
ser distraído por êxitos ou fracassos.183
Vale ressaltar um último comentário, relacionado a uma afirmação de
Cullmann, a qual entendemos epilogar bem com sua filosofia de vida, enaltecendo
aquilo que lhe é mais característico da ética centralizada no paradoxo temporal:
imperativos firmados no indicativo.
Nós somos santos; isto significa que deveríamos nos santificar a nós mesmos. Nós
recebemos o Espírito; isto significa que deveríamos ―andar no Espírito‖. Em Cristo
já temos a redenção do poder do pecado; isto significa que agora mais do que
nunca temos de batalhar contra ele. 184

3.6.
Síntese Conclusiva
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Neste capítulo, apresentamos com mais detalhe à dissertação o teólogo


Oscar Cullmann, nosso objeto de pesquisa. Conhecemos alguns acenos
biográficos, dando atenção ao seu envolvimento e contribuição à causa
ecumênica. Recordamos sua extensa produção teológica, pontuando as três obras
que constituem o principal referencial teórico desta pesquisa. Verificamos os
posicionamentos centrais do professor teuto-francês em quatro lócus distinguíveis
em sua teologia: a cristologia, a eclesiologia, a escatologia, e, claro, o leitmotif
cullmanniano: a História da Salvação. Nossa seção final ocupou-se de dissecar o
nosso objeto formal, a tensão já e ainda não, dentro do pensamento do teólogo
luterano. Verificamos como Cullmann chegou ao insight deste paradoxo
escatológico e como o elaborou. Destacamos sua ilustração clássica, o Dia D, o
porque da preponderância do já ao ainda não, bem como as implicações da
referida tensão na vida do cristão. Concluímos que Cullmann é um teólogo
consideravelmente rico e eclético, que merece ser estudado e explorado na
reflexão da atualidade, e que especificamente sua tensão já e ainda não foi uma
(re)descoberta essencial na perspectiva do entendimento do Reino de Deus e que
poderá ser muito útil em nossa proposta de diálogo com a missiologia.

183
CULLMANN, Salvation in History, p.337-338.
184
CULLMANN, Christ and Time, p.224.
4.
A receptividade e a reverberação do já e ainda não de Cullmann

Mencionamos, nos primeiros capítulos, como a escatologia de Cullmann foi


dialética e crítica de posicionamentos expressivos na teologia, anteriores e
contemporâneos à sua atividade, como os de Schweitzer, Dodd, Barth e
Bultmann. Passaremos agora, nesta parte final, a explorar como a sua tensão já e
ainda não foi acolhida, confirmada e retrabalhada por outros teólogos e
documentos teológicos destacados, equevos e posteriores a Cullmann.
Intencionalmente, buscaremos representantes de matizes protestantes e
católicas que a ajudaram a prevalecer e a se robustecer. Escolhemos dez
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representantes, sendo cinco de cada tradição. De forma alguma entendemos que


estes nomes esgotam as alternativas que existem; muitos outros pensadores
poderiam ter sido chamados para o exercício dialogal com a tensão escatológica
temporal cullmanniana, e talvez devessem, num trabalho futuro.1 A escolha
destes, no entanto, parece-nos adequada para as intenções deste capítulo que não
são a de arrolar todos os expoentes que entraram em conversa com Cullmann
nesta sua tese, mas sim de exemplificar alguns deles, para a demonstração de que
o teólogo da Basiléia deixou um legado prolífico e aberto.
Nossa decisão deu-se por Ladd, Pannenberg, Moltmann, N.T. Wright e
Míguez Bonino, do lado protestante. E por Daniélou e Thils, pela Lumen Gentium,
e mais Ratzinger, Gutiérrez e Boff, do lado católico. Para isso, seguimos dois
critérios essenciais: primeiro, a importância da tensão escatológica no trabalho
destes teólogos e as possibilidades variadas de desdobramentos que surgem.
Segundo, considerando a dimensão geográfica e cronológica dos mesmos,
preferimos trabalhar com teólogos representativos dos hemisférios norte e sul,

1
O professor de sistemática e ética da Universidade de Western Cape, na África do Sul, Ernst M.
Conradie em sua obra Hope for the Earth: Vistas for a New Century (Eugene: Wipf and Stock,
2000), dedicou um capítulo para a tensão já e ainda não na reflexão escatológica do século 20,
onde elenca um vasto número de importantes teólogos (alguns fazem parte deste capítulo) que se
valeram do paradoxo em seus expedientes e debates, dentre os quais se encontram: Walther Kreck,
130

tanto mais próximos quanto mais longínquos do momentum de Culmmann. Outra


nota introdutória requer ser apresentada: ao decidir-nos por dez teólogos para a
“roda de debate”, optamos por quantidade, para demonstrar a extensão e a
pluralidade da interação do paradoxo escatológico em questão. Poderíamos ter
adotado menos associados e, nesse caso, aprofundado com mais diligência cada
um, porém, este não fora nosso programa. Além disso, outras perspectivas de
diálogo com os teólogos escolhidos poderiam ser exploradas e, novamente, o
objetivo do capítulo não é o de decompor a teologia destes teólogos ou exaurir as
viabilidades.

4.1.
George Elton Ladd

Um dos primeiros a reverberarem a concepção temporal já e ainda não


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elaborada por Cullmann foi o professor de Exegese do Novo Testamento, teólogo


norte-americano de tradição batista e precursor em reclamar a relevância da
teologia basileica, George Eldon Ladd (1911-1982). Há tanta capacidade de
articulação em Ladd, o qual está tão próximo do professor luterano, que, em
muitas pesquisas, a tensão já e ainda não aparece concatenada primordialmente a
ele.
Ladd, começando com o trabalho Questões Cruciais sobre o Reino de Deus,
em 1952, depois em O Evangelho do Reino, de 1959, e finalmente em A Presença
do Futuro, de 1974, trata o paradoxo escatológico com maturidade considerável.
Sua tese central afirma que o Reino de Deus é o reinado redentor dinamicamente
ativo de Deus para estabelecer seu governo entre os homens, o qual aparecerá no
final da era como um ato apocalíptico, no entanto, já entrou na história humana na
pessoa e missão de Jesus para vencer e libertar os homens do poder do mal, bem
como trazê-los para as bênçãos do reinado de Deus.2

Carl Braaten, Walter Rauschembusch, Reinhold Niebuhr, Johann-Baptist Metz, Gerhard Sauter,
Richard Shaull, Ruben Alves, James Cone e Rosemary Ruether.
2
LADD, GEORGE E. The Presence of the Future: The Eschatology of Biblical Realism. Revised
edition. Grand Rapids: Eerdmans, 1996, p.218.
131

Ladd fora também conhecido como pai da escatologia inaugurada e, assim


como Cullmann, valeu-se da expressão presente-futuro em relação ao Reino para
referir-se às experiências presentes do Reino futuro de Deus na vida dos crentes e
da igreja nesta etapa em que vivem paralelamente em “duas eras”. Assim ele
discerne o conceito das “duas eras” no ministério de Jesus:
A era presente, na qual o mundo está cativo ao pecado (o apóstolo Paulo fala de
Satanás como o “Deus desta era”), e a era do porvir, quando o mal será destruído e
o Reino de Deus consumado [...] A era da consumação não somente está próxima;
ela na verdade já está presente. Ainda assim, o tempo da consumação apocalíptica
permanece no futuro [...] De alguma forma, o futuro está já no presente, há uma
“realização presente” do Reino. E ao mesmo tempo, nós ainda aguardamos uma
consumação futura.3
Assim como seu colega franco-alemão, Ladd falou de forma clara da
realidade de ambas as dimensões temporais:
Não se trata de um reino apocalíptico, mas de uma salvação no presente. Jesus não
prometeu seus ouvintes um futuro melhor ou lhes garantiu que em breve entrariam
no reino. Pelo contrário, ele ousadamente anunciou que o Reino de Deus tinha
vindo a eles [...] Esta não era uma nova teologia, ou uma nova ideia, ou uma nova
promessa; era um novo evento na história. [...] Por outro lado a mensagem de
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realização é acompanhada por uma visão de Reino de Deus que é futurista e


escatológica: nós ainda esperamos sua futura consumação.4
Como pode o Reino de Deus ter um já e um ainda não? Ladd encontra a
chave no significado dinâmico que o Reino de Deus ou o Reino dos céus pode
apresentar. Ele encontrará pelo menos quatro modalidades para a expressão nos
evangelhos: a) um sentido mais abstrato de reinado divino, seu senhorio real sobre
toda a criação; b) um sentido relacionado à futura ordem desta criação, ao seu
domínio prometido sobre tudo e todos; c) o Reino como algo presente entre a
humanidade, Deus governando hoje; d) um Reino que é uma espécie de condição
presente à qual as pessoas são chamadas a participar.5 Ladd argumenta que essa
compreensão multidimensional do Reino, a qual mescla a presença e a
intervenção de Deus para o já e para o ainda não, estava presente não só no
discurso de Jesus, mas fazia parte, em certo sentido, da esperança messiânica
judaico-rabínica. Entretanto, havia um elemento distinto que colocava o ensino de
Jesus em rota de contradição com a escatologia rabínica, argumenta Ladd. Jesus
ensinava que, antes da consumação escatológica, uma realização real da esperança
veterotestamentária estava ocorrendo na sua pessoa e missão. Nele, o Reino futuro

3
LADD, The Presence of the Future, p.118-121.
4
LADD, The Presence of the Future, p.112,114.
5
LADD, The Presence of the Future, p.122-123.
132

estava invadindo a história humana, não tanto como uma instituição, mas como
uma ação dinâmica divina nas pessoas, antecipando as realidades futuras.6
Aprofundando sua proposição, Ladd ainda aborda o Reino de Deus como
um poder futuro demonstrado no ministério de Jesus através de exorcismos e
curas; uma atividade exclusiva de Deus; uma incisão sobrenatural na história e na
pessoa de Jesus; e como salvação e vida eterna, no sentido de plenitude em todos
os aspectos do ser (perdão e justiça). O norte-americano ainda discute a relação
entre Reino e Igreja. Segundo o norte-americano, o Reino não deve ser
identificado com a Igreja, no que concorda com Cullmann; o Reino cria a Igreja e
a Igreja é a comunidade do Reino; por outro lado, a Igreja pode ser um
instrumento do Reino e dar testemunho deste Reino em palavras e ações, mas não
pode se tornar ou construir o Reino, ela “é o povo da era que virá, vivendo na era
presente [...] para trazer à humanidade as bênçãos da era do porvir.” 7 Nessas
concepções, Ladd concordava com o teólogo holandês Herman Ridderbos 8, quem
também, quase simultaneamente, espelhava a tensão temporal escatológica de
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Oscar Cullmann.
Apesar de concordar com a tensão já e ainda não de Cullmann, Ladd
também tinha pontos conflitantes relacionados ao seu entorno, como pontua
Thomas Hatina, professor canadense, num recente estudo que fez sobre a teologia
do Novo Testamento:
Diferentemente de Cullmann, que via revelação como um evento permanentemente
em andamento nas comunidades de crentes através do processo de reinterpretação
de tradições mais antigas da história da salvação, Ladd compreende história da
salvação (que ele chama de história redentora) como uma série de eventos
registrados na Bíblia onde Deus se revela a si mesmo. Para Ladd, cada geração de
crentes não pode “corrigir” ou “reinterpretar” o Novo Testamento para agregar
mais plenitude no avanço da história porque a revelação está fixada. O que a igreja
faz é engajar-se numa pregação que recita, não reconta, os atos salvíficos de Deus
na história como eles foram apresentados na Bíblia.9

6
LADD, The Presence of the Future, p.136.
7
LADD, The Presence of the Future, p.149-298.
8
RIDDERBOS, Herman. The Coming of the Kingdom. Kampen: Kok, 1950.
9
HATINA, Thomas H. New Testament Theology and its Quest for Relevance. New York:
Bloomsbury, 2013, p.143.
133

4.2
Wolfhart Pannenberg

Proveniente da fecunda faculdade evangélica da universidade de


Heidelberg, Wolfhart Pannenberg (1928-2014), conhecido sistemático protestante
do século XX, é o segundo teólogo que aduzimos para demonstrar a valência do
enfoque escatológico de Cullmann. Gibellini, historiador católico que tem nos
auxiliado nas reconstruções históricas desta pesquisa, defende que é possível
perceber o cruzamento entre eles desde, pelo menos, o trabalho de Pannenberg
com o grupo conhecido como “círculo de Heidelberg”, na década de 50. Os
debates e os congressos organizados pela turma de jovens teólogos estimularam
Pannenberg a adentrar no terreno de uma “concepção de teologia da história”
(geschichtstheologische Konzeption).10 Seus artigos logo começaram a chamar a
atenção e ganhar espaço no debate da época, sendo “encarado como um novo
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início no campo da teologia evangélica, até então polarizada nas posições


contrapostas de Barth e Bultmann.”11
É verdade que Pannenberg e Cullmann compartilham algumas ideias
comuns, como o interesse especial pela relação entre a história e a fé12, o desejo
de uma orientação teológica escatológica e principalmente a ressurreição de
Cristo13, além do esforço por refutar os pressupostos existencialistas de Bultmann.
Cullmann mesmo se dera conta da convergência, como atestam seus comentários
no prefácio à terceira edição de seu Cristo e o Tempo, em 1962, e também em
Salvação como História, de 1965.14 Porém, mesmo com tal similaridade de
interesses, seria incorreto agrupar os dois na mesma escola de pensamento. Se por
um lado há pontos de contato entre os dois, por outro há diferenças importantes
entre ambos os esquemas teológicos. Dentre as diferenças, uma é bastante
significativa pelo fato de ir ao encontro da moldura teológica básica de Cullmann.

10
GIBELLINI, A Teologia do Século XX, p.270.
11
GIBELLINI, A Teologia do Século XX, p.271.
12
Para conhecer mais sobre o profundo interesse de Pannenberg na história: Basic Questions in
Theology. London: SCM, 1970, especialmente o capítulo “Redemptive Event and History”; e
Revelation and History. New York: Macmillan, 1969.
13
PANNENBERG, Wolfhart. Rivelazione come storia. Bologna: Dehoniane, 1961, p.183.
14
GIBELLINI, A Teologia do Século XX, p.276.
134

Pannenberg, assim como Cullmann, insistiu na revalorização da história


como âmbito de revelação.15 Um de seus maiores logros foi reabilitar a
escatologia futura e ampliá-la, sem deixar de conectá-la com a história. Israel veio
a conhecer Deus como aquele que age na história, ou seja, o futuro está conectado
com a história. Deus revela a si mesmo indiretamente, através de atos na história,
o que está muito próximo, a princípio, do entendimento de Cullmann. No entanto,
a forma como esta manifestação salvífica de Deus se manifesta na história difere
substancialmente. O próprio Pannenberg, ressaltando sua apreciação à teologia de
Cullmann, faz a crítica pontual de sua História da Salvação16. Para Pannenberg, a
moldura da História da Salvação de Cullmann consiste numa série de eventos
divinos relacionados entre si, em uma continuidade e progressão para o bem do
supremo evento salvífico realizado na cruz, bem como a ressurreição de Cristo, o
centro da história. No entanto, esta linha de eventos salvíficos estaria radicalmente
divorciada do resto da história, onde Deus também age salvificamente. Enquanto
concede a alguns eventos históricos mais relevância para a salvação que a outros,
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Pannenberg busca enfatizar a unidade de toda a história como história de Deus.


Para o professor alemão-polonês, a história “especial” de Cullmann dentro da
história geral deve ser rejeitada enquanto construção teológica por envolver uma
seleção de eventos que dependeriam demais de uma “decisão de fé” e muito
pouco de métodos historiográficos apropriadamente concebidos.
Pannenberg tampouco endossa a interpretação de Cristo como evento
central da história. Para ele, a categoria de centro do evento de Cristo deve ser
subordinada à de prolepse: “É somente porque em Jesus emergiram e foram
inaugurados o destino escatológico e o futuro da humanidade que ele pode ser
considerado o centro que a tudo recapitula, sem prejuízo da abertura de tal
humanidade ao futuro”.17 A ideia de prolepticidade subordina a si à da

15
O próprio Cullmann notou a convergência e as diferenças com Pannenberg na valorização da
perspectiva histórica, como nos é conhecido pelo Prefácio à terceira edição de Cristo e o Tempo
(1962), assim como em Salvação como História (1965). Ambos foram importantes em realizarem
um deslocamento de eixo – da palavra à história – na teologia protestante, superando, sobretudo o
reducionismo da teologia existencial, que não demonstrava muito interesse por uma história da
salvação ou pela história universal, interessando-se quase que exclusivamente pela história
individual.
16
PANNENBERG, Wolfhart. Weltgeschichte und Heilsgeschichte. Geschichte – Ereignis und
Erzahlung, ed. Reinhart Koselleck and Wolf-Dieter Stempel, Munich: Wilhelm Fink, 1973, p.307
ff.
17
PANNENBERG, Wolfhart. Cristologia: Lineamenti fondamentali. Brescia: Queriniana, 1974,
p.548.
135

centralidade, em Pannenberg. O evento do Cristo é o centro unificador da história


na humanidade e do processo do mundo, enquanto a prolepse do fim e da
conclusão da história.
Gibellini resume as diferenças entre o enfoque de Pannenberg e Cullmann
com muita lucidez. Julgamos apropriado compartilhar seu raciocínio:
O interesse de Cullmann é mais bíblico e soteriológico; ele se pergunta: como
realiza Deus a salvação? E responde: em uma história de salvação, que atinge seu
acme em Cristo, pelo qual Cristo é o centro da história. Além disso, para Cullmann
(mas também para a teologia católica), a revelação acontece em atos históricos e
acontecimento lingüístico. O interesse de Pannenberg é mais sistemático; ele se
interroga sobre a estrutura da revelação (e não sobre a salvação, se bem que a
revelação seja salvífica), e se pergunta: como Deus se revela? E responde: Deus se
revela indiretamente em fatos históricos, que continuam a ser fatos, ainda que
cheguem a nós veiculados por tradições históricas. [...] Se em Bultmann permanece
somente um evento de salvação (Heilsgeschehen) específico, que acontece e se
consuma na interioridade da consciência com a acolhida do querigma na fé; em
Cullmann o evento da salvação se situa em uma história da salvação
(Heilsgeschichte); Pannenberg prefere falar de história universal
(Universalgeschichte), porque teme que a posição de Cullmann leve a conceber a
história da salvação como uma espécie de cripto-história, que, embora conferindo
sentido à história universal em seu conjunto, não seja acessível aos princípios
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gerais da investigação histórica, mas só possa ser afirmada mediante a decisão da


fé.18
Feito algumas ressalvas conflitantes, importa-nos principalmente admitir a
acolhida de Pannenberg da tensão temporal escatológica. É possível encontrá-la
na “magistral” 19 Teologia Sistemática; já no segundo volume desta, Pannenberg
mexe com a escatologia conectando-a com a criação, num casamento muito
interessante – ali já se percebe alguma inclinação do teólogo em verificar a tensão
já e ainda não na escatologia a partir da protologia:
O louvor da criação a Deus, do qual falam os salmos, acontece sempre já na
antecipação da consumação escatológica. Em sua luz, a criação louva a Deus já
agora por meio de sua subsistência como realidade finita, porque é nisso que as
criaturas são o que Deus queria que fossem.20
Entretanto, é no volume três de seu compêndio sistemático, que Pannenberg
apresenta “seu tratamento definitivo dos temas da escatologia”,21 fazendo uso do
binômio de Cullmann quando se refere ao já e ainda não típico da esperança
cristã.22 Nota-se que ele usa a mesma expressão “a presença do futuro” em sua

18
GIBELLINI, A Teologia do Século XX, p.276-277.
19
LA DUE, O Guia Trinitário para a Escatologia, p.142.
20
PANNENBERG. Wolfhart. Teologia Sistemática. v.2. Tradução Ilson Kayser. Santo André:
Paulus. 2009, p. 255.
21
LA DUE, O Guia Trinitário para a Escatologia, p.142.
22
ROLDÁN. Alberto F. La epistemología escatológica de Wolfhart Pannenberg. Teología y
Cultura. Año 1, vol. 2, diciembre 2004, p.4.
136

Teologia Sistemática, também fazendo alusão ao futuro (o “ainda não”) estando


presente (“já”) numa forma muito concreta, como “uma instância real de alguma
coisa acontecendo avançadamente”.23
Como bem observa Christiaan Mostert, no segundo capítulo de seu livro
sobre Pannenberg, o sistemático também chegou à conclusão dessa peculiaridade
escatológica do Reino a partir de sua análise do ministério, da mensagem e da
ressurreição de Jesus, para quem a ênfase do Reino como uma realidade justaposta
entre presente e futuro era diferente do tom geral da literatura apocalíptica. 24
Pannenberg acata o já e o ainda não, mas propõe que o presente seja
compreendido a partir do ainda não e não tanto do já; importa a perspectiva do
eschaton na vinda, ação e destino de Jesus. O que ainda não é – e justamente
porque ainda não é – gera uma realidade transformadora no presente: confiança,
esperança, entrega incondicional. Cullmann concordaria, mas pondo a causa para
esta fé, esperança e amor no já. Pannenberg entende que estas virtudes basilares
são orientadas e estimuladas pelo futuro. O já e o ainda não não são duas
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realidades contínuas com valores diferentes, como diria Cullmann, onde o já é o


começo de uma plenitude que o ainda não consumará. As realidades são ao
contrário, descontínuas, no pensamento de Pannenberg. O futuro, precisamente
porque ainda não aconteceu, permite que um presente de salvação venha a existir.
A eternidade entrou na história, o futuro está presente, e o ser da criação é
compreendido como a antecipação de seu futuro, isto é, há um futuro que já fora
realizado antecipadamente a nós, e ele se efetiva na busca e na vivência – sua
visão se tornou conhecida como “realismo escatológico” ou “realismo de
antecipação”.

23
PANNENBERG. Wolfhart. Teologia Sistemática. v.2. Tradução Ilson Kayser. Santo André:
Paulus. 2014, alhures.
24
MOSTERT. Christiaan. God and the Future: Wolfhart Pannenberg's Eschatological Doctrine of
God. London: T&T Clark, 2002, alhures.
137

4.3
Jürgen Moltmann

O teólogo alemão de tradição reformada Jürgen Moltmann (1926-) é, sem


sombra de dúvida, um dos escatologistas de maior expressividade na teologia
contemporânea. Suas reflexões, em vários espectros da teologia, advindos de sua
profunda experiência religiosa pós-holocausto e de seu olhar atento e perspicaz às
questões atuais, produziram um legado considerável que permanentemente
estimula qualquer pesquisador a entrar em conversa consigo; especialmente se os
assuntos estiverem conectados com a esperança cristã, a história, o Reino de Deus
e a escatologia missiológica. Gibellini defende que, na recuperação de uma
escatologia atuante na e significativa para a história, Cullmann e Pannenberg até
abriram caminho, mas teria sido Moltmann, com seu “articulado projeto” quem
mais impactou na teologia pós segunda guerra.25 De fato, a julgar pela repercussão
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e uso da escatologia Moltmanniana na reflexão teológica acadêmica, o historiador


provavelmente tenha razão.
Esperança é, sem dúvida, o tema central dos escritos de Moltmann.26
Importa-lhe sua doutrina e, principalmente, sua práxis. Ela tem a primazia, sempre
seguida e acompanhada da fé; ela é bíblica (enraizada já no Antigo Testamento),
cristológica, pneumatológica e trinitária. Torna-se eclesiológica, gerando a
missão, tarefa essencial da comunidade cristã, como afirma Cullmann. Situa-se no
encontro da história com a escatologia. Para Moltmann, a esperança humana
emerge quando lemos a história como uma moeda de dois lados: de um, o evento
que aconteceu e foi experimentado e, no verso, a novidade esperada.
Moltmann interage com Cullmann em diversos ensejos. Notadamente, na
valorização que ambos dedicam à história, por exemplo, como já mencionamos.
Quando Moltmann fala da Igreja, entende-a como uma realidade que tem um
passado, um presente e um futuro; ao passado pertence a história de Cristo e a
história da Trindade; ao presente, a ação vivificadora do Espírito Santo; e ao
futuro, o Reino de Deus. A Igreja é um sinal e antecipação desse Reino e está a

25
GIBELLINI, A Teologia do Século XX, p.281.
26
WYNNE, Jeremy J. Serving the Coming God: The insights of Jurgen Moltmann‟s Eschatology
for Contemporary Theology of Mission. Missiology: An International Review, Vol. XXXV, n.4,
Oct 2007, 439.
138

serviço do Reino vindouro de Deus.27 Também são compatíveis na oportunidade


que destinam à missiologia neste tempo de intervalo. Cullmann já falava sobre
isso, enquanto Moltmann desdobra o assunto ainda com mais atenção.
Apesar da apreciação conjunta pela escatologia, pela história e pela
missiologia, entre outros temas, Moltmann não deixa o motif da História da
Salvação de Cullmann sem críticas – não é necessário pesquisar muito para
encontrar a avaliação, o próprio Moltmann a exterioriza nos capítulos
introdutórios de seu A vinda de Deus. Numa súmula qualificativa das escolas
teológicas que lidavam com a temporalização da escatologia, após avaliar a
teologia profética, do século XVII e a escatologia conseqüente, no alvorecer do
século XX, Moltmann dedica-se a examinar Cullmann e sua História da
Salvação, a qual reconhece ser “a mais difundida das escatologias cristãs”.28 A
fonte de sua censura é dirigida à tendência de Cullmann de transpor a escatologia
para o tempo, o que Jeremy Winne retrucou defendendo que o professor de
Basiléia estaria tão somente tentando levar a história humana a sério. 29 Moltmann
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identifica pelo menos três aspectos nos quais a tese cullmanniana é, em suas
palavras, frágil. O primeiro deles é relacionado com o reiterado drama do atraso
da parusia e a clássica analogia do Dia D:
Quando o tempo entre a batalha decisiva e o victory day estende-se demais, surgem
dúvidas justificadas quanto a se ocorreu mesmo a batalha decisiva e se não se
subestimou o inimigo. Após a vitória da campanha na França em 1940, muitos na
Alemanhã acreditaram que a decisão já havia ocorrido. Seu erro foi fatal. 30
O segundo aspecto é o ponto de vista de tempo linear que Cullmann defende
como bíblico. Concordando com Pannenberg, para Moltmann, esse é um equívoco
que não pode ser sustentado:
A concepção de tempo linear não é bíblica, como pensa Cullmann, mas trata-se de
uma moderna concepção das ciências naturais, que, todavia, já pode ser encontrada
na Física de Aristóteles. Pelo fato de as épocas serem quantificadas com o auxílio
dela, torna-se impossível qualificá-la em termos histórico-salvíficos. Passado e
futuro são apenas períodos de um parâmetro indeterminado e são idênticos em suas
medidas. Somente quando uma seta é acrescentada, o tempo linear ganha uma
determinada direção temporal. Porque o futuro torna-se passado, mas o passado não
pode tornar-se futuro, o tempo “flui” do futuro para o passado. Não obstante,
contamos os anos a partir do passado para o futuro e, desse modo, declaramos
inconscientemente o futuro como passado vindouro. Cullmann imagina o futuro
histórico-salvífico de Cristo como tempo mensurável. O “juízo final” tem de ser,

27
MONDIN, Os Grandes Teólogos do Século Vinte, p.202.
28
MOLTMANN, A Vinda de Deus, p.28.
29
WYNNE, Serving the Coming God, p. 444.
30
MOLTMANN, A Vinda de Deus, p.28.
139

então, num prazo determinado, a última folha do calendário. Isso pode ser
designado, com suas próprias palavras, de “erro de perspectiva”, provocado pela
sua concepção de linearidade do tempo.31
Por último, Moltmann foca na questão da liberdade de Deus, a qual estaria
sendo tolhida na tese de Cullmann:
A teologia histórico-salvífica, que se baseia num “plano salvífico” pré-programado
de Deus, é teologia iluminista. Ela nada mais é que deísmo histórico. Deus torna-se
o relojoeiro da história universal e o forjador de um plano magistral da providência.
No momento em que se está estabelecido, ela não precisa mais intervir. O
calendário trará o “dia de Jesus Cristo”. Onde foi parar a liberdade de Deus? Onde
se experimenta a sua presença viva? Não seria o inverso: não é o “juízo final” que
traz a parúsia de Cristo, mas a parúsia de Cristo o “juízo final”? Cristo não vem
“com o tempo”, mas para transformar o tempo.32
Diante de tal distanciamento entre os pensamentos de Moltmann e de
Cullmann, podemos conjecturar que a receptividade que Moltmann concede à
tensão escatológica já e ainda não, dá-se muito mais numa dimensão variante e
abrangedora, do que meramente afirmativa e repetidora. Sua nuance fica explícita
em seus escritos:
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Este Deus está presente quando se aguardam as suas promessas em esperança e se


esperam coisas novas. No Deus que chama o não-ser ao ser, também o ainda-não-
ser, o futuro, se torna “plausível”, porque pode ser esperado. O “agora” e o “hoje”
do Novo Testamento são diferentes do “agora” do presente eterno do ser de
Parmênides, pois esse “agora” é um “de repente”, um “logo”, em que a novidade do
futuro prometido relampeja e irrompe com sua luz. Somente neste sentido pode ser
chamado de um hoje “escatológico”. “Parusia” era para os gregos a presença do
deus, e na filosofia significava a presença do ser. A “Parusia” de Cristo, porém é
entendida no Novo Testamento em categorias da espera, e por isso não significa
presentia Christi, mas adventus Christi. Não é sua eterna presença que faz parar o
tempo, mas o seu “futuro”, como afirmam os cânticos do Advento, e que manifesta
a vida no tempo; e a vida no tempo é esperança. O crente não é colocado no meio
dia da vida, mas na aurora de um novo dia, na qual noite e dia, passado e futuro
estão em conflito entre si. É por isso que o crente tão pouco vive para o dia, mas
para além do dia, na espera das coisas que conforme as promessas do creator ex
nihilo e do ressuscitador dos mortos devem vir. Essa presença da vindoura Parusia
de Deus e de Cristo nas promessas do Evangelho do crucificado não nos arranca do
tempo, nem faz parar o tempo, antes fura o tempo e move a história; não é a
negação do sofrimento por causa do não-ser, mas a aceitação e inserção da não
existência na lembrança e na esperança.”33

Vários intérpretes como Gibellini, Hoekema, Gutiérrez e Ratzinger,


posicionam a escatologia de Moltmann como orientada para o futuro, levemente
transcendentalista, pendente para um ainda não. O próprio Moltmann não vai

31
MOLTMANN, A Vinda de Deus, p.28-29. Particularmente nos inclinamos a preferir a
concepção linear Cullmanniana de tempo.
32
MOLTMANN, A Vinda de Deus, p.29
33
MOLTMANN, Teologia da Esperança, p.47.
140

negar essa inclinação, à medida que interpreta o evento de Cristo (equivalente ao


já) não tanto como realização, mas como ratificação da promessa. Cullmann, com
sua tensão entre o já e o ainda não sustentava uma relevância mais aguda da
dimensão do cumprimento em Cristo.

4.4
NT Wright

Nicholas Thomas Wright (1948-), erudito britânico em Novo Testamento,


bispo anglicano e um dos mais influentes escritores no universo protestante da
atualidade, também ressoa em seu trabalho a tensão já e ainda não do Reino de
Deus. Apesar de acrescentar modulações importantes ao pensamento escatológico
de Cullmann, a doutrina das “coisas do fim” de NT Wright como é conhecido,
também pode ser etiquetada dentro dos parâmetros da escatologia inaugurada,
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pois mantém a noção chave de que, com a vida, morte e ressurreição de Jesus
Cristo, a “era vindoura” tem sido instaurada, enquanto o “presente século”
continua ao nosso redor.
Não há dúvidas de que NT Wright é familiarizado com a teologia de
Cullmann. Num de seus livros, Paul and His Recent Interpreters, recentemente
publicado em 2013, no segundo capítulo vemos o anglicano providenciar um
panorama dos teólogos que sugeriram interpretações paulinas relevantes no
campo nas últimas décadas. Ali, entre outros, cita o posicionamento de Cullmann,
pesquisando-o em suas duas obras principais, Cristo e o Tempo e Salvação na
História. NT Wright tem estado ocupado em oferecer uma “nova perspectiva em
Paulo” ultimamente e a correspondência com Cullmann poderia chegar a ser rica
nesse sentido, ainda que não entraremos nela, por não ser nossa preocupação.
Com efeito, como precavemos no capítulo dois, a teologia de Cullmann se presta
pra servir de bibliografia e dialética para inúmeras realizações.
Mais próximo de nossa temática verifica-se, outrossim, que NT Wright já
possuía um posicionamento harmônico ao de Cullmann nas questões relacionadas
141

ao estado intermediário da alma, pertinentes à escatologia da pessoa. 34 Ambos


destoam da maioria protestante nesse ínterim, mas também não nos compete neste
trabalho explorar esse pormenor. Outro dado que tampouco exploraremos, ainda
que não poderíamos deixar de mencionar, é o fato de NT Wright partilhar
significativamente do método exegético de Cullmann, o que os leva a confiarem
nos relatos bíblicos, além da média, se comparados com outros teólogos de seus
calibres, como demonstra Laurence W. Wood; eles não possuem medo do
criticismo e do ceticismo iluminista, assim, há espaço suficiente para a “fé e o
método histórico poderem formatar uma parceria responsável”.35
Fundamental para nosso argumento é traçar o paralelismo entre NT Wright
e Cullmann no que tange a chave de leitura central do alemão, e em especial sua
ênfase temporal escatológica. Wood crê não restar dúvidas de que NT Wright
também compreende a revelação em perspectiva de uma História de Salvação.
Apenas faz uso de terminologia distinta. Wright parece ser mais inclinado ao
vocabulário da “metanarrativa” para se referir à história de salvação bíblica, à
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trama pela qual Deus está agindo no tempo e na história, onde Jesus é o clímax da
história de Israel. Apesar de usar o termo meta, NT Wright não está propondo
nada do tipo metafísico, “além” da história.36
Lado a lado a Cullmann, o britânico sustenta a magnitude e a amplitude da
obra de Cristo como evento histórico salvífico na trajetória da humanidade. Em
especial, dá destaque à ressurreição, ainda que ressalte aspectos decisivos para a
escatologia na encarnação e na ascensão de Cristo. Afirma que nunca ocorrerá
algo no futuro que se compare, em importância, à ressurreição; ela é a garantia da
nossa ressurreição, a qual, por sua vez, é o coração da nossa esperança. Wright
dedica seu livro Surpreendido pela Esperança para tratar deste tema, partindo da
premissa que os cristãos estão substancialmente confusos sobre as promessas de
Cristo e, por conseguinte, sobre o que esperar – confusão esta que tem sua raiz na
filosofia grega-platônica, que teria adentrado o cristianismo em seu encontro com
o gnosticismo, traindo as expectativas concretas no tempo e no espaço que existia
na comunidade hebraica e, posteriormente, na igreja cristã primitiva. Nessa

34
CORNER, Mark. Death be Not Proud: The Problem of the Afterlife. Bern: Peter Lang, vol.46,
2011, p.119.
35
WOOD. Laurence W. Theology as History and Hermeneutics: A Postcritical Evangelical
Conversation With Contemporary Theology. Lexington: Emeth, 2005, p.52.
36
WOOD, Theology as History and Hermeneutics, p.53-54.
142

perspectiva crítica do matiz helênico também entra em sintonia com Cullmann.


Ademais, confirma a perspectiva linear de tempo e o apreço pela história com
“começo, meio e fim” 37 e assume que a parusia significa promessa soteriológica,
tanto para o indivíduo quanto para a criação, apesar de priorizar a dimensão
cósmica, devido à crença de que fora negligenciada no passado.
Com respeito à tensão já e ainda não¸ apesar de não citá-la diretamente, fica
evidente em seus escritos o quanto ela permeia implicitamente sua compreensão
do Reino de Deus. Wright reconhece que o futuro de Deus não fora realizado
ainda (escatologia realizada), no entanto, tampouco pode ser relegado totalmente
para a segunda vinda de Cristo (escatologia futura). De alguma forma, o futuro de
Deus já está presente num formato muito real, enquanto ainda aguarda sua
consumação, isto é, o Reino de Deus é simultaneamente presente e futuro; já está
aqui, mas ainda virá em plenitude. Nesse entretempo, Deus está escoltando o seu
reino, através de seu povo, a igreja, via o empoderamento do Espírito Santo. Idem
a Cullmann, Wright se fia razoavelmente na pessoa e obra do Espírito Santo.
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Assim como o Pai enviou o Filho, o Filho envia seus seguidores ao mundo, para
proclamar o reino em palavras e ações.
Também é possível perceber o entendimento da simultânea paradoxalidade
já e ainda não em NT Wright, quando ele discute posturas polarizantes que
amenizam uma ou outra dimensão temporal escatológica. O bispo de Durham
repele a corrente escatológica do evolucionismo otimista, com sua promessa de
progresso, criticando, até de forma ácida, desde Hegel e Darwin a Marx e Pierre
Teilhard de Chardin, entendendo que esta lhe rouba quotas significativas do ainda
não.
Deus será tudo em todos é uma das mais claras declarações do verdadeiro cerne da
visão de mundo voltada para o futuro apresentada no Novo Testamento. Nesse
sentido, o problema com o otimismo evolucionista de Teilhard de Chardin, bem
como de todas as formas de panteísmo, é que esse tipo de pensamento destrói todo
o futuro no presente, na verdade, no passado. Deus será tudo em todos. O tempo
verbal é futuro. Esse momento só irá chegar com a vitória final sobre o mal e,
particularmente, sobre a morte. Sugerir que ela já chegou é corroborar com o mal e
com a morte.38
E Wright também julga a escatologia desencarnada, maniqueísta e
puramente espiritualista, obcecada com o “céu”, que acredita ter tomado conta de
boa parte da tradição cristã desde a infiltração do platonismo. Tal “arremedo” de

37
WRIGHT, Surpreendidos pela Esperança, p.161.
143

esperança não faz jus, segundo Wright, à realidade do que Deus já realizou no
passado, na obra de Cristo:

Como a ressurreição foi um evento que ocorreu dentro do nosso próprio mundo,
suas implicações e efeitos são sentidos dentro dele, aqui e agora. [...] O argumento
[...] é que a compreensão adequada da (surpreendente) esperança futura que nos é
concedida em Jesus Cristo conduz diretamente, e de modo também surpreendente,
a uma visão de esperança presente, que constitui a base de toda missão cristã [...]
As pessoas prestavam atenção no que Jesus dizia principalmente porque viam o
que ele estava fazendo [...] presente e futuro, no entanto, não estavam
desvinculados. O presente não era simplesmente uma “amostra” do futuro, ou um
truque para obter a atenção das pessoas [...] Seu propósito [de Cristo] não é nos
levar para longe desta terra, ma nos tornar agentes da transformação desta terra,
antecipando o dia quando, como nos foi prometido, “a terra se encherá do
conhecimento do Senhor, como as águas cobrem o mar” (Isaías 11.9) [...] O que os
evangelhos estão afirmando é que ele [o reino de Deus] já começou.39
Em muitos aspectos, N.T. Wright ecoa o já e o ainda não de Cullmann com
muito mais relevância que o próprio Cullmann. A relação que o primeiro faz da
escatologia com o lócus da criação, bem como a forma que a esperança cristã
afeta a vida do cristão, a missão da igreja e a relação com a cultura, serão
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considerados na pesquisa do capítulo subsequente.

4.5
José Míguez Bonino

Nosso último representante do selecionado grupo de teólogos protestantes


que acolheram e frutificaram a perspectiva escatológica já e ainda não vem da
Argentina, possui origem metodista e vínculos com a teologia da libertação: José
Míguez Bonino (1924-2012). Deparamo-nos com o trabalho do pastor e professor
sul-americano a partir do notável livro Missão como com-paixão, onde o professor
luterano Roberto Zwetsch se propôs a encontrar uma teologia missiológica em
ótica latino-americana. Nele, Zwetsch alavancou quatro teólogos de germe latino
para elucidar e abastecer sua pesquisa, entre eles Bonino. É possível conhecer a
fina flor de sua teologia no capítulo dois da referida obra, o qual também foi
fundamental para despertar em nós a motivação inicial de investigá-lo em um
colóquio com Cullmann. Nossa certeza, contudo, de incluí-lo nesta dissertação,

38
WRIGHT, Surpreendidos pela Esperança, p. 117.
39
WRIGHT, Surpreendidos pela Esperança, p. 207-208,217.
144

firmou-se ao repararmos nas conclusões da tese de doutorado de Paul John Davies


sobre a teologia missionária de Bonino. Deveras, no Proefschrift redigido para a
Universidade de Utrecht, na Holanda, há doze anos, Davies não só confirmou os
pensamentos missionais-escatológicos de Bonino, os quais Zwetsch também havia
validado, como conectou Bonino a Cullmann em diversas ocasiões. Ainda que
Barth tenha sido, quem sabe, sua principal influência protestante européia, a
História da Salvação cullmanniana não teria ficado muito atrás, juntamente com
Bonhoeffer e Moltmann. David Bosch também argumenta a influência de
Cullmann em Bonino, dizendo que isso comprovaria a competência de Cullmann
para inspirar, tanto a teólogos conservadores quanto a teólogos da libertação,
lembrando inclusive que Bonino fora seu aluno40 e, posteriormente, um dos
convidados a contribuir com um ensaio no tomo em sua homenagem, em 1967.41
Míguez Bonino concorda com Cullmann em diversos segmentos.
Destacamos, particularmente, a afirmação da importância do papel da igreja para
o tempo intermediário entre a ressurreição e a parusia.42 Bonino fora um teólogo
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engajado na luta por justiça e direitos humanos, preocupado com a realidade


sociopolítica de seu entorno. Alguém que “nunca soube refugiar-se em falsa
neutralidade”43, e que, aparentemente, não caiu na tentação de desprestigiar a
eclesiologia nem descambou para uma reflexão e práxis revolucionária que
esquece da missão e da evangelização confiada por Cristo à sua noiva. Enfatize-se
a dimensão do Reino de Deus e todos os valores e compromissos que ele abrange,
diria o santafesino, mas sem se esquecer da missão da igreja de implantar a fé no
mundo mediante a proclamação do evangelho e do anúncio do perdão dos
pecados; busque-se a relevância deste evangelho para a transformação pessoal e
social, bem como para o fomento de alianças culturais, onde e quando possível,
porém não se desconfigure a linguagem e reinterprete conceitos para amoldar-se a
ideologias políticas, a tal ponto, que a esperança humana proposta no cristianismo
seja diluída ou amansada.44

40
BOSCH, David. Witness To The World: The Christian Mission in Theological Perspective.
Eugene: Wipf and Stock, 2006, p.234.
41
BOSCH, Misión en Transformación, p.612.
42
DAVIES. Paul John., GISPEN, W.H. Faith Seeking Effectiveness: The Missionary Theology of
José Míguez Bonino. Tese de Doutorado. Universidade de Utrecht. 2006, p.88.
43
SWETSCH, Missão como com-paixão, p.98.
44
Leitura baseada em MÍGUEZ BONINO, José. A fé em busca da eficácia: Uma interpretação da
reflexão teológica latino-americana sobre libertação. Tradução Getúlio Bertelli. São Leopoldo:
Sinodal, 1987. p.55-60.
145

A valorização da igreja por parte de Bonino está relacionada, também, à


valorização da missiologia. Nesse sentido ele acentua, assim como Cullmann,
tanto o aspecto da pregação quanto à vivência da fé, como sinal profético do
evangelho. Um de seus temas mais frisados foi o conceito da obediência, tanto
para uma saudável espiritualidade cristã quanto para “o compromisso histórico
com transformações que atualizem o significado da obra de Cristo e de seu reino
já agora neste mundo”.45 Uma pregação do evangelho também através de ações
concretas possibilitaria auxiliar na cura das cicatrizes temporais da humanidade,
de modo que esta se tornasse mais exposta e aberta para conhecer a cura para as
cicatrizes de cunho eterno.46
E ainda, a influência de Cullmann também pode ser rastreada através da
forma com ele enfatiza o papel do Espírito Santo no processo de releitura da
Bíblia para um novo cenário. Foi Cullmann quem insistiu que o dom do Espírito
Santo, como agente central e parte da história da salvação, acompanha a Igreja,
credenciando-a e habilitando-a na interpretação das Escrituras. A Igreja precisa ter
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a presença da terceira pessoa da Trindade, para que possa ter condições de reler as
ações de Deus, em Cristo, a partir de um novo tempo na trama histórico-salvífica
e em um novo contexto missionário. Assim como Cullmann, Bonino reivindica a
presença e a obra pneumatológica para empoderar e colorir a missão de
testemunhar o evangelho, sobretudo uma pneumatologia trinitária. Bonino quer
evitar o reducionismo cristológico e soteriológico, predominante num dos rostos
do protestantismo latino-americano. Advoga em favor do auxílio do Espírito
Santo em relação à Trindade para um caminho ecumênico dialogal com fins de
um empreendimento verdadeiramente colaborativo entre os organismos cristãos.
E essa concórdia missionária dentro do cristianismo talvez nem seja a parceria
mais sagrada possível. A pneumatologia trinitariana de Bonino também se
revelará numa perspectiva missional colaborativa entre o próprio Deus e seus
filhos, como já propunha o movimento da missio Dei. A Trindade convida o povo
a participar do envio testemunhal ao mundo e o Espírito é o agente habilitador
dessa dinâmica. “O próprio da Trindade é o diálogo, que prevalece sobre o

45
SWETSCH, Missão como com-paixão, p.142.
46
MÍGUEZ BONINO, José. Fundamentos bíblicos y teológicos de la responsabilidad cristiana. In:
ISAL Encuentro y Desafío; La acción cristiana evangélica ante la cambiante situación social,
política y económica; Conclusiones de la Primera Consulta Evangélica Latinoamericana sobre
Iglesia y Sociedad, Buenos Aires: La Aurora, 1961, p.22-23.
146

monólogo. A comunhão intratrinitária é de tal forma que ela „desborda‟, isto é, ela
não se esgota em si mesma, mas busca a relação com a realidade criada: o mundo,
o ser humano, a história.” 47
A pericorese divina convida os batizados para dançarem, em favor do
alcance evangelístico. Zwetsch pontuará48 que, para Míguez Bonino, missão
significa envio e, por sua vez, o envio da Trindade gera e admite o ser humano
como seu cooperador. Somos chamados na missão trinitária a participar desse
envio, o qual não cessa até a vinda da plenitude do reino.
São inúmeras as possibilidade de interação, mas nenhuma delas seria de
grande valia para nossa pesquisa se Bonino não endossasse Cullmann no coração
de sua teologia, a escatologia da História da Salvação e, mais especificamente, no
binômio que representa nosso objeto formal. Felizmente ele o faz e, com
indubitável amostragem, conforme menciona Davies:
A revelação de Deus a humanidade é dada em atos concretos de Deus na história,
atestados pela Bíblia. Por isso, não é possível desenvolver uma filosofia geral ou
cristã da história porque a Bíblia apresenta Deus agindo em eventos específicos, em
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momentos específicos e em lugares específicos. Estritamente falando, o que se


pode conhecer de Deus é somente como Deus atuou nestes eventos específicos. A
contribuição de Barth e Cullmann é percebida aqui.49

Míguez Bonino lida com a questão temporal escatológica de como a ação de


Deus se relaciona com a história, no artigo How does God act in history, escrito
em 1966 e publicado em 1972. Nele se percebe “a consciência de que a fé acarreta
o imperativo que impele a busca por uma ética que seja verdadeira tanto para o
evangelho como relevante para situações concretas”.50 Como Cullmann, Bonino
também fala de uma dimensão cósmica e escatológica do caráter do Reino de
Deus e, mais de acordo ao nosso interesse, ratifica o posicionamento escatológico
temporal do paradoxo entre presente e futuro.
Davies afirma que Cristo e o Tempo, de Oscar Cullmann, levou Míguez
Bonino a entender a natureza escatológica do Novo Testamento, isto é, a tensão já
e ainda não.51 O argentino declarou que o Reino de Deus é prometido em plena

47
SWETSCH, Missão como com-paixão, p.138.
48
SWETSCH, Missão como com-paixão, p.138.
49
DAVIES. Paul John., GISPEN, W.H. Faith Seeking Effectiveness, 2006, p.88.
50
MÍGUEZ BONINO, José. How does God act in history. In: VICEDOM, George. Christ and the
Younger Churches: Theological Contributions from Asia, Africa and Latin America. London:
S.P.C.U., 1972, p.22.
51
DAVIES. Faith Seeking Effectiveness, p.88.
147

manifestação na parusia de Jesus Cristo.52 Ele possui um aspecto futuro muito


claro, uma reserva escatológica; assegurando a realidade do ainda não para a
esperança cristã, ele pretende evitar um tipo de imanentismo total.
Em 1961, na primeira consulta da Iglesia y Sociedad en América Latina
(ISAL), o teólogo metodista foi chamado a contribuir com um ensaio sobre as
bases bíblicas e teológicas para o envolvimento na sociedade. Davies, numa
leitura do documento, aponta para a maneira como Míguez Bonino manteve a
realidade e, até certo ponto, o relevo do enfoque futuro do ainda não:
Ele admite que a evidência bíblica parece sugerir que a era vindoura é mais
importante que a era atual. Ele argumenta que o Novo Testamento enxerga Jesus
como o “fim do mundo”. Este mundo está julgado e está passando. Os cristãos
serão resgatados deste mundo e terão sua cidadania no céu. A mensagem cristã é,
por tudo isso, essencialmente escatológica.53
Não só o ainda não é validado por Míguez Bonino, como também o já. O
Reino, em seu estado perfeito, ainda não veio, ele é esperado, mas já está em
nosso entorno, em sinais que cabe à comunidade discernir.54 Ele prega que a
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mensagem cristã afirma que Jesus Cristo é o Senhor universal já no presente; e


que os cristãos têm todo o direito de pleitear e respirar com alívio e confiança
num mundo onde Cristo já começou a subordinar com seu senhorio, mesmo que
eles ainda não possam ver essa governança ou ela não tenha se exteriorizado em
totalidade.55
Míguez Bonino também anui com Cullmann no propósito deste tempo
intermediário, lembrando que a história humana entre a ressurreição e a parusia é
o tempo da paciência de Deus (1 Pedro 3,20; 2 Pedro 3;9,15; Atos 17,30-31), em
que os cristãos devem pregar o evangelho e trabalhar pela paz e justiça para que
todos possam ouvir e aceitar o evangelho.56 A relevância da igreja e da missão é
tamanha neste intervalo, que ele acrescenta que a igreja interpreta e cria a história
pela pregação do evangelho, através do qual o próprio Cristo se faz presente no
mundo, requisitando e realizando o mistério de sua autoridade, presente e futura,
e, simultaneamente, divulgando a fonte na qual a comunidade Cristã tem sua

52
MÍGUEZ BONINO, José. El Reino de Dios y la historia. in PADILLA, C. René (ed.). El Reino
de Dios y América Latina. El Paso: Casa Bautista, 1975, p. 75.
53
DAVIES. Faith Seeking Effectiveness, p.97.
54
SWETSCH. Missão como com-paixão, p.118.
55
MÍGUEZ BONINO, José. Nuestro Mensaje. In: Cristo, la esperanza para América Latina,
Buenos Aires: Confederación Evangélica del Río de la Plata, 1962, p. 74-75.
56
DAVIES. Faith Seeking Effectiveness, p.97.
148

identidade e na qual a história humana é sustentada até a sua consumação final. 57


Cullmann não poderia pedir mais.
Dentre as eventuais discrepâncias entre Bonino e Cullmann, ressaltamos
uma, que poderia fortalecer o posicionamento de Cullmann decisivamente. Se
refere à importância que Bonino dava à formulação do “princípio protestante”, de
Paul Tillich, do qual Ruben Alves também compartilhava quando enunciava a
presença de um “princípio utópico”, necessário num solo tão subjugado como o
latino-americano. Em nossa leitura de Cullmann, parece-nos que o professor
alemão fora ligeiramente discreto em tais asserções. Reconhecera a legitimidade
da resistência a esquemas, estruturas e organizações auto-adoradoras, no entanto,
pelo menos nas obras que acessamos, não examinara suficientemente a questão. É
bem verdade que o próprio Bonino julgou a análise do Cristo político de
Cullmann satisfatoriamente apropriada58, o que poderia nos indicar que não há
dissonância entre os dois. Ainda assim, preferimos manter a abertura de que a
reflexão de Míguez Bonino marca um avanço meritório no assunto.
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4.6
Jean Daniélou & Gustave Thils

Passaremos a explorar agora a receptividade e reverberação do já e ainda


não em território católico. Assim como o fizemos nos primeiros pontos deste
capítulo, anexaremos teólogos que servem de exemplos pela apropriação, maior
ou menor, que fizeram da temporalidade escatológica paradoxal capitaneada por
Cullmann. Mais uma vez, reforçamos que os escolhidos não exaurem as
possibilidades, antes cabem como sucintas demonstrações de nosso argumento.
Nosso critério, como já dissemos, é constituído, por um lado, de um viés
temporal-geográfico e, por outro, de um viés de relevância e potencialidade. Para
começar, apresentamos dois teólogos franceses que representaram escolas de
pensamentos teológico-escatológicos numa época muito próxima ao trabalho de

57
MÍGUEZ BONINO, José. How does God Act in History. VICEDOM, George. Christ and the
Younger Churches: Theological Contributions from Asia, Africa and Latin America. London:
S.P.C.U., 1972, p.31.
58
MIGUEZ BONINO, José. Who is Jesus Christ in Latin America Today? Faces of Jesus: Latin
American Christologies. MIGUEZ BONINO, José (ed.). Eugene: Wipf and Stock, 1998, p.2.
149

Cullmann. Ambos albergaram e repercutiram sua tensão temporal. São eles Jean
Daniélou e Gustave Thils.
O historiador Rosino Gibellini foi quem nos apontou na direção de
investigar o legado de Cullmann no debate católico das décadas de 40 e 50.
Segundo ele, a teologia do luterano teve “ampla repercussão no âmbito da
teologia católica” do período, devido ao fato da neo-escolástica ter negligenciado
a dimensão histórica.59
À época, a reflexão católica estava marcada pela disjunção escatologismo e
encarnacionismo. Representando, até certo ponto, a escola escatologista, Jean
Daniélou foi discípulo de Henri de Lubac, professor do instituto católico de Paris
e posteriormente cardeal. Daniélou vai ao encontro, sobremaneira, do universo
dos diálogos desta dissertação, em virtude da riqueza de seu pensamento em áreas
que interceptam nossa pesquisa, a saber, a teologia da história e a teologia da
missão. Ele não fica preso aos extremos do escatologismo ou encarnacionismo,
porém, com o tempo vai se tornando um escatologista encarnacional, que valoriza
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a ação sagrada feita pelos mirabilia Dei e pelas ações sacramentais da Igreja (e
também pelas respostas espirituais a essas ações), sem desprestigiar a presença e a
encarnação no mundo.
Em 1947, logo após Cullmann publicar sua obra prima Cristo e o Tempo,
encontramos Daniélou fazendo referência ao escrito, em seu artigo Cristianismo e
História. Ele o chama de “belo livro”60 e aproveita consideravelmente a tese do
autor que, entre outros, reivindicava o cunho decisivo do evento histórico da
ressurreição de Cristo, o qual Daniélou considerava o evento histórico inigualável
por natureza.61 Daniélou, enquanto teólogo historiador, apreciava a valorização da
história de Cullmann, a qual se coadunaria mais com a ênfase patrística, e fazia
mais justiça ao caráter não-platônico da fé cristã.62 Posicionou-se ao lado de
Cullmann em seu antagonismo às escatologias conseqüente, de Schweitzer;
realizada, de Dodd; e existencial, de Bultmann. Simpatizava com sua proposta da
escatologia inaugurada, ainda que preferisse batizar a sua versão de iniciada. A
influência de Cullmann é tamanha, que Hans Boersma crê que Daniélou

59
GIBELLINI, A Teologia do Século XX, p.194.
60
DANIÉLOU, Jean. Christianisme et Histoire. In: Études, t.254, abril de 1946, p.10.
61
DANIÉLOU, Jean. Lord of History: Reflections on the inner meaning of history. Trad. Nigel
Abercrombie. Chicago: Henry Regnery, 1958, p.7.
62
DANIÉLOU, Lord of History, p.109-111.
150

provavelmente o tenha citado mais do que qualquer outro teólogo contemporâneo


em seus escritos.63
Gibellini, em seu compêndio sobre a teologia do século XX, é outro que
atesta para a sintonia escatológica entre Daniélou e Cullmann. Ele percebe que,
apesar de Daniélou preferir falar de história sagrada em vez de história da
salvação, as reflexões do teólogo parisiense sobre a história exprimem “uma
substancial convergência com a linha teórica expressa por Cullmann em Cristo e o
Tempo”.64
Sobre a terminologia já e ainda não de Cullmann, Daniélou também fora
partícipe, mas não acriticamente. O teólogo católico entendera que seu colega
luterano “reduziu” o já do tempo da igreja, negligenciando sua temporada e sua
ação sacramental. Para Daniélou, a dimensão cultual e a relevância dos projetos
eclesiológicos que Deus e seu povo empreendem no momento atual da história
ficavam comprometidos na abordagem de Cullmann. Gibellini declara, em
resposta, que Cullmann também acusara a teologia católica do contrário, isto é, de
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“reduzir” a tensão para o ainda não em favor do já, “que fica sendo um corolário
do modo católico viver a experiência da Igreja.” 65
Nesta mesma fase, do outro lado da controvérsia, Cullmann também fora
acolhido pelo embaixador da escola encarnacionista, Gustave Thils. Este também
valorizava a história, mas enfatizava as realidades terrenas e procurava enfrentar
o tema da relação do evangelho com o mundo, considerando não só os aspectos
teológicos e sacramentais, como destacava Daniélou e os escatologistas, mas
principalmente os culturais. Numa época em que se lia Gide e Marx com boa
vontade, não tinha cabimento propor um cristianismo exclusivamente
“teocêntrico”, que se desinteressa do mundo, diria ele.66
Por realidades terrenas, Thils entendia as realidades históricas, como, por
exemplo, as sociedades humanas, a cultura, a civilização, a técnica, as artes, o
trabalho. Para o teólogo belga, estas realidades tinham por primeira finalidade
glorificar a Deus e estar a serviço dos homens e, em segunda instância, colaborar

63
BOERSMA, Hans. Nouvelle Théologie and Sacramental Ontology: A Return to Mystery.
Oxford: Oxford University, 2009, p.176. Para mais subsídios sobre a dependência de Daniélou em
Cullmann, ver BOYS, Mary C. Biblical Interpretation in Religious Education: A Study of the
Kerygmatic Era. Birmingham: Religious Education, 1980, p.103-107.
64
GIBELLINI, A Teologia do Século XX, p.262.
65
GIBELLINI, A Teologia do Século XX, p.263.
151

com a ação do Espírito Santo em sua obra de santificação e de transfiguração da


realidade criada para preparar a nova criação.67
O Espírito não age somente no coração dos fiéis, mas está em ação do mundo, e
todo reflexo de racionalidade, espiritualidade e humanidade, integrando o processo
histórico e cultural, é prefiguração dos “novos céus” e da “nova terra.” [...] a obra
do Espírito não se restringe ao âmbito cultual, mas se desenvolve também no
âmbito cultural e social. A ação do Espírito tem repercussões históricas, culturais e
sociais. O Espírito atua na realidade e nas realidades deste mundo e nelas inscreve
valores de perfeição, de justiça, de humanidade e de paz, que são prefigurações da
Jerusalém celeste.68
Especificamente em diálogo com a tensão já e ainda não, vemos em Thils a
interpretação de que os tempos escatológicos se dividem em duas fases: a fase
presente da incoatio, que corresponde ao já cullmanniano, e a fase final da
consummatio, que diz respeito ao ainda não. Estas duas fases relacionam-se entre
si, na terminologia da teologia da história de Thils, como um prelúdio da sinfonia;
entre elas, vigora uma relação de continuidade.69 Também fazendo coro a
Cullmann, Thils idealiza, no papel do Espírito Santo, o protagonismo da era
presente, o dom de Deus dos tempos escatológicos. Sua lei é quem dita o ritmo,
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por assim dizer, da história temporal, estabelecendo o parâmetro valorativo das


realidades terrenas, servindo como diretriz e inspiração para as ações humanas e,
em última análise, agindo renovadoramente projetando a nova criação.70
A interlocução de Thils com Cullmann rende profícuos frutos. O seu relevo
nas questões terrenais é importante para alavancar a teologia de Cullmann a
patamares mais otimistas. Cullmann abordara os temas culturais de maneira
(talvez excessivamente) discreta. Uma complementação interessante seria valer-se
das leituras de Thils, por exemplo, das três espécies de cristãos (liberal, de
encarnação, de transcendência) para explorar com mais profundidade a postura
ética e missional neste tempo entre o já e o ainda não.

66
THILS, Gustave. Théologie des Réalités terrestres. In Préludes, Bilbao: Desclee de Brouwer,
1946, p.10.
67
GIBELLINI, A Teologia do Século XX, p.266.
68
GIBELLINI, A Teologia do Século XX, p.266-267.
69
GIBELLINI, A Teologia do Século XX, p.267.
70
GIBELLINI, A Teologia do Século XX, p.267.
152

4.7
Vaticano II – Lumen Gentium

Continuando nossa observação da receptividade do já e ainda não em solo


católico, enfocaremos neste ponto não teólogos em particular, mas um documento
teológico elaborado no emblemático Concílio Vaticano II. Cremos que o fato da
tensão temporal escatológica em questão poder ser percebida na teologia que foi
desenvolvida por expoentes daquele momento histórico crucial comunica muito
para ratificar nossa tese de reverberação e acolhimento da proposta de Oscar
Cullmann.
Como bem lembra Susin, o Concílio Vaticano II não elaborou uma
constituição dogmática sobre escatologia, mas a integrou no âmbito da
eclesiologia. Na Gaudium et Spes, a escatologia fora abordada em termos de
Reino de Deus em sua relação com a ação do homem sobre a terra; enquanto na
Lumen Gentium, ela fora discorrida como a relação entre a peregrinação terrestre e
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a consumação celeste.71
Podemos conhecer a interlocução de pensamento entre o documento e o
teólogo luterano a partir do trabalho de dissertação de Fantico Nonato Silva
Borges, sob o título: A índole escatológica da Igreja: um estudo do “já” e do
“ainda não” à luz do sétimo capítulo da Lumen Gentium.72 Em sua pesquisa,
Fantico Borges, orientado pela professora Lina Boff, defende a tese de que a
tensão já e ainda não faz parte da natureza da igreja, e fora recuperada, em certo
sentido, na teologia católica, pela escatologia desenvolvida no Concílio Vaticano
II. Segundo a pesquisa, fica clara a convicção dos Padres conciliares de que a
escatologia está na raiz da teologia, e mais adiante, de que a realidade salvadora
prometida por Deus já começou em Cristo, mas ainda não se consumou
plenamente, e de que a missão da igreja neste entretempo é levar a cabo a obra de
santificação do mundo, olhando para as duas realidades.
A novidade que o Concílio Vaticano II trouxe foi demonstrar que é possível viver
já aqui na Igreja Peregrina, mesmo que seja em fragmentos, aquela graça salvadora
de Cristo. Em outras palavras, não precisamos morrer para sentir os efeitos da

71
SUSIN, Assim na Terra como no Céu, p.24.
72
BORGES, Fantico Nonato Silva; BOFF, Jenura Clotilde. A índole escatológica da igreja; um
estudo do “já” e do “ainda não” à luz do sétimo capítulo da Lumen gentium. Rio de Janeiro,
2010, 193p. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
153

santificação de Deus: o céu começa aqui! A Igreja celeste não é outra Igreja,
totalmente distinta desta aqui, vivida e sentida nos sinais sacramentais. Eles estão
em graus diferentes, mas não a mesma realidade salvadora, em que uma vive em
peregrinação da graça já alcançada pela outra, que vive na plenitude da salvação.73
Já aludimos que a reflexão teológica de Oscar Cullmann pode ter
influenciado em textos do Concílio Vaticano II, por sua representatividade no
encontro e participação nos debates. Neste trabalho não estaremos preocupados
em analisar, exatamente, em quais temas isso teria acontecido. Entretanto, não
podemos deixar de mencionar um ensaio em particular, que nos interessa pela
sintonia de matéria e importância de conteúdo: a Lumem Gentium. Tal
constituição dogmática, que versa sobre a natureza e a constituição da igreja, é
considerada um dos mais relevantes textos do Concílio.74 Especialmente no
sétimo capítulo, onde se manuseia o aspecto escatológico da igreja como povo
peregrino, é possível se afirmar que encontramos compilado o “arcabouço da
escatologia conciliar”75 – um arcabouço nitidamente conectado a dialética já e
ainda não de Oscar Cullmann.
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Enxergar a escatologia nesta dimensão dupla, atitude conciliar claramente


expressa na Lumen Gentium, “não só trouxe a escatologia para dentro da teologia,
mas lhe deu status de necessidade no campo da hermenêutica eclesial, visto que a
partir desse viés, são compreendidas a natureza e a missão da Igreja”.76
O trabalho de Borges é admirável neste debate. Utilizando como chave de
leitura a tensão já e ainda não, ele examina minuciosamente o 7º capítulo da
Lumen Gentium, atento para as possibilidades de desdobramento da “realidade
dual”77 que a igreja se encontra com relação ao Reino de Deus, culminando em
implicações práticas para a vida da igreja, as quais muito contribuirão para o
enfoque que será dado no próximo capítulo. O que Borges não fez, porém, foi
trazer um pouco do desenvolvimento do pensamento escatológico já e ainda não
na história teológica da Igreja até chegar o Vaticano II. Lá não é especificado
como os eruditos conciliares chegaram a resgatar esta ênfase e como acessaram tal
formulação. De fato, não era sua proposta. Caso contrário, talvez tivesse chegado
à conclusão de que escatologia protestante que estava em voga – especialmente as

73
BORGES, BOFF, A índole escatológica da igreja, p.23.
74
Segundo Birmelé, em Oscar Cullmann, o próprio Cullmann viu no documento o momento
“coroador” do concílio.
75
BORGES, BOFF, A índole escatológica da igreja, p.49.
76
BORGES, BOFF, A índole escatológica da igreja, p.45.
77
BORGES, BOFF, A índole escatológica da igreja, p.46.
154

ideias de Oscar Cullmann, quem coincidentemente estava presente no concílio –


talvez tenham, de alguma forma, socorrido à reflexão que estava sendo realizada.
Destacamos o próprio texto da Lumen Gentiun, que deixa clara a conexão
com a tensão escatológica de Cullmann. No parágrafo 48, sob o título Do caráter
escatológico da vocação da igreja, o documento afirma a perspectiva ainda não
da esperança cristã:
A Igreja, à qual todos somos chamados e na qual por graça de Deus alcançamos a
santidade, só na glória celeste alcançará a sua realização acabada, quando vier o
tempo da restauração de todas as coisas (cfr. Act. 3,21) e, quando, juntamente com
o gênero humano, também o universo inteiro, que ao homem está intimamente
ligado e por ele atinge o seu fim, for perfeitamente restaurado em Cristo (cfr. Ef,
1,10; Col. 1,20; 2 Ped. 3, 10-13).78
Fica evidente a perspectiva de futuro. A igreja ainda não é celestial, ainda
não está na glória nem teve sua realização concretizada; ainda não fora
plenamente restaurada por Cristo junto com o universo. Ela é, nas palavras do Frei
Boaventura Kloppenburg, um sinal escatológico do Reino inaugurado, mas não
acabado; nisso se estrutura a imagem de “germen et initium” do Reino.79 É
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importante para o documento, como foi para o Concílio em suas outras


proposições, reafirmar a clara expectativa do futuro de Cristo que a Igreja possui,
como esperança “firme e segura”. Esta dimensão vai ao encontro das ideias de
Cullmann.
Então, imediatamente no próximo parágrafo, a Lumen Gentium, após uma
introdução afirmando a centralidade decisiva da obra de Cristo, do Espírito Santo
e do sacramento, teologia comum ao professor luterano, aponta para o outro lado
da esperança, para o já sem atenuar o ainda não.
A prometida restauração que esperamos, já começou, pois, em Cristo, progride
com a missão do Espírito Santo e, por Ele, continua na Igreja; nesta, a fé ensina-
nos o sentido da nossa vida temporal, enquanto, na esperança dos bens futuros,
levamos a cabo a missão que o Pai nos confiou no mundo e trabalhamos na nossa
salvação (cfr. Fil. 2,12).80
Para que não reste dúvida do que o concílio estava propondo à igreja para a
índole escatológica, o terceiro parágrafo do capítulo sete é cabal:
Já chegou, pois, a nós, a plenitude dos tempos (cfr. 1 Cor. 10,11), a restauração do
mundo foi já realizada irrevogavelmente e, de certo modo, encontra-se já
antecipada neste mundo: com efeito, ainda aqui na terra, a Igreja está aureolada de

78
CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Dogmática Lumen Gentium. Petrópolis: Vozes, 1969,
48a.
79
KLOPPENBURG, Boaventura. A Natureza e a Missão da Igreja. In: REB – Revista Eclesiástica
Brasileira, fasc.4, Petrópolis: Vozes, 1969, p.801-812.
80
Lumen Gentium, 48b.
155

verdadeira, embora imperfeita, santidade. Enquanto não se estabelecem os novos


céus e a nova terra em que habita a justiça (cfr. 2 Ped. 3,13), a Igreja peregrina, nos
seus sacramentos e nas suas instituições, que pertencem à presente ordem temporal,
leva a imagem passageira deste mundo e vive no meio das criaturas que gemem e
sofrem as dores de parto, esperando a manifestação dos filhos de Deus (cfr. Rom.
8, 19-22). 81
Para Fantico, também não há oscilação nesta mudança de paradigma que o
Vaticano II se comprometia:
Falar de “já” e “ainda não” equivale a refletir sobre duas dimensões de uma mesma
realidade. Quando os Padres conciliares apontam a tensão escatológica da salvação
como uma realidade “já” iniciada e presente na Igreja pela força do Espírito Santo,
eles estão afirmando que essa realidade da graça divina não é algo fora da vida
eclesial, mas, sim, experiência a ser sentida agora. Porém, ao mesmo tempo, essa
realidade se confronta com a situação ambivalente da Igreja, que mesmo sendo
chamada à santidade e justificada em Cristo, caminha neste mundo de pecado e
imperfeição. Ora, tal constatação pressupõe que essa salvação não consiste em duas
realidades, mas uma única. É neste sentido que o “já” e o “ainda não” são
estruturas reais de uma única promessa. 82
Susin é outro quem enxerga na Lumen Gentium, material substancial
consoante com a tensão já e ainda não:
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A igreja é vista, no capítulo VII da Lumen Gentium, como uma comunidade pascal,
em êxodo e peregrinação. À diferença do êxodo do Antigo Testamento e do
judaísmo, que caminhava em direção a uma salvação “futura”, a comunidade cristã
já experimenta as primícias antecipadas da salvação. Por isso pode ser sacramento,
sinal e primícia, do Reino de Deus, que, no entanto, permanece escatológico.83

4.8
Joseph Ratzinger

A interlocução de Joseph Ratzinger com a escatologia de Cullmann pode ser


conferida já na sua fase pré-papal, na obra Eschatologie – Tod und ewiges Leben84
do teólogo e sumo pontífice alemão, lançado em 1977 como parte de um curso de
teologia dogmática, elaborado conjuntamente com seu colega catedrático Johann
Auer. No prólogo do tomo, Ratzinger explica que as reflexões que propõe são
frutos de uma caminhada de dois decênios, ensinando e se debruçando sobre a
temática escatológica. Diz também que a escatologia, juntamente à eclesiologia,
era o tema que mais frequentemente teve a oportunidade de explicar e, que no

81
Lumen Gentium, 48c.
82
BORGES, BOFF, A índole escatológica da igreja, p.46.
83
SUSIN, Assim na Terra como no Céu, p.78.
156

tratado que se atrevia a oferecer ao público, procurou elaborar uma escatologia


“desplatonizada”. 85
Logo no primeiro capítulo, Ratzinger aborda a problemática escatológica e
as teses oferecidas pela teologia da época, numa sessão denominada panorama
das soluções. É feita uma retrospectiva histórica das principais propostas
escatológicas onde o professor de Ratisbona destaca Karl Barth, Rudolf
Bultmman, Oscar Cullmann, Charles Dodd e a teologia da esperança, que
Ratzinger também classifica como teologia política, e que, segundo ele, tinha em
Metz e Moltmann seus embaixadores principais. Interessa-nos, é claro, a
apreciação dedicada a Cullmann.
Ratzinger mostra interesse na escatologia Cullmanniana em primeiro lugar
devotando-lhe atenção mais generosa no compêndio da teologia de seu colega de
Basiléia, pontuando as principais asserções dele e, inclusive incluindo alguns dos
gráficos ilustrativos que Cullmann propunha para explicar a questão da divisão
ternária de tempo na História da Salvação. Ratzinger avalia que, apesar das
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dificuldades que a aceitação daquele conceito trazia para o debate escatológico da


época, ele representava um modo “mais concreto e acomodado” de se ler a
Escritura, diferentemente do que outros escatologistas estavam fazendo. Ratzinger
não se constrange em considerar a contribuição de Cullmann mais significativa
que a dos demais.86
Apesar de não concordar com a relação entre tempo e eternidade que
Cullmann detinha, Ratzinger também emprega a tensão já e ainda não em seu
pensar escatológico. Na parte final do capítulo, em que faz um balanço das
soluções apontadas, Ratzinger admite que adquirira mais esclarecimento no
conteúdo escatológico, especialmente a partir do pensamento de Cullmann da
separação entre “centro”, ou já, e “fim”, ou ainda não, como algo essencial no
ensinamento de Jesus. “A mudança radical cósmica e a chegada do Reino de Deus
não coincidem. Nesta separação radica todo nosso apuro, nela se baseia nossa
impaciência e nossa inquietação”.87
Que significa, pois, esta separação? Que importância envolve este estranho
adiamento do Victory Day, atraso que nos obriga a dizer que o verdadeiramente

84
Acessado nesta dissertação a partir de sua tradução para o Espanhol: Escatología: La muerte y
la vida eterna.
85
RATZINGER, Escatología, p. 13.
86
RATZINGER, Escatología: p. 63.
87
RATZINGER, Escatología: p. 67-68.
157

importante já chegou, fazendo-nos impossível mostrar onde? É claro que esse


atraso significa muito mais que algo meramente cronológico, muito mais que uma
divisão de tempos diferenciada. Isso diria muito pouco. A separação entre centro e
fim, com a qual temos que lidar, muda radicalmente a ideia e a realidade da
“salvação”. Dito mais concretamente: esse atraso nos obriga precisamente a nos dar
conta da enormidade das dimensões que envolve a perdição.88
Para Ratzinger, a tensão entre o já e ainda não ajuda a entender a
dramaticidade da alienação humana, bem como a necessidade de uma redenção
divina centralizada em Jesus e manifesta em seu sacrifício na cruz. Ela ajuda a
mostrar que não se consegue “emancipação total, liberdade sem limitações e
igualdade em que desapareça toda alienação” numa escatologia reducionista, que
pensa esperança mais em termos circunstanciais, de messianismos políticos ou
consumo desenfreado, enfraquecendo a potência do Reino de Deus prometido.
Este Reino, diz Ratzinger, não consiste apenas de situações terrenas mudadas, mas
do homem, alcançado pelo dedo de Deus, que se deixa fazer filho de Deus.89
A característica decisória e central da pessoa e obra de Cristo é também
confirmada por Ratzinger:
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O Filho é a resposta para a questão sobre o reino. Nele se resolveu também a


insolúvel separação entre o já e o ainda não. Nele se juntou morte e vida,
destruição e ser. A cruz é a pinça que fecha a separação. Se o Filho é a resposta
para a questão do reino, então é indubitável que a mensagem de Jesus tem que se
opor decididamente a uma escatologia de circunstância. Não temos que insistir nas
circunstâncias, mas na pessoa. Então é claro também que a redenção não vem pela
satisfação dos egoísmos, como se imagina nossa silenciosa escatologia privada.
Não pode vir a redenção pela saturação do egoísmo, senão unicamente pela
conversão radical, pondo-se no caminho em outra direção, dando às costas ao
egoísmo.90
Um teólogo ainda mais maduro e já em sua fase como sumo pontífice,
Bento XVI, dará continuidade à nossa reflexão, no que se refere à esperança,
levando em conta seu paradoxo temporal já e ainda não. É nos permitido
constatar o desenvolvimento de sua escatologia na encíclica Spe Salvi, dada em
Roma, no dia 30 de novembro de 2007, no terceiro ano de seu pontificado. A
epístola fora recebida como um primor, e poderia ter diversos argumentos
enunciados. Para o prisma desta dissertação o parágrafo que mais pertence é
aquele do conceito de esperança, baseada sobre a fé do Novo Testamento e da
igreja primitiva. Ali percebemos que, também em Ratzinger, o fator originário de
sua perspectiva temporal escatológica encontra-se no mesmo patamar à de

88
RATZINGER, Escatología, p.68.
89
RATZINGER, Escatología, p.69.
158

Cullmann: numa exegese neotestamentária e numa análise da história da igreja


antiga. O papa sublinhara a guarida que, tanto as classes mais baixas da sociedade
greco-romana, quanto as mais altas, tantos os trabalhadores braçais, quanto os
filósofos, forneceram para a esperança anunciada pela mensagem cristã, que
transforma mais corações do que estruturas, que revolucionava from inside out.
Falara do Batismo e da Ceia escatologicamente, como Cullmann também fazia:
Em virtude do Baptismo, tinham sido regenerados, tinham bebido do mesmo
Espírito e recebiam conjuntamente, um ao lado do outro, o Corpo do Senhor.
Apesar de as estruturas externas permanecerem as mesmas, isto transformava a
sociedade a partir de dentro. Se a Carta aos Hebreus diz que os cristãos não têm
aqui neste mundo uma morada permanente, mas procuram a futura (cf. Heb 11, 13-
14; Fil 3,20), isto não significa de modo algum adiar para uma perspectiva futura: a
sociedade presente é reconhecida pelos cristãos como uma sociedade imprópria;
eles pertencem a uma sociedade nova, rumo à qual caminham e que, na sua
peregrinação, é antecipada.91
O argumento escriturístico-histórico é semelhante, mas as passagens
bíblicas ressaltadas, porém, são originais do católico. Ratzinger cita, por exemplo,
a Carta de São Paulo a Filemom, a Primeira Carta aos Coríntios e especialmente a
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Carta aos Hebreus, com o incisivo argumento de que a fé é hypostasis (mais do


que convicção interior, substância) das coisas que se esperam; prova das coisas
que não se vêem. O detalhe exegético tem muito a comunicar para a dinâmica
temporal da esperança e dilata a realidade dual já e ainda não para novas janelas:
A fé é a “substância” das coisas que se esperam; a prova das coisas que não se
vêem. [...] Deste modo, o conceito de “substância” é modificado para significar que
pela fé, de forma incoativa – poderíamos dizer “em gérmen” e portanto segundo a
“substância” – já estão presentes em nós as coisas que se esperam: a totalidade, a
vida verdadeira [o ainda não]. E precisamente porque a coisa em si já está
presente, esta presença daquilo que há-de vir cria também certeza: esta “coisa” que
deve vir ainda não é visível no mundo externo (não “aparece”), mas pelo facto de a
trazermos, como realidade incoativa e dinâmica dentro de nós, surge já agora uma
certa percepção dela. [...] A fé não é só uma inclinação da pessoa para realidades
que hão-de vir, mas estão ainda totalmente ausentes; ela dá-nos algo. Dá-nos já
agora algo da realidade esperada, e esta realidade presente constitui para nós uma
“prova” das coisas que ainda não se vêem. Ela atrai o futuro para dentro do
presente, de modo que aquele já não é o puro “ainda-não”. O facto de este futuro
existir, muda o presente; o presente é tocado pela realidade futura, e assim as
coisas futuras derramam-se naquelas presentes e as presentes nas futuras.92

90
RATZINGER, Escatología, p.72.
91
BENTO XVI. Carta Encíclica Spe salvi. São Paulo: Paulus, 2007, parágrafo 7.
92
BENTO XVI, Spe salvi, parágrafo 7.
159

4.9
Gustavo Gutiérrez

Retornando ao hemisfério sul, especificamente visitando território inca,


percebemos a prosa escatológica de Cullmann com Gustavo Gutiérrez Merino
(1928-), icônico e extensamente citado teólogo na reflexão contemporânea,
considerado por muitos o mentor e expoente máximo da teologia da libertação.93
A escatologia ocupa um espaço impressionante no pensamento libertador do
Limeño. “Gutiérrez absorve a recente redescoberta da escatologia”, a qual a rejeita
como meramente um tratado sobre os últimos fins.94 Aproveitando-se de sua
revalorização no século 20, movimento do qual Cullmann fora um dos
protagonistas, Schwartz interpretou que, para Gutiérrez, a “escatologia bíblica é
um poder transformador mundial que permeia todos os aspectos da vida Cristã”.95
A interação de pensamento dos dois é passível de ser reconhecida na obra
clássica de Gutiérrez, Teologia da Libertação, onde Cullmann é bastante citado.
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Não tanto pelas suas considerações escatológicas, é verdade. Mais pela sua leitura
da dimensão política de Cristo. Pretendendo evitar radicalismos, que já se faziam
presentes ao seu redor, Gutiérrez confessou que Cullmann, acima de tudo, com
sua obra Jesus and the revolutionaries (Jesus e os revolucionários), tê-lo-ia
persuadido a distanciar Jesus dos guerrilheiros zelotes.96 Jesus não era um rabi
alienado na Galiléia, mas também não incitou ninguém a pegar em armas.
Segundo o professor de economia da Universidade de Economia de Praga, Pavel
Chalupníček, numa análise deste relacionamento Gutiérrez/Cullmann a partir de
uma leitura crítica da Teologia da Libertação de Gutiérrez, não era o caso de que
Cullmann defendia um Jesus isento de postura sociopolítica, caso contrário não
teria influenciado tantos teólogos que se apaixonaram por essa matéria. Para
Cullmann, no que Gutiérrez apreciava, a mensagem e atividade de Cristo eram
destinadas tanto a indivíduos quanto às massas, tinha viés tanto soteriológico

93
VILLASEÑOR. Pastor Bedolla. La Teología de la Liberación: pastoral y violencia
revolucionaria. Latinoamérica: Revista de Estudios Latinoamericanos, Universidad Nacional
Autónoma de México. v. 64, 2017, p.188.
94
ALMEIDA. João Carlos. Teologia da Solidariedade - Uma abordagem da obra de Gustavo
Gutiérrez. São Paulo: Loyola, 2005, p.68.
95
SCHWARZ, Hans. Eschatology. Grand Rapids: Eerdmans, 2000, p.119.
96
JONES, Richard. G. Peace, violence and war. In HOOSE, Bernard (ed.). Christian Ethics: An
Introduction. London: Continuum, 1998, p.219.
160

como político, denunciava o caos do sistema presente e anunciava o que ainda não
chegou, mas chegará.97 Tudo isso sem precisar reduzir Cristo a um personagem
subversivo contra Roma que morrera, mormente, porque fora perseguido por
autoridades. Há algo maior na cruz do que a execução de um mártir, um sentido
vicário. A maior dádiva sendo oferecida ali era o perdão por que a maior opressão
que a humanidade amarga, origem de todas as demais, é o pecado.
Após mencionar esta simetria no viés político do Reino de Deus, convém
examinar a receptividade de Gutiérrez da História de Salvação e sua tensão já e
ainda não. O motif de Gutiérrez é a libertação. Articula e desembrulha a salvação,
principalmente com este termo. Entende a criação de Deus como um evento
libertador (do caos), o Êxodo e demais episódios extraordinários da caminhada do
povo como ações histórico-libertárias de Deus em favor dos seus. Eventualmente,
não se negará a usar a própria terminologia de Cullmann, bem como fará questão
de não camuflar o peso da parusia. “A Bíblia apresenta-nos a escatologia como
motor da história salvífica radicalmente orientada para o futuro”.98
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Aprofundando essa informação, na sua obra mestra, o sacerdote dominicano


introduz o capítulo sobre escatologia e política, argumentando que “o
compromisso pela criação de uma sociedade mais justa, e em última instância, por
um homem novo, supõe uma confiança no futuro”.99 Uma falta de confiança no
futuro, ou uma maneira de viver sem esperança, desencadeará em uma
cosmovisão fatalista, numa atitude conformista. Ele assume que um povo sem
confiança no ainda não provavelmente vive algum tipo de condição subumana
que pode ser de caráter socioeconômico, pessoal (psicológico) ou espiritual.
Fazendo menção ao filósofo brasileiro em Educação, Paulo Freire, Gutiérrez
concorda que a projeção da história em direção ao futuro encontra resistência no
povo latino-americano, que se acostumou a realizar uma leitura acrítica do
passado.100
Leopoldo Sánchez, professor de sistemática do Seminário Luterano de Saint
Louis, Missouri, escreveu um precioso exemplar sobre santificação, onde dedica
um capítulo para o horizonte escatológico, encontrando na busca pela esperança,

97
CHALUPNÍČEK. Pavel. Divine and Human Freedom in the Work of Gustavo Gutierrez. Janeiro
2010. <http://kie.vse.cz/wp-content/uploads/2009/11/WP_2_2010.pdf.> Acesso em 02/12/2108.
98
GUTIÉRREZ, Gustavo. Teología de la Liberación: Perspectivas. 3. ed. Salamanca: Sígueme,
1973, p.139.
99
GUTIÉRREZ, Teología de la Liberación, p.275.
161

pela humanização e na doutrina das duas justiças (ativa e passiva) de Cristo,


elaboradas por Lutero, um caminho praticável. Sánchez assegura que, nessa
avaliação do pessimismo comumente endereçado ao ainda não, também o teólogo
chileno Juan Noemí e o teólogo cubano Justo González, se assomarão a Gutiérrez.
Noemí contribuirá lembrando que o problema é ainda maior e mais antigo,
afetando não apenas os latino-americanos, mas todos os seres humanos
“envenenados” pela concepção grega de tempo como anomalia, “que interpretam
a história em termos de decomposição, caminho para a morte”, e que por isso
desenvolvem uma consciência que “prefere se arraigar numa idade dourada do
passado em vez de confiar no obscuro e incerto presente”.101 González, por sua
vez, contribuirá lembrando que para uma melhor compreensão da realidade
temporal, o que talvez falte seja a solidez teológica sobre o significado da
esperança contida na tensão já e ainda não.
Somente uma igreja que viva no Espírito do “amanhã” poderá, por um lado, dizer
não as coisas velhas denunciando manifestações do pecado e do reinado do
maligno no mundo, e por outro viver de acordo a esperança que tem no reino
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vindouro e na consumação de todas as coisas na nova criação.102


Portanto, é preciso afirmar o ainda não, e Gutiérrez não tem vergonha disso.
Mas sem que se caia numa escatologia futurística. Gutiérrez advertira claramente
numa crítica que fez à escatologia da Teologia da Esperança de Moltmann, onde
lhe pareceu, por vezes, que o perigo de uma fuga temporis ou de um “cristianismo
del más allá”103 poderia ser encontrado. Para o peruano, é importante manter os
pés fincados no chão e na história e evitar qualquer tipo de fé que capengueie para
o ainda não. “Não se pode esquecer facilmente do aqui e agora onde se vive e se
sofre, o espaço atual onde o testemunho do cristão se manifesta por palavra e
ação”, parodiando Cullmann.104 Nesta busca pelo equilíbrio e pelo fortalecimento

100
GUTIÉRREZ, Teología de la Liberación, p.276.
101
NOEMÍ, Juan. Esperanza en busca de inteligencia: Atisbos teológicos. Santiago: Ediciones
Pontíficia Universidad Católica de Chile, 2005, p.23. Apud SANCHEZ, Leopoldo. Teología de la
Santificación: La espiritualidad del cristiano. Saint Louis: Editorial Concordia, 2013, p.169.
102
SANCHEZ, Teología de la Santificación, p.171.
103
Não conheço as minúcias do debate entre Gutiérrez e Moltmann ou entre os teólogos latino-
americanos e europeus sobre a questão da escatologia supostamente futurística e cripto-histórica.
Tampouco é do escopo desta dissertação analisar com mais atenção tais discussões, por mais
importantes que elas tenham sido. Por isso, não aprofundarei a conjuntura. Apenas a título de
sugestão, numa perspectiva de aproximação entre a Teologia da Esperança de Moltmann e a
Teologia Latino-Americana da Libertação no contexto atual, recomenda-se: KUZMA, Cesar. O
futuro de Deus na missão da esperança: uma aproximação escatológica. São Paulo: Paulinas,
2014, p.195-207.
104
SANCHEZ, Teología de la Santificación, p.172.
162

do ângulo do já, Gutiérrez cravará a essencialidade do evento crístico ocorrido no


passado como penhor que equilibra e vivifica a esperança cristã, para o presente e
o futuro.
A morte e a ressurreição de Jesus são nosso futuro, porque são presente arriscado e
esperançado. A esperança que vence a morte deve criar raízes no coração da práxis
histórica; se não toma corpo no presente para levá-lo adiante, não será senão uma
evasão, um futurismo. Haverá que se ter sumo cuidado em não substituir um
cristianismo del mas allá, por um cristianismo do futuro; se um se esquecia deste
mundo, o outro corre o perigo de descuidar um presente de miséria e injustiça, de
luta e de libertação.105
Na mesma obra ainda fica nítido o uso que Gutiérrez faz da própria tensão
já e ainda não, quando aborda a Promessa, um conceito de Moltmann, como algo
já cumprido em eventos históricos, mas ainda não completamente. O teólogo
João Carlos Almeida, também conhecido como padre Joãozinho, é outro que, em
sua interpretação da teologia de Gutiérrez, enxergou a tensão exteriorizada:
“Portanto, segundo a reflexão de Gutiérrez, existe uma tensão na história entre o
„já‟ e o „ainda não‟, entre a promessa escatológica e a realização histórica”.106
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Exatamente esta tensão é o motor da história.107


Cumprindo-se já em realidades históricas, mas ainda não plenamente; projetando-
se incansavelmente ao futuro, criando uma mobilidade histórica, a Promessa vai-se
revelando em toda sua universalidade e concreção. É inesgotável e domina a
história, porque é a autocomunicação de Deus, que entrou numa etapa decisiva com
a Encarnação do Filho e o envio do Espírito da Promessa (Gl 3,14; Ef 1,13; At
2,38,39; Lc 24,29); mas pela mesma razão ilumina e fecunda o devir histórico da
humanidade e leva-o através de realizações incipientes para a sua plenitude. Ambos
os aspectos são indispensáveis para esboçar as relações entre promessa e história.108

4.10
Leonardo Boff

Concluindo este capítulo, traremos um teólogo brasileiro que dispensa


apresentações: Leonardo Boff (1938-) Seus escritos abarcam uma variedade
impressionante de temas, não raras vezes dialogais com a escatologia. Deveras,
ele segue a tendência de Gutiérrez, com nuances próprias. Junta-se a João Batista
Libânio e Maria Clara Bingemer enquanto provavelmente os mais profícuos

105
GUTIÉRREZ, Teología de la Liberación, p. 283-284.
106
ALMEIDA, Teologia da Solidariedade, p.69.
107
GUTIÉRREZ, Teología de la Liberación, p. 142.
108
GUTIÉRREZ, Teología de la Liberación, p.138.
163

escatologistas brasileiros na linha da teologia da libertação. 109A escatologia que


interessa a Boff é a da “graça libertadora de Deus no cosmo e na vida humana”110,
que é feita não como “um tema isolado da teologia, que trata apenas dos temas
derradeiros como morte, ressurreição, juízo final, consumação do ser humano e do
cosmo, mas uma perspectiva intrínseca ao todo da história e da realidade humana
e cósmica”.111
Boff escreve, divaga, poetiza e propõem incansavelmente sobre as
realidades temporais futuro e presente da esperança cristã. A tensão já e ainda não
definitivamente não está ausente de sua reflexão, como podemos notar, a título de
exemplo, em seu livro Vida para Além da Morte:
Dizer esperança é dizer presente, mas também futuro. É gozar de um já presente,
na expectativa de que se revele plenamente porque ainda-não se comunicou na
totalidade. Deus mesmo é “o Deus da esperança” (Romanos 15,13): Ele já está aí,
presente e se auto-doando, mas também é sempre aquele que vem, que está para
chegar na surpresa de uma novidade. Por isso Ele é e será para o homem o eterno
futuro absoluto. Nunca deixará de chegar, mas jamais chega de forma absoluta, a
ponto de esgotar totalmente Seu inefável futuro. 112
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Além de Boff articular a tensão escatológica, também parece concordar com


Cullmann nas conclusões de que o tempo em que vivemos é um tempo de
intervalo, intermediário, e que o futuro representa uma vinda de Cristo.
O tempo de agora é um tempo de entre-tempo, do já e do ainda-não, entre a fé no
futuro presente, mas ainda não totalmente realizado e a esperança de que ele enfim
se manifeste com toda a patência [...] O verdadeiro cristão tem o rosto voltado para
o futuro donde virá aquele que já veio. Ele espera na alegria de quem sabe: Ele vem
e vem em breve. Com infinita saudade o exprimia a Igreja primitiva com uma
palavra aramaica que passou para o mundo grego sem alteração: Maranatha: Sim,
vem, Senhor Jesus (1 Cor 16,22; Apc 22,20; Didaqué 10,6)113
Da mesma forma estão em sintonia na perspectiva ética que essa esperança
do já é chamada a comparecer. Essa vem a ser uma das suas maiores
contribuições:
A esperança se funda, exatamente, na diferença entre aquilo que já é e aquilo que
ainda-não-é, mas que é possível; entre o presente e o futuro, possível de-se-tornar-
presente. O Já constitui o futuro realizado. O Ainda-não forma o futuro em aberto.

109
Para se conhecer mais esta escatologia, recomenda-se a leitura de: LIBÂNIO, João Batista.;
BINGEMER, Maria Clara L. Escatologia Cristã. Petrópolis: Vozes 1985. Cf. também LIBÂNIO,
João Batista. Escatologia e Hermenêutica. Perspectiva Teológica. Ano 37, 1983, p.315-335.
110
SCHWAMBACH, Claus. Esperança no horizonte do pensar sacramental. Uma abordagem da
escatologia de Leonardo Boff em perspectiva protestante. Estudos Teológicos, ano 48, n. 2, 2008,
p.76.
111
BOFF, Leonardo. Vida para além da morte: O Presente - seu futuro, sua festa, sua contestação.
20. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
112
BOFF, Vida para além da morte, p.137.
113
BOFF, Vida para além da morte, p.116-117.
164

Enquanto a esperança vê o futuro e o Reino já presentes no meio de nós, no bem,


na comunhão, no fraternismo, na justiça social, no crescimento verdadeiramente
humano dos valores culturais, na abertura do homem para com o Transcendente,
ela tem motivos para celebrá-lo e comemorá-lo com jovialidade serena e no gozo
tranqüilo de sua manifestação.114

No entanto não podemos deixar de observar que, apesar de locucionar sua


escatologia com a formulação já e ainda não, e compartilhar outras matérias
escatológicas com Cullmann, Boff tem pressupostos hermenêuticos e exegéticos,
assim como desdobres práticos consideravelmente distintos. Apesar da utilização
de categorias clássicas parecidas, como a realidade da simultaneidade do já agora
e do ainda não, “temos a impressão que, sob as premissas do pensar sacramental e
da antropologia transcendental, embora os termos sejam, em parte, os mesmos, os
significados são diferentes”.115As teses de Boff da unidade entre escatologia
individual, coletiva, histórica e cósmica diferem ligeiramente de Cullmann. Além
disso, Boff explica o inter-relacionamento que existe entre escatologia preterista,
presente e futura, modificadamente de Cullmann. Boff, por exemplo, defende uma
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realização escatológica mais fragmentada e processual do eschaton: “Se o fim-


meta já está presente no meio do mundo, então nada mais normal do que
afirmarmos que a vinda de Cristo já está acontecendo, seja como graça
consoladora, seja como juízo purificador”.116 Parece que toda, e não parte, da
dimensão da esperança cristã, passa a ser articulada como utopia do reino em suas
concretizações provisórias na história.117
Boff parece partir mais da metafísica do que da perspectiva histórico-
salvífica:
O sentido radical do mundo proclamado pela fé cristã não emerge apenas no fim.
No termo ele se manifestará plenamente. No processo longuíssimo, entretanto, ele
manifesta em formas históricas, sempre limitadas e imperfeitas.118 [...] O futuro
leveda o presente, fazendo que ele cresça mais e mais na linha da total
manifestação e parusia daquilo que vai carregando como promessa dentro de si.119

Claus Schwambach, teólogo luterano brasileiro citado no segundo capítulo,


ajuda-nos a entender mais o pensamento de Boff sobre a tensão já e ainda não:
Para Boff, a escatologia é uma reflexão teológica sobre o alvo derradeiro de todas
as coisas, tal como esse se encontra de forma provisória em meio à história. Nesse
sentido, a Trindade, que representa esse alvo, nunca irá parar de vir, pois sua
114
BOFF, Vida para além da morte, p.138.
115
SCHWAMBACH, Esperança no horizonte do pensar sacramental, p.106.
116
BOFF, Vida para além da morte, p.129.
117
SCHWAMBACH, Esperança no horizonte do pensar sacramental, p.76.
118
BOFF, Vida para além da morte, p.107.
119
BOFF, Vida para além da morte, p.140.
165

presença, que é a presença da própria salvação ou do eschaton, é sempre provisória


e aberta para um futuro maior. Para Boff, essa é a tensão escatológica do “já agora”
e do “ainda não”, dada com essa provisoriedade da presença da salvação no mundo.
Quando a graça está presente, fragmentos da salvação escatológica se realizam. O
“já agora” representa o futuro já realizado; o “ainda não”, o futuro ainda em aberto.
Outras categorias usadas por Boff são: o novo; latente e patente;
escondido/abscôndito e revelado; promessa e cumprimento; antecipação e reserva
escatológica. O futuro escatológico não é nem puramente presente, nem puramente
futuro. Assim, os céus e a terra escatológicos crescerão em meio a esta terra e estes
céus, até que tenham nascido por completo, no futuro. Há, como já registrado, uma
escatologização de toda a realidade.120
Schwambach, em sua análise de Boff, reconhece vantagens em sua
escatologia, tanto para o discurso teológico, o qual ganha em amplitude, quanto
para o diálogo entre teologia, religiões, filosofias e ciências, que ganha em
capacidade existencial, quanto ainda para a elaboração de uma teologia da
libertação e para a própria escatologia que avançam no conceito de esperança e
utopia. Uma vez que Cullmann estava mais atrelado à revelação escriturística,
menos propenso ao refletir especulativo e muito preocupado que o novum
novissimum continuasse despontando com nitidez, fica patente o dissenso entre os
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dois teólogos, bem como a transmutação que Boff atingira.

4.11
Síntese Conclusiva

Findamos este capítulo onde provocamos o diálogo entre Cullmann e


teólogos contemporâneos e posteriores, realizados com as alternativas que se
mostraram possíveis e com a dimensão que o nosso objeto de pesquisa recebeu a
partir destes encontros. Havíamos nos proposto a examinar a receptividade e a
reverberação do já e ainda não na teologia, após Cullmann ter desatado seu
insight e este ter penetrado o mundo acadêmico religioso. Foi uma dezena de
interlocuções. Fizeram parte do colóquio dez respeitados pensadores cristãos e um
documento eclesial-teológico, de matizes protestante e católica, e comprovou-se
que em cada um deles, o paradoxo temporal foi acolhido, manuseado, confrontado
e desenvolvido, causando uma riqueza de perspectivas escatológicas-
missiológicas. Alguns o manusearam com pressupostos e tendências mais

120
SCHWAMBACH, Esperança no horizonte do pensar sacramental, p.103.
166

semelhantes aos de Cullmann, outros nem tanto. Alguns o fizeram mais próximos
geográfica e cronologicamente ao teólogo luterano franco-alemão, outros
articularam o já e ainda não a partir de um terreno e período mais distantes. Mas
cada um se deixou marcar, em algum nível, em sua trajetória de reflexão. E cada
um, também, aportou particular contribuição para a afirmação desse conceito
como um clássico na teologia, dando-lhe robustez e amplitude, e estimulando a
eventuais desdobramentos.
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5
Possibilidades e implicações missionais da tensão
escatológica já e ainda não

O diálogo missiológico-escatológico que propomos neste capítulo estará


construindo sob um patrimônio multiforme e fértil. Ao longo da história da
teologia esta conversa tem sido empreendida e, em momentos especiais, mostrou-
se crucial. Bosch acredita que a recuperação da dimensão escatológica no século
XX acontecera com mais clareza ao redor de círculos missionais. E avisa que isso
não deve ser motivo de surpresa, uma vez que ―desde os inícios da Igreja cristã
houve uma afinidade um tanto peculiar entre o empreendimento missionário e as
expectativas de uma mudança fundamental no futuro da humanidade‖.1
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Atualmente, têm abundado teses e propostas que aventam enlaces e


compatibilizações entre os dois lócus.2 Esse relacionamento é de nosso interesse
em particular, o qual nos motivou desde o início na pesquisa.
Gibbs fala que, em primeiro lugar, a recuperação da escatologia para o
diálogo tem a capacidade de renovar o ímpeto missionário, pois a compreensão do
tempo atual que se encontra a igreja desperta-a para o entendimento do
ingrediente kairológico da comissão missional que lhe foi dada por Cristo, de seu
senso de importância e de urgência3.

1
BOSCH, Misión en Transformación, p.606.
2
Por exemplo: WRIGHT, Surpreendidos pela Esperança. 2009; CHESTER, Tim. Mission and the
Coming of God: Eschatology, the Trinity and Mission in the Theology of Jürgen Moltmann.
Milton Keynes: Paternoster, 2006; SILVA, Ricarte de Normandia; BOFF, Jenura Clothilde.
Dimensão escatológica da Evangelização: Um estudo teológico. Pastoral da exortação apostólica
Evangeli Nuntiandi do Papa Paulo VI. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro, 2009.
3
A importância dos tempos intermediários para a missão do testemunho do Evangelho é uma tese
idiossincrática de Cullmann. Quem também escreveu sobre o tema foi John Stott: ―É desta forma
que a parusia de Jesus está ligada à missão da igreja. A parusia dará fim ao período missionário
que começou com o Pentecostes. Nós só dispomos de um tempo limitado no qual completar a
responsabilidade que nos foi confiada por Deus. Precisamos, portanto, resgatar a ansiosa
expectativa escatológica dos primeiros cristãos, juntamente com o senso de urgência que ela lhes
deu. Jesus havia prometido que o fim não viria antes que o evangelho do Reino tivesse sido
pregado através do mundo todo, a todas as nações. STOTT, John. Ouça o Espírito, ouça o mundo.
2. ed. Tradução Silêda Silva Steuernagel. São Paulo: ABU, 2005, p.164.
168

Restabelecer a verdadeira esperança bíblica também significará um renovado


comprometimento com a missão da igreja. Pois viver na esperança significa que
entendemos não primariamente ―onde‖ estamos vivendo – ―aqui em baixo‖, como
oposto a ―lá em cima‖. Antes, a esperança bíblica nos ensina ―quando‖ estamos
vivendo, no tempo ―agora‖, durante a sobreposição das duas eras, após a vitória
escatológica de nosso Senhor na ressurreição e antes de seu retorno final em glória.
Durante este tempo ele nos deu algo para fazer: ―Fazei discípulos de todas as
nações, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a
guardar todas as coisas que vos tenho ordenado‖.4
No entanto, a escatologia não fortifica somente o comprometimento com a
missão, mas impacta a forma, o como se avalia e pratica a missiologia. Há, em
certo sentido, uma dependência da missiologia à escatologia, como Padilla
apontou: ―só a partir dessa moldura escatológica e cristológica pode-se entender a
messianidade de Jesus e a consequente participação em sua missão neste
mundo‖.5
Em certo aspecto, pode-se dizer que qualquer escatologia tem o potencial de
influenciar a missiologia, nem sempre positivamente. Existem muitos exemplos
de programas missionários substancialmente embasados em motivações
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escatológicas, os quais outrora apresentavam, com fervor, doutrinas escatológicas,


e que causaram grande repercussão no campo missional, mas que foram julgados
criticamente pela história cristã como questionáveis e, às vezes, até nocivos6. Por
isso, há necessidade permanente de ser ter cuidado na articulação de uma
apropriada escatologia para que, consequentemente, ela desemboque numa
missiologia saudável. Todos envolvidos com a pesquisa e a práxis possuem uma
preciosa oportunidade (e uma responsabilidade também) de contribuir na
composição desta dinâmica.
O nosso aporte particular neste capítulo final tentará contribuir sondando as
possibilidades e implicações missionais que a escatologia permite, estritamente na
sua temporalidade já e ainda não. O paradoxo foi estudado ao longo das últimas
divisões e neste momento será chamado a fecundar inferências teológico-pastorais
para a tarefa missionária que a igreja tem diante de si. E a tensão escatológica se
mostrou frutífera nessa proposta. Não temos a ilusão de dissecar todas as

4
GIBBS, Regaining Biblical Hope, p.322.
5
PADILLA, C. René. Missão Integral: Ensaios sobre o reino e a igreja. São Paulo: Temática,
1992, p.83-87.
6
No capítulo primeiro de seu livro Missão como com-paixão, dedicado a análise histórica da
missão protestante na América Latina, Roberto Zwetsch, aborda exemplos de algumas iniciativas
missionárias que se provaram parcialmente infelizes e comprometeram indelevelmente o
testemunho cristão. É possível identificar motivações e noções escatológicas questionáveis por trás
de alguns destes empreendimentos.
169

alternativas factíveis, e talvez até estejamos correndo o risco de perder de vista


alguma possibilidade mais provável. Todavia, cremos ter encontrado algumas
opções significativas, que inclusive podem ser desdobradas futuramente.
A metodologia que concebemos, sobretudo nas duas primeiras frações, está
intimamente ligada com a hermenêutica de tensão. Tencionamos inspirar-nos na
dualidade já e ainda não, como uma chave que procura a manutenção de extremos
em seus lugares de polo, sem sucumbir a polarizações. Nessa perspectiva,
consideraremos, em cada seção, dois temas teológicos que poderiam ser vistos
como concorrentes ou incompatíveis (e que às vezes até são manipulados dessa
forma), afirmando a realidade e a legitimidade de ambos, e a posição justaposta e
dialética entre eles. Em certo sentido, a tensão já e ainda não servirá como a mãe
e mentora dessas outras tensões. A viabilidade dessa estratégia encontra respaldo,
por exemplo, num pensamento de Gibbs:
Uma das coisas mais entusiasmantes em restabelecer uma estrutura escatológica
verdadeiramente bíblica é a maneira como cada um dos principais ensinos cristãos
é aguçado, realçado, enfatizado e feito ainda mais importante pela adição do
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colorido do ―tempo do fim‖ ao quadro.7


A tese do professor luterano é de que a teologia faz bem em se predispor a
apreciar o paradoxo, a tensão, o dizer ―sim‖ para duas verdades antimônicas ao
tempo, como a lei e o evangelho, o velho homem e o novo homem, o
simultaneamente santo e pecador, a iniciativa divina e responsabilidade humana.
Gibbs vai além e entende que, a rigor, as demais tensões só podem ser
encontradas e ainda sobrevivem, porque e enquanto temos uma tensão
escatológica. Ele vai dizer que
há apenas uma razão para estes paradoxos existirem – é porque vivemos na tensão
entre a inauguração e começo dos últimos dias em Cristo e a consumação final da
era em Cristo. Quando Jesus voltar, não precisaremos distinguir entre lei e
evangelho, porque tudo será recebido como presente de Deus. Não haverá mais
tensão, não mais luta entre o velho homem e o novo, pois tudo será feito
completamente novo. Não haverá mais peccator, apenas iustus. Mas até aquele
tempo chegar, vivemos no paradoxo, esperamos o paradoxo – porque somos
salvos... na esperança.8
Além de um colóquio entre tensões, outra particularidade deste capítulo
final será a continuidade da caminhada com o teólogo Oscar Cullmann. Não
ficaremos totalmente dependentes de seus insights, mas tentaremos priorizá-los
em cada porção, como referencial teórico basilar desta dissertação, e dando

7
GIBBS, Regaining Biblical Hope, p.322.
8
GIBBS, Regaining Biblical Hope, p.322.
170

ouvidos essencialmente às três obras principais que foram acessadas: Cristo e o


Tempo, Cristologia do Novo Testamento e Salvação na História.
A possibilidade de enxergar em Cullmann uma capacidade relevante para a
atividade missional não é uma proposição reservada ao presente estudo. Outros
teólogos nos fazem companhia, dentre os quais um dos maiores eruditos em
missiologia do século XX, o sul-africano David J Bosch9, quem já muito
contribuiu nesta pesquisa em capítulos anteriores. O link que ele faz da
escatologia e da missão indubitavelmente reflete a influência de Oscar Cullmann,
seu orientador de doutorado.10
Por último, neste exórdio, uma nota elucidativa sobre as duas primeiras
seções: partilhamos as possibilidades e implicações missiológicas da tensão já e
ainda não de Cullmann em duas principais áreas, a saber: a querigmática e a
performática. Estamos tentando edificar na posição de Moltmann: importa o que
se espera e como se espera. Valorizamos a mensagem da esperança, o conteúdo de
seu anúncio, e também a forma como se faz a entrega da mensagem, a postura
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escatológica-missional da Igreja.

5.1
A tensão já e ainda não informa a mensagem missional:
dimensão querigmática

Acabamos de argumentar que a perspectiva escatológica já e ainda não


funciona como a tensão genetriz que vai dar à luz a outras tensões que se
retroalimentam dela e vão direcionar o querigma e o comportamento missional.
Nesta primeira parte, nossa pergunta norteadora será a do querigma: como a

9
Bosch é mais conhecido pelo seu livro Missão Transformadora, obra que se tornou uma espécie
de livro-texto no estudo da missão cristã, adotado por muitos Seminários e Faculdades de
Teologia, e foi considerada uma dos livros mais influentes do século XX pela revista Christianity
Today. O livro foi publicado originalmente em 1991, e foi acessado nesta pesquisa a partir de sua
edição em espanhol.
10
Segundo Livingston, em sua pesquisa sobre os primórdios da aventura missionária de Bosch,
―Cullmann teria influenciado Bosch em, pelo menos, dois pontos: Primeiro, provendo a Bosch sua
moldura teológica da História da Salvação, que Bosch usou até os anos 70. Cullmann
expressivamente diferenciou entre ―História da Salvação‖ e ―história mundial‖ e viu a obra
salvífica de Deus no mundo como uma continuidade do ministério da igreja [...] Cullmann também
influenciou Bosch com respeito ao conceito das dimensões ―já‖ e ―ainda não‖ do reino [...] Bosch
adotou esta perspectiva depois de ler Cristo e o Tempo de Cullmann, e reconhecendo que era ―um
dos poucos insights teológicos que permaneciam absolutamente constantes em seu pensamento‖.
LIVINGSTON, A Missiology of the Road, p.269.
171

tensão já e ainda não informa a mensagem missional (seu conteúdo, sua matéria,
sua substância)? Trataremos do teor do testemunho, da palavra que é pregada.
Pensamos, especificamente, em quatro possibilidades principais, que possuem
íntima relação entre si.

5.1.1
Uma mensagem cristocêntrica e pneumatológica

Uma mensagem missional concatenada ao já e ainda não cullmanniano não


poderia começar com conteúdo distinto do que o do Cristo. Cristo, em toda sua
amplitude cristológica que o Novo Testamento apresenta, e que fora
magistralmente exposta pelo teólogo teuto-francês na obra Cristologia do Novo
Testamento: Ele é o profeta, o servo sofredor, o sumo sacerdote, o Messias, o
Filho do Homem, o Senhor, o Logos, o Salvador e o Filho de Deus. Mas
fundamentalmente Cristo, na centralidade de sua pessoa e obra para a história. A
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peculiaridade maior neste diálogo escatológico-missiológico que encontramos em


Cullmann é sua certeza de que em Cristo (particularmente sua ―fase crucial‖:
encarnação, morte, ressurreição e ascensão11), toda a realidade humana foi
alterada. Uma nova perspectiva foi realizada. Deus agiu de forma definitiva em
favor do ser humano. Uma vitória escatológica foi obtida, que dá garantias para
todas as promessas futuras. É em Cristo que o ―sim‖ de Deus foi posto em aberto.
A mensagem missional que o já e ainda não de Cullmann exige que se
proclame, antes de qualquer coisa, é a do amor de Deus, comprovado em ações
favoráveis ao longo do curso da trajetória do ser humano. É o ―amor humanitário
de Deus‖12 que atingiu um clímax no momento em que Cristo irrompeu no tempo
e no espaço para algo ainda maior do que ensinar, inspirar, curar, resistir, sofrer.
Tudo isso também pertence à relevância de seu expediente, entretanto, não se
equivalem em nível de magnitude à sua missão muito específica de caráter
salvífico e vicário. A mensagem missional até pode e deve abordar as múltiplas
lições e aplicações que as pluridimensionais características crísticas
neotestamentárias oferecem. A cristologia é muito rica e a mensagem missional
faz bem caso se beneficie de todos os seus variados conceitos e fascinantes

11
CULLMANN, Salvation in History, p.316.
12
BOFF, Vida para Além da Morte, p.23.
172

desdobramentos. No entanto, a centralidade do evangelho, da boa notícia do Deus


que se ―aproximou de nossa existência e morou na carne humana, quente e mortal,
e se chamou Jesus Cristo‖13, deve sempre ser a tônica, requer sempre prevalecer
em qualquer anúncio com intenção missional, como o ―centro indiscutível da
revelação de Deus‖.14
O Novo Testamento não pode, nem quer, instruir-nos sobre o ―ser‖ de Deus,
considerando-o à parte do ato pelo qual se revela; as investigações sobre o ―ser‖,
em sentido filosófico, lhe são totalmente alheias. Seu propósito é proclamar as
magnalia Dei, as grandes obras reveladoras de Deus feitas em Cristo. E se o Novo
Testamento faz algumas tímidas alusões a uma realidade situada além da revelação,
é só chamar nossa atenção no mesmo tempo para a distinção e a unidade entre o Pai
e o Filho, e para nos recordar que toda cristologia é uma história de salvação.15
Por isso, cremos que fazemos mais justiça ao entendimento de Cullmann
usando a adjetivação teológica cristocêntrica em vez de cristológica, para a
mensagem missional. Dessa forma, buscamos evitar que a centralidade do Cristo,
como Cullmann percebera, perca-se no emaranhado de possibilidades que a
complexidade da doutrina de Cristo outorga. Uma comunicação evangelística
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pode ser cristológica, e ainda assim cair na tentação de destacar de forma


desequilibrada algumas facetas de Jesus em detrimento de outras. Encontra-se à
disposição do mundo a divulgação de um Cristo reduzido, domesticado, parcial,
que defende apenas os interesses ideológicos de um movimento ou de um projeto.
É possível questionar até que ponto esta comunicação está sendo autêntica e pode
comprovar-se verdadeiramente eficaz. Noutro viés, uma comunicação
evangelística pode ser cristológica, e ainda assim cair na tentação de desapegar-se
do seu peso e de sua supremacia para assimilar outras matérias bíblicas
permitidas, como a história, a ética e a moral, que até possuem o seu lugar numa
instrução cristã, mas nunca podem roubar a projeção do conteúdo que
intencionalmente focaliza o crucificado e o ressuscitado pro nobis. Não faltam
exemplos de sermões onde Cristo serve muito mais de pretexto para informações
jurídicas ou acenos psicoterapêuticos do que para revelar um Deus em atividade
por suas criaturas e por sua criação. A tensão já e ainda não de Cullmann convida
a uma mensagem cristológica sim, mas a uma cristologia que não titubeia em
deixar-se reconhecer como a prioridade que o Novo Testamento deflagra.

13
BOFF, Vida para Além da Morte, p.22.
14
CULLMANN, Cristologia do Novo Testamento, p.427.
15
CULLMANN, Cristologia do Novo Testamento, p.426.
173

Prioridade esta que já fora acolhida pela comunidade primitiva: a centralidade da


pessoa e da obra de Cristo. A centralidade da graça.
Um querigma submisso, obstinado e apaixonado em ceder o espaço
primordial ao Cristo de Deus precisará, não obstante, deparar-se com dificuldades.
Cullmann chama à atenção para o aspecto escandaloso e insano desta pregação.16
Dessa forma essa pregação foi recebida pelas pessoas a quem primeiro foi
testemunhada (judeus e gregos) e dessa forma ela ainda hoje é acolhida,
normalmente. ―Para o homem de então era tão difícil, como é para nós, crer‖17
num conteúdo dessa natureza, porque ele afronta as expectativas naturais do ser
humano. Seja a de um deus potente e glorioso, que precisa ser adulado à base de
contrapartidas (expectativa semítico-judaica = queremos ver os milagres) seja a de
um deus metafísico, teórico e monocórdio, que pode ser especulado, mas que não
se deixa alcançar e experimentar intimamente (expectativa grego-romana =
queremos ouvir sua sapiência). Outra expectativa com a qual se choca a pregação
cristocêntrica é do homem que quer ocupar o lugar de Deus, divinizar-se. Ceder o
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espaço precípuo e deixar de ser o protagonista não são propostas geralmente


atraentes aos ouvidos dos cidadãos de um mundo caído e antropocêntrico.
Ainda assim, mesmo conscientes do desafio de ser palatável, mantemos a
tese de um querigma cristocêntrico. Roberto Zwetsch corrobora:
Missão é participar do envio de Deus entendido em seu ministério trinitário, cujo
fundamento é o amor divino por toda a humanidade, revelado de modo pleno em
Jesus de Nazaré, o Filho do Deus vivo. Ele é o centro do envio de Deus e a missão
que lhe corresponde segue os seus passos.18

Alinhado ao anúncio cristocêntrico, situa-se a perspectiva pneumatológica.


Cullmann não possui, per si, uma escatologia laboriosa em sua dimensão
pneumatológica, como, por exemplo, Moltmann e Pannenberg. Porém, ainda que
ele não tenha falado quantitativamente sobre o Parácletos, qualitativamente sua
presença é reconhecida perpassando seus escritos. Como percebemos no capítulo
3 desta dissertação, a teologia de Cullmann também confia no Espírito Santo. Ele
é o dom, o responsável, a dínamis que possibilita a mensagem ser acolhida e crida.
Ele é o dador da fé e o agente capacitador que irá nutri-la, dotá-la de utopias e

16
CULLMANN, Cristologia do Novo Testamento, p.427; CULLMANN, Salvation in History,
p.320.
17
CULLMANN, Cristologia do Novo Testamento, p.426-427.
18
ZWETSCH, Missão como com-paixão, p.85.
174

habilidades e colocá-la a serviço do próximo e do mundo no processo da história


da salvação.
Cullmann se lembrará da obra pneumatológica na ação inicial da fé. A
mensagem missional depende da ação do Espírito Santo para penetrar no coração
humano contaminado hamartiologicamente e, desde a rebeldia adâmica, resistente
ao despertar espiritual. Este Espírito também será essencial no auxílio para a luta
permanente que acontece após o recebimento da pistis. Cullmann entende, a partir
de Paulo, que a batalha cristã entre a vontade de Deus e a vontade humana,
inclinada ao erro e ao egoísmo, que oprime o cristão constantemente, só é possível
de ser enfrentada com o reforço do Espírito Santo.19 Na perspectiva escatológica
já e ainda não, já se conta com a presença vivificadora do Espírito, mas a carne
(natureza humana em estado pecador) ainda não foi neutralizada completamente e
coabita junto do Espírito em contínua tensão e inimizade dentro do crente. É o
Espírito, também, que ensina a pedagogia da vida piedosa à nova criatura. Ele é a
fonte de revelação, inspiração e sabedoria. A impossibilidade de amar ao próximo
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da mesma maneira que se ama a si mesmo (quando se é dirigido pela carne) é


tornada possível mediante a atividade pneumática.20 O Espírito é o Criador da
comunidade, o mantenedor da Igreja neste tempo de hiato escatológico entre a
ressurreição e a parusia, e por isso sempre fomenta a participação na koinonia e a
fraternidade. Tudo isso faz, segundo Cullmann, operando pela pregação da
Palavra e pelos sacramentos. Diante de tantas dádivas provenientes da ação
pneumatológica, parece-nos que Cullmann endossaria uma mensagem missional
cristocêntrica e pneumatológica.
Ademais, outra situação ligada ao Espírito Santo merece ser ressaltada,
devido ao seu evidente componente escatológico: é o próprio Espírito, o
embaixador, o penhor, do ainda não no já do cristão. ―Quanto à tensão entre o ‗já‘
e o ‗ainda não‘, ela se dá com a presença do Espírito Santo que constitui a igreja.
O Espírito Santo é ele mesmo as primícias do fim‖.21 A antecipação de toda a
bem-aventurança que prefigura em promessa no horizonte de cada pessoa
conectada à Cristo, já se torna realidade no tempo presente a partir da presença e
da ação do Espírito Santo. É ele quem certifica e concede sinais do futuro de Deus

19
CULLMANN, Salvation in History, p.334.
20
CULLMANN, Salvation in History, p.334.
21
CULLMANN, Cristologia do Novo Testamento, p.297.
175

na vida atual. ―O Espírito Santo é a antecipação do fim no presente. Ele tipifica o


período em que vivemos‖.22 Um sinal do fato de que os ―últimos dias‖
alvoreceram, que uma nova fase começou.23 E nesse ensejo, ele fornece à igreja
especial conhecimento kairológico para compreender os tempos em que vive em
sua relação aos estágios da história da salvação.24 Essa sensibilidade e capacidade
de contextualização disponível à igreja hoje é a mesma sabedoria que já havia sido
concedida aos profetas antigos, pelo mesmo Espírito, e a capacita a ter força
profética para discernir os sinais nos contextos específicos que ela participa e
―inspecionar o desenvolvimento e avanço da história da salvação‖.25
O contraponto do Espírito Santo na mensagem missional, que na verdade
não se distingue exatamente como contradição ao dado cristocêntrico, porque a
obra própria pneumática é justamente alavancar a segunda Pessoa da Trindade26,
abre também uma perspectiva trinitária preciosa. Essa perspectiva trinitária
poderia ser desdobrada em diversas circunstâncias, dentre as quais, anteporemos a
seguinte: uma mensagem missional que, a partir da união pneumatológica à
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centralidade de Cristo e consequente abertura em prisma trinitário, ocasiona num


equilíbrio de doutrina e práxis. O que se quer afirmar? A título de conjectura,
segue nosso argumento, inspirado em Susin:27
Na grande comissão, em Mt 28, Cristo afirmara: ―Façam discípulos...
batizando em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo‖. Todas as personalidades
do trio divino são apresentadas ao prospecto para serem conhecidas,
compreendidas, cridas, e desfrutadas na vida cristã. Poderíamos induzir que, caso

22
CULLMANN, Salvation in History, p.334.
23
CULLMANN, Christ and Time, p.72-73.
24
CULLMANN, Christ and Time, p.73-74.
25
CULLMANN, Salvation in History, p.332.
26
SÁNCHEZ, Leopoldo. Pneumatología: El Espíritu Santo y la Espiritualidad de la Iglesia. Saint
Louis: Concordia, 2005, p.127.
27
A cogitação exposta foi ligeiramente inspirada pelo seguinte pensamento de Luis Carlos Susin:
―Em termos de teologia trinitária, se diria que, depois do exacerbado patriarcalismo pré-moderno
do Pai celeste com a mediação das autoridades, e depois do exacerbado messianismo moderno do
Homem terrestre – cristologia secularizada – com a mediação da racionalidade e da militância, há
na pós-modernidade a exacerbação do pentecostalismo com a imediatez emotiva e a participativa
que dispensa autoridades e racionalidade, tradição e palavra. É impressionante a coincidência da
atual situação com as teses fascinantes do Joaquim de Fiore, ao menos em termos de análise da
história e de confusão teológica. [...] A escatologia, no alvorecer da terceira idade, fica tão
iminente ou imediata que acaba por ficar dissolvida: onde o ―espírito‖ perde a ―encarnação‖, a
emoção se sobrepõe à palavra e à razão, a participação confunde a diferença, toda realidade fica
dissolvida num imediato êxtase, mais precisamente no ‗quiliasmo‘ – quietismo – e numa kathársis
comunional e confusional, numa potência sem necessidade de projeto e portanto sem meta
escatológica, pois já chegou, se superou.‖ SUSIN, Assim na Terra como no Céu, p.23.
176

fosse apenas uma, ou duas, e não três, correr-se-ia o risco de se promover um


discipulado desequilibrado, desproporcional, instável. A mensagem missional
poderia ficar comprometida. Uma ênfase exagerada no Espírito Santo poderia
alimentar uma vida cristã por demais mística, espiritualizante, experiencial, de
pouca encarnação, envolvimento e concretude. Um excessivo destaque à pessoa
do Pai poderia desenvolver um tipo de relacionamento com o sagrado viciado em
milagres transcendentais e na intervenção de Deus, atendo-se ao fato de que Ele é
o criador e sustentador das coisas, ou mesmo se encaminhar para uma
religiosidade farisaica na qual se ignora que o caminho ao Pai se dá através do
Filho. Em outras palavras, se o Pai compuser a totalidade do anúncio que a
mensagem cristã apregoa, é possível que se caia numa espiritualidade legalista,
enquanto que se o Espírito monopolizar o que essa mensagem tem a dizer, é
possível que se caia num misticismo carismático. Por outro lado, ainda, se Cristo
for tudo o que a mensagem missional testemunhar, é possível que se perca a noção
mundana da vocação cristã, da espiritualidade do cotidiano, que a ênfase
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criacional do Pai traz, bem como a capacidade de manifestação dos carismas e do


crescimento na fé, obra atrelada ao Espírito. Em resumo, sem o equilíbrio
doutrinário trinitário, sem uma proposta de adesão à Trindade e sua
heterogeneidade, não se tem fundamentação para um caminho de fé e de vida
balanceado, prático e multidimensional.
Portanto, nossa primeira sugestão à pergunta sobre a mensagem missional
nos leva a conclusão de que ela precisa estar cimentada no testemunho
cristocêntrico e pneumatológico (desdobrando-se em trinitário). E Cullmann
consente com tal asserção.

5.1.2
Uma mensagem basileica e soteriológica

Além de cristocêntrica e pneumatológica, a tensão já e ainda não


escatológica em Cullmann nos remete a uma mensagem missional basileica, isto
é, que expressa a realidade do Reino de Deus, e ao mesmo tempo soteriológica,
ou seja, que comunica a ação de Deus em sua perspectiva salvífica. Os dois temas
não são necessariamente rivais (assim como Cristo e o Espírito tampouco eram),
177

mas podem ser encontrados competindo por espaço em conteúdos cristãos,


especialmente nas últimas décadas, quando o conceito do Reino foi, de certa
forma, redescoberto28 e passou a reivindicar sua consideração no querigma cristão
e sua distinção do conceito eclesiológico. Sempre que essa disputa é verificada, a
mensagem testemunhada sofre, pois se manifesta de forma confusa, truncada, uma
vez que não se reconhecem claramente quais são suas dádivas relacionadas ao
passado, suas perspectivas e compromissos para o presente e suas promessas para
o futuro.
A questão que permeia essa seção é a abrangência da mensagem missional,
bem como o predicado de seu conteúdo. Até que ponto o testemunho deve
concentrar-se no relacionamento das pessoas com o divino, enfatizando a ação
reconciliatória de Deus na cruz de Cristo? Até que ponto deve abordar a ação de
Deus mais ampla no mundo, dando destaque à nova era inaugurada com a
ressurreição? Até que ponto o anúncio deve falar de perdão, de graça redentora e
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28
Tanto em território protestante quanto em campo católico, a teologia do Reino de Deus como
uma esfera ou uma dinâmica distinta (mas não necessariamente separada) do organismo Igreja se
desenvolveu consideravelmente. No pensamento protestante, é possível que se encontre na
Reforma a raiz dessa distinção, mas há quem considere que realmente a teologia do Reino tenha se
emancipado posteriormente. Na teologia católica, esse discernimento parece ter sido sacramentado
a partir do Concílio Vaticano II. Outro dado importante é a variação de compreensões que tem sido
sugerida para o relacionamento que existe entre estas duas dimensões. Muito tem sido escrito
sobre a identidade, a missão e o vínculo de cada uma, com expressivas nuances. Importantes
teólogos se debruçaram sobre o tema (chegando a uma série de pontos de vista comuns), como K.
Rahner, W. Pannenberg, H. Küng, J. Moltmann, E. Schillebeeckx, G. Vos, G. Ladd, para citar
alguns. Também escritos de cunho mais prático-pastoral-missional tocam no assunto. KELLER,
Timothy. Igreja Centrada. Trad. Eulália P. Kregness. São Paulo: Vida Nova, 2014; McNEAL,
Reggie. The Present Future: Six Tough Questions for the Church. San Francisco: Jossey-Bass,
2003; SCHERER, James. Evangelho, Igreja e Reino: Estudos Comparativos de Teologia da
Missão. Trad. Getúlio Bertelli, Luís Dreher, Luís Sander. São Leopoldo: Sinodal, 1991; HIRSCH,
Alan. The Forgotten Ways: Reactivating the missional church. Grand Rapids: Brazos, 2006;
ENGEN, Charles E. van. God’s Missionary People: Rethinking the Purpose of the Local Church.
Apenas a título de semelhança elementar, normalmente o Reino é reconhecido como uma instância
maior que a Igreja, inclusive abarcando-a. Não é nosso intento aprofundar o estado desta questão,
nem mesmo esmiuçá-la na teologia de Cullmann. Para Cullmann, em suma, há uma diferenciação
essencial de identidade entre o Reino de Deus e a Igreja, ligada não ao tempo, mas ao espaço: o
domínio sobre o qual se estende o senhorio de Cristo não coincide com o da Igreja e esta diferença
espacial permite distinguir a soberania de Cristo sobre o mundo de sua soberania sobre a igreja.
Ver: CULLMANN, Christ and Time, p.185-190; CULLMANN, Cristologia do Novo Testamento,
p.297. Parece-nos que Cullmann tinha seu entendimento baseado, pelo menos em parte, na
concepção de Lutero conhecida como ―Dois Reinos‖. Se houver interesse em aprofundar o estudo
desta concepção, sugere-se: ALTMANN, Walter. Lutero e Libertação. 2.ed. revista e ampliada.
São Leopoldo: Sinodal, 2016; BRAATEN, Carl. The doctrine of Two Kingdoms re-examined. In:
KLEIN, Ralf W. (Ed.) Currents in Theology and Mission. V. 15, nº 6. Chicago: Lutheran School
of Theology at Chicago 1988, p. 497-504; RIETH, Ricardo Willy. Doutrina dos dois reinos em
Lutero. Igreja Luterana, Porto Alegre, v. 45, p.125-139, 1989.
178

justiça expiatória? Até que ponto deve-se falar de valores, de graça comum29 e de
justiça social? Qual é o Cristo que será comunicado? O Messias Salvador, que
morreu para justificar o pecador diante de Deus ou o Logos, por quem todas as
coisas foram feitas e em quem todas as coisas subsistem e encontram sentido e
propósito? Em essência, o querigma é sobre a governança ou sobre a salvação?
Fazendo uso de expressões popularmente usadas em nossos dias em meios
cristãos, a mensagem missional deve ser ―Deus no comando‖ ou ―sorria, Jesus te
ama‖?
A problemática que estamos tentando debater não é nova, muito menos
desdenhável. Sobre seu histórico, poderíamos regressar até o começo do
cristianismo, quando a mensagem a respeito da pessoa e da obra de Cristo foi
enunciada com realces intencionais e acolhida com expectativas conflitantes. Aqui
estamos lembrando, por exemplo, as primeiras controvérsias envolvendo o
querigma e as primeiras apropriações que foram feitas da mensagem e da obra de
Cristo, seja em ambiente judaico, seja em contexto gentílico. Estudos históricos e
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o próprio texto bíblico atestam para o fato de que a mensagem missional fora,
desde seu princípio, tentada a amoldar-se às díspares esperanças dos diferentes
partidos político-religiosos do judaísmo da época, assim como às variantes
possibilidades filosóficas da religião greco-romana. Poderíamos explorar também
os retoques e teores acrescentados ao longo da trajetória eclesiástica para se
conseguir resultados ―missionários‖.
Até hoje a pergunta pela mensagem cristã permanece importante, uma vez
que diferentes ―jesuses‖ estão à disposição no cardápio de movimentos que se
identificam como cristãos. Alguns deles não são apenas distintos, mas quase
inconciliáveis. Exempli gratia, escatologias orientadas desproporcionalmente para
uma índole terrena e para o presente, têm concebido missiologias que apresentam
um Jesus fundamentalmente rebelde. A ênfase está na noção do Cristo radical,
revolucionário, do Messias que veio desafiar o status quo político-religioso e
liderar a humanidade com seu exemplo e disposição de mártir em direção a um
novo tempo mais favorável. A matéria a ser apresentada apontará para a
insubordinação do nazareno que teria como alvo maior os fariseus e os saduceus,
porque representavam as instituições de poder, os guardiões da cultura e religião

29
Conceito da teologia reformada de tradição Calvinista que se refere aos dons e bênçãos que
Deus concede as pessoas que não estão ligadas diretamente à salvação delas.
179

contaminada. A boa notícia será a da insurgência do Jesus que quebrava regras:


trabalhava no sábado, comia com pecadores e coletores de impostos e defendia as
mulheres que estavam prestes a serem apedrejadas por adultério. E, nessa leitura
interpretativa, divulga-se o querigma missional do Cristo profético que convoca a
participar em seu movimento de resistência contra as injustiças na sociedade.
Nem todas as escatologias contemporâneas que iluminam missiologias
fazem uso deste Jesus mais sujeito do tempo, que está atento as dores do seu
povo, mais zelote, quem sabe. Outras, de cunho futurístico e obsessão celestial,
por vezes baseiam sua proclamação na mensagem do Jesus triunfante-milagreiro,
do Christus Victor, o juiz vingador do Apocalipse, ou ainda no ―Cristo classe
média‖, condicionado a pautas muito específicas. Nestas perspectivas, Cristo é,
entre outras coisas, o escolhido por Deus para fazer justiça no sentido de punir os
idólatras e separar as ovelhas das cabras. Uma preocupação pela temática da
santidade é mais aparente. A proposta missional anunciada é da adesão ao grupo
de discípulos que aguarda a intervenção que virá no dia final, e enquanto isso,
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colabora a partir de ações muito concretas como votar corretamente, vestir-se


adequadamente e trabalhar por novos convertidos.
Os dois cenários supracitados, delineados de forma até rudimentar e
caricaturada, não esgotam as tendências querigmáticas contemporâneas que
parecem usar de uma espécie de cooptação de significados cristãos no intuito de
instrumentalizar determinadas ênfases. Reduz-se à complexidade material
encontrada na Revelação e testemunhada na história eclesial, seja ela de índole
cristológica ou não, e o que resta desta manipulação não deixa de ser apenas um
fragmento do Cristo e do seu evangelho integral. Não se nega nas exemplificações
acima, que ambas as linhas de doutrina tocam em elementos cristológicos
genuínos. É possível encontrarmos Jesus confrontando os poderes de seu tempo e
defendendo uma causa humanitária. E também é possível vê-lo chamando a
humanidade ao arrependimento e falando sobre um julgamento final, onde as
pessoas serão convocadas a responderem por suas decisões. No entanto, esse não
é o dilema. O perigo está em ferver o texto revelado e o anúncio primitivo para
extrair apenas determinadas porções que caibam na narrativa que se considera,
mormente a versão mais justificada para o cenário atual ou compatível com
pressupostos prévios. A dialética já e ainda não pede um discurso que não
diminua Jesus para um zeloso renegado ou um ardente tradicionalista, por
180

exemplo. Nenhum reducionismo, na verdade, mereceria ser admitido. A dialética


já e ainda não recomenda um anúncio missional que não esteja avocado por
nenhuma corrente teológica ou ideológica que projete exageradamente
determinadas quotas do querigma à custa de outras.
Como tentamos demonstrar, a questão da mensagem missional
historicamente corre riscos extremistas e estes riscos não deveriam ser
menosprezados. Faz-se crucial para a igreja atentar-se para essa virtualidade.
Voltando ao enfoque inicial, a tensão já e ainda não de Cullmann pode
contribuir no sentido de afirmar dialeticamente duas das realidades mais
fundamentais (e atualmente polêmicas) da mensagem cristã: o Reino e a salvação.
O professor luterano, no seio do liberalismo teológico europeu, resistiu em diluir a
peculiaridade soteriológica das ações divinas. A história delas é, evidentemente,
de salvação. Por outro lado, foi não menos corajoso, e somou-se aos teólogos
precursores do resgate da primazia da soberania de Deus que extrapola suas
atividades espirituais na igreja. Há uma basileia real em movimento. E ambas as
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realidades, concorrem e são atingidas pela tensão temporal escatológica.


Podemos inferir da teologia de Cullmann que não se trata de diminuir a
potência do Reino de Deus, para que se preserve o conteúdo que o cristianismo
preferiu em determinados contextos geográficos e históricos: ―salva a tua alma‖.
A extensão, alcance, vigência e realidade do Reino de Deus são primordiais ao
querigma cristão desde a origem dele:
A extensão da soberania de Cristo suplanta infinitamente os limites da igreja.
Nenhum elemento da criação lhe escapa. “Todo o poder lhe foi dado no céu e na
terra‖ (Mt 28.19); ―toda criatura no céu e na terra confessa que Cristo é o Senhor‖
(Fl 2.10); ―tudo o que está sobre a terra e nos céus foi reconciliado por Jesus Cristo
com Deus‖ (Cl.1.14ss). O senhorio presente de Cristo é exercido não só sobre o
mundo visível como também sobre as potestades invisíveis, presentes por detrás
dos dados empíricos e de maneira grandiosa e principalmente sobre as potestades
invisíveis ocultas por detrás do Estado. [...] O Senhorio de Cristo há de se estender
a todos os âmbitos da criação. Se houvesse um só onde este senhorio fosse excluído
não seria total e Cristo deixaria de ser o Kyrios. Por isso a esfera do Estado
também, e ela principalmente, tem de estar incluída em sua soberania. A confissão
de fé Kyrios Christos que se opõe ao Kyrios Kaisar, o prova quão central é esta
ideia para a fé na soberania de Cristo.30
Cristo é o Senhor, o Rei. ―Não há um único centímetro quadrado, em todos
os domínios da existência humana, sobre os quais Cristo, que é soberano sobre
tudo, não reivindique: ‗É meu!‘‖, como disse um dos pais do Neocalvinismo,

30
CULLMANN, Cristologia do Novo Testamento, p.297-298.
181

Abraham Kuyper31. No entanto, a mensagem missional basileica em Cullmann


não é a do convite a se participar de um reino triunfalista, materialista e sócio-
político, onde os aderentes poderão experimentar dádivas celestiais em termos de
saúde e prosperidade por antecipação e/ou se engajar na recuperação de um
território ou na edificação de uma sociedade e de uma cosmovisão cristianizada na
terra. Não cabe aqui o dualismo de cidade de Deus e cidade dos homens, de
Agostinho, onde o espiritual pertence a Deus e o terrenal pertence ao mal (fora e
dentro do ser humano). Cullmann pensa no governo de Deus em ambos os
âmbitos, gerido de forma diferente. Deus reina na esfera secular, através de
múltiplas vocações, liberdades, projetos, valores, leis naturais e civis, e toda a
sorte de dons e iniciativas positivas do ser humano. E reina também na esfera
espiritual, através de sua Revelação e do impacto dela nos corações e mentes. Não
cabe ao cristão equiparar os dois governos, ainda que ele esteja debaixo dos dois
simultaneamente. Não é de sua alçada impor citação bíblica na dimensão secular.
Nem impor leis, onde a misericórdia, a graça, a esperança, a fé e o amor são
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chamados a imperar. Por isso, Cullmann será contrário a qualquer tipo de cruzada
evangelística. O anúncio ao mundo deve ser realizado a partir de outra
perspectiva.
Essa dinâmica pode ser aprofundada e, de fato, há muito material na teologia
que se dedica ao tema. Mas não é nossa intenção neste trabalho. Nosso argumento
aqui é verificar a plausibilidade do aspecto basileico de Cristo na proclamação
missionária em Cullmann, e ela existe. E, ao mesmo tempo, Cullmann confirmará
o conteúdo soteriológico do querigma. O caráter absoluto e amplo do Reino de
Deus não omite uma característica específica de sua natureza: o resgate. Deus está
interessado na salvação da humanidade, agiu para alcançar tal condição e fê-la
disponível. Escreve Cullmann:
Este título, Sotér, se bem que pode ser considerado, com justiça, como uma
variante do título Kyrios – do qual até é possível que provenha – põe em evidência,
contudo, uma ideia que aparece com menos nitidez na noção de Kyrios: a obra
expiatória de Cristo é condição essencial para sua elevação à categoria de Sotér
divino. Lembremos Filipenses 2.9: ―Por isso (isto é, por causa de sua obediência até
a cruz) Deus mais que o elevou‖ e lhe deu um nome, Kyrios, que ―está acima de
todo nome‖. É isto que, em solo cristão, está implicitamente contido no título Sotér:
Jesus é Sotér porque reconciliou Deus e o mundo por sua cruz. Um fato a mais o
demonstra: mesmo onde, como na doxologia de Judas 25 – conforme o uso do

31
BRATT, James D. (ed) Abraham Kuyper: A Centennial Reader. Grand Rapids: Eerdmans, 1998,
p.488.
182

Antigo Testamento – é Deus quem é chamado Sotér, as palavras ―por Jesus Cristo
nosso Senhor‖ remetem à obra expiatória de Cristo, fundamento de toda a
―salvação‖ divina.32
Cremos que as declarações de Cullmann, extraídas de sua análise do
vocábulo grego sotér, que fora brindado a Cristo pelo Novo Testamento e pela
Igreja primitiva, são suficientes para constatar o entendimento soteriológico,
reconciliador e expiatório de Cristo através de sua obediência e morte de Cruz, em
favor do ser humano. Cristo é um Rei que deixou o trono para salvar seus súditos,
quando estes eram ainda pecadores, parafraseando São Paulo em Romanos 5,8.
Deixou o trono deve ser compreendido na perspectiva teológica kenótica, que
afirma as duas naturezas de sua pessoa e a comunicação dos atributos entre elas.
Foi um deixar o trono, sem deixar de ser Rei.
Como enunciamos, temos em Cullmann, tanto a perspectiva do Reino de
Deus, como a remissão realizada por Cristo. Ambas não se contradizem. Ambas
podem ser harmonizadas e devem ser conservadas na mensagem missional. O
perdão precisa ser comunicado tanto quanto o senhorio de Cristo. Sua graça
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resistível ao lado de seu poder inevitável. Sua obediência no tempo ao lado de sua
autoridade eterna. Sua vitória na cruz relacionada à sua liderança no cosmos, sua
servidão voluntária concatenada com sua liberdade intrínseca. Seu Reino futuro
que ainda não foi consumado dialeticamente à salvação já obtida no Calvário e no
Gólgota e outorgada ―no batismo‖.33

5.1.3
Uma mensagem pessoal e cósmica

A mensagem missional que tem sido sugestionada até então pela tensão já e
ainda não Cullmanniana é cristocêntrica e pneumatológica em seus alicerces
mais básicos, e basileica e soteriológica em suas virtudes mais essenciais.
Cullmann fala de se anunciar justapostamente ―ao mundo não cristão‖34 tanto
nossa consciência do senhorio de Cristo aos nossos semelhantes que não
repararam nessa realidade35, quanto o fato de sermos ―povo redimido‖ pelo perdão

32
CULLMANN, Cristologia do Novo Testamento, p.317.
33
CULLMANN, Christ and Time, p.222.
34
CULLMANN, Salvation in History, p.312.
35
CULLMANN, Salvation in History, p.307.
183

dos pecados.36 Avançando nesta mensagem missional basileica e soteriológica,


encontramos um desdobramento notório na teologia de Cullmann, que pouco
encontra discordância nos teólogos, mas que nem sempre é manifesto no anúncio
testemunhal que é realizado: a dimensão pessoal e cósmica do senhorio e da
salvação.
Falando de uma redução cristológica e soteriológica que por vezes é
encontrada na missão protestante, fruto de uma suposta herança pietista, Míguez
Bonino notará que, ―a teologia se resume à cristologia, esta, à soteriologia, e por
fim, que não raras vezes a ―salvação fica caracterizada como uma experiência
individual e subjetiva‖.37 Zwetsch é quem chama à atenção para a crítica do
teólogo argentino:
[...] há muito a ser aprofundado em termos de como viver a perspectiva
escatológica da presença do Espírito no mundo caótico que vivemos. O problema,
normalmente, é que essas experiências ficam restritas ao âmbito dos indivíduos,
quanto muito das igrejas, afirma Míguez Bonino. Perde-se a dimensão da redenção
da criação como aparece no texto de Romanos 8 ou em alguns salmos.38
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Zwetsch, no frutuoso diálogo com Míguez Bonino, abordará a questão do


amor de Deus, que tem sido predominantemente massa vital no querigma cristão,
em sua cobertura dilatada, amor que ultrapassa os limites dos seres humanos como
indivíduos:
O amor, na perspectiva do reino de Deus, é a destruição de tudo o que é injusto e
conspira contra o ser humano, sua vida e dignidade. Mas é também, dialeticamente,
a realização plena de tudo o que é justiça, paz e verdadeira vida. É ainda a plena
iluminação dos sinais da verdadeira vida que os cristãos e não cristãos conseguem
erguer no mundo, pelo poder de Deus.39

Novamente Zwetsch, apoiado em Bonino, quer enfatizar o aspecto cósmico


do amor de Deus: ―Não é válido reduzir esse amor a uma ‗dimensão interpessoal
ou intersubjetiva. Devemos colocá-lo em relação com o caráter cósmico e
escatológico do reino. Isso significa que o amor está indissoluvelmente ligado à
esperança e à justiça‘‖.40
Outro teólogo que afirmará a importância de se resgatar ambos os objetos da
ação amorosa, salvífica e reinante de Deus é N.T Wright. Wright rejeita os dois
36
CULLMANN, Salvation in History, p.312; CULLMANN, Cristologia do Novo Testamento,
p.317; CULLMANN, Christ and Time, p.222.
37
MIGUEZ BONINO, A fé em busca da eficácia, p.101, Apud ZWETSCH, Missão como com-
paixão, p.129.
38
ZWETSCH, Missão como com-paixão, p.132.
39
ZWETSCH, Missão como com-paixão, p.132.
40
MIGUEZ BONINO, A fé em busca da eficácia, p.92. Apud ZWETSCH, Missão como com-
paixão, p.116.
184

extremos41 (mito positivo e mito negativo), os quais chama de 1) evolucionismo


otimista (o sonho utópico que não consegue lidar com o problema do mal e não
passa de uma imitação da esperança cristã) e 2) almas de passagem
(reinterpretação cristã da espiritualidade gnóstica que acredita que esse mundo é
inerentemente mal e não merece nenhum envolvimento de parte dos cristãos). É
esse mundo que será transformado no novo mundo, afirmará repetidamente
Wright. A mensagem cristã tem de declarar que a obra que Deus fez em Jesus na
criação e na redenção pelo ser humano, ―é a mesma que ele deseja fazer pelo
mundo inteiro – ‗mundo‘ no sentido de todo o cosmos, com toda a sua história‖.42
O teólogo anglicano acredita que, diante do cenário atual de pregação cristã, após
séculos de influência platônica no cristianismo, a perspectiva cósmica do reinado
e salvação de Deus deveria até mesmo sobressair:
Poderíamos começar indo direto ao ponto, falando da esperança que o evangelho
oferece a cada crente. Assim como Deus ressuscitou a Jesus no primeiro dia da
Páscoa, ele prometeu que faria o mesmo com todos aqueles que estão em Cristo e
que são habitação do Espírito de Cristo. Essa é a expectativa cristã bíblica e
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histórica para os seres humanos. Voltaremos a falar sobre isso, mas no momento
temos boas razões para não começar por aí. Nos últimos 200 anos, o pensamento
ocidental tem enfatizado exageradamente o indivíduo em detrimento do quadro
maior da criação de Deus. Além disso, a filosofia grega tem exercido notável
influência sobre a religiosidade no mundo ocidental, ao menos desde a Idade
Média, resultando em uma expectativa futura que se assemelha muito mais à visão
platônica de almas em êxtase do que a imagem bíblica de novos céus e nova terra.
Se começarmos pela esperança futura do indivíduo, correremos o risco de
considerá-la como o centro de tudo e trataremos a esperança da criação como algo
secundário. Isso já aconteceu outras vezes.43
O protesto em favor da perspectiva cósmica continua em outros teólogos. Se
manifestando sobre o proclamar e viver o evangelho de forma integral, René
Padilla defende:
O evangelho não se dirige ao indivíduo apenas, mas à humanidade, à velha
humanidade marcada pelo pecado de Adão, pecado que conduz a morte. É esta
humanidade caída e sem rumo que Deus chamou e chama para integrar-se à nova
humanidade iniciada por Jesus Cristo. [...] A obra de Deus em seu Filho não pode
ser reduzida a uma limpeza da culpa do pecado: é também um traslado ao Reino
messiânico que em Cristo se fez presente por antecipação (Colossenses 1.13).44
O teólogo equatoriano chega a esta conclusão ancorado em sua pesquisa e
labor teológico-pastoral de viés, poderíamos dizer, mais progressista. Num outro
cenário de trabalho, assentado em outra tradição teológica, que poderia ser

41
WRIGHT, Surpreendidos pela Esperança, p.95-107.
42
WRIGHT, Surpreendidos pela Esperança, p.107.
43
WRIGHT, Surpreendidos pela Esperança, p.96.
44
PADILLA, Missão Integral, p.15,23.
185

identificada como mais conservadora, Gibbs também enxerga essa necessidade de


comunicar uma mensagem que articula a dádiva pessoal e cósmica:
Cristo Jesus é a esperança, a esperança da glória escatológica final. Ele é uma
esperança infinita, pois quando voltar – e somente quando Ele voltar – trará o
triunfo final de Deus, Seu Pai, a vitória completa sobre todo pecado e toda doença e
a morte será engolida. O poder de Satanás, de tentar, enganar e aterrorizar será
totalmente tirado. O Filho de Deus trará a redenção completa da criação. Como
poderia ser diferente com Aquele que desceu e assumiu a natureza humana? O
caráter físico da encarnação exige uma redenção do que é físico, o mundo. O Novo
Testamento todo, página após página, está ocupado e com o foco nesta esperança.
O Novo Testamento está repleto da tensão entre uma obra completa que está sendo
apenas parcialmente experimentada e uma obra completa que será plena e
totalmente recebida.45
Gibbs parece estar tentando resgatar uma teologia da criação na
hermenêutica luterana, sempre tão compenetrada na tragédia do ser humano em
estado pecaminoso e a sua justificação diante de Deus somente pela fé em Cristo.
Prosseguirá no raciocínio dando voz a ideias quase que excêntricas ao habitual de
sua doutrina.
Vivemos na esperança neste atribulado mundo finito. O restabelecimento da
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esperança bíblica também nos convidará a refletir uma preocupação que o próprio
Deus tem pela criação. Uma escatologia bíblica implica e requer uma teologia
bíblica sobre a criação. Nosso amor e preocupação em Cristo podem atingir os mais
amplos temas da sociedade: pobreza, doença, vícios e todas as formas de abuso. O
ministério de Jesus, do reino de Deus, implicou cura e exorcismo, a salvação da
pessoa inteira. Não podemos nós encontrar uma aplicação para nosso ministério
também, assim que o evangelho do reino que proclamamos possa ser acompanhado
pelo desejo de trazer conforto àqueles que sofrem os efeitos da morte e do pecado?
Fiquei sabendo que o comitê que está trabalhando no novo hinário discutiu a
possibilidade de uma liturgia para um culto de cura. Isto é boa teologia; um dia
Cristo voltará e curará todas as nossas doenças para sempre. Talvez, em graciosa
resposta às orações de Seu povo, Ele dará uma antecipação daquela cura agora na
presente era má.46
Além do mais, o professor norte-americano fará uma crítica à mensagem
missional e ao modelo vigente de esperança que se prega relacionando estes a um
aspecto cultural de sua terra. Compartilhamos, porque o problema que ele levanta,
apesar de característico no American Way of Life, não é prerrogativa apenas de
uma sociedade particular, mas, tem se espalhado por várias, ao ponto de quase
produzir uma infecção generalizada na humanidade atual:
Terceiro, e tipicamente americano, fazer do estado intermediário nossa esperança
verdadeira e prática é pensar de forma egocêntrica e individualista. A esperança
tem a ver basicamente com minha alma, com a morte do meu corpo, com meu
―morrer e ir para o céu‖. Mas a esperança bíblica não é centrada em mim, nem em

45
GIBBS, Regaining Biblical Hope, p.313.
46
GIBBS, Regaining Biblical Hope, p.322.
186

minha alma. A esperança bíblica é cristocêntrica e focaliza a honra de Deus, Seu


reino e Sua glória em Jesus Cristo.47
Seguindo no contraponto de matizes eclesiais e teológicos que afirmam a
qualidade macro do governo e da redenção de Deus, em busca de novos
argumentos e ângulos, encontramos a opinião do calvinista Anthony Hoekema. O
holandês enfatiza o aspecto da tensão escatológica continuidade e
descontinuidade entre realidades mundanas presentes e futuras:
É geralmente entendido, por muitos cristãos, que o relacionamento entre o mundo
presente e a nova terra que está por vir é de descontinuidade absoluta. A nova terra,
pensam muitos, cairá como uma bomba em nosso meio. Não haverá nenhum tipo
de continuidade entre este mundo e o vindouro; tudo será diferente. Esta
compreensão não faz jus ao ensino das Escrituras. Tanto há continuidade como
descontinuidade entre este mundo e o vindouro. O princípio aqui envolvido está
bem expresso em palavras que foram freqüentemente usadas por teólogos
medievais: ―A graça não destrói a natureza mas a restaura‖48. Em sua atividade
redentora, Deus não destrói as obras de suas mãos mas as limpa do pecado e as
aperfeiçoa, a fim de que possam finalmente alcançar o alvo para o qual ele as criou.
Aplicado a este problema, esse princípio significa que a nova terra que aguardamos
não será totalmente diferente da terra atual, mas será uma renovação e glorificação
da terra na qual vivemos agora.49
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Já o teólogo católico Susin tratará do tema sob a expressão ―dimensão


comunitária da escatologia‖, onde lembrará que as constituições dogmáticas do
Vaticano II que abordaram a escatologia (Lumen Gentium 48-50 e Gaudim et Spes
18 e 39) incentivam esse olhar para a integralização do alvo individual com o
―acontecimento comunional‖.50
A comunhão dos santos no Reino de Deus é, em última instância, mais ampla do
que a Igreja, que é seu sinal sacramental. O Reino de Deus que abraça toda a
história e todas as criaturas é um modelo escatológico para o presente da Igreja. A
santidade, que consiste nesta comunhão dos santos, é inspiração para ampliar e
amadurecer na comunhão: o futuro já influencia no presente, é sua ―causa final‖.
Daqui decorre o critério da salvação como inserção na comunidade de salvação, na
comunhão dos santos. Isso não anula a unicidade do indivíduo e da salvação
individual, mas indica a direção e a forma da salvação individual: na comunhão, na
comunidade. E a comunidade terrena dá condições de entender a salvação em sua
integralidade, de alma e corpo. Como sinal sacramental e como realidade corporal,
a comunidade eclesial que peregrina nesta terra tem a estrutura dos santos onde
cada indivíduo é integrado à salvação.51
Temos visto como a teologia recente tem enfatizado as dimensões
antropológica e cosmológica da salvação e do Reino de Deus. Nem sempre essa
dupla intencionalidade foi valorizada na reflexão e, talvez por isso, ainda hoje a
47
GIBBS, Regaining Biblical Hope, p.316.
48
―Gratia non tollit sed reparat naturam‖
49
HOEKEMA, A Bíblia e o Futuro, p.89.
50
SUSIN, Assim na Terra como no céu, p. 25.
51
SUSIN, Assim na Terra como no céu, p.78.
187

mensagem missional se veja sofrendo com uma abreviação prejudicial. Até


podemos entender a defesa exposta por alguns teólogos de que, para se equilibrar
a balança, e fazer frente ao estado precário e desigual estrutural e social da
humanidade, o enfoque cósmico necessitaria ser favorecido, mas não temos
certeza se esse caminho, especialmente se transitado descuidadamente, não
causaria o dano de levar o pêndulo para o outro canto. Assim como é perceptível
em alguns testemunhos evangelísticos uma forte elevação do benefício e da
resposta antropológica, também se tem visto um depoimento sobre transformações
coletivas e universais que quase se esquecem da graça destinada e da resposta
particular esperada de cada um. Cullmann não inspeciona o dilema do eventual
desequilíbrio do ensino. Apenas contenta-se em afirmar ambas as verdades: A
história de salvação, com o seu já e ainda não, afeta sensível e esperançosamente
a criação e a ―mim, pobre homem perdido e condenado‖.52 Vejamos seu
posicionamento, sintetizado na citação:
[Por um lado, a dimensão cósmica]: A formulação cristocêntrica das mais antigas
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confissões de fé nada sabe de uma distinção entre Deus como criador e Cristo como
Redentor, já que criação e redenção são inseparáveis, por serem ambas atos pelos
quais Deus se revela ao mundo. Se partirmos da obra humana de Jesus e formos até
o fim da reflexão sobre o problema da revelação, fica impossível separar redenção
da criação. A morte expiatória de Cristo tem consequências cósmicas (Cl 1.20; Mt
27.51), e o Kyrios Christos presente não se manifesta somente como Senhor da
Igreja mas também como Senhor do universo. [...] [Por outro, o lado pessoal]:
Porém, em especial, temos de relevar também o outro aspecto deste ‗reino‘ o que
supõe esta alta missão: cada qual deve ter consciência de ser escravo, servo, do
‗Senhor‘ Jesus Cristo (2 Co 4.5). Conhecer o senhorio de Cristo é, também, ter
consciência do domínio total e absoluto do ―Senhor‖ sobre nossa pessoa. Cristo não
é somente o Senhor do mundo, o senhor da igreja: é também o meu Senhor.
Experimentado e reconhecido como Senhor da igreja é também Senhor de cada um
dos que a compõem.53
O destino ainda não da pessoa é relevante para a mensagem a ser
compartilhada missionalmente: sua morte, sua existência pós-mortal, sua
ressurreição individual, o juízo final com seu duplo desfecho, sua eternidade. E
também a escatologia individual que não se restringe ao futuro deste sujeito, mas
abrange o já, a inauguração do Reino e da salvação no presente. O querigma
proposto por Cullmann não fugirá desta transmissão. E tampouco fugirá do
recipiente universal-cósmico com o seu respectivo eschaton escatológico de

52
Enxerto retirado da explicação de Lutero do segundo artigo do Símbolo Apostólico. Disponível
em: <http://www.luteranos.com.br/textos/o-segundo-artigo-do-credo-apostolico>. Acesso em:
14/02/2018.
53
CULLMANN, Cristologia do Novo Testamento, p.302, 425.
188

plenitude (ressurreição, novo céu e nova terra), que inclui perspectivas ecológicas,
políticas, culturais e históricas. Desse modo, o ser humano em seu(s) drama(s)
pessoal(ais) é respeitado e valorizado pela palavra missionária tanto quanto a
história e a criação das quais faz parte, mas que o transcendem.
Importante é que não permitamos que surjam rupturas entre estas perspectivas, de
forma que a escatologia cristã seja reduzida somente ao seu aspecto individual ou
universal. Trata-se de diferentes perspectivas de uma mesma realidade maior, pois
não é possível falar de uma destas perspectivas sem que a outra esteja, de alguma
forma, envolvida. Também não deveria ser assim que o cumprimento da esperança
individual conduza a um desprezo da esperança pela renovação de todo o cosmos
(cf. Fp 1.23) – o que é a tendência em determinados círculos hoje – ou vice-versa –
o que era a tendência do cristianismo primitivo, que praticamente focava sua
esperança, de início, quase que exclusivamente na parusia em detrimento do destino
do indivíduo. Por fim, importa compreender que estas perspectivas se entrecruzam
com as demais perspectivas da escatologia.54

5.1.4
Uma mensagem monergista e sinergista
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O último traço peculiar que destacaremos do já e ainda não de Cullmann


para a mensagem missional, não diz respeito ao seu alicerce
(cristocêntrico/pneumatológico), ou seu predicado (basileico/soteriológico) ou
ainda a seu destinatário (pessoal/cósmico), mas às atribuições de seus
participantes. Quem está envolvido no processo? Que responsabilidades,
compromissos existem? Quem faz o quê, basicamente? Novamente, os conceitos
articulados declaradamente podem ser posicionados em estado de tensão.
Estamos propondo como adjetivo as palavras monergista, para denotar a
total ação de Deus na realização e manutenção do projeto de vida oferecido ao ser
humano, e sinergista, para indicar o papel que este ser humano é chamado a ter na
vivência desse projeto pós sua adesão. Corremos, de antemão, o risco de ser mal-
interpretados neste ínterim, uma vez que em alguns círculos teológicos o vocábulo
sinergia remete quase que imediatamente à heresia ou, no mínimo, é
acompanhado de severa desconfiança. Temos consciência do terreno gelatinoso
que escolhemos para percorrer.

54
SCHWAMBACH, Escatologia como categoria sistemático-teológica, p.151. [Fazendo uso de
embasamento teórico de: ELERT, Werner. Der christliche Glaube: Grundlinien der lutherischen
Dogmatik. 6. ed. Erlangen: Martin-Luther-Verlag, 1988, p. 498.
189

Comecemos pelo monergismo, porque tem um peso infinitamente maior. Em


que sentido a mensagem missional deve ser monergista? Direto ao ponto: na
proclamação prioritária do amor e da obra de Deus. É esse amor e essa obra que
constitui o cerne do querigma, de acordo a Cullmann. Eles são o εὐαγγέλιον, o
evangelho, a boa notícia para o ser humano. Quando os anjos anunciaram aos
pastores nas campinas de Belém55 o nascimento de Jesus, eles trouxeram o
embrião de uma mensagem missional, talvez o primeiro testemunho missionário
pós-encarnação do verbo. Suas palavras, essencialmente foram: ―Não temais...
estamos trazendo boa notícia‖. A boa notícia (evangelho) é sempre a ação de
Deus, a iniciativa de Deus, a realização criadora e libertadora de Deus. Mais tarde,
o monergismo que estamos expressando pode ser ilustrado com outra palavra
grega famosa da Escritura, pronunciada em outro instante zênite: τετέλεσται (está
consumado).56 Foi o desabafo final do Messias na cruz, informando ao mundo que
a sua missão em favor da humanidade havia sido concretizada, e que a dívida
havia sido paga. A mensagem missional é, antes de qualquer coisa, o anúncio da
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atribuição de Deus, de sua parte no processo, de seu ministério em favor da sua


criação e das suas criaturas.
Encontramos em Cullmann dois exemplos paradigmáticos na confirmação
dessa tese. Primeiramente quando ele lembra o evento central de Cristo utilizando
a metáfora do Dia D e do Dia V na segunda Guerra57. Cullmann entendeu que a
vitória de Cristo na sua obra da cruz como sendo de caráter decisório na história
de salvação. Salvação, moldura elementar na hermenêutica de Cullmann, é
conquistada não através de ações e intenções do ser humano, por melhores que
eles pareçam ser. Não é o ser humano quem conserta o cosmos, cura a si próprio,
e busca a Deus, pelo menos não num estágio primário, não num movimento
protagonista. Deus o faz. Deus o fez. Deus o está fazendo. Deus levará o feito à
plenitude.
Outra passagem em Cullmann que entendemos como significativa nesta
configuração da mensagem missional monergista (e também na sinergista) é sua
lógica do indicativo que se desdobra em imperativos. Lembremos: ―Todo ‗deve‘

55
Lucas 2,1-20.
56
João 19,30.
57
CULLMANN, Christ and Time, p.84.
190

recai sobre um ‗é‘. O imperativo está firmemente ancorado no indicativo‖.58 Na


vida cristã, na participação do Reino de Deus, há imperativos, há espaço para a
sinergética cooperação do ser humano, mas esta é nunca originária, antes sempre
derivada. Nasce a partir do indicativo. E o indicativo não é uma ordem, um
mandamento que determina fazer, nem mesmo uma sugestão, um caminho que se
aponta. Tudo isso procede do indicativo que é a descrição da verdade
transformadora de todas as realidades, a qual lembramos apoiados em teologia
joaneia: Deus amou. Deus deu. Seu Filho.59 Este é o monergismo da mensagem
cristã, que pode ser traduzido nas paisagens históricas específicas, bem como pode
também fazer uso da riqueza e da variedade de conceitos e imagens que a própria
revelação bíblica apresenta, desde que, em ambas as articulações, permaneça
sempre conectado à pessoa e à obra de Cristo. ―As linhas da história da salvação
não podem ser, por assim dizer, esticadas para além do evento cristológico. A
salvação já foi consumada em sua totalidade no passado‖.60 O evento redentor foi
inigualável. Não há nada mais a se acrescentar ou colaborar. O autor de Hebreus
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ressaltou esta verdade com o advérbio ευαπαξ (de uma vez por todas).61
Com respeito ao sinergismo da mensagem missional, queremos apontar para
o aspecto sequencial do processo: a vida cristã com todas as suas dinâmicas e
oportunidades que se descortinam para a pessoa que recebe o testemunho. Uma
vez que se comunique a ação exclusiva de Deus no projeto salvífico cosmo-
antropológico e que, por obra do Espírito Santo, a pessoa tenha acolhido a
mensagem, esta pessoa pode ser convidada a explorar todas as possibilidades de
viver a vida eterna, a salvação, a realidade do Reino de Deus, no já, nas suas
múltiplas vocações e em compasso de mordomia dos dons que recebeu.
O monergismo fala do senhorio e da salvação de Deus. O sinergismo fala da
co-participação da comunidade neste reinado e da vivência e prática dessa
salvação no tempo presente. O sinergismo está no âmbito da verticalidade da
salvação e do Reino, relacionado com o serviço ao próximo. O monergismo
propicia o restabelecimento do elo vertical, perdido no evento da queda. Na
perspectiva monergista do querigma o testemunho é: Deus fez (e fazendo uso da
categoria luterana, o feito está conectado com a justificação). Na perspectiva

58
CULLMANN, Christ and Time, p.224.
59
João 3,16.
60
SCHWAMBACH, Escatologia como categoria sistemático-teológica, p.146.
61
Hebreus 10,10. Termo enfatizado por Cullmann em Christ and Time, p.119-130.
191

sinergista do querigma o testemunho é: Deus lhe convida a fazer junto (e os feitos


estarão conectados à santificação). No monergismo o alvo da mensagem
missional é completamente passivo. No sinergismo, ele passa a ter gesto ativo.
Ratzinger escreve sobre este envolvimento do ser humano no projeto divino:
―Com o seu sim e o seu não o homem é sujeito no plano salvífico de Deus [...]
Mas repitamos: é sujeito não como produtor do reino de Deus, mas sujeito a partir
do tu, sujeito em quanto filho, pois recebe o reino como presente‖.62
Outros teólogos também refletiram sobre a parceria que existe no Reino de
Deus. Míguez Bonino, primeiramente, vai elaborar sobre ela como um
desdobramento da cooperativa que existe na economia trinitária.
Nesse ―diálogo missionário‖, nós somos incluídos. As ―visitas‖ de Deus [...]
incorporam sempre o ser humano como ator ou coautor da missão divina. Nesse
sentido, há um legítimo syn-ergismo que não desmerece a absoluta prioridade da
ação divina porque essa mesma ação possibilita, exige e incorpora em sua própria
dinâmica o ―sócio‖ que Deus escolhe.63
Zwetsch, quem nos apresentou o teólogo metodista, também oferece sua
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concepção sobre a chance de associação que a Trindade cede aos seus filhos,
aproveitando-se de tese de Leonardo Boff:
A missão de Deus tornou-se, na história, chamamento à decisão para dela fazer
parte. Deus não age sozinho, mas em comunidade, de forma plural, dinâmica,
mostrando-se de forma diferentes ao longo da história. Seria essa uma forma de
entender a Trindade divina: uma comunidade que trabalha junto movida pelo amor
entre si e para com o outro, a humanidade. Quem é chamado é incluído nessa
missio, por amor. Difícil é ignorar o chamado. Por caminhos às vezes
desconhecidos, estranhos mesmo, todas as pessoas são chamadas. E quando nos
negamos a participar da obra de Deus, parece que Deus se cala e o ser humano
triunfa em sua autocentralidade.64

Novamente Míguez Bonino conclui nossa argumentação de uma mensagem


monergista e sinergista, apontando para a missão do Reino fundamentada na obra
cristológica e pneumatológica, que se abre a participação do ser humano:
O problema crucial não é noético, mas, por assim dizer, empírico. Diz respeito a
uma resposta ativa. O reino não é um objeto a ser descoberto mediante sinais e
prefigurações que devem ser encontrados e interpretados. Ele é um chamado, uma
convocação, uma pressão que urge. Frente ao reino, a história não é um enigma a
ser resolvido, mas uma missão a cumprir. Esta missão [...] não é um simples
acúmulo de ações desvinculadas entre si, mas uma nova realidade, uma vida nova
que é comunicada em Cristo, no poder do Espírito. Como podemos participar,

62
RATZINGER, Escatología, p.72.
63
MIGUEZ BONINO, A fé em busca da eficácia, p.124s. Apud ZWETSCH, Missão como com-
paixão, p.138.
64
ZWETSCH, Missão como com-paixão, p.89; cf BOFF, Leonardo. A trindade e a sociedade. 3.
ed. Petrópolis: Vozes, 1987. Série II: O Deus que liberta seu povo. (Coleção Teologia e
Libertação, v.5).
192

atuar, produzir a qualidade de existência pessoal e coletiva que tem futuro, que
possui realidade e densidade escatológica, que concentra a verdadeira história?
Trata-se das questões das mediações históricas de nossa participação na construção
do reino.65

5.2
A tensão já e ainda não afeta a postura missional:
dimensão performática

Após examinarmos alguns elementos teológicos que reivindicam


assimilação numa mensagem missional informada pela tensão já e ainda não de
Cullmann, veremos como esta ―simultânea paradoxalidade‖66 afeta a postura
missional. Nela, trataremos da dimensão performática, da qualidade da presença
da Igreja e de seus agentes evangelizadores, rememorando sempre que quando nos
referimos à agente evangelizador, estamos não considerando uma categoria
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especial dentro da comunidade cristã, mas a todos os seus membros. Essa é a


compreensão cullmanniana.
Na dimensão performática, inspiramo-nos em Jesus que, além de proclamar
o querigma do Reino de Deus, não se omitia de demonstrar o mesmo com atos
tangíveis. A ideia encontra apoio em Cullmann, que quando articulou o
engajamento na missão de Deus, tarefa fundamental da Igreja neste tempo
intermediário entre a ressurreição de Cristo e a parusia, depreendeu que este
deveria ocorrer por meio do anúncio e do comportamento.

5.2.1
Uma postura fiducial e kenótica

Os primeiros dois componentes que emanam da tensão já e ainda não


cullmanniana são as atitudes fiducial e kenótica. Passamos a desenvolver cada
uma delas.
Porque continuamos a viver na tensão escatológica entre o já e o ainda-não, nós
realmente não vemos ainda nossa novidade em Cristo em sua totalidade. Nós

65
MIGUEZ BONINO, A fé em busca da eficácia, p.111s. Apud ZWETSCH, Missão como com-
paixão, p.119.
66
SCHWAMBACH, Escatologia como categoria sistemático-teológica, p.148.
193

vemos em nossa vida muito do que se assemelha mais ao velho que ao novo. Pois
causa disso, fica um sentido no qual esta novidade sempre é um objeto de fé. Mas a
fé no fato de que somos novas criaturas em Cristo é um aspecto essencial da nossa
fé cristã.67
A postura fiducial é uma presença de fé. Que se posiciona diante das
circunstâncias da vida, e também diante da própria tarefa testemunhal, com um
comportamento confiante, crendo no já realizado e no ainda não por consumar-se.
A Igreja e o missionário reconhecem, antes de tudo, a natureza decisiva para
o presente e para o futuro que o evento realizado por Cristo no passado
proporcionou. Trata-se de uma repercussão da tese da preponderância do já, que
Cullmann apregoou, abordada no capítulo terceiro. ―O que está por vir virá
porque o evento crucial ocorreu‖.68 A certeza da vitória, da libertação, que
objetivamente foram conquistadas na morte e ressurreição de Jesus chama os seus
seguidores a se postarem neste tempo de transição não apenas com esperança do
porvir, mas ―ancorados‖69 no transcorrido, pois ele impactou qualitativamente
todas as circunstâncias do ser humano e da criação. O missionário que testifica
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salvação testifica um projeto efetivado, no qual também se sabe envolvido. A


irmandade missional que comunica o senhorio de Cristo, comunica um governo
que não pode ser destituído, sob hipótese nenhuma, regência esta que também o
atinge com autonomia e misericórdia. Esta confiança também poderia ser
traduzida por convicção, palavra recomendada por Cullmann.
Nós não rendemos temporalidade futurística a uma interpretação existencialista,
mas vemos o fator constante que é especificamente novo na mensagem de Jesus e
na revelação do Novo Testamento inteiro; em outras palavras, na convicção de que
o evento decisivo para o fim já aconteceu; e por isso, a vinda do fim não pode
falhar em se materializar. O cerne permanente da esperança escatológica, o qual
não é de nenhuma forma alterado pelo fracasso do advento da parousia, é a fé que
com Cristo, tempo salvífico [...] entrou em sua fase final. Esta é a significância do
já.70
A certeza de que todo o ainda não em realidade já está à disposição em
Cristo, pode e deve afetar a atitude da igreja em missão. Não a tornando arrogante
diante de pessoas e situações, ou desinteressada nos desdobramentos da história,
porque, supostamente, já tem a ciência de eventos decisivos para o desenrolar de
todo o drama cosmológico. Na postura fiducial missionária não cabem clichês que

67
HOEKEMA, A Bíblia e o Futuro, p.87.
68
CULLMANN, Salvation in History, p.174. “Has occurred‖, que melhor traduz o sentido
intencionado por Cullmann, do efeito de um acontecimento no passado que permanece vigente.
69
CULLMANN, Salvation in History, p.179.
70
CULLMANN, Salvation in History, p.180-181. Tradução nossa.
194

possam soar triunfalistas do tipo ―não sou o dono do mundo, mas sou o filho do
dono‖ ou ―tudo acontece por alguma razão, Deus está no controle da história‖. No
entanto, essa confiança também não precisa assumir atitude derrotista e cética,
mas pode se deixar extravasar no gozo, na atitude celebrativa diante da vida,
porque o grande problema da humanidade já foi resolvido, e está em vias de ser
extirpado. A alegria que nasce da fé, o gozo do Senhor, também é bem-vindo (e
faz diferença) na atividade missional. Num outro contexto, mas aplicável ao
nosso, disse Oswald de Andrade que ―a alegria é a prova dos nove‖.71
Leonardo Boff, mesmo oriundo de ênfases diferentes de Cullmann, também
interage com ele nesse ângulo da alegria da postura fiducial que estamos tentando
demonstrar:
Porque o essencial já se realizou, o cristão deveria ser alguém de extrema
jovialidade, bom humor e alegria cordial. O horizonte está desanuviado. Os
monstros que engoliam nosso futuro foram banidos. O fim-meta está garantido.
Podemos celebrar e festejar antecipadamente a vitória do sentido sobre o absurdo e
da graça sobre o pecado. Pessimismo, profetas de mau agouro, lamúrias, humor
negro, irritabilidade e fanatismo conservador, tão presentes em alguns setores da
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Igreja de hoje, são sintomas de falta de substância cristã. É um contra-testemunho


da esperança que mora nos que crêem. [...] A alegria cristã e escatológica não é
uma alegria de bobos alegres. Estes se alegram pelo simples fato de se alegrarem. O
cristão tem motivos de se alegrar porque o Senhor venceu a morte (1Cor 15,55), já
despontaram os últimos dias (1Jo 2,18; At 2,17; 1Pdr 1,20) e ―já chegamos no fim
dos tempos‖ (Lumen Gentium, 48). Nas penumbras do presente, entrevê a realidade
definitiva. Por isso se alegra.72

Além de um novo, esperançoso e alegre olhar para o mundo, o futuro, a


vida, a postura fiducial também tem uma implicação muito particular para o povo
e o missionário em sua tarefa missionária. Ao lado da fé=convicção que o já
possibilita, há uma fé=consciência que a tensão desperta. Essa consciência
fiducial é a compreensão non-anxious da realidade atual que a atividade missional
acontece. Da conjuntura interina que está sujeita e atada à tensão entre o já
inaugurado no Calvário-Gólgota e ao que ainda não se acessa completamente
porque está sendo gestado por Deus para os últimos dias. É a compreensão
estabilizada que entende que mesmo com a garantia do já, o ainda não não está
desobstruído de forma cabal, mas se desvela apenas em sinais, perceptíveis,
disponíveis, mas dos quais não se permite possuir, por assim dizer, controle. É a
capacidade de discernimento da época transitiva que se caminha. Uma capacidade

71
ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófago. 1928. In: < http://zonacurva.com.br/o-
manifesto-antropofagico-de-oswald-de-andrade/> Acesso em 14/02/2018.
72
BOFF, Vida para além da morte, p.117,141.
195

que ajusta expectativas. Que reconhece os limites. Que equilibra a balança


pessimismo-realismo-otimismo.
E o quanto essa fidúcia prova-se consoladora no campo missional, onde o
martyra precisa lidar com tantas tensões provenientes da tensão escatológica mãe.
Sejam os paradoxos de natureza intra (relacionada à sua própria fraqueza
contraposta a sua força), sejam de natureza extra (relacionados com o campo
missional humano e histórico-social, como a receptividade da mensagem no
coração do interlocutor, e os resultados de sua semeadura), a consciência de que
cruz e ressurreição estão ambos simultaneamente presentificados, presta um
imenso favor à igreja e aos seus mensageiros do evangelho. Nenhum projeto
missionário, por melhor financiado, planejado, equipado, escapa do fator
desafiador que a tensão entre o já e o ainda não impõe. Uma consciência fiducial
dessa realidade pode ser fundamental na postura da Igreja e de cada uma de suas
testemunhas.
Esta confiança poderia, ainda, ser transliterada numa postura de coragem.
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Não precipitação e irresponsabilidade, mas a ousadia de viver a vida e ir ao


encontro do objetivo evangelístico, sem maiores melindres. O atrevimento de se
correr riscos e fazer investimentos e sacrifícios para que o Reino e a salvação
tenham, da perspectiva de quem é apenas um instrumento, um compartilhar mais
coerente e, porque não presumir, uma melhor chance de acolhimento.73 A tensão
temporal escatológica coloca a comunidade missional em movimento, em saída,
em aventura. A obsessão com estabilidade, segurança e controle não são
condizentes com a postura escatológica-missiológica depreendida em Cullmann, e
podem fazer com que o discurso e a entrega missional percam seu caráter já e
ainda não. Nossa estabilidade e segurança na evangelização estão na fé. Saímos
para evangelizar pela fé. Uma fé=coragem.
Análoga à postura fiducial, propomos a perspectiva kenótica, que tem sua
base teológica no credo (ou salmo) antigo da igreja primitiva registrado por São
Paulo em sua carta aos Filipenses74, e que por sua vez reflete a doutrina da
encarnação de Cristo. Se o já intima à atitude confiante, do-tipo-cabeça-erguida,

73
Sobre os argumentos da confiança que se desdobra em alegria e da postura em saída na missão,
recomenda-se a abordagem do Papa Francisco em Evangelii Gaudium (A alegria do Evangelho:
Exortação Apostólica do Papa Francisco sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual).
https://w2.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-
francesco_esortazione-ap_20131124_evangelii-gaudium.html>.
74
Filipenses 2,5-11.
196

que tem seu olhar voltado aos céus, ―onde se aguarda o Salvador‖,75 o ainda não
tensiona esta postura de gozo e fé, acordando e cultivando nos testemunhas do
Evangelho a atitude do esvaziar-se, submeter-se, diminuir-se. Se antes os olhos
estavam na cruz e na tumba vazia de Cristo, agora, eles devem voltar-se ao
próximo. Se antes a cabeça estava ereta, pois a obra de Cristo retira dele todo o
medo e o empodera a caminhar confiante, agora esta cabeça é chamada a se
inclinar e enxergar quem está na superfície, e enxergando, se abaixar, pegar uma
toalha e lavar-lhe os pés. Se antes, na perspectiva fiducial, o missionário é forte,
agora na kenosis, ele se faz vulnerável. Se antes ele era livre de tudo e de todos,
porque a fé em Cristo o libertava de quaisquer amarras, agora, que o amor é
ativado em si, ele se faz escravo de tudo e de todos.76 Os mensageiros do
evangelho absortos e inspirados na kenosis crística, reconhecem e não fogem do
drama da experiência cristã missional sob a cruz. Entendem que a missão será
realizada através do serviço, e em meio ao sofrimento e ao oculto.
Cullmann nos permite inferir esta tese através de duas vias principais.
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Primeiramente, através de seu leitmotif da História da Salvação, onde ele


argumenta vigorosamente em favor de uma teologia da história de Deus com a
humanidade, e da qual fazemos uma direta ligação com a ação da encarnação de
Cristo, que se deu nesta história. Sua kenósis não foi metafísica, filosófica,
romântica ou olímpica, mas fez-se realidade corpórea e concreta no percurso
humano com (e submisso a) todos os seus aconteceres. Cullmann reconhece no
relato bíblico uma entrada real, uma irrupção fidedigna, milagrosa e sem
precedentes do Logos criador em sua criação. E em segundo lugar, Cullmann
também alimenta esta perspectiva mediante sua leitura interpretativa da pessoa e
obra de Cristo, que pode ser conhecida através de sua Cristologia do Novo
Testamento. Nela, em diferentes passagens, Cullmann reconhecera a característica
kenótica, a gênese sacrifical de Cristo, especialmente em sua análise do título
cristológico ―Servo Sofredor‖ aplicado a (e assumido por) Jesus.77 Em Cullmann,
podemos ler que Cristo veio a nós não na forma de Deus, mas na forma de ser

75
Filipenses 3,20.
76
Argumento baseado na tese da liberdade cristã de Martinho Lutero, de 1520. Em: LUTERO,
Martinho. Tratado da Liberdade Cristã. In: Martinho Lutero: Obras Selecionadas. Trad. Ilson
Kayser, Vol.2, São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre: Concórdia, 1989, p.435-460.
77
CULLMANN, Cristologia do Novo Testamento, p.75-112.
197

humano, para viver a nossa história e fazer algo por ela. Essa postura nos
interessa.
Alguns teólogos propiciam um profícuo diálogo com Cullmann neste
quesito e incrementam significativamente nossa tese de uma postura missional
kenótica. Eles nos ajudam a perceber as diferentes facetas que esta kenosis pode
apresentar. Aludimos a Míguez Bonino, sobre os dilemas que a proposta do amor
historicamente situado pode trazer quando este tesouro é oferecido ao mundo por
intermédio de vasos de barro:
[...] temos de admiti-lo: nossa ação é imperfeita em sua concepção, em seus meios,
em sua motivação. Dificilmente podemos fazer um bem sem deixar outro maior por
fazer ou sem provocar a outro. [...] Foi diante dessa tímida escrupulosidade que
Lutero escreveu a Melanchthon as palavras que tão seguidamente foram mal
interpretadas: Pecca fortiter – peca forte – e acrescentou: sed fortius crede – porém
confia ainda com mais força. Crer é atrever-se a entrar no reino ambíguo da ação,
conscientes dos erros e das falhas que vamos cometer, porém confiados no amor de
Deus. O cristão não entra na luta ética a fim de assegurar-se com sua ação da boa
vontade divina; ele o faz seguro dessa boa vontade a fim de servir da melhor forma
possível a seu próximo [...] A ambiguidade da ação moral não é óbice para quem
confia no amor de Deus. Essa é a fonte da liberdade da pessoa crente.78
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Neste primeiro viés, Bonino chama à atenção para a vulnerabilidade


intrínseca da Igreja e seus integrantes. Nossas ambigüidades, nossas
ambivalências. Por isso, uma postura que se posiciona com altivez farisaica e
santa ostentação diante do próximo não condiz com a postura que Cristo elogiou,
muito menos com a realidade empírica e com a informação escriturística.
Enquanto o missionário mascara suas falácias num intento inútil de alcançar
mérito coram Deo ou de propagandear beatice coram mundo, ele não age em
consonância de seu chamado à kenosis e, a rigor, não passa de uma fraude
marqueteira. Não se trata de pecar com força (como Bonino bem entendeu), nem
de abandonar ou fazer pouco caso da luta contra os impulsos da carne (como
Cullmann já também mencionou), mas confessar em constante arrependimento as
falhas e reconhecer em humildade a condição carente que se compartilha com o
semelhante alvo da mensagem. A Igreja missional não abdica de seu título Una
Sancta, mas reconhece que a fonte de sua santidade é, em última instância,
encontrada fora dela, pois em si mesmo, é e não deixará de ser uma entidade
maculada. Seu manancial de inocência e pureza reside unicamente no seu Senhor
e Salvador, na profunda e entranhada dependência e vinculação a Ele. O

78
MIGUEZ BONINO, José. Ama y haz lo que quieras. Buenos Aires: América, 2000, p.115s.
Apud ZWETSCH, Missão como com-paixão, p.116.
198

mensageiro do evangelho que é a carne e o osso dessa Igreja missional encontra o


próximo em mesma situação, do ponto de vista do pecado humano: ambos o
partilham. Nesse cenário, não há vantage point. Consequentemente, a postura
kenótica aplicada a missão está mais conexa com a singela, embora verdadeira
formulação: ―evangelização é um mendigo avisando o outro onde achar pão‖.79
Susin confirma este ângulo kenótico:
A Igreja vive uma tensão aberta à escatologia. Não é uma ―sociedade perfeita‖,
pois isso a imobilizaria e a identificaria indebitamente com o reino de Deus. ―A
igreja peregrina leva consigo – nos seus sacramentos e nas suas instituições – a
figura deste mundo que passa e ela mesma vive entre as criaturas que gemem e
sofrem como que dores de parto até o presente e aguardam a manifestação dos
filhos de Deus‖ (LG 48). A plenitude da igreja coincidirá com sua superação
sacramental e institucional, como superação em direção à comunhão imediata, sem
necessidade de sinais sacramentais, de todas as criaturas e dos filhos de Deus, a
comunhão dos santos. Por ora, ela é sacramento e primícia da comunhão dos
santos.80

E Schwartz apontará para outra situação de fraqueza que o missionário e a


comunidade missional são chamados a reconhecer: a kenosis como limitações de
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recursos e instrumentos na transformação, dentro da realidade prévia ao ainda


não.
O envolvimento da Igreja em atos de caridade na luta por justiça, direitos humanos
e acesso às coisas necessárias à vida, por exemplo, não indica apenas que a Igreja é
uma extensão da mão amorosa de Deus. Com seus recursos limitados, a Igreja pode
no máximo oferecer auxílio limitado para as feridas de um mundo que sofre; jamais
pode curá-lo completamente. Não obstante, com suas ações ela prefigura um
mundo liberto de angústia, sofrimento e desespero. Em meio à disputa e à luta do
mundo de hoje, a Igreja é um farol de esperança e um ponto de reunião para os
oprimidos. Irradia sinais da nova ordem do mundo, quando haverá justiça e paz
para toda a criação.81
A teologia kenótica nos remete a uma postura ―pés no chão‖ e ―joelhos
dobrados‖, que reconhece as fraquezas humanas e as insuficiências coletivas e
sistêmicas que continuam como fatores sensíveis e restringentes no processo de
vivência e testemunho da fé neste tempo onde já se conta com a graça, mas ainda
não com a glória.82 O Reino de Deus e a salvação já afetam a Igreja e seus

79
Frase atribuída a Daniel Thambyrajah Niles, pastor e teólogo metodista cingalês.
80
SUSIN, Assim na terra como no céu, p.78.
81
SCHWARZ, Hans. Escatologia. In: BRAATEN, Carl E.; JENSON, Robert W. (Ed.) Dogmática
cristã. São Leopoldo: Sinodal, 1995, p.561.
82
Argumento baseado na theologia crucis em Lutero, em distinção à theologie gloriae.
Resumidamente: ―No começo de 1518, na obra Controvérsia de Heidelberg, Lutero apresentou o
que se tornou um programa inteiro para uma abordagem da teologia. Ele propôs esse programa
colocando em oposição dois tipos de teologia: uma ―teologia da glória‖ e uma ―teologia da cruz‖.
Esses dois diferem em seu tema, pois um está preocupado primariamente com Deus em gloria,
enquanto que o outro vê Deus como oculto em sofrimento.‖ GONZALEZ, Justo L. Uma História
199

missionários com todas as suas dádivas e bênçãos, porém por causa da presença
dos elementos ainda não extintos neste tempo de intervalo, o mal e o pecado,
eventualmente existirão fracassos, decepções, frustrações, limitações. O fruto já
está maduro em Cristo, mas para os seus aprendizes e para seu corpo, ele ainda,
em certo sentido, continua verde. O comportamento kenótico abraça e convive
com o mistério, o incompreensível, o incontrolável, com a dúvida, em suma, com
a abscondidade de Deus, resistindo à tentação de oferecer respostas e soluções
rasas para temas e dores profundas, mas fazendo-se próximo, exposto e acessível
mesmo assim.

5.2.2.
Uma postura peregrina e encarnada

Avançando no encalço da tensão escatológica já e ainda não em Cullmann,


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chegamos ao segundo encontro paradoxal dialético entre opções aparentemente


contraditórias que influenciam a postura do missionário: a personalidade
peregrina e a personalidade encarnada. Nesta sessão trataremos da questão
conhecida por estar no mundo, mas não ser dele, ou posta invertidamente, não ser
do mundo, mas estar nele.83 A pergunta guia é: até que ponto o sujeito
evangelizador deve manter uma presença arraigada no seu contexto, até que ponto
deve demonstrar um comportamento forasteiro? Ou posta diferentemente, até que
ponto a Igreja deve reconhecer sua especificidade exótica e estrangeira, até que
ponto deve afirmar seu caráter compartido mundano e terrestre? A resposta que
encontramos em Cullmann é: as duas perspectivas são essenciais para a postura
missional cristã. Há um egresso metafísico e há uma inserção imanente. E ambas
as perspectivas concomitantes encontram respaldo na tensão já e ainda não.
A postura peregrina, por exemplo, sincroniza com o paradoxo escatológico
honrando com mais intensidade as esperanças de um ainda não, ainda que sua

do Pensamento Cristão: Da Reforma Protestante ao Século 20. Vol. 3. São Paulo: Cultura Cristã.
2004. p. 38.
83
Esta foi nossa tese na monografia de conclusão do curso de Especialização em Teologia –
Habilitação ao Ministério Pastoral, no Seminário Concórdia da Igreja Evangélica Luterana do
Brasil, em 2004, quando propomos intencionalmente uma reversão de ênfase de um tradicional
canto cristão comum ao repertório musical luterano. O título da monografia foi: Não somos do
mundo mas estamos nele: reflexões em Paulo para uma postura de inserção. (Orientador: Gerson
Luís Linden).
200

relação com o já não desautorize a ilação, segundo entenderia o teólogo franco-


alemão. Há um futuro real no itinerário da humanidade, há novidade no horizonte
da criação. E, diferentemente do que pensara alguns escatologistas
contemporâneos seus, Cullmann crê num futuro como um ―novo ato de Deus‖, um
futuro que é realmente futuro.84 No entanto, por mais promissor que possa ser este
ainda não (nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem mente alguma imaginou
o que Deus tem preparado – 1 Coríntios), na medida que ocorre o vínculo com
Cristo, pelo batismo ou pela acolhida da Palavra, esse futuro e essa novidade já
passam a ser realidades concretas para o cristão. Deus já o ressuscitou e o fez
sentar nos lugares celestiais com Cristo.85 Ele está em Cristo e já é nova criatura.86
Quando o ser humano adere (ou é aderido) à fé, esse futuro já começou para ele,
ele já o vislumbra, o toca (no próximo), o come (na Ceia), e, por conseguinte,
passa a experimentar seus sinais e caminhar em sua direção. Esse é o dado
peregrino. Já se sente estranho em muitas esferas e circunstâncias que não foram
contagiadas pelo ainda não inaugurado. Já se reconhece a diferença. Já se quer
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exercitar, desenvolver, compartilhar a vida que sua nova identidade lhe gerou. O
eschaton parcial que lhe visitou e o conectou ao Eschatos, pelo pneuma, causou-
lhe atração pela totalidade de sua manifestação, pelo aperfeiçoamento dessa visita
e conexão e desapegou-lhe da velha configuração e dos velhos arranjos que o
tinham enclausurados. As estruturas antropológicas, sociológicas e cosmológicas
que lhe eram tão naturais e lógicas, caducaram. Agora, parecem-lhe impróprias,
soam-lhe esquisitas. Mesmo dentro de um quadro ainda não absolutizado, levado
à perfeição, onde se sofre as influências dos resquícios de um tempo e de uma
carcaça de morte, o novo, o Eterno convida a ser explorado, reivindica afinidade,
na proposta da dimensão peregrina. Sabe-se que a cidadania, o lar, o ninho, a
liberdade e a vida, não é mais isso que se tem, isso que ainda acossa. Não pode
ser. Há, lembrando o poeta Renato Russo, uma ―saudade que eu sinto de tudo o
que ainda não vi‖.87 O já trouxe um sinal do ainda não, e este ainda não é onde a
natureza regenerada suspeita que estará em casa. É onde ela se satisfaz. Não seria

84
CULLMANN, Salvation in History, p.177.
85
Efésios 2,6.
86
2 Coríntios 5,17.
87
RUSSO, Renato. “Índios”. Álbum discográfico Dois. Rio de Janeiro: EMI, Lado B, faixa 6,
1986. [Trecho de música].
201

possível, nem aconselhável recomendar a Igreja e ao evangelista que se negue


esse sonho/realidade e se despreze essa postura.
A postura encarnada não repudia em nada o caráter peregrino da identidade
cristã. Não rejeita em absoluto nenhuma das promissionis do ainda não. Apenas
quer valorizar a perspectiva do já, como uma incisão tangível e fundamentalmente
pró-história, pró-mundo, pró-criação. Quer aproveitar as benesses futuras que já
foram adiantadas para o presente e aplicá-las nas próprias estruturas e
circunstâncias que lhe parecem adoentadas e debaixo de opressão. Quer partilhar
de tudo o que experimenta com quem faz parte de seu entorno. Quer repassar ao
seu ambiente e aos seus semelhantes a renovação sísmica que lhe prorrompeu
num ato divino, bem como as mini-revoluções, não menos sagradas, que têm
estado desabrochando em sua caminhada desde então.
As duas posturas andam juntas, ainda que, por vezes parecem antagônicas e
disputam território. Cullmann não foi notadamente produtivo nesta discussão, mas
o nervo de sua moldura teológica, bem como reverberações pontuais que fez
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apóiam nossa inferência. Lembramos especialmente de seu apreço pela história e


seu reconhecimento do Logos que se fez carne e habitou entre nós, que são
perspectivas que direcionam a teologia e a práxis rumo à valorização do aspecto
encarnacional. E ainda, sua crítica à cosmovisão, espiritualidade e esperança da
religiosidade helênica, que até possuíam conotações positivas, mas que
invariavelmente eram manifestadas de forma passiva, etérea. Por outro lado, sua
teologia soteriológica e eclesiológica vão afirmar a personalidade transfigurada e
peregrina da Igreja. Não encontramos em Cullmann motivo para desconfiar de
quaisquer iniciativas em favor de um envolvimento e apreciação do mundo e da
história, nem de uma dúvida sobre a ruptura sobrenatural que posiciona o cristão
de forma atípica e em estado de contradição em sua relação com este mesmo
mundo. Cullmann poderia afiançar tanto o coração que está voltado para o céu
como o coração que está preso à terra, desde que se trate do mesmo coração.
Elencaremos alguns teólogos para aprofundar essa questão tão essencial para
a atividade missional da Igreja que é sua postura peregrina e encarnacional.
Roberto Zwetsch escreve sobre a importância de se manter os dois pólos em
tensão:
A questão central na missão é, portanto, estar presente no mundo sem ser do mundo
(João 17.15s). Nem igreja separada ou sectária, nem igreja secularizada podem
202

articular bem a missio Dei. Igreja-em-missão, sinal e instrumento da actio Dei


(ação de Deus), poderia descrever essa ambivalência desafiadora, sem esquecer sua
permanente luta consigo mesma. [...] A igreja é uma realidade escatológica. Na
verdade, ela vive numa tensão criativa entre ser chamada para fora do mundo (do
grego ek-klesia, ek-kalein) e ser enviada (do grego apostéllein) em sua
apostolicidade ao mundo como um experimento da realidade escatológica do reino
de Deus.88

Também Bosch verá a dualidade dessas posturas como uma tensão criativa:
Vivendo na tensão criativa de, ao mesmo tempo, ser chamada para fora do mundo e
ser enviada ao mundo, ela [a igreja] é desafiada a ser o jardim experimental de
Deus na terra, um fragmento do reinado de Deus, tendo ―as primícias do Espírito‖
(Romanos 8.23) como penhor do que há de vir. 89
Schwarz atenta para a alienação e para a cooptação que são evitadas, sempre
que as posturas peregrina e encarnacional são assumidas e mantidas pela Igreja e
pelos missionários: ―A escatologia cristã não abandona o mundo para ficar
ocupada apenas com o céu, mas, também não absolutiza as estruturas políticas,
religiosas e econômicas do presente e, nisso, é muito útil‖.90 Bonhoeffer, pastor,
teólogo e mártir, poderia personificar uma postura de inserção, mas será chamado
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a contribuir nesta dissertação, argumentando em prol da postura peregrina: ―As


imagens ‗peregrina, sacramento, sinal, instrumento‘ articulam mais corretamente a
ideia de que a igreja é a única organização social no mundo que existe para o bem
daqueles que, todavia não são membros dela‖.91 E o teólogo luterano brasileiro
Valdir Steuernagel, o qual não se pode acusar de negar a dimensão peregrina,
arrazoará em favor da postura encarnada:
Começar a redescobrir a encarnação como uma das colunas básicas de uma sólida
teologia evangélica – ao lado da crucificação, ressurreição e pentecostes, foi um
dos passos importantes nesta caminhada rumo a uma compreensão e prática
missionária que quer seguir os passos de Jesus, o Nazareno. Para John Stott, não
levar em conta a encarnação é um dos fracassos mais característicos dos cristãos
[...] Entender a missão da igreja na perspectiva do serviço, é por assim dizer, uma
conseqüência natural da encarnação.92
Novamente Zwetsch, agora apresentando a reflexão sobre a contextualização
da mensagem que pode resultar da postura encarnacional:

88
ZWETSCH, Missão como com-paixão, p.87.
89
BOSCH, Missão Transformadora: Mudanças de paradigma na teologia da missão. Tradução
Geraldo Korndorfer e Luis Marcos Sander. São Leopoldo: Sinodal, 2002, p.29, 593, 605ss. Apud
ZWETSCH, Missão como com-paixão , p.356.
90
SCHWARZ, Escatologia, p. 560-561.
91
BONHOEFFER, Dietrich. Letters and Papers from Prison. London: SCM, 1971, p.382.
92
STEUERNAGEL, Valdir. Introdução. In: STEUERNAGEL, Valdir (Org.) A missão da igreja:
uma visão panorâmica sobre os desafios e propostas de missão para a igreja do terceiro milênio.
Belo Horizonte: Missão, 1994, p.12s.
203

Mas para ser ouvida e encontrar credibilidade, ela precisará apresentar razoes,
argumentos e visões que tenham plausibilidade. Ela necessitará oferecer um
discurso que, da forma mais clara possível, demonstre uma fé que caminha com os
pés no chão de uma história plena de realizações as mais grandiosas, que ao mesmo
tempo marcada por tragédias e um nível de sofrimento humano difícil de
mensurar.93

N.T. Wright, também oferecerá sua posição sobre esta questão, como é de
costume em sua teologia, fazendo uso da moldura anastasiana e mostrando como
a Páscoa demanda uma postura encarnada:
A mensagem da ressurreição é: este mundo importa! As injustiças e dores do
mundo atual devem ser agora abordadas com a notícia de que a cura, a justiça e o
amor venceram. Se a Páscoa significa que Jesus só ressuscitou no sentido espiritual,
trata-se apenas de mim e de buscar uma nova dimensão em minha vida espiritual.
Mas se Jesus Cristo realmente ressuscitou dos mortos, o Cristianismo se torna a boa
nova para o mundo inteiro - uma boa nova que aquece os nossos corações
precisamente porque não diz respeito tão somente a aquecer corações. A Páscoa
significa que em um mundo onde a injustiça, a violência e a degradação são
endêmicas. Deus não está preparado para tolerar tais coisas, e que lutaremos e
planejaremos, com toda a energia de Deus, para implantar a vitória de Jesus sobre
isso tudo. Suprima a Páscoa e provavelmente Karl Marx estará certo ao acusar o
Cristianismo de ignorar os problemas do mundo material. Suprima a Páscoa, e
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Freud provavelmente estará certo em dizer que o Cristianismo e a satisfação de um


desejo. Suprima a Páscoa, e Nietzsche provavelmente estará certo em dizer que o
Cristianismo era para fracos.94
Ainda em congruência com o fator ressurreição, Wright soma, em favor da
perspectiva encarnacional, o argumento do envolvimento e apreço pelo mundo
com base na leitura que faz de 1Cor 15, 58, e de sua ênfase no aspecto da
continuidade entre velha e nova criação:
[...] O que se pode observar claramente é que a sólida doutrina judaico-cristã
considera a ressurreição como parte da nova criação de Deus e valoriza o mundo
presente e os nossos corpos atuais, estabelecendo uma continuidade entre o mundo
presente e o futuro, de modo que o que fazemos no presente é visto como algo de
extrema importância. Paulo fala da ressurreição futura como a razão primordial
para tratarmos nossos corpos de maneira adequada (cf 1Co 6.13-14) e não ficarmos
sentados esperando as coisas acontecerem. Ao contrário, devemos nos esforçar,
sabendo que tudo que fazemos para o Senhor, no tempo presente, não será
desperdiçado no futuro (cf. 1 Co 15.58).95
C.S Lewis, erudito inglês que fora convertido ao cristianismo num estágio
maduro de sua carreira pela via intelectual, escreveu sobre esta temática,
recordando que a ambas as perspectivas, peregrina e encarnacional não são só

93
ZWETSCH, Missão como com-paixão, p.52.
94
WRIGHT, N.T. For all God’s worth: true worship and the calling of the church. Grand Rapids:
Eerdmans, 1977, p.65-66.
95
WRIGHT, Surpreendidos pela Esperança, p.45.
204

pertinentes na atualidade, mas foram características importantes (pela sua


exteriorização ou omissão) nos primórdios do cristianismo e ao longo da história.
A esperança é uma das virtudes teológicas. Isso quer dizer que (ao contrário do que
o homem moderno pensa) o anseio contínuo pelo mundo eterno não é uma forma
de escapismo ou de auto-ilusão, mas uma das coisas que se espera do cristão. Não
significa que se deve deixar o mundo presente tal como está. Se você estudar a
história, verá que os cristãos que mais trabalharam por este mundo eram
exatamente os que mais pensavam no outro mundo. Os apóstolos, que
desencadearam a conversão do Império Romano, os grandes homens que erigiram a
Idade Média, os protestantes ingleses que aboliram o tráfico de escravos - todos
deixaram sua marca sobre a Terra precisamente porque suas mentes estavam
ocupadas com o Paraíso. Foi quando os cristãos deixaram de pensar no outro
mundo que se tornaram tão incompetentes neste aqui. Se você aspirar ao Céu,
ganhará a Terra "de lambuja"; se aspirar à Terra, perderá ambos.96
Quem também relaciona o assunto da peregrinação e da encarnação numa
reflexão da dinâmica paradoxal terrestre e celestial é Luis Carlos Susin:
Os extremos se tocam: o céu sem a terra é tão trágico como a terra sem o céu. Sem
a terra, perde-se o chão onde se poderia ganhar o impulso. O caminho e a paisagem
se tornam hostis. As criaturas são endemonizadas, e só a luta e não a dança conduz
a Deus. O céu sem a terra também fez perder-se a teologia da criação, o apreço
teológico à natureza. Deixou a terra para os projetos seculares que a coisificaram
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com manipulações e abusos chegando ao atual impasse da produção, da


propriedade privada capitalista e da ecologia. Falta integração criacional e
escatológica da terra ao céu.97
E seguindo em seu raciocínio, Susin amplia a reflexão facilitando a
interlocução entre a protologia e a escatologia, que também constituiu um dos
enfoques de Pannenberg e Molttmann:
Hoje os tratados da escatologia (De Novissimis) e os da cria articulado junto com
os da criação (Protologia ou ―De Deo creante et elevante‖) devem se articular
juntos. A escatologia é a ―intenção‖ e a criação e a história são a ―execução‖ inicial
e continuada, mas a ―ordem da intenção‖precede a ―ordem da execução‖, segundo
o raciocínio escolástico. ―O primeiro na intenção é o último na execução‖ mas tudo
já vem ordenado pela intenção e para a intenção. A intenção é a escatologia: a
predestinação escatológica faz compreender corretamente a criação integrando-a
num projeto coerente de Deus. Supera-se assim os ―andares‖ de ―natural‖ e
―sobrenatural‖, e sobretudo se faz justiça ao mundo, à ecologia.98

Concluímos esta parte, onde procuramos traçar um paralelo entre as


dimensões peregrina e encarnada da identidade cristã reafirmando a postura
missional que valida a expectativa do porvir que motiva ao agir. A esperança
cristã no ainda não se firma no aqui e agora, agrega valor e propósito à existência
humana, enquanto continua amadurecendo em sua peculiaridade em Cristo.

96
LEWIS, C.S. Cristianismo Puro e Simples. Tradução Álvaro Oppermann e Marcelo Brandão
Cipolia. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.52,54.
97
SUSIN, Assim na Terra como no Céu, p.22.
98
SUSIN, Assim na Terra como no Céu, p.29.
205

Movimenta o cotidiano, dialogando com crises e desafetos, ao mesmo tempo em


que sonha com um incomum, anseia e trabalha por uma nova ordem das coisas.
Um pensamento que exprime, cremos, exemplarmente a viabilidade, beleza,
eficácia e história desta postura missional, nos foi conhecido por Leonardo Boff,
aludindo a uma ilustração e a um documento dos primeiros passos do
cristianismo:
São Clemente Romano (†96) chama os cristãos de paroichoi, paroquianos.
Paroquianos eram, para o mundo grego e romano, aqueles estranhos que passavam
por algum território, aí se detinham um pouco para em seguida prosseguirem sua
caminhada. O cristão sente-se estrangeiro que mora numa terra estranha (Flp 3,20)
porque ele já viu a pátria verdadeira e degustou das forças do mundo futuro (Hbr
6,5). Por isso ele vive uma nova realidade já dentro da velha. Como dizia
excelentemente a Carta a Diogneto por volta do ano 190 de nossa era: ―Os cristãos
vivem nas suas próprias pátrias, mas como forasteiros; cumprem todos os seus
deveres de cidadãos e suportam tudo como estrangeiros. Toda terra estranha é para
eles uma pátria e toda pátria uma terra estrangeira... Estão na carne mas não vivem
segundo a carne. Passam a vida na terra, mas não cidadãos do céu. É tão nobre o
posto que Deus lhes destinou que não lhes é permitido desertar‖.99
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5.2.3
Uma postura expectante e militante

A terceira implicação da tensão já e ainda não de Cullmann não podia se


reproduzir numa dialética mais supostamente antagônica. A postura que
abordaremos nessa seção tem uma tendência que é, ao mesmo tempo, expectante e
militante, paciente e inconformada, tolerante e resistente, pacífica e protestante.
Somente se tomarmos em conta a temporalidade escatológica paradoxal é que
atitudes tão inversas poderiam ser consideradas de forma correlativa. Novamente
o já e ainda não possibilitará um comportamento missional significantemente
original e intrigante.
Aprendemos de Cullmann sobre a perspectiva da expectativa. Ela tem sua
origem no âmago da confiança num evento objetivo, sólido e histórico e na
efetivação da parusia. Ela encontra prescrição na Revelação e exemplo na
trajetória do povo da aliança, tanto no Novo Testamento como no Antigo. O já
realizado confere credibilidade a ela e a Palavra respalda com abundantes apelos
de ―não temas‖ e ―tenha perseverança‖. Esta postura expectante nos orienta a uma

99
BOFF, Vida para Além da Morte, p.117-118.
206

presença não nervosa, não pessimista, não estressada em relação ao ainda não que
nos foi prometido. Cullmann não tratou do atraso da parusia como um calcanhar
de Aquiles, mas como uma oportunidade para que o cristão exerça esse fruto do
Espírito. ―Fiel é o que promete‖, e essa fidelidade pode ser examinada ao longo da
história e observada dependurada num madeiro romano na colina da Caveira.
Cullmann está convencido: o cristão tem todas as razões para externar uma
postura expectante.
Também aprendemos do professor da Basileia sobre a perspectiva da
militância. A palavra que escolhemos, parece hoje em dia denotar algum tipo de
associação com movimentos de cunho sócio-político, mas ela se presta, a rigor, a
uma variedade de significados teológicos. Nas dogmáticas luteranas, o termo é
usado de forma ampla, referindo-se aos distintos desafios que a Igreja enfrenta
enquanto aguarda a parusia, onde deixará de ser uma comunidade militante e
passará a ser uma congregação triunfante. Cullmann era, provavelmente,
conhecedor desse conceito.
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Poderíamos também espiritualizar um pouco mais a questão da militância e


falar da luta contra o pecado pessoal e eclesiástico e contra a entidade maligna e
inimiga do ser humano, e esse viés poderia resultar numa reflexão produtiva e
propositada sob a ótica da tensão escatológica já e ainda não e a postura
missional. Sem dúvida os conflitos internos no missionário, as contendas na Igreja
entre seus pertencentes, e a guerra contra os ―principados e potestades‖ são
relevantes dentro do processo do testemunho do evangelho no mundo. Essa
militância é fundamental. Lutero falava da tentatio (referindo-se a esta luta
existencial e espiritual do cristão consigo e com o próprio diabo) como
impreterível e até pedagógica.100 Cullmann também deveria estar, possivelmente,
familiarizado com essa militância.
E enfim, a questão poderia ser abordada pelo rumo da luta por um mundo
mais justo, por causas nobres e pendentes, por estruturas mais congruentes aos
valores humanizantes e sagrados do Reino de Deus. E Cullmann, mais uma vez,
poderia abonar esse colóquio. Como já dissemos anteriormente, seria

100
Para uma compreensão desse conceito em Lutero, indicamos as seguintes fontes: PFEIFFER,
Andrew. K. The place of Tentatio in the Formation of Church Servants. Lutheran Theological
Journal. Adelaide, v.30, Dez.1996, p.111-119; JI, Won Young. Significance of Tentatio in
Luther‘s Spirituality. Concordia Journal. Saint Louis, v.15, Apr.1989, p.181-188; KLEINIG, John
W. Como se forma um teólogo: Oratio, Meditatio, Tentatio. Igreja Luterana. São Leopoldo, v.61,
p.5-19, jun. 2002.
207

descomedido enquadrá-lo na categoria de teólogo da libertação, para usar um


exemplo de uma escola que impactou o desenvolvimento deste ponto de vista por
seu interesse em transformação social, mas ainda assim, há em Cullmann
elementos que o postulam a contribuir nesta linha, tanto que, como já vimos no
capítulo anterior, ele exercera influência positiva em pensadores que a
representam. As ideias cullmannianas sobre uma postura de militância são
melhormente encontradas e mais fartas em sua obra sobre Jesus e os
revolucionários de seu tempo. No entanto, mesmo na trinca dos tomos que
estamos observando com mais atenção, Cullmann vai legitimar uma postura dessa
militância de resistência contra o mal sistêmico e frente às injustiças sócio-
econômicas e políticas, desde que a inconformidade esteja energizada pela
motivação e causa adequada, contra adversários justificados e na tonalidade
oportuna. Do mesmo jeito, a ética de Cullmann e a forma como enxergou a
missão sendo realizada também por meio de testemunhos visíveis de uma
personificação do evangelho poderiam fornecer elementos de estudo. E ainda
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assim, sua teologia poderia resultar insuficiente para impactar essa discussão.
Cullmann poderia ser criticado e ter sua proposta militante considerada tímida.
Ele não articulou como Tillich, por exemplo, uma defesa de um princípio
protestante101. Mas cremos que tampouco foi isento. Não entraremos nesse debate.
Nesta dissertação nos estamos limitando a afirmar a viabilidade da ideia em sua
teologia, sem avaliar todas as questões que poderiam ser levantadas. Basta-nos à
conclusão de que há em Cullmann suficientes indícios para afirmar a postura
militante.
Voltando ao nosso ensejo inicial, o ajuste de atitudes que torna a postura
missional curiosa, e quem sabe instigante, é justamente o aspecto descansado da
expectação e insatisfeito da militância. Cullmann não é o único em confessá-los.
John Stott, um teólogo e bispo anglicano inglês que influenciou
consideravelmente o pensamento pastoral protestante na segunda metade do
século XX, discorre sobre esta postura expectante e militante com as seguintes
palavras:
Enquanto isso, [neste tempo entre o já e ainda não] precisamos aguardar, não só
"com ardente expectativa" mas também "com paciência". Como escreveu John
Murray: tentativas de reclamar para a vida presente elementos que pertencem à

101
VER TILLICH, Paul. A Era Protestante. Tradução Jaci Maraschin. São Paulo: Ciência da
Religião, 1992.
208

perfeição consumada são apenas sintomas dessa impaciência que iria interromper a
ordem divina. Expectativa e esperança não devem cruzar as fronteiras da história;
elas têm que esperar o fim, ―a liberdade da glória dos filhos de Deus‖. [...] Ao
mesmo tempo [que a nova era foi inaugurada por Jesus], a velha era continua. E
assim as duas se sobrepõem. "As trevas se vão dissipando e a verdadeira luz já
brilha." "Lado a lado... com a continuação desse esquema mais velho pode-se notar
o irromper de um novo sistema, que implica numa coexistência dos dois mundos ou
estados. Um dia a velha era chegará ao fim (que será o "fim dos tempos", a
"consumação dos séculos"), e a nova era, que foi inaugurada pela primeira vinda de
Cristo, se consumará em sua segunda vinda. Entrementes, enquanto as duas eras
continuam e nós nos vemos envolvidos na tensão entre elas, somos exortados a
"não nos conformarmos com este mundo", mas, pelo contrário, "transformar-nos"
segundo a vontade de Deus, ou melhor, a vivermos coerentemente como filhos da
luz.102

Também o professor Jeffrey Gibbs afirmará a realidade das duas


perspectivas, primeiramente fazendo um chamado a se reconquistar o espaço da
esperança e expectação na parusia na fé da igreja:
Estamos aguardando esta esperança com perseverança? Ou não estamos? Parece-
me que não estamos. [...] Esta esperança está em nossa doutrina. Ela está na Bíblia.
Está nos Credos. Mas a esperança que aguarda ansiosamente pela segunda vinda de
Cristo tem sido obscurecida por outra coisa. O sol foi eclipsado pela lua. Se você
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perguntar a cristãos [...] qual é sua esperança e seu objetivo, sua resposta
provavelmente será: ―Morrer e ir para o céu‖. Em outras palavras, ―entrar no estado
intermediário, a condição da presença da alma com Cristo quando o corpo morre.‖
Uma ênfase bíblica menor, sobre a qual pouco sabemos e a respeito da qual a Bíblia
dá pouca atenção suplantou a volta de Cristo como conteúdo da esperança cristã.
Entregamos a segunda vinda de Cristo para os ―calculadores‖, para os
dispensacionalistas. Digo que devemos tomá-la de volta. Não é suficiente negar o
ensino falso e especulações perigosas a respeito do último dia e do retorno de
Cristo – apesar de que temos de fazer isto também. Precisamos reaver para nós
próprios o poder e a alegria que brotam do entendimento verdadeiro e bíblico da
consumação da era.103
Gibbs fará uso do mesmo texto bíblico citado por Stott, advogando por um
detalhe de tradução que faz substancial diferença na forma como se espera.
Da maneira mais simples, diria desta forma. Os autores do Novo Testamento
pensaram, viveram e escreveram escatologicamente, com sua esperança voltada de
maneira completa, firme e intensa para a segunda vinda do Senhor Jesus Cristo.
Nossos corações e mentes, no entanto, não estão orientados desta forma, apesar de
que a nossa tradição, os Credos e a Bíblia nos ensinem de outra forma. Eles
viveram escatologicamente. Nós, em termos práticos, não o fazemos. Mas
deveríamos viver assim. Estou sugerindo que deveríamos aplicar Rm 12.2 (com a
devida tradução): ―Não vos conformeis com esta era – não é ‗mundo‘, mas ‗era‘! -
mas sede transformados pela renovação da vossa mente.‖104 Se quisermos crer e

102
STOTT, John. Ouça o Espírito, ouça o mundo. 2. ed. Tradução Silêda Silva Steuernagel. São
Paulo: ABU, 2005, p 164.
103
GIBBS, Regaining Biblical Hope, p. 315.
104
Nota de rodapé no artigo de Gibbs: A tradução inglesa de τῷ αἰῶνι τούτῳ como ―este mundo‖
[assim traduz a New International Version, por exemplo] não deveria ser preferida, pois obscurece
o significado temporal, escatológico. Como Joseph A. Fitzmeyer (The Anchor Bible: Romans: A
New Translation with Introduction and Commentary, New York: Doubleday, 1992, 640-641)
209

viver como os escritores do Novo Testamento o fizeram, precisamos que Deus


renove nossas mentes pelo poder de Sua palavra.105
Finalizando, Gibbs enfatizará sua defesa da postura militante.
Segundo, devemos estar prontos a ouvir os gemidos de sofrimentos e levar a sério o
quanto esta era presente ainda é a era má. Isto significará confrontar seriamente o
pecado, em nossa vida e na vida dos outros. Isto significará pensar teologicamente
a respeito da doença, dos desastres e da morte. Isto significará estar prontos a
ficarmos perturbados pelo mal que ainda existe. Pois o coração do Salvador está
perturbado. Não é nada de novo; só temos de levar a sério a teologia da cruz.106

Também aproveitaremos as contribuições de N.T. Wright, quem numa


linguagem simples toca num tema bastante comum na postura missional cristã que
impera na contemporaneidade:
Por que tentar melhorar essa prisão em que vivemos se em breve estaremos livres
dela? Porque lubrificar o motor de um carro que em breve despencará de um
penhasco? É exatamente assim que pensam alguns cristãos dedicados, por
acreditarem, de fato, que a ―salvação‖ não tem nada a ver com a vida presente.107
Moltmann também se ocupará desta questão expectante – militante que
estamos sugerindo para a igreja e o missionário. Segundo ele, a esperança cristã
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permite certo grau ―mansidão com a terra arrasada e a humanidade desonrada,


pois lhe está prometida o reino da terra‖108, mas nesta tensão, sua ênfase mesmo
estará na espera ativa, na esperança como verbo, esperançar, na inquietação (no
que provavelmente está certo). Sua opinião é a de que a esperança ―torna a igreja
cristã perpetuamente inquieta em meio às sociedades humanas, que querem se
estabilizar como ‗cidade permanentes‘‖.109 Que a fé não traz quietude, mas
inquietude, não traz paciência, mas impaciência, não acalma o cor inquietum, mas
é, justamente, esse cor inquietum no ser humano.110
[...] Aquele que assim espera nunca se conformará com as leis e obrigatoriedades
desta terra, nem com a inevitabilidade da morte, nem como os males que geram
outros males. Para esse indivíduo, a ressurreição de Cristo não é somente um
consolo em meio a uma vida ameaçada e condenada à morte, mas também a
contradição criada por Deus contra o sofrimento e a morte, contra a humilhação e a
ofensa, contra a maldade do mal. Cristo, para a esperança, não é só o consolo em
meio à dor, mas também o protesto da promessa de Deus contra o sofrimento.[...]

comenta, ―Paulo alude à distinção judaica entre ‗este mundo/época/era‘ e o ‗mundo/época/era por
vir‘, uma distinção que foi adotada pela igreja antiga e recebeu uma nuance cristã. Para Paulo, o
‗mundo/época/era por vir‘ já iniciou; as ‗eras‘ se encontraram no início da dispensação cristã (1 Co
10.11). Ver também C. E. B. Cranfield, A Critical and Exegetical Commentary on the Epistle to
the Romans, vol. 2 (Edinburgh: T. & T. Clark, 1979), 608.
105
GIBBS, Regaining Biblical Hope, p.310.
106
GIBBS, Regaining Biblical Hope, p.321.
107
WRIGHT, Surpreendidos pela Esperança, p.44-45.
108
MOLTMANN, Teologia da Esperança, p.36.
109
MOLTMANN, Teologia da Esperança, p.37.
110
MOLTMANN, Teologia da Esperança, p.36.
210

Quem espera em Cristo não pode mais se contentar com a realidade dada, mas
começa a sofrer devido a ela, começa a contradizê-la. Paz com Deus significa
inimizade com o mundo, pois o aguilhão do futuro prometido arde
implacavelmente na carne de todo o presente não realizado.111
A palavra de Molttmann é expressiva para o fechamento desta subdivisão.
Ela harmoniza com a ideia de uma ―comunidade alternativa e contestadora, num
mundo sem coração cujos ídolos apontam exclusivamente para os símbolos do
sucesso, da magia das luzes‖.112 Ela ataca a omissão e convoca a igreja missional
a ser uma igreja sem regalias, para poder preservar sua capacidade profética e
assim coerentemente realizar a tarefa missional. Concordamos com o peso que
Moltmann (e tantos outros) dá a este ângulo da equação, no entanto fazemos a
ressalva, que o outro lado da tensão também carece ser salvaguardado.

5.2.4
Uma postura cultual e cultural
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Como conclusão desta seção, onde temos tentado demonstrar as


possibilidades e implicações da tensão já e ainda não para a postura missional,
trazemos os dois últimos contrapontos que formatarão, então, a espécie de perfil
comportamental da Igreja missional que estamos construindo. São eles: o culto e a
cultura. Por culto, nos estaremos reportando à vida sacramental-celebrativa no
seio da comunidade cristã. Por cultura, faremos referência às questões de
interatividade com o meio social onde se está inserido. A postura cultual diz
respeito à vida religiosa e à espiritualidade, por assim dizer, dominical. A postura
cultural diz respeito à vida comum e à espiritualidade cotidiana. Uma toca no
sagrado, outra lida com o profano, se é que estas categorias provam-se realmente
cabíveis de serem consideradas.
Por que estes temas são importantes para a composição da postura
missionária? Sucintamente, porque fazem parte do coração de sua personalidade.
De sua relação vertical, com Deus, por um lado, e de seu convívio horizontal, com
o próximo e com a criação, por outro. Da forma como se experimenta o divino e
da forma como se encaram os acervos e afazeres seculares. São os valores de sua

111
MOLTMANN, Teologia da Esperança, p.36-37.
112
ZWETSCH, Missão como com-paixão, p.356.
211

transcendência e de sua imanência. Seja no indivíduo que testemunha, seja na


comunidade como fraternidade testemunhal.
Como a tensão já e ainda não em Cullmann afeta uma postura cultual e
cultural? É isso que tencionamos averiguar. Duas informações requerem ser
distribuídas como intróito: primeiro, as posturas cultual e cultural nem sempre são
vistas na teologia e práxis cristãs em contradição explícita. São, talvez, cada vez
mais raras as situações em que as duas aparecem antagonizadas, em que uma é
superdimensionada em detrimento da outra, ainda que essa conjuntura possa
ocorrer, tanto na academia como na paróquia. Por isso, nossa proposta pode ser
sustentável. A ideia é imaginar o envolvimento com a cultura e os hábitos da vida
cúltica como polos pertencentes à existência do ser humano, incentivando que a
tensão seja preservada entre eles, e insinuando que ambas as performances
recebam a atenção e o prestígio que lhes são atinentes.
Segunda nota preparatória: aproximar vida de culto e relacionamento com a
cultura é tocar em assuntos extremamente polêmicos e amplos no ambiente
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cristão, que mexem com posicionamentos firmes, tradicionais, e possuem uma


vasta disponibilidade de abordagem. Estaremos num território escorregadio, e o
que nos conforta é que não estamos nos dispondo a analisar os pormenores do
estado da questão e as várias alternativas prático-teologais em cada um destes
pólos, mas antes só afirmar a importância e a validade de um e outro para a
postura missional a partir da tensão escatológica de Cullmann.
Comecemos pela postura cultual. A teologia litúrgica já foi mencionada
nesta dissertação. Muito particularmente, quando mostramos como Cullmann
identificara no culto cristão, uma fé e uma esperança no Reino de Deus em
perspectiva de já e ainda não. Na leitura que Cullmann fez da vida de oração e
adoração da comunidade primitiva, notadamente na Eucaristia e na oração
Maranata, o teólogo de Estrasburgo percebeu o quanto o ritual, o encontro
comunional e especialmente o exercício do Sacramento significavam
espiritualmente na relação dos primeiros discípulos com o Senhor ressuscitado. A
profundidade da teologia por trás das palavras expressadas, e do gesto realizado,
validavam e atualizam o evento salvífico, fortaleciam a fé, renovavam as
esperanças e dinamizavam a caridade e o ímpeto missional das assembleias
originais. A experiência de culto, repetimos, centrado na Palavra e no Partir do
Pão, possuía uma representatividade substancial que confirmava a presença real
212

de Cristo em meio, para e por meio de cada um dos participantes. O já era


rememorado em anamnese e o ainda não sinalizado num mistério que unia
promessa e matéria física. E desse encontro místico e real, de gente com gente e
dessa gente com Cristo, a missão que lhes fora confiada se revitalizava, em
cenários e configurações que podiam variar, mas num compasso rítmico regular,
que prefigurava o dia do descanso, da festa que ainda não chegou ao seu ato
máximo, mas que eles criam já ter principiado.
Cullmann tratou da teologia cúltica nas obras que consultamos
fundamentalmente como um argumento para a comprovação de sua tese da
expectativa escatológica tempo-paradoxal. Não temos conhecimento se em outros
escritos, ou em aulas ministradas, ele teria trabalhado a relevância e a
aplicabilidade do hábito oratório-sacramental para a igreja e o cristão
contemporâneos. Arriscaríamos dizer que o fez. Especialmente se deu ouvido à
teologia luterana, que possui esse viés de apreciação do culto como uma
experiência do ―céu na terra‖, de algo que acontecerá na parusia, já sendo
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experimentado a cada domingo na Igreja.113 Entendemos que a compreensão


católica, bem como e a de outras igrejas sacramentais, se assemelham neste
aspecto da interpretação teo/cristocêntrica do ofício da missa como sendo,
sobretudo, um serviço efetuado por Deus em favor de seu povo.
N.T Wright também nos ajuda na compreensão da postura cultual que
entendemos que é depurada da tensão já e ainda não cullmanniana:
Sucessivas gerações de cristãos têm procurado encontrar uma linguagem que faça
justiça ao que acontece no batismo e na eucaristia. Talvez não nos surpreenda o fato
de eles não terem conseguido encontrar, já que os sacramentos possuem uma
linguagem própria, basicamente intraduzível. [...] Poderíamos nos alongar muito
mais sobre essa questão, mas, por enquanto, tentarei resumi-la da seguinte forma:
na eucaristia, o pão e o vinho chegam a nós como parte da nova criação de Deus, da
qual Jesus já participa por meio da ressurreição. Esses dois elementos falam
poderosamente, como somente ações codificadas podem falar (quer seja um aperto
de mão, um beijo ou um cancelamento de um contrato), da morte e do sofrimento,
através dos quais a idolatria e o pecado foram derrotados, e de sua volta, quando a
criação será renovada (1 Coríntios 11.26). Nós nos alimentamos dessa realidade,
apesar de termos dificuldades de conceituar que tipo de realidade ela é. Sabemos
que somos consequentemente renovados como povo de Jesus, que vive e trabalha
no ponto de tensão entre a Páscoa e a renovação final, o que nos capacita ao menos
a relaxar e a desfrutar de tudo o que o sacramento tem a nos oferecer.114

113
VEITH JR. Gene Edward. Espiritualidade da Cruz: O caminho dos primeiros evangélicos.
Tradução Paulo S. Albrecht. Porto Alegre: Concórdia, 2014, p.112-113. O autor comenta que a
concepção que tem do culto cristão foi aprendida do teólogo australiano John Kleinig.
114
WRIGHT, Surpreendidos pela graça, p.277-278.
213

N.T Wright também aborda outros conteúdos relacionados à vida de culto


que possuem vínculo com a tensão já e ainda não: fala do batismo, que nos liga à
ressurreição, onde ―o futuro misturou-se com o presente‖ e a porta de entrada da
membresia da nova família é aberta. É o sacramento de acesso ao Reino de Deus,
―um dos pontos, estabelecidos por Jesus, de conjunção entre o céu e terra, no qual
a nova criação – a vida ressurreta – surge em meio à antiga‖.115 Fala da oração, o
lamento pelo caos e a estreiteza com a Trindade, como o contínuo bater na porta
de Deus para lembrá-lo de suas promessas, de seus atos grandiosos no passado, e
acima de tudo, de seu amor por eles.116 E fala também da Palavra, que não é lida e
ouvida na celebração como uma lista monótona e uniforme de regulamentos e
doutrinas, mas como uma narrativa de salvação, narrativa da qual somos
chamados a participar e nos envolver.117 Todas estas porções poderiam ser
aprofundadas, mas escolhemos elaborar um pouco mais o dado específico do
sacramento da Ceia, por considerá-lo o símbolo mais representativo da
perspectiva de culto que Cullmann incute:
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Para muitos cristãos os sacramentos parecem muito próximos de um espetáculo de


magia [...] ou como um sinal ou um simples lembrete do fato de que Cristo morreu
por nossos pecados.[...] Entre um ritual pretensamente mágico de um lado, e de um
simples memorial de outro, uma visão mais bem fundamentada historicamente nos
faz recordar como as refeições sagradas judaicas (principalmente a Páscoa, que deu
origem à eucaristia) cumpriam sua função. [...] Durante a celebração da Páscoa, os
judeus costumavam dizer: ―Esta é a noite em que o Senhor nos tirou do Egito‖, o
que torna as pessoas sentadas ao redor da mesa não apenas herdeiros distantes da
geração do deserto, mas também parte do mesmo povo. Tempo e espaço se unem.
No mundo dos sacramentos, passado e presente são uma coisa só. Juntos eles
apontam para a libertação, que acontecerá no futuro. Na eucaristia, essa dimensão
do futuro é trazida diretamente a nós, por meio da morte e ressurreição de Jesus
Cristo. [...] Não estamos apenas relembrando a morte de Jesus, ocorrida há muito
tempo, mas celebrando a presença do Senhor vivo. Ele vive, por meio da
ressurreição, precisamente como aquele que vai à frente na nova criação, no novo
mundo transformado, como aquele que é, em si mesmo, o seu protótipo.118
Seja pela confraria que é possível de ser encontrada, seja pela possibilidade
de se orar pública e associadamente. Quer pela oportunidade de se relembrar o
batismo recebido, ou pela chance de se testemunhar um novo ato de ingresso no
Reino, quer pelo ouvir da Revelação divina em companhia de uma comunidade
que partilha da mesma fé, da mesma esperança e da mesma missão. Mas

115
WRIGHT, Surpreendidos pela graça, p.286-287.
116
WRIGHT, Surpreendidos pela graça, p.290-294.
117
WRIGHT, Surpreendidos pela graça, p.294-297.
118
WRIGHT, Surpreendidos pela graça, p.287-288.
214

especialmente, pela oportunidade de se experimentar um dos mais caros


―mistérios‖ da tensão já e ainda não no sacramento da mesa santa, a postura
cultual se abre como uma poderosa ferramenta que vivifica e empodera o
indivíduo, as famílias e as Igrejas cristãs a realizarem a tarefa missional que têm
diante de si. A participação litúrgica na celebração dominical se revela
fundamental para a semana. O engajamento com a graça transcendental e
extraordinária que se faz física e próxima, em tempo e espaço cultual, habilita e
traz a consagração para o engajamento com o palpável e ordinário, nas ocasiões e
ambientes culturais. Mesmo quando não se tem grande simpatia pelo celebrante
ou afinidade com a estrutura litúrgica e o estilo musical do louvor.
Mas ―nem só de domingo viverá o homem‖, poderíamos dizer. A vida
cúltica-comunitária é uma dínamis sui generis, mas seu propósito não é deixar o
povo eclesial em permanente vigília ou adoração no santo dos santos, mas
devolvê-los à vida, aos espaços profanos-sagrados do dia-a-dia, nas múltiplas
vocações para as quais foram também chamados no âmbito da criação. E, dessa
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forma, chegamos à postura cultural.


A postura cultural tem sido motivo de ampla investigação em nossos
tempos. Existem muitas opções de tratados à disposição sobre o assunto.119 Já
desde a época de Cullmann, a pesquisa de um teólogo chamado H. Richard
Nieburh se destacou pela forma sintetizada de apresentar a relação cristã com a
cultura em suas variações históricas e possibilidades teológicas e práticas. Em seu
livro Cristo e Cultura, publicado originalmente em 1951, o teólogo norte-
americano elencou uma categorização memorável das formas de se relacionar fé
cristã e cultura que teriam sido utilizadas por diversos grupos cristãos no passado.
Elas modulam desde um viés de rejeição total até a aceitação acrítica da produção
cultural, com algumas posições intermediárias.120 Apresentamos em sumário, pois
uma discussão da postura cultural não pode deixar de considerar estas
perspectivas:

119
Exemplos destas investigações: CARTER, Craig A. Rethinking Christ and Culture: A Post-
Christendom Perspective. Grand Rapids: Baker, 2007; CARSON, Douglas A. Cristo e Cultura:
Uma releitura. São Paulo: Vida Nova, 2012; SMITH, James K.A. Desiring the Kingdom: Worship,
Worldview, and Cultural Formation. Grand Rapids: Baker, 2009; KELLER, Timothy. Igreja
Centrada. São Paulo: Vida Nova, 2014.
120
HOEKEMA, A Bíblia e o Futuro, p.89.
215

a) Cristo contra a cultura: modelo de afastamento, em que se dá um


distanciamento em relação à cultura, por ser considerada bastante negativa, e uma
ênfase no retiro eclesial, na participação cultual, e na vida dentro da igreja;
b) Cristo da cultura: modelo de acomodação, que reconhece a cultura como
fortemente positiva, a ação de Deus nela, e busca formas de confirmar e cooperar
com essa ação;
c) Cristo acima da cultura: modelo híbrido, que argumenta em prol da
cultura, a qual é avaliada como recipiente de aspectos e valores positivos, e em
favor de um esforço no sentido de complementar e construir em cima desses
fatores;
d) Cristo e cultura em paradoxo: modelo supostamente dualista, que vê os
cristãos como cidadãos de dois reinos diferentes, um sagrado e outro secular;
e) Cristo transformador da cultura: modelo conversionista, que busca
transformar cada parte da cultura por meio de uma cosmovisão fundamentalmente
cristã.121
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De certa forma, grande parte da teologia e da práxis missional que Igrejas e


indivíduos têm assumido, podem ser identificados em algum destes modelos. Eles
têm também servido de paradigma para uma boa parcela da reflexão teológica no
assunto.
Nosso objeto de pesquisa, Oscar Cullmann, não se demonstrou um
proficiente teólogo da cultura, se comparado com alguns correligionários seus,
como Nieburh. Para embasamento teórico nesta atitude missional, encontramos
nele apenas algumas informações indiretas. Elas aparecem nas partes conclusivas
de seus dois livros sobre a temporalidade escatológica e a história da salvação, em
breve capítulos sobre como esta metanarrativa salvífica se aplica ao ser humano e
suas decisões éticas. Cullmann escreve sobre o verbo neotestamentário discernir,
sobre sensibilidade pneumática para ler cada situação específica e sobre
paradigmas gerais de aplicação da vontade de Deus. O envolvimento nas
especificidades seculares que a vida no mundo apresenta, como a percepção que
se tem do trabalho, do Estado, da arte, do entretenimento, entre outras coisas, é
validado, e passa por estes princípios latos.122

121
NIEBURH, H. Richard. Cristo e Cultura. Tradução Jovelino Pereira Ramos. Série encontro e
diálogos, v. 3. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1967. Passim.
122
CULLMANN, Christ and Time, p.228-230.
216

Estritamente em Salvation in History, Cullmann menciona sobre valores


culturais, não de forma extensiva, mas apenas delineando alguns aspectos.
Segundo o professor, estes valores fazem parte de uma estrutura divinamente
ordenada que o cosmos oferece. Ou seja, ele reconhece a proveniência sagrada da
cultura (é parte do Reino de Deus) e conecta esta perspectiva com a ordem da
criação (é parte da do Reino de Deus em sentido amplo, não atrelado à Igreja e a
história da salvação restritamente conceituada). Reafirma que do Novo
Testamento, especialmente da teologia paulina, recebemos tão somente
orientações abrangentes sobre estas questões, as quais devem ser julgadas levando
em consideração seus contextos particulares.123 E ainda dirá:
O interesse em trabalhar na ―estrutura‖ deste mundo, e nas obrigações éticas que
acompanham tal trabalho, deve naturalmente aumentar à medida que nos damos
conta que muitas gerações, e não apenas à nossa, devem viver nesta estrutura. [...]
A conseqüência de saber sobre este kairos [de estarmos entre o já e o ainda não]
(Rm 13.11), é que nós julgamos a estrutura que Deus tem concebido ao mesmo
tempo mais positivamente e mais negativamente do que quando meramente
contrastamos o ―mundo com o outro mundo‖ Julgamos a estrutura mais
positivamente, no sentido de que nós aceitamos esta estrutura como ainda
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pertencente ao nosso tempo, como algo que faz parte da vontade de Deus, e mais
negativamente, na medida em que nós sabemos que ela está condenada a
desaparecer, e que o Reino vindouro está já irrompendo. Nossa compreensão,
informada pela história da salvação, deve prevenir-nos de tirar duas falsas
inferências do fato de que Deus ainda deseja que esta estrutura exista. Por um lado,
nós não devemos nos permitir ser orientados a derivar nossas normas desta
estrutura ao invés da linha estreita da salvação, porque estas normas são
tencionadas tão somente para a estrutura. Por outro lado, conhecendo sobre o
―ainda não‖, e até mesmo conhecendo sobre como o pecado humano está incluído
no plano de salvação de Deus, que este pecado não seja em caso algum pretexto
para compromissos éticos. Pelo contrário, nossos atos devem ser inspirados pelo
―já‖ do final antecipado em Cristo.124
Deduzimos da posição de Cullmann alguns pontos: primeiro, ele não
trabalha exatamente com as mesmas categorias de Nierbuhr. Segundo, caso sua
visão pudesse ser percebida nos modelos de Nierburh, estaria mais inclinada para
a opção que fala da cultura em paradoxo com Cristo, ou com a sua história da
salvação. Nesse caso, Cullmann estaria posicionando-se em conformidade com a
teologia clássica de sua tradição luterana.125 Terceiro, seu entendimento combina

123
CULLMANN, Salvation in History, p.336.
124
CULLMANN, Salvation in History, p.337-338.
125
A perspectiva luterana de envolvimento com a cultura envolve a articulação particular de duas
teologias muito estimadas para esta tradição: a teologia das vocações, a qual confere significado de
sacralidade para o trabalho e para todas as outras atividades diversas as quais o cristão é chamado
a se dedicar na sua vida diária, e a teologia dos dois reinos, a qual reconhece a governança de Deus
tanto sobre a cultura como sobre a Igreja, mas de formas diferentes, e propõe um posicionamento
intermediário que recusa tanto o extremo do afastamento da cultura, como o extremo do controle
217

alguns vieses mais facilmente aceitos com outros mais disputados na reflexão
teológica. Por exemplo: quando Cullmann fala da cultura como um elemento
pertencente, de certo modo, à esfera da ingerência de Deus, e não como um
elemento diabólico e perverso, em si (como parece sugerir o modelo ―Cristo
contra a Cultura‖, de Niebuhr), Cullmann começa sua ponderação cultural ao lado
da grande maioria dos teólogos. Ainda que possam ser encontradas praxes
missionais que traduzem o pensamento da cultura como intrinsecamente inimiga e
nociva ao Cristianismo, que desembocam numa postura ascética ou belicosa, estas
noções estão sendo cada vez menos estimuladas pela teologia. No outro extremo,
quando Cullmann continua dizendo que a cultura coabita em paralelo com a fé
cristã dentro da história de salvação, pertencendo a outro âmbito (não maligna,
tampouco messiânica), não sendo as duas nem idênticas, nem sendo a cultura
outro veículo de redenção (como parece sugerir o modelo ―Cristo da Cultura‖),
Cullmann também continua sua caminhada acompanhado da grande maioria dos
teólogos. É cada vez mais rara, pelo menos dentro da pesquisa séria, a concepção
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de cristandades e de projetos missionais que estão dispostos a confundir igreja


com sociedade e o evangelho com cultura, ainda que reduções do cristianismo
para modas sociais ou agendas políticas possam existir. No entanto, avançando
um pouco, quando Cullmann sugere a constante avaliação kairológica da cultura,
sua apreciação enquanto utilitária para o plano de salvação, e prevê sua eventual
descontinuidade, então, o professor começa a se colocar mais na mira de
expressivas críticas. Nestas, (e em outras) questões, há um intenso e frutífero
debate na teologia, o qual, em razão das limitações desta dissertação, não
poderemos explorar.126
Retomando o nosso argumento, cremos que apesar das questões culturais
que Cullmann deixa ou em aberto, ou são passíveis de críticas, ainda assim, ele

da cultura. Para um aprofundamento maior: VEITH JR, Espiritualidade da Cruz, p.71-107. A


perspectiva luterana não é isenta de críticas. A mais famosa delas tem a ver com sua suposta
passividade político-cultural e pretensa tolerância a tiranias e conjunturas econômico-estatais.
Entendemos que em muitos casos, essas críticas podem ser legítimas e pertinentes. Sugerimos para
uma defesa da postura cultural luterana (particularmente da acusação de que a sua teoria social
teria permitido a ascensão de Hitler), a obra: SIEMON-NETTO, Uwe. The Fabricated Luther. St.
Louis: Concordia, 1995. Para uma visão balanceada das teses de engajamento e omissão cultural,
especialmente no que tange à política, sugerimos o tomo: ALTMANN, Walther. Lutero e
Libertação. 2.ed. revista e ampliada. São Leopoldo: Sinodal, 2016.
126
Como sugestão de uma proposta convergente para os diferentes approaches para com a cultura,
sugerimos a interessante combinação de modelos de Tim Keller. KELLER, Timothy. Igreja
Centrada. São Paulo: Vida Nova, 2014, p.216-291.
218

permite que se utilize seu entendimento escatológico já e ainda não para


promover um comportamento missional que não se contenta com nenhuma fuga
mundi, mas se permite ser orientando para a cultura, criticando-a contextualmente,
sempre que pertinente. Não necessariamente divinização dela. Não
necessariamente se apropriando dela ou buscando a realização plena do Reino ou
o alcance soteriológico nela. Ainda assim, uma postura que valorize a cultura
como parte da criação de Deus, que desfrute as dádivas que estão disponíveis a
partir dela e que se empenhe com interesse genuíno em sua estruturação e
aprimoramento. Tudo isso, em movimento de tensão, ou seja, sem deixar a
invertida postura cultual-sacramental desassistida.
Um último comentário nessa questão cultural. Não concordamos com
aspectos da abordagem cullmanniana. Em algumas de suas ideias (e na falta de
outras), nos inclinamos mais para a concepção de N.T. Wright, quem também
articula sobre engajamento cultural correlacionado ao já e ainda não, mas desde
um entendimento de continuidade entre velha e nova criação (que inclusive faz
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mais justiça ao pensamento de Lutero)127. O citamos, como fechamento da seção:


Precisamos esclarecer dois pontos. Primeiro, Deus edifica o seu reino. Porém ele
ordenou o mundo de modo que sua obra fosse edificada pelos seres humanos,
criados para refletir a sua imagem. [...] Ele nos recrutou para agirmos como seus
mordomos no projeto da criação.[...] Segundo, temos que distinguir entre o reino
final e suas antecipações. A vinda final e conjunta do céu e da terra é, obviamente,
ato divino supremo de nova criação, para o qual o único protótipo verdadeiro –
além da primeira criação – é a ressurreição de Jesus. Somente Deus unirá todas as
coisas em Cristo, no céu e na terra. [...] O que podemos e devemos fazer no
presente, se somos obedientes ao evangelho, se estamos seguindo a Jesus, se somos
habitados, fortalecidos e dirigidos pelo Espírito, é trabalhar em prol do reino. Isso
nos leva mais uma vez a 1 Coríntios 15.58: a obra que fazemos no Senhor não é vã.
Não se trata de lubrificar as engrenagens de uma máquina que está prestes a cair
em um abismo; nem de restaurar uma obra de arte que em breve será lançada ao
fogo; nem de cultivar rosas em um jardim que em breve dará lugar a um prédio.
Por estranho que possa parecer, e tão difícil de acreditar quanto a ressurreição,
estamos realizando algo que se tornará, no devido tempo, parte do novo mundo de
Deus. Todo ato de amor, gratidão e bondade; toda obra de arte inspirada por Deus e
pela beleza de sua criação; cada minuto gasto ensinando uma criança com sérias
deficiências a ler ou a caminhar; cada gesto de cuidado, de atenção, de consolo de
apoio a um ser humano (e a criaturas não-humanas, é claro), cada oração, cada
ensinamento conduzido pelo Espírito, cada obra que divulga o evangelho, edifica a
igreja, abraça e incorpora a santidade, não a corrupção, e torna o nome de Jesus
honrado no mundo – tudo isso terá seu lugar, pelo poder da ressurreição de Deus,
na nova criação que ele um dia fará. Essa é a lógica da missão de Deus.128

127
WRIGHT, Surpreendidos pela graça, p.223.
128
WRIGHT, Surpreendidos pela graça, p.221-222.
219

5.3
A missão para um ainda não, no já e a missão do já, com um ainda
não.

Nesta última seção do capítulo estamos propondo uma formulação


temporal-missional que mais uma vez conjuga e justapõe a tensão escatológica já
e ainda não. De muitas maneiras, é uma reafirmação do que vimos ao longo desta
quinta divisão de nossa pesquisa. A missão cristã, com sua mensagem missional
carregada de informação cristocêntrica/pneumatológica, basileica/soteriológica,
pessoal/cósmica e monergista/sinergista, é, agora, ela mesma convidada a se
posicionar para um ainda não, no já. A mesma missão, com sua postura missional
afetada pela personalidade fiducial/kenótica, peregrina/encarnada,
expectante/militante e cultual/cultural, é, por fim, desafiada a se fazer sentir no já,
com um ainda não.
A primeira grande questão é manter a tensão que nos foi descortinada por
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Cullmann. Não ceder às tentações de cair na polarização. Afirmar os polos. As


realidades duais. Fazer teologia e vivenciar uma práxis missional que sabe
conviver com o drama paradoxal de se ser Igreja entre a ressurreição e a parusia,
alicerçada num evento do passado, vivendo simultaneamente nas realidades do
presente e do futuro do Reino de Deus.
Stott traduziu esta primeira problemática do equilíbrio elaborando
pensamentos sobre o que seriam cristãos apenas do já, qual seria o perfil de
cristãos apenas do ainda não, e por último, quais seriam as características dos
cristãos que entendem e vivem na tensão. Seu exercício imaginativo não toca em
todas as possibilidades, caricaturiza outras, e parece estar influenciado por uma
linguagem levemente fundamentalista, mas, se prova útil. Num estágio inicial, ele
articula sobre os ―cristãos do já‖:
Primeiro vêm os cristãos do "já". Estes são os otimistas radiantes. Enfatizam, com
razão, o que Deus já fez por nós através de Cristo e nos concedeu em Cristo. Mas a
impressão que eles nos dão é que, por isso mesmo, agora já não resta mais nenhum
mistério, nenhum pecado que não possa ser superado, nenhuma doença que não
possa ser sarada e nenhum mal que não possa ser erradicado da igreja ou até
mesmo do mundo. Em resumo: parecem acreditar que a perfeição já pode ser
alcançada aqui, agora. Eles me lembram aqueles crentes de Corinto a quem Paulo
escreveu: "Vocês já têm tudo o que precisam! Já são ricos! Vocês já se tornaram
reis, e nós, não!" Não há por que censurar os cristãos do "já". Afinal, sua
motivação é glorificar a Cristo. Assim, recusam-se a enxergar limites para aquilo
220

que ele pode fazer. Acham que não aspirar à perfeição agora é uma humilhação
para Jesus. Seu otimismo, porém, pode facilmente virar arrogância e acabar em
desilusão. Além de ignorar o "ainda não" do Novo Testamento, eles esquecem que
a perfeição aguarda a parusia.129

Em seguida, Stott menciona os ―cristãos do ainda não‖. Novamente, sua


análise é periférica em alguns pontos e se fixa em outros de seu interesse,
contudo, contribui:
Segundo, temos os cristãos do "ainda não". Estes fazem muito bem o estilo do
pessimista deprimido. Eles enfatizam, e com razão, o fato de que a obra de Cristo
ainda não se completou, e, também acertadamente, aguardam a parusia, quando
Cristo há de completar aquilo que ele começou. Mas a impressão que se tem é a de
que eles são extremamente negativos em suas atitudes. O que os preocupa é a
ignorância e o fracasso da humanidade, o domínio arrasador da doença e da morte e
a impossibilidade de se garantir a existência de uma igreja pura ou uma sociedade
perfeita. A qualquer afirmação de que Cristo pode estar agindo vitoriosamente em
alguma dessas áreas, eles reagem com um balde de água fria. Estes também têm
uma excelente motivação. Se o propósito dos cristãos do "já" é glorificar a Cristo, o
dos cristãos do "ainda não" é ser humildes pecadores. Estão firmemente
determinados a corresponder fielmente ao que a Escritura diz sobre a corrupção
humana. Mas o pessimismo deles pode facilmente virar complacência; aliás, pode
até mesmo levá-los a serem condescendentes com o status quo e a uma apatia
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diante do mal. Eles esquecem o "já" daquilo que Cristo fez através de sua morte,
ressurreição e dádiva do espírito, e também o que nós podemos fazer em nossas
vidas, e na igreja e sociedade, como resultado disso.130
E finalmente, Stott tenciona apresentar um comportamento mais condizente
com o cristão que assimila e aplica a tensão já e ainda não em sua vida. Aspectos
importantes ficam alheios, mas o profile sintetiza com propriedades algumas
características que julgamos genuínas:
Em terceiro lugar vêm os cristãos do "já-e-ainda-não". São os realistas bíblicos.
Eles tentam dar o mesmo peso às duas vindas de Jesus, àquilo que ele fez e ao que
ele irá fazer. Regozijam-se no primeiro e aguardam ansiosamente pelo último.
Querem ao mesmo tempo glorificar a Cristo e humilharem-se como pecadores. Por
um lado, eles têm grande confiança no "já", naquilo que Deus disse e realizou
através de Cristo, e um grande desejo de explorar e experimentar ao máximo as
riquezas da pessoa e obra de Cristo. Por outro lado, revelam uma humildade
genuína diante do "ainda não", humildade para confessar que ainda existe muita
ignorância e pecaminosidade, muita fragilidade física, infidelidade eclesiástica e
degeneração social — que, aliás, continuarão existindo, como sinais de um mundo
caído e "meio salvo", até que Cristo, em sua segunda vinda, venha aperfeiçoar
aquilo que começou na sua primeira vinda. É esta combinação entre o "já" e o
"ainda não", o reino inaugurado e o reino consumado, a confiança cristã e a
humildade cristã, que caracteriza o verdadeiro evangelicalismo [...] tão necessário
nos dias de hoje. As grandes proclamações acerca de Cristo sintetizam a nossa
posição como "cristãos contemporâneos": Cristo morreu! Cristo ressuscitou! Cristo
voltará! Sua morte e ressurreição fazem parte do "já" do passado, ao passo que sua
gloriosa parusia pertence ao "ainda não" do futuro. Seu triunfo supremo, no

129
STOTT, Ouça o Espírito, ouça o mundo, p.175.
130
STOTT, Ouça o Espírito, ouça o mundo, p.175.
221

entanto, é certo. Com efeito, "a esperança da vitória final", escreve Oscar
Cullmann, "torna-se ainda mais vívida diante da convicção firme e inabalável de
que a batalha que decide a vitória já se realizou."131
Como dissemos, Stott não menciona todos os aspectos possíveis em sua
personificação dos extremos. Mesmo o perfil traçado que deveria fazer justiça à
tensão escatológica está incompleto de conteúdos. Sua leitura da realidade, fruto
de pesquisa e labor pastoral, podem até soar simplistas em algumas passagens,
porém, mostra um pouco da realidade que está latente nas comunidades
missionais. Não são poucos os dados levantados por Stott que tipificam a
realidade paroquial do cristianismo. É plenamente possível identificar pontos de
contato com as diversas distorções que hoje percebemos nos cristãos, distorções e
exageros causados por má teologia, que por muito tempo alimentou o púlpito, o
cancioneiro, a piedade, a pastoral. Vimos em nosso repasso histórico um pouco da
teologia capenga que foi produzida ao longo da trajetória cristã. Só não havíamos
conferido o seu estrago. Stott tentou fazê-lo. Com ressalvas, acolhemos sua
manifestação.
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O professor Gibbs também trabalha o nosso argumento de uma missão que


mantém a tensão. Que é tanto para um ainda não, no já, como do já, com um
ainda não:
O Evangelho cristão olha em duas direções. A proclamação da obra de Jesus olha
para o passado em fé e para o futuro em esperança. Por que duas direções? Jesus
Cristo já veio. Ele já pagou o preço de nossa redenção, já alcançou a vitória, já
perdoou os nossos pecados. Não é isto o suficiente? Se temos fé, precisamos de
esperança? Sim, é suficiente, mas não é tudo. [...] É uma bendita verdade que a
obra passada e completa de Cristo é suficiente e que Ele providencia nosso sustento
através dos meios da graça. Mas você está ouvindo os gemidos de sofrimento?
Nossos ouvidos não devem jamais perder a capacidade de ouvir tais gemidos. Você
está ouvindo o gemido da criação? A fome continua sendo uma triste realidade
(lembramos especialmente alguns países na África) e pessoas estão realmente
morrendo de fome. Se vivêssemos em algumas partes da África, ouviríamos
melhor. E por todo o mundo – doença e enfermidade. Há algum tempo minha
família e eu tivemos de encarar esta situação – alguns tumores foram removidos do
abdômen de minha esposa. Por um bom tempo meu adjetivo preferido é este:
benigno. Mas algumas vezes, até freqüentemente, não há um final feliz. Mas isto
não deveria ser assim, visto que no princípio tudo era ―muito bom‖. Estamos
ouvindo os gemidos de sofrimento? No Oriente Médio, radicais continuam, apesar
de negociações de paz, a trazer a violência para minar o processo. O desemprego,
as drogas e a miséria estão bem perto de nós. O número de mortes de crianças não
nascidas, pelo aborto, é imenso e para muitas pessoas o maior dos mandamentos é
―Não tirarás meu direito de escolher‖. Vivemos num mundo que precisa de
esperança, em uma criação que é incapaz de manifestar a paz de Deus. Deus já fez
pelo mundo tudo o que Ele queria que acontecesse? Está seu nome sendo

131
STOTT, Ouça o Espírito, ouça o mundo, p.176.
222

plenamente santificado, seu reino está vindo completamente e sua vontade está
sendo feita através de toda a criação? Não, ainda não.132
Também entendemos que a interpretação de Gibbs pode ser recebida com
condicionantes, ainda assim, chamamos à atenção para sua tese de se validar a
tensão, e ser sensível (ouvir) aos seus gemidos e promessas. Particularmente
destaco sua consideração: ―Jesus Cristo já veio. Ele [...] já alcançou a vitória, já
perdoou os nossos pecados. Não é isto o suficiente? Se temos fé, precisamos de
esperança? Sim, é suficiente, mas não é tudo‖. Entendo esse ser o ponto
nevrálgico em Cullmann: a centralidade da obra de Cristo já foi suficiente, mas
como ainda não se concretizou em plenitude, a fé nesta obra não é tudo, lhe
acompanham a esperança, e, também o amor, lembrando 1 Coríntios 13. Piazza
chama a atenção para o fato de a esperança ser citada no texto paulino como fator
intermediário, medial na relação entre as três virtudes:
É uma esperança cristocêntrica e teocêntrica, cujo ponto focal não é, em primeiro
lugar, a felicidade de cada indivíduo, mas a universal glória de Deus, que será
―tudo em todos‖ (1 Cor 15,28). Ao mesmo tempo, sua importância fica ainda mais
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clara se for colocada – pois há uma necessária conjugação – entre a fé (pistis) e o


amor fraterno (agápe), que são traços fundamentais da vida cristã (cf 1Ts 1,3; 1Cor
13,13). Nenhuma dessas realidades é capaz de existir sem as outras. Não pode
haver esperança sem a fé em Cristo, porque só a fé nos une a Ele. A fé sem a
esperança seria vazia e inútil (cf 1Cor 15,14.17). E como a fé e a esperança,
também a caridade e a fé estão naturalmente unidas, pois o amor não é outra coisa
ou outro senão aquele que ―tudo espera‖ (1Cor 13,7).133

O insight de Piazza sobre a passagem supracitada de Coríntios tem muita


relação e se aplica ao nosso argumento em prol do equilíbrio entre o já e ainda
não.
Um segundo e derradeiro aspecto que elucubramos, além de se manter o
paradoxo escatológico em tensão no empreendimento missional, para evitar
cristãos com posturas extremistas e assimetrias de virtudes, é o de se legitimar e
enaltecer o ímpar de cada perspectiva à luz de seu paradoxo.
A missão é para um ainda não. Para um destino prometido que ainda não
possuímos, que ainda não controlamos, que não pode ser nem instrumentalizado
em promoções falsas de um lócus de felicidade e prosperidade plena nesta vida,
nem diluído numa utopia secularizada. ―Eis que venho sem demora‖.134
Evangelizamos para um ainda não original. É uma ―tarefa [que] diz respeito ao

132
GIBBS, Regaining Biblical Hope, p.311-312.
133
PIAZZA, A esperança, p.90-91.
134
Apocalipse 3,11.
223

futuro que imaginamos e como pensamos em relação a ele‖.135 Na verdade, esse


futuro nem cabe em nossa imaginação. A missão divulga, convida, integra,
prepara e ensaia para um futuro, a rigor, inimaginável, incomparável. Acessado
apenas nas promessas, que nem mesmo o definem exatamente, que apenas o
mostram em metáforas, em parábolas, em determinadas ideias, e a partir, de seus
sinais velados. Diferente da esperança humana comum, a esperança cristã
transcende a um horizonte maior. ―Nem olhos viram...‖.136 Não se encerra onde a
esperança humana termina. Parece ser a mesma coisa, mas não... vai além.
E a missão de proclamar esta esperança para um ainda não é no já. Tempo
presente, tempo oportuno, kairológico. ―Hoje é o dia da salvação‖.137 Qualquer
missão que nos leva para um ainda não e nos deixa lá, que nos faz sonhar com
outro mundo, sem preocupar-se com este, que não está interessada em nossa
realidade, não pode ser chamada de esperança cristã. A missão no já não nega a
realidade do além, mas entende que o além não foge do aquém. Não foge do
drama da abscondidade divina e não nega a potência do mal extra e intra nos.
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―Miserável homem que sou‖.138 A missão neste já tempo-presente é permeada de


incertezas, dramas, fraquezas, paradoxos. Reconhece a realidade do mundo e do
ser humano caído e por isso não é anestésica, nem alienante, mas atua de forma
profética e sofre junto. Nesse já ―não vivemos essa novidade plenamente. Aliás,
só a experimentamos como promessa e cruz‖.139 O ainda não nesse já é oculto.
Não se consumou ainda na criação, nem nas criaturas. Nem mesmo nas que já são
―novas‖. ―Eu creio Senhor, mas me ajuda na minha falta de fé‖.140
A missão é também a do já. O já agora tem um genitivo, que é tanto de
origem como de qualidade. A missão do já tem uma nascente, um ponto central,
uma mensagem específica, uma promessa cumprida, uma salvação e um Reino
concretos. É a possibilidade de se anunciar realizações libertadoras reais e fieis,
como a de Cristo no Calvário-Gólgota, que oferece perdão, vida eterna, salvação e
a possibilidade de se participar no projeto mais revolucionário da história. ―Eu
vim para que tenham vida, e a tenham em abundância‖.141 Mas não se finaliza aí.

135
ZWETSCH, Missão como com-paixão, p.374.
136
1 Coríntios 2,9.
137
2 Coríntios 6,2
138
Romanos 7,24.
139
ZWETSCH, Missão como com-paixão, p.374.
140
Marcos 9,24.
141
João 10,10.
224

A missão do já de Cristo atinge de tal forma a humanidade, e se materializa tão


poderosamente pelo Espírito em seus seguidores, que a presença e a obra de desse
Cristo se atualizam, se fazem sentir, e se permitem multiplicar em mini epifanias e
pequenos cristos humanos que povoam a realidade e o cenário atual, não de forma
perfeita, mas ainda assim, santa e bela. ―A missão do já de Cristo se estende e se
deixar pertencer ao já do seu povo, da sua gente, tocada por sua obra e estimulada
a seguir seus passos e viver a partir do e com o Evangelho. ―Aquele que crê em
mim fará também as obras que tenho realizado. Fará coisas ainda maiores do que
estas‖.142 ―O futuro já está presente, ainda que apenas em germe, pois a fé já nos
foi dada e já vivemos em meio aos sinais do novo que Cristo nos ofertou‖.143
E a missão do já, é com um ainda não. O ainda não é sempre carregado,
conduzido para a missão, nunca sonegado nem aguado. Essa missão com um
ainda não nunca faz uso do porvir como ferramenta de medo ou de entorpecência.
Nem como dispositivo de conquista. No entanto, esse com um ainda não significa
que ele é permanentemente articulado. Reavivado. E proposto. Ao lado de órfãos
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e idosos abandonados. Ao lado de leitos de hospitais e lápides de cemitério. Para


os pobres, os injustiçados, os desesperados. Para as vítimas! Isso que se tem, isso
que se vê, não é tudo. Há um ainda não. A missão com um ainda não é sempre
levada a cabo com o componente de consolo, de graça, de cuidado, de cura e de
renovação. ―Vinde benditos de meu Pai, vinde compartilhar da celebração‖144, da
―festa das bodas do cordeiro com sua noiva‖145, onde não haverá mais morte, nem
dor, nem câncer, nem Alzheimer, nem balas perdidas, nem crianças abandonadas,
nem nada que cause chorar. A não ser lágrimas de emoção. A missão com um
ainda não avisa: existem reservas escatológicas. Mas o com um ainda não
também aventa a possibilidade de se antecipar o final atuando como sinalizadores,
como sacramentos vivos. A culminância não nos comissiona apenas a aguardar,
mas a contribuir, ajudando a edificar,
trabalhando com imagens de esperança que mobilizem as pessoas, que as façam
desinstalar-se, caminhar, lutar, resistir, sonhar com novas possibilidades de vida,
com uma nova sociedade, ainda quando parecemos estar aquém desses sonhos ou
diante das surpresas que a história nos reserva e que não conseguimos entender
bem.146

142
João 14,12.
143
ZWETSCH, Missão como com-paixão, p.374.
144
Mateus 25,34.
145
Apocalipse 19.
146
ZWETSCH, Missão como com-paixão, p.374.
225

5.4.
Síntese Conclusiva

Dessa forma concluímos o capítulo cinco. Ele foi dedicado a explorar as


implicações e possibilidades que a tensão já e ainda não sugere à missão da
Igreja. Nos concentramos especialmente em Oscar Cullmann, mas também demos
ouvidos às contribuições de outros teólogos que dialogam com ele neste ensejo.
Foram encontradas algumas opções sobressalentes, que em cada seção eram
posicionadas de forma justapostas, seguindo o estímulo que o paradoxo
escatológico orienta. Estas opções, certamente, não esgotam as viabilidades.
Especialmente enfocamos a aplicação da tensão na mensagem e na postura
missional, e cremos que encontramos subsídios significativos em conceitos caros
tanto para a escatologia como a missiologia.
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6.
Conclusão

Começamos este trabalho com entusiasmo, expectações e muitas perguntas.


O processo de pesquisa e redação não se deu em cor e tom abstratos, sem crises
teológico-pastorais, sem dramas e dúvidas. Pelo contrário. Nem sempre as
respostas foram encontradas na superfície, nem sempre as conexões facilitadas,
nem sempre o paradoxo se permitiu decifrar e controlar. A paixão nos carregou. O
Reino de Deus, que irrompeu de forma definitiva na pessoa e na obra de Jesus e
vem a nós num caráter temporal multi-perpectívico, manteve em nós acesa a
chama de se avançar nesta aventura. Por vezes, as consolações de um já ocorrido
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abençoaram e iluminaram de graça nosso descanso, nossas fraquezas, nossas


limitações. Por vezes, o horizonte sensível e premente de um ainda não fortaleceu
nosso espírito para seguir escrevendo, seguir trabalhando, seguir sonhando.
Algumas de nossas suspeitas se provaram possíveis e prolíferas. Algumas de
nossas perguntas foram acolhidas e devolvidas na investigação com alternativas
altamente encorajadoras. Outras, encontraram apenas um silêncio, que pode ser
frustrante, mas pode ser também saudável, porque legitima a busca e convida a
seguir perseguindo. Estamos concluindo este trabalho com um vigoroso e
satisfeito JÁ, com letras garrafais, para denotar nosso sentimento de realização, de
dever cumprido, de crescimento e aprendizado. Estamos também finalizando o
projeto com um AINDA NÃO robusto, com um ponto e vírgula, que deixa em
aberto algumas conclusões, que solicita maiores esclarecimentos e que também
aponta para novas perguntas que surgiram no decorrer das leituras e das reflexões.
Mas importa-nos nesta conclusão também revelar aspectos objetivos.
Vamos a eles. Saímos em busca de um teólogo, Oscar Cullmann. Quem fora esse
teuto-francês, professor da Basileia, com quem compartilhamos a mesma tradição
cristã? O que fez? Que legado deixou? Cremos que conseguimos conhecê-lo
melhor ao longo deste trabalho. Todos os capítulos contaram com seu aporte.
Especialmente no terceiro e no quarto, pudemos comprovar a fama que lhe
227

concedem, muitos que o conhecem: um dos gigantes da teologia do século XX!


Especialista em Novo Testamento, historiador, litúrgico, exegeta, ecumênico,
profícuo, perspicaz. Cada uma dessas qualidades mereceria ser desenvolvida, e
quem sabe nossa humilde difusão do seu trabalho possa motivar a que mais
pesquisadores se lancem na tarefa de explorar estas e outras facetas do teólogo
luterano. Destaco sua produção escrita impressionante, a qual só tocamos de leve,
seu apreço pela teologia bíblica e valorização do texto Revelado, seu
reconhecimento da história e seu espírito cooperativo de se fazer teologia e viver a
fé. Além, claro, de seu insight já e ainda não escatológico.
Esse foi o nosso maior interesse. Fascínio gerado desde nossos mais
primevos encontros com a escatologia, e nutrido pelas interações com os
professores e a literatura da graduação e da pós-graduação. Também avaliamos
como consideravelmente relevante as descobertas desta dissertação no que diz
respeito ao paradoxo temporal. Longe da pretensão de dissecar o conceito ou
esgotar suas alternativas, consideramos alguns resultados merecedores do
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compartilhamento. Chamamos à atenção para alguns aspectos:


Em primeiro lugar, a tensão já e ainda não se mostrou genuinamente
escriturística. Tanto a revelação vétero como a neotestamentária endossam a
articulação. No Antigo Testamento conhecemos um Deus agindo na história,
valorizando as noções de tempo passado, presente e futuro e sinalizando por meio
de tipos e amostras as dádivas maiores que estavam sendo preparadas. No Novo
Testamento, o aspecto velado é removido. No ensino, nas ações e, especialmente
na ressurreição, Cristo prova que o eschaton já começou, ainda que não o
tenhamos em culminância.
Em segundo lugar, a tensão se demonstrou histórica. Ao longo da
caminhada do povo de Deus e da reflexão teológica que decorreu das narrativas e
eventos, a esperança em tensão se manteve viva. É bem verdade que sofreu
polarizações violentas. Quase se perdeu em meio a extremismos pró-futurísticos
ou contra-porvir. Mas, como um remanente fiel, a tensão sempre permaneceu, de
alguma forma, preservada. Sempre voltou à tona, pelo menos. A expectativa dos
primeiros cristãos nos parece mais concorde com um já e ainda não como
anunciado e demonstrado por Cristo. A influência greco-romana na abordagem da
parusia provocou estragos. Os Novíssimos não fizeram justiça ao Reino que está
aí, e a escatologia secularizada moderna deu às costas para o que vem por aí.
228

Hoje, ainda vivemos tempos de efervescência, mas não podemos nos dar ao luxo
de parar de nos deixar envolver com as perguntas do nosso tempo. E elas são
inquietantes. Há uma espécie de ressaca na cultura. Como não cair em discursos
reducionistas, mas seguir esperando e anunciando esperança para o aquém e para
o além é um permanente desafio à nossa frente.
Em terceiro lugar, o já e ainda não se comprovou polivalente. Vimos como
ele foi enunciado, de certa forma, antes de Cullmann, e principalmente depois
dele. Cremos que ficou suficientemente comprovada a tese de que esse axioma
não é um clássico na teologia nos dias de hoje, porque soa bem ou é simpático.
Antes, são as tantas e tão pesadas validações na teologia que apontam o indício de
que o caminho de se expressar a esperança cristã e enxergar o Reino de Deus
passa pela afirmação e desenvolvimento desta tensão.
E por último, para nossa maior grato regozijo, esse já e ainda não basileico,
como interpretado na teologia de Cullmann, se apresenta como originalmente
missional. Nossa chave de leitura foi posta para exercitar sua capacidade de
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interação com a missão de Deus/da Igreja, e não decepcionou. Suas implicações


foram evidenciadas. Possibilidades caras à teologia e necessárias para o campo
missional aforaram à medida que a tensão escatológica gerava novas tensões, que
qualificavam substancialmente o querigma e a atitude da Igreja que vai ao mundo
testemunhar o amor de Deus, revelado em Cristo Jesus.
Resulta para nós a viabilidade e a fertilidade deste já e ainda não.
Pretendemos continuar fazendo abundante uso dessa índole escatológica, tanto na
paróquia, como na academia, provando seus limites, esmiuçando seus recursos.
Resulta para nós o consolo e o desafio pessoal que este já e ainda não nos
concede e impõe. Não temos a ilusão de geri-lo, nem mesmo entendê-lo. Quando
pensamos em termos de jḠo ainda não nos surpreende... e alenta. Aleluia!
Quando sonhamos com o ainda não, o já nos constrange... e compromete. Senhor,
tem misericórdia! E caminhando na tensão, oramos, venha o Teu reino!
Ele virá...
Ele já veio!
7.
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