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TABLE OF CONTENTS

Capítulo I. Introduçã o
Seçã o I. Doutrinas bá sicas
Capítulo II. Exposiçã o da doutrina
Capítulo III. Deus tem um plano
Capítulo IV. A soberania de Deus
Capítulo V. A providência de Deus
Capítulo VI. A presciência de Deus
Capítulo VII. Esboço de sistemas
Capítulo VIII. As Escrituras sã o a autoridade final pela qual os
sistemas hã o de ser julgados
Capítulo IX. Advertência contra a especulaçã o indébita
Seçã o II. Os cinco pontos do calvinismo
Capítulo X. Incapacidade total
Capítulo XI. Eleiçã o incondicional
Capítulo XII. Expiaçã o limitada
Capítulo XIII. A graça eficaz
Capítulo XIV. A perseverança dos salvos
Seçã o III. Objeçõ es que comumente surgem contra a doutrina bíblica
da predestinaçã
Capítulo XV. Que a doutrina da predestinaçã o equivale a fatalismo
Capítulo XVI. Que a doutrina da predestinaçã o é inconsistente com o
livre-arbítrio e a responsabilidade moral do home
Capítulo XVII. Que a doutrina da predestinaçã o faz Deus o autor do
pecado
Capítulo XVIII. Que a doutrina da predestinaçã o apaga todos os
motivos para o esforço humano
Capítulo XIX. Que a doutrina da predestinaçã o apresenta deus como
alguém que faz acepçã o de pessoa
Capítulo XX. Que a doutrina da predestinaçã o é desfavorá vel à boa
moralidade
Capítulo XXI. Que a doutrina da predestinaçã o impossibilita a oferta
sincera do evangelho aos nã o eleito
Capítulo XXII. Que a doutrina da predestinaçã o contradiz as
passagens universalistas das Escrituras
Seçã o IV. Confrontos
Capítulo XXIII. Salvaçã o pela graça
Capítulo XXIV: A certeza pessoal de que alguém se encontra entre os
eleitos
Capítulo XXV. A predestinaçã o no mundo físico
Capítulo XXVI. Uma comparaçã o da doutrina cristã com a doutrina
islâ mica da predestinaçã
Seçã o V. A predestinaçã o e a vida cristã
Capítulo XXVII. A importâ ncia prá tica da doutrina
Seçã o VI. A influência do calvinismo
Capítulo XXVIII. Calvinismo na histó ria
A DOUTRINA REFORMADA DA PREDESTINAÇÃO
 
Loraine Boettner
 
Tradução
 
Valter Graciano Martins

Copyright @ 2020, de Editora Monergismo


Publicado originalmente em inglês sob o título
The Reformed Doctrine of Predestination
 
 

 
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por
Editora Monergismo
SCRN 712/713, Bloco B, Loja 28 — Ed. Francisco Morato Brasília, DF, Brasil — CEP 70.760-
620
www.editoramonergismo.com.br
 
 

 
1ª ediçã o, 2020
 
Traduçã o: Valter Graciano Martins
Revisã o: Felipe Sabino de Araú jo Neto
CAPÍTULO I. INTRODUÇÃO

SEÇÃO I. DOUTRINAS BÁSICAS


CAPÍTULO II. EXPOSIÇÃ O DA DOUTRINA
CAPÍTULO III. DEUS TEM UM PLANO
CAPÍTULO IV. A SOBERANIA DE DEUS
CAPÍTULO V. A PROVIDÊ NCIA DE DEUS
CAPÍTULO VI. A PRESCIÊ NCIA DE DEUS
CAPÍTULO VII. ESBOÇO DE SISTEMAS
CAPÍTULO VIII. AS ESCRITURAS SÃ O A AUTORIDADE FINAL PELA QUAL OS SISTEMAS HÃ O DE SER
JULGADOS
CAPÍTULO IX. ADVERTÊ NCIA CONTRA A ESPECULAÇÃ O INDÉ BITA
SEÇÃO II. OS CINCO PONTOS DO CALVINISMO
CAPÍTULO X. INCAPACIDADE TOTAL
CAPÍTULO XI. ELEIÇÃ O INCONDICIONAL
CAPÍTULO XII. EXPIAÇÃ O LIMITADA
CAPÍTULO XIII. A GRAÇA EFICAZ
CAPÍTULO XIV. A PERSEVERANÇA DOS SALVOS
SEÇÃO III. OBJEÇÕES QUE COMUMENTE SURGEM CONTRA A DOUTRINA BÍBLICA DA
PREDESTINAÇÃO
CAPÍTULO XV. QUE A DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃ O EQUIVALE A FATALISMO
CAPÍTULO XVI. QUE A DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃ O É INCONSISTENTE COM O LIVRE-ARBÍTRIO E A
RESPONSABILIDADE MORAL DO HOMEM

CAPÍTULO XVII. QUE A DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃ O FAZ DEUS O AUTOR DO PECADO


CAPÍTULO XVIII. QUE A DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃ O APAGA TODOS OS MOTIVOS PARA O ESFORÇO
HUMANO

CAPÍTULO XIX. QUE A DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃ O APRESENTA DEUS COMO ALGUÉ M QUE FAZ
ACEPÇÃ O DE PESSOAS
CAPÍTULO XX. QUE A DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃ O É DESFAVORÁ VEL À BOA MORALIDADE
CAPÍTULO XXI. QUE A DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃ O IMPOSSIBILITA A OFERTA SINCERA DO
EVANGELHO AOS NÃ O ELEITOS

CAPÍTULO XXII. QUE A DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃ O CONTRADIZ AS PASSAGENS UNIVERSALISTAS


DAS ESCRITURAS

SEÇÃO IV. CONFRONTOS


CAPÍTULO XXIII. SALVAÇÃ O PELA GRAÇA
CAPÍTULO XXIV: A CERTEZA PESSOAL DE QUE ALGUÉ M SE ENCONTRA ENTRE OS ELEITOS
CAPÍTULO XXV. A PREDESTINAÇÃ O NO MUNDO FÍSICO
CAPÍTULO XXVI. UMA COMPARAÇÃ O DA DOUTRINA CRISTÃ COM A DOUTRINA ISLÂ MICA DA

PREDESTINAÇÃ O

SEÇÃO V. A PREDESTINAÇÃO E A VIDA CRISTÃ


CAPÍTULO XXVII. A IMPORTÂ NCIA PRÁ TICA DA DOUTRINA
SEÇÃO VI. A INFLUÊNCIA DO CALVINISMO
CAPÍTULO XXVIII. CALVINISMO NA HISTÓ RIA

 
CAPÍTULO I. INTRODUÇÃO
 
O propó sito deste livro nã o é o de apresentar um novo sistema de
pensamento teoló gico, e sim o de reafirmar esse grande tema
conhecido como fé reformada ou calvinismo, e para mostrar que
este sistema é, além de toda dú vida, o ensino da Bíblia e da razã o.
A doutrina da predestinaçã o recebe, comparativamente, pouca
atençã o em nossos dias e é imperfeitamente compreendida mesmo
pelos que certamente a apoiam com grande lealdade. Nã o obstante,
ela é uma doutrina que se encontra incorporada nos credos da
maior parte das igrejas evangélicas e que exerce uma notá vel
influência na igreja e no Estado. Os padrõ es oficiais dos diversos
ramos das igrejas presbiterianas e reformadas da Europa e dos
Estados Unidos da América sã o meticulosamente calvinistas. As
igrejas batistas e congregacionais, muito embora nã o possuam
credos formais, em geral têm sido calvinistas, se nos é permitido
julgar pelos escritos e ensinos de seus teó logos representativos. A
grande Igreja Livre da Holanda e quase todas as igrejas da Escó cia
sã o calvinistas. A Igreja Estabelecida da Inglaterra e sua filha, a
Igreja Episcopal da América, possuem um credo em seus Trinta e
Nove Artigos. Os metodistas de Whitefield, em Gales, até hoje levam
o título de “metodistas calvinistas”.
Entre os defensores desta doutrina, no passado e na atualidade, é
possível encontrar alguns dos homens mais proeminentes e mais
sá bios do mundo. Nã o foi unicamente Calvino que a ensinou, mas
também Lutero, Zuínglio, Melancthon (muito embora mais tarde
este tenha aderido à posiçã o semipelagiana), Bullinger, Bucer, e
todos os líderes mais influentes da Reforma. Muito embora
houvesse diferenças em alguns outros pontos, todos concordaram
com esta doutrina e a ensinaram com muita ênfase. A obra
primordial de Lutero, The Bondage of the Will [A escravidã o da
vontade], mostra que ele investigou a doutrina com o mesmo fervor
de Calvino. Ele a asseverou com mais veemência e chegou a
extremos muito mais radicais em sua defesa do que Calvino. A Igreja
Luterana atual, ajuizando-se pela Fó rmula de Concó rdia, mantém a
doutrina da predestinaçã o de uma maneira modificada. Os puritanos
da Inglaterra e os que primeiramente se estabeleceram na América
do Norte, bem como os “convenanters” (defensores do pacto escocês
da reforma religiosa) na Escó cia e os huguenotes franceses eram
calvinistas consumados; e é lamentá vel que os historiadores em
geral tenham passado por alto este fato tã o significativo. Por algum
tempo, esta fé foi sustentada pela Igreja Cató lica Romana, e esta
igreja nunca a repudiou abertamente. A doutrina da predestinaçã o
ensinada por Agostinho suscitou contra ele todos os elementos
apá ticos na igreja, e o dispô s contra todo homem que menosprezava
a soberania de Deus. Ele prevaleceu contra eles, e a doutrina da
predestinaçã o passou a fazer parte do credo da igreja universal. A
grande maioria dos credos da cristandade histó rica promulgou as
doutrinas da eleiçã o, da predestinaçã o e da perseverança final dos
crentes, como o poderá ver todo aquele que fizer um estudo, mesmo
que superficial, desta matéria. Em contrapartida, o arminianismo
existiu por séculos apenas como uma heresia à margem da
verdadeira religiã o, e nã o foi endossado por uma igreja cristã
organizada, e de fato nã o chegou a ser incorporado no sistema
doutrinal da Igreja Metodista da Inglaterra até o ano de 1784. Os
grandes teó logos da histó ria, Agostinho, Wycliffe, Lutero, Calvino,
Zuínglio, Zanchi, Owen, Whitefield, Toplady, e mais recentemente
Charles, Dabney, Cunningham, Smith, Shedd, Warfield e Kuyper
sustentaram esta doutrina e a ensinaram com vigor. Que esses
homens foram as tochas e ornamentos do mais elevado tipo de
cristianismo será admitido praticamente por todos os protestantes.
Além do mais, as suas obras sobre este grande tema jamais foram
refutadas. Portanto, quando nos detemos a considerar que entre as
religiõ es nã o cristã s, o islamismo tem milhõ es de adeptos que creem
em algum tipo de predestinaçã o; que a doutrina do fatalismo tem
sido sustentada de uma ou de outra forma em vá rios países pagã os;
e que as filosofias mecanicistas e deterministas têm exercido grande
influência na Inglaterra, Alemanha e nos Estados Unidos da América,
vemos que esta doutrina no mínimo merece um cuidadoso estudo.
Desde os dias da Reforma, até cem anos atrá s, estas doutrinas foram
expostas com audá cia pela grande maioria dos ministros e mestres
nas igrejas protestantes; hoje, porém, nos deparamos com uma
maioria ainda maior que sustenta e ensina outros sistemas. É coisa
rara encontrar hoje pessoas que podem ser chamadas “calvinistas
sem reserva”. De maneira mui apropriada poderíamos aplicar à s
nossas igrejas as palavras que Toplady pronunciou com respeito à
igreja da Inglaterra: “Houve um tempo em que as doutrinas
calvinistas eram consideradas e defendidas como a vanguarda de
nossa igreja estabelecida, por seus bispos e clero, pelas
universidades e por todo o corpo laico. Durante o reinado de
Eduardo VI, o da Rainha Elizabeth I, o de Tiago I, e durante a maior
parte do reinado de Carlos I, era tã o difícil encontrar um clérigo que
nã o pregasse as doutrinas da Igreja da Inglaterra, bem como tã o
difícil é encontrar hoje alguém que o faça. Os princípios da Reforma
têm sido abandonados de maneira geral, e desde entã o Icabode , ou
‘a gló ria se foi’, tem sido escrito na maioria de nossos pú lpitos e nas
portas de nossas igrejas”. [1]
Em nosso tempo de conhecimentos mais profundos, a tendência é a
de considerar o calvinismo como um credo ultrapassado e já
obsoleto. No início de sua esplêndida série de artigos sobre “A fé
reformada no mundo moderno”, o Professor F. E. Hamilton afirma:
“Parece que um grande nú mero de pessoas na Igreja Presbiteriana
atual já deu por garantido que o calvinismo se resume em artigos
religiosos. De fato, a média da membresia da igreja, tanto quanto o
ministro do evangelho, tendem a olhar para os que se declaram
crentes na predestinaçã o com divertida tolerâ ncia. A esses parece
incrível que exista (numa era tã o eminente como a de hoje) uma
curiosidade intelectual como a de um verdadeiro calvinista. No
entanto, nunca lhes ocorre examinar seriamente os argumentos que
o calvinismo apresenta. Consideram-no tã o fora de moda como a
Inquisiçã o, ou como a ideia de um mundo criado, e o classificam
como uma daquelas ideias fantá sticas que os homens defendiam
antes da era científica moderna”. É por esta atitude para com o
calvinismo em nossos dias, e pela falta geral de informaçã o a
respeito destas doutrinas, que consideramos de suma importâ ncia o
tema deste livro.
Foi Calvino que elaborou este sistema teoló gico com clareza e com
ênfase tal que desde entã o ele tem portado o seu nome.
Naturalmente, nã o foi ele que lhe deu origem, mas simplesmente
expô s o que lhe pareceu brilhar com clareza nas pá ginas das
Sagradas Escrituras. Agostinho ensinou os pontos essenciais do
sistema mil anos antes que Calvino nascesse, e todos os líderes do
movimento reformador também o ensinaram. Mas foi dada a
Calvino, em razã o de seu profundo conhecimento das Escrituras e
seu agudo intelecto e gênio sistematizador, a fama de expoente e
defensor destas verdades de maneira mais clara e há bil do que se
havia feito até entã o.
A este sistema de doutrina chamamos “calvinismo”, e aceitamos o
termo “calvinista” como nosso distintivo de honra; todavia,
reconhecemos que os títulos sã o meras conveniências. No dizer de
Warburton, “poderíamos, com toda propriedade e com igual razã o,
denominar o sistema de gravitaçã o de ‘newtonismo’, porque foi o
grande filó sofo Newton que pela primeira vez demonstrou os
princípios da gravidade. Os homens já haviam se inteirado dos fatos
da gravidade muito tempo antes do nascimento de Newton; aliá s,
estes fatos foram visíveis desde os primeiros dias da criaçã o, já que
esta foi uma das leis que Deus estabeleceu para o governo do
universo. Mas os princípios da gravidade nã o foram plenamente
conhecidos e nem foram entendidos os vastos efeitos de seu poder e
influência até que fossem descobertos por Isaac Newton. Sucedeu o
mesmo com o que os homens chamam calvinismo. Seus princípios
inerentes existiram por longas eras antes de Calvino nascer; aliá s,
foram fatores visíveis e patentes na histó ria do mundo desde a
criaçã o do homem. Mas, uma vez que Calvino foi quem pela primeira
vez formulou tais princípios num sistema mais ou menos completo,
esse sistema ou credo, e igualmente esses princípios incorporados
nele, passaram a ser conhecidos por seu nome”. [2]
Além disso, podemos acrescentar que os títulos calvinista, luterano,
puritano, peregrino, metodista, batista, e inclusive o título cristã o,
originalmente eram apelidos; mas, pelo uso, ficou estabelecida sua
validade e seu significado é agora entendido.
A qualidade que deu tal força ao ensino de Calvino foi sua tenaz
adesã o à Bíblia como livro inspirado e autoritativo. Em sua época,
ele foi reconhecido como o teó logo bíblico por excelência. Aonde a
Bíblia guiasse, era para lá que ele ia; onde ela nã o lançasse luz, aí ele
se detinha. A recusa de ir além do que está escrito, unida a uma
espontâ nea aceitaçã o do que a Bíblia ensina, deram aos seus ensinos
um ar de finalidade e tal positividade que se fizeram ofensivas aos
seus críticos. Por seu perspicaz discernimento intelectual e seu
poder de desenvolvimento ló gico, ele chegou a ser considerado
muitas vezes meramente como um teó logo especulativo. Que ele
possuía um gênio especulativo de primeira ordem é inegá vel; e na
persuasã o de sua aná lise ló gica ele possuía uma arma que o tornava
terrível aos olhos de seus inimigos. Mas nã o foi destes dons que
primariamente ele dependeu quando formava e desenvolvia o seu
sistema teoló gico.
O seu ativo e poderoso intelecto o impeliu a perscrutar as
profundezas de todo tema que lhe vinha à mã o. Em suas
investigaçõ es acerca de Deus e do plano da redençã o, ele foi muito
longe, penetrando os mistérios sobre os quais o homem raramente
sequer sonha. Ele trouxe à luz um aspecto da Escritura que até entã o
permanecera na obscuridade, e enfatizou aquelas profundas
verdades que nos séculos que precederam à Reforma escaparam
comparativamente ao escrutínio da igreja. Ele trouxe à luz doutrinas
do apó stolo Paulo que foram esquecidas; e, dando-lhes seus
significados plenos e completos, atou-as a um grande ramo da igreja
cristã .
A doutrina da predestinaçã o tem sido falsificada e caricaturada mais
que qualquer outra; além disso, é prová vel que seja a que mais
gerou oposiçã o. “O só mencioná -la”, diz Warburton, “é como agitar a
proverbial capa vermelha diante dos olhos de um touro
embravecido. Ela desperta as paixõ es mais ferozes da natureza
humana, e produz uma torrente de abusos e calú nias. Mas, porque
os homens a têm combatido, ou porque a odeiam, ou talvez porque
nã o a entendem, isso nã o é causa plausível nem ló gica para que a
lancem para longe de si. A pergunta real, a pergunta que abrange
tudo, nã o deve ser: ‘Como os homens a recebem?’. E sim: ‘Ela é
real?’”. [3]
Uma razã o por que muitas pessoas, mesmo aquelas que se supõ em
possuir certa preparaçã o acadêmica, recusam tã o prontamente a
doutrina da predestinaçã o, é simplesmente sua ignorâ ncia quanto
ao que a doutrina é em si e o que a Bíblia ensina sobre ela mesma.
Que existe tal ignorâ ncia nã o deveria causar-nos surpresa, quando
se considera a imensa falta de preparaçã o bíblica em nossos dias.
Um estudo cuidadoso das Escrituras convenceria a muitos de que a
Bíblia é um livro muito diferente do que se poderia supor. A
profunda influência que esta doutrina tem exercido na histó ria da
Europa e da América do Norte deveria ao menos permitir-lhe o
direito de ser ouvida com atençã o. Além do mais, afirmamos que,
conforme as leis da razã o e da ló gica, uma pessoa nã o tem o direito
de negar a veracidade de uma doutrina sem antes haver estudado,
de forma imparcial, a evidência em prol e contra . Esta doutrina toca
algumas das mais profundas verdades reveladas nas Escrituras, e
um estudo minucioso dela seria amplamente compensador por
parte do povo cristã o. Se alguns se dispõ em a rejeitá -la sem antes
fazer um cuidadoso estudo de suas alegaçõ es, nã o se esqueçam que
esta doutrina tem cativado a só lida convicçã o de muitos dos homens
mais sá bios e piedosos que tem havido; e, portanto, deve haver
poderosas razõ es em favor de sua veracidade.
Talvez se deva assinalar aqui que, a despeito de a doutrina da
predestinaçã o ser uma grandiosa e bendita verdade bíblica e uma
doutrina fundamental de vá rias igrejas, jamais deve ser considerada
como se fosse a doutrina reformada em sua totalidade. No dizer do
Dr. Kuyper: “Constitui-se um equívoco pretender falar da doutrina
da predestinaçã o, ou mesmo da autoridade das Escrituras, como
sendo o cará ter específico do calvinismo. Para este, todas estas
doutrinas sã o consequências ló gicas, nã o o ponto de partida — a
expansã o evidenciando a profusã o de seu crescimento, porém nã o a
raiz da qual ela brotou”. Se a doutrina for separada de sua
associaçã o natural com outras verdades e for apresentada
isoladamente, o efeito é exagerado. Entã o, o sistema é distorcido e
mal representado. A formulaçã o de qualquer princípio, para que seja
verdadeiro, deve ser apresentado em harmonia com todos os
demais elementos do sistema do qual forma parte. A Confissão de fé
de Westminster é uma afirmaçã o equilibrada do sistema reformado
em sua totalidade e dá a devida importâ ncia à s demais doutrinas,
tais como a Trindade, a Deidade de Cristo, a personalidade do
Espírito Santo, a inspiraçã o das Escrituras, os milagres, a expiaçã o, a
ressurreiçã o, a volta pessoal de Cristo, entre tantas outras. Além do
mais, nã o negamos que os arminianos apoiam muitas verdades
importantes, mas sustentamos que uma exposiçã o plena e completa
do sistema cristã o só encontra plena expressã o no sistema
calvinista.
Na mente de muitas pessoas, a doutrina da predestinaçã o e o
calvinismo sã o termos praticamente sinô nimos. Nã o obstante, isto
nã o deveria ser assim; e identificar estes dois termos de um modo
tã o estreito tem levado muitos a se posicionarem contra o sistema
calvinista. Como já se viu previamente, constitui também um erro
identificar tã o estreitamente com o calvinismo os “cinco pontos”.
Muito embora a predestinaçã o e os “cinco pontos” sejam elementos
essenciais do calvinismo, de modo algum constituem sua totalidade.
A doutrina da predestinaçã o tem sido tema de discussã o quase
interminá vel, muitas das quais, deve-se admitir, tinham o propó sito
de amenizar seus traços distintivos ou de modificá -los. Diz
Cunningham:
Um sério exame desta grande doutrina nos conduzirá aos mais
profundos e inacessíveis temas que porventura ocupem a
mente dos homens — a natureza e os atributos, os propó sitos
e as operaçõ es do infinito e incompreensível Jeová —, vistos
especialmente em suas relaçõ es com o destino eterno de suas
criaturas inteligentes. A natureza peculiar do tema certamente
demanda, e com razã o, que sempre nos aproximemos dele e o
consideremos com a mais profunda humildade, prudência e
reverência, já que isto se trata, de um lado, de um tema tã o
terrível e constrangedor, como o da eterna miséria de uma
incalculá vel multidã o de nossos semelhantes. Muitos têm
discutido o tema neste espírito, mas há igualmente outros que
têm se dado a especulaçã o presunçosa e irreverente. Pode-se
presumir bem que nã o há outro tema que tenha chamado mais
a atençã o dos homens, em todos os tempos. Este tema tem
sido discutido exaustivamente em todas as suas relaçõ es,
sejam filosó ficas, teoló gicas e prá ticas; e se existe algum tema
de especulaçã o com relaçã o ao qual nos seja lícito dizer que se
tem esgotado, é este.
Pelo menos alguns dos temas inclusos sob este cabeçalho geral
têm sido discutidos por quase todo filó sofo eminente, tanto
nos tempos pretéritos quanto nos tempos atuais. Tudo o que a
mais elevada capacidade, engenhosidade e profundeza que se
tem alcançado, tem sido exercitada na discussã o deste tema; e
as dificuldades que o envolvem jamais foram resolvidas
completamente. Podemos garantir que isso jamais será
possível, a menos que Deus nos dê uma revelaçã o mais ampla,
ou que aumente de forma mais profunda as nossas
capacidades — ainda que, possivelmente, seja mais correto
dizer que, pela própria natureza do caso , um ser finito jamais
poderá compreender tal coisa, em sua plenitude, já que isto
implicaria que se poderia também compreender a plenitude da
mente infinita. [4]
No desenvolvimento deste livro, utilizou-se muito material de
outros livros a fim de que este possa conter a nata e quintessência
dos melhores autores sobre o tema. Consequentemente, muitos dos
argumentos encontrados aqui pertencem a homens que o autor
considera como sendo superiores a ele pró prio. Por certo que, ao
visualizar todo o conteú do, ele pode dizer com um célebre escritor
francês: “Eu colhi dos jardins dos homens um ramalhete de variadas
cores, e nada é propriamente meu senã o o cordã o que as ata.”
Entretanto, muito é original, especialmente o que diz respeito à
organizaçã o e arranjo dos materiais.
Ao longo deste livro, os termos “predestinaçã o” e “preordenaçã o”
sã o usados como sinô nimos exatos, sendo a escolha determinada
pela preferência do autor. Caso se queira fazer uma distinçã o, entã o
pode ser que a palavra “preordenaçã o” seja mais bem usada quando
o que se está fazendo referência é um evento na histó ria ou na
natureza; enquanto “predestinaçã o” pode referir-se mais
consistentemente ao destino final das pessoas. As citaçõ es bíblicas
foram feitas da American Standart Version da Bíblica, mais do que a
King James Version, posto que a primeira seja mais acurada.
O autor deseja agradecer particularmente a cooperaçã o do Dr.
Samuel G. Craig, editor da revista Christianity Today , do Dr. Frank H.
Stevenson, Presidente da Junta Diretora do Seminá rio Teoló gico
Westminster, do Dr. Cornelius Van Til, Professor de Apologética no
Seminá rio Teoló gico Princeton, do Dr. W. Hodge, Professor de
Teologia Sistemá tica no Seminá rio Teoló gico de Princeton, sob cuja
supervisã o este material, na forma mais concisa, foi originalmente
preparado, e do Rev. Henry Atherton, Secretá rio Geral da Sovereign
Grace Union, Londres, Inglaterra, por sua valiosa ajuda.
Voltamos a repetir, este livro tem como propó sito expor e defender
a fé reformada, comumente conhecida como calvinismo. Ele nã o se
dirige contra nenhuma denominaçã o em particular, senã o contra o
arminianismo em geral. O autor é presbiteriano, [5]
mas está
consciente do abandono radical do credo de sua igreja por parte da
grande maioria dos pró prios presbiterianos. O livro é oferecido ao
pú blico com a esperança de que aqueles que professam apoiar a
doutrina reformada cheguem a possuir um entendimento mais
amplo das grandes verdades discutidas aqui e ainda cheguem a ter
em maior estima sua herança; e que, aqueles que ainda nã o
conheceram este sistema, ou os que se oponham a ele, cheguem a se
convencer de sua veracidade e a amá -lo.
Portanto, a pergunta que devemos confrontar é a seguinte:
Porventura Deus preordenou desde a eternidade tudo o que
acontece? Se a resposta for sim, que evidência temos nó s disto? E:
Como este fato pode ser compatível com a livre agência das
criaturas racionais e com as perfeiçõ es divinas?

SEÇÃO I. DOUTRINAS BÁSICAS


 
 
 
 
CAPÍTULO II. EXPOSIÇÃO DA DOUTRINA
 
 
A Confissão de fé de Westminster , na qual se expõ em as doutrinas
das igrejas presbiterianas e das igrejas reformadas, e a qual é a mais
perfeita exposiçã o da fé reformada, reza assim:
Deus, desde toda a eternidade, pelo santo e sá bio
conselho de sua vontade, ordenou livre e
inalteravelmente tudo o que acontece. Todavia, ele fez
isso de tal maneira que nã o é o autor do pecado, nem faz
violência à liberdade de suas criaturas, nem tira a
liberdade ou contingência das causas secundá rias, senã o
que as estabelece.
E mais adiante:
Ainda que Deus saiba tudo o que pode acontecer em todo
tipo de condiçã o ou contingência que se possa imaginar,
contudo ele nada decretou por havê-lo previsto como
futuro ou como coisa que haveria de suceder em dadas
circunstâ ncias.
A doutrina da predestinaçã o representa o propó sito de Deus como
absoluto e incondicional, independente de toda a criaçã o finita e tã o
somente como se originando no eterno conselho de sua vontade.
Deus é visto como o grande e poderoso Rei que designou o curso da
natureza e que dirige o curso da histó ria até em seus mínimos
detalhes. Seu decreto é eterno, imutá vel, santo, sá bio e soberano. Ele
abarca nã o só o curso do mundo físico, mas também a cada evento
da histó ria humana desde a criaçã o até o juízo [final], e inclui todas
as atividades dos santos e anjos no céu, e dos réprobos e demô nios
no inferno. Ele abarca toda a extensã o da existência de todas as
criaturas através do tempo e da eternidade, e à s vezes inclui de uma
só vez todas as coisas que já foram ou serã o em suas causas,
condiçõ es, sucessõ es e relaçõ es. Tudo o que existe fora do pró prio
Deus está incluso neste decreto todo abrangente, já que a existência
de todos os demais seres dependeu e depende do poder criador e
sustentador de Deus. Este decreto provê o controle providencial sob
o qual todas as coisas se apressam rumo ao fim determinado por
Deus; sendo a meta: “Um evento divino remoto rumo ao qual toda a
criaçã o se move”.
Uma vez que a criaçã o finita em toda sua extensã o existe como um
meio através do qual Deus manifesta sua gló ria, e uma vez que ela
depende dele em termos absolutos, jamais poderia originar em si
mesma nenhuma condiçã o que limitasse ou frustrasse a
manifestaçã o dessa gló ria. Desde toda a eternidade, Deus se propô s
fazer precisamente o que está fazendo. Ele é o soberano Governante
do universo e “todos os moradores da terra sã o por ele reputados
em nada; e, segundo a sua vontade, ele opera com o exército do céu
e os moradores da terra; nã o há quem lhe possa deter a mã o, nem
lhe dizer: Que fazes?” (Dn 4.35). Visto que o universo teve sua
origem em Deus e depende dele para sua existência contínua, ele
deve estar, em todas as suas partes e em todos os tempos, sujeito ao
seu controle, e nada pode acontecer que contrarie o que Deus
decretou ou permite expressamente. Portanto, o eterno propó sito é
representado como um ato de predestinaçã o ou preordenaçã o
soberana, nã o condicionado por nenhum fato ou mudança no tempo.
Daí ser representado como sendo a base da presciência divina de
todos os eventos futuros, nã o condicionados por esta presciência ou
por qualquer coisa originada pelos pró prios eventos.
Os teó logos reformados aplicam de modo ló gico e consistente, à s
esferas da criaçã o e da providência, os grandes princípios que mais
tarde foram expostos nos padrõ es de Westminster. Eles viram a mã o
de Deus em cada evento de toda a histó ria da humanidade e em
todas as operaçõ es da natureza física, de modo a conceberem o
mundo como a plena realizaçã o, no tempo, do eterno ideal. Para
eles, o mundo, em sua totalidade e em todas as suas partes,
movimentos e mudanças, formou uma unidade pela atividade
governante, penetrante e harmoniosa da vontade divina, e seu
propó sito visava a manifestar a gló ria de Deus. Muito embora seu
conceito fosse o de um plano divino para todo o curso da histó ria,
seu interesse estava especialmente na relaçã o entre este plano e a
salvaçã o do homem. Calvino, o mais brilhante e sistemá tico teó logo
da Reforma, se expressou nestes termos: “Chamamos predestinaçã o
o eterno decreto de Deus, pelo qual houve por bem determinar o
que acerca de cada homem quis que acontecesse. Pois ele nã o quis
criar a todos em igual condiçã o; ao contrá rio, preordenou uns para a
vida eterna; a outros, à condenaçã o eterna. Portanto, cada um foi
criado para um ou outro desses dois destinos, assim dizemos que
um foi predestinado ou para a vida, ou para a morte”. [6]
Que Lutero foi tã o zeloso quanto Calvino no que diz respeito à
predestinaçã o absoluta, é só examinar seu comentá rio à Carta aos
Romanos, onde escreve: “Todas as coisas, sejam quais forem,
procedem e dependem da determinaçã o divina; mediante a qual
foram ordenados os que haveriam de receber a palavra da vida, bem
como os que haveriam de rejeitá -la; os que haveriam de ser
libertados de seus pecados, bem como os que haveriam de ser
endurecidos neles; os que haveriam de ser justificados e os que
haveriam de ser condenados”. Melanchton, seu amigo íntimo e
colega, afirma: “Todas as coisas acontecem conforme a
predestinaçã o divina; nã o só as boas feitas externamente, mas
também os pensamentos que formulamos interiormente”; e
adiciona: “Nã o existe tal coisa como sorte, nem fortuna; e nã o há
maneira mais fá cil de adquirir o temor de Deus e depositar toda
nossa confiança nele, senã o conhecendo a fundo a doutrina da
predestinaçã o”.
“A ordem é a primeira lei celestial.” Do ponto de vista divino, há
ordem e progresso ininterruptos desde o começo da criaçã o até o
fim do mundo e a introduçã o do reino dos céus em toda sua gló ria. O
propó sito e plano divinos nã o sã o frustrados nem interrompidos em
nenhuma de suas partes; aquilo que em muitos casos nos parece ser
frustrado, na realidade o é somente na aparência, posto que nossa
natureza finita e imperfeita nã o nos permite ver todas as partes em
sua totalidade, e nem a totalidade em todas as suas partes. Se
pudéssemos ver num só relance “o grande espetá culo do mundo
natural e o complexo drama da histó ria humana”, veríamos o mundo
como uma harmoniosa unidade manifestando as gloriosas
perfeiçõ es de Deus.
“Ainda que o mundo pareça mover-se ao acaso”, diz Bishop, “e as
circunstâ ncias pareçam amontoadas de um modo confuso e
desordenado, nã o obstante Deus vê e conhece as relaçõ es entre
todas as causas e seus efeitos, e as dirige de modo tal que faz de
todas as aparentes inconsistências e incompatibilidades uma
perfeita harmonia. É sumamente necessá rio que tenhamos nosso
coraçã o bem estabelecido na firme e está vel convicçã o desta
verdade, a saber, suceda o que suceder, seja bom ou ruim, possamos
alçar nossos olhos ao Doador de tudo, sim, a Deus. No que respeita a
Deus, nada há no mundo que suceda casualmente nem por
contingência. Se um patrã o enviar um funcioná rio a determinado
lugar e lhe ordenar que permaneça ali por certo tempo, e logo
depois enviar outro funcioná rio ao mesmo lugar, o encontro destes
dois seria casual no tocante a eles mesmos, porém ordenado e
previsto pelo patrã o que os enviou. Quanto a nó s, todas as
circunstâ ncias sucedem inesperadamente, porém nã o quanto a
Deus. Este contempla e estabelece todas as eventualidades das
coisas”. [7]
O salmista exclamou: “Ó Senhor, Senhor nosso, quã o glorioso é o teu
nome em toda a terra!”. E o escritor do Eclesiastes afirma: “Tudo ele
fez belo em seu tempo”. Na visã o que o profeta Isaías recebeu, os
serafins cantavam “Santo, santo, santo é o Senhor dos Exércitos;
toda a terra está cheia de sua gló ria”. Quando visto da perspectiva
divina, todo evento no curso dos acontecimentos humanos, em
todos os tempos e em todas as naçõ es, tem seu lugar
correspondente no desenvolvimento do plano eterno, nã o importa
quã o insignificante pareça. Cada fato está intimamente relacionado
com causas que o precedem e exerce influência cada vez mais ampla
através de seus efeitos, relacionando-se, assim, com todo o sistema
de coisas, e ocupando sua parte correspondente na manutençã o do
equilíbrio perfeito da ordem deste mundo. Muitos exemplos se
poderiam evocar para mostrar que os eventos da má xima
importâ ncia muitas vezes têm dependido do que em outro momento
pareciam ser acontecimentos mui fortuitos e triviais. A inter-relaçã o
e conexã o dos acontecimentos sã o tais que, se um deles fosse
omitido ou modificado, todos os demais ficariam ou modificados ou
sem efeito. Daí a certeza de que o governo divino repousa na
preordenaçã o de Deus e que abarca todos os eventos, grandes e
pequenos, respectivamente; e, estritamente falando, nenhum evento
é pequeno; cada um tem seu lugar exato no plano divino, e alguns
sã o relativamente maiores que outros. Portanto, o curso da histó ria
é infinitamente complexo; no entanto, aos olhos de Deus, constitui
uma unidade. Esta verdade, bem como a razã o para ela, se resume
de maneira mui bela no Breve catecismo de Westminster : “Os
decretos de Deus sã o seu propó sito eterno, segundo o conselho de
sua vontade, em virtude do qual ele preordenou para sua pró pria
gló ria tudo o que acontece”.
O Dr. Abraham Kuyper, conhecido como um dos teó logos calvinistas
mais destacados da Holanda, deixou-nos um valioso pensamento no
seguinte pará grafo: “A determinaçã o da existência de todas as
coisas, isto é, o que haveria de ser camélia ou margarida, rouxinol ou
corvo, ovelha ou cervo, e de igual modo o que diz respeito a nó s,
seres humanos, a determinaçã o de nossas pessoas, se haveríamos de
nascer homem ou mulher, rico ou pobre, rude ou inteligente, ou até
mesmo como Abel e Caim, é a mais surpreendente predestinaçã o
que se possa conceber no céu ou na terra; e a vemos ocorrendo
diante de nossos olhos a cada dia, já que nossa pró pria
personalidade está sujeita a ela, nossa existência, nossa pró pria
natureza, nossa posiçã o na vida dependem totalmente dela. O
calvinista atribui esta predestinaçã o que a tudo abarca nã o ao
homem, e muito menos a uma cega força natural, mas ao Deus Todo-
Poderoso, soberano criador e Senhor do céu e da terra; e é na figura
do oleiro e do barro que as Escrituras nos apresentam, desde os
tempos dos profetas, esta eleiçã o absoluta. Eleiçã o na criaçã o,
eleiçã o na providência e, portanto, eleiçã o para a vida eterna; eleiçã o
na esfera da graça , bem como na esfera da natureza ”. [8]
Nã o podemos apreciar de maneira adequada esta ordem universal
até que tenhamos visto como um poderoso sistema mediante o qual
Deus leva a bom termo seus planos. O teísmo claro e consistente de
Calvino lhe proporcionou um agudo senso da infinita majestade da
Pessoa Onipotente em cujas mã os jazem todas as coisas,
convertendo-o, assim, no firme defensor da doutrina da
predestinaçã o. Nesta doutrina do propó sito incondicional e eterno
do Deus onisciente e onipotente, ele encontrou o programa da
histó ria da queda e da redençã o da raça humana. Ele se aventurou
ousadamente, porém com muita reverência, a chegar ao barranco
daquele abismo de especulaçã o onde todo o conhecimento humano
se perde em mistério e adoraçã o. 
Portanto, a fé reformada nos oferece um Deus glorioso que é o
soberano Governante do universo. “Seu grande princípio”, diz
Bayne, “é a contemplaçã o do universo de Deus revelado em Cristo.
Em todo lugar, em todo tempo, de eternidade em eternidade, o
calvinismo contempla Deus”. Nossa era, com sua ênfase na
democracia, nã o se deleita nesta ideia, e é bem prová vel que
nenhuma outra era lhe odiou mais. A tendência moderna é exaltar o
homem e render a Deus apenas uma parte mui limitada nas
atividades do mundo. O Dr. A. A. Hodge disse: “A nova teologia,
asseverando a estreiteza da antiga, faz com que a predestinaçã o de
Jeová seja mera invençã o escolá stica, ultrapassada e desacreditada
pela cultura avançada de nossos dias. Esta nã o é a primeira vez que
as corujas, confundindo as sombras de um eclipse passageiro com
sua noite natural, têm-se antecipado a gritar à s á guias, convencidas
de que o que para elas é invisível é impossível existir”. [9]
Este, pois, em termos gerais, é o conceito da predestinaçã o como
tem sido sustentada pelos grandes teó logos das igrejas
presbiterianas e reformadas.
A preordenaçã o é ensinada de maneira explícita nas Escrituras (At
4.27, 28; Ef 1.5; 1.11; Rm 8.29, 30; 1Co 2.7; At 2.23; 13.48; Ef 2.10; R
9.23; Sl 139.16).
        
 

CAPÍTULO III. DEUS TEM UM PLANO


 
É inconcebível que o Deus de infinita sabedoria e poder criasse o
mundo sem um plano definido para esse mundo. E já que Deus é
infinito, seu plano deve abarcar cada detalhe da existência do
mundo. Se pudéssemos contemplar o mundo em todas as suas
relaçõ es pretéritas, presentes e futuras, veríamos que este segue,
com absoluta precisã o, um curso já predeterminado. Entre as coisas
criadas, podemos buscar em todo lugar, até onde o microscó pio e o
telescó pio nos permitam, e encontraremos organizaçã o por toda
parte. Grandes estruturas se decompõ em em suas partes
constituintes, e essas, por sua vez, se compõ em de outros pares que
de igual modo se decompõ em, de maneira quase interminá vel.
Mesmo o homem, que nã o passa de uma criatura de vida breve e
propenso a cometer todo tipo de erros, desenvolve um plano antes
de agir; e o homem que age sem desígnio ou propó sito é
considerado néscio. Antes de empreender uma viagem ou algum
trabalho, todos nó s fixamos nossas metas e em seguida nos
esforçamos por alcançá -las até onde nos seja possível. Muito embora
muitos se oponham à predestinaçã o teoricamente, todos nó s, na
vida diá ria, somos adeptos prá ticos da predestinaçã o. E. W. Smith
afirma que um homem sá bio “primeiro determina o fim que deseja
alcançar, e em seguida determina os melhores meios de alcançá -lo.
O arquiteto, antes de começar a construçã o de um edifício, faz seus
esboços e traça seus planos, nos mais minuciosos detalhes da
construçã o; em sua mente ele já antevê o edifício terminado, antes
mesmo de colocar a primeira pedra. Assim também sucede com o
comerciante, com o advogado, com o agricultor e com todo ser
racional e inteligente”. [10]
Quanto maior for o nosso empreendimento, mais imprescindível se
faz que tenhamos um plano; de outro modo, nosso trabalho
terminaria em fracasso. De fato, seria considerado mentalmente
desestruturado quem tentar construir um barco ou uma ferrovia ou
governar uma naçã o, sem um plano. Conta-se que, antes da invasã o
da Rú ssia, Napoleã o havia traçado um plano detalhado, assinalando
o curso que cada divisã o de seu exército havia de seguir, onde havia
de estar em determinado dia, que provisõ es havia de ter, etc.
Qualquer detalhe que faltasse nesse plano se devia à s limitaçõ es do
poder e da sabedoria humanos. Se a provisã o de Napoleã o fosse
perfeita e seu controle dos eventos fosse soberano, seu plano
(podemos dizer, sua preordenaçã o) haveria abarcado cada ato de
cada soldado que fazia parte dessa marcha.
E se esta é a realidade com respeito ao homem, quanto mais nã o o
será com respeito a Deus! “Um universo sem decretos”, diz A. J.
Gordon, “seria tã o irracional e espantoso como uma locomotiva que
segue na escuridã o sem seu farol dianteiro e sem maquinista, sem
saber se o pró ximo momento a conduz ao abismo”. Nã o podemos
conceber que Deus haja criado o universo sem antes delinear um
plano que incluísse tudo o que haveria de acontecer nesse universo.
As Escrituras, nã o obstante, ensinam que a providência de Deus se
estende a todos os eventos, inclusive os menores; o que significa que
seu plano abarca todos os eventos. Que ele tenha o melhor de todos
os planos possíveis e dirige o curso da histó ria para seu
determinado fim, constitui uma de suas perfeiçõ es. Admitir que ele
tem um plano, e que este está sendo levado a bom termo, equivale
admitir a predestinaçã o. Na afirmaçã o de Dabney: “O plano de Deus
mostra em sua realizaçã o que o mesmo é uma unidade; a causa está
atrelada ao efeito, e o que era efeito se converte em causa; as
influências de uns eventos sobre outros se entrelaçam e descem
numa sucessã o cada vez mais ampla a eventos subsequentes; de tal
maneira que todo o complexo está entrelaçado através de todas as
suas partes. Como os astrô nomos supõ em que a remoçã o de um
planeta de nosso sistema solar modificaria mais ou menos o
equilíbrio e as ó rbitas de todos os demais, de igual modo a omissã o
de um só evento neste plano alteraria todo o conjunto, de uma
forma direta ou indireta”. [11]
Se Deus nã o houvesse preordenado o curso dos acontecimentos,
mas houvesse esperado que uma indeterminada condiçã o se
completasse ou nã o, entã o seus decretos nã o poderiam ser nem
eternos nem imutá veis. Mas sabemos que ele nã o pode cometer
erros, e que tampouco pode ser surpreendido por alguma
inconveniência imprevista. Seu reino está nos céus e ele domina
sobre tudo. Consequentemente, seu plano deve incluir todos e cada
um dos eventos de tudo o que ocorre na histó ria.
Que ainda os menores eventos têm também sua parte neste plano, e
que sã o tais como devem ser, se vê facilmente. Todos nó s podemos
lembrar certos “acontecimentos fortuitos” que mudaram o curso de
nossas vidas. Os efeitos destes se estendem ao longo de toda a
histó ria subsequente, ampliando suas influências cada vez mais até
chegar a produzir outros “acontecimentos fortuitos” semelhantes.
Conta-se que em certa ocasiã o os grasnados de uns gansos salvaram
Roma. Quã o verídica é tal histó ria, nã o o sabemos; mas, mesmo
assim, serve de boa ilustraçã o. Pensemos bem: se esses gansos nã o
houvessem despertado os guardas que deram a voz de alerta,
despertando estes, por sua vez, o exército de defesa, Roma teria
caído e o curso da histó ria, a partir desse momento, teria sido outro.
Se esses gansos tivessem permanecido em silêncio, quem pode
imaginar os impérios que existiriam hoje, ou onde haveriam de
encontrar-se os centros da cultura? De igual modo, durante uma
batalha um projétil faz sua trajetó ria a poucos centímetros do
general do exército. Este continua vivo dirigindo suas tropas e ganha
uma vitó ria decisiva e é proclamado chefe de sua naçã o por muitos
anos — assim como sucedeu com Jorge Washington. Todavia, quã o
diferente teria sido o curso da histó ria se o soldado do exército
contrá rio tivesse apontado seu fuzil um pouco mais para cima ou
para baixo! Pensemos também no grande fogo de Chicago em 1871,
o qual destruiu mais da metade da cidade. Diz-se que esse fogo
começou quando uma vaca derrubou uma lanterna com um coice.
Quã o distinta teria sido a histó ria de Chicago se o movimento da
vaca discrepasse apenas um pouco! “O controle do maior deve
incluir o controle do menor, já que as coisas grandes nã o só estã o
integradas com as coisas pequenas, senã o que a pró pria histó ria
ensina como as circunstâ ncias mais insignificantes sempre
demonstram ser os eixos sobre os quais giram os eventos de grande
importâ ncia. A persistência de uma aranha motivou um homem
desesperado a exercer novas forças que determinaram o futuro de
uma naçã o. O Deus que predestinou o curso que a histó ria da
Escó cia havia de seguir é o mesmo que planejou e dirigiu os
movimentos daquele pequeno inseto que salvou da destruiçã o a
Robert Bruce.” [12] Exemplos desse tipo poderiam multiplicar-se
indefinidamente.
O pelagiano nega que Deus tenha um plano; o arminiano afirma que
Deus tem um plano geral, porém nã o um plano detalhado; o
calvinista, por sua vez, afirma que Deus tem um plano detalhado que
abarca todos os eventos ao longo de todos os tempos. Que o
calvinista reconhece que o Deus eterno tem um plano eterno
mediante o qual ele predestinou tudo o que acontece, isso outra
coisa nã o é senã o reconhecer que Deus é Deus; e que, portanto, ele
está livre de toda e qualquer limitaçã o humana. As Escrituras
apresentam Deus como uma pessoa, já que seus atos, assim como os
nossos, têm propó sito; mas, diferente de nó s, Deus é infinitamente
sá bio na formulaçã o de seus planos, e onipotente em sua execuçã o.
Além disso, as Escrituras apresentam o universo como o produto de
seu poder criador e como o teatro no qual se exibem suas gloriosas
perfeiçõ es; e que em toda sua forma e em toda sua histó ria, e em
seus pequenos detalhes, este universo deve corresponder ao seu
propó sito, quando o criou.
O Dr. Benjamin B. Warfield, que na opiniã o do autor é (depois de
Joã o Calvino) o mais eminente teó logo, nos informa, em um artigo
iluminador sobre “A predestinaçã o”, que os escritores da Bíblia
contemplaram o plano divino como “suficientemente amplo para
abarcar as coisas do universo, e suficientemente pequeno para
incluir os mínimos detalhes, realizando-se com inevitá vel certeza
em cada evento que acontece”. “Na infinita sabedoria do Senhor de
toda a terra, cada evento acontece precisamente no lugar que lhe
corresponde no desenvolvimento do plano eterno; nenhuma coisa,
nã o importa quã o pequena, ou estranha seja, ocorre sem a ordem
divina ou sem sua adaptaçã o particular no lugar que lhe
corresponde no desenvolvimento dos propó sitos de Deus; e no fim
de tudo será a manifestaçã o de sua gló ria e o acú mulo de seu louvor.
Esta é a filosofia do universo que apresenta nã o só o Antigo, mas
também o Novo Testamento — uma perspectiva universal que
consegue unidade concreta em um decreto, ou propó sito, ou plano
absoluto, do qual tudo o que acontece outra coisa nã o é senã o seu
desenvolvimento no tempo.” [13]
A pró pria essência de um teísmo consistente é que Deus tenha um
plano preciso para o mundo; que conheça de antemã o os atos de
todas as criaturas que se propô s criar; e que através de sua
providência governa todo o sistema. Se Deus houvesse apenas
preordenado alguns eventos isolados, entã o se introduziria
confusã o no sistema, tanto no mundo natural como nos assuntos
humanos, e ele se veria obrigado a desenvolver constantemente
novos planos para atingir seus propó sitos. Seu governo do mundo,
em tal caso, seria apenas uma caprichosa miscelâ nea de novos
expedientes; e, no melhor dos casos, governaria mui
superficialmente e ignoraria grande parte do futuro. Mas ninguém,
com uma ideia correta da pessoa de Deus, crerá que ele tenha que
mudar de opiniã o, de vez em quando, para acomodar
acontecimentos inesperados que nã o estavam incluídos em seu
plano original. Caso se negue a perfeiçã o do plano divino, nã o se
poderá achar uma posiçã o consistente fora de um ateísmo crasso.
À primeira vista, de forma alguma havia necessidade de Deus criar.
Ele agiu com perfeita liberdade quando criou o mundo. Assim que
ele decidiu criar, havia diante dele um nú mero infinito de planos
possíveis. Todavia, vemos que ele escolheu este plano em particular,
do qual somos parte. E como ele conhecia perfeitamente cada plano
deste sistema em particular, é ó bvio, pois, que ele determinou cada
evento quando escolheu este plano. Sua escolha do plano, ou,
melhor, a certeza de que a criaçã o seguiria a ordem desse plano,
denominamos de sua preordenaçã o ou sua predestinaçã o.
Até mesmo as obras pecaminosas dos homens sã o parte desse
plano; elas sã o previstas, permitidas e têm seu lugar preciso, e sã o
controladas e dirigidas de modo que redundem na gló ria de Deus. A
crucifixã o de Cristo, que sem a menor dú vida é o crime mais
hediondo de toda a histó ria humana, teve, como declara a Bíblia, seu
lugar preciso e necessá rio no plano (At 2.23; 4.28). Esta maneira
particular de redençã o nã o é um expediente [ou plano B] ao qual
Deus teve que recorrer ao ser derrotado e frustrado pela queda do
homem, mas, antes, foi “conforme o propó sito eterno que fez em
Cristo Jesus nosso Senhor” (Ef 3.11). Pedro nos informa que Cristo
foi “manifestado desde antes da fundaçã o do mundo” (1Pe 1.20). Os
crentes foram “escolhidos nele antes da fundaçã o do mundo” [ou
seja, desde a eternidade] (Ef 1.4). “Ele nos salvou e nos chamou com
santa vocaçã o; nã o segundo as nossas obras, mas conforme a sua
pró pria determinaçã o e graça que nos foi dada em Cristo Jesus,
antes dos tempos eternos” (2Tm 1.9). E se a crucifixã o de Cristo, isto
é, seu sofrimento pessoal como sacrifício pelo pecado, é parte do
plano, entã o, evidentemente, a queda de Adã o e todos os demais
pecados que fizeram com que tal sacrifício fosse necessá rio sã o
parte do plano, nã o importa quã o indesejá veis eles sejam.
A histó ria, em todos os seus detalhes, mesmo os menores, outra
coisa nã o é senã o o desenvolvimento dos propó sitos de Deus. Os
decretos divinos nã o sã o concebidos de maneira sucessiva conforme
as emergências vã o surgindo, senã o que todos sã o parte de um
plano abrangente, e jamais deveríamos pensar que Deus de repente
desenvolve um plano ou leva a bom termo algo que nã o havia
considerado de antemã o.
O fato de que as Escrituras com frequência falem de algum propó sito
de Deus como dependente do resultado dos atos dos homens, nã o é
objeçã o vá lida contra esta doutrina. As Escrituras estã o escritas na
linguagem comum e corrente, e com frequência descrevem um fato
ou alguma coisa como aparenta ser, e nã o como na realidade é. A
Bíblia fala de “os quatro cantos da terra” (Is 11.12) e dos
“fundamentos da terra” (Sl 104.5); mas ninguém presume que isto
signifique que a terra seja quadrada ou que descansa sobre algum
fundamento. Quando falamos do sol e dizemos que ele sai ou se põ e,
sabemos que nã o é o movimento do sol que causa tal fenô meno, e
sim o movimento da terra ao girar sobre seu eixo. Da mesma forma,
quando as Escrituras falam de Deus como, por exemplo,
arrependendo-se, ninguém que tenha uma ideia correta de Deus
presumirá que isto significa que ele cai em si de haver seguido um
curso equivocado e passa a mudá -lo. Significa simplesmente que, do
ponto de vista humano, sua açã o parece ser como a de um homem
que se arrepende. Da mesma forma, outras passagens das Escrituras
falam das mã os, ou braços, ou olhos de Deus. Estas figuras de
linguagem sã o conhecidas com o nome de “antropomorfismo”, casos
em que se faz referência a Deus como se ele fosse humano. Quando a
palavra “arrepender-se” é usada em seu sentido estrito, nã o pode
aplicar-se a Deus, já que “Deus nã o é homem, para que minta, nem
filho de homem, para que se arrependa. Porventura, tendo ele
falado, nã o o fará ?” (Nm 23.19); e “Também a gló ria de Israel nã o
mente, nem se arrepende, porquanto nã o é homem, para que se
arrependa” (1Sm 15.29).
A contemplaçã o deste glorioso plano redundará nos louvores da
sabedoria inescrutá vel e do poder imensurá vel daquele que o
delineou e que o levará a bom termo. E o que poderá trazer maior
satisfaçã o e alegria ao crente do que saber que todo o curso do
mundo foi ordenado para o estabelecimento do reino dos céus e da
manifestaçã o da gló ria divina; e que ele mesmo é um dos objetos
sobre os quais a misericó rdia e o amor infinito há de derramar-se
com grande profusã o?
PROVA BÍBLICA
1. O plano de Deus é eterno (2Tm 1.9; Sl 33.11; Is 37.26; 46.9,10; 2Ts
2.13; Mt 25.34; 1Pe 1.20; Jr 31.3; At 15.18; Sl 139.16).
2. O plano de Deus é imutável (Tg 1.17; Is 14.24; 46.10, 11; Nm 23.19;
Ml 3.6).
3. O plano de Deus inclui as obras futuras dos homens (Dn 2.28; Jo
6.64; Mt 20.18).
(Todas as profecias que predizem eventos futuros correspondem a
esta lista. Veja especialmente Mq 5.2; cf. Mt 2.5, 6 e Lc 2.1-7; Sl
22.18; cf. Jo 19.24; Sl 69.21; cf. Joã o 19.29; Zc 12.10; cf. Jo 19.37; Mc
14.30; Zc 11.12,13; cf. Mt 27.9, 10; Sl 34.19, 20; Jo 19.33, 36.)
4. O plano de Deus inclui eventos fortuitos ou acontecimentos casuais
(Pv 16.33; Jn 1.7; At 1.24, 26; Jó 36.32; 1Rs 22.28, 34; Jó 5.6; Mc
14.30).
5. Alguns eventos aparecem como fixos ou inevitavelmente certos (Lc
22.22; Jo 8.20; Mt 24.36; Gn 41.32; Hc 2.3; Lc 21.24; Jr 15.2; Jó 14.5;
Jr 27.7).
6. Mesmo as obras pecaminosas dos homens estão incluídas no plano e
são controladas de modo que redundem em bem (Gn 45.7; Am 3.6; At
3.18; Mt 21.42; Rm 8.28).
 

CAPÍTULO IV. A SOBERANIA DE DEUS


 
Toda pessoa de mente ativa percebe prontamente que um poder
soberano rege sua vida. Jamais alguém se perguntou se desejava ou
nã o vir à existência; nem quando, nem onde, nem de quem havia de
nascer; se no século vinte, ou antes do dilú vio; se branco ou negro;
se nas Américas, ou na China. Os cristã os de todas as épocas têm
reconhecido Deus como o Criador e Soberano do universo; e, que,
como o Criador e Governante do universo ele é a fonte ú ltima de
todo o poder que se encontra nas criaturas. Por isso, nada pode
acontecer à parte de sua soberana vontade. Quanto mais meditamos
nesta verdade, tanto mais descobrimos que ela envolve
consideraçõ es que estabelecem a posiçã o calvinista e refutam a
arminiana.
Em virtude do fato de que Deus criou cada coisa que existe, ele é o
dono absoluto e dispõ e de tudo o que ele fez. Ele exerce nã o só uma
influência geral, mas efetivamente governa o mundo que ele mesmo
criou. As naçõ es da terra, em sua insignificâ ncia aos olhos de Deus,
sã o como “o pó da balança” comparadas com a sua grandeza; e seria
mais fá cil fazer o sol deter-se em seu curso do que Deus ser
obstaculizado em sua açã o ou em sua vontade. Em meio a todas as
aparentes derrotas e inconsistências da vida, Deus prossegue avante
em sua imperturbá vel majestade. Até mesmo as obras pecaminosas
dos homens só ocorrem porque ele as permite. E já que ele permite,
nã o involuntariamente, mas voluntariamente, tudo o que acontece
— inclusive os atos e o destino final dos homens — procede
conforme o que ele desejou e o que propô s. Na proporçã o em que se
nega esta realidade, Deus é excluído do governo do mundo. É
natural que aqui surjam alguns problemas que nã o podemos
resolver em razã o do atual grau de nosso conhecimento; mas isso
nã o é causa suficiente para rejeitar o que as Escrituras e os ditames
da razã o afirmam ser indubitá vel. 
Se o poder de um rei terreno é lei em seu reino, quanto mais a
palavra de Deus no reino dele! Por exemplo, o cristã o sabe com
certeza que vem logo o dia em que, de boa ou má vontade, todo
joelho se dobrará e toda língua confessará que Cristo é o Senhor,
para a gló ria de Deus Pai. As Escrituras o apresentam como o Deus
Todo-Poderoso, como aquele que tem em sua mã o o domínio
universal e que conhece o fim desde o princípio e os meios que há de
usar para atingir esse fim. Ele pode fazer por nó s muito mais
ricamente do que pedimos ou pensamos. Equivale dizer que para
Deus nã o existe a categoria do impossível. Deus é aquele “para quem
todas as coisas sã o possíveis” (Mt 19.26; Mc 10.27). Nã o obstante,
isto nã o significa que ele tenha poder para fazer aquilo que é
contrá rio à sua natureza, ou para operar de forma contraditó ria. É
impossível que Deus minta ou faça algo que seja moralmente
indevido. Tampouco ele pode fazer com que dois mais dois sejam
iguais a cinco, nem que uma roda gire e ao mesmo tempo permaneça
imó vel. Sua onipotência é a garantia infalível de que o curso do
mundo será conforme seu plano, do mesmo modo que sua santidade
é a garantia de que todas as suas obras serã o feitas com retidã o.
A doutrina da soberania de Deus se encontra desenvolvida de
maneira consistente nã o só no Novo Testamento, mas também no
Antigo Testamento. O Dr. Warfield, referindo-se à doutrina como
aparece no Antigo Testamento, afirma: “O onipotente Criador de
todas as coisas é de igual modo apresentado como o Soberano
irresistível de tudo o que ele fez; Jeová se assenta como Rei para
sempre” (Sl 29.10). E ele continua nos informando que os escritores
desta parte da Bíblia raramente usam expressõ es tais como “chove”;
de maneira instintiva falam de Deus como aquele que envia a chuva,
etc. Possibilidade e casualidade de acidente nã o existem, e inclusive
“lançar sorte era um meio aceito de obter a decisã o de Deus” (Js
7.16; 14.2; 18.6; 1Sm 10.19; Jn 1.7). “Todas as coisas, sem exceçã o,
estã o sob seu controle e sua vontade é a razã o fundamental de tudo
o que acontece. O céu e a terra, e tudo o que neles existe sã o apenas
instrumentos através dos quais ele executa os seus propó sitos. A
natureza, as naçõ es e o destino de cada ser humano apresentam em
todas as variaçõ es a fiel expressã o de seu propó sito. Os ventos sã o
seus mensageiros, as chamas de fogo, seus ministros: cada sucesso
natural é obra sua; a prosperidade é dom seu; e caso a desgraça
chegue à vida de uma pessoa, é o Senhor que o faz (Am 3.5,6; Lm
3.33-38; Is 47.7; Ec 7.14; Is 54.16). Ele dirige os passos dos homens,
querendo estes ou nã o; ele enaltece e ele abate; ele abranda o
coraçã o ou o endurece; e ele cria os pró prios pensamentos e
intençõ es da alma.” [14]
E porventura recusaremos crer que Deus pode converter um
pecador quando lhe apraza? Será que o Todo-Poderoso, o
onipotente soberano do universo nã o pode mudar o cará ter das
criaturas que ele mesmo criou? Em Caná , ele converteu a á gua em
vinho; e no caminho de Damasco, ele converteu Saulo de Tarso. O
leproso disse: “Senhor, se quiseres, podes purificar-me”, e à sua
palavra a lepra desapareceu. Certamente, Deus pode purificar a alma
tã o facilmente como pode purificar o corpo. Cremos que Deus, se
quiser, pode muito bem mobilizar um exército de ministros, de
missioná rios e de obreiros cristã os dentre as classes distintas, de tal
modo que o mundo inteiro se converteria repentinamente. Se na
realidade Deus quisesse salvar a todos os seres humanos, poderia
enviar ao mundo exércitos de anjos com o propó sito de instruir a
humanidade e de executar obras sobrenaturais. De fato, ele mesmo
poderia operar maravilhosamente no coraçã o de cada pessoa para
que ninguém se perdesse. E como o mal só existe porque o permite,
se quisesse poderia fazê-lo desaparecer do universo. Seu poder para
fazer todas essas coisas foi claramente visível na obra que o anjo da
destruiçã o executou, o qual, numa só noite, matou todos os
primogênitos egípcios (Ê x 12.29); e noutra noite fez morrer a
185.000 do exército assírio (2Rs 19.35). O mesmo poder foi
demonstrado quando a terra se abriu e tragou Coré e seus
companheiros (Nm 16.31-33); também quando Ananias e Safira
caíram mortos num instante (At 5.1-11); e quando Herodes morreu
comido de vermes (At 12.23). Deus nã o perdeu absolutamente nada
de seu poder, e é imensamente desonroso presumir que ele está
lutando sem cessar contra a raça humana, tentando fazer o má ximo
que pode, sem conseguir concretizar seus propó sitos.
Muito embora a soberania de Deus seja universal e absoluta, esta
nã o é a soberania de um poder cego. Ao contrá rio, esta soberania se
acha unida à sua infinita sabedoria, santidade e amor. E esta
doutrina, quando é bem compreendida, nos traz grande conforto e
segurança. Quem nã o preferiria que todos os seus assuntos
estivessem nas mã os de um Deus de infinito poder, sabedoria,
santidade e amor, sem depender de um destino cego, ou da
casualidade, ou das irrevogá veis leis da natureza, ou de nossas
pró prias pessoas pervertidas e míopes? Os que rejeitam a soberania
de Deus devem considerar que outras tentativas lhes restam.
De que maneira, pois, sã o controlados e dirigidos os acontecimentos
do universo? “Conforme o propó sito daquele que faz todas as coisas
segundo o desígnio de sua vontade.” A tendência atual é deixar de
lado as doutrinas da soberania de Deus e da predestinaçã o a fim de
dar lugar à autocracia da vontade humana. O orgulho e a presunçã o
do homem, de um lado, e sua ignorâ ncia e depravaçã o, do outro, o
induzem a excluir Deus e a exaltar a si pró prio o quanto possa. E
ambas as tendências se harmonizam para afastar do calvinismo a
grande maioria da humanidade.
A ideia que os arminianos abrigam, de que os propó sitos eternos de
Deus podem, ao menos em alguns casos, ser derrotados; e que o
homem, que é nã o só uma criatura, mas ainda uma criatura
pecadora, pode frustrar os planos do Todo-Poderoso, contrasta-se
de maneira impressionante com a ideia bíblica da imensurá vel
exaltaçã o de Deus, a qual o exime de toda debilidade humana. O fato
de que os homens nã o podem levar sempre seus planos a bom
termo se deve à sua carência de poder, ou sua carência de sabedoria;
mas, posto que Deus possua estes recursos e tantos outros de
maneira ilimitada, é impossível surgir alguma emergência
imprevista; portanto, para ele nã o há razõ es para fazer alteraçõ es.
Presumir que seus planos podem falhar, e que seus esforços podem
ser malogrados, equivale a degradá -lo ao nível de suas criaturas.
 
PROVA BÍBLICA
Dn 4.35; Jr 32.17; Mt 28.18; Ef 1.22; 1.11; Is 14.24, 27; 46.9-11; Gn
18.14; Jó 42.2; Sl 115.3; 135.6; Is 55.11; Rm 9.20.

CAPÍTULO V. A PROVIDÊNCIA DE DEUS


 
“As obras da providência de Deus sã o a sua maneira mui santa, sá bia
e poderosa de preservar e governar todas as suas criaturas, e todas
as açõ es delas.” [15]
As Escrituras ensinam de maneira clara que todas as coisas fora de
Deus nã o só existem, mas também que continuam em existência,
com todas as suas propriedades e potências, em virtude da vontade
de Deus. Ele sustenta todas as coisas com a palavra do seu poder
(Hb 1.3). E ele é antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem
nele (Cl 1.17). “Só tu és SENHOR , tu fizeste o céu, o céu dos céus e
todo o seu exército, a terra e tudo quanto nela há , os mares e tudo
quanto há neles; e tu os preservas a todos com vida, e o exército dos
céus te adora” (Ne 9.6). “Pois nele vivemos, e nos movemos, e
existimos” (At 17.28). E ele é “um só Pai de todos, o qual é sobre
todos, age por meio de todos e está em todos” (Ef 4.6).
Através de toda Bíblia, as leis da natureza, o curso da histó ria e a
condiçã o de cada indivíduo sã o sempre atribuídos ao controle
providente de Deus. Todas as coisas, assim no céu como na terra,
desde o serafim até o diminuto á tomo, sã o ordenadas mediante sua
providência que nunca falha. E tã o íntima é a relaçã o entre Deus e
toda a criaçã o, que um leitor descuidado pode chegar a conclusõ es
panteístas. Todavia, a personalidade de cada indivíduo e as causas
secundá rias sã o reconhecidas plenamente — nã o como
independentes de Deus, mas, antes, ocupando seus devidos lugares
em seu plano. Além disso, junto a esta doutrina da sua imanência, os
escritores bíblicos nos apresentam também a doutrina afim que é a
sua transcendência, a qual é distintamente apresentada como
inteiramente separada e acima de toda a criaçã o.
No entanto, no que diz respeito à providência de Deus, nos cabe
entender que Deus está intimamente interessado em cada detalhe
dos acontecimentos e do curso da natureza. O Dr. Charles Hodge
afirma: “Supor que alguma coisa é por demais grande para estar
inclusa sob seu controle, ou por demais pequena para passar
despercebida, ou que o sem nú mero de particulares pode desviar
sua atençã o, equivale a ignorar que Deus é infinito. O sol difunde sua
luz por todo o espaço com a mesma facilidade com que a difunde
sobre qualquer ponto específico. Da mesma maneira, Deus está tã o
presente em todas as partes e com todas as coisas como se estivesse
em um só lugar e como se toda sua atençã o se convergisse a um só
objeto”. E acrescenta: “Ele está presente em cada folha de erva, mas
também guia as estrelas em suas trajetó rias, ordenando-as como a
um exército, chamando-as por seus nomes; está igualmente
presente em cada alma humana, dando-lhe entendimento, dotando-
a de talentos, operando nela tanto o querer como o fazer. O coraçã o
humano está em suas mã os; e o inclina para onde ele queira, assim
como os compartimentos das á guas”. [16]
É quase universalmente admitido que Deus determina quando, onde
e sob quais circunstâ ncias cada indivíduo de nossa raça haverá de
nascer, viver e morrer; se será do sexo masculino ou feminino;
branco ou negro; sá bio ou néscio; e, sem dú vida, Deus nã o é menos
soberano na distribuiçã o de seus favores, já que ele faz o que bem
quer dos seus. A alguns, dá riquezas; a outros, honra; a outros,
saú de; a outros, certos talentos como o da mú sica, ou o da orató ria,
ou o da arte, ou o das finanças, ou o da habilidade de estadista, etc.
Outros sã o pobres, desconhecidos, nascidos na desdita, vítimas de
enfermidade e vivem em infelicidade. Alguns sã o colocados em
países onde recebem todos os benefícios do evangelho; outros,
todavia, vivem e morrem nas trevas do paganismo. Alguns sã o
conduzidos à salvaçã o por meio da fé, enquanto outros sã o deixados
a perecer em sua incredulidade. E, em grande medida, estas
realidades externas, que de modo algum sã o o resultado da escolha
do pró prio indivíduo, determinam o curso que cada um há de seguir
em seu destino eterno. As Escrituras e a experiência cotidiana
testificam que Deus dá a alguns o que recusa dar a outros. E caso lhe
seja indagado por que age dessa maneira, ou por que nã o salva a
todos, a ú nica resposta vá lida se encontra nas palavras do Senhor
Jesus: “Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado”. Somente a
doutrina bíblica da queda e da redençã o lançará luz sobre os
acontecimentos que vemos ao nosso redor.
Lembremo-nos que os que recebem estes dons, sejam espirituais ou
temporais, recebem da mera graça; e no que diz respeito aos demais,
Deus simplesmente decide nã o lhos conferir, já que ele nã o está
obrigado a conferi-los a ninguém. As naçõ es, da mesma forma que os
indivíduos, estã o nas mã os de Deus e este fixa os limites de sua
habitaçã o e controla seu destino; e o controle que ele exerce sobre
os homens é tã o absoluto como o controle que um homem exerce
sobre uma vara ou um cajado. Estes estã o em suas mã os e ele os
emprega para a realizaçã o de seus propó sitos. Ele os faz em pedaços
como vasos de barro ou os exalta à grandeza, conforme a sua boa
vontade. Ele concede paz e os tempos frutíferos, as possessõ es e a
felicidade, ou envia as desolaçõ es da guerra, a fome, a seca e as
epidemias. Ele dispõ e todas as coisas e as tem delineado sob a sua
providência universal com fins inteligentes. Deus nã o é um mero
espectador do universo que criou, mas está presente e ativo em
todas as partes, como o fundamento que sustém tudo e o poder que
governa tudo quanto existe.
Ainda quando o preço de um pardal seja insignificante, e seu voo
pareça instá vel e sem rumo, no entanto ele nã o cai na terra nem
pousa em algum lugar sem que nosso Pai o queira. “Sua
sapientíssima providência decretou antecipadamente em que ramo
ele haverá de pousar; que grã os ele haverá de colher; em que
esconderijo ele haverá de se refugiar e em que lugar ele haverá de
construir seu ninho; do quê haverá de viver e onde haverá de
morrer.” [17]
Cada gota de chuva e cada floco de neve que desce das nuvens, cada
inseto que se move, cada planta que cresce, cada partícula de pó que
flutua no espaço, contam com certas e definidas causas e certamente
terã o certos e definidos efeitos. Cada um é um elo da cadeia de
eventos, e muitos dos grandes acontecimentos da histó ria têm sido
determinados por essas coisas que aparentemente sã o
insignificantes.
Por todo o curso de eventos há um processo para um fim
predeterminado. O Dr. Warfield escreveu: “Nã o foi acidente que
levou Rebeca a um poço para dar as boas-vindas ao servo de Abraã o
(Gn 24); ou que levou José para o Egito (Gn 45.8; 50.20 — ‘Deus o
tornou em bem’); ou que guiou a filha de Faraó para banhar-se no
rio (Ê x 2); ou que, mais tarde, dirigiu a pedra de moinho que
esmagou a cabeça de Abimeleque (Jz 9.53); ou que aprumou a
flecha, atirada ao acaso, ferindo assim o rei de Israel por entre as
junturas da armadura (1Rs 22.34). Cada evento na histó ria outra
coisa nã o é senã o um detalhe na concretizaçã o ordenada de um
propó sito divino secreto; e a cada momento o historiador está ciente
da presença, na histó ria, daquele que ordena até mesmo que o
relâ mpago atinja seu alvo (Jó 36.32). [18]
“Nas grandes estaçõ es ferroviá rias”, diz o Dr. Clarence E. Macartney,
“se pode observar com frequência um lá pis metá lico que escreve em
grandes caracteres na parede a hora de chegada e partida dos trens.
É como se dito lá pis escrevesse sozinho, mas sabemos que em
alguma oficina da estaçã o se encontra o cérebro e a mã o da pessoa
que o está manejando. Da mesma maneira, podemos observar em
nossa vida nossas deliberaçõ es, alternativas e decisõ es pessoais;
todavia, na textura de nosso destino parece haver outros fios que
nã o sã o de nossa pró pria fiaçã o. Eventos que aparentam ser triviais
ocupam seu lugar como parte dos eventos que sã o de grande
importâ ncia”. [19]
O senso de responsabilidade moral e de dependência que
caracteriza o homem, bem como suas sú plicas a Deus de maneira
instintiva em momentos de perigo, tudo isso mostra quã o universal
e inerente é a convicçã o de que Deus realmente governa o mundo e
todos os acontecimentos humanos. Mas, ainda que a Bíblia ensine
reiteradamente que dita providência é universal, poderosa, sá bia e
santa, em parte alguma ela tenta provar como este fato pode ser
conciliado com o da livre agência moral do homem. Tudo o que nos
basta saber é que Deus governa suas criaturas e que o faz de tal
maneira que nã o viola a natureza delas. Pode ser que a melhor
forma de resumir a relaçã o que existe entre a soberania de Deus e a
liberdade humana seja sumariada nestas palavras: Deus apresenta
ao homem incentivos externos de tal maneira que este age de acordo
com a sua própria natureza; todavia, ele faz precisamente o que Deus
determinou que fizesse .
Este tema, por estar relacionado com a responsabilidade humana,
será tratado mais amplamente no capítulo sobre a livre agência.
PROVA BÍBLICA
Que esta é a doutrina bíblica da providência, é tã o evidente que é
admitida por muitos cujos conceitos filosó ficos os conduzem a
rejeitá -la. Em seguida, apresentaremos um resumo de provas
bíblicas que mostram que todos os eventos têm um lugar e um
propó sito assinalado por Deus, e que a providência divina é
universal; e, portanto, que a realizaçã o de seus planos se concluirá
com absoluta certeza. O controle providencial de Deus abarca:
(a) A natureza ou o mundo físico (Na 1.3); Ê x 9.26; Mt 5.45; Gn 41.32;
Am 4.7; At 14.17; Is 40.12).
(b) A criação animal (Mt 10.29; 6.26; Dn 6.22; Sl 104.21; Gn 31.9).
(c) As nações (Dn 4.17; Is 40.15; 1Cr 16.3; Sl 47.7; Dn 2.21; Sl 33.10;
Js 21.44; Jz 6.1; Am 3.6; Hc 1.6).
(d) Cada indivíduo (Pv 21.1; Sl 37.23; Pv 16.9; Tg 4.15; Rm 11.36;
1Co 4.7; Sl 34.7; Dn 3.17; Sl 118.6; Is 64.8; Ed 8.31; Ne 4.15; Ê x 11.7;
At 18.9, 10).
(e) As obras livres dos homens (Fp 2.13; Ê x 12.36; Ed 7.6; 6.22; Ez
36.27).
(f) As obras pecaminosas dos homens (At 4.27, 28; Jo 19.11; 2Sm
16.10, 11; Sl 76.10; Ê x 14.17).
(g) Os eventos fortuitos ou as casualidades (veja a Prova bíblica do
cap. III, sec. 4).
 

CAPÍTULO VI. A PRESCIÊNCIA DE DEUS


 
A objeçã o que os arminianos apresentam contra a predestinaçã o
possui igual força contra a presciência de Deus. O que Deus prevê,
pela pró pria natureza do caso, é tã o inalterá vel e seguro como o que
ele preordena; portanto, se sua preordenaçã o é inconsistente com a
livre agência do homem, também o é sua presciência. A
preordenaçã o garante todos os acontecimentos, enquanto a
presciência pressupõ e sua infalibilidade.
Ora, se os acontecimentos futuros sã o de antemã o conhecidos por
Deus, jamais poderã o ocorrer contrariamente ao seu conhecimento.
Se o curso dos acontecimentos futuros é conhecido de antemã o, a
histó ria seguirá esse curso de maneira tã o certa como uma
locomotiva segue os trilhos de um determinado ponto a outro. A
doutrina arminiana, ao rejeitar a predeterminaçã o, rejeita também a
base teísta da presciência. Todavia, mesmo o senso comum nos
informa que nenhum evento pode ser previsto a menos que tenha
sido predeterminado por algum meio, seja físico ou mental. Nossa
opçã o quanto ao que determina a infalibilidade dos acontecimentos
futuros fica, portanto, reduzida a duas alternativas — ou à
preordenaçã o de nosso sá bio e misericordioso Pai celestial, ou à
aceitaçã o do destino cego e físico.
Os socinianos e os unitarianos, muito embora nã o tã o evangélicos
quanto os arminianos, sã o mais consistentes neste ponto, já que,
depois de rejeitar a preordenaçã o divina, seguem negando que Deus
possa conhecer de antemã o os atos de agentes livres. Sustentam que
na pró pria natureza do caso nã o se pode saber como uma pessoa
tem de agir até que chegue o momento e se faça a decisã o. Mas tal
crença reduz as profecias bíblicas a meras e astutas conjeturas, além
de destruir a fé cristã histó rica na inspiraçã o das Escrituras. É por
isso que esta posiçã o nunca foi sustentada por nenhuma igreja
reconhecidamente cristã . No entanto, alguns socinianos e
unitarianos têm sido suficientemente francos e honestos em admitir
que a razã o que os conduz a negar a presciência absoluta de Deus
em relaçã o aos atos futuros dos homens foi que, se esta fosse
admitida, entã o teria sido impossível refutar a doutrina calvinista da
predestinaçã o.
Muitos arminianos têm reconhecido a força deste argumento; e
ainda que nã o neguem a presciência de Deus como fazem os
unitarianos, nã o obstante têm dado a entender que, se pudessem, ou
se atrevessem a fazê-lo, o fariam de boa vontade. Alguns têm se
expressado em tom desdenhoso e têm insinuado que, em sua
opiniã o, nã o é de muita importâ ncia se creem ou nã o na doutrina da
presciência. Outros têm chegado ao extremo de dizer-nos
francamente que é preferível rejeitar a presciência do que admitir a
predestinaçã o. Ainda outros têm sugerido que Deus pode,
voluntariamente, inibir-se do conhecimento de alguns dos atos dos
seres humanos a fim de deixá -los livres; o que, certamente, destró i a
onisciência de Deus. Outros têm sugerido que o fato de Deus ser
onisciente só implica que ele pode conhecer todas as coisas, se assim
o quisesse — como da mesma maneira sua onipotência implica que
ele pode fazer qualquer coisa, caso o queira. Mas esta comparaçã o é
destituída de fundamento, já que nã o se trata de eventos possíveis, e
sim de eventos reais, ainda que futuros; e atribuir a Deus falta de
conhecimento de alguns eventos equivale a negar sua onisciência.
Esta interpretaçã o dá lugar, como se pode ver, ao absurdo de uma
onisciência que na realidade nã o é onisciente.
Quando se confronta o arminiano com o argumento da presciência
de Deus, este tem de admitir que os eventos futuros sã o certos e
imutá veis; no entanto, quando se discute o problema da livre
agência, ele mantém que as obras de seres livres sã o incertas, e que
dependem, em ú ltima instâ ncia, da escolha da pessoa — o que,
evidentemente, é uma inconsistência. Uma posiçã o que mantém que
os atos livres dos homens sã o incertos sacrifica a soberania de Deus
a fim de preservar a liberdade dos homens. 
Além do mais, se os atos de agentes livres fossem por si só incertos,
entã o Deus teria que esperar até que o evento se concretize antes de
formular seus planos. Na conversã o de uma alma, por exemplo,
teríamos que imaginar Deus como que agindo da mesma forma
como se conta de Napoleã o, a saber, como ele agia antes de ir ao
campo de batalha; isto é, desenvolvia três ou quatro planos
distintos, e refletia sobre eles para que, se o primeiro falhasse, entã o
pudesse recorrer ao segundo; e, se este falhasse, entã o recorria ao
terceiro; e assim sucessivamente — uma posiçã o que é inconsistente
com uma visã o correta da natureza divina. Além disso, se tal posiçã o
fosse certa, significaria que Deus desconhece grande parte do futuro,
e que a cada dia ele adquire grande porçã o de conhecimento. Seu
governo do mundo seria, nesse caso, muito incerto e mudá vel,
dependendo, por assim dizer, da conduta imprevista dos homens.
Negar a Deus as perfeiçõ es da presciência e da imutabilidade
equivale representá -lo como um ser frustrado e infeliz, com
frequência obstaculizado e derrotado por suas criaturas. No entanto,
quem, com toda honestidade, crerá que o Jeová Altíssimo tenha que
sentar-se e esperar, indagando a si: “O que o homem fará ?”. Mas,
enquanto o arminianismo insiste em negar a presciência de Deus,
este permanecerá sem defesa diante da consistência ló gica do
calvinismo, já que a presciência implica certeza e a certeza implica
preordenaçã o.
Falando por meio do profeta Isaías, o Senhor disse: “Lembrai-vos
das coisas passadas da antiguidade: que eu sou Deus, e nã o há outro,
eu sou Deus, e nã o há outro semelhante a mim; que desde o princípio
anuncio o que há de acontecer e desde a antiguidade, as coisas que
ainda nã o sucederam; que digo: o meu conselho permanecerá de pé,
farei toda a minha vontade” (Is 46.9,10). No dizer do salmista: “de
longe penetras os meus pensamentos” (Sl 139.2). Ele “conhece os
coraçõ es” (At 15.8). “E nã o há criatura que nã o seja manifesta na sua
presença; pelo contrá rio, todas as coisas estã o descobertas e
patentes aos olhos daquele a quem temos de prestar contas” (Hb
4.13).
Muito da dificuldade que experimentamos com relaçã o à doutrina
da predestinaçã o se deve a que nossa mente é finita e, portanto,
compreende bem poucos detalhes e entende mui parcialmente as
relaçõ es que existem entre tais detalhes. Por sermos criaturas
condicionadas pelo tempo, muitas vezes nã o conseguimos
compreender que Deus nã o está limitado como nó s estamos. Aquilo
que nos parece ser “passado”, “presente” e “futuro”, na mente de
Deus é “presente”, ou, antes, um eterno “agora”. Ele é “o Alto e
Sublime, que habita a eternidade” (Is 57.15). “Pois mil anos, aos teus
olhos, sã o como o dia de ontem que se foi e como a vigília da noite”
(Sl 90.4). Os eventos que vemos desenrolar-se no tempo sã o
simplesmente aqueles que Deus decretou e estabeleceu desde a
eternidade. O tempo, tal como também o espaço, é uma propriedade
da criaçã o finita e Deus os transcende e os contempla de maneira
objetiva. Assim como ele vê de um só relance toda a extensã o de
uma estrada, enquanto nó s só vemos uma pequena porçã o dela à
medida que a percorremos, da mesma maneira ele vê todos os
eventos da histó ria — os passados, os presentes e os futuros — de
uma só olhadela. Quando nos damos conta que todo o processo da
histó ria está diante de Deus como um eterno “agora”, e que toda a
criaçã o é obra dele, a doutrina da predestinaçã o se torna muito mais
fá cil.
Na eternidade, antes da criaçã o, nã o teria havido certeza alguma no
que diz respeito aos eventos futuros, a menos que estes fossem
decretados por Deus. Os eventos passam da categoria de coisas que
podem ou não chegar à sua concretização à quela de coisas que hão
de se concretizar com absoluta certeza , ou seja, de meras
possibilidades à sua concretude , unicamente pelo decreto divino.
Esta certeza ou infalibilidade dos acontecimentos jamais poderia ter
fundamento que nã o fosse a mente divina, já que na eternidade nada
mais existia. O Dr. R. L. Dabney disse: “A ú nica maneira em que
algum objeto pudesse transitar pela mente de Deus, do mero
possível ao inevitavelmente certo, é se Deus mesmo houvesse
determinado levá -lo à concretizaçã o; ou o que ele o permitisse de
maneira intencional e deliberada por meio de outro agente que ele
mesmo houvesse criado expressamente para o dito propó sito. Um
efeito concebido potencialmente só se atualiza mediante uma ou
mais causas eficientes. Quando Deus visualiza todo o seu universo
da perspectiva de sua presciência infinita, só havia uma causa, a
saber, ele mesmo; portanto, se alguma outra causa houvesse
surgido, dita causa subordinada teria tido a Deus como causa
fundamental. Se a presciência infinita de Deus exercesse em si
efeitos que fossem produzidos por essas causas subordinadas,
entã o, ao decretar tais causas, Deus, em sua presciência infinita,
decretou ou determinou também todos os demais efeitos que
haviam de ser eficientes”. [20]
O Dr. A. H. Strong, teó logo batista, e que por vá rios anos foi o
Presidente e Professor do Seminá rio Teoló gico de Rochester,
escreveu com o mesmo propó sito: “Na eternidade nã o poderia ter
havido causa alguma da existência futura do universo fora de Deus
mesmo, já que entã o somente Deus existia. Na eternidade, Deus
previu que a criaçã o do mundo e todas as suas leis fariam segura a
histó ria até em seus mais insignificantes detalhes. Deus, porém,
decretou a criaçã o e a instituiçã o destas leis. Ao criar e estabelecer
essas leis, ele decretava, portanto, tudo o que havia de acontecer.
Equivale dizer, Deus previu os eventos futuros do universo como
absolutamente certos, porque ele o havia decretado; e esta
determinaçã o incluía a determinaçã o de todos os resultados dessa
criaçã o; isto é, Deus decretou os pró prios resultados”. [21]
Nã o se deve confundir presciência com preordenaçã o. A presciência
pressupõ e a preordenaçã o, mas nã o é em si a preordenaçã o. Os atos
das criaturas livres nã o ocorrem porque sã o previstos, e sim que sã o
previstos porque hã o de concretizar-se com absoluta certeza. O Dr.
Strong diz: “O decreto vem antes da presciência de maneira ló gica,
ainda que nã o de maneira cronoló gica. Por exemplo, quando eu
digo: ‘Sei o que farei’, é evidente que ele já formou uma
determinaçã o, e meu conhecimento nã o precede, mas segue e está
baseado nessa determinaçã o”. [22]
Deus conhece o destino de cada pessoa, nã o meramente antes de a
pessoa fazer escolha nesta vida, e sim desde a eternidade, já que sua
presciência é perfeita. E como ele conhece o destino de cada pessoa
antes que elas fossem criadas, entã o é evidente que tanto salvar
quanto nã o salvar cumpre o propó sito de Deus; porque, se nã o
estava no propó sito divino que alguns indivíduos se perdessem,
Deus poderia haver optado por nã o criá -los.
Concluímos, pois, que a doutrina cristã da presciência de Deus prova
também sua predestinaçã o. Dado que os eventos sã o previstos, sã o
fixos e seguros; e nada que nã o fosse a boa vontade de Deus — que é
a grande primeira causa — pô de estabelecê-los e assegurá -los,
preordenando tudo o que acontece de maneira livre e inalterá vel. A
dificuldade está em que os atos de agentes livres sã o seguros;
todavia, tanto a presciência quanto a preordenaçã o requer que ditos
atos sejam seguros. Se os argumentos dos arminianos fossem
vá lidos, entã o tanto a presciência quanto a preordenaçã o ficariam
anuladas. Mas, já que nã o sã o vá lidos, concluímos que, na realidade,
seus argumentos nã o provam nada.

CAPÍTULO VII. ESBOÇO DE SISTEMAS


 
Na realidade, existem apenas três sistemas que afirmam ensinar um
meio de salvaçã o através de Cristo. Estes sã o:
(1) O universalismo , o qual ensina que Cristo morreu por todos os
homens e que, com o tempo, todos serã o salvos, seja nesta vida ou
durante um futuro período de prova. Esta posiçã o talvez seja a que
mais apele aos nossos sentimentos; contudo, nã o é bíblica, e nunca
foi sustentada por nenhuma igreja cristã organizada.
(2) O arminianismo , o qual ensina que Cristo morreu por cada
indivíduo da humanidade por igual, ou seja, tanto pelos que se
perdem em seus pecados, como pelos que sã o salvos; que a eleiçã o
nã o é uma obra de Deus, eterna e incondicional; que a graça
salvadora é oferecida a todos os homens, a qual eles poderiam
aceitar ou rejeitar segundo lhes apraza; que o homem pode resistir
de maneira eficiente o poder regenerador do Espírito Santo; que a
graça salvadora nã o é necessariamente permanente, mas que
aqueles que sã o amados por Deus, redimidos por Cristo e nascidos
do Espírito Santo podem rejeitá -la e perdê-la por toda a eternidade,
nã o importa o quanto Deus deseje e se esforce por conseguir o
contrá rio.
O arminianismo, em sua forma mais desenvolvida e radical, em
essência é um recrutamento do pelagianismo, ou seja, um tipo de
auto-salvaçã o [isto é, o indivíduo é seu pró prio salvador]. É tã o fá cil
demonstrar que o arminianismo tem suas raízes no pelagianismo,
como se demonstra que o calvinismo tem as suas no agostinianismo.
Talvez por isso se poderia chamar mais acertadamente o
arminianismo de “pelagianismo”, em razã o de que seus princípios
tiveram sua origem quase mil e duzentos anos antes do nascimento
de Armínio. O pelagianismo negou a corrupçã o total do homem e a
necessidade da graça eficaz, e exaltou a vontade humana acima da
vontade divina. “Suas doutrinas coincidiram com a inclinaçã o
natural dos homens, os quais, sem exceçã o, odeiam a doutrina da
depravaçã o universal. Dizer que o homem pode tornar-se santo e
puro, que pode alcançar a graça de Deus e a salvaçã o por um ato de
sua vontade, era um ensino que atraía, e ainda atrai, milhares de
pessoas.” [23]
O arminianismo, quando muito, nã o passa de uma tentativa incerta e
indefinida de conciliaçã o, que oscila numa posiçã o intermédia entre
os diversos sistemas de Pelá gio e de Agostinho, tocando as bordas
um do outro e inclinando-se à s vezes para um e outras vezes para o
outro. O Dr. A. A. Hodge o qualifica de um “sistema de convênio
mú ltiplo e elá stico”. Sua ideia principal se radica em que a graça
divina e a vontade humana operam conjuntamente a obra da
conversã o e santificaçã o, e que o homem tem o direito soberano de
aceitá -la ou de rejeitá -la. Afirma também que o homem ficou num
estado de debilidade espiritual como resultado da queda, porém
nega que ele haja perdido toda a capacidade espiritual. O homem
necessita simplesmente que a graça divina o assista em seus
esforços pessoais; ou, pondo-o de outra maneira, o homem está
enfermo, porém nã o morto; ele nã o pode por si mesmo livrar-se de
sua condiçã o, porém pode solicitar a ajuda de um médico, e pode
aceitar ou rejeitar tal ajuda quando lhe for oferecida; isto é, o
homem tem poder para cooperar com a graça de Deus no que diz
respeito à sua salvaçã o. Esta posiçã o, porém, exalta a liberdade do
homem à custa da soberania de Deus; e ainda que pareça ter alguma
base bíblica, na realidade nã o tem nenhuma e é, de fato, refutada por
outras porçõ es das Escrituras.
A histó ria revela de maneira clara que a tendência do arminianismo
é se comprometer e se desviar paulatinamente de uma base
evangélica. Daí ocorrer que até hoje ele nunca desenvolveu uma
teologia arminiana ló gica e sistemá tica. A Igreja Metodista, por
exemplo, tem um credo bem sucinto e informal em cerca de vinte e
cinco artigos, mas o contraste entre o dito credo e a Confissão de
Westminster , tã o meticulosamente elaborado, se vê em um relance. 
(3) O terceiro sistema que ensina um meio de salvaçã o através de
Cristo é o calvinismo . Este afirma que, como consequência da queda,
todos os homens sã o pessoalmente culpá veis, corruptos e estã o
perdidos sem qualquer esperança; que do conjunto de seres caídos
Deus, em sua soberania, elegeu alguns para a salvaçã o por meio de
Cristo, enquanto aos demais passa por alto; que Cristo foi enviado
para redimir os eleitos em cará ter substitutivo, fazendo expiaçã o
pelos pecados destes; que o Espírito Santo aplica aos eleitos esta
redençã o de maneira eficaz; e que todos os eleitos sã o conduzidos à
salvaçã o de maneira infalível. Esta é a ú nica posiçã o que é
consistente com as Escrituras e com o que vemos ao nosso redor.
O calvinismo sustenta que, por causa da queda o homem, este nada
pode fazer que porventura redunde em sua salvaçã o; e que,
portanto, depende absolutamente da graça divina para o nascimento
e desenvolvimento da vida espiritual. A principal falha do
arminianismo jaz no fato de que ele nã o reconhece suficientemente
a parte que Deus tem na redençã o. Este se deleita em admirar a
dignidade e o poder do homem; aquele, por sua vez, se consome em
adoraçã o da graça e onipotência de Deus. O calvinismo, antes de
tudo, lança o homem nas profundezas da humilhaçã o e da
desesperança para logo depois erguê-lo sobre as asas da graça com
uma força sobrenatural. Um afaga o orgulho natural; o outro é um
evangelho para pecadores arrependidos. Portanto, é prová vel que o
arminianismo resulte ser o mais popular, já que tudo aquilo que
exalta o homem aos seus pró prios olhos, e que o adula, é recebido
com mais agrado pelo coraçã o natural do que aquilo que o humilha.
Todavia, o calvinismo se aproxima mais da realidade, nã o importa
quã o dura e repulsiva pareça ser tal realidade. “Nem sempre o
remédio do sabor mais agradá vel é o que dá os melhores resultados.
A experiência do apó stolo Joã o é aquela que se repete hoje, a saber,
o livrinho doce como mel na boca se tornou amargo no estô mago. O
Cristo crucificado era tropeço para alguns, e loucura para outros;
todavia, era e é o poder de Deus e a sabedoria de Deus para a
salvaçã o a todo o que crê.” [24]
Os homens enganam a si pró prios constantemente ao postularem
como axiomas morais seus pró prios sentimentos e opiniõ es. Para
alguns é uma verdade evidente que um Deus santo nã o pode
permitir o pecado; portanto, concluem que Deus nã o existe. Para
outros é patente que um Deus misericordioso nã o pode permitir que
uma porçã o de suas criaturas racionais seja vítima do pecado e da
miséria eterna; e por isso negam a doutrina do castigo eterno.
Outros têm por garantido ser impossível, conforme a justiça, que o
inocente receba o castigo que cabe ao culpado, e por isso negam o
sofrimento e a morte vicá ria e substitutiva de Cristo. Ainda outros
consideram como axioma o que os atos livres de seres racionais nã o
podem ser conhecidos de antemã o, e por isso nã o podem estar sob o
controle absoluto de Deus; portanto, seguem negando a
preordenaçã o, ou inclusive a presciência de tais atos.
No entanto, a plena verdade é que nã o temos a liberdade de
desenvolver um sistema de nossa preferência. “A resposta à
pergunta, qual destes sistemas é o verdadeiro”, diz o Dr. Charles
Hodge, um fervoroso e inflexível defensor do calvinismo, “nã o se
pode decidir inquirindo qual é o mais compatível com os nossos
sentimentos ou o mais razoá vel ao nosso entendimento, e sim qual é
consistente com as doutrinas da Bíblia e com os fatos da
experiência”. “O dever de todo teó logo é subordinar à Bíblia as suas
teorias e ensinar nã o o que lhe pareça verdadeiro ou razoá vel, mas
somente o que a Bíblia ensina.” E diz mais: “Nã o haveria fim à s
controvérsias nem segurança para se estabelecer alguma verdade
caso se permita que as convicçõ es pessoais arraigadas na mente de
cada indivíduo determinem o que é ou o que nã o é a verdade; o que
a Bíblia lhe permite e o que ela nã o lhe permite ensinar”. [25]
Como sucede com as demais doutrinas comuns ao cristianismo, em
nenhuma parte da Bíblia aparecem expostas de forma completa e
sistemá tica as doutrinas distintivas do calvinismo. A Bíblia nã o é um
livro de teologia sistemá tica, mas apenas a pedreira donde se obtém
a pedra que há de se usar para formar e solidificar a teologia. A
Bíblia nã o apresenta um sistema formal de teologia, mas somente a
matéria prima que há de ser organizada e sistematizada de maneira
que se possa ver a relaçã o orgâ nica que existe entre cada uma de
suas partes. Por exemplo, em nenhuma parte da Bíblia encontramos
uma declaraçã o formal da doutrina da Trindade, ou da Pessoa de
Cristo, ou da inspiraçã o das Escrituras. A Bíblia, ao relatar a histó ria
da origem e desenvolvimento do povo hebreu e da fundaçã o do
cristianismo, faz isso sem levar em conta as relaçõ es ló gicas que
existem entre as verdades doutrinais que esses fatos encerram;
portanto, é necessá rio classificá -las, ordená -las e transformá -las em
um sistema teoló gico. O fato de que estas verdades bíblicas nã o se
acham ordenadas em um sistema teoló gico concorda com a maneira
como Deus agiu em outras esferas. Por exemplo, ele nã o nos deu um
sistema plenamente desenvolvido de biologia, ou de astronomia, ou
de política. Simplesmente encontramos na natureza e na experiência
as verdades nã o orgâ nicas dessas ciências e é nosso dever
desenvolvê-las em um sistema da melhor maneira possível. E é
precisamente pelo fato de nã o estarem apresentadas de maneira
sistemá tica e formal que com tanta facilidade surgem falsas
interpretaçõ es dessas doutrinas.      

CAPÍTULO VIII. AS ESCRITURAS SÃO A AUTORIDADE FINAL


PELA QUAL OS SISTEMAS HÃO DE SER JULGADOS
 
Em todos os assuntos controversos entre os cristã os, as Escrituras
sã o aceitas como a suprema corte de apelaçã o, e através da histó ria
elas têm sido a autoridade comum da cristandade. Cremos que elas
contêm um sistema doutrinal harmonioso e completo; que todas as
suas partes sã o consistentes entre si; e que o nosso dever é delinear
esta consistência por meio de uma cuidadosa investigaçã o do
significado de passagens particulares. [26]
No dizer de Warburton, “a Palavra de Deus é o supremo e decisivo
tribunal perante o qual devem comparecer e pelo qual devem ser
julgadas essas doutrinas. A verdade ou falsidade de nossa crença
deve ser determinada sobre a base da correspondente
conformidade com ou divergência dessa forma de doutrina exposta
na infalível revelaçã o que Deus nos deu em sua Palavra inspirada.
Somente através desse critério é que o calvinismo, bem como o
arminianismo ou o pelagianismo, devem ser julgados. É mediante
este critério, e tã o somente através dele, que toda crença, seja
religiosa ou científica, deve ser julgada; e caso nã o falem em
conformidade a esta Palavra, é porque a luz nã o está neles. Cremos
na inspiraçã o plená ria e verbal da Palavra de Deus, e mantemos que
ela é a ú nica autoridade em todas as matérias e que nenhuma
doutrina que nã o se encontre na Palavra pode ser certa ou
essencial”. [27]
É ó bvio que a verdade ou a falsidade desta profunda doutrina da
predestinaçã o só pode ser determinada por revelaçã o divina.
Nenhuma pessoa, deixando-se levar unicamente por suas pró prias
observaçõ es e critérios, pode chegar a conhecer quais sã o os
princípios bá sicos do plano que Deus está seguindo. As especulaçõ es
filosó ficas e todo arrazoado abstrato devem ser suprimidos até que
primeiramente ouçamos o testemunho das Escrituras; e uma vez as
tenhamos ouvido, entã o que nos submetamos a ele humildemente.
Tomara tivéssemos hoje mais pessoas com aquele cará ter nobre que
tinham os bereanos, os quais dia a dia esquadrinhavam as Escrituras
para ver se essas coisas eram de fato assim.
Em conexã o com cada uma das doutrinas discutidas neste livro
temos também apresentado fartas evidências bíblicas; sejam elas
evidências diretas ou indiretas; as quais nã o podem ser refutadas
nem rejeitadas através de meras explicaçõ es — as quais sã o
superiores em força, em extensã o e clareza à s que podem ser
aduzidas por parte daqueles que nã o sã o calvinistas. O plano de
redençã o revelado pela Bíblia é calvinista do princípio ao fim, e
todas estas doutrinas sã o apresentadas com tã o iniludível clareza,
que nã o deve restar dú vida alguma à queles que aceitam a Bíblia
como a Palavra de Deus. As Escrituras apresentam estas doutrinas
de maneira impressionante; e a naturalidade e simplicidade
espontâ neas com que sã o apresentadas as tornam ainda mais
impressionantes. Se alguém nos pergunta: Há estrelas nos céus?
Teríamos que responder: “Os céus estã o cheios de estrelas” (Sl
104.25, 27). Ou, reiterando, caso se pergunte: Há á rvores no
bosque? Teríamos que responder de igual forma: “O bosque está
cheio de á rvores”. E caso se nos pergunte: A Bíblia nos ensina a
doutrina da predestinaçã o? Nossa resposta terá de ser: “Certamente,
a Bíblia ensina esta doutrina do Gênesis ao Apocalipse”.
Que sã o parte das Escrituras doutrinas tais como a Trindade, a
Deidade de Cristo, a personalidade do Espírito Santo, a
pecaminosidade do homem e a realidade do castigo futuro é algo do
qual testificam até mesmo aqueles que recusam aceitá -las como
verdadeiras. Os racionalistas e os assim chamados Alta Crítica da
Bíblia, em geral admitem o que os apó stolos creram e ensinaram; e,
portanto, nã o podem ser interpretadas de nenhuma outra maneira
quando se lhes aplicam devidamente as leis da exegese; todavia, é
ó bvio que pessoalmente eles nã o pensam que tenham que se
submeter à autoridade dos apó stolos, já que atribuem a crença dos
apó stolos, sobre tais doutrinas, a “crenças errô neas de uma época
inculta e inadequada”. Isto, nã o obstante, nã o vale para o
testemunho de que estas passagens, quando interpretadas
criticamente, nã o admitem outra interpretaçã o. Seria preferível,
portanto, afirmar com os racionalistas que as Escrituras ensinam
sim estas doutrinas, mas que elas nã o têm autoridade sobre nó s, do
que professar que as aceitamos enquanto buscamos uma forma de
anular a força de seus argumentos.
Já demonstramos que nã o é difícil interpretar de maneira
consistente com a nossa doutrina as passagens que os arminianos
apresentam — mas é impossível conciliar a doutrina arminiana com
nossas passagens, a menos que se lhes faça violência. Além disso,
nossa doutrina nã o pode ser rejeitada aduzindo meramente outras
passagens que aparentemente as contradizem, já que isto só nos
daria uma Bíblia que contradiz a si pró pria.
À luz da exegese científica moderna, podemos ver que as objeçõ es
contra a teologia reformada sã o de um tipo emocional e filosó fico, e
nã o exegético. Se todos os crentes optassem por interpretar a
linguagem das Escrituras de acordo com os princípios de
interpretaçã o aceitos, a fé cristã seria muito mais harmoniosa. No
dizer de Cunningham, “nossos opositores só podem argumentar com
certa plausibilidade quando interpretam passagens isoladas, ou
quando lidam com certas classes de passagens, passando por alto ou
relegando a um lugar secundá rio a evidência bíblica geral
relacionada com o tema. Quando damos uma olhadela geral
naqueles ensinos da Bíblia, tanto literais quanto figurativos; cujo
claro propó sito é dar-nos a conhecer a natureza das causas e as
consequências da morte de Cristo; vendo-as em combinaçã o umas
com as outras; e quando conseguimos entender, em menor ou maior
grau, o que estas ensinam, nã o sobra lugar à dú vida quanto à s
conclusõ es gerais que devemos adotar”. [28]
Enquanto sustentamos o princípio de que as Escrituras sã o a ú nica
autoridade em assuntos de doutrina, o sistema calvinista
permanecerá como o ú nico que de modo adequado lida com os
temas de Deus, do homem e da redençã o.    

CAPÍTULO IX. ADVERTÊNCIA CONTRA A ESPECULAÇÃO


INDÉBITA
 
Neste ponto formularemos algumas advertências quanto à
especulaçã o e indevida curiosidade ao lidarmos com esta sublime
doutrina da predestinaçã o. Pode ser que a melhor maneira de fazê-
lo seja citando as palavras de Calvino que aparecem na primeira
seçã o de sua apresentaçã o deste tema: “A discussã o da
predestinaçã o — em si um tema um tanto intrincado — se
emaranha de maneira perigosa pela curiosidade dos homens. E nã o
há barreira que impeça essa curiosidade de extraviar-se por
labirintos proibidos, ou que se eleve além de sua esfera pró pria, e é
como se estivesse determinada a nã o deixar o segredo de Deus sem
explorar ou esquadrinhar... Porque sabemos que, quando
houvermos excedido os limites da Palavra, estaremos entrando por
um caminho tortuoso e tedioso, no qual nã o podemos fazer outra
coisa senã o errar; resvalar e tropeçar a cada passo. Tenhamos
presente, pois, que nã o é menos loucura desejar ter maior
conhecimento da predestinaçã o do que o que nã o é revelado na
Palavra de Deus, do que desejar andar por caminhos intransitá veis,
ou querer enxergar no meio das trevas. E nã o nos envergonhemos
de ignorar algo, se nisso houver uma douta ignorâ ncia”. [29]
Cabe-nos assinalar que nã o temos a obrigaçã o de “explicar” estas
verdades, mas apenas declarar o que Deus revelou em sua Palavra, e
defender estas doutrinas das objeçõ es e interpretaçõ es incorretas
até onde nos for possível. Na pró pria natureza do caso, tudo o que
pudermos conhecer destas profundas verdades é o que o Espírito
quis revelar-nos; tendo certeza, contudo, que tudo o que Deus
revelou é verdadeiro e, portanto, deve ser crido, ainda que nã o seja
possível sondá -lo em suas profundezas com a nossa tacanha razã o.
Devido à nossa falta de entendimento no que tange aos propó sitos
divinos, jamais podemos constituir-nos conselheiros de Deus. O
salmista afirma: “Os teus juízos sã o um grande abismo”, dando a
entender que a tentativa de penetrar os juízos de Deus é como a
tentativa de cruzar o mar imenso a nado. A veracidade do fato é que
o homem nã o conhece o bastante para justificar as suas tentativas
de explicar os mistérios do governo de Deus.
A importâ ncia do tema discutido deveria induzir-nos a seguir em
frente com a mais profunda reverência e precauçã o. Todavia, muito
embora seja certo que os mistérios de Deus têm de ser tratados com
extremo cuidado; e que as especulaçõ es desautorizadas e
presunçosas, no tocante à s coisas divinas, têm de ser evitadas, nã o
obstante, se temos de apresentar o evangelho em sua pureza e
plenitude, temos também de precaver-nos de nã o privar os crentes
de tudo o que as Escrituras ensinam sobre a predestinaçã o. Nã o se
deve estranhar, contudo, se algumas dessas verdades sã o
pervertidas e tergiversadas pelos ímpios. Nã o importa quã o
claramente as Escrituras apresentem algum tema como, por
exemplo, que Deus subsista em três Pessoas, que Deus conheça de
antemã o todo o curso dos acontecimentos mundiais, que seu plano
inclua o destino de cada pessoa, a mente trevosa sempre
considerará absurdas tais verdades. No entanto, ainda que nã o
possamos conhecer mais do que a Deus aprouve revelar-nos acerca
da predestinaçã o, é importante que cheguemos a conhecer o que nos
foi revelado, já que, se nã o fosse da vontade de Deus que
chegá ssemos a conhecer essas verdades, ele poderia optar por nã o
revelá -las a nó s. Portanto, onde as Escrituras nos guiam podemos
prosseguir com segurança.
 

SEÇÃO II. OS CINCO PONTOS DO CALVINISMO


CAPÍTULO X. INCAPACIDADE TOTAL
 
 
1. Exposiçã o da doutrina. 2. O alcance e os efeitos do pecado original.
3. Os defeitos nas virtudes comuns dos homens. 4. A queda do
homem. 5. O princípio de representaçã o. 6. A bondade e a
severidade de Deus. 7. Prova bíblica.
 

1. Exposição da doutrina
 
A doutrina da incapacidade total aparece na Confissão de
Westminster da seguinte maneira:
O homem, devido à sua queda a um estado de pecado, perdeu
completamente toda a capacidade para querer algum bem
espiritual que acompanhe a salvaçã o; assim é que, como
homem natural que está inteiramente oposto ao bem e morto
no pecado, ele nã o pode, por sua pró pria força, converter-se ou
preparar-se para isso. [30]
Paulo, Agostinho e Calvino tomam como ponto de partida o fato de
que toda a humanidade pecou em Adã o e que todos os homens sã o
“inescusá veis” (Rm 2.1). Paulo enfatiza repetidamente que estamos
mortos em delitos e pecados, longe de Deus e sem esperança. Ele
lembra aos crentes de É feso que antes de receberem o evangelho
eles se encontravam “sem Cristo, longe da cidadania de Israel e
alheios aos pactos da promessa, sem esperança e sem Deus no
mundo” (Ef 2.12). Podemos notar, neste versículo, a quíntupla
ênfase que o apó stolo faz, delineando frase apó s frase para acentuar
esta verdade.
 
2. O alcance e os efeitos do pecado original
A doutrina da incapacidade total, que declara que o homem está
morto em pecado nã o significa que todos os homens sã o igualmente
maus; nem que algum homem seja tã o mau quanto possível, nem
que exista alguma pessoa completamente destituída de virtude; nem
que a natureza humana seja em si mesma má ; nem que o espírito do
homem esteja inativo; nem muito menos que o corpo esteja morto. O
que na realidade significa é que o homem, desde a queda, se
encontra sob a maldiçã o do pecado; que é movido por princípios
pecaminosos; e que é incapaz de amar a Deus ou de fazer algo que
tenha de merecer a salvaçã o. Sua corrupçã o é extensiva, porém nã o
necessariamente intensiva.
É neste sentido que o homem, desde a queda, “se encontra
totalmente indisposto, incapacitado e oposto a todo bem e inclinado
a todo mal”. Sua vontade está inclinada contra Deus de forma
permanente, e de maneira instintiva e voluntá ria se volve para o
mal. Ele já nasce enfadado de Deus e peca por decisã o pró pria. Sua
incapacidade nã o consiste na incapacidade de exercer sua vontade
livremente, e sim na incapacidade de querer exercer voliçõ es santas.
Foi este fato que levou Lutero a afirmar que “o livre-arbítrio é um
termo vazio, cuja realidade se perdeu. E uma liberdade perdida, de
acordo com a minha gramá tica, nã o é liberdade”. [31] No que diz
respeito à sua salvaçã o, o homem nã o regenerado nã o possui a
liberdade de escolher entre o bem e o mal, mas somente entre um
mal maior e um menor, o que na realidade nã o é livre-arbítrio. O fato
de que o homem caído ainda tenha habilidade para fazer algumas
obras moralmente boas em si mesmas nã o prova que ele possa fazer
obras que mereçam a salvaçã o.
O homem tem vontade livre, porém nã o pode gerar o amor de Deus
em seu coraçã o. A vontade do homem é livre no sentido de que ela
nã o é controlada por nenhuma força fora do pró prio homem. Assim
como uma ave com uma asa quebrada é “livre” para voar, porém
incapaz de fazê-lo, da mesma maneira o homem natural é livre para
ir a Deus, porém incapaz de fazê-lo. Como se arrependerá de seu
pecado quando na verdade o ama? Quando se volverá para Deus se o
odeia? Essa é a incapacidade da vontade que caracteriza o homem
natural. Jesus disse: “O julgamento é este: que a luz veio ao mundo, e
os homens amaram mais as trevas do que a luz; porque suas obras
eram má s” (Jo 3.19). E em outro lugar, ele disse: “Contudo, nã o
quereis vir a mim para terdes vida” (Jo 5.40). A ruína do homem se
deve principalmente à sua pró pria vontade perversa. Não pode ir a
Deus porque não quer . Suficiente auxílio lhe é provido se tã o
somente o aceitasse. Paulo nos diz: “Por isso, o pendor da carne é
inimizade contra Deus, pois nã o está sujeito à lei de Deus, nem
mesmo o pode estar” (Rm 8.7).
Supor-se que o homem tem a capacidade de amar e, portanto, tem a
capacidade de amar a Deus é tã o absurdo como supor que, já que a
á gua tem a capacidade de fluir, por isso tem a capacidade de fluir
para cima; ou arrazoar que, só porque uma pessoa tem poder para
lançar-se do alto de um precipício, por isso ela tem igual poder para
transportar-se de um abismo para cima.
O homem caído nada vê que seja desejá vel “naquele que é
totalmente amá vel, o mais distinguido entre dez mil”. Poderá talvez
admirar a Jesus como um homem, porém jamais o reconhecerá
como Deus, e resistirá com todas as suas forças as santas influências
externas do Espírito. O pecado, e nã o a justiça, converteu-se em seu
meio natural, de modo que nã o existe nele nenhum amplexo pela
salvaçã o.
A natureza decaída do homem dá lugar à mais obstinada cegueira,
insensibilidade e oposiçã o à s coisas de Deus. Sua vontade está sob o
controle de um entendimento entenebrecido, de modo que confunde
o doce com o amargo, e o amargo com o doce; o bem com o mal, e o
mal com o bem. No que diz respeito à s suas relaçõ es com Deus, ele
só deseja o mal, muito embora o deseje livremente. De fato, a
espontaneidade e a servidã o coexistem.
Em outras palavras, o homem caído está tã o moralmente cego, que
de maneira uniforme prefere e escolhe o mal em vez do bem, assim
como agem os anjos apó statas ou demô nios. No entanto, quando o
crente alcançar um estado de plena santificaçã o, entã o preferirá e
escolherá o bem de um modo uniforme, tal como fazem os santos
anjos. Ambos os estados sã o consistentes com a liberdade e a
responsabilidade dos agentes morais. No entanto, o homem caído,
muito embora aja de uma maneira uniforme, jamais é obrigado a
pecar, senã o que peca livremente e se deleita nisto. Sua disposiçã o e
seus desejos se acham inclinados para o mal, e ele peca consciente e
voluntariamente, sendo movido espontaneamente por seu pró prio
coraçã o. Esta inclinaçã o natural ou propensã o para o mal é tã o
característica da natureza decaída e corrupta do homem que, no
dizer de Jó , ele “bebe a iniquidade como á gua” (Jó 15.16).
Lemos que “o homem natural nã o aceita as coisas do Espírito de
Deus, porque lhe sã o loucura; e nã o pode entendê-las, porque elas se
discernem espiritualmente” (1Co 2.14). É -nos impossível
compreender como uma pessoa que, usando seu senso comum e
lendo as simples palavras desta passagem das Escrituras, ainda
pode defender a doutrina da capacidade humana. O homem, em seu
estado natural, nã o pode nem mesmo ver o reino de Deus, muito
menos entrar nele. Uma pessoa inculta pode ver uma bela obra de
arte como mero objeto da visã o, porém nã o pode apreciar a
excelência dessa obra. Igualmente pode ver os nú meros de uma
complexa equaçã o matemá tica, porém esta é destituída de
significado para ele. Uma tropa e o gado bovino podem ver o mesmo
pô r do sol, ou qualquer outro fenô meno da natureza que os homens
veem, porém estã o cegos para a beleza artística de tais fenô menos.
Assim também se dá com o homem nã o regenerado quando lhe é
apresentado o evangelho da cruz. Pode ser que este até obtenha
certo conhecimento intelectual das histó rias e doutrinas da Bíblia,
porém nã o tem discernimento espiritual de sua excelência, e jamais
se deleitará neles. Um mesmo Cristo é para uns sem atrativo nem
formosura para que o desejem; todavia, para outros, ele é o Príncipe
da vida e o Salvador do mundo, Deus manifestado na carne, ao qual é
impossível nã o adorar, amar e obedecer.
No entanto, a incapacidade total surge nã o meramente de uma
natureza moral pervertida, mas também em virtude da ignorâ ncia.
Paulo escreveu que os gentios vivem “na vaidade dos seus pró prios
pensamentos, obscurecidos de entendimento, alheios à vida de Deus
por causa da ignorâ ncia em que vivem, pela dureza do seu coraçã o”
(Ef 4.17, 18). E, reiterando, “certamente, a palavra da cruz é loucura
para os que se perdem, mas para nó s, que somos salvos, poder de
Deus” (1Co 1.18). Ao escrever que as coisas que “nem olhos viram,
nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coraçã o humano o
que Deus tem preparado para aqueles que o amam”, Paulo fazia
referência, nã o à s gló rias do estado celestial como comumente se
pensa, mas à s realidades espirituais nesta vida, as quais nã o podem
ser vistas pela mente nã o regenerada, como se demonstra
claramente pelas palavras do versículo seguinte: “Mas Deus no-lo
revelou pelo Espírito; porque o Espírito de Deus a todas as coisas
perscruta, até mesmo as profundezas de Deus” (1Co 2.9, 10). Em
certa ocasiã o, Jesus observou: “Ninguém conhece o Filho senã o o
Pai; e ninguém conhece o Pai senã o o Filho e aquele a quem o Filho o
quiser revelar” (Mt 11.27). Somos informados claramente que o
homem, em sua natureza nã o regenerada e entenebrecida, nã o
conhece a Deus como tal, e que o Filho é soberano em escolher os
que hã o de alcançar este conhecimento salvador de Deus.
O homem decaído nã o tem poder para discernir as coisas
espirituais. Seu coraçã o ou entendimento está cegado, e sua
inclinaçã o e sentimentos estã o pervertidos. E já que este estado
mental é inerente, como uma condiçã o da natureza do homem, está
além do poder de sua vontade mudá -la. Ao contrá rio, esse estado
controla suas afeiçõ es e voliçõ es. O efeito da regeneraçã o pode ser
visto com clareza na comissã o divina que Paulo recebeu em sua
conversã o, quando lemos que ele foi enviado aos gentios “para
abrires os olhos e os converteres das trevas para a luz e do poder de
Sataná s para Deus” (At 26.18).
Jesus ensinou a mesma verdade, usando uma figura diferente,
quando disse aos fariseus: “Qual a razã o por que nã o compreendeis
a minha linguagem? É porque sois incapazes de ouvir a minha
palavra. Vó s sois do diabo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe
os desejos” (Jo 8.43, 44). Eles nã o podiam entender, nem mesmo
ouvir as suas palavras de maneira inteligível. Para eles, suas
palavras nã o passavam de necedade, de loucura; e o acusaram de
estar possesso de demô nios (v. 48, 52). Somente seus discípulos
podiam conhecer a verdade (v. 31, 32); os fariseus eram filhos do
diabo (v. 42, 44) e escravos do pecado (v. 34), muito embora
cressem que eram livres (v. 33).
Em outra ocasiã o, Jesus ensinou que uma á rvore boa nã o pode
produzir fruto ruim, nem uma á rvore ruim produzir fruto bom. E
visto que esta similitude de á rvores boas e ruins representa homens
bons e maus, o que significa senã o que uma classe de homens é
governada por um grupo de princípios bá sicos, enquanto outra
classe é governada por outro grupo de princípios bá sicos? Os frutos
destas duas á rvores sã o atos, palavras e pensamentos, os quais, se
sã o bons, procedem de uma natureza boa; e, se maus, procedem de
uma natureza má . É impossível que uma mesma raiz produza fruto
de classes distintas. Daí negarmos que exista no homem um poder
que lhe permita agir de ambas as maneiras sob a base ló gica de que
a virtude e o vício nã o podem originar-se de uma mesma condiçã o
moral. Afirmamos que as açõ es humanas relacionadas com Deus
procedem ou de uma condiçã o moral que necessariamente produza
boas açõ es ou de uma condiçã o moral que necessariamente produza
açõ es ruins.
Nas palavras de Warburton: “Na Epístola aos Efésios, Paulo afirma
que a alma de cada indivíduo, antes de ser vivificada pelo Espírito de
Deus, jaz morta em delitos e pecados. Ora, certamente se admitirá
que estar morto, e morto em pecado, é clara e positiva evidência de
que nã o há aptidã o nem poder para realizar alguma açã o espiritual.
Se o homem está morto, num sentido natural e físico, prontamente
se admitirá que nã o há nenhuma possibilidade de que ele seja capaz
de realizar quaisquer açõ es físicas. Um cadá ver nã o pode agir de
maneira alguma, e um homem que afirmasse o contrá rio seria tido
como tendo abandonado seus sentidos. Da mesma maneira, estar
morto em pecado é evidência clara e positiva de que nã o existe
aptidã o ou poder algum para realizar obras espirituais. Portanto, a
doutrina da incapacidade moral do homem repousa sobre evidência
bíblica só lida”. [32]
E Warfield: “Com base no princípio de que nenhuma coisa limpa
pode se originar do que é impuro (Jó 14.4), todos os nascidos de
mulher sã o considerados ‘abominá veis e vis’, os quais só se deixam
atrair pela iniquidade (Jó 15.14-16). Portanto, os homens nã o têm
que esperar até que chegue à idade de açã o responsá vel. Ao
contrá rio, sã o apó statas desde a madre; e tã o logo nascem já se
extraviam, falando mentiras (Sl 58.3); inclusive sã o formados na
iniquidade e concebidos em pecado (Sl 51.5). A inclinaçã o de seu
coraçã o é má desde a juventude (Gn 8.21); e é do coraçã o que emana
a vida (Pv 4.23; 20.11). As obras pecaminosas sã o, portanto, a
expressã o do coraçã o natural, o qual é enganoso mais que todas
coisas, e excessivamente corrupto (Jr 17.9)”. [33]
Ezequiel apresenta esta mesma verdade em linguagem grá fica, ao
nos fornecer o quadro do recém-nascido abandonado em seu sangue
e deixado para morrer, mas o qual o Senhor graciosamente
encontrou e cuidou (cap. 16).
A doutrina do pecado original pressupõ e que os homens caídos
possuem o mesmo tipo e o mesmo grau de liberdade para pecar sob
a influência de uma natureza corrupta que o diabo e seus demô nios
possuem; ou a que possuem os santos na gló ria e os santos anjos
para agir retamente sob a influência de uma natureza santa.
Equivale dizer, os homens e os anjos agem em conformidade com a
sua natureza. Assim como os santos e os anjos estã o confirmados em
santidade — isto é, controlados por uma natureza totalmente
inclinada à retidã o e oposta ao pecado —, da mesma sorte a
natureza dos homens caídos e dos demô nios é tal que nã o podem
realizar sequer uma só obra que proceda de motivos retos para com
Deus. Daí a necessidade de Deus, soberanamente, ter que mudar o
cará ter da pessoa através da regeneraçã o.
No Antigo Testamento, as cerimô nias da circuncisã o dos meninos e a
purificaçã o da mã e tinham como propó sito ensinar que o homem
vem ao mundo em pecado, e que desde a queda a natureza humana
está corrompida a partir de sua pró pria raiz. Paulo ensinou esta
verdade de maneira ainda mais enfá tica em 2 Coríntios 4.3, 4: “Mas,
se o nosso evangelho ainda está encoberto, é para os que se perdem
que está encoberto, nos quais o deus deste século cegou o
entendimento dos incrédulos, para que nã o lhes resplandeça a luz
do evangelho da gló ria de Cristo, o qual é a imagem de Deus”.
Equivale dizer, os homens caídos, estando alienados das operaçõ es
do Espírito de Deus, se encontram sob o governo de Sataná s. Estã o
cativos à vontade deste (2Tm 2.26). Enquanto “o homem forte e
plenamente armado” nã o for derrotado pelo “mais forte que ele”,
consegue manter seu reino em paz e seus cativos fazem
espontaneamente a sua vontade. Mas o que é “mais forte que ele” já
o venceu, despojou-o de todas as suas armas e libertou uma parte de
seus cativos (Lc 11.21, 22). Agora Deus exerce o direito de deixar em
liberdade aos que ele bem quer; e o que nasceu de novo é um desses
pecadores resgatados daquele reino. 
As Escrituras ensinam que o homem caído é cativo e escravo
voluntá rio do pecado e totalmente incapaz de escapar de sua
servidã o e corrupçã o. Ele é incapaz de entender e muito menos de
fazer as coisas de Deus. Há o que poderíamos denominar de “a
liberdade da servidã o” — um estado no qual o indivíduo é livre,
porém somente para fazer a vontade de seu senhor, que neste caso é
o pecado. Foi a isto que Jesus se referiu quando disse: “todo o que
comete pecado é escravo do pecado” (Jo 8.34).
Por ser a corrupçã o do homem tã o profunda, está além de seu poder
purificar-se a si mesmo. Sua ú nica esperança de restauraçã o jaz,
portanto, numa transformaçã o do coraçã o, o que só pode ser
efetuado pelo poder soberano e re-criador do Espírito Santo,
operando quando e onde e como bem quer. Seria um absurdo menor
tentar tirar á gua de um barco furado sem antes reparar seus furos
do que reformar o homem nã o regenerado sem antes mudar o seu
coraçã o; ou, esperar que o etíope mude sua pele e o leopardo
remova suas manchas do que esperar que aquele que está habituado
à prá tica do mal mude o seu caminho. Denominamos de
“regeneraçã o” esta mudança de morte espiritual para a vida
espiritual. As Escrituras usam vá rios termos ao se referir a essa
mudança como, por exemplo, “regeneraçã o”, “retorno à vida”,
“chamado das trevas para a luz”, “vivificaçã o”, “renovaçã o”,
“remoçã o do coraçã o de pedra e a doaçã o de um coraçã o de carne”,
etc., e o apresentam como obra exclusiva do Espírito Santo. Como
resultado dessa mudança, o homem vê a verdade e a aceita
deleitosamente. Seus instintos e impulsos mais íntimos sã o
transferidos para a obediência à lei, obediência esta que é a
espontâ nea expressã o de sua nova natureza. A Bíblia nos informa
que a regeneraçã o é efetuada pelo mesmo poder sobrenatural que
Deus operou em Cristo quando o levantou dentre os mortos (Ef
1.18-20). O homem nã o possui o poder de regenerar a si pró prio; e,
até que se dê tal mudança interior, ele nã o poderá convencer-se da
veracidade do evangelho, mesmo diante de todos os testemunhos
externos que porventura lhe sejam apresentados. “Se nã o ouvem a
Moisés e aos profetas, tampouco se deixarã o persuadir, ainda que
alguém ressuscite dentre os mortos” (Lc 16.31).
 

3. Os defeitos nas virtudes comuns dos homens


O homem nã o regenerado pode, em razã o da graça comum, amar
aos seus familiares e ser bom cidadã o. É capaz também de doar
muito dinheiro para a construçã o de um hospital, porém nã o pode
dar nem sequer um simples copo d’á gua fria a um discípulo em
nome de Jesus . Se tal homem fosse um ébrio, é possível que
conseguisse abster-se da bebida por razõ es utilitá rias; todavia,
jamais poderá fazê-lo por amor a Deus. Todas as suas virtudes
comuns ou boas obras têm um defeito fatal, a saber, os motivos que
as geram nã o têm como fim glorificar a Deus — um defeito tã o fatal
que obscurece totalmente todo o elemento de bem no homem. Nã o
importa quã o boas sejam tais obras em si mesmas se aquele que as
faz nã o estiver em harmonia com Deus; nenhuma dessas obras será
espiritualmente aceitá vel. Além disso, as boas obras do nã o
regenerado carecem de um fundamento está vel, pois sua natureza
ainda nã o foi transformada; assim, tã o naturalmente e certo o porco
lavado volta a revolver-se na lama, da mesma maneira cedo ou tarde
o nã o regenerado volta aos seus caminhos maus.
Na esfera moral, constitui-se uma regra que a moralidade do
indivíduo preceda a moralidade da açã o. Pode ser que alguém seja
há bil em línguas humanas e angélicas, mas se nã o possui o princípio
interior do amor a Deus, virá a ser como o metal que ressoa ou o
instrumento musical que retine. E se o tal repartir todos os seus
bens a fim de alimentar os pobres, e caso entregue seu corpo para
ser queimado, isso de nada lhe valerá . Como seres humanos,
sabemos que um ato de serviço que nos é prestado, por qualquer
motivo utilitá rio que seja, por alguém que em seu coraçã o é nosso
inimigo, nã o merece nosso amor e aprovaçã o. A afirmaçã o das
Escrituras de que “sem fé é impossível agradar a Deus” encontra sua
explicaçã o no fato de que a fé é o fundamento de todas as demais
virtudes, e nada é aceitá vel a Deus que nã o emane de sentimentos
retos.
Um ato moral tem de ser julgado pela norma do amor para com
Deus, sendo esse amor, por assim dizer, a pró pria alma de toda
virtude, e o qual Deus nos confere unicamente pela graça. Agostinho
nã o negava a existência de virtudes naturais, tais como a moderaçã o,
a honestidade, a generosidade, as quais possuem certo mérito entre
os homens; porém ele traçou uma linha clara de distinçã o entre
essas virtudes e as graças cristã s específicas (a fé, o amor, a gratidã o
a Deus, etc.), as quais sã o na realidade os ú nicos bons frutos que têm
valor diante de Deus.
Esta distinçã o é ilustrada com clareza em um exemplo dado por W.
D. Smith. Diz ele: “Em um bando de piratas se podem encontrar
muitas coisas que sã o boas em si mesmas. Apesar de estarem eles
em franca rebeliã o contra as leis do governo, os piratas têm suas
pró prias leis e regulamentos, aos quais obedecem estritamente.
Entre eles se encontram valor e fidelidade, além de muitas outras
coisas em que acreditam como piratas. É possível que igualmente
façam muitas outras coisas que as leis do governo requerem, ainda
que, no entanto, nã o as praticam porque o governo o exige, mas em
obediência aos seus pró prios regulamentos. Por exemplo, no que
respeita ao governo e ao princípio geral, toda a sua vida outra coisa
nã o é senã o a mais vil desonestidade. Ora, é evidente que, enquanto
prossigam em sua rebeliã o contra o governo, este nã o poderá aceitá -
los como cidadã os. Seu primeiro passo deve ser abandonar a sua
rebeliã o, reconhecer a sua lealdade ao governo e rogar por
misericó rdia. De igual modo, todos os homens, em seu estado
natural, sã o rebeldes para com Deus; e ainda que façam muitas das
coisas que a lei de Deus demanda, as quais recebem o encô mio dos
homens, contudo nada fazem levando em consideraçã o a Deus e à
sua lei. Ao contrá rio, os regulamentos da sociedade, o respeito pela
opiniã o pú blica, os interesses egoístas, seu pró prio cará ter ante os
olhos do mundo, ou algum motivo profano ou vil, reina supremo; e
Deus, a quem devem render seu coraçã o e sua vida, é
completamente rejeitado e suas demandas e conselhos sã o vilmente
menosprezados, manifestando-se assim a obstinada rebeliã o e
desobediência do seu coraçã o. É ó bvio que, enquanto o coraçã o
permanecer nesse estado, o homem continuará sendo um rebelde
contra Deus e nã o poderá fazer nada que lhe seja aceitá vel. O
primeiro passo deve ser abandonar a rebeliã o, arrepender-se de
seus pecados, volver-se para Deus e rogar o perdã o e a reconciliaçã o
por meio do Salvador. No entanto, ele nã o deseja fazer isso até que
sua vontade seja transformada. Ele vive enamorado de seus pecados
e os continuará amando até que o seu coraçã o seja transformado”.
Smith continua dizendo que as boas açõ es de pessoas nã o
regeneradas “em si mesmas nã o sã o pecaminosas, mas pecaminosas
por defeito. Ditas obras carecem do princípio de que elas só podem
ser justas aos olhos de Deus. No caso dos piratas, é fá cil ver como
todas as suas obras sã o pecaminosas contra o governo. Enquanto
continuarem como piratas, a navegaçã o, a reparaçã o ou o aparelho
de seu barco, e inclusive sua comida e sua bebida, sã o pecaminosos
aos olhos do governo, já que tais obras sã o realizadas unicamente
com o propó sito de continuar sua carreira de pirata, e sã o parte de
sua vida rebelde. Da mesma forma sucede no tocante ao pecador.
Enquanto seu coraçã o continua sendo mau, todas as suas açõ es
estarã o contaminadas aos olhos de Deus, inclusive as suas má s
ocupaçõ es ordiná rias. A simples e inequívoca linguagem de Deus é:
‘Até mesmo os pensamentos do ímpio sã o pecado’ (Pv 21.4)”. [34]
É a essa incapacidade que as Escrituras se referem quando afirmam
que “os que vivem segundo a carne nã o podem agradar a Deus” (Rm
8.8); e “tudo o que nã o provém de fé é pecado” (Rm 14.23); e “sem fé
é impossível agradar a Deus” (Hb 11.6). Inclusive as pró prias
“virtudes” do homem nã o regenerado sã o como flores colhidas e
murchas. Jesus disse a seus discípulos: “Em verdade vos digo que, se
a vossa justiça nã o for maior que a dos escribas e fariseus, nã o
entrareis no reino dos céus”. E visto que tais virtudes sã o dessa
natureza, sã o apenas temporais. Aquele que as possui é semelhante
à semente que cai nos pedregulhos, a qual pode ser que brote
prometendo dar fruto, porém em pouco tempo murcha ao sabor do
sol, porque é destituída de raiz.
Do que se tem dito se depreende também o fato de que a salvaçã o
provém absoluta e exclusivamente da graça — Deus é livre,
conforme as infinitas perfeiçõ es de sua natureza, para nã o salvar
ninguém ou para salvar uns poucos, ou muitos, ou todos, segundo o
soberano beneplá cito de sua vontade. Igualmente se depreende o
fato de que a salvaçã o nã o está baseada em nenhum mérito
existente na criatura, e que, portanto, depende de Deus, e nã o dos
homens, quem participa e quem nã o participa da vida eterna. Deus
age soberanamente para salvar alguns e deixar os demais sofrerem
a justa recompensa de seus pecados. Os pecadores, devido à sua
completa incapacidade, sã o comparados a mortos e a ossos secos.
Nisto, todos sã o iguais. A eleiçã o de alguns para a vida eterna é tã o
soberana como se Cristo passasse por um cemitério e ordenasse a
um aqui e a outro ali a saírem de seus sepulcros; a razã o de
restaurar ele a vida de um e deixar o outro em seu tú mulo se
encontraria tã o somente em sua boa vontade, e nã o nos mortos. Daí
a afirmaçã o de que fomos predestinados segundo o mero
beneplá cito de sua vontade, e nã o conforme as nossas boas
inclinaçõ es; e para que fô ssemos santos, e nã o por sermos santos (Ef
1.4,5). “Posto que todos os homens, sem exceçã o, só merecem a ira e
a maldiçã o de Deus, o dom de seu Filho unigênito, que morreu no
lugar dos malfeitores, como o ú nico método possível de expiar a
culpa destes, é a mais estupenda exibiçã o de favor imerecido e amor
pessoal que o universo jamais presenciou.” [35]
 

4. A queda do homem
A queda da raça humana a um estado de pecado e miséria é a base e
fundamento do sistema de redençã o apresentado nas Escrituras,
bem como do sistema que ensinamos. Somente os calvinistas
parecem levar a sério a doutrina da queda. Todavia, a Bíblia declara,
do princípio ao fim, que o homem está perdido — totalmente
perdido —, e que se encontra em um estado de culpa e depravaçã o
do qual ele é totalmente incapaz de se livrar por si pró prio, no qual
Deus, com toda a justiça, poderia ter deixado perecer. No Antigo
Testamento, o relato concernente à queda se encontra no terceiro
capítulo de Gênesis; e no Novo Testamento podem-se encontrar
referências diretas a este fato em Romanos 5.12-21; 1 Coríntios
15.22; 2 Coríntios 11.3; 1 Timó teo 2.13, entre outras, ainda que o
Novo Testamento enfatize nã o o fato histó rico de que o homem
apostatou; mas, antes, o fato ético de que o homem é um ser decaído
[ou apostatado de Deus]. Os escritores do Novo Testamento
interpretaram literalmente este fato e basearam nele sua teologia.
Para Paulo, Adã o foi tã o real como Cristo o foi, e a queda tã o real
quanto a redençã o. É possível que alguns sustentem que os
apó stolos estavam equivocados, crendo em tal coisa; porém nã o
podem negar que eles criam justamente assim.
O Dr. A. A. Hodge, a quem tomaremos o privilégio de citar,
apresentou muito bem a doutrina da queda no seguinte pará grafo:
Uma vez que, na pró pria natureza do caso, nã o se podia dar
uma prova justa a cada novo membro da raça humana,
pessoalmente, já que ao nascer cada membro é uma criatura
nã o desenvolvida, Deus, como o guardiã o e para os melhores
interesses da raça, provou sob as mais favorá veis
circunstâ ncias a todos os seus membros na pessoa de Adã o,
constituindo a este o representante e substituto pessoal de
cada um de seus descendentes naturais. Deus estabeleceu com
ele um pacto de obras e de vida; isto é, lhe fez uma promessa
de vida eterna, a ele e à queles a quem ele representava, sob a
condição de obediência perfeita — isto é, por meio de obras. A
obediência exigida era uma prova específica durante um
período de tempo, a qual haveria de concluir necessariamente,
ou com a recompensa mediante obediência, ou com a morte
mediante desobediência. A “recompensa” prometida era a vida
eterna, uma graça que havia de incluir muito mais do que
originalmente fora conferido a Adã o, em sua criaçã o; uma
dá diva que haveria elevado a raça humana a uma condiçã o de
irrevogá vel santidade e felicidade para sempre. O “castigo”
com que foi ameaçado e ao qual logo a seguir foi submetido foi
a morte: “No dia em que dele comeres certamente morrerá s”.
A natureza dessa morte só pode ser determinada levando em
conta tudo o que fosse envolvido na maldiçã o a que ele foi
submetido. Sabemos que esta maldiçã o incluía o imediato
afastamento do favor divino e da comunhã o espiritual com
Deus da qual dependia a vida do homem, isto é, a alienaçã o e a
maldiçã o de Deus, o senso de culpa, a corrupçã o da natureza,
as consequentes transgressõ es atuais, os sofrimentos da vida,
a dissoluçã o do corpo, os sofrimentos do inferno. [36]
O termo morte , em seu sentido mais amplo, abarca todas as
consequências do pecado de Adã o. Paulo, em síntese, declara que “o
salá rio do pecado é a morte”. O significado pleno da morte com que
Adã o foi ameaçado pode ser apreciado levando em conta todas as
consequências má s que desde entã o sobrevieram ao homem. A
morte com que ele foi ameaçado era, em primeira instâ ncia, a morte
espiritual, ou a separaçã o eterna de Deus; e a morte física, ou morte
do corpo, nã o é mais que um dos primeiros frutos e das
consequências menos importantes, relativamente falando, desse
castigo maior. Adã o nã o morreu fisicamente até seus 930 anos
depois da queda, porém morreu espiritualmente no mesmo instante
em que caiu em pecado. Morreu tã o realmente como o peixe quando
tirado da á gua, ou como a planta quando é arrancada da terra.
Geralmente abrigamos uma ideia equivocada no tocante à
queda de Adã o. Ele nã o foi tentado por Sataná s de maneira
direta. Eva foi tentada e caiu, deixando-se enganar. Mas temos
evidência inspirada com que provamos que Adã o nã o foi
enganado (1Tm 2.14). Ele nã o foi apanhado nos engodos de
Sataná s. O que ele fez, o fez de maneira voluntá ria e
deliberada, decidindo seguir sua esposa em seu ato de
pecaminosa desobediência, em plena consciência do que
estava fazendo e com perfeita compreensã o das sérias
consequências envolvidas. Foi essa voluntariedade que
imprimiu tã o nefando cará ter ao pecado do homem. Tendo
sido Adã o atacado por Sataná s e forçado a sucumbir mediante
um poder irresistível, talvez nó s também teríamos buscado
justificativas para nossa queda. Mas quando, com olhos bem
abertos e com mente perfeitamente cô nscia e completamente
avisada da horrível natureza de seu ato, ele usou seu livre-
arbítrio para responder à s demandas da criatura em desafio
ao Criador; entã o nã o há justificativa para sua queda. Seu ato
foi o de rebeliã o voluntá ria e desafiante através da qual
transferiu abertamente sua lealdade de Deus para Sataná s. [37]
E porventura houve uma queda, uma terrível queda? Quanto mais
observamos a natureza humana como se manifesta ao nosso redor,
mais fá cil somos levados a crer nesta grande doutrina do pecado
original. Considere-se o mundo em sua totalidade, cheio como é de
homicídios, roubos, orgias, guerras, lares destruídos e crimes de
toda espécie. As milhares de formas engenhosas que o crime e o
vício têm assumido nas mã os de seus perpetradores constituem
vivos relatos desta horrenda realidade. Uma grande porçã o da raça
humana atual, bem como em todas as épocas pretéritas, vive e
morre nas trevas do paganismo, alienada de Deus e sem esperança.
O modernismo e a negaçã o de toda espécie permeiam a pró pria
igreja. Inclusive “a imprensa religiosa” manifesta marcantes traços
de incredulidade. Observe-se o desinteresse geral para com a
oraçã o, ou o estudo da Bíblia, ou para com as coisas espirituais.
Acaso o homem nã o está agora, como seu progenitor Adã o, fugindo
da presença de Deus, evitando a comunhã o com Deus, nutrindo em
seu coraçã o inimizade para com o seu Criador? Sem lugar a dú vida, a
natureza do homem é radicalmente viciosa. Os relatos dos
acontecimentos diá rios nos perió dicos e na mídia, inclusive em
terras denominadas de “cultas”, demonstram que o homem é
pecador, que está alienado de Deus e que é guiado por princípios
execrá veis. A ú nica explicaçã o adequada para tudo isso é que a
maldiçã o com que o homem foi ameaçado antes da queda repousa
agora sobre a raça humana.
Vivemos em um mundo perdido, um mundo que, ao se permitir
desenvolver por si mesmo, apodrece perenemente em sua
corrupçã o — um mundo em que se prolifera a iniquidade e a
blasfêmia. Os efeitos da queda sã o tais que a vontade do homem só
tende para baixo, para atos de pecado e estupidez. Todavia, Deus
nã o permite que a raça se mostre tã o corrupta quanto naturalmente
se mostraria, se lhe fosse permitido tomar seu curso natural. Ele
exerce influências restritivas, incitando os homens ao amor
recíproco, a amarem a honestidade e a filantropia; a buscarem o
bem-estar dos demais. Se Deus nã o exercesse essas influências, os
homens ímpios se tornariam cada vez mais perversos, mudando os
costumes estabelecidos e derribando as barreiras sociais até chegar
ao zênite da anarquia, convertendo a terra em um lugar de extrema
corrupçã o, a ponto de os eleitos já nã o poderem viver nela.
 

5. O princípio representativo
É -nos fá cil entender como uma pessoa age mediante representaçã o.
O povo de um Estado age em e através de seus representantes na
legislatura. Se um país tem um bom presidente ou rei, todas as
pessoas de tal país se beneficiam dos bons resultados; em troca, se o
presidente ou rei é mau, todos sofrem as consequências. Os pais sã o,
em um sentido mui real, os representantes de seus filhos e em
grande medida determinam o destino destes. Se os pais sã o sá bios,
virtuosos e bondosos, os filhos colhem as bênçã os; porém, se sã o
indolentes e imorais, os filhos sofrem. De infindas maneiras, o bem-
estar dos indivíduos está determinado pelos feitos de outros; o que
demonstra quã o entretecido em nossa vida está o princípio
representativo. A doutrina bíblica que ensina que Adã o foi a cabeça
federal e representativa de seus descendentes outra coisa nã o é
senã o a aplicaçã o de um princípio que vemos ao nosso redor.
O Dr. Charles Hodge tratou deste tema com muita habilidade no
seguinte pará grafo:
Este princípio representativo permeia toda a Escritura. A
imputaçã o do pecado de Adã o à sua posteridade nã o é um fato
isolado, mas apenas um exemplo de um princípio geral que
caracteriza as dispensaçõ es [administraçõ es ou economias] de
Deus desde o princípio do mundo. Deus se revelou a Moisés
como aquele que visita a maldade dos pais nos filhos e dos
filhos nos filhos, até a terceira e quarta geraçã o (Ê x 34.6, 7). A
maldiçã o pronunciada contra Canaã caiu sobre sua
posteridade. Ao vender Esaú a sua primogenitura, os seus
descendentes ficaram excluídos do pacto da promessa. Os
filhos de Moabe e Amom foram excluídos para sempre da
congregaçã o do Senhor por seus antepassados terem feito
oposiçã o aos israelitas, quando estes saíram do Egito. No caso
de Datã e Abirã o, como no de Acã , “suas esposas, seus filhos e
seus pequeninos” pereceram por causa dos pecados de seus
pais. Deus disse a Eli que a iniquidade de sua casa jamais
poderia ser apagada com sacrifício e oferta. A Davi foi dito: “A
espada jamais se apartará de tua casa, porquanto me
menosprezaste e tomaste a mulher de Urias, o heteu, para que
fosse tua mulher”. Quanto à desobediência de Geazi, foi-lhe
dito: “A lepra de Naamã se apegará a ti e à tua descendência
para sempre”. O pecado de Jeroboã o e dos homens de sua
época determinou para sempre o destino das dez tribos. A
imprecaçã o dos judeus, “seu sangue caia sobre nó s e nossos
filhos”, quando pediam que Cristo fosse crucificado, ainda pesa
sobre os israelitas errantes. Este princípio é percebido por
toda a Escritura. Quando Deus estabeleceu o pacto com
Abraã o, nã o foi feito somente com ele, mas também com a sua
posteridade, ficando esta ligada a todas as estipulaçõ es do
pacto. Todos os israelitas partilharam das promessas e das
ameaças do pacto, e em centenas de casos o castigo pela
desobediência veio sobre aqueles que nã o haviam incorrido
nas transgressõ es de maneira pessoal. As crianças sofreram
iguais juízos na mesma medida que os adultos, isto é, a fome, a
peste e a guerra. E os judeus até hoje sofrem o castigo pelos
pecados de seus pais quando rejeitaram aquele de quem
Moisés e os profetas falaram. Todo o plano da redençã o
repousa sobre este princípio. Cristo é o representante de seu
povo, e, com base neste fato, os pecados dos eleitos lhes sã o
imputados e sua justiça lhes é imputada. Nenhuma pessoa que
crê na Bíblia pode passar por alto o fato de que em todas as
suas partes se reconhece o cará ter representativo dos pais; e
que as dispensaçõ es de Deus, desde seu ponto de partida, se
basearam no princípio de que os filhos levam sobre si as
iniquidades dos pais. Esta é precisamente uma das razõ es
pelas quais os ímpios se negam a crer na origem divina das
Escrituras. Mas a incredulidade nã o resolve nada. A histó ria
contém tantos exemplos desta doutrina como também a Bíblia.
O castigo do crime envolve sua família em sua desgraça e
miséria. O homem perdulá rio e o beberrã o trazem pobreza e
miséria a todos os que se relacionam com eles. Nã o há naçã o
sobre a face da terra cuja prosperidade ou adversidade nã o
fossem em grande medida determinadas pelo cará ter e a
conduta de seus antepassados. As ofertas expiató rias do
Antigo Testamento e o grande sacrifício da nova dispensaçã o
repousam sobre a ideia da transferência da culpa ou o castigo
vicá rio. Levar os pecados equivale, na linguagem bíblica, levar
a pena pelo pecado. A vítima levava o pecado daquele que a
oferecia. As mã os eram postas sobre a cabeça do animal que se
destinava a ser sacrificado para expressar a transferência da
culpa. Esse animal tinha que estar isento de todo defeito ou
imperfeiçã o para que ficasse ainda mais evidente que o seu
sangue era derramado nã o pelos seus pró prios defeitos, e sim
pelo pecado de outro. Tudo isso era simbó lico e típico. E isto é
o que as Escrituras ensinam acerca da expiaçã o de Cristo. Ele
levou nossos pecados; ele foi feito maldiçã o em nosso lugar;
ele sofreu a sentença da lei em nosso lugar. Tudo isso procede
com base no fato de que os pecados de uma pessoa podem
justamente ser imputados a outro sempre e quando o motivo
for adequado. [38]
As Escrituras afirmam que “pela desobediência de um só homem
muitos foram constituídos pecadores” (Rm 5.19). “Por um só
homem, o pecado entrou no mundo, e pelo pecado a morte; e assim
a morte passou a todos os homens, porquanto todos pecaram” (Rm
5.12). “Pelas transgressõ es de um veio a condenaçã o a todos os
homens” (Rm 5.18). É como se Deus dissesse: Se o pecado tiver que
entrar, que entre por um só homem, para que a justiça entre
também por um só homem.
Adã o nã o só foi constituído pai, mas também representante de toda
a raça humana. Se entendêssemos bem quã o estreita é a relaçã o
entre Adã o e a raça humana, compreenderíamos plenamente a
justiça da transmissã o de seu pecado aos seus descendentes. O
pecado de Adã o é imputado aos seus descendentes da mesma
maneira que a justiça de Cristo é imputada à queles que creem nele.
Certamente os descendentes de Adã o nã o sã o pessoalmente mais
culpados do pecado deste do que os redimidos sã o pessoalmente
merecedores da justiça de Cristo.
O sofrimento e a morte sã o o resultado do pecado; e a razã o por que
todos morrem é que “todos pecaram”. Ora, sabemos que muitos
sofrem e morrem na infâ ncia, antes mesmo de haver cometido
pessoalmente algum pecado. Segue-se que, ou Deus é injusto em
castigar o inocente, ou que tais crianças sã o, de alguma maneira,
culpadas. E, se sã o culpadas, como pecaram? É impossível explicar
isso com base em qualquer outra suposiçã o, senã o que pecaram em
Adã o (1Co 15.22; Rm 5.12, 18); e nã o poderiam pecar nele senã o por
representaçã o.
Ainda que nã o sejamos pessoalmente culpados do pecado de Adã o,
nã o obstante estamos sujeitos ao castigo por esse pecado. Eis a
opiniã o do Dr. A. A. Hodge: “A culpa pelo pecado pú blico de Adã o é
acarretada por um ato judicial de Deus por conta de cada um de seus
descendentes desde o momento em que sua existência tem início, e
isso precede a qualquer ato pessoal. Portanto, os homens nascem
carentes de todas as influências do Espírito Santo das quais depende
a sua vida moral e espiritual... e com uma prevalecente tendência em
sua natureza para o pecado; essa tendência neles é por si só pecado,
e por isso é digna de castigo. A natureza humana, desde a queda,
retém as faculdades constitucionais da razã o, da consciência e da
livre agência; e, portanto, o homem continua sendo um agente moral
responsá vel. Contudo, o homem está espiritualmente morto, e é
totalmente incapaz de cumprir com os deveres que se originam de
sua relaçã o com Deus; e é absolutamente incapaz de mudar as suas
pró prias inclinaçõ es má s e tendências morais inerentes; ou decidir
em prol de tal mudança, ou cooperar com o Espírito Santo para
efetuar essa mudança”. [39]
E com o mesmo propó sito geral, o Dr. R. L. Dabney, eminente teó logo
da Igreja Presbiteriana do Sul dos Estados Unidos da América, diz:
“A explicaçã o apresentada pela doutrina da imputaçã o é exigida por
todos, com a exceçã o dos pelagianos e socinianos. A raça humana
está espiritualmente morta e sob condenaçã o (veja Efésios 2.1-5 na
íntegra). É ó bvio que o homem se encontra sob maldiçã o desde o
início de sua vida. Resta apenas observar a depravaçã o natural das
crianças, bem como a desgraça e morte das quais sã o herdeiras. Ora,
ou o homem foi provado e caiu em Adã o, ou foi condenado sem
provaçã o. Ou ele está sob maldiçã o (a qual repousa sobre ele desde
o exato início de sua existência) pela culpa de Adã o, ou entã o está
sem ser culpado. Julgue você mesmo qual rende a Deus maior honra:
uma doutrina que, muito embora seja um profundo mistério,
apresenta Deus como a submeter o homem a uma prova justa e
sumamente favorá vel mediante sua cabeça federal, ou aquela que
apresenta Deus condenando o homem sem havê-lo submetido a uma
prova, e inclusive antes mesmo de vir à existência”. [40]
 

6. A bondade e a severidade de Deus


Um exame da queda e de sua extensã o é um trabalho humilhante, já
que prova ao homem que suas pretensõ es a uma bondade pessoal
nã o têm fundamento, e demonstra que sua ú nica esperança está na
graça soberana de Deus Todo-Poderoso. A “capacidade restaurada
pela graça” da qual fala o arminiano nã o é consistente com os fatos.
As Escrituras, a histó ria e a experiência cristã nã o nos permitem ter
uma opiniã o tã o favorá vel da condiçã o moral do homem como a que
ensina o sistema arminiano. Ao contrá rio, elas nos apresentam um
quadro mui tenebroso da espantosa corrupçã o e inclinaçã o
universal para o mal, a qual só pode ser vencida pela intervençã o da
graça divina. O sistema calvinista ensina uma queda no pecado
muito mais profunda, e também uma manifestaçã o muito mais
gloriosa da graça redentora. De fato, a pró pria profundeza do
pecado é o que move o crente a nã o depositar esperança em si
mesmo, a lançar-se incondicionalmente nos braços de Deus e a
abraçar a graça imerecida, o ú nico meio que pode salvá -lo.
Devemos ver a misericó rdia e também a severidade de Deus tanto
na esfera espiritual como na física. A vida está saturada de duras
realidades que, muito embora desagradá veis, devem ser
confrontadas e admitidas. Através das Escrituras, e especialmente
nas palavras do pró prio Cristo, o tormento final dos ímpios é
descrito de maneira tal que nã o pode restar dú vida alguma sobre
sua horrenda realidade. Basta vermos isso no Evangelho de Mateus:
5.29, 30; 7.19; 10.28; 11.21-24; 13.30, 41, 42, 49, 50; 18.8, 19, 34;
21.41; 22.14; 24.51; 25.12, 30, 41; 26.24. Seguramente, nã o se deve
omitir uma doutrina tã o enfatizada por Cristo, nã o importa quã o
desagradá vel seja tal doutrina. No mundo por vir, os ímpios, livres
de todas as restriçõ es, se precipitarã o no pecado, blasfemando e
amaldiçoando a Deus, execrando-se mais e mais, enquanto se
afundam no profundo abismo. Castigo interminável está reservado
para a pena do pecado que também será interminável . O castigo
sobre o ímpio é tanto para a gló ria de Deus quanto para
recompensar o justo. Muito da indiferença para com o cristianismo,
em nossos dias, se deve a que os ministros cristã os nã o insistem
sobre estas doutrinas que Cristo ensinou tã o reiteradamente.
Na esfera física, podemos ver a severidade de Deus nas guerras, na
fome, nas inundaçõ es, nas hecatombes, nas epidemias, nos
sofrimentos, nas mortes e nos crimes de toda espécie que sobrevêm
tanto ao justo quanto ao ímpio. Todas essas coisas existem em um
mundo que jaz sob o completo controle de um Deus infinito em suas
perfeiçõ es.
“Considerai, pois, a bondade e a severidade de Deus” (Rm 11.22). O
naturalismo nã o faz justiça nem à bondade e nem à severidade de
Deus. O arminianismo engrandece a bondade de Deus, contudo
revela descaso para com a sua severidade. O calvinismo é o ú nico
sistema que faz justiça tanto à bondade quanto à severidade de
Deus. Somente o calvinismo apresenta adequadamente os fatos no
tocante ao amor eterno e infinito de Deus que o levou a fazer
provisã o para a redençã o de seu povo, ainda que a grande custo de
enviar seu Filho unigênito para morrer na cruz; também o terrível
abismo que existe entre o homem pecador e o Deus santo. É verdade
que “Deus é amor”, mas nã o devemos esquecer a outra declaraçã o
de que “Deus é fogo consumidor” (Hb 12.29). Qualquer sistema que
omita ou nã o ponha adequada ênfase nestas verdades é um sistema
imperfeito, nã o importa quã o razoá vel pareça aos olhos dos homens.
A doutrina da incapacidade total do homem é, sem sombra de
dú vida, terrivelmente implacá vel, severa e repulsiva. Mas é preciso
ter em mente que nã o temos a liberdade de desenvolver um novo
sistema que seja do nosso agrado. Temos de tomar os fatos como os
encontramos. As descriçõ es do genuíno estado em que a
humanidade se encontra certamente sã o ofensivas aos homens nã o
regenerados; e muitos tentam encontrar um sistema de doutrinas
mais aceitá vel à mente popular. O estado do homem caído é tal que
ele dá ouvidos espontaneamente a qualquer teoria que o torne
independente de Deus, mesmo parcialmente. O homem apostatado
de Deus deseja ser o senhor de seu destino e o capitã o de sua alma.
Portanto, devemos apresentar continuamente ao pecador a
realidade de sua perdiçã o, ruína e impotência; porque, enquanto ele
nã o sentir essa dura realidade, jamais buscará auxílio no ú nico lugar
onde pode encontrá -la. Quã o miserá vel é a condiçã o do pecador!
Verdadeiramente carnal e vendido ao pecado, nã o só sem forças,
mas sem qualquer desejo de volver-se para Deus; e, ainda mais, um
rebelde, presunçoso e blasfemo rival de Jeová , o Todo-Poderoso.
Esta doutrina da incapacidade total, ou do pecado original, tem sido
discutida com considerá vel detalhe com o fim de apresentar a base
fundamental sobre a qual repousa a doutrina da predestinaçã o. Por
certo que este lado do quadro é obscuro, e bem obscuro; mas o
outro lado é a gló ria de Deus na redençã o. Cada uma destas
verdades deve ser vista em sua verdadeira luz, antes que a outra
possa ser adequadamente apreciada.
 

7. Prova bíblica
 
1Co 2.14; Gn 2.17; Rm 5.12; 2Co 1.9; Ef 2.1-3; 2.12; Jr 13.23; Sl 51.5;
Jo 3.3; Rm 3.10-12; Jó 14.4; 1Co 1.18; At 13.48; Pv 30.12; Jo 5.21;
6.53; 8.19; Mt 11.25; 2Co 5.17; Jo 14.16, 17; 3.19.

CAPÍTULO XI. ELEIÇÃO INCONDICIONAL


 
1. Exposiçã o da doutrina. 2. Prova bíblica. 3. Argumento ló gico. 4. A fé e as boas obras sã o
os frutos e as evidências, nã o a base da eleiçã o. 5. A reprovaçã o. 6. Infralapsarianismo e
supralapsarianismo. 7. Muitos sã o os eleitos. 8. Um mundo ou raça redimida. 9. Os
redimidos — uma imensa multidã o. 10. O mundo está se tornando melhor
progressivamente. 11. Salvaçã o das crianças. 12. Resumo.

1. Exposição da doutrina
A doutrina da eleiçã o tem de ser considerada somente como uma
aplicaçã o particular da doutrina geral da predestinaçã o ou
preordenaçã o enquanto se relaciona com a salvaçã o dos pecadores;
e como as Escrituras tratam principalmente da redençã o de
pecadores, esta parte da doutrina geral da predestinaçã o ocupa um
lugar proeminente. A doutrina da eleiçã o partilha de todos os
elementos da doutrina geral; e, por ser obra de uma Pessoa moral e
infinita, é apresentada como a determinaçã o eterna, absoluta,
imutá vel e eficaz de sua vontade com respeito aos objetos de suas
operaçõ es salvíficas. E nenhum aspecto dessa determinaçã o eletiva
é enfatizado mais do que o da soberania absoluta.
A fé reformada tem ensinado a existência de um decreto divino,
eterno, o qual, independente de qualquer diferença entre os homens
ou merecimento pessoal destes, separa a raça humana em dois
grupos, ordenando um para a vida eterna e o outro para a morte
eterna. No que respeita aos homens em geral, esse decreto outra
coisa nã o é senã o o conselho de Deus com respeito à queles que
tiveram uma oportunidade supremamente favorá vel em Adã o para
alcançar a salvaçã o, contudo a perderam. Devido à sua queda, sã o
culpados e estã o corrompidos; seus motivos sã o maus e nã o podem
alcançar por si só s a salvaçã o. Perderam todo o direito à
misericó rdia de Deus, e pode-se dizer com toda a justiça que
merecem sofrer a pena por sua desobediência, como se fez aos anjos
apó statas. Todavia, os eleitos sã o resgatados desse estado de culpa e
pecado, e sã o trazidos a um estado de bem-aventurança e santidade.
Os nã o eleitos sã o meramente deixados em seu estado de ruína e sã o
condenados por seus pecados. Este castigo nã o é imerecido, já que
Deus nã o os está tratando meramente como homens, mas sim como
homens pecadores.
A Confissão de Westminster apresenta a doutrina nos seguintes
termos:
Pelo decreto de Deus e para a manifestaçã o de sua gló ria,
alguns homens e alguns anjos sã o predestinados para a
vida eterna e outros preordenados para a morte eterna.
Esses homens e esses anjos, assim predestinados e
preordenados, sã o particular e imutavelmente
designados; seu nú mero é tã o certo e definido, que nã o
pode ser nem aumentado nem diminuído.
Segundo seu eterno e imutá vel propó sito, e segundo o
santo conselho e beneplá cito de sua vontade, antes que
fosse o mundo criado, Deus escolheu em Cristo, para a
gló ria eterna, os homens que sã o predestinados para a
vida; para o louvor de sua gloriosa graça, ele os escolheu
de sua mera e livre graça e amor, e nã o por previsã o de
fé, ou de boas obras e perseverança nelas, ou de
qualquer outra coisa na criatura que a isso o movesse,
como condiçã o ou causa.
Assim como Deus destinou os eleitos para a gló ria, assim
também, pelo eterno propó sito de sua vontade,
preordenou todos os meios conducentes a esse fim; os
que, portanto, sã o eleitos, achando-se caídos em Adã o,
sã o remidos por Cristo; sã o eficazmente chamados para
a fé em Cristo, pelo seu Espírito que opera no tempo
devido; sã o justificados, adotados, santificados e
guardados pelo seu poder, por meio da fé salvadora.
Além dos eleitos nã o há nenhum outro que seja remido
por Cristo, eficazmente chamado, justificado, adotado,
santificado e salvo. [41]
É de suma importâ ncia que entendamos com clareza esta doutrina
da eleiçã o divina, já que o nosso conceito desta doutrina
determinará o nosso conceito de Deus, do homem, do mundo e da
redençã o. Calvino disse com razã o: “Jamais nos convenceremos
como deveríamos de que nossa salvaçã o procede e emana da fonte
da misericó rdia gratuita de Deus, enquanto nã o tivermos
compreendido sua eleiçã o eterna, pois ela, por comparaçã o, nos
ilustra a graça de Deus, enquanto nã o adota indiferentemente a
todos à esperança da salvaçã o, senã o que dá a uns o que nega dar a
outros. Ignorar este princípio detrai da gló ria divina e serve, além do
mais, como obstá culo à humildade genuína”. [42] Calvino admite que
a doutrina suscita indagaçõ es mui intrincadas na mente de certas
pessoas, já que disse: “nã o há nada que alguns consideram mais
irracional do que isto: que de toda a humanidade alguns sejam
predestinados para a salvaçã o e outros, para a perdiçã o”.
Os teó logos reformados aplicaram este princípio de maneira
consistente à experiência de fenô menos espirituais que eles
perceberam em si mesmos e viram em outras pessoas. Para esses
teó logos, somente o propó sito divino, ou a predestinaçã o, podia
explicar a distinçã o entre o bem e o mal, entre o crente e o pecador.
 

2. Prova bíblica
 
Entã o, a primeira pergunta que devemos formular é: Encontramos
esta doutrina ensinada nas Escrituras? Retornemos à Epístola de
Paulo aos Efésios. Lemos ali: “assim como nos escolheu, nele, antes
da fundaçã o do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis
perante ele; e em amor nos predestinou para ele, para a adoçã o de
filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplá cito de sua
vontade” (1.4-5). Em Romanos 8.29-30, lemos sobre a corrente de
ouro da redençã o que se estende desde a eternidade pretérita até a
eternidade futura: “Porquanto aos que de antemã o conheceu,
também os predestinou para serem conformes à imagem de seu
Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmã os. E aos
que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses
também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou”.
Conhecidos de antemã o, predestinados, chamados, justificados,
glorificados, sempre as mesmas pessoas inclusas em cada grupo; e,
onde um desses fatores está presente, todos os demais também
estã o presentes com ele em princípio.
Paulo usou o verbo no pretérito perfeito porque, para Deus, o
propó sito é concretizado, em princípio, no momento em que é
concebido; o que indica a absoluta certeza de seu cumprimento.
“Estes cinco elos de ouro”, diz o Dr. Warfield, “estã o unidos numa
corrente inquebrá vel, de tal maneira que todos aqueles a quem Deus
separa em seu amor sã o conduzidos por sua graça, passo a passo,
para a grande consumaçã o dessa glorificaçã o que culmina na
prometida conformidade à imagem do Filho de Deus. É a ‘eleiçã o’,
como podemos ver, que faz tudo isso, ‘porque aos que de antemã o
conheceu... a estes também glorificou’”. [43]
As Escrituras apresentam a eleiçã o como algo que ocorre no
passado, sem levar em conta os méritos pessoais, e é totalmente
soberana: “E ainda nã o eram os gêmeos nascidos, nem tinham
praticado o bem ou o mal (para que o propó sito de Deus, quanto à
eleiçã o, prevalecesse, nã o por obras, mas por aquele que chama), já
lhe foi dito: O mais velho será servo do mais moço. Como está
escrito: Amei a Jacó , porém me aborreci de Esaú ” (Rm 9.11, 12). Ora,
se a doutrina da eleiçã o nã o for verdadeira, entã o instamos que nos
seja dito o que significam estas palavras do apó stolo. “Esta
passagem nos ensina de modo ilustrativo a soberana aceitaçã o de
Isaque e a rejeiçã o de Ismael, assim como a eleiçã o de Jacó e nã o de
Esaú , antes mesmo do seu nascimento; e, portanto, antes mesmo
que soubessem fazer o bem ou o mal. Ela nos ensina explicitamente
que o assunto da salvaçã o nã o depende de quem quer, nem de quem
corre, mas de Deus em usar de misericó rdia; e a usa em quem ele
quer e a quem quer endurecer, endurece; de maneira direta, ele nos
apresenta Deus como o oleiro que faz os vasos que procedem de sua
mã o, cada um para o fim designado, de modo que ele age com cada
um segundo a sua vontade. A realidade é que dificilmente
encontraremos palavras mais explícitas que ensinem a
predestinaçã o”. [44]
Mesmo que nã o existissem outras palavras inspiradas além das que
citamos acima, procedentes do apó stolo Paulo, tã o claras e
inequívocas elas sã o, que deveríamos sentir-nos constrangidos a
admitir que a doutrina da eleiçã o é parte das Escrituras. Ao
examinarmos as referências bíblicas que aparecem na Confissão de
fé de Westminster , vemos que a doutrina está sustentada
abundantemente na Bíblia. Se porventura aceitamos a inspiraçã o
das Escrituras, e se aceitamos que os escritos dos profetas e dos
apó stolos foram inspirados pelo Espírito de Deus, e, portanto, sã o
infalíveis, entã o as palavras concernentes à doutrina deveriam ser
suficientes. Portanto, com base no testemunho irrefutá vel das
Escrituras, devemos admitir que a eleiçã o ou predestinaçã o é uma
verdade estabelecida, uma verdade que deve ser aceita, caso
queiramos conhecer todo o conselho de Deus. Todo crente deve crer
em algum tipo de eleiçã o, já que, embora as Escrituras deixem de
explicar muitas coisas sobre a doutrina, elas frisam de maneira clara
o fato de que houve uma eleiçã o.
Cristo disse explicitamente aos seus discípulos: “Nã o fostes vó s que
me escolhestes a mim; pelo contrá rio, eu vos escolhi a vó s outros e
vos designei para que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça”
(Joã o 15.16); desse modo ensinando que a eleiçã o divina é primá ria
e a humana é secundá ria e depende da primeira. O arminiano,
contudo, ao fazer com que a salvaçã o dependa do bom uso ou do
abuso da graça oferecida por Deus, inverte a ordem e faz com que a
escolha do indivíduo seja a primeira e decisiva. Nas Escrituras,
porém, nã o há lugar para uma eleiçã o que dependa de obras
previstas da criatura. A vontade divina nunca depende da vontade
da criatura para chegar à s suas determinaçõ es.
Reiterando, a soberania desta eleiçã o divina é também ensinada por
Paulo quando nos informa que Deus exibiu seu amor para conosco; e
quando ainda pecadores , Cristo morreu por nó s (Rm 5.8); e entã o
afirma que Cristo morreu pelos ímpios (Rm 5.6). E assim vemos que
Deus nos oferece seu amor, nã o porque éramos bons, e sim a
despeito de sermos maus. É Deus quem escolhe a pessoa e a atrai a
si (Sl 65.4). O arminianismo tira das mã os de Deus esta eleiçã o e a
coloca nas mã os do homem. Qualquer sistema que troca a eleiçã o
divina pela eleiçã o humana fica muito aquém do que as Santas
Escrituras ensinam sobre este tema.
Nos dias mais trevosos da apostasia de Israel, como em todas as
demais épocas, foi o princípio da eleiçã o que estabeleceu uma
diferença entre a humanidade e permitiu a preservaçã o de um
remanescente. “Também conservei em Israel sete mil, todos os que
nã o se dobraram a Baal, e toda boca que nã o o beijou” (1Rs 19.18).
Estes sete mil nã o se mantiveram por sua pró pria força; somos
informados explicitamente que Deus os conservou para si a fim de
que eles lhe fossem um remanescente.
É por amor aos eleitos que Deus governa o curso de toda a histó ria
(Mc 13.20). Eles sã o “o sal da terra” e “a luz do mundo”; e ao longo
de toda a histó ria sã o os poucos por meio dos quais os muitos sã o
abençoados — Deus abençoou a casa de Potifar por causa de José; e
dez justos teriam salvado a cidade de Sodoma. Certamente sua
eleiçã o envolve a oportunidade de ouvir o evangelho e receber os
dons da graça, já que sem esses meios a grande finalidade da eleiçã o
nã o poderia prevalecer. De fato, eles sã o eleitos para tudo o que
inclui a ideia da vida eterna.
Além desta eleiçã o de indivíduos para a vida, há o que poderíamos
chamar de eleição nacional , ou uma predestinaçã o divina de naçõ es
e comunidades para o conhecimento da verdadeira religiã o e para o
desfruto dos privilégios externos do evangelho. É ó bvio que Deus
escolheu algumas naçõ es para que recebam maiores bênçã os
espirituais e temporais do que outras. Esta forma de eleiçã o tem
sido ilustrada na naçã o judaica, bem como em certas naçõ es e
comunidades europeias e em certas naçõ es da América. O contraste
é bem marcante quando comparamos essas naçõ es com outras, tais
como a China, o Japã o, a Índia, entre outras.
Por todo o Antigo Testamento se afirma reiteradamente que os
judeus eram um povo escolhido. “De todas as famílias da terra,
somente a vó s outros vos escolhi” (Am 3.2). “Nã o fez assim a
nenhuma outra naçã o; todas ignoram os seus preceitos” (Sl 147.20).
“Porque tu és povo santo ao SENHOR , teu Deus; o SENHOR , teu Deus,
te escolheu, para que lhe fosses o seu povo peculiar, de todos os
povos que há sobre a terra” (Dt 7.6). Além disso, somos informados
que essa eleiçã o nã o foi por mérito ou dignidade do povo judeu, que
o fizesse diferente das demais naçõ es. “Nã o vos teve o SENHOR
afeiçã o, nem vos escolheu porque fô sseis mais numerosos do que
qualquer povo, pois éreis o menor de todos os povos; mas porque o
SENHOR vos amava e, para guardar o juramento que fizera a vossos
pais, o SENHOR vos tirou com mã o poderosa e vos resgatou da casa
da servidã o, do poder de Faraó , rei do Egito” (Dt 7.7, 8). E, outra vez:
“Tã o somente o SENHOR se afeiçoou a teus pais para os amar; a vó s
outros, descendentes deles, escolheu de todos os povos, como hoje
se vê” (Dt 10.15). Aqui somos informados que Deus honrou a Israel,
escolhendo a diferença de como agiu em relaçã o aos demais povos
da terra; que essa eleiçã o se baseou unicamente no amor imerecido
de Deus; e que nã o teve nenhum fundamento no pró prio Israel.
Quando o Espírito Santo proibiu a Paulo de pregar o evangelho na
província da Á sia, apresentando-lhe a visã o de um homem europeu
que lhe rogava, dizendo: “Passa à Macedô nia e ajuda-nos”, uma parte
do mundo foi excluída soberanamente dos privilégios do evangelho,
enquanto outra parte recebeu tais privilégios. Se esse chamado
divino viesse da parte litorâ nea da Índia, Europa e América, tais
naçõ es seriam hoje menos civilizadas que os nativos do Tibete. Foi a
soberana eleiçã o de Deus que levou o evangelho aos povos da
Europa e mais tarde à América, enquanto muitos do leste, do norte e
do sul foram deixados em trevas. Nã o podemos assinalar a razã o,
por exemplo, por que foi a semente de Abraã o, e nã o a dos egípcios
ou assírios, que Deus escolheu; ou por que a Grã Bretanha ou a
América do Norte, que no tempo em que Cristo se manifestou na
terra se encontravam em um estado de tã o completa ignorâ ncia,
possuindo hoje, em tã o elevado grau, grandes privilégios espirituais
e os divulgam a outros em tantos lugares. As diversidades que
existem no tocante aos privilégios espirituais nas diferentes naçõ es
têm contribuído e ainda vã o contribuir ú nica e absolutamente pela
boa vontade de Deus.
A terceira forma de eleiçã o que as Escrituras ensinam é a de
indivíduos para os meios externos da graça, a saber, para que se
ouça e se leia o evangelho; para que se forme associaçã o com o povo
de Deus e para a participaçã o dos benefícios da civilizaçã o que tem
surgido onde o evangelho tem penetrado. Nã o há pessoa que tenha
tido a oportunidade de dizer em que época particular da histó ria do
mundo; ou em que país; ou de que raça havia de nascer. Uma criança
nasce com saú de, riqueza e honra, numa terra favorecida, em um lar
cristã o e é criada no meio de todas as bênçã os que acompanham a
plena luz do evangelho. Outra, por sua vez, nasce em pobreza e
desonra; de pais maus e perdulá rios e destituídos de influências
cristã s. Todas essas coisas sã o determinadas por Deus de maneira
soberana. Certamente, ninguém insistiria que uma criança
favorecida possui mérito pessoal que poderia ser a causa dessa
diferença. Além do mais, nã o foi o pró prio Deus que determinou
criar-nos seres humanos, à sua imagem, quando poderia muito bem
criar-nos bois ou cavalos ou cã es? Quem admitiria que animais
irracionais proferissem injú rias contra Deus por considerar sua
condiçã o na vida como algo injusto? Todas essas distinçõ es se
devem à soberana providência de Deus e nã o à escolha humana. “Os
arminianos tentam conciliar tudo isso com as suas noçõ es
deficitá rias e equivocadas da soberania divina e com as suas
doutrinas anti-bíblicas da graça e da redençã o universais. Mas eles
mesmos nã o se sentem satisfeitos com as suas tentativas de explicar
estas coisas, e comumente continuam a admitir que há mistérios em
tais assuntos que nã o podem ser explicados, e que, portanto, devem
ser atribuídos à soberania de Deus e aos seus conselhos
inescrutá veis.” [45]
Talvez possamos mencionar ainda uma quarta classe de eleiçã o — a
de indivíduos para certas vocaçõ es, como, por exemplo, os talentos
especiais que capacitam a um para ser estadista, a outro para ser
médico, ou advogado, ou agricultor, ou mú sico, ou artesã o e os dons
da beleza pessoal, como inteligência, disposiçã o, etc. Estas quatro
classes de eleiçã o sã o essencialmente iguais. Os arminianos,
portanto, nada resolvem aceitando a segunda, a terceira e a quarta
classe, porém rejeitando a primeira. Em cada caso, Deus dá a uns o
que recusa a outros. As condiçõ es que observamos ao nosso redor e
nossas pró prias experiências na vida cotidiana nos demonstram que
as bênçã os outorgadas sã o soberanas e incondicionais, e
independem de quaisquer méritos ou açõ es prévias dos que as
recebem. Se somos grandemente favorecidos, resta-nos tã o somente
agradecer a Deus por suas bênçã os; se nã o o somos, nã o temos
motivo para queixar-nos. A razã o por que uns sã o colocados em
circunstâ ncias que os conduzem à fé salvadora, enquanto outros
nunca sã o colocados em tais circunstâ ncias, constitui um mistério.
Nã o podemos explicar as operaçõ es da providência divina; mas, se
sabemos que o Juiz de toda a terra agirá com justiça, sabemos que
quando alcançarmos o conhecimento perfeito veremos que Deus
tem suficientes razõ es para tudo o que ele tem feito.
Além do mais, pode-se dizer que em geral as condiçõ es externas que
cercam o indivíduo determinam o seu destino — ao menos até o
ponto em que os que nã o ouvem o evangelho nã o têm a
oportunidade de se salvar. Cunningham escreveu a respeito: “Há
uma relaçã o invariá vel estabelecida no governo de Deus no mundo
entre o desfruto de privilégios externos, ou os meios de graça, de um
lado, e a fé e a salvaçã o, do outro; de modo que a negaçã o do
primeiro implica na negaçã o do segundo. As Escrituras confirmam
essa verdade, já que onde Deus, em sua soberania, nã o concede aos
homens os meios de graça — ou seja, a oportunidade de conhecer a
ú nica vereda da salvaçã o —, ao mesmo tempo, nã o lhes concede a
oportunidade e o poder para que creiam e sejam salvos”. [46]  
Os calvinistas sustentam que Deus lida nã o só com a humanidade
em sua totalidade, mas também com os indivíduos que realmente
sã o salvos, e que ele elegeu pessoas particulares para a vida eterna e
todos os meios conducentes para alcançarem essa vida. Admitem
que algumas passagens que mencionam a eleiçã o se referem
somente à escolha de naçõ es ou à escolha de privilégios externos;
porém sustentam que muitas outras passagens ensinam claramente
uma eleiçã o de indivíduos para a vida eterna.
No entanto, há aqueles que negam completamente que exista tal
coisa como eleiçã o. A pró pria palavra os assusta como se fosse um
fantasma saído das sombras e ao qual jamais viram antes. Todavia,
só no Novo Testamento, as palavras ekletos , ekloga e eklego ( eleito ,
eleição , escolher ) aparecem umas quarenta e oito vezes (consulte-
se uma boa concordâ ncia para a lista completa). Outros aceitam o
termo, porém tentam explicá -lo à sua pró pria maneira. Professam
crer numa “eleiçã o incondicional”, baseada, como supõ em, na fé e
obediência previstas por Deus. Dita explicaçã o, como se poderá
notar, anula o verdadeiro sentido do termo e, além do mais, reduz a
eleiçã o a um mero reconhecimento ou profecia de que em algum
tempo futuro determinados indivíduos hã o de possuir tais
qualidades. Se na realidade a eleiçã o estivesse baseada na fé e
obediência, entã o, como cinicamente se tem dito, Deus é prudente
em escolher somente aqueles que de antemã o vê que escolherã o a si
mesmos. No sistema arminiano, a eleiçã o fica reduzida a um mero
termo ou nome, cujo uso só serve para obscurecer e complicar o
tema. Reconhecer de antemã o que tais qualidades existiram em
algum indivíduo, num tempo futuro, nã o pode, com justiça, ser
chamado eleiçã o. Alguns arminianos, ao ensinarem que a pessoa
pode ou nã o aceitar, e que depois de haver aceitado pode afastar-se
outra vez, identificam o tempo do decreto da eleiçã o com a morte do
crente, como se só entã o sua salvaçã o fosse assegurada.
A eleiçã o inclui nã o apenas seres humanos, mas também anjos, já
que estes sã o também parte da criaçã o de Deus e estã o sob seu
governo. Alguns destes sã o santos e felizes; outros sã o pecaminosos
e miserá veis. Cremos na predestinaçã o de anjos pelas mesmas
razõ es que cremos na predestinaçã o de seres humanos. As
Escrituras fazem referência a “anjos eleitos” (1Tm 5.21) e a “santos
anjos” (Mc 8.38), em contraste com anjos maus ou demô nios. As
Escrituras afirmam que “Deus nã o perdoou aos anjos que pecaram,
mas que os precipitou no inferno, entregando-os a abismos de
trevas, reservando-os para juízo” (2Pe 2.4). A Bíblia fala também do
“fogo eterno preparado para o diabo e seus anjos” (Mt 25.41); e que
“a anjos, os que nã o guardaram seu estado original, mas
abandonaram seu pró prio domicílio, ele tem guardado sob trevas,
em algemas eternas, para o juízo do grande dia” (Jd 6); e “Miguel e
seus anjos pelejaram contra o dragã o” (Ap 12.7). Na visã o de
Dabney, estas passagens nos ensinam que “há duas classes de
espíritos: anjos santos e anjos pecadores; servos de Cristo e servos
de Sataná s. Todos os anjos foram criados num estado de santidade e
felicidade, e habitaram na regiã o chamada o céu (a santidade e
bondade de Deus sã o prova suficiente de que nunca os criou de
outra maneira); os anjos maus, ao pecarem, caíram voluntariamente
do seu estado original e foram excluídos do céu e da santidade para
todo o sempre; aqueles que foram eleitos por Deus mantiveram seu
estado de santidade e bem-aventurança no qual foram confirmados
para sempre”. [47]
Paulo nã o tenta explicar-nos como Deus pode ser justo ao exibir
misericó rdia para com quem quer e passar por alto a quem quer. Em
resposta a objeçõ es, “Por que, pois, ele culpa” à queles a quem nã o
estendeu misericó rdia, o apó stolo simplesmente põ e tudo na conta
da soberania de Deus, contestando: “Quem és tu, ó homem, para
discutires com Deus? Porventura, pode o objeto perguntar a quem o
fez: Por que me fizeste assim? Ou nã o tem o oleiro direito sobre a
massa, para do mesmo barro fazer um vaso para honra e outra para
desonra?” (Rm 9.20, 21). (Notemos bem que Paulo nã o diz que estes
fossem diferentes tipos de barro, e sim “da mesma massa”; que
Deus, como oleiro, faz um vaso para honra e outro para desonra.) O
apó stolo nã o tenta tirar Deus de seu trono para trazê-lo perante
nossa razã o humana a fim de ser questionado e examinado. Os
conselhos secretos de Deus, os quais até mesmo os anjos adoram
com temor e anelam contemplá -los, nã o sã o explicados
detalhadamente, mas somos informados que eles estã o em
conformidade com o beneplá cito divino. E ao declarar-nos essas
coisas, é como se Paulo estendesse sua mã o para impedir-nos de
tentarmos avançar mais. Se fosse certa a suposiçã o arminiana de
que a todos os seres humanos foi dada graça suficiente, e que cada
um é recompensado ou castigado conforme o uso ou abuso dessa
graça, entã o nã o teria havido nenhuma dificuldade para resolver.
 
PROVA BÍBLICA ADICIONAL
2Ts 2.13; Mt 24.24; 24.31; Mc 13.20; 1Ts 1.4; Rm 11.7; 1Tm 5.21;
Rm 8.33; 11.5; 2Tm 2.10; Tt 1.1; 1Pe 1.2; 2.9; 5.13; 1Ts 5.9; At 13.48;
Jo 17.9; 6.37; 6.65; 13.18; 15.16; Sl 105.6; Rm 9.23; (vejam-se
também as referências já citadas neste capítulo; Ef 1.4, 5, 11; Rm
9.11-13; 8.29, 30, etc.).
 

3. Prova proveniente da razão


 
Caso seja aceita a doutrina da incapacidade total [e inerente] ou do
pecado original, a doutrina da eleiçã o incondicional terá de ser
aceita para que seja consistente. Como as Escrituras e a experiência
testificam, se todos os homens se encontram, por natureza, em um
estado de culpa e depravaçã o, do qual sã o completamente incapazes
de se livrar por si mesmos; e se, além disso, eles nã o têm nenhum
direito de exigir que Deus os salve, entã o, logicamente, se alguns se
salvam, isso se dá unicamente porque Deus, em sua graça, os
escolheu para a salvaçã o. O amor de Deus para com os homens
apostatados se manifestou em sua eleiçã o de uma inumerá vel
multidã o para a salvaçã o e na provisã o de um Redentor que, agindo
como cabeça federal e representativa, assumiu a culpa, pagou a pena
e comprou a salvaçã o dos eleitos. As Escrituras atribuem sempre o
decreto da eleiçã o ao amor de Deus e nunca se cansam de erguer
nossa vista, do pró prio decreto para o motivo por detrá s do decreto.
A doutrina que declara que os homens sã o salvos somente por
intermédio do amor e da graça imerecida de Deus encontra sua
honesta expressã o unicamente nas doutrinas do calvinismo.
Na eleiçã o de seres humanos se deixa ver claramente o cará ter
meramente gratuito da salvaçã o. Aqueles que sustentam que a
salvaçã o é inteiramente pela graça de Deus, porém negam a
doutrina da eleiçã o, sustentam uma posiçã o inconsistente. Os
escritores inspirados buscam por todos os meios demonstrar o fato
de que a eleiçã o divina é absolutamente soberana e que tem por
ú nica base o imerecido amor de Deus e desenhada para exibir diante
dos homens e anjos sua graça e misericó rdia salvíficas.
Como Governante e Juiz, Deus é livre para lidar com o mundo de
pecadores conforme a sua boa vontade. E tem o direito de perdoar a
alguns e de condenar a outros; de conferir sua graça salvadora a um
e de recusá -la a outro. Como sã o todos pecadores e se acham
destituídos de sua gló ria, ele é livre para conceder sua misericó rdia
a quem bem quiser. Nã o é daquele que quer, nem do que corre, mas
de Deus em aplicar sua misericó rdia; e a razã o por que alguns sã o
salvos e outros, nã o, há de concentrar-se unicamente no beneplá cito
daquele que ordena todas as coisas conforme o desígnio de sua
vontade. Deus, antes de criar o mundo, escolheu todos aqueles a
quem ele quis outorgar gratuitamente sua herança de eterna bem-
aventurança; e os escritores bíblicos se esforçam por inculcar na
mente de cada crente a realidade de que, desde a eternidade, ele tem
sido o objeto particular da eleiçã o divina, e está cumprindo o
elevado destino preparado para ele desde a fundaçã o do mundo.
A doutrina da eleiçã o eterna e incondicional tem sido com
frequência chamada o “coraçã o” da fé reformada. Dita doutrina frisa
a soberania e a graça de Deus na salvaçã o, enquanto a doutrina
arminiana frisa a obra de fé e obediência na pessoa que decide
aceitar a graça que Deus lhe oferece. No sistema calvinista, é tã o
somente Deus que escolhe aqueles que hã o de ser herdeiros das
riquezas celestiais; enquanto que, no sistema arminiano, em ú ltima
aná lise, é o homem quem determina isto — um princípio que,
poderíamos dizer, demonstra certa falta de humildade.
Pode ser que alguém pergunte: Por que Deus salva a uns e a outros,
nã o? Isto é algo que pertence aos secretos conselhos de Deus.
Precisamente por que uma pessoa recebe e a outra, nã o, quando
nenhuma merece receber, nã o nos foi revelado. O fato de Deus ter-se
agradado em outorgar-nos sua graça eletiva continuará sendo uma
adorá vel maravilha. Certamente nã o havia em nó s nenhuma
qualidade e nenhuma obra que pudesse ter atraído a atençã o de
Deus ou tê-lo movido a agir em nosso favor ou a nutrir predileçã o
por nó s; porque todos nó s está vamos mortos em delitos e pecados e
éramos filhos da ira como os demais (Ef 2.1-3). Podemos meramente
admirar e maravilhar-nos e exclamar com Paulo: “Ó profundidade
da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus!
Quã o insondá veis sã o os seus juízos, e quã o inescrutá veis, os seus
caminhos!” (Rm 11.33). A maravilha das maravilhas nã o é que Deus,
em seu infinito amor e justiça, nã o quisesse escolher toda a raça
humana apostatada, e sim que ele haja escolhido alguns ! Ao
considerarmos, por um lado, quã o nefando é o pecado e quã o
merecedor de seu castigo; e, por outro, a realidade da santidade
divina e o ó dio absoluto que Deus sente pelo pecado, a maravilha é
que Deus obtivesse o consentimento de sua natureza santa para
salvar um só pecador. Além disso, a razã o por que Deus nã o
escolheu todos para a vida eterna nã o foi porque ele nã o quisesse
salvar a todos, mas porque, por razõ es que nã o podemos explicar
exaustivamente, uma eleiçã o universal teria sido inconsistente com
a sua perfeita justiça.
Tampouco se pode objetar que esta posiçã o representa Deus como
alguém que age arbitrá ria e irracionalmente. Afirmar tal coisa seria
afirmar mais do que homem nenhum conhece. As razõ es por que
Deus salva alguns enquanto omite outros nã o nos foram reveladas.
“Todos os moradores da terra sã o por ele reputados em nada; e,
segundo a sua vontade, ele opera com o exército do céu e os
moradores da terra; nã o há quem lhe possa deter a mã o, nem lhe
dizer: Que fazes?” (Dn 4.35). Ele quis que alguns fossem
“predestinados para ele, para a adoçã o de filhos, por meio de Jesus
Cristo, segundo o beneplá cito de sua vontade” (Ef 1.5). E isso nã o
significa que ele nã o tenha razõ es para escolher um e deixar outro.
Quando um regimento castiga alguém por insubordinaçã o, o fato de
cada um entre dez homens nã o ser selecionado para morrer tem
suas razõ es, mas tais razõ es nã o se encontram nos pró prios homens.
Sem dú vida, Deus tem as melhores razõ es para escolher um e
rejeitar outro, muito embora ele nã o tenha dito quais sã o ditas
razõ es.
“Nã o pode o Senhor soberano
Dispensar seus favores segundo a sua vontade,
Escolhendo alguns para a vida e deixando os demais,
E, ao mesmo tempo, sem deixar de ser justo e santo?
Porventura o homem replicará ao Senhor,
Atribuindo injustiça ao seu Criador?
Aquele cuja atroante voz
Pode triturar mil mundos num só instante.
Mas, oh! minha alma, ainda que verdades tã o refulgentes
Nos ceguem e anuviem nossa visã o de ti,
Ainda assim ela obedece à tua vontade escrita
E espera o grande dia decisivo”. [48]
 
 

4. A fé e as boas obras são os frutos e as evidências, não a base


da eleição
 
Nem a predestinaçã o, em geral, nem a eleiçã o dos que hã o de ser
salvos tem por base a previsã o divina de alguma obra por parte da
criatura. Esta doutrina da fé reformada há muito foi explanada na
Confissão de Westminster , onde lemos: “Ainda que Deus saiba tudo
quanto pode ou há de acontecer em todas as circunstâ ncias
imaginá veis, ele nã o decreta coisa alguma por havê-la previsto como
futura, ou como coisa que havia de acontecer em tais e tais
condiçõ es”. E, reiterando: “Estas boas obras, feitas em obediência
aos mandamentos de Deus, sã o o fruto e as evidências de uma fé
viva e verdadeira; por elas os crentes manifestam sua gratidã o,
robustecem sua confiança, edificam seus irmã os, adornam a
profissã o do evangelho, fecham a boca aos adversá rios e glorificam a
Deus, de quem sã o feitura, criados em Jesus Cristo para isso mesmo,
a fim de que, tendo seu fruto em santidade, tenham no final a vida
eterna”.
“A capacidade de fazer boas obras de modo algum provém dos
crentes, mas inteiramente do Espírito de Cristo. A fim de que sejam
para isso capacitados, além da graça que já receberam, é necessá rio
que recebam a influência efetiva do mesmo Espírito Santo para
operar neles tanto o querer como o realizar segundo o seu
beneplá cito; contudo, nã o devem, por isso, tornar-se negligentes,
como se nã o fossem obrigados a cumprir qualquer dever senã o
quando movidos especialmente pelo Espírito; pelo contrá rio, devem
esforçar-se por dinamizar a graça de Deus que está neles.” [49]
A fé e as boas obras vistas de antemã o por Deus nã o sã o, portanto, a
causa da eleiçã o divina, e sim, ao contrá rio, os frutos e as evidências
dessa eleiçã o. Demonstram que aquele que as possui foi escolhido e
regenerado. Tomá -las como a base da eleiçã o nos coloca novamente
num pacto de obras; e, além do mais, coloca os propó sitos de Deus
no tempo , e nã o na eternidade . Isto nã o seria pré -destinaçã o, e sim
pós -destinaçã o — uma tergiversaçã o das Escrituras, quando estas
ensinam que a fé e a santidade sã o os resultados , e nã o as condições ,
da eleiçã o (Ef. 1.4; Jo 15.16; Tt 3.5). A afirmaçã o de que fomos
escolhidos em Cristo “antes da fundaçã o do mundo” exclui de nó s
qualquer mérito pessoal; já que a frase hebraica “antes da fundaçã o
do mundo” significa que a eleiçã o foi realizada na eternidade. E
quanto à afirmaçã o de Paulo de que “nã o é por obras, mas por
aquele que chama” o arminiano responde que é pelas obras futuras ,
contradizendo categoricamente as pró prias palavras do apó stolo.
Que o decreto da eleiçã o de modo algum teve por base a previsã o de
Deus é refutado por Paulo quando diz que o propó sito desse decreto
foi “para que fô ssemos santos” (Ef 1.4). Além do mais, o apó stolo
insiste que a salvaçã o “nã o é pelas obras, para que ninguém se
glorie”. Em 2 Timó teo 1.9, lemos que é Deus “que nos salvou e
chamou com santa vocaçã o, nã o conforme as nossas obras, e sim
segundo o seu propó sito e a graça que nos foi dada em Cristo Jesus,
antes dos tempos eternos”. É por isso que os calvinistas sustentam
que a eleiçã o precede toda obra e que, portanto, nã o tem por base
nenhuma boa obra feita pelo indivíduo. A essência da doutrina é
que, na redençã o, Deus nã o se viu impelido por consideraçõ es de
mérito ou bondade nos objetos de sua misericó rdia salvífica. “Que
nã o é de quem quer ou de quem corre, mas de Deus em usar de
misericó rdia, que o pecador obtém a salvaçã o, é o firme testemunho
de toda a Escritura, e é ensinado em repetidas ocasiõ es e em
conexõ es tã o variadas, que exclui completamente a possibilidade de
que possa haver por detrá s do ato da eleiçã o alguma consideraçã o
ao cará ter ou obras ou circunstâ ncias vistas de antemã o por Deus, as
quais sempre aparecem como os resultados da eleiçã o”. [50]
Em termos gerais, a preordenaçã o nã o pode repousar na
presciência; já que somente aquilo que está seguro pode ser
conhecido de antemã o; e somente aquilo que foi predeterminado
pode ser garantido. O onipotente e soberano Governante do
universo nã o governa a si mesmo com base numa presciência de
eventos que podem acontecer acidentalmente . Através das
Escrituras, a presciência divina é apresentada como dependente do
propó sito divino, e Deus só conhece tudo de antemão porque já o
havia predeterminado . Sua presciência outra coisa nã o é senã o uma
có pia de sua vontade quanto ao que há acontecer no futuro; e o
curso que o mundo toma sob seu controle providencial outra coisa
nã o é senã o a execuçã o de seu plano universal. Sua presciência do
que ainda resta por conhecer, seja em relaçã o ao mundo em sua
totalidade ou à vida de cada indivíduo com todos os seus detalhes,
descansa sobre seu plano preordenado (Jr 1.5; Sl 139.14-16; Jó
23.13, 14; 28.26, 27; Am 3.7).
Há , contudo, uma passagem nas Escrituras que frequentemente é
citada como prova de que a eleiçã o ou mesmo a preordenaçã o, em
geral, tem por base a presciência divina. Romanos 8.29, 30 declara:
“Porquanto aos que de antemã o conheceu, também os predestinou
para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o
primogênito entre muitos irmã os. E aos que predestinou, a esses
também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos
que justificou, a esses também glorificou”. Cabe assinalar, contudo,
que a palavra “conhecer” é com frequência usada nas Escrituras
num sentido distinto daquele mero conhecimento intelectual da
coisa mencionada. À s vezes significa que aqueles que sã o
“conhecidos” sã o os objetos especiais e particulares do favor de
Deus. Temos um exemplo disto quando Deus disse aos judeus: “De
todas as famílias da terra a vó s somente conheci” (Am 3.2, ARC).
Paulo escreveu: “Mas, se alguém ama a Deus, esse é conhecido por
ele” (1Co 8.3). Somos informados que Jesus “conhece” as suas
ovelhas (Jo 10.14, 27); já dos ímpios ele diz: “Nunca vos conheci” (Mt
7.23). No primeiro salmo, lemos: “Pois o SENHOR conhece o caminho
dos justos, mas o caminho dos ímpios perecerá ” (Sl 1.6).
Todas essas passagens fazem alusã o a algo mais que um mero
conhecimento mental, porque, presumivelmente, Deus possui o
pleno conhecimento tanto dos ímpios quanto dos justos. Nessas
passagens, o conhecimento é aquele que tem como seus objetos
unicamente os eleitos, e se torna sinô nimo de amor, favor e
aprovaçã o. Os de Romanos 8.29, que sã o conhecidos de antemã o, o
sã o no sentido de terem sido pré-designados a ser os objetos
especiais do favor divino. Podemos ver isso ainda mais claramente
em Romanos 11.2-5, onde lemos: “Deus nã o rejeitou o seu povo, a
quem de antemão conheceu ”. O apó stolo faz uma comparaçã o com o
tempo de Elias, quando Deus “reservou” sete mil que nã o dobraram
os joelhos diante de Baal. E no versículo cinco, ele acrescenta:
“Assim, pois, também agora, no tempo de hoje, sobrevive um
remanescente segundo a eleição da graça ”. Os que foram conhecidos
de antemã o no versículo dois, e os escolhidos pela graça sã o as
mesmas pessoas; portanto, foram conhecidos de antemã o no sentido
de terem sido predestinados para que fossem os objetos de seus
graciosos propó sitos. Note-se especialmente que Romanos 8.29 não
diz que foram conhecidos de antemã o como praticantes de boas
obras, e sim que foram conhecidos de antemã o como indivíduos a
quem Deus havia de estender a graça da eleiçã o. Além disso, nota-se
que Paulo fez uso aqui do termo “conhecer de antemã o” para dar a
entender que a eleiçã o teria por base uma mera previsã o se ele
estivesse contradizendo seus ensinos em outros lugares, onde lemos
que ela é segundo o beneplácito de Deus .
A visã o arminiana tira a eleiçã o das mã os de Deus e a põ em nas
mã os do homem. Isso faz com que os propó sitos do Deus onipotente
dependam da precá ria vontade do homem apó stata e faz com que os
acontecimentos temporais sejam a causa de suas obras eternas.
Além do mais, implica que Deus criou um conjunto de seres
soberanos dos quais, até certo grau, a sua vontade e as suas obras
dependem. Esta posiçã o apresenta Deus como um pai benévolo que
se esforça por fazer com que seus filhos ajam corretamente, mas
que, em geral, é derrotado em seu intento de corrigir suas vontades
perversas. Além do mais, esse conceito o apresenta como tendo
desenvolvido um plano que, através dos séculos, tem sido frustrado
em tantas ocasiõ es que, como consequência, muito mais pessoas
têm ido para o inferno do que as que têm ido para o céu. Uma
doutrina que conduz a tais absurdos nã o só é anti-bíblica, mas
também irracional e desonrosa para com Deus. O calvinista, por sua
vez, apresenta-nos um grandioso Deus que é infinito em suas
perfeiçõ es, e que usa de misericó rdia e justiça conforme vê ser mais
conveniente, e que, na realidade, governa os homens em suas
atividades.
As Escrituras e a experiência cristã nos ensinam que mesmo a fé e o
arrependimento, mediante os quais somos salvos, sã o dons de Deus.
“Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto nã o vem de vó s;
é dom de Deus” (Ef 2.8). Os crentes da Acaia: “mediante a graça,
haviam crido” (At 18.27). Uma pessoa nã o é salva porque crê em
Cristo; mas crê em Cristo porque é salva. Inclusive o pró prio ponto
de partida da fé, a disposiçã o de buscar a salvaçã o, é em si uma obra
da graça e dom de Deus. Paulo afirma muitas vezes que somos
salvos “mediante” a fé (isto é, a fé como causa instrumental ); mas
nem sequer uma vez diz que somos salvos “por causa de” a fé (isto é,
a fé como causa meritória ). Para o mesmo efeito, podemos dizer que
os redimidos serã o recompensados em proporção à s suas boas
obras, mas nã o por causa delas. Em consonâ ncia com isso, Agostinho
diz que “os eleitos de Deus sã o escolhidos por ele a fim de serem
seus filhos, a fim de fazê-los crentes, e nã o porque viu de antemã o
que eles iam crer”.
O arrependimento é, igualmente, dom de Deus. “Logo, também aos
gentios foi por Deus concedido o arrependimento para vida” (At
11.18). “Deus, porém, com a sua destra, o exaltou a Príncipe e
Salvador, a fim de conceder a Israel o arrependimento e a remissã o
de pecados” (At 5.31). Paulo repreendeu aos que nã o entendiam que
foi a bondade de Deus que os conduziu ao arrependimento (Rm 2.4).
Jeremias clamou: “Bem ouvi que Efraim se queixava, dizendo:
Castigaste-me, e fui castigado como novilho ainda nã o domado;
converte-me, e serei convertido, porque tu és o SENHOR , meu Deus.
Na verdade, depois que me converti, arrependi-me; depois que fui
instruído, bati no peito; fiquei envergonhado, confuso, porque levei
o opró brio da minha mocidade” (Jr 31.18, 19). Acaso foi por haver
arrependimento em Joã o Batista que ele foi “cheio do Espírito Santo
desde o ventre de sua mã e” (Lc 1.15)? Jesus disse aos seus
discípulos que a eles foi dado o conhecimento dos mistérios do reino
dos céus, porém aos demais nã o lhes foi dado (Mt 13.11). Basear a
eleiçã o numa fé prevista equivale dizer que somos ordenados à vida
eterna porque cremos; as Escrituras, contudo, declaram o contrá rio:
“e creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna”
(At 13.48).
Nossa salvaçã o se deu “nã o por obras de justiça praticadas por nó s,
mas segundo a sua misericó rdia, ele nos salvou mediante o lavar
regenerador e renovador do Espírito Santo” (Tt 3.5). Somos
exortados a que desenvolvamos nossa salvaçã o com temor e tremor,
pois é Deus quem opera em nó s tanto o querer como o fazer ,
segundo a sua boa vontade. Esforçamo-nos por cultivar nossa
salvaçã o e nos ocupamos dela precisamente porque Deus já está
operando em nó s (Fp 2.12, 13). O salmista nos informa que o povo
do Senhor se oferece voluntariamente no dia do seu poder (Sl
110.3). A conversã o é um dom particular e soberano de Deus. O
pecador nã o tem nenhum poder de por si mesmo volver-se para
Deus, senã o que é movido ou renovado pela graça divina antes que
possa fazer algum bem espiritual.
Em consonâ ncia com isto, Paulo nos ensina que o amor, a alegria, a
paz, a bondade, a fé, o domínio pró prio, etc., nã o sã o a base
meritó ria da salvaçã o; mas, ao contrá rio, “o fruto do Espírito” (Gl
5.22, 23). Paulo mesmo foi escolhido para que viesse a conhecer e a
fazer a vontade divina, nã o porque Deus previsse que ele procederia
assim (At 22.14, 15). Agostinho nos diz que “a graça de Deus nã o
encontra os homens já capacitados para ser eleitos, senã o que ela os
capacita”; e adiciona: “A natureza da bondade divina nã o é só abrir
à queles que clamam, mas também movê-los a clamar e a rogar”.
Lutero expressou a mesma verdade quando disse: “Somente Deus,
por seu Espírito, opera em nó s o mérito e a recompensa”. O apó stolo
Joã o diz que “nó s o amamos, porque ele nos amou primeiro” (1Jo
4.19). Inequivocamente, estas passagens ensinam que a fé e as boas
obras sã o o fruto da obra de Deus em nó s. Nó s nã o fomos escolhidos
por sermos bons, e sim com o fim de sermos bons.
Ainda que as boas obras nã o sejam a base da salvaçã o, nã o obstante
sã o absolutamente essenciais à salvaçã o como seus frutos e
evidências. Ditos frutos sã o produzidos pela fé tã o naturalmente
como as uvas sã o produzidas pela videira. E ainda que ditos frutos
nã o nos façam justos diante de Deus, nã o obstante sua relaçã o com a
fé é tã o íntima que nã o pode haver fé genuína à parte deles. Nem
tampouco pode haver boas obras, no sentido restrito da palavra, à
parte da fé. Nossa salvaçã o nã o é “ através das obras”, e sim “ para as
boas obras” (Ef 2.9, 10); e o crente genuíno só se sentirá em seu
elemento natural quando produz boas obras. Tiago assinala que a fé
é espú ria e falsa se nã o produz boas obras. Jesus ensinou este
mesmo princípio quando disse que o cará ter de uma á rvore é
conhecido por seus frutos, e que uma á rvore boa nã o pode produzir
frutos maus. As boas obras sã o tã o naturais em um crente como a
pró pria respiraçã o; o crente nã o respira para obter vida, e sim
porque ele tem vida; e, portanto, nã o pode evitar a respiraçã o. As
boas obras sã o sua gló ria. Jesus disse: “Assim brilhe a vossa luz
diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e
glorifiquem [nã o a vó s, mas] ao vosso Pai que está nos céus”, a quem
realmente pertence a gló ria.
A posiçã o calvinista é a ú nica que é ló gica, se aceitamos o ensino das
Escrituras de que a salvaçã o é unicamente pela graça. Qualquer
outra posiçã o nos envolve num caos de conceitos contraditó rios no
tocante à s Escrituras. Certamente há mistérios envolvidos em nossa
posiçã o; e, sem lugar a dú vida, se este esquema ocorresse ao homem
natural, este teria pedido que se desenvolvesse um plano. Descartar,
porém, a doutrina bíblica da predestinaçã o, simplesmente porque
ela nã o se encaixa em nossos juízos e noçõ es preconcebidos, é pura
estultícia. Proceder dessa maneira é fazer o Criador comparecer
perante o tribunal da razã o humana; é negar a sabedoria e a justiça
dos seus atos só porque estes nos sã o insolú veis; e entã o declarar
que a sua revelaçã o é falsa e enganosa.
“É uma perigosa presunçã o dos homens querer, com mã os imundas,
resolver os profundos mistérios de Deus com a sua mente carnal,
quando o grande apó stolo se deteve perante os mesmos mistérios e
exclamou: ‘Ó profundidade, quã o insondá vel!’ e ‘Quem conheceu a
mente do Senhor?’. Se Paulo possuísse a mesma persuasã o
arminiana, ele nã o teria expressado dessa maneira, mas
simplesmente teria dito: ‘Os eleitos sã o aqueles que Deus prevê que
creriam e perseverariam’!”. [51] Nã o haveria nenhum mistério se a
salvaçã o tivesse como base as boas obras dos homens.
Temos aqui, pois, um sistema do qual fica excluída toda jactâ ncia e
no qual a salvaçã o, em todas as suas partes, é produto da mera graça
divina, uma salvaçã o que nã o se fundamenta nas boas obras, muito
embora produza boas obras.
 
5. A reprovação
 
A doutrina da predestinaçã o absoluta afirma logicamente que assim
como uns sã o preordenados para a morte, outros o sã o para a vida.
Os termos “escolhido” e “eleiçã o” implicam que uns “nã o foram
escolhidos”; a saber, os “reprovados”. A escolha de alguns
naturalmente implica que outros sã o deixados fora. Os grandes
privilégios e o glorioso destino dos primeiros nã o sã o partilhados
pelos segundos. E isto procede de Deus. Cremos que desde toda a
eternidade Deus se propô s deixar em seus pecados alguns da
posteridade de Adã o, e que o fato decisivo na vida de cada um se
encontra tã o somente na vontade de Deus. Mozley disse que toda a
raça, apó s a queda, é “uma massa de perdiçã o”, e que “aprouve a
Deus, em sua soberana misericó rdia, resgatar alguns e deixar outros
em seu estado de pecado; levantar uns para a gló ria, comunicando-
lhes a graça necessá ria para alcançá -la, e recusar a mesma graça ao
resto, deixando-os sofrer o castigo eterno”. [52]
A principal dificuldade com a doutrina da eleiçã o surge em sua
relaçã o com os nã o salvos; e as Escrituras nã o nos deixaram uma
explicaçã o plena da condiçã o destes. Posto que a missã o de Jesus
fosse salvar o mundo e nã o a de julgá -lo, a referência aos nã o salvos
é discutida com menor frequência.
Em todos os credos reformados onde se lida com a doutrina da
reprovaçã o, eles lidam com a dita doutrina como parte essencial da
doutrina da predestinaçã o. A Confissão de Westminster , apó s
explanar a doutrina da eleiçã o, adiciona: “Segundo o inescrutá vel
conselho de sua pró pria vontade, pela qual ele concede ou recusa
misericó rdia, como lhe apraz, para a gló ria de seu soberano poder
sobre as suas criaturas, para louvor da sua gloriosa justiça; o resto
dos homens foi Deus servido nã o contemplar e ordená -los para a
desonra e ira por causa dos seus pecados”. [53]
Aqueles que sustentam a doutrina da eleiçã o, porém negam a da
reprovaçã o, sã o inconsistentes. Sustentar a primeira e negar a
segunda converte o decreto da predestinaçã o num decreto iló gico e
desproporcional. Podemos comparar o credo que sustenta a
primeira, porém nega a segunda, a uma á guia ferida tentando voar
com uma só asa. Nos interesses do “calvinismo moderado”, alguns
sã o inclinados a descartar a doutrina da reprovaçã o, e esse termo
(em si completamente inofensivo) se converteu em um que deu
lugar a preconceituosos ataques contra o verdadeiro calvinismo. Um
“calvinismo moderado” é sinô nimo de um calvinismo enfermo; e
uma enfermidade, se nã o for curada, é o princípio do fim.
COMENTÁRIOS DE CALVINO, LUTERO E WARFIELD.
Calvino nã o vacilou em basear tanto a reprovaçã o dos perdidos
quanto a eleiçã o dos salvos no eterno propó sito de Deus.
Anteriormente, já citamos que, de fato, “nem todos os homens sã o
criados com o mesmo destino, mas que uns sã o ordenados para a
vida eterna e outros, para a condenaçã o perpétua. Cada um,
portanto, sendo criado para um ou o outro destes fins, dizemos que
ele está ou preordenado para a vida ou para a morte”. E outra vez,
ele diz: “Nã o pode haver eleiçã o sem seu oposto, a reprovaçã o”. [54]
Ele mesmo admite que a doutrina da reprovaçã o suscita problemas
difíceis de resolver, porém ensina tal doutrina porque a considera
como sendo a ú nica explicaçã o inteligente e bíblica dos fatos.
Lutero, como Calvino, atribui a perdiçã o eterna dos ímpios, assim
como a salvaçã o eterna dos justos, ao plano de Deus. Diz ele: “Que
Deus, movido por sua vontade, endurece e condena alguns e lhes
permite que continuem em seus caminhos perversos é algo que
ofende profundamente a nossa natureza racional; porém sã o
abundantes as provas de que esse é verdadeiramente o caso; a
saber, a ú nica razã o pela qual alguns sã o salvos e outros perecem
procede da determinaçã o divina de salvar uns e de deixar outros
perecerem, conforme as palavras de Sã o Paulo: ‘Ele tem
misericó rdia de quem quer, e a quem quer endurece’”. E,
novamente: “Pode parecer absurdo à sabedoria humana que Deus
endureça, cegue e entregue alguns a um estado de reprovaçã o; que
primeiramente os entregue ao mal e que logo a seguir os condene
pelo mesmo mal; mas o crente espiritual nã o vê nada de absurdo
nisto, sabendo que Deus nã o seria de modo algum menos bom ainda
que procedesse a destruir todos os homens”. Lutero acrescenta que
isto nã o significa que Deus encontra homens bons, prudentes e
obedientes e os converte em maus, néscios e obstinados, mas que os
encontra em uma condiçã o depravada e apostatada, e que os nã o
regenerados, em vez de volver-se para o bem, obedecendo aos
mandamentos e influências divinas, reagem contra tais
mandamentos e influências e se tornam piores ainda. Com respeito a
Romanos 9, 10 e 11, Lutero diz que “todas as coisas se originam e
dependem do desígnio divino, pelo qual foram preordenados os que
haviam de receber a Palavra da vida e os que haviam de rejeitá -la; os
que haviam de ser libertados de seus pecados e os que haviam de
ser endurecidos neles; os que haviam de ser justificados e os que
haviam de ser condenados”. [55]
“Os escritores da Bíblia”, diz o Dr. Warfield, “jamais obscurecem a
doutrina da eleiçã o devido a alguns corolá rios aparentemente
desagradá veis que se depreendem dela. Ao contrá rio, deduzem
expressamente esses corolá rios e os fazem parte de seu ensino
explícito. Eles nos dizem, por exemplo, que a doutrina da eleiçã o
certamente inclui a doutrina correspondente da preterição . O
pró prio termo usado no Novo Testamento para expressá -lo —
eklegomai , o qual, no dizer de Meyer (Ef 1.4), ‘implica sempre, por
necessidade lógica , que há outro grupo ao qual os escolhidos, sem a
ekloga , ainda pertenceriam — incorpora a declaraçã o do fato de que
na eleiçã o desses outros sã o passados por alto e deixados sem o
dom da salvaçã o; a apresentaçã o da doutrina é tal que ou implica ou
afirma explicitamente a remoçã o dos eleitos pela mera graça de
Deus, nã o meramente de um estado de condenaçã o, mas também do
grupo dos condenados — um grupo sobre o qual a graça de Deus
nã o tem efeito salvador, e que sã o deixados em seus pecados sem
esperança; e a positiva reprovaçã o justa dos impenitentes por seus
pecados é ensinada explicitamente uma e outra vez no marcante
contraste com a salvaçã o gratuita dos eleitos apesar dos seus
pecados”. [56]
E o Dr. Warfield ainda acrescenta: “Suspeitamos que a dificuldade
que alguns experimentam em relaçã o ao argumento do apó stolo
aqui (Rm 11) em parte se deve ao que lhes parece ser uma
designaçã o arbitrá ria de homens a destinos distintos sem levar em
consideraçã o o merecimento de cada qual. Sã o Paulo ressalta a
soberania da reprovaçã o tã o explicitamente quanto à da eleiçã o
(ainda que ambas as ideias sejam uma unidade que nem mesmo no
pensamento podem separar-se); apresenta Deus como aquele que
ama soberanamente a Jacó , de igual modo o apresenta como aquele
que aborrece soberanamente a Esaú ; declara que Deus tem
misericó rdia de quem quer como também o apresenta como o
mesmo Deus que endurece a quem quer. Sem dú vida, a dificuldade
que muitos experimentam aqui se deve, em parte, a uma
compreensã o insuficiente do conceito bá sico de Sã o Paulo de que
todos os homens se encontram sob a condenaçã o de um Deus irado.
Ele apresenta Deus como a lidar com um mundo de pecadores
perdidos; e das ruínas desse mundo ele edifica um reino de graça.
Ainda que todos os homens nã o fossem pecadores, ainda assim
poderia haver uma eleiçã o, tã o soberana como agora; e, havendo
uma eleiçã o, haveria também uma rejeiçã o soberana como agora;
porém, a rejeiçã o nã o seria para o castigo, para a destruiçã o, para a
morte eterna, mas para algum outro destino consoante ao estado em
que os que foram passados por alto deveriam ser deixados.
Portanto, que alguns nã o sã o eleitos nã o se deve a que os homens
sejam pecadores; a eleiçã o é livre e o seu complemento, a
reprovaçã o, é igualmente livre; mas justamente porque os homens
sã o pecadores é que sã o deixados para a destruiçã o. É neste
universalismo de destruiçã o, antes que um universalismo de
salvaçã o que Sã o Paulo realmente fundamenta sua teodiceia.
Quando todos merecem a morte, é uma verdadeira maravilha de
mera graça que alguém receba vida; e quem negará o direito
daquele que exibe esta maravilhosa misericó rdia de ter compaixã o
de quem quer e de endurecer a quem lhe apraz?”. [57]  
 
PROVA BÍBLICA
Esta doutrina, sem sombra de dú vida, é desagradá vel. Nó s a
ensinamos nã o para granjear o favor dos homens, mas
simplesmente porque as Escrituras a ensinam com clareza e porque
ela é o complemento ló gico da doutrina da eleiçã o. Algumas
passagens das Escrituras a ensinam com inequívoca clareza. As
seguintes passagens deveriam ser suficientes para convencer a
todos quantos aceitam a Bíblia como a Palavra de Deus. “O SENHOR
fez todas as coisas para determinados fins e até o perverso para o
dia da calamidade” (Pv 16.4). As Escrituras afirmam o que é Cristo
para os ímpios: “Pedra de tropeço e rocha de ofensa. Sã o estes os
que tropeçam na palavra, sendo desobedientes, para o que também
foram postos” (1Pe 2.8). “Pois certos indivíduos se introduziram
com dissimulaçã o, os quais, desde muito, foram antecipadamente
pronunciados para esta condenaçã o; homens ímpios, que
transformam em libertinagem a graça de nosso Deus e negam o
nosso ú nico Soberano e Senhor, Jesus Cristo” (Jd 4). “Esses, todavia,
como brutos irracionais, naturalmente feitos para presa e
destruiçã o, falando mal daquilo em que sã o ignorantes; em sua
destruiçã o também hão de ser destruídos ” (2Pe 2.12). “Porque em
seu coraçã o incutiu Deus que realizem o seu pensamento, o
executem à uma e deem à besta o reino que possuem, até que se
cumpram as palavras de Deus” (Ap 17.17). “... e a adorarã o todos os
que habitam sobre a terra, aqueles cujos nomes não foram escritos
no livro da vida do Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo
” (Ap 13.8). Com esses adoradores sã o contrastados os discípulos a
quem Jesus disse que deveriam regozijar-se porque seus nomes
estavam escritos nos céus (Lc 10.20) e os colaboradores de Paulo
“cujos nomes se encontram no livro da vida” (Fp 4.3).
Paulo diz que os “vasos de ira”, que por Deus foram “preparados
para a perdiçã o”, foram “suportados com muita longanimidade” a
fim de que o Senhor pudesse “mostrar a sua ira e fazer notó rio o seu
poder”; com esses se contrastam os “vasos de misericó rdia, que para
a gló ria preparou de antemã o” a fim de “fazer conhecidas as
riquezas de sua gló ria” (Rm 1.28). Com respeito aos pagã os, lemos
que “o pró prio Deus os entregou a uma disposiçã o mental
reprová vel, para praticarem coisas inconvenientes” (Rm 1.28). E,
quanto ao ímpio, “segundo a tua dureza e coraçã o impenitente,
acumulas contra ti mesmo ira para o dia da ira e da revelaçã o do
justo juízo de Deus” (Rm 2.5).
Com respeito aos que perecem, Paulo diz que “Deus lhes manda a
operaçã o do erro, para darem crédito à mentira” (2Ts 2.11). Apesar
de contemplarem as maravilhas de Deus externamente, continuam
perecendo em seus pecados. As palavras de Paulo na sinagoga de
Antioquia da Pisídia foram: “Vede, ó desprezadores, maravilhai-vos
e desvanecei, porque eu realizo, em vossos dias, obra tal que nã o
crereis se alguém vo-la contar” (At 13.41).
O apó stolo Joã o, depois de narrar como o povo nã o creu, muito
embora Jesus fizesse tantos sinais diante deles, acrescenta: “Por isso,
nã o podiam crer, porque Isaías disse ainda: Cegou-lhes os olhos e
endureceu-lhes o coraçã o, para que nã o vejam com os olhos, nem
entendam com o coraçã o, e se convertam, e sejam por mim curados”
(Jo 12.39, 40).
A ordem de Cristo aos ímpios no dia do juízo final, “Apartai-vos de
mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus
anjos” (Mt 25.41), expressa o mais só lido decreto da reprovaçã o; e,
em princípio, o mesmo será emitido no tempo ou na eternidade. O
que é justo que Deus faça no tempo, nã o é injusto incluir em seu
plano eterno.
Em certa ocasiã o, o pró prio Jesus declarou: “Eu vim a este mundo
para juízo, a fim de que os que nã o veem vejam, e os que veem se
tornem cegos” (Jo 9.39). Em outra ocasiã o, ele disse: “Graças te dou,
ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos
sá bios e instruídos e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11.25). Nã o é
difícil compreender que o adorá vel Salvador dos homens seja para
alguns pedra de tropeço e rocha de ofensa; no entanto, é justamente
isso que as Escrituras rezam sobre ele. Mesmo antes de seu
nascimento, foi dito dele: “Eis que este menino está destinado tanto
para ruína como para levantamento de muitos em Israel e para ser
alvo de contradiçã o” (Lc 2.34). E quando, em sua oraçã o
intercessó ria no jardim de Getsemane, ele disse: “É por eles que eu
rogo; nã o rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque
sã o teus” (Jo 17.9). Os nã o eleitos foram excluídos da oraçã o
intercessó ria sem rodeios.
Jesus disse que uma das razõ es por que ele falava por pará bolas era
para encobrir a verdade daqueles para os quais esta nã o fora
destinada. Deixaremos que o pró prio relato sagrado testifique:
“Entã o, se aproximaram os discípulos e lhe perguntaram: Por que
lhes falas por pará bolas? Ao que respondeu: Porque a vó s outros é
dado conhecer os mistérios do reino dos céus, mas à queles nã o lhes
é isso concedido. Pois ao que tem se lhe dará , e terá em abundâ ncia;
mas, ao que nã o tem, até o que tem lhe será tirado. Por isso, lhes falo
por pará bolas; porque, vendo, nã o veem; e, ouvindo, nã o ouvem,
nem entendem. De sorte que neles se cumpre a profecia de Isaías:
Ouvireis com os ouvidos e de nenhum modo entendereis; vereis com
os olhos e de nenhum modo percebereis. Porque o coraçã o deste
povo está endurecido, de mau grado ouviram com os ouvidos e
fecharam os olhos; para nã o suceder que vejam com os olhos, ouçam
com os ouvidos, entendam com o coraçã o, se convertam e sejam por
mim curados” (Mt 13.10-15; Is 6.9, 10).
Nas palavras acima temos uma aplicaçã o das palavras de Jesus,
quando disse: “Nã o deis aos cã es o que é santo, nem lanceis ante os
porcos as vossas pérolas, para que nã o as pisem com os pés e,
voltando-se, vos dilacerem” (Mt 7.6). Os que sustentam que Jesus
tinha a intençã o de conceder sua verdade salvífica a todos
contradizem o pró prio Cristo. A Bíblia é um livro vedado aos nã o
eleitos; somente ao crente é “dado” ver e entender estas coisas. De
tanta importâ ncia é esta verdade, que o Espírito Santo repetiu esta
passagem de Isaías seis vezes no Novo Testamento (Mt 13.14, 15; Mc
4.12; Lc 8.10; Jo 12.40; At 28.27; Rm 11.9, 10). Paulo afirma que “os
escolhidos” alcançaram a salvaçã o mediante a graça, e os demais
foram endurecidos ; e a seguir adiciona: “como está escrito: Deus
lhes deu espírito de entorpecimento, olhos para nã o ver e ouvidos
para nã o ouvir, até o dia de hoje. E Davi declara: Torne-se-lhes a
mesa em laço e armadilha, em tropeço e puniçã o; escureçam-se-lhes
os olhos, para que nã o vejam, e fiquem para sempre encurvadas as
suas costas” (Rm 11.8-10).
Estas passagens deixam estabelecido claramente o fato de que a
proclamaçã o do evangelho tinha o propó sito de endurecer alguns e
nã o de curá -los.
Esta mesma doutrina encontra expressã o em outras tantas partes
das Escrituras. Moisés disse aos filhos de Israel: “Mas Seom, rei de
Hesbom, nã o nos quis deixar passar por sua terra, porquanto o
SENHOR , teu Deus, endurecera o seu espírito e fizera obstinado o seu
coraçã o para dá -los nas mã os, como hoje se vê” (Dt 2.30). No tocante
à s tribos cananeias que subiram contra Josué, está escrito:
“Porquanto do SENHOR vinha o endurecimento do seu coraçã o para
saírem à guerra contra Israel, a fim de que fossem totalmente
destruídos e nã o lograssem piedade alguma; antes, fossem de todo
destruídos, como o SENHOR havia ordenado a Moisés” (Js 11.20). Ofni
e Finéias, filhos de Eli, ao serem repreendidos por sua maldade, “nã o
ouviram a voz de seu pai, porque o SENHOR os queria matar” (1Sm
2.25). Ainda que Faraó agisse de maneira arrogante e perversa
contra os israelitas, Paulo atribui isso simplesmente ao fato de que o
rei era um dos réprobos cujos atos malvados tinham de ser
controlados soberanamente a fim de que redundassem para o bem:
“Porque a Escritura diz a Faraó : Para isto mesmo te levantei, para
mostrar em ti o meu poder e para que o meu nome seja anunciado
por toda a terra” (Rm 9.17; veja também Ê x 9.16). A cegueira e a
dureza do coraçã o é uma característica de todos os réprobos; e
quando lemos que alguém, como Faraó , foi endurecido por Deus,
podemos estar certos de que por si só esse mesmo já era digno de
ser entregue a Sataná s. Cabe-nos assinalar que o coraçã o dos ímpios
nunca é endurecido por influência direta de Deus — este apenas
permite que algumas pessoas sigam as má s influências que já
existem em seu coraçã o, e como resultado de sua pró pria decisã o se
torna cada vez mais insensíveis e obstinados. Muito embora se diga
que Deus endureceu o coraçã o de Faraó , também se afirma que
Faraó endureceu seu pró prio coraçã o (Ê x 9.15; 8.32; 8.34). A
primeira é uma descriçã o dada do ponto de vista divino; a outra é
dada do ponto de vista humano. Em ú ltima aná lise, Deus é
responsá vel pelo endurecimento do coraçã o, já que ele permite que
isso aconteça; e, portanto, o escritor inspirado, em linguagem
grá fica, simplesmente diz que Deus é quem o faz; porém jamais se
deve entender que Deus é a causa imediata e eficiente desse
endurecimento.
Ainda que esta doutrina seja dura, nã o obstante é bíblica. Visto que
as Escrituras a ensinam tã o claramente, nã o podemos achar outra
razã o para a oposiçã o que ela encontra, a saber, a mera ignorâ ncia e
o preconceito irracional é que enchem as mentes de alguns ao
estudá -la. As palavras de Rice sã o de muita propriedade, quando
escreveu: “Que bem seria para a igreja de Cristo e para o mundo se
os ministros cristã os e o povo cristã o se contentassem em ser alunos
— aprendizes ; sim, cô nscios de suas limitadas faculdades, de sua
ignorâ ncia das coisas divinas e de sua propensã o natural ao erro, em
razã o de sua depravaçã o e preconceito, caso se deixassem induzir a
sentar-se aos pés de Jesus e aprender dele e com ele. A igreja tem
sofrido corrupçã o e maldiçã o em quase todas as épocas em razã o de
sua confiança nos homens, em seus poderes e raciocínio. Muitos têm
se dedicado a pronunciamentos racionais e irracionais de doutrinas
que estã o infinitamente além do alcance de sua razã o, as quais sã o
assuntos exclusivos da revelaçã o. Em sua presunçã o, muitos têm
tentado compreender ‘as coisas profundas de Deus’, e têm
interpretado as Escrituras nã o conforme o significado ó bvio destas,
mas conforme as decisõ es da razã o finita”. E a seguir, diz: “Ninguém
tem estudado as obras da natureza ou o livro da revelaçã o divina
sem se ver rodeado de todos os lados por dificuldades impossíveis
de resolver. O filó sofo tem de conformar-se aos fatos ; e o teó logo
deve contentar-se com as declaraçõ es de Deus”. [58]
É curioso notar que muitos dos que insistem em que, quando se
estuda a doutrina da Trindade, devem deixar de lado todas as ideias
preconcebidas e nã o dependam meramente da razã o humana para
decidir qual é ou nã o a verdade de Deus; e insistem que somente as
Escrituras sejam aceitas como o guia inquestioná vel e autoritativo,
sã o os mesmos que nã o estã o dispostos a seguir essas regras no
estudo da doutrina da predestinaçã o.
A DOUTRINA DA REPROVAÇÃO ESTÁ BASEADA NA DO PECADO
ORIGINAL; NÃO SE FAZ NENHUMA INJUSTIÇA AOS ELEITOS.
É ó bvio que esta parte da doutrina da predestinaçã o, a qual afirma
que Deus escolheu, através de um decreto soberano e eterno, uma
porçã o da humanidade para a salvaçã o, enquanto o resto ele deixou
entregue à destruiçã o, à primeira vista parece contrariar nossas
ideias sobre a justiça, e por isso requer defesa. A defesa da doutrina
da reprovaçã o repousa sobre a doutrina do pecado original ou da
incapacidade total (que já discutimos até aqui). O decreto de
reprovaçã o encontra toda a raça apostatada. Ninguém tem direito à
graça divina. Contudo, em vez de deixar todos entregues ao
sofrimento do justo castigo, Deus confere, gratuitamente, felicidade
imerecida a uma parte da humanidade — ato este de pura
misericó rdia e graça, ao que ninguém pode objetar — e
simplesmente passa por alto os demais. Nenhum castigo imerecido é
infligido a estes ú ltimos. Portanto, ninguém tem o direito de objetar
contra esta parte do decreto. Se o decreto lidasse com homens
inocentes, entã o seria injusto designar uma parte à condenaçã o;
mas, visto que ele lida com homens numa condiçã o particular, isto é,
num estado de culpa e pecado, entã o nã o é injusto. “O conceito de
que o mundo jaz no maligno e que, por isso, já foi julgado (Jo 3.18),
de modo que a ira de Deus nã o é derramada sobre aqueles que nã o
sã o resgatados da iniquidade do mundo, mas simplesmente
permanece sobre eles (Jo 3.36; cf. 1Jo 3.14), é fundamental para a
apresentaçã o total desta doutrina. Jesus se apresenta como tendo
vindo nã o para condenar o mundo, mas para salvá -lo (Jo 3.17; 8.12;
9.5; 2.43; cf. 4.42), e tudo o que ele faz tem em vista introduzir vida
ao mundo (Jo 6.33, 51); o mundo já está condenado e já nã o
necessita de condenaçã o, e sim de salvaçã o”. [59]
O homem culpado já perdeu seus direitos e se encontra debaixo da
vontade de Deus. Portanto, nã o podemos objetar quando Deus, em
sua soberania, manifesta sua misericó rdia para com alguns e sua
justiça para com outros, a menos que tenhamos a ousadia de
questionar seu governo do universo. Visto por este prisma, o
decreto da predestinaçã o encontra a humanidade numa massa de
perdiçã o e deixa somente uma parte dela continuar nessa condiçã o.
Quando todos mereciam o castigo, nã o é injusto que ele consignasse
alguns a esse castigo; de outro modo, seria injusto executar uma
sentença justa .
David S. Clark afirma: “Dissentimos do arminiano quando ele diz que
a fé e as boas obras constituem a base da eleiçã o. Estaríamos, pois,
de acordo se ele dissesse que a incredulidade e a desobediência
previstas constituem a base da reprovaçã o. Uma pessoa nã o é salva
com base em suas virtudes, mas é condenada com base em seu
pecado. Como calvinistas convictos, insistimos que, enquanto
algumas pessoas sã o salvas de sua incredulidade e desobediência,
nas quais estã o envolvidos todos os homens, e outros nã o o sã o, a
pecaminosidade do pecador continua sendo a base de sua
reprovaçã o. A eleiçã o e a reprovaçã o têm por base princípios
distintos; a eleiçã o, na graça de Deus; a reprovaçã o, no pecado do
homem. É uma paró dia do calvinismo dizer que Deus decidiu salvar
uma pessoa sem levar em conta seu cará ter ou seu mérito; que, de
igual modo, decidiu condenar uma pessoa sem levar em conta seu
cará ter ou seu mérito”. [60]
A reprovaçã o ou o ato de passar por alto o nã o eleito está baseada
meramente num conhecimento prévio de que os pecadores hã o de
continuar em seu pecado; porque, se esta fosse a causa, a
reprovaçã o teria sido o destino de todos os homens, já que todos
foram vistos de antemã o como pecadores. Nem tampouco se pode
dizer que os que foram passados por alto eram, em todos os casos,
pecadores piores que aqueles que receberam a vida eterna. As
Escrituras sempre atribuem a fé e o arrependimento à boa vontade
de Deus e à misericordiosa operaçã o especial de seu Espírito. Os que
concebem a humanidade como inocente e merecedora da salvaçã o,
naturalmente se escandalizam quando uma parte da raça é de
antemã o consignada ao castigo. Mas quando a doutrina do pecado
original, que é ensinada de maneira tã o clara e tã o reiteradamente
nas Escrituras, é entendida corretamente, as objeçõ es à
predestinaçã o desaparecem e a condenaçã o dos ímpios é vista como
justa e natural. A salvaçã o provém unicamente do Senhor, e a
condenaçã o é a nossa justa recompensa. Os homens perecem
porque nã o querem ir a Cristo, mas se existe neles a disposiçã o para
ir, isso se deve ao fato de Deus ter operado essa disposiçã o em seus
coraçõ es. A graça eletiva inclina e faz com que a vontade do homem
persevere nessa condiçã o; e à graça seja toda a gló ria.
Além do mais, de um mundo de pecadores e rebeldes indignos de
ser salvos, Deus escolheu, por sua graça, alguns, quando poderia
muito bem passar por alto a todos como fez com os anjos apó statas
(2Pe 2.4; Jd 6). Deus se encarregou de prover a redençã o por meio
da qual os escolhidos sã o salvos. A redençã o, portanto, é de seu
direito e ele pode fazer e de fato fará segundo a sua vontade para
com os seus. Ele confere a sua graça a um e a outro nã o, segundo ele
vê ser mais conveniente. Cabe assinalar também que o fato de ele
nã o conferir a sua graça aos nã o eleitos nã o é motivado pela
destruiçã o destes; assim como a ausência de um médico é a ocasiã o,
nã o a causa eficiente, da morte de alguém que está enfermo. Eis as
palavras do Dr. Charles Hodge: “Aos olhos de um Deus de infinita
bondade e misericó rdia, foi necessá rio que alguns dentre a raça
rebelde de seres humanos sofressem a pena da lei que todos
transgrediram. É a prerrogativa de Deus determinar os que serã o
vasos de misericó rdia e os que serã o deixados a sofrer a justa
recompensa dos seus pecados”. [61]
Uma vez que o homem caiu neste estado de pecado por sua pró pria
vontade, sua condenaçã o é justa, e todas as demandas da justiça
serã o satisfeitas em seu castigo. A pró pria consciência nos informa
que o homem perece justamente, já que ele escolhe seguir a Sataná s,
em vez de Deus. Disse Jesus: “Contudo, nã o quereis vir a mim para
terdes vida” (Jo 5.40). E o Professor F. E. Hamilton afirma: “A ú nica
coisa que Deus faz é deixar [o nã o regenerado] seguir o seu pró prio
caminho. Sua natureza é ser ele malvado, e Deus simplesmente
preordenou deixá -lo nesse mesmo estado. O quadro que com
frequência os opositores do calvinista pintam, de um Deus cruel que
recusa salvar aos que desejam ardentemente ser salvos, nã o passa
de uma crassa caricatura. Deus salva a todos os que desejam ser
salvos; no entanto, nenhum, cuja natureza ainda nã o foi
transformada, deseja realmente ser salvo”. Os que se perdem, se
perdem porque deliberadamente escolhem os caminhos do pecado;
e este será o inferno dos infernos — que os homens sejam seus
pró prios destruidores.
Muitos falam como se a salvaçã o fosse o direito de nascimento. E
esquecidos do fato de que o homem teve e perdeu a sua
oportunidade supremamente favorá vel em Adã o, nos dizem que
Deus seria injusto se nã o desse a todas as criaturas culpadas uma
oportunidade de serem salvas. Com respeito à ideia de que a
salvaçã o é conferida em recompensa por alguma coisa feita pela
pessoa, Lutero disse: “Mas, suponhamos que Deus estivesse na
obrigaçã o de levar em conta o mérito daqueles que sã o condenados .
Nã o deveríamos nó s, de igual modo, afirmar também que ele
devesse levar em conta o mérito dos que hã o de ser salvos ? Porque,
se tivermos de seguir a razã o, é tã o injusto que os indignos sejam
coroados, como os justos sejam condenados”. [62]
Ninguém, com ideias corretas a respeito de Deus, presumirá que
este de repente faça algo que antes nã o houvesse pensado fazer.
Uma vez que o seu propó sito é eterno, o que ele faz no tempo é o
que desde a eternidade ele se propô s fazer. Aqueles a quem ele salva
sã o os que ele se propô s salvar desde a eternidade, e os que deixa
perecer sã o os que ele se propô s deixar perecer desde a eternidade.
Se o que Deus faz no tempo é justo, entã o o que determinou e
decretou desde a eternidade é também justo, já que o princípio
envolvido é o mesmo em ambos os casos. E se estamos certos em
dizer que desde toda a eternidade Deus se propô s exibir a sua
misericó rdia, perdoando uma grande multidã o de pecadores; por
que entã o alguns se opõ em com tanta tenacidade quando dizemos
que desde toda a eternidade Deus se propô s exibir a sua justiça,
castigando outros pecadores?
Equivale dizer que, se é justo que Deus se abstenha de salvar alguns
depois de nascerem, também é justo que ele tenha formado esse
propó sito antes que nascessem, ou seja, desde a eternidade. E uma
vez que a vontade determinante de Deus é onipotente, ela nã o pode
ser obstaculizada nem frustrada. Sendo isto assim, temos que
concluir que Deus jamais quis, nem quer agora, salvar cada
indivíduo da raça humana. Se porventura ele fizesse tal coisa,
nenhuma só alma teria se perdido, “porque, quem resistiu à sua
vontade?”. Se ele houvesse determinado salvar a todos os homens,
teria concedido a todos os homens os meios eficazes para obterem a
salvaçã o. Ora, Deus poderia dar tã o facilmente esses meios a toda a
humanidade como somente a alguns; todavia, a experiência prova
que ele nã o age assim. Concluímos, pois, que seu propó sito secreto
ou vontade decretiva nã o é que todos sejam salvos. De fato, ambas
as verdades, isto é, a verdade de que o que Deus faz desde a
eternidade, e a verdade de que somente uma parte da raça humana
é salva, sã o suficientes para completar as doutrinas da eleiçã o e
reprovaçã o.
A CONDIÇÃO DOS PAGÃOS.
O fato de que, na Providência de Deus, alguns sã o deixados sem o
evangelho e os demais meios de graça, virtualmente envolve o
princípio apresentado na doutrina calvinista da predestinaçã o.
Vemos que em todas as épocas a maior parte da humanidade foi
deixada ainda desprovida dos meios externos da graça. Ao longo dos
séculos, os judeus, que eram bem poucos, foram os ú nicos a quem
Deus deu de si uma revelaçã o especial. Jesus limitou seu ministério
pú blico quase exclusivamente a eles, e proibiu a seus discípulos de
irem a outras naçõ es antes do dia de Pentecostes (Mt 10.5, 6; 28.19;
Mc 16.15; At 1.4). Multidõ es ficaram sem a oportunidade de ouvir o
evangelho; e, portanto, morreram em seus pecados. Se a intençã o de
Deus fosse salvá -los, sem a menor sombra de dú vida lhes haveria
enviado os meios da salvaçã o. Se Deus houvesse se proposto
cristianizar a Índia e a China mil anos atrá s, certamente ele teria
alcançado seu propó sito. Todavia, foram deixadas em trevas e na
incredulidade. O estado do mundo, com todo o seu pecado, miséria e
morte, tanto pretérito quanto presente, nã o pode ter outra
explicaçã o senã o aquela que é dada nas Escrituras — a saber, que a
raça caiu em Adã o e que Deus, em sua misericó rdia, decidiu
soberanamente salvar uma inumerá vel multidã o mediante uma
redençã o que ele mesmo providenciou. É um conceito perverso e
desonroso para com Deus supor que ele se empenha continuamente
com os homens desobedientes, fazendo o má ximo que pode para
convertê-los, porém é incapaz de concretizar seus propó sitos.
Se a teoria arminiana fosse correta, isto é, que Cristo morreu por
todos os homens e que os benefícios de sua morte sã o aplicados a
todos os seres humanos, entã o se esperaria que Deus fizesse alguma
provisã o para comunicar o evangelho a todos os homens. O
problema dos pagã os, os quais vivem e morrem sem o evangelho,
sempre foi um assunto desagradá vel para os arminianos que
insistem em dizer que todos os homens têm graça suficiente, se
simplesmente decidissem fazer uso dela. Bem poucos negarã o que a
salvaçã o depende de que a pessoa ouça e aceite o evangelho. A igreja
cristã sempre esteve de acordo em declarar que os pagã os, como um
grupo, estã o perdidos. É fá cil de demonstrar que este é o ensino da
Bíblia:
“E nã o há salvaçã o em nenhum outro; porque abaixo do céu nã o
existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual
importa que sejamos salvos” (At 4.12). “Assim, pois, todos os que
pecaram sem lei, também sem lei perecerã o; e todos os que com lei
pecaram, mediante a lei serã o julgados” (Rm 2.12). “Porque
ninguém pode lançar outro fundamento, além do que foi posto, o
qual é Jesus Cristo” (1Co 3.11). “Eu sou a videira, vó s, os ramos.
Quem permanece em mim, e eu, nele, esse dá muito fruto; porque
sem mim nada podeis fazer” (Jo 15.5). “Eu sou o caminho, e a
verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai senã o por mim” (Jo 14.6).
“Por isso, quem crê no Filho tem a vida eterna; o que, todavia, se
mantém rebelde contra o Filho nã o verá a vida, mas sobre ele
permanece a ira de Deus” (Jo 3.36). “Aquele que tem o Filho tem a
vida; aquele que nã o tem o Filho de Deus nã o tem a vida” (1Jo 5.12).
“E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o ú nico Deus
verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (Jo 17.3). “Sem fé é
impossível agradar a Deus” (Hb 11.6). “Porque: Todo aquele que
invocar o nome do Senhor será salvo. Como, porém, invocarã o
aquele em quem nã o creram? E como crerã o naquele de quem nada
ouviram? E como ouvirã o, se nã o há quem pregue?” (Rm 10.13,14).
(Ou, em outras palavras, como os pagã os poderã o ser salvos se
nunca ouvirem de Cristo que é o ú nico meio de salvaçã o?) “Em
verdade, em verdade vos digo: se nã o comerdes a carne do Filho do
homem e nã o beberdes o seu sangue, nã o tendes vida em vó s
mesmos” (Jo 6.53). “Quando o atalaia vê vir a espada e nã o avisa o
povo, este perece em sua iniquidade” (Ez 33.6) — sim, o atalaia é
responsá vel por sua açã o, porém isto nã o altera as consequências
que o povo sofre. Jesus declarou que até os samaritanos, que tinham
privilégios muito maiores que as naçõ es fora da Palestina, adoravam
o que nã o conheciam; e que a salvaçã o vinha dos judeus. Veja-se
também o primeiro e o segundo capítulos de Romanos. As
Escrituras, pois, declaram claramente que, sob condiçõ es ordiná rias,
se perdem os que nã o têm Cristo e o evangelho.
Em consonâ ncia com estes fatos, a Confissão de Westminster , apó s
declarar que os que rejeitam Cristo nã o podem ser salvos,
acrescenta: “Muito menos podem salvar-se os que nã o confessam a
religiã o cristã , nã o importa quã o diligentes sejam em tentar ajustar
suas vidas à revelaçã o natural e à lei da religiã o que confessam...”.
[63]

De fato, a crença de que os pagã os estã o perdidos sem o evangelho


tem sido um dos mais poderosos argumentos a favor das missõ es
estrangeiras. Se cremos que as religiõ es pagã s têm luz e verdade
suficientes para salvar os pagã os, a urgência de levar-lhes o
evangelho diminui grandemente. Nossa atitude para com as missõ es
estrangeiras está em grande medida determinada pela resposta que
dermos a esta pergunta.
Nã o negamos que Deus ainda possa salvar alguns dentre os pagã os
adultos caso o queira, já que o Espírito opera quando, como e onde
lhe apraz, com meios ou sem meios. Todavia, se esses sã o salvos é
por um milagre de pura graça. O método ordiná rio que Deus usa é o
de reunir seus eleitos dentre a parte evangelizada da humanidade,
ainda que devamos admitir a possibilidade de que, por um método
extraordinário , alguns dos seus eleitos sejam reunidos dentre a
parte nã o evangelizada. (O destino daqueles que morrem na infâ ncia
em terras pagã s é discutido sob o tema “A salvaçã o das crianças”.)
É iló gico supor que alguma pessoa possa apropriar-se do que nã o
conhece. Podemos ver facilmente que os pagã os foram, em sua
grande parte, passados por alto no que respeita aos deleites,
desfrutos e oportunidades deste mundo; e, com base no mesmo
princípio, o mesmo lhes sucederá no que respeita à vida por vir.
Para os que nascem e vivem providencialmente nas trevas do
paganismo, lhes é tã o impossível aceitar a Cristo como Salvador
quanto aceitar algumas das invençõ es modernas ou o sistema
copernicano da astronomia, coisas que desconhecem
completamente. Quando Deus coloca uma pessoa em tais
circunstâ ncias, podemos estar certos de que ele nã o tem maior
intençã o de salvá -la que o terreno ao norte da Sibéria, que se
encontra sob gelo o ano inteiro, produza colheitas de trigo. Se Deus
houvesse proposto fazer o contrá rio, teria suprido os meios que
conduzem ao fim desejado. Há também multidõ es nas terras
nominalmente cristã s à s quais nunca foi apresentado o evangelho de
maneira adequada e as quais carecem ainda dos meios externos de
salvaçã o, para nã o mencionar a desesperadora condiçã o do seu
coraçã o.
Certamente isso nã o significa que todos os que se perdem sofrerã o o
mesmo grau de castigo. Cremos que, começando do ponto zero,
haverá todos os graus de recompensa e todos os graus de castigo; e
que a recompensa ou o castigo de cada pessoa terá por base, até
certo ponto, a oportunidade que cada um tenha tido neste mundo.
Jesus mesmo ensinou que no dia do juízo seria mais tolerá vel o
castigo sobre a cidade pagã de Sodoma do que sobre aquelas cidades
palestinas que o ouviam e recusavam a sua mensagem (Lc 10.12-
14); e concluiu a pará bola do servo infiel com as palavras: “Aquele
servo, porém, que conheceu a vontade do seu senhor e nã o se
aprontou, nem fez segundo a sua vontade, será punido com muitos
açoites. Aquele, porém, que nã o soube a vontade do seu senhor e fez
coisas dignas de reprovaçã o levará poucos açoites. Mas à quele a
quem muito foi dado, muito lhe será exigido; e à quele a quem muito
se confia, muito mais lhe pedirã o” (Lc 12.47, 48). Desse modo, ainda
que os pagã os se percam, sofrerã o relativamente menos que aqueles
que ouviram e rejeitaram o evangelho.
Com respeito ao problema dos pagã os, os arminianos se encontram,
desde o início, envolvidos em dificuldades que transtornam todo o
seu sistema, dificuldades estas das quais nunca conseguem se
desvencilhar. Admitem que somente em Cristo há salvaçã o; todavia,
percebem que multidõ es morrem sem jamais ouvir de Cristo ou do
evangelho. Devido à insistência de que se deve outorgar graça ou
oportunidade suficiente a cada pessoa antes que seja ela condenada,
muitos dentre eles têm chegado ao extremo de afirmar que haverá
uma prova futura. Isto nã o só carece de base bíblica, mas também
que é contrá rio à s Escrituras. Cunningham afirma: “Tem sido
sempre um forte argumento a favor das doutrinas calvinistas sobre
os soberanos propó sitos de Deus; e contra as doutrinas arminianas
da graça e da redençã o universais, a saber, que de fato uma porçã o
tã o grande da raça humana sempre foi deixada em completa
ignorâ ncia da misericó rdia de Deus e do caminho da salvaçã o
revelado no evangelho; e, o que é pior, sã o postos em circunstâ ncias
tais que, a despeito de todas as luzes, lançam obstá culos
insuperá veis no ú nico caminho através do qual podem lograr o
conhecimento de Deus e de Jesus Cristo, a saber, vida eterna”. [64]
Somente o calvinismo, com a sua doutrina da culpa e corrupçã o da
humanidade em virtude da queda, e a sua doutrina da graça
mediante a qual alguns sã o soberanamente resgatados e conduzidos
à salvaçã o, enquanto outros sã o passados por alto, oferece uma
explicaçã o adequada do fenô meno do mundo pagã o.
 
PROPÓSITOS DO DECRETO DE REPROVAÇÃO.
A condenaçã o dos nã o eleitos está desenhada principalmente para
proporcionar uma exibiçã o eterna, aos olhos dos homens e dos
anjos, do ó dio que Deus nutre pelo pecado; ou, em outras palavras,
para servir como manifestaçã o eterna da justiça de Deus. (É preciso
ter em mente que a justiça de Deus demanda tanto o castigo do
pecado quanto a recompensa da retidã o. O decreto de reprovaçã o
exibe um dos atributos divinos que jamais será apreciado de
maneira adequada à parte desse decreto.) A salvaçã o de alguns
mediante um redentor se destina a exibir os atributos divinos de
amor, misericó rdia e santidade. Os atributos divinos de sabedoria,
poder e soberania podem ser vistos tanto nos tratos de Deus com os
réprobos quanto com os salvos. As Escrituras confirmam esta
verdade quando declara que “o SENHOR fez todas as coisas para
determinados fins e até o perverso para o dia da calamidade” (Pv
16.4); e, igualmente, quando afirmam pela boca de Paulo que este
conselho foi, por um lado, para “mostrar sua ira e dar a conhecer seu
poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira,
preparados para a perdiçã o”; por outro lado, “a fim de que também
desse a conhecer as riquezas de sua gló ria em vasos de misericó rdia,
que para gló ria preparou de antemã o” (Rm 9.22, 23).
O decreto de reprovaçã o tem, além do mais, outros propó sitos
subordinados com respeito aos escolhidos; estes, ao contemplarem
a rejeiçã o e o estado final dos ímpios, (1) aprendem o que eles
mesmos teriam de sofrer, se a graça nã o interviesse em seu favor; e
assim apreciam de maneira mais profunda as riquezas do amor
divino que os resgatou do pecado e os conduziu à vida eterna,
enquanto outros nã o mais culpados e indignos que eles foram
entregues à destruiçã o eterna. (2) Proporciona um poderoso motivo
para gratidão pelas grandes bênçã os recebidas. (3) Sã o movidos a
confiar de maneira mais profunda em seu Pai celestial que supre
todas as suas necessidades nesta vida e na vindoura. (4) O
conhecimento do que têm recebido lhes proporciona o mais forte
incentivo para amar a seu Pai celestial e viver vidas puras. (5) Sã o
conduzidos a um ó dio pelo pecado cada vez mais forte. (6) Sã o
movidos a caminhar mais perto de Deus e uns dos outros como
escolhidos herdeiros do reino dos céus. (7) Quanto à rejeiçã o
soberana dos judeus, Paulo refuta a acusaçã o de que estes foram
rejeitados sem motivo. “Pergunto, pois: porventura tropeçaram para
que caíssem? De modo nenhum! Mas, pela sua transgressã o, veio a
salvaçã o aos gentios, para pô -los em ciú mes” (Rm 11.11). Vemos que
a rejeiçã o dos judeus teve um propó sito sá bio e definido; a saber,
que a salvaçã o alcançasse os gentios, e que isto, por sua vez,
movesse novamente os judeus a buscarem a salvaçã o.
Historicamente, vemos que a igreja cristã tem sido composta quase
que exclusivamente de gentios. Mas em todas as épocas alguns
judeus se converteram ao cristianismo; e cremos que, com o passar
do tempo, muitos outros serã o “provocados a zelo” e se volverã o
para Deus. Vá rios versículos no capítulo onze de Romanos indicam
que um nú mero considerá vel destes se converterá e será muito
zeloso pela justiça.
OS ARMINIANOS CONCENTRAM SEUS ATAQUES CONTRA ESTA
DOUTRINA.
A doutrina da reprovaçã o é uma daquelas que os arminianos se
deleitam em discutir. Com frequência a selecionam e a focam como
se fosse a ú nica doutrina que os calvinistas ensinam; enquanto
outras, por exemplo, da soberania de Deus, do cará ter meramente
gratuito da eleiçã o, da perseverança dos crentes, etc., que tanta
gló ria redundam a Deus, sã o ignoradas com bem pouco ou sem
qualquer comentá rio. No Sínodo de Dort, os arminianos insistiram
em discutir primeiramente o tema da reprovaçã o, levantando sua
voz de protesto quando o Sínodo recusou render-se à sua petiçã o.
Até este momento, geralmente têm dado seguimento à mesma
tá tica, já que bem sabem ser muito fá cil tergiversar esta doutrina e
apresentá -la de maneira que suscite preconceitos contra ela. Com
frequência, distorcem as doutrinas calvinistas e, uma vez alegando
tudo o que podem contra elas, eles prosseguem arrazoando que, já
que nã o pode haver reprovaçã o, tampouco pode haver eleiçã o. A
ênfase injusta e desproporcional que fazem sobre esta doutrina
demonstra algo menos que uma despreconcebida e sincera busca da
verdade. Por que nã o começar, antes, pelo lado positivo do sistema?
Ou, por que nã o responder, antes, de maneira convincente, ao
grande volume de evidência bíblica apresentada em favor do
sistema calvinista?
Por sua vez, os calvinistas costumam produzir a primeira evidência
em favor da doutrina da eleiçã o; e, em seguida, uma vez estabelecida
esta doutrina, continuam demonstrando que o que sustentam com
respeito à reprovaçã o se depreende de maneira ló gica. Cabe
assinalar, contudo, que isso nã o significa que a doutrina da
reprovaçã o dependa inteiramente da doutrina da eleiçã o para ser
provada. Creem que a doutrina da reprovaçã o pode ser provada
diretamente das Escrituras; nã o obstante, afirmam que, se o que
mantêm quanto à doutrina da eleiçã o é correto, entã o o que
sustentam quanto à reprovaçã o necessariamente virá pela ló gica.
Como as Escrituras nos fornecem muito mais informaçã o sobre o
que Deus faz ao operar a fé e o arrependimento naqueles que ele
salva do que o que nos fornecem sobre seu procedimento quanto
aos que continuam impenitentes e incrédulos, o mais razoá vel é que,
primeiramente, se proceda a investigar a doutrina da eleiçã o e logo
a seguir se considere a doutrina da reprovaçã o. No entanto, esse nã o
é o procedimento dos arminianos, o que demonstra sua absoluta
injustiça ao darem demasiada importâ ncia à doutrina da
reprovaçã o. Como já foi dito previamente, esta doutrina é
desagradá vel. No entanto, os calvinistas nã o se recusam a discuti-la,
muito embora, devido ao seu cará ter desagradá vel, nã o encontram
satisfaçã o espojando-se nela. Os calvinistas também entendem que,
no tocante a esses assuntos, os homens devem ter muito cuidado de
nã o tentar ser mais sá bios que o que está escrito, como sucede com
muitos, quando se dã o o direito de entrar em presunçosas
especulaçõ es sobre temas demasiadamente sublimes para eles.
NÃO SOMOS OBRIGADOS A EXPLICAR TODOS OS DETALHES
DESTAS DOUTRINAS.
Nã o se deve esquecer que nã o estamos sob a obrigaçã o de
apresentar o que as Escrituras ensinam com relaçã o a estas
doutrinas e de defendê-las das objeçõ es contra as mesmas tanto
quanto nos seja possível. A frase, “Sim, ó Pai, porque assim foi do teu
agrado” (Mt 11.26; Lc 10.2), foi, para nosso Senhor, uma defesa
suficientemente vá lida dos misteriosos intercâ mbios de Deus com
os homens. A ú nica e suficiente resposta que Paulo deu aos fú teis
disputadores que tentavam penetrar demais a profundidade desses
mistérios foi simplesmente que tais mistérios só podem ser
resolvidos pela sabedoria e soberania divinas. As palavras de
Toplady sã o apropriadas aqui: “Ninguém diga, portanto, como os
oponentes destas doutrinas disseram nos dias de Sã o Paulo: ‘Por
que Deus culpa os ímpios? Porquanto, quem já resistiu sua vontade?
Se o ú nico que pode convertê-los nã o o faz, como se culparã o os que
perecem, já que é impossível resistir à vontade do Todo-Poderoso?’.
Conformemo-nos com a resposta dada por Sã o Paulo: ‘Mas antes, ó
homem, quem és tu para discutires com Deus?’. O apó stolo
fundamenta todo o assunto na absoluta soberania de Deus. Ele deixa
o assunto neste ponto? Entã o deveríamos nó s também deixá -lo aí”.
[65]

O homem nã o pode medir a justiça de Deus por seu pró prio


entendimento, e deveríamos ser suficientemente humildes e
confessar que Deus é completamente justo, muito embora os
propó sitos de suas obras estejam velados dos nossos olhos. Se
alguém crê que esta doutrina apresenta Deus como injusto, é porque
esse tal nã o compreende a doutrina bíblica do pecado original, nem
as terríveis consequências nas quais este se envolve. Uma vez
dissolvidas as dú vidas quanto à realidade do pecado original como
antecedente a todo e qualquer pecado atual, entã o se verá a
condenaçã o como justa e natural. Se a primeira liçã o for bem
compreendida, a segunda nã o apresentará dificuldades.
É difícil compreender que muitos daqueles que nos cercam (em
alguns casos nossos amigos pró ximos e familiares) talvez sejam
preordenados ao castigo eterno; e à medida que nos damos conta
desse fato nos inclinamos a sentir certa compaixã o para com eles.
Todavia, à luz da eternidade, essa compaixã o para com os perdidos
transparecerá como que equivocada e imerecida. Aqueles que se
perdem finalmente serã o vistos como o que na realidade sã o:
inimigos de Deus e de toda a justiça, e amantes do pecado, sem
qualquer anseio pela salvaçã o ou pela presença do Senhor. Podemos
acrescer ainda que, uma vez que Deus é perfeitamente justo,
ninguém será condenado ao inferno exceto aqueles que o mereçam;
e quando virmos o verdadeiro cará ter de tais pessoas, entã o nos
sentiremos completamente satisfeitos com a maneira como Deus
tem procedido.
Cabe assinalar que os arminianos nã o estã o livres de dificuldades
neste ponto. Já que admitem que Deus conhece de antemã o todas as
coisas, devem explicar por que entã o ele cria os que sabe de
antemã o que viverã o vidas pecaminosas, rejeitarã o o evangelho,
morrerã o impenitentes e sofrerã o eternamente no inferno. A
veracidade do caso é que os arminianos têm aqui um problema
muito mais difícil que os calvinistas; estes sustentam que aqueles a
quem Deus cria, sabendo que se perderã o, nã o foram eleitos, os
quais, movidos por sua pró pria vontade, escolhem o pecado e, por
isso, merecem o castigo, Deus manifesta a sua justiça, enquanto os
arminianos se veem obrigados a dizer que Deus, de forma
deliberada, cria os que ele vê de antemã o que serã o criaturas tã o
pobres e miserá veis que, sem que sirvam a qualquer propó sito,
trariam sobre si destruiçã o e passarã o a eternidade no inferno,
apesar de que Deus deseja intensamente conduzi-los ao céu,
deixando Deus num estado de perene angú stia por vê-los sempre
onde ele gostaria de nã o vê-los. Acaso tal esquema nã o apresenta
um Deus como alguém que age nesciamente ao trazer sobre si tal
insatisfaçã o e submeter algumas de suas criaturas a tanta miséria,
quando pelo menos poderia abster-se de criar os que ele viu de
antemã o que haveriam de perder-se?
Talvez haja alguns que, ao ouvirem falar desta doutrina da
predestinaçã o, pensem que sã o réprobos e se sintam inclinados a
envolver-se cada vez mais no pecado, apresentando o argumento de
que, nã o importa o que aconteça, serã o condenados. Proceder dessa
maneira equivale a chupar o veneno de uma flor doce, ou lançar-se
contra a Rocha da eternidade. Ninguém tem o direito de considerar-
se réprobo nesta vida e, portanto, de viver sem qualquer esperança;
a desobediência final (o ú nico sinal infalível da reprovaçã o) nã o
pode ser conhecida, senã o até o momento da morte. Nenhuma
pessoa sem conversã o sabe com absoluta certeza que Deus há de
convertê-la e salvá -la, ainda quando esteja consciente de que tal
mudança ainda nã o se concretizou. Portanto, ninguém tem o direito
de se considerar definitivamente entre os nã o eleitos. Deus nã o nos
revelou quem dentre os nã o crentes ainda se propõ e regenerar e
salvar. Se alguém sente que sua consciência o acusa, isso pode ser o
pró prio meio que Deus está usando para atraí-lo a si.
Temos dedicado bastante espaço à discussã o da doutrina da
reprovaçã o, porque esta tem sido a principal pedra de tropeço para
a maioria dos que têm rejeitado o sistema calvinista. Cremos que
uma vez demonstrado que a doutrina é bíblica e racional, as demais
partes do sistema serã o aceitas sem dificuldade.

6. Infralapsarianismo e supralapsarianismo
Entre os calvinistas tem havido alguma diferença de opiniã o quanto
à ordem dos eventos no plano divino. A pergunta que tem surgido
aqui é: quando surgiram os decretos da eleiçã o e da reprovaçã o,
levavam-se em conta ou nã o os homens como já caídos? Estes foram
contemplados como os objetos desses decretos, como membros de
uma massa pecadora e corrupta, ou foram contemplados
meramente como homens, a quem Deus havia de criar? De acordo
com a posiçã o infralapsariana, a ordem dos eventos é como segue:
Deus se propô s (1) criar; (2) permitir a queda; (3) eleger uma
grande multidã o dentre essa massa de seres caídos para a vida e
felicidade eternas, e deixar o restante sofrer o justo castigo por seus
pecados, assim como deixou o diabo e os anjos apó statas; (4) dar
seu Filho, Jesus Cristo, para a redençã o dos eleitos; e (5) enviar o
Espírito Santo para aplicar aos eleitos a redençã o comprada por
Cristo. De acordo com a posiçã o supralapsariana, a ordem dos
eventos é: (1) eleger para a vida alguns seres humanos que estavam
ainda para ser criados e condenar o restante à destruiçã o; (2) criar;
(3) permitir a queda; (4) enviar Cristo para redimir os eleitos; e (5)
enviar o Espírito Santo para aplicar aos eleitos a redençã o de Cristo.
A pergunta é: o decreto da eleiçã o surge antes ou depois do decreto
da queda?
Um dos principais motivos do esquema supralapsariano é a ênfase
que ele põ e sobre a ideia de que Deus procede com base em certas
distinçõ es e entã o aplica a ideia a todos os procedimentos de Deus
para com os homens. No entanto, cremos que o supralapsarianismo
exagera a importâ ncia desta ideia. Além do mais, deve-se notar que
tal ideia nem sempre pode ser aplicada consistentemente; por
exemplo, na criaçã o e, especialmente, na queda. Os objetos do
decreto de criar nã o visavam meramente a alguns membros da raça
humana, mas a toda a humanidade, a qual, além do mais, possuía
uma só natureza. E nã o foram meramente algumas pessoas que ele
permitiu que caíssem, mas toda a raça. O supralapsarianismo se
coloca numa posiçã o tã o extrema, por um lado, como, por outro
lado, faz o universalismo. Somente o esquema infralapsariano é em
si mesmo consistente com os fatos.
Em relaçã o a esta diferença, o Dr. Warfield escreve: “O mero fato de
se formular uma pergunta, por si só parece conduzir à contestaçã o.
O trato de Deus com os homens, com ambos os grupos, os eleitos e
os nã o eleitos, tem por base o pecado; nã o se pode falar de salvaçã o
nem tampouco de reprovaçã o sem antes levar em conta o pecado.
Necessariamente, o pecado antecede no pensamento; nã o à ideia
abstrata de uma diferença que envolve o destino de uns para a
salvaçã o e de outros para o castigo. Nã o se pode falar de um decreto
que discrimina entre os homens com referência à salvaçã o e o
castigo; portanto, sem antes postular um decreto que contempla tais
homens como pecadores”. [66]
E, para o mesmo propó sito, o Dr. Charles Hodge disse: “É um
princípio bíblico claramente revelado que onde nã o há pecado nã o
pode haver condenaçã o. ... Deus tem misericó rdia de um e de outro,
nã o, segundo seu beneplá cito, já que todos sã o igualmente
destituídos de méritos e, portanto, culpados. ... Em todas as partes
(como em Rm 1.24, 26, 28) se assinala que a reprovaçã o é um ato
judicial, baseado na pecaminosidade do seu objeto. De outro modo,
nã o poderia ser uma manifestaçã o da justiça de Deus”. [67]
Que pessoas inocentes, que nã o sã o contempladas como pecadoras,
sejam preordenadas à miséria e morte eterna, nã o está em harmonia
com as ideias de Deus apresentadas nas Escrituras. Os decretos
concernentes aos salvos e aos perdidos nã o devem ser vistos como
que baseados meramente numa soberania abstrata. Ainda que seja
certo que Deus é soberano, contudo sua soberania nã o é exercida de
forma abstrata, e sim em harmonia com seus demais atributos,
especialmente com os da sua justiça, santidade e sabedoria. Deus
nã o pode cometer pecado; e neste sentido ele se acha limitado, ainda
que fosse mais correto falar de sua incapacidade de cometer pecado
como uma de suas perfeiçõ es. Prontamente se percebe mistério em
ambos os sistemas; mas o sistema supralapsariano parece ir além do
mistério e entrar em contradiçã o.
As Escrituras sã o praticamente infralapsarianas — estas afirmam
que os crentes foram eleitos do mundo (Jo 15.19); o oleiro tem
poder sobre o barro “para fazer da mesma massa um vaso para
honra e outro para desonra” (Rm 9.21); e tanto os eleitos quanto os
nã o eleitos sã o contemplados originalmente no mesmo estado de
miséria. Além do mais, o sofrimento e a morte sã o apresentados
como o salá rio do pecado. O esquema infralapsariano se harmoniza
com as nossas ideias de justiça e misericó rdia; ao menos, está isento
da objeçã o arminiana de que Deus simplesmente cria alguns seres
humanos para condená -los. Agostinho, e a grande maioria dos que
desde sua época têm sustentado a doutrina da eleiçã o, têm sido e
sã o infralapsarianos — isto é, creem que foi da massa de seres
humanos caídos que alguns foram eleitos para a vida eterna,
enquanto outros foram condenados à morte eterna em virtude dos
seus pecados. Nenhuma das confissõ es reformadas ensina a posiçã o
supralapsariana; por sua vez, muitas sustentam explicitamente a
posiçã o infralapsariana, a qual, portanto, surge como a forma típica
do calvinismo. No momento podemos dizer que nã o mais de um
calvinista em cem sustenta a posiçã o supralapsariana. Muito embora
sejamos tenazmente calvinistas, nã o somos “hiper-calvinistas”. Por
“hiper-calvinista” queremos dizer alguém que sustenta a posiçã o
supralapsariana.
É sem dú vida verdade que em ambos os sistemas a soberania de
Deus na eleiçã o é sustentada e a salvaçã o, em todo seu curso, é
afirmada como obra de Deus. Os oponentes, todavia, costumam
acentuar o sistema supralapsariano, já que este, sem explicaçã o
adequada, e com mais probabilidade, enfrenta os sentimentos e
impressõ es naturais do homem. É verdade também que há coisas
que nã o podem ser postas no molde do tempo — os eventos
relacionados com os decretos nã o estã o na mente divina como estã o
nas mentes humanas; isto é, como uma sucessã o de atos, um apó s
outro; senã o que, mediante um só ato divino, Deus ordenou todas
essas coisas. Na mente divina, o plano é uma unidade, e cada parte
está desenhada em relaçã o a uma série de fatos que Deus propô s
resultarem das outras partes. Todos os decretos sã o eternos. Todos
estã o relacionados de maneira ló gica muito embora nã o cronoló gica.
Nã o obstante, para se falar inteligentemente deles é necessá ria certa
sucessã o em nosso pensamento. Quando falamos ou pensamos, por
exemplo, no dom da santificaçã o ou da glorificaçã o, nó s os vemos
naturalmente como decretos posteriores aos da criaçã o e da queda.
Com respeito ao ensino da Confissão de Westminster sobre este
ponto, o Dr. Charles Hodge faz o seguinte comentá rio: “Twiss,
presidente desse venerá vel corpo (a Assembleia de Westminster),
era um inflexível supralapsariano; todavia, a grande maioria dos
membros da Assembleia era do outro grupo. Os símbolos daquela
Assembleia, ainda que claramente impliquem a posiçã o
infralapsariana, se portaram de tal maneira que nã o ofenderam aos
que adotavam a teoria supralapsariana. A Confissão de Westminster
reza que ‘Deus ordenou os eleitos para a vida eterna, e colocou o
resto da humanidade, segundo o conselho inescrutá vel da sua
vontade, a qual estende a sua misericó rdia ou deixa de fazê-lo como
lhe apraz, para a gló ria do seu soberano poder sobre as suas
criaturas, passá -los por alto, ordenando-os à desonra e à ira em
virtude do seu pecado, para o louvor da sua gloriosa justiça’. O que
aqui se ensina é que aqueles a quem Deus passa por alto constituem
o ‘resto da humanidade’; nã o o resto de homens ideais ou possíveis,
mas o resto daqueles seres humanos que constituem a raça humana.
Em segundo lugar, a passagem citada ensina que os nã o eleitos sã o
passados por alto e ordenados à ira ‘por causa dos seus pecados’.
Isto implica que eram contemplados como pecadores antes desta
preordenaçã o para juízo. A posiçã o infralapsariana pode ser vista de
maneira ainda mais clara na contestaçã o à s perguntas 19 e 20 do
Breve catecismo . Ali se ensina que toda a humanidade perdeu a
comunhã o com Deus pela queda e se encontra sob sua ira e
maldiçã o, e que Deus, com base em seu beneplá cito, elegeu alguns (
alguns daqueles que se encontravam sob a sua ira e maldiçã o) para a
vida eterna. Esta tem sido a doutrina da maioria dos agostinianos
desde a época de Agostinho até a atualidade’”. [68]

7. Muitos são escolhidos


Quando se faz mençã o da doutrina da eleiçã o, muitas pessoas se
opõ em imediatamente que tal doutrina ensina que a grande maioria
da humanidade se perderá . Tal noçã o, no entanto, é muito
equivocada. Na eleiçã o, Deus é livre para escolher a tantos quantos
deseja, e cremos que aquele que é infinitamente misericordioso,
benévolo e santo escolherá para a vida a grande maioria dos seres
humanos. Nã o há sequer uma boa razã o para que se tenha de limitar
em apenas uns poucos a escolha divina. As Escrituras ensinam que
Cristo terá a preeminência em tudo, e nã o cremos que se permita
que o diabo saia triunfante nem mesmo no que tange a nú meros.
Nossa posiçã o a respeito foi habilmente apresentada pelo Dr. W. G.
T. Shedd no seguinte pará grafo: “Note-se que a indagaçã o quantos
sã o eleitos e quantos sã o reprovados nada tem a ver com a
indagaçã o se Deus pode ou nã o eleger ou reprovar pecadores. Se é
intrinsecamente correto a quem Deus elege ou nã o, salva ou nã o
seres morais livres, os quais por sua pró pria culpa têm aderido ao
pecado e à ruína, os nú meros nã o sã o importantes para determinar
o correto. E se é intrinsecamente incorreto, os nú meros de nada
servem para provar que é incorreto. Nem tampouco há qualquer
necessidade de que o nú mero dos eleitos seja pequeno, e o dos nã o
eleitos seja grande, ou vice-versa. A eleiçã o e a reprovaçã o, assim
como o nú mero dos eleitos e dos réprobos, sã o igualmente assunto
da soberania divina e da sua livre vontade. Ao mesmo tempo,
quando nos lembramos que as Escrituras ensinam que o nú mero
dos eleitos é muito maior do que o dos nã o eleitos, alivia-se muito da
solenidade e temor que causa o decreto da reprovaçã o. O reino do
Redentor, neste mundo apó stata, é sempre apresentado como sendo
muito mais extenso e poderoso do que o de Sataná s. A operaçã o da
graça no mundo é apresentada como muito mais poderosa do que a
do pecado. ‘Onde o pecado abundou, superabundou a graça.’ Diz-se
que ‘ninguém pode contar’ o nú mero final dos redimidos; enquanto
nã o se dá importâ ncia nem se enfatiza o nú mero dos perdidos”. [69]
No entanto, a prá tica comum entre os escritores arminianos é
apresentar os calvinistas como os que se inclinam a consignar à
miséria eterna uma grande porçã o da humanidade, muitos dos quais
eles admitiriam ao desfruto celestial. Constitui uma caricatura
apresentar o calvinismo com base no princípio de que os salvos
serã o poucos, sendo apenas uns quantos tiçõ es arrebatados do fogo.
Quando o calvinista insiste na doutrina da eleiçã o, sua ênfase é posta
no fato de que Deus trata pessoalmente com cada alma individual, e
nã o com a humanidade em massa; e isso nada tem a ver com a
proporçã o numérica relativa entre os salvos e os perdidos. Em
resposta aos que arrazoam da seguinte maneira: “De acordo com
esta doutrina, somente Deus pode salvar a alma; portanto, poucos
serã o salvos”, respondemos que o mesmo seria dizer: “Já que
somente Deus pode criar estrelas, entã o deve haver bem poucas
estrelas”. A objeçã o nã o é vá lida. A doutrina da eleiçã o, em si mesma,
nã o nos informa nada acerca de qual será a proporçã o numérica
final. A ú nica limitaçã o que existe é que nem todos serã o salvos.
No que respeita ao princípio da soberania e da eleiçã o pessoal, nã o
há razã o alguma que impeça um calvinista de sustentar que todos os
homens serã o salvos; e, de fato, há alguns calvinistas que têm
sustentado essa posiçã o. W. P. Patterson, da Universidade de
Edinburgo, escreveu o seguinte: “O calvinismo é o ú nico sistema que
contêm princípios — em suas grandes doutrinas da eleiçã o e da
graça irresistível — que lhe granjearam credibilidade à teoria da
salvaçã o universal”. E o Dr. S. G. Craig, editor da revista Christianity
Today , e um dos homens mais eminentes da Igreja Presbiteriana da
atualidade, afirma: “Sem dú vida, muitos calvinistas, assim como
muitos que nã o o sã o, em obediência aos supostos ensinos das
Escrituras, têm sustentado que poucos serã o salvos; porém nã o
existe nenhuma boa razã o que impeça os calvinistas de crerem que,
no final, a imensa maioria da raça humana será salva. Pelo menos,
esta tem sido a posiçã o sustentada pelos nossos principais teó logos,
por exemplo, Charles Hodge, Robert L. Dabney, W. G. T. Shedd e B. B.
Warfield”.
O calvinismo, como afirma Paterson, com sua ênfase na relaçã o
íntima e pessoal entre Deus e cada alma individual, é o ú nico sistema
que pode oferecer uma base ló gica para o universalismo, se tal
posiçã o nã o fosse refutada pelas Escrituras. E, em contraste com
isso, nã o é antes o arminiano que deveria admitir, com base em seus
princípios, que só comparativamente poucos serã o salvos? O
arminiano tem que admitir que até este momento na histó ria
humana a grande maioria dos adultos, até mesmo em terras
nominalmente cristã s, exercendo seu “livre-arbítrio” com a
“capacidade restaurada pela graça”, tem morrido sem aceitar a
Cristo. A nã o ser que Deus esteja dirigindo o mundo rumo a uma
meta designada, que fundamento há para supor-se que, enquanto a
natureza humana continuar sendo o que é, a situaçã o mudaria,
mesmo que o mundo prosseguisse um bilhã o de anos?
 

8. Um mundo ou raça redimida


Uma vez que foi o mundo, ou a raça humana, que caiu em Adã o, é o
mundo, ou a raça humana, que foi redimida por Cristo. Todavia, isto
nã o significa que cada indivíduo será salvo, mas que a raça humana
será salva. Jeová nã o é uma mera deidade tribal, mas “o Deus de toda
a terra”; e a salvaçã o que ele engendrou em sua mente nã o pode
limitar-se a um pequeno grupo seleto ou a uns poucos favorecidos. O
evangelho nã o visou meramente a uma notícia local para alguns
povos da Palestina, mas constitui uma mensagem para o mundo
inteiro; e o abundante e contínuo testemunho das Escrituras é que o
reino de Deus haverá de encher a terra, “de mar a mar e desde o
Eufrates até as extremidades da terra” (Zc 9.10).
Em um dos primeiros livros veterotestamentá rios aparece a
promessa de que a gló ria de Jeová encherá toda a terra (Nm 14.21);
e Isaías repete a promessa de que toda carne verá a gló ria de Jeová
(40.5). Israel foi posto “por luz dos gentios” e “a fim de que fosse por
salvaçã o até os confins da terra” (Is 49.6; At 13.47). Joel declarou
que nos dias vindouros de bênçã o o Espírito, que até entã o fora
dado somente a Israel, seria derramado sobre toda a terra. Disse o
Senhor pela boca de Joel: “Derramarei do meu Espírito sobre toda
carne” (Jl 2.28); Pedro aplicou esta profecia ao derramamento que
começou no Pentecostes (At 2.16).
Ezequiel nos apresenta o quadro das crescentes á guas salubres que
emanam de debaixo do umbral do templo; á guas que inicialmente só
chegavam aos tornozelos, em seguida até os joelhos, depois até os
lombos, e finalmente formariam um grande rio que nã o podia ser
atravessado (47.1-5). A interpretaçã o que Daniel fez do sonho do rei
Nabucodonosor, ensinou esta mesma verdade. O rei viu uma grande
imagem composta de ouro, prata, bronze, ferro e argila. Em seguida
viu uma pedra cortada nã o por mã o humana, a qual atingiu a
imagem e esmiuçou o ouro, a prata, o bronze, o ferro e o barro e o
vento os levou como palha nos dias de verã o. Esses materiais
representavam grandes impérios mundiais que haveriam de ser
esmiuçados e completamente removidos, enquanto a pedra cortada,
nã o por mã os humanas, representava um reino espiritual que Deus
mesmo estabeleceria e que haveria de converter-se num grande
monte a encher toda a terra . “Mas, nos dias destes reis, o Deus do
céu suscitará um reino que nã o será jamais destruído; este reino nã o
passará a outro povo; esmiuçará e consumirá todos estes reinos,
mas ele mesmo subsistirá para sempre” (Dn 2.44). À luz do Novo
Testamento vemos que dito reino foi aquele que Cristo estabeleceu.
Na visã o de Daniel, a besta fez guerra contra os santos e prevaleceu
contra eles por um tempo — porém “chegou o tempo, e os santos
receberam o reino” (Dn 7.22).
Jeremias proclama a promessa de que viriam dias quando já nã o
seria necessá rio que o homem diga a seu irmã o ou ao seu pró ximo:
“Conhece ao SENHOR , porque todos me conhecerã o, desde o menor
até ao maior” (Jr 31.34). “Pede-me, e eu te darei as naçõ es por
herança” (Sl 2.8). O ú ltimo livro do Antigo Testamento contém a
promessa: “Mas, desde o nascente do sol até o poente, é grande
entre as naçõ es o meu nome, disse Jeová dos Exércitos” (Ml 1.11).
No Novo Testamento encontramos o mesmo ensino. Quando o
Senhor finalmente derrama bênçã os espirituais sobre o seu povo, “o
resto dos homens” e “todos os gentios” buscaram o Senhor (At
15.17). “... e ele é a propiciaçã o pelos nossos pecados, e nã o somente
pelos nossos pró prios, mas ainda pelos do mundo inteiro” (1Jo 2.2).
“Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu seu Filho
unigênito, para que todo o que nele crê nã o pereça, mas tenha a vida
eterna. Porquanto Deus enviou seu Filho ao mundo, nã o para que
julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele” (Jo
3.16, 17). “... o Pai enviou o seu Filho como Salvador do mundo” (1Jo
4.14). “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo
1.29). “Já agora nã o é pelo que disseste que nó s cremos; mas porque
nó s mesmos temos ouvido e sabemos que este é verdadeiramente o
Salvador do mundo” (Jo 4.42). “Eu sou a luz do mundo” (Jo 8.12). “...
porque nã o vim para julgar o mundo, e sim para salvá -lo” (Jo 12.47).
“E eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim mesmo”
(Jo 12.32). “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo,
nã o imputando aos homens as suas transgressõ es, e nos confiou a
palavra da reconciliaçã o” (2Co 5.19). “O reino dos céus é semelhante
ao fermento que uma mulher tomou e escondeu em três medidas de
farinha, até ficar tudo levedado” (Mt 13.33).
O capítulo onze de Romanos declara que a aceitaçã o do evangelho
por parte dos judeus será como “vida entre os mortos”, devido à s
grandes bênçã os espirituais que tal acontecimento trará ao mundo.
Em razã o da apostasia dos judeus, o evangelho foi dado aos gentios
— “Ora, se a transgressã o deles redundou em riqueza para o mundo,
e o seu abatimento, em riqueza para os gentios, quanto mais a sua
plenitude! Porque, se o fato de terem sido eles rejeitados trouxe
reconciliaçã o ao mundo, que será o seu restabelecimento, senã o vida
dentre os mortos?” (v. 12, 15). O domínio absoluto e universal de
Cristo é ensinado também quando lemos que este se assentará à
destra do Pai para que todos os seus inimigos sejam postos debaixo
dos seus pés.
Em todas as citaçõ es anteriores podemos notar a marcante ênfase
na universalidade da obra redentora de Cristo. Do que se depreende
que os nossos olhos haverã o de ver um mundo cristianizado; e em
nenhuma parte somos informados sobre quanto tempo a terra
continuará a existir depois de haver alcançado essa meta,
possivelmente possamos esperar uma grande “época dourada” de
prosperidade espiritual, que continue por séculos, ou até mesmo
milênios, durante os quais a grande maioria dos adultos será salva. É
de esperar-se, portanto, que o nú mero dos redimidos continue
aumentando até que exceda infinitamente o nú mero dos nã o salvos.
Certamente nã o podemos nem mesmo fixar uma data aproximada
para o fim do mundo. Em vá rias partes das Escrituras somos
informados que Cristo há de voltar no final da presente era; que sua
vinda será pessoal, visível e com grande poder e gló ria; que a
ressurreiçã o geral e o juízo geral se darã o entã o; e que o céu e o
inferno serã o entã o introduzidos em sua plenitude. Mas somos
informados explicitamente que o tempo da vinda do Senhor “é uma
das coisas secretas que pertencem ao Senhor nosso Deus”. “No
entanto, ninguém conhece o dia e a hora, nem mesmo os anjos
celestiais, mas somente meu Pai”, disse Jesus antes de sua crucifixã o;
e depois de sua ressurreiçã o, ele acrescentou: “Nã o vos compete
conhecer os tempos ou as épocas que o Pai reservou pela sua
exclusiva autoridade” (At 1.7). Portanto, aqueles que pretendem
discernir quando será o fim do mundo simplesmente falam sem
conhecimento. Em vista do fato de que já passaram de dois mil anos
desde que Cristo veio pela primeira vez, quem sabe se outros dois
mil anos passarã o antes que ele regresse? Ou um tempo muito mais
longo, ou mais curto, ninguém sabe.
O Dr. S. G. Craig afirmou sobre este tema: “Somos informados que
certos eventos, tais como a pregaçã o do evangelho a todas as naçõ es
(Mt 24.14), a conversã o dos judeus (Rm 11.25-27), a supressã o de
‘todo domínio, toda autoridade e poder’ que se opõ em a Cristo (1Co
15.24), há de se dar antes da vinda do Senhor. É ó bvio, pois, que,
ainda quando o tempo da vinda do Senhor seja desconhecido, isso se
dará ainda no futuro distante. Nã o há como conhecer precisamente
quando esse acontecimento se dará no futuro. Ora, se os eventos se
movem tã o lentamente no futuro, como se moveram no passaram, a
vinda do Senhor jaz no futuro longínquo. Todavia, em vista do fato
de que os eventos se movem muito mais rapidamente que no
passado, de maneira que o que antes se conseguia durante séculos,
agora se consegue em poucos anos, é possível que a vinda de Cristo
se dê em um futuro comparativamente pró ximo. No entanto, em
vista das condiçõ es atuais, há pouco ou nada nas Escrituras que
justifique a noçã o de que Jesus voltará durante a geraçã o atual”. [70]
Pode ser que o mundo seja ainda jovem. Por certo que Deus ainda
nã o fez uma adequada exibiçã o do que pode acontecer a um mundo
verdadeiramente convertido à justiça. O que temos visto até o
presente momento parece ser apenas uma etapa preliminar, um
triunfo temporá rio do diabo, cuja obra há de ser completamente
destruída. A obra de Deus abarca os séculos. Inclusive os milênios
sã o insignificantes ante aquele que habita a eternidade. Quando
estabelecemos uma relaçã o entre a teologia e a astronomia,
podemos ver que Deus opera numa escala de incrível magnitude. Ele
estabeleceu milhõ es, talvez bilhõ es, de só is ardentes através do
universo — uns dez milhõ es já foram classificados. Os astrô nomos
nos informam que a terra se encontra a 149.500.000 quilô metros do
sol, e que a luz que viaja a uma velocidade de 300.000 quilô metros
por segundo requer somente oito minutos para percorrer a
distâ ncia. Eles nos informam ainda que a estrela mais pró ximo está
tã o longe que a sua luz leva quatro anos para chegar à terra; que a
luz que agora vemos brilhar na estrela polar levou 450 anos para
chegar a nó s; e que a luz de algumas das estrelas mais distantes fez
sua trajetó ria ao longo de milhõ es de anos. Em vista do que a ciência
moderna revela, damo-nos conta de que o tempo durante o qual o
homem viveu na terra é comparativamente insignificante. É possível
que Deus reserve surpresas para a raça humana com as quais jamais
sonhamos.

9. Os redimidos — uma imensa multidão


O decreto de eleiçã o, ainda que discriminató rio e particular, contudo
é muitíssimo extenso. “Depois destas coisas, vi, e eis grande
multidã o que ninguém podia enumerar, de todas as naçõ es, tribos,
povos e línguas, em pé diante do trono e diante do Cordeiro,
vestidos de vestiduras brancas, com palmas nas mã os; e clamavam
em grande voz, dizendo: Ao nosso Deus, que se assenta no trono, e
ao Cordeiro, pertence a salvaçã o” (Ap 7.9, 10). Deus o Pai elegeu
para a salvaçã o e felicidade eternas milhõ es da raça humana. Nã o
fomos informados exatamente quantos da família humana foram
incluídos em seu propó sito de misericó rdia; mas, em vista dos dias
futuros de prosperidade que sã o prometidos à igreja, pode-se inferir
que a grande maioria eventualmente se encontrará entre o nú mero
dos eleitos.
No capítulo dezenove do Apocalipse relata-se uma visã o que
apresenta em termos figurativos a luta entre as forças do bem e as
forças do mal no mundo. O Dr. Warfield faz seu comentá rio sobre
esta passagem: “A seçã o começa com uma visã o da vitó ria do Verbo
de Deus, o Rei dos reis e Senhor dos senhores, sobre todos os seus
inimigos. Vemo-lo vindo do céu cingido para a batalha e seguido
pelos exércitos celestiais; as aves do céu foram convocadas para
participarem do grande banquete de cadá veres preparado para elas;
os exércitos do inimigo — as bestas e os reis da terra — estã o
reunidos contra ele, e sã o totalmente destruídos; ‘e todas as aves se
saciaram das carnes deles’ (Ap 19.11-21). Tal descriçã o forma um
quadro vivo de uma vitó ria total, de uma conquista absoluta; e toda
a linguagem figurada da guerra é empregada para dar vida à
descriçã o. Este é o símbolo. Obviamente, a coisa simbolizada é a
vitó ria plena do Filho de Deus sobre as bestas do mal. Muito embora
só tenhamos uma leve indicaçã o do significado, isso é suficiente. Em
duas ocasiõ es somos informados cuidadosamente que a espada pela
qual a vitó ria é ganha sai da boca do conquistador (Ap 19.15, 21).
Portanto, nã o devemos pensar que se trata de uma guerra literal ou
de uma luta braçal; a conquista é adquirida pela palavra falada —
isto é, pela pregaçã o do evangelho. Enfim, temos aqui um quadro do
vitorioso avanço do evangelho de Cristo no mundo. Toda a
linguagem figurada da espantosa batalha e seus horrendos detalhes
se propõ em a dar-nos uma ideia da completude da vitó ria. O
evangelho de Cristo conquistará a terra; ele vencerá todos os seus
inimigos”. [71]
Nó s, que vivemos no período entre a primeira e a segunda vindas de
Cristo, podemos ver a conquista se concretizando. Nã o nos é
revelado quanto tempo tal conquista haverá de durar antes de ser
coroada pela vitó ria; quanto tempo o mundo convertido terá que
esperar que seu Senhor regresse. Hoje vivemos num período que é
relativamente dourado em comparaçã o com o primeiro século da
era cristã , e este progresso continuará até que os habitantes deste
mundo vejam o cumprimento da petiçã o: “Venha o teu reino, seja
feita a tua vontade, assim na terra como no céu”. À medida que
temos uma visã o mais ampla dos tratos misericordiosos de Deus
com o mundo pecador, entã o percebemos que ele nã o distribuiu sua
graça eletiva com mã o mesquinha, mas que, na realidade, o seu
propó sito tem sido o de restaurar para si o mundo inteiro.
A Abraã o foi dada a promessa de que a sua descendência seria uma
grande multidã o — “deveras te abençoarei e certamente
multiplicarei a tua descendência como as estrelas dos céus e como a
areia na praia do mar” (Gn 22.17); “Farei a tua descendência como o
pó da terra; de maneira que, se alguém puder contar o pó da terra,
entã o se contará também a tua descendência” (Gn 13.16). No Novo
Testamento descobrimos que esta promessa se refere nã o
meramente aos judeus como naçã o, e sim a todos os crentes, os
quais sã o, no sentido mais elevado, os verdadeiros “filhos de
Abraã o”. “Sabei, pois, que os da fé é que sã o filhos de Abraã o”; e
reitera: “E, se sois de Cristo, também sois descendentes de Abraã o e
herdeiros segundo a promessa” (Gl 3.7, 29).
Isaías declarou que a vontade de Jeová seria pró spera nas mã os do
Messias, e que este veria o fruto da afliçã o de sua alma e ficaria
satisfeito. Em vista da intensidade do seu sofrimento no Calvá rio,
sabemos que ele nã o ficará satisfeito com pouco.
A ideia de que os salvos serã o mais numerosos que os nã o salvos
pode ser vista também nos contrastes que a linguagem bíblica
apresenta. O céu é apresentado como o mundo vindouro, como um
grande reino, um país, uma cidade; enquanto o inferno é
apresentado como um lugar comparativamente pequeno, uma
prisã o, um lago (de fogo e enxofre), um poço (talvez profundo,
porém estreito) (Lc 20.35; 1Tm 6.17; Ap 21.1; Mt 5.3; Hb 11.16; 1Pe
3.19; Ap 19.20; 20.10, 14, 15; 21.8-27). Quando os anjos e os santos
sã o mencionados nas Escrituras, lemos que sã o exércitos, miríades,
uma multidã o inumerá vel, milhõ es de milhõ es; no entanto, em
relaçã o aos nã o salvos, nã o se usa tal linguagem, e o seu nú mero
parece ser relativamente insignificante (Lc 2.13; Is 6.3; Ap 5.1). No
dizer de Shedd: “O círculo da eleiçã o divina é o grande círculo dos
céus, e nã o o de uma roda de moinho. O reino de Sataná s é
insignificante em comparaçã o ao reino de Cristo. Na imensa esfera
do domínio de Deus, o bem é a regra, e o mal é a exceçã o. O pecado é
uma minú scula mancha sobre o azul celeste da eternidade; um
diminuto ponto sobre o sol. O inferno é apenas um canto do
universo”.
Com base nessas consideraçõ es, poderíamos dizer que o nú mero
dos salvos em relaçã o aos nã o salvos pode ser comparado à relaçã o
que existe entre o nú mero de cidadã os livres do nosso país e o
nú mero dos que estã o nas prisõ es e penitenciá rias; ou poderíamos
dizer que a companhia dos salvos se assemelha ao tronco da á rvore
que cresce e floresce, enquanto podemos comparar os nã o salvos a
pequenos ramos que sã o cortados e queimados no fogo. Quem,
mesmo nã o sendo calvinista, nã o desejará que esse seja o caso
verdadeiro?
Mas é possível que alguém pergunte: Alguns versículos nã o ensinam
o contrá rio? Por exemplo: “Porque estreita é a porta, e apertado, o
caminho que conduz para a vida, e sã o poucos os que acertam com
ela”; e, “Porque muitos sã o chamados, mas poucos, escolhidos” (Mt
7.14; 22.14). Os que se perdem sã o muito mais que os que se
salvam? Cremos que esses versículos devem ser interpretados num
sentido temporal, e que descrevem as condiçõ es em que Jesus e os
seus discípulos percorreram a Palestina em seus dias. A grande
maioria das pessoas, naqueles dias, nã o estava caminhando nos
caminhos da justiça, e as palavras sã o ditas da perspectiva daquele
momento, e nã o da perspectiva do dia do juízo vindouro. Esses
versículos apresentam, antes de tudo, um quadro do que Jesus e os
seus discípulos viam ao redor; e, de sua perspectiva, se poderia
descrever o mundo como tem sido até agora. Mas, pergunta o Dr.
Warfield, “à medida que os anos, os séculos e as eras avançam, acaso
nã o será possível que a proporçã o dos que seguem estes ‘dois
caminhos’ seja invertida?”.
Estes versículos têm ainda o propó sito de ensinar-nos que o
caminho da salvaçã o é de dificuldades e sacrifícios, e que o nosso
dever é empenhar-nos por nossa salvaçã o com diligência e
persistência. Ninguém deve presumir que a sua salvaçã o é algo que
pode ser certo sem qualquer problema. Os que entram no reino dos
céus o fazem através de muitas tribulaçõ es; daí a ordem: “Esforçai-
vos por entrar pela porta estreita” (Lc 13.34). A decisã o da vida é
como a decisã o entre dois caminhos — um é largo, cô modo e fá cil de
transitar, porém conduz à destruiçã o. O outro é estreito e difícil, e
conduz à vida. “Nã o há mais razã o para se presumir que este símile
ensina que os salvos serã o em menor nú mero que os nã o salvos do
que a pará bola das dez virgens (Mt 25) ensina que serã o
precisamente iguais em nú mero; e há muito menos razã o para se
presumir que este símile ensina que os salvos serã o em menor
nú mero que os nã o salvos do que presumir que a pará bola do joio
entre o trigo (Mt 13) ensina que os nã o salvos serã o numericamente
poucos em comparaçã o com os salvos — ainda que, certamente,
essa seja uma importante parte do ensino desta pará bola”. [72]
E podemos acrescentar que nã o há mais razã o para se presumir que
a referência aos dois caminhos ensina que o nú mero dos salvos será
menor que o dos nã o salvos do que se presumir que a pará bola da
ovelha perdida ensina que somente uma entre cem se perde; e que,
nã o obstante, essa uma será eventualmente resgatada, o que seria
nada menos que um restauracionismo absoluto.

10. O mundo está se tornando melhor progressivamente


A redençã o do mundo é um processo longo e lento, a qual se estende
ao longo dos séculos, mas que, sem lugar a dú vida, alcançará sua
meta designada. Vivemos numa época de vitó ria progressiva na qual
podemos ver a conquista se concretizando.
Há períodos de prosperidade espiritual e períodos de depressã o;
nã o obstante, em geral se pode notar o progresso. Olhando
retrospectivamente para os mil anos desde que Cristo veio pela
primeira vez, podemos ver que tem havido maravilhoso progresso, o
qual alcançará seu clímax, e antes que Cristo volte pela segunda vez
veremos um mundo cristianizado. É preciso frisar bem que isso nã o
significa que todo o pecado será totalmente erradicado — haverá
sempre joio entre o trigo até o tempo da colheita; e os justos,
enquanto permanecerem neste mundo, nã o estarã o isentos de
pecado e tentaçã o. Seu significado é que, como hoje vemos certos
grupos e comunidades cristianizados, assim, eventualmente,
veremos um mundo cristianizado.
“O modo correto de julgar o mundo é comparar sua condiçã o atual
com a pretérita, e notar em que direçã o ele está se movendo. Está
retrocedendo ou marcha em frente? Está se tornando pior, ou
melhor? É possível que se acha envolto em sombras crepusculares,
mas essas sombras sã o noturnas ou matutinas? Tais noites estã o se
intensificando para uma noite sem estrelas, ou estã o desaparecendo
com o sol nascente? Uma olhadela para o mundo como comparado
hoje com o de dez ou vinte séculos atrá s nos exibe o mundo
percorrido por um grande arco e continua se movendo rumo a uma
gloriosa manhã .” [73]
Há hoje muito mais riquezas consagradas ao serviço da igreja do que
jamais houve antes; e, apesar da triste defecçã o causada pelo
modernismo em muitos lugares, cremos que há muito mais
atividade evangelística e missioná ria do que tem havido até entã o. O
nú mero de institutos bíblicos, colégios cristã os e seminá rios nos
quais se estuda a Bíblia de forma sistemá tica está crescendo muito
mais rapidamente. O ano passado, mais de onze milhõ es de có pias
ou porçõ es da Bíblia, em vá rios idiomas, foram distribuídos em
muitos países somente pela sociedade Bíblica Americana — o que
demonstra que a Bíblia está sendo disseminada por toda a terra
como nunca antes.
A igreja cristã tem progredido em muitas partes do mundo, e
durante os ú ltimos dois ou três séculos ela tem estabelecido
milhares de congregaçõ es individuais e tem sido uma poderosa
influência benéfica na vida de milhõ es de pessoas. Além disso, ela
tem estabelecido inú meras escolas e hospitais, e sob sua benéfica
influência a cultura ética e o serviço social têm progredido
amplamente no mundo, e as normas de moralidade das naçõ es sã o
muito mais elevadas hoje do que quando a igreja foi estabelecida
pela primeira vez aqui.
“A igreja tem adentrado cada continente e tem se estabelecido em
cada ilha e tem hasteado sua bandeira ao redor do equador e de pó lo
a pó lo. Hoje, ela é a maior organizaçã o da terra, a ú nica empresa
verdadeiramente mundial. Os resultados que ela tem obtido sã o
verdadeiramente promissores. Em nosso país, o cristianismo tem
crescido pelo menos cinco vezes mais rá pido do que as povoaçõ es.
Cem anos atrá s, uma de cada quinze pessoas era crente; hoje, uma
de cada três; e, se incluirmos as crianças, uma de cada duas. No
mundo em geral, os resultados sã o assombrosos. No ano de 1.500
d.C., havia cem milhõ es de cristã os nominais no mundo; no ano de
1.800, havia duzentos milhõ es; e as ú ltimas estatísticas (1930)
demonstram que, de uma povoaçã o mundial de 1.646.491.000,
agora há 546.510.000 cristã os nominais, ou seja, como uma terça
parte da povoaçã o mundial. O cristianismo tem crescido mais nos
ú ltimos cem anos do que nos primeiros dezoito séculos da sua
histó ria.” [74]
A asseveraçã o de que o cristianismo tem crescido mais nos ú ltimos
cem anos do que nos dezoito séculos anteriores parece ser mais ou
menos correta. De acordo com as estatísticas recentes, 1950, o
cristianismo tem um maior nú mero de adeptos nominais do que o
total combinado de quaisquer outras religiõ es mundiais. Estas cifras
demonstram que há aproximadamente 640.000.000 cristã os,
300.000.000 confucianos (inclusive taoístas), 230.000.000 indus,
220.000.000 maometanos, 150.000.000 budistas, 125.000.000
animistas, 20.000.000 shintoístas e 15.000.000 judeus. (E ainda que
muitos dos que se consideram cristã os o sejam apenas
“nominalmente”, é bem prová vel que a proporçã o de crentes
genuínos seja tã o grande ou maior que a proporçã o em qualquer das
religiõ es pagã s.) E vale assinalar que todas as demais religiõ es, com
a exceçã o do maometismo, sã o muito mais antigas que o
cristianismo. Além disso, só o cristianismo é capaz de crescer e
florescer sob a civilizaçã o moderna, enquanto todas as demais
religiõ es se desintegram quando entram em contato com a
deslumbrante luz da civilizaçã o moderna.
Só nos ú ltimos anos é que as missõ es estrangeiras realmente têm
adquirido seu merecido lugar. De acordo com o desenvolvimento
dessas missõ es, com o auxílio de grandes organizaçõ es eclesiá sticas,
aumentam suas condiçõ es de levar a bom termo a obra de
evangelismo em terras pagã s como o mundo jamais vira antes.
Podemos dizer sem receio de nos equivocarmos que a atual geraçã o
na Índia, China, Coréia e Japã o têm experimentado maiores
mudanças na religiã o, na sociedade e no governo que aquelas
experimentadas ao longo dos ú ltimos dois mil anos. Ao
contrastarmos a rá pida expansã o do cristianismo em anos recentes
com a rá pida desintegraçã o que está tomando lugar em todas as
demais religiõ es do mundo, parece ó bvio que o cristianismo é a
religiã o mundial do futuro. À luz desses fatos, olhamos para o futuro
confiantes de que o melhor ainda está por vir.

11. A salvação das crianças


A maioria dos teó logos calvinistas tem mantido que os que morrem
na infâ ncia sã o salvos. As Escrituras parecem ensinar claramente
que os filhos de pais crentes sã o salvos; mas nada ou quase nada
dizem quanto aos filhos dos pagã os. A Confissão de Westminster nã o
julga os filhos dos pagã os que morrem antes de chegar à idade da
responsabilidade moral. Naquelas coisas sobre as quais as
Escrituras guardam silêncio, a confissã o também guarda silêncio.
Nossos principais teó logos, contudo, conscientes do fato de que a
misericó rdia de Deus paira sobre todas as suas obras, têm nutrido a
caridosa esperança de que, como tais crianças nunca cometeram
pecado concreto, seu pecado herdado será perdoado e serã o salvos
com base em princípios totalmente evangélicos.
Esta foi a posiçã o sustentada pelos teó logos Charles Hodge, W. G. T.
Shedd e B. B. Warfield. Concernente à queles que morrem na
infâ ncia, diz o Dr. Warfield: “O destino destes é determinado pelo
decreto incondicional de Deus, decreto que nã o depende, para a sua
execuçã o, de uma obra deles; Deus comunica a salvaçã o a essas
criaturas aplicando incondicionalmente à s suas almas a graça de
Cristo, mediante a operaçã o imediata e irrestrita do Espírito Santo
antes e independentemente de qualquer obra; ... e se a morte na
infâ ncia depende da providência de Deus, entã o certamente Deus é
quem, em sua providência, escolhe esta vasta multidã o para que seja
participante da sua salvaçã o incondicional. Isto outra coisa nã o
significa senã o que estã o incondicionalmente predestinados para a
salvaçã o desde a fundaçã o do mundo. Se apenas uma dessas
criaturas que morrem na infâ ncia é salva, todo o sistema arminiano
fica transtornado. Se todas as crianças que morrem sã o salvas, entã o
nã o só a maioria dos salvos, mas a maior parte da raça humana toma
posse da vida por um caminho nã o arminiano”. [75]
Certamente, nã o há nada no sistema calvinista que nos impeça de
crer nisto; e até que se prove que Deus nã o pode predestinar para a
vida eterna todos aqueles que lhe apraz chamar na infâ ncia, entã o
que se nos permita sustentar esta posiçã o.
Sem dú vida os calvinistas sustentam que a doutrina do pecado
original se aplica tantos à s criancinhas quanto aos adultos. As
crianças, por serem filhas de Adã o, sã o igualmente culpá veis do
pecado da raça e podem com justiça ser castigadas. Sua “salvaçã o” é
real e só é possível mediante a graça de Cristo, e é tã o imerecida
quanto à dos adultos. Mas o calvinismo, em vez de minimizar a culpa
e o castigo que as crianças merecem em razã o do pecado original,
enaltece a misericó rdia de Deus na salvaçã o destas. A salvaçã o das
crianças é algo significativo, já que é a libertaçã o de almas culpá veis
da miséria eterna. E é de alto custo, já que foi comprada pelo preço
do sofrimento de Cristo na cruz. Os que sustentam a outra posiçã o,
no tocante ao pecado original, isto é, que dito pecado nã o é
propriamente pecado, e que, portanto, nã o merece o castigo eterno,
veem a maldade da qual sã o “salvos” os pequeninos como algo
insignificante; e, consequentemente, o amor e a gratidã o que devem
a Deus também sã o diminutos.
A doutrina da salvaçã o dos pequeninos encontra um lugar ló gico no
sistema calvinista; nesse sistema, a redençã o da alma é algo
determinado infalivelmente à parte da fé, do arrependimento ou das
boas obras, sejam atuais ou previstos. Esta doutrina, no entanto, nã o
encontra um lugar ló gico nem no sistema arminiano, nem em
qualquer outro. Além disso, num sistema como o arminiano, que faz
com que a salvaçã o dependa de um ato pessoal de decisã o
inteligente, logicamente demandaria que os que morrem na infâ ncia,
ou tenham outro período de prova apó s a morte a fim de determinar
qual será o seu destino, ou sejam aniquilados.
O Dr. S. G. Craig escreveu o seguinte em relaçã o a esta questã o:
“Afirmamos que nenhuma doutrina da salvaçã o das crianças é
cristã , a menos que ensine que as crianças sejam membros perdidos
de uma raça perdida, para as quais nã o há salvaçã o à parte de Cristo.
Deve ser ó bvio, portanto, que a doutrina que sustenta que todos os
que morrem na infâ ncia sã o salvos nã o se harmoniza com o sistema
cató lico-romano nem com o anglo-cató lico, com o seu ensino da
regeneraçã o batismal, já que, evidentemente, a maior parte dos que
morrem na infâ ncia nã o foi batizada. Tampouco o sistema luterano
tem lugar para a ideia de que todos os que morrem na infâ ncia sã o
salvos, devido aos seus ensinamentos sobre a necessidade dos meios
de graça, especialmente a Palavra e os Sacramentos. Se a graça se
situa somente nos meios de graça — no caso das crianças seria o
batismo —, entã o é ó bvio que a maioria dos que morrem na infâ ncia
morre sem receber a graça divina. Os arminianos, de igual modo,
nã o têm direito de crer na salvaçã o de todos os que morrem na
infâ ncia, já que, segundo eles, mesmo sendo arminianos evangélicos,
Deus, em sua graça, meramente fez provisã o aos homens de uma
oportunidade para a salvaçã o. Todavia, nã o parece que uma mera
oportunidade para a salvaçã o possa ser de qualquer valia para
aqueles que morrem na infâ ncia”. [76]
Ainda que o calvinismo rejeite a doutrina da regeneraçã o batismal e
considere o batismo dos nã o eleitos uma cerimô nia vazia, contudo
estende a graça salvadora muito além dos limites da igreja visível. Se
é certo que todos os que morrem na infâ ncia, quer em terras pagã s
ou em terras cristã s, sã o salvos, entã o mais da metade da raça
humana, até a atualidade, tem vivido entre os eleitos. Além disso, os
calvinistas sustentam que a fé salvadora em Cristo é o ú nico
requisito para a salvaçã o dos adultos; e, portanto, nã o consideram a
membresia na igreja externa um requisito ou garantia de salvaçã o.
Os calvinistas creem que muitos dos adultos que de forma alguma
estã o vinculados à igreja externa sã o salvos. Portanto, certamente,
todo crente se submeterá ao batismo conforme o mandamento
explícito das Escrituras e se unirá à igreja externa como membro;
todavia, há muitos que, seja por uma fé débil, ou por falta de
oportunidade, nã o cumprem esse mandamento.
Tem-se alegado, vezes e mais vezes, que a Confissão de Westminster ,
ao declarar que “as crianças eleitas, que morrem na infâ ncia, sã o
regeneradas e salvas por Cristo”, [77] implica que haja crianças nã o
eleitas que, morrendo na infâ ncia, se perdem; e que a Igreja
Presbiteriana ensina que alguns dos que morrem na infâ ncia se
perdem. Com respeito a isso, o Dr. Craig afirma: “A histó ria da frase,
‘as crianças eleitas, que morrem na infâ ncia’, deixa ver claramente
que o contraste nã o é entre ‘as crianças eleitas, que morrem na
infâ ncia’, e ‘as crianças nã o eleitas que morrem na infâ ncia’; mas, ao
contrá rio, entre ‘as crianças eleitas, que morrem na infâ ncia’ e ‘as
crianças eleitas que vivem até a idade adulta’”. Todavia, para evitar
uma interpretaçã o equivocada, da qual se aproveitam os polêmicos
pouco amistosos, a Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos da
América adotou, em 1903, uma afirmaçã o de esclarecimento nestes
termos: “No tocante ao capítulo X, seçã o III, da Confissão de fé de
Westminster , nã o se deve entender como se ensinasse que alguns
dos que morrem na infâ ncia se perdem. Cremos que todos os que
morrem na infâ ncia estã o incluídos na eleiçã o da graça, e sã o
regenerados e salvos por Cristo mediante o Espírito, o qual opera
quando, onde e como lhe apraz”.
Com respeito a esta afirmaçã o de esclarecimento, diz o Dr. Craig: “É
ó bvio que a afirmaçã o de esclarecimento vai além do que se ensina
no capítulo X, seçã o III da Confissão de fé , já que declara
positivamente que todos os que morrem na infâ ncia sã o salvos.
Alguns sustentam que a afirmaçã o de esclarecimento vai além das
Escrituras, ao ensinar que todos os que morrem na infâ ncia sã o
salvos; mas, seja como for, é impossível afirmar que os
presbiterianos ensinam que há crianças nã o eleitas que morrem na
infâ ncia. Sem dú vida, tem havido alguns presbiterianos que têm
sustentado que alguns dos que morrem na infâ ncia se perdem; mas
esta nunca foi a posiçã o oficial da Igreja Presbiteriana; e até hoje
essa posiçã o é contraditada pelo credo da igreja”. [78]
Ocasionalmente se tem dito que Calvino ensinou a condenaçã o de
alguns dos que morrem na infâ ncia. No entanto, um exame
cuidadoso de seus escritos deixa ver que ele nã o sustenta esta
alegaçã o. Calvino ensinou explicitamente que alguns dos eleitos
morrem na infâ ncia e sã o salvos como crianças. Ele ensinou ainda
que há crianças réprobas. Ele sustentava que a reprovaçã o, bem
como a eleiçã o, era eterna e que, portanto, os nã o eleitos nascem
réprobos. No entanto, em parte alguma ele ensinou que os réprobos
morrem e se perdem como crianças . Certamente Calvino rejeitou a
posiçã o pelagiana que negava o pecado original e baseava a salvaçã o
dos que morrem na infâ ncia na suposta inocência e impecabilidade
destes. A posiçã o de Calvino sobre este tema foi minuciosamente
examinada pelo Dr. R. A. Webb, e suas conclusõ es se resumem no
seguinte pará grafo: “Calvino ensina que todos os réprobos
‘procuram’ — (essa é a palavra que ele usa) — ‘procuram’ a sua
pró pria destruiçã o; e a procuram através de seus pró prios atos
pessoais e conscientes de ‘impiedade’, ‘maldade’ e ‘rebeliã o’. Ora, as
crianças réprobas, ainda que culpadas do pecado original e sob
condenaçã o, nã o podem ‘procurar’, enquanto ainda pequenas, a sua
pró pria destruiçã o através de atos pessoais de impiedade, maldade
e rebeliã o. Portanto, faz-se necessá rio que vivam até a idade de
responsabilidade moral, de modo que possam perpetrar tais atos, os
quais, no dizer de Calvino, sã o o modo pelo qual os tais procuram a
sua pró pria destruiçã o. Assim que, embora Calvino ensine que há
crianças réprobas, e que estas finalmente se perderã o, em parte
alguma ele ensina que elas se perderã o como crianças , ou seja, em
sua infância ; mas, ao contrá rio, ele mantém que todos os réprobos
‘procuram’ a sua pró pria destruiçã o através de atos pessoais de
impiedade, maldade e rebeliã o. Portanto, seu pró prio arrazoado o
obriga a sustentar (para ser consistente consigo mesmo) que
nenhuma criança réproba pode morrer na infâ ncia; mas que elas
devem viver até a idade de responsabilidade moral e transformar o
pecado original em pecado atual”. [79]
Em nenhum dos seus escritos Calvino sustenta, quer diretamente,
ou mediante justificativa, ou por inferência necessá ria, que alguns
dos que morrem na infâ ncia se perdem. A maior parte das passagens
aduzidas pelos opositores, em prova do seu ponto de vista, sã o
meramente passagens onde Calvino discute a doutrina do pecado
original. A maior parte dessas passagens é tomada de seçõ es
extremamente controversas, onde ele discute outras doutrinas e
onde ele se expressa sem muita prudência; se forem lidas em seu
contexto, se verá claramente o significado dessas passagens. Calvino
fala simplesmente de todas as crianças o que Davi fala de si mesmo:
“Eu nasci na iniquidade, e em pecado me concebeu minha mã e” (Sl
51.5); e o que mais tarde Paulo reiterou: “em Adã o, todos morrem”
(1Co 15.22); e todos sã o “por natureza filhos da ira” (Ef 2.3).
Cremos que mostramos agora que a doutrina da eleiçã o é bíblica em
todas as suas partes, e que, além do mais, é um claro ditame da
razã o comum. Aqueles que se opõ em a esta doutrina o fazem ou
porque nã o a entendem, ou porque nã o consideram a majestade e
santidade de Deus, nem a corrupçã o e culpabilidade da natureza
humana. Os tais ignoram que estã o diante do seu Criador, nã o como
os que têm direito à misericó rdia divina, mas como criminosos
debaixo de condenaçã o, que só merecem o castigo. Tais pessoas
querem a liberdade de desenvolver o seu pró prio esquema de
salvaçã o e recusam aceitar o plano de Deus que é mediante a graça .
A doutrina da eleiçã o nã o se harmoniza com nenhum pacto de obras,
nem com um pacto híbrido de obras e graça. A doutrina da eleiçã o se
harmoniza unicamente com um pacto de pura graça.
 

12. Resumo da doutrina reformada da eleição


 
1. A eleiçã o é um ato livre e soberano de Deus, mediante o qual ele
determina quem haverã o de ser os herdeiros do céu.
2. O decreto eletivo foi feito na eternidade.
3. O decreto eletivo contempla a raça humana como já caída.
4. Os eleitos sã o conduzidos de um estado de pecado e miséria a um
estado de bem-aventurança e felicidade.
5. A eleiçã o é pessoal e determina quais os indivíduos em particular
serã o salvos.
6. A eleiçã o inclui os meios assim como os fins — a eleiçã o para a
vida eterna inclui a eleiçã o para uma vida de santidade aqui neste
mundo.
7. O decreto eletivo se torna eficaz mediante a obra eficiente do
Espírito Santo, o qual opera quando, onde e como lhe apraz.
8. A graça comum de Deus inclinaria a todos os homens à prá tica do
bem, se nã o a resistissem.
9. O decreto eletivo passa por alto os nã o eleitos — estes sofrem as
justas consequências do seu pecado.
10. A alguns homens lhes é permitido continuar no mal, que de sua
pró pria vontade escolhem, para sua pró pria destruiçã o.
11. Deus, em sua soberania, poderia regenerar todos os homens, se
assim o quisesse.
12. O Juiz de toda a terra fará sempre o que é justo, e estenderá a sua
graça salvífica a multidõ es que nã o a merecem.
13. A eleiçã o nã o tem por base a fé ou as boas obras previstas, mas
unicamente a soberana e boa vontade de Deus.
14. A maior parte da raça humana foi eleita para a vida.
15. Todos os que morrem na infâ ncia fazem parte dos eleitos.
16. Houve também uma eleiçã o de indivíduos e de naçõ es a favores
e privilégios externos e temporais — uma eleiçã o que nã o atinge a
salvaçã o.
17. A doutrina da eleiçã o é ensinada e enfatizada repetidas vezes em
todas as Escrituras.   

CAPÍTULO XII. EXPIAÇÃO LIMITADA [80]

 
1. Exposiçã o da doutrina. 2. O valor infinito da expiaçã o feita por Cristo. 3. O
propó sito e a aplicaçã o da expiaçã o sã o limitados. 4. A obra de Cristo como o
perfeito cumprimento da lei. 5. Um resgate. 6. O propó sito divino no sacrifício
de Cristo. 7. A exclusã o dos nã o eleitos. 8. O argumento baseado na presciência
de Deus. 9. Certos benefícios que se estendem à humanidade em geral.
 

1. Exposição da doutrina
 
A pergunta que temos de discutir sob o tema “expiaçã o limitada” é:
Cristo ofereceu sua vida como sacrifício por toda a humanidade, por
cada indivíduo, sem distinçã o ou exceçã o, ou a ofereceu unicamente
pelos eleitos? Em outras palavras, o sacrifício de Cristo teve o
propó sito meramente de premiar a todos os homens com a
possibilidade de serem salvos, ou seu propó sito foi o de assegurar a
salvaçã o daqueles que lhe foram dados pelo Pai? Os arminianos
sustentam que Cristo morreu igualmente por todos; enquanto os
calvinistas sustentam que, segundo a intençã o e o plano de Deus,
Cristo morreu unicamente pelos eleitos ; e que sua morte só teve uma
relaçã o incidental com o resto dos homens à medida que estes
participam da graça comum. Talvez pudéssemos ver o significado
mais claramente usando a frase “redençã o limitada”, em vez de
“expiaçã o limitada”. Sem dú vida, a expiaçã o é estritamente uma
transaçã o infinita; teologicamente, a limitaçã o surge na aplicaçã o
dos benefícios da expiaçã o, isto é, na redençã o. Mas, visto que o uso
teoló gico da frase “expiaçã o limitada” está bem estabelecido, e o seu
significado é bem conhecido, continuaremos usando-a.
A Confissão de fé de Westminster reza a respeito desta doutrina:
“Assim como Deus destinou os eleitos para a gló ria, assim também,
pelo eterno propó sito da sua vontade, preordenou todos os meios
conducentes a esse fim; os que, portanto, sã o eleitos, achando-se
caídos em Adã o, sã o remidos por Cristo; sã o eficazmente chamados
para a fé em Cristo, pelo seu Espírito que opera no tempo devido;
sã o justificados, adotados, santificados e guardados pelo seu poder,
por meio da fé salvífica. Além dos eleitos nã o há nenhum outro que
seja remido por Cristo, eficazmente chamado, justificado, adotado,
santificado e salvo”. [81]  
Como se poderá notar, esta doutrina se depreende necessariamente
da doutrina da eleiçã o. Se desde a eternidade Deus se propô s salvar
uma porçã o da humanidade e ao resto, nã o, seria contraditó rio
afirmar que a sua obra tem referência igual a ambas as porçõ es; ou,
que ele enviou o seu Filho para morrer pelos que havia predestinado
nã o salvar, no mesmo sentido em que o enviou para morrer pelos
que havia escolhido para a salvaçã o. Estas duas doutrinas se
mantêm ou caem juntas. Seria iló gico aceitar uma e rejeitar a outra.
Se Deus elegeu alguns para a vida eterna e a outros, nã o, entã o é
ó bvio que o propó sito primordial da obra de Cristo foi redimir os
eleitos.

2. O valor infinito da expiação feita por Cristo


Esta doutrina nã o significa que se possa limitar o valor ou o poder
da expiaçã o que Cristo realizou. O valor da expiaçã o depende de e é
medido pela dignidade da pessoa que a fez; e uma vez que Cristo
sofreu como uma pessoa divino-humana, o valor do seu sofrimento é
infinito. Os escritores da Bíblia afirmam que “o Senhor da gló ria” foi
crucificado (1Co 2.8); que homens ímpios mataram o “Autor da
vida” (At 3.5); e que Deus “comprou” a igreja “com seu pró prio
sangue” (At 20.28). A expiaçã o, portanto, é infinitamente meritó ria e
poderia salvar a cada membro da raça humana, se essa fosse a
vontade de Deus. A expiaçã o só é limitada no sentido de que se
destinava a salvar determinados indivíduos em particular; e,
portanto, ela se aplica unicamente a esses indivíduos; a saber, os que
sã o de fato salvos.
Ocasionalmente surgem aqui alguns mal-entendidos sobre este
ponto em virtude da suposiçã o equivocada de que os calvinistas
ensinam que Cristo sofreu um tanto por uma alma, e outro tanto por
outra, e que teria sofrido mais, se houvesse mais indivíduos a ser
salvos. Cremos que, ainda que houvesse muito menos a ser
perdoados e salvos, ainda assim teria sido necessá ria uma expiaçã o
de valor infinito a fim de assegurar-lhes essas bênçã os; e ainda que
houvesse muitos ou mesmo todos os homens fossem perdoados e
salvos, o sacrifício de Cristo teria sido amplamente suficiente como a
base da salvaçã o desses. Assim como é necessá rio que o sol dê tanto
calor para que uma só planta crescesse sobre a terra, a ponto de
toda a terra se cobrir de vegetaçã o, de igual modo era necessá rio
que Cristo sofresse para que uma só alma fosse salva o tanto quanto
se muitas almas ou mesmo toda a raça humana fosse salva. Posto
que o pecador cometeu uma ofensa contra uma Pessoa de dignidade
infinita, pelo qual ela foi condenada ao sofrimento eterno, nada que
nã o fosse um sacrifício de valor infinito poderia expiar a culpa.
Ninguém presume que, como o pecado de Adã o era a base da
condenaçã o da raça, portanto isso significa que Adã o pecou um
tanto por uma pessoa e outro tanto por outra, e que teria pecado
mais se houvesse mais pecadores. Por que, pois, supor que este é o
caso relativo ao sofrimento de Cristo?

3. A expiação é limitada em seu propósito e aplicação


Ainda que o valor da expiaçã o seja suficiente para salvar toda a
humanidade, ele é eficiente para salvar somente os eleitos. A
expiaçã o pode salvar tã o facilmente a uma como a qualquer outra
pessoa, e nesse sentido a salvaçã o de toda pessoa é objetivamente
possível; todavia, em razã o das dificuldades subjetivas que surgem
por causa da incapacidade do pecador de ver ou de apreciar as
coisas de Deus, só sã o salvos aqueles que sã o regenerados e
santificados pelo Espírito Santo. A razã o por que Deus nã o aplica
esta graça a todos os homens nã o foi plenamente revelada.
Quando se afirma que a expiaçã o é universal, entã o se destró i o seu
valor inerente. Se a expiaçã o é aplicada a todos os homens, e alguns
se perdem, entã o a conclusã o é que a expiaçã o só torna
objetivamente possível a salvaçã o de todos os homens; porém, na
realidade, ela não salva a ninguém . De acordo com a teoria
arminiana, a expiaçã o só concede aos homens a possibilidade de
cooperar com a graça divina e de salvar a si mesmos — caso assim o
desejem. Antes de tudo, que se nos mostre alguém curado de câ ncer
que ainda continua morrendo de câ ncer, e entã o aceitaremos o fato
de alguém que já foi lavado do pecado, e ainda continua perecendo
em sua incredulidade. A natureza da expiaçã o determina a sua
extensã o. Se ela tornou a salvaçã o meramente possível, entã o ela se
aplica a todos sem exceçã o. Mas se efetivamente ela assegurou a
salvaçã o, entã o se aplica somente aos eleitos. O Dr. Warfield afirma:
“As duas alternativas que temos sã o uma expiaçã o de valor
supremo, ou uma expiaçã o de extensã o ilimitada. As duas nã o
podem seguir juntas”. A ú nica maneira de universalizar a obra de
Cristo seria evaporando a sua substâ ncia.
É importante que nã o haja equívocos sobre este ponto. O arminiano
limita a expiaçã o tã o certamente como o calvinista. Este limita a
extensão da expiaçã o, ao dizer que esta nã o se aplica a todas as
pessoas (muito embora, como já se demonstrou anteriormente,
creiamos que ela é eficaz para a salvaçã o da maior parte da
humanidade); e o arminiano limita o poder da expiaçã o, porquanto
ele afirma que em si mesma tal expiaçã o nã o salva ninguém. O
calvinista a limita quantativamente, porém nã o qualitativamente; o
arminiano a limita qualitativamente, porém nã o quantativamente.
Para o calvinista, a expiaçã o se assemelha a uma ponte estreita que
cruza o rio de um lado para o outro; para o arminiano, ela é como
uma ponte larga que só chega à metade do rio. De fato, o arminiano
põ e à obra de Cristo limitaçõ es mais severas do que faz o calvinista.

4. A obra de Cristo como o perfeito cumprimento da lei


Se os benefícios da expiaçã o sã o universais e ilimitados, entã o a
expiaçã o seria como os arminianos afirmam — um mero sacrifício
que removeu a maldiçã o que pesava sobre a raça humana em
virtude da queda de Adã o; um mero substituto das exigências da lei
que Deus, em sua soberania, estava disposto a aceitar no lugar da
obediência que o pecador estava obrigado a prestar, e nã o uma
satisfaçã o perfeita que cumpriu as demandas da justiça. Significaria
que Deus já nã o exige perfeita obediência como fez a Adã o, mas que
rebaixou as condiçõ es da salvaçã o e removeu os obstá culos legais,
aceitando a fé e a obediência evangélicas que o pecador, com a
capacidade restaurada pela graça, pode exercer caso o queira,
certamente com o auxílio geral do Espírito Santo. Deus manifesta a
sua graça ao oferecer um meio mais fá cil de salvaçã o — agora ele
aceita a metade de um dó lar, por assim dizer, já que o pecador
incapacitado nã o pode pagar mais que isso.
Os calvinistas, por sua vez, sustentam que a lei da obediência
perfeita dada originalmente a Adã o é permanente, e que Deus jamais
fez algo que desse a impressã o de que a lei é demasiadamente
estrita em sua exigência, ou demasiadamente severa em seu castigo,
ou que necessita de ser anulada ou dispensada. A justiça divina
demanda que o pecador seja castigado, quer pessoalmente ou por
meio de um substituto. Sustentamos que Cristo agiu como substituto
dos eleitos, que fez plena satisfaçã o pelos pecados deles e, assim,
removeu a maldiçã o que pesava sobre eles em virtude do pecado de
Adã o e de todos os pecados temporais; e que, mediante a sua vida
impecá vel, cumpriu perfeitamente por eles a lei que Adã o
transgredira, e assim conquistando para os eleitos a recompensa da
vida eterna. Cremos que o requisito para a salvaçã o, agora como
originalmente, é a obediência perfeita ; que os méritos de Cristo sã o
imputados aos escolhidos como a ú nica base da sua salvaçã o; e que
estes só entram no céu vestidos com a tú nica da perfeita justiça de
Cristo, sem qualquer mérito pessoal. Desse modo, a graça, a pura
graça , se estende nã o rebaixando os requisitos para a salvaçã o, mas
mediante a obra de Cristo, que sofreu como substituto dos
escolhidos. Cristo tomou o lugar dos escolhidos no lugar da lei e fez
por eles o que nã o podiam fazer por si mesmos. Este princípio
calvinista de todas as formas imprime sobre nó s a perfeiçã o
absoluta e inalterá vel obrigaçã o para com a lei que originalmente foi
dada a Adã o. A lei nã o é relaxada nem posta de lado, mas
apropriadamente honrada de tal modo que exibe a sua excelência. A
lei continua exercendo a sua absoluta autoridade tanto sobre os
salvos, a favor de quem Cristo tudo fez, como sobre os que hã o de
ser submetidos ao castigo eterno.
Se a teoria arminiana fosse correta, entã o milhõ es daqueles por
quem Cristo morreu, e para quem comprou a salvaçã o, perecem sem
receber os benefícios dessa gloriosa salvaçã o. Por exemplo, quais
benefícios poderíamos nó s assinalar nas vidas dos pagã os e dizer
que os receberam como fruto da expiaçã o? Além disso, se tal teoria
fosse correta, entã o teríamos que concluir que os planos de Deus
muitas vezes têm sido obstaculizados e frustrados pelas suas
criaturas, e que, muito embora ele a cumpra segundo a sua vontade
nos exércitos dos céus, nã o a cumpre entre os habitantes da terra.
No dizer de Charles Hodge: “O pecado de Adã o nã o tornou
meramente possível a condenaçã o de todos os homens; ele foi a base
da sua condenaçã o. Do mesmo modo, a justiça de Cristo nã o tornou
meramente possível a salvaçã o dos homens, senã o que assegurou a
salvaçã o daqueles a favor de quem ele a granjeou”.
O grande pregador batista, Charles H. Spurgeon, afirmou: “Se Cristo
morreu por ti, entã o jamais te perderá s. Deus nã o castigará duas
vezes pela mesma ofensa. Se Deus castigou Cristo pelos teus
pecados, entã o ele nã o castigará também a ti. ‘A justiça de Deus nã o
pode exigir pagamento duas vezes; primeiro, da mã o ferida do
Salvador; e a seguir, da minha’. Como Deus poderia ser justo se
castigasse Cristo, o substituto, e logo a seguir também o pecador?”.

5. Um resgate
As Escrituras afirmam que Cristo foi um resgate pelos seus
escolhidos — “O Filho do homem nã o veio para ser servido, mas
para servir e para dar a sua vida em resgate de muitos” (Mt 20.28).
Note que este versículo nã o diz que ele deu a sua vida por todos , e
sim por muitos . A natureza de um resgate é tal que, quando é pago e
aceito, automaticamente põ e em liberdade a pessoa a favor de quem
ele foi pago. De outro modo, nã o se poderia chamá -lo de resgate . A
justiça demanda que aqueles a favor de quem se paga o resgate
sejam eximidos de qualquer outra obrigaçã o adicional. Portanto, se
o sofrimento e a morte de Cristo foram um resgate a favor de todos
os homens, e nã o unicamente a favor dos eleitos, entã o os méritos
da sua obra deveriam ser comunicados a todos igualmente e a pena
do castigo eterno nã o poderia ser infligida a ninguém. Deus seria
injusto se infligisse duas vezes o terrível castigo, primeiro ao
substituto, e entã o aos pró prios homens. Concluímos, pois, que a
expiaçã o de Cristo nã o se estende a todos os homens, senã o que se
limita à queles a favor de quem ele agiu como Fiador; isto é, aos que
compõ em a sua verdadeira igreja.

6. O propósito divino no sacrifício de Cristo


Se a morte de Cristo teve o propó sito de salvar a todos os homens,
entã o teríamos que concluir ou que Deus não pôde ou não quis levar
a bom termo os seus planos. Mas, como a obra de Deus é sempre
eficiente, aqueles a favor de quem ele fez a expiaçã o e aqueles que
sã o atualmente salvos sã o as mesmas pessoas. Os arminianos
presumem que os propó sitos de Deus sã o mutá veis, e que podem
ser malogrados. Afirmar que Deus enviou o seu Filho para redimir a
todos os homens, porém, ao ver que o seu plano nã o poderia
concretizar-se, prosseguiu “elegendo” à queles que ele viu que de
antemã o exerceriam fé e arrependimento, equivale apresentar Deus
como alguém que deseja o que nã o pode acontecer — fazendo os
seus propó sitos e planos dependentes da vontade e das obras de
criaturas que dependem totalmente dele. Nenhum ser racional que
possua a sabedoria e o poder de levar a bom termo os seus planos
planeja algo que bem sabe jamais conseguirá , ou adota planos para
chegar a um fim que bem sabe jamais alcançará . Muito menos Deus,
cuja sabedoria e poder sã o infinitos, agirá dessa maneira. Podemos
estar certos de que, se alguns homens se perdem, é porque Deus
nunca se propô s salvá -los, e nunca planejou nem pô s em açã o os
meios designados para atingir tal fim.
Jesus mesmo limitou o propó sito da sua morte, quando afirma: “Eu
dou a minha vida pelas ovelhas”. Se foi pelas ovelhas que ele deu a
sua vida, entã o o cará ter expiató rio da sua obra nã o era universal.
Em outra ocasiã o, ele disse aos fariseus: “Vó s nã o sois das minhas
ovelhas”; e, outra vez, “Vó s sois do diabo, que é o vosso pai”.
Porventura alguém afirmaria que ele deu a sua vida por estes, uma
vez que os exclui tã o diretamente? O anjo que apareceu a José lhe
disse que o filho de Maria seria chamado Jesus, porque a sua missã o
no mundo era salvar o seu povo dos seus pecados. Equivale dizer,
ele nã o veio meramente para tornar possível a salvaçã o, mas para
salvar realmente o seu povo; e podemos ter a plena certeza de que
ele concretizou o que veio fazer.
Uma vez que a obra de Deus nunca é vã , os escolhidos pelo Pai,
redimidos pelo Filho e santificados pelo Espírito Santo — ou, em
outras palavras, a eleiçã o, a redençã o e a santificaçã o — incluem
sempre as mesmas pessoas. A doutrina arminiana da expiaçã o
universal dá lugar a uma desigualdade nestas três partes da
salvaçã o; e, portanto, destró i a perfeita harmonia que existe na
Trindade. Expiaçã o universal significa salvaçã o universal.
Cristo ensinou que os eleitos e os redimidos eram as mesmas
pessoas, quando, na oraçã o intercessó ria, ele afirmou: “Eram teus, tu
mos confiaste”; e, “É por eles que eu rogo; nã o rogo pelo mundo, mas
por aqueles que me deste, porque sã o teus”; “todas as minhas coisas
sã o tuas, e as tuas coisas sã o minhas; e, neles, eu sou glorificado” (Jo
17.6, 9, 10). E, outra vez: “Eu sou o bom pastor; conheço as minhas
ovelhas, e elas me conhecem a mim, assim como o Pai me conhece a
mim, e eu conheço o Pai; e dou a minha vida pelas ovelhas” (Jo
10.14, 15). Encontramos o mesmo ensino no versículo que nos
exorta a apascentar “a igreja do Senhor, a qual ele comprou com o
seu pró prio sangue” (At 20.28). Além disso, somos informados que
“Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela” (Ef 5.25); e
que deu a sua vida pelos seus amigos (Jo 15.13). Cristo morreu por
homens como Paulo e Joã o, nã o por homens como Faraó e Judas, os
quais eram bodes, e nã o ovelhas. Nã o podemos afirmar que a sua
morte teve como propó sito salvar a todos, a menos que estejamos
dispostos a afirmar também que Faraó , Judas, entre outros, eram do
nú mero das ovelhas, dos amigos e da igreja de Cristo.
Além disso, quando lemos que Cristo deu a sua vida pela sua igreja,
ou pelo seu povo, é impossível manter que isto significa que ele deu
a sua vida, respectivamente, por réprobos e por aqueles a quem ele
nã o se propô s salvar. A humanidade está dividida em duas classes, e
o que explicitamente se afirma de uma fica implicitamente negado à
outra. Em cada caso, afirma-se algo daqueles que pertencem a um
grupo que nã o se coaduna à queles que pertencem a outro. Por
exemplo, ao sermos informados que um homem luta e sacrifica a sua
saú de e as suas forças pelos seus filhos, ele está negando
implicitamente que o motivo que o governa é mera filantropia, ou
que a sua intençã o é a de granjear o bem da sociedade. De igual
modo, quando lemos que Cristo morreu pelo seu povo, assim se
nega que ele morresse igualmente por todos os homens.

7. A exclusão dos não eleitos


Portanto, nã o foi um amor geral e indiscriminado do qual todos os
homens eram objeto, mas sim um amor especial, misterioso e
infinito para com os seus eleitos que moveu Deus a enviar o seu
Filho ao mundo para sofrer e morrer. Nã o pode ser bíblica qualquer
teoria que negue esta maravilhosa e preciosa verdade, e que tente
apresentar este amor como uma mera benevolência ou filantropia
indiscriminada, que teve por objeto todos os homens, dentre os
quais muitos perecem. Cristo nã o morreu por um grupo
indiscriminado de pessoas, e sim pelo seu povo, a sua noiva, a sua
igreja.
O agricultor valoriza o seu campo. Mas ninguém presume que ele se
preocupa igualmente com cada planta que cresce ali: pelo “joio” e
igualmente pelo “trigo”. O campo de Deus é o mundo (Mt 13.38), e
este o ama por causa da “boa semente”, os filhos do reino, e nã o por
causa dos filhos do maligno. Nã o é à humanidade, em sua totalidade,
que Deus ama e à qual discriminadamente redime por meio de
Cristo. Deus nã o comunica a sua bondade da mesma maneira que o
sol comunica a sua luz ou a á rvore a sua prazenteira sombra, os
quais nã o selecionam os seus objetos, senã o que concedem seus
benefícios a todos indiscriminadamente. Afirmar tal coisa
equivaleria dizer que Deus nã o tem mais entendimento do que o sol,
o qual nã o brilha onde lhe apraz, e sim onde deve brilhar. Deus é
uma Pessoa com sabedoria e possui o direito soberano de escolher
os seus pró prios objetos.
Lemos em Gênesis que Deus “pô s inimizade” entre a semente da
mulher e a semente da serpente. Ora, quem compõ e a semente da
mulher e a semente da serpente? À primeira vista, pode-se presumir
que a semente da mulher é toda a raça humana que descendeu de
Eva. Em Gá latas 3.16, contudo, Paulo usa este termo “semente”, e o
aplica a Cristo como um indivíduo: “Nã o diz: E aos descendentes,
como que falando de muitos, porém como de um só : E ao teu
descendente, que é Cristo”. De igual modo, pode-se notar que a
semente da serpente nã o sã o os descendentes literais do diabo, mas
aqueles membros nã o eleitos da raça humana, os quais partilham da
natureza pecaminosa do diabo. Jesus disse dos seus inimigos: “Vó s
sois do diabo, que é o vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos”
(Jo 8.44). Paulo repreendeu a Elimas, o má gico, chamando-o de filho
do diabo e inimigo de toda a justiça. E a Judas ele denominou de
diabo (Jo 6.70). A semente da mulher e a semente da serpente sã o,
portanto, duas porçõ es distintas da raça humana. Em outras partes
das Escrituras somos informados que Cristo e o seu povo sã o “um”;
que ele habita neles e está unido a eles como a videira aos ramos. E
posto que desde o princípio Deus “pô s inimizade” entre estes dois
grupos, é ó bvio que ele nunca amou a ambos da mesma maneira,
nem se propô s redimir a todos igualmente. A expiaçã o universal e a
maldiçã o que Deus pronunciou sobre a serpente nunca podem
seguir juntas.
Existe também um paralelo digno de ser notado entre o sumo
sacerdote do antigo Israel e Cristo que é o nosso Sumo Sacerdote.
Somos informados que o primeiro foi um tipo do segundo. No
grande dia da expiaçã o, o sumo sacerdote oferecia sacrifícios pelos
pecados das doze tribos de Israel. Intercedia unicamente por elas.
Cristo, de igual modo, nã o orou pelo mundo, mas pelos seus. A
intercessã o do sumo sacerdote conseguia para os israelitas aquelas
bênçã os das quais eram excluídos todos os demais povos; e a
intercessã o de Cristo, a qual é também particular, mas de uma
ordem muito mais elevada, certamente será eficaz no mais elevado
grau, já que o Pai sempre o ouviu.
Aqui nos cabe assinalar que nã o é necessá rio que a misericó rdia de
Deus seja comunicada a todos os homens sem exceçã o para que essa
misericó rdia possa ser considerada realmente infinita; já que os
homens, em sua totalidade, nã o constituem uma multidã o estrita e
propriamente infinita. As Escrituras ensinam claramente que o
diabo e os anjos apó statas estã o excluídos dos propó sitos benévolos
de Deus. Todavia, a sua misericó rdia é infinita, uma vez que ele
resgata do pecado e da miséria indescritível e eterna a grande
multidã o dos seus eleitos, e a conduz a uma bem-aventurança
indescritível e eterna.
Ainda que os arminianos sustentem que Cristo morreu igualmente
por todos os homens, e que obteve graça suficiente a ponto de
tornar possível que todos os homens se arrependam, creiam e
perseverem, se apenas quiserem cooperar com essa graça, também
sustentam que os que recusam cooperar serã o castigados por toda a
eternidade, com base na recusa da graça oferecida , muito mais
severamente do que se Cristo nunca houvesse morrido por eles.
Podemos ver que até neste momento da histó ria da humanidade a
grande maioria dos adultos nã o tem cooperado com essa graça e,
portanto, tem atraído sobre si maior miséria do que a que teria
experimentado a obra redentora se Cristo nã o viesse. Certamente,
uma crença que permite que a obra redentora de Deus fracasse de
tal maneira, e que projeta tã o pouca gló ria sobre a expiaçã o de
Cristo, nã o poderia ser genuína. Sem a menor sombra de dú vida, é
nas doutrinas calvinistas da eleiçã o incondicional e da expiaçã o
limitada, que se manifestam muito mais amplamente o amor e a
misericó rdia de Deus do que nas doutrinas arminianas da eleiçã o
condicional e a expiaçã o ilimitada.
 

8. O argumento baseado na presciência de Deus


 
O argumento baseado na presciência de Deus é, em si mesmo,
suficiente para provar esta doutrina. A mente de Deus nã o é,
porventura, infinita? E as suas percepçõ es nã o sã o, porventura,
perfeitas? Quem pensaria que Deus, como se fosse um débil mortal,
“dispersaria um bando sem se precaver das aves individuais”? Já que
ele conhecia de antemã o quais os que haveriam de ser salvos — e os
arminianos mais evangélicos admitem que Deus tem ciência exata
de todos os eventos —, ele nã o teria enviado Cristo para salvar os
que bem sabia previamente que se perderiam. No dizer de Calvino:
“Onde estaria a consistência de Deus ao chamar a si os que ele bem
sabia que jamais viriam?”. Se uma pessoa sabe que numa casa ao
lado há dez laranjas, sete delas boas e três podres, esta nã o irá
à quela casa esperando encontrar dez laranjas boas. Ou se ele
conhece de antemã o que de cinquenta pessoas à s quais enviará
convites para um banquete, dez nã o virã o, nã o enviará os convites
esperando que também essas dez virã o junto com as demais. Os que
dizem crer na presciência de Deus e, contudo, dizem que Cristo
morreu por todos os homens, enganam a si pró prios; porque, isto
nã o seria atribuir insensatez à quele cujos caminhos sã o perfeitos?
Representar Deus como se esforçando sinceramente para conseguir
o que ele bem sabe jamais conseguirá é representá -lo como alguém
que age nesciamente.
 

9. Alguns benefícios que se estendem à humanidade em geral


 
Concluindo, diremos que os calvinistas nã o negam que a
humanidade em geral recebe alguns benefícios importantes da
expiaçã o feita por Cristo. Os calvinistas admitem que a expiaçã o
detém o castigo imediato que atingiu toda a raça humana em virtude
do pecado de Adã o; que serve como base para a pregaçã o do
evangelho e que, portanto, dá lugar a muitas influências morais
positivas no mundo e restringe muitas má s influências. Paulo disse
aos pagã os de Listra que Deus “nã o se deixou ficar sem testemunho
de si mesmo, fazendo o bem, dando-vos do céu chuvas e estaçõ es
frutíferas, enchendo o vosso coraçã o de fartura e de alegria” (At
14.17). Deus faz com que o sol nasça sobre maus e bons, e faz chover
sobre justos e injustos. Muitas bênçã os temporais sã o derramadas
sobre todos os homens, muito embora tais bênçã os sejam
insuficientes para a salvaçã o.
Cunningham apresentou de maneira clara a posiçã o calvinista sobre
este ponto no seguinte pará grafo: “Os que sustentam a doutrina da
redençã o particular, ou expiaçã o limitada, nã o negam que a
humanidade em geral, mesmo aqueles da raça humana que
finalmente perecem, deriva certas vantagens ou benefícios da morte
de Cristo; e nenhuma das suas crenças requer que se negue este
fato. Os calvinistas creem que têm surgido importantes benefícios a
favor da raça humana em consequência da morte de Cristo, e que
desses benefícios participam mesmo aqueles que perseveram até o
fim em sua impenitência e incredulidade. O que eles negam é que
Cristo se propusesse granjear ou que tenha ele granjeado para todos
os homens as bênçã os que emanam como fruto particular da sua
morte em seu cará ter especificamente expiató rio — que granjeou ou
comprou a redençã o — isto é, o perdã o e a reconciliaçã o — para
todos os homens. Da morte de Cristo fluem muitas bênçã os para a
humanidade em geral, colateral e incidentemente, em consequência
da relaçã o na qual os homens, contemplados coletivamente, se
encontram uns com os outros. Certamente todos esses benefícios
foram de antemã o vistos por Deus, quando ele se propô s enviar o
seu Filho ao mundo; foram contemplados ou designados por ele
como benefícios que os homens haveriam de receber como dons
oriundos dele, os quais revelam a sua gló ria, manifestam o seu
cará ter e cumprem os seus propó sitos; e serã o vistos como vindo
aos homens através do canal da mediaçã o de Cristo — do seu
sofrimento e morte”. [82]  
Portanto, em certo sentido Cristo morreu por todos os homens; e
nã o respondemos à doutrina arminiana com uma negativa absoluta.
Todavia, sustentamos que a morte de Cristo tem referência especial
aos eleitos, posto que ela foi eficaz para a salvaçã o destes, enquanto
os efeitos que ela produz em outros sã o apenas incidentais ao
grande propó sito da salvaçã o dos eleitos.

CAPÍTULO XIII. A GRAÇA EFICAZ


 
1. O ensino da Confissão de fé de Westminster com respeito à doutrina da graça
eficaz. 2. A necessidade de mudança. 3. Uma mudança interior efetuada pelo
poder sobrenatural de Deus. 4. O efeito produzido na alma. 5. A suficiência da
obra de Cristo — o princípio evangélico. 6. O conceito arminiano da graça
universal. 7. A livre agência do homem nã o é violada. 8. A graça comum.
 

1. O ensino da Confissão de fé de Westminster


A Confissão de fé de Westminster apresenta a doutrina da graça
eficaz da seguinte forma:
Todos aqueles a quem Deus predestinou para a vida, e
somente esses, é ele servido chamar eficazmente pela sua
Palavra e pelo seu Espírito, no tempo por ele determinado e
aceito, tirando-os daquele estado de pecado e morte em que
estã o por natureza para a graça e salvaçã o, em Jesus Cristo.
Isto ele o faz, iluminando seus entendimentos, espiritual e
salvificamente, a fim de compreenderem as coisas de Deus,
tirando-lhes os seus coraçõ es de pedra e dando-lhes coraçõ es
de carne, renovando as suas vontades e determinando-as, pela
sua onipotência, para aquilo que é bom, e atraindo-os
eficazmente a Jesus Cristo, mas de maneira que eles vêm mui
livremente, sendo para isso dispostos pela sua graça.
Esta vocaçã o eficaz provém unicamente da livre e especial
graça de Deus, e nã o de qualquer coisa prevista no homem;
nesta vocaçã o, o homem é inteiramente passivo, até que,
vivificado e renovado pelo Espírito Santo, fica habilitado a
corresponder a ela e a receber a graça nela oferecida e
comunicada. [83]
E o Breve catecismo de Westminster , em sua resposta à pergunta, “O
que é vocaçã o eficaz?”, responde: “Vocaçã o eficaz é a obra do
Espírito de Deus, pela qual, convencendo-nos do nosso pecado e da
nossa miséria, iluminando os nossos entendimentos no
conhecimento de Cristo, e renovando a nossa vontade, nos persuade
e habilita a abraçar Jesus Cristo, que nos é oferecido de graça no
Evangelho”. [84]
 

2. A necessidade de mudança
Os méritos da obediência e do sofrimento de Cristo sã o suficientes,
adequados e oferecidos gratuitamente a todos os homens. Surge,
porém, a pergunta: Por que um é salvo e o outro continua perdido?
Qual a razã o de uns se arrependerem e crerem, enquanto outros,
com os mesmos privilégios externos, rejeitam o evangelho e
continuam impenitentes e na incredulidade? O calvinista afirma que
é Deus quem faz a diferença entre um e o outro; Deus persuade
eficazmente uns a irem a ele; o arminiano, por sua vez, atribui a
diferença aos pró prios homens.
Os calvinistas afirmam que a condiçã o dos homens, desde a queda, é
tal que sã o entregues a si mesmos para que continuem em seu
estado de rebeldia, rejeitando toda a oferta de salvaçã o. Nesse caso,
Cristo teria morrido em vã o; mas, como lhe foi prometido que ele
veria o fruto da afliçã o da sua alma e ficaria satisfeito, os resultados
do seu sacrifício nã o podem depender do capricho da vontade
mutá vel e pecaminosa do homem; antes, a obra de Deus na redençã o
veio a ser eficaz pela açã o do Espírito Santo, o qual opera nos eleitos
de tal modo que sã o conduzidos à fé e ao arrependimento e, assim,
se tornam herdeiros da vida eterna.
As Escrituras ensinam que o homem, em seu estado natural, está
totalmente corrompido e que nunca pode alcançar a santidade e a
felicidade por suas pró prias forças. Espiritualmente, o homem está
morto, e, para que seja salvo, terá que ser através de Cristo. A
pró pria razã o comum nos informa que, se uma pessoa se encontra
tã o alienada espiritualmente que se acha inimizada com Deus, como
o homem está em seu estado natural, ele necessita de ser libertado
de tal condiçã o antes que possa nutrir algum desejo de fazer a
vontade de Deus. Caso o pecador queira a salvaçã o através de Cristo,
ele tem primeiramente que receber uma nova disposiçã o; tem que
nascer de novo e do alto (Jo 3.3). No caso do diabo e dos demô nios,
por exemplo, é fá cil ver como as suas naturezas teriam que ser
mudadas soberanamente caso fossem alvos da salvaçã o; os
princípios pecaminosos inatos que movem o homem apostatado de
Deus sã o da mesma natureza, ainda que nã o tã o intensos como os
que movem os anjos apó statas. Se o homem está morto em pecado,
entã o nada menos que o poder sobrenatural e vivificador do
Espírito Santo poderia movê-lo a fazer aquilo que é espiritualmente
bom. Se o homem pudesse entrar no céu com a sua velha natureza, o
céu seria para ele o inferno, já que estaria em desarmonia com o seu
meio ambiente. O homem, em seu estado natural, detestaria
intensamente o ambiente celestial e se sentiria miserá vel na
presença de Deus. Portanto, a obra interna do Espírito Santo
constitui uma necessidade absoluta.
O primeiro movimento rumo à salvaçã o, por parte do homem nã o
regenerado, teria a mesma probabilidade de surgir como teria um
corpo morto de voltar à vida pelos seus pró prios esforços ou
iniciativa. A regeneraçã o é um dom soberano de Deus, concedido
gratuitamente aos eleitos; e somente Deus possui o poder de levar a
bom termo esta grande obra de re-criaçã o. O dom da regeneraçã o
nã o pode ser concedido aos homens por haver-se previsto neles
alguma coisa boa, já que em sua natureza nã o regenerada os homens
sã o incapazes de agir com motivos retos para com Deus; portanto,
nã o se prevê neles nenhuma boa obra. O homem nã o regenerado
nã o pode se dar conta adequadamente da sua condiçã o de
impotência total; ao contrá rio, ele imagina que pode reformar-se por
conta pró pria e voltar-se para Deus, caso o queira. Além disso, ele
imagina que pode frustrar os propó sitos da Sabedoria infinita e
derrotar a força da pró pria Onipotência. No dizer do Dr. Warfield: “O
pecador necessita nã o de incentivos nem de auxílios para salvar a si
pró prio, mas carece sim de salvaçã o; e Jesus Cristo veio nã o para
aconselhar, nem para estimular, nem para solicitar, nem para ajudar
o homem a salvar a si pró prio, e sim para salvá -lo”.
 

3. Uma mudança interior efetuada por um poder sobrenatural


 
As Escrituras denominam tal mudança de regeneração (Tt 3.5); uma
ressurreição espiritual efetuada pelo mesmo poder que Deus operou
em Cristo quando o levantou dentre os mortos (Ef 1.19, 20); um
chamado das trevas para a maravilhosa luz de Deus (1Pe 2.9); uma
passagem da morte para a vida (Jo 5.24); um novo nascimento (Jo
3.3); uma geraçã o de vida (Cl 2.13); uma remoçã o do coraçã o de
pedra e a doaçã o de um coraçã o de carne (Ez 11.19); e aquele que
experimenta tal mudança é chamado de uma nova criação (2Co
5.17). Essas descriçõ es refutam completamente a noçã o arminiana
de que a regeneraçã o é primordialmente obra do homem que,
segundo eles, se vê induzido por uma persuasã o moral ou pela mera
influência da verdade apresentada de maneira geral pelo Espírito
Santo. Além disso, como tal mudança é produzida por um poder do
alto, o qual é a fonte da nova vida, dita mudança é irresistível e
permanente.
A regeneraçã o da alma é algo efetuado em nó s, e nã o uma obra
realizada por nó s. É uma mudança instantâ nea de morte espiritual à
vida espiritual, e nem mesmo temos consciência dela no momento
em que ela ocorre, já que ocorre em um nível que ultrapassa o
estado consciente. No momento em que ocorre, a alma está tã o
passiva como estava Lá zaro ao ser chamado por Jesus novamente à
vida. Com respeito ao estado da alma no momento da regeneraçã o,
diz Charles Hodge: “A alma é o sujeito, e nã o o agente da mudança. A
alma coopera, ou está ativa no que ocorre antes e depois da
mudança, porém a pró pria mudança é algo que se experimenta , e
nã o algo que se faz . É possível que os cegos e coxos que foram a
Cristo tenham despendido grandes esforços para chegar a ele, e em
seguida se alegraram em poder exercer o novo poder que lhes era
comunicado; todavia, estiveram completamente passivos no
momento da cura; de modo algum cooperaram na produçã o de tal
efeito. O mesmo sucede na regeneraçã o”. [85] E acrescenta: “As
Escrituras ensinam esta mesma verdade em outras palavras, quando
nos afirmam que a regeneraçã o é um novo nascimento. Ao nascer, a
criança entra em um novo estado de existência. O nascimento nã o é
uma obra dela. Ela simplesmente nasce. Sai de um estado de
obscuridade, no qual os objetos adaptados à sua natureza nã o sã o
percebidos por ela e nem podem despertar as suas faculdades. Mas,
no processo do seu nascimento, todas as suas faculdades se
despertam; ela começa a ver, sentir, ouvir e todas as suas faculdades
começam a se desenvolver tanto como um ser racional e moral
quanto como um ser físico. As Escrituras ensinam que assim
também se dá na regeneraçã o. A alma entra em um novo estado; é
introduzida num novo mundo. Uma nova classe de objetos, antes
desconhecidos ou despercebidos, lhe é revelada, a qual exerce nela
as suas influências apropriadas”. [86]
A regeneraçã o envolve uma mudança radical do cará ter; assemelha-
se à á rvore boa que passa a produzir bom fruto. Como resultado de
tal mudança, a pessoa passa de um estado de incredulidade a um
estado de fé salvadora, nã o por algum processo de investigaçã o ou
de argumentaçã o, mas por uma experiência interior. Como nada
portamos em nosso nascimento físico, senã o que o recebemos como
um soberano dom de Deus, da mesma forma nada portamos em
nosso nascimento espiritual, senã o que o recebemos como um dom
soberano. Ambos os nascimentos ocorrem independentemente das
nossas pró prias forças, e até mesmo sem o nosso consentimento.
Nã o resistimos ao segundo mais que ao primeiro. E assim como
continuamos vivendo a nossa vida natural, depois de havermos
nascido, da mesma maneira continuamos e nos ocupamos da nossa
salvaçã o, depois de havermos sido regenerados.
As Escrituras ensinam que o requisito para termos acesso ao reino
de Deus é uma transformaçã o radical operada pelo mesmo Espírito
de Deus. Como esta obra na alma é soberana e sobrenatural, Deus a
efetua ou deixa de fazê-lo conforme a sua boa vontade. Equivale
dizer, a salvaçã o dos eleitos é totalmente pela graça. O crente que
nasceu de novo passa a perceber que Deus, na realidade, é “o autor e
consumador” da nossa fé (Hb 12.2); e que operou nele uma obra que
nã o operou nos nã o convertidos. Em resposta à pergunta, “Pois
quem é que te faz sobressair? E que tens tu que nã o tenhas
recebido?” (1Co 4.7), o crente responde que é Deus quem
estabeleceu a diferença entre os homens, especialmente entre os
redimidos e os que se perdem. Se uma pessoa crê, é porque Deus a
vivificou; e se alguma nã o crê, é porque Deus nã o lhe conferiu essa
graça, a qual ele nã o tem por obrigaçã o de conferir a ninguém. A
realidade é que nã o existe a possibilidade de alguém recebê-la por
sua pró pria iniciativa e esforço; Paulo é um homem do mais elevado
nível, que pô de dizer: “Pela graça de Deus sou o que sou”.
Quando Jesus exclamou, “Lá zaro, vem para fora!”, um grande poder
acompanhou a ordem e lhe conferiu eficá cia. Certamente Lá zaro nã o
estava consciente de outro poder que nã o fosse propriamente o seu;
mas quando mais tarde entendeu a situaçã o, entã o pô de perceber
que fora restaurado à vida unicamente pelo poder de Deus. O poder
divino foi primá rio; o seu, secundá rio; e jamais poderia ter exercido
o seu, exceto em resposta ao poder de Deus. É desta maneira que
cada alma redimida é conduzida da morte espiritual à vida
espiritual. Assim como Lá zaro antes foi chamado à vida e depois
respirou e comeu, da mesma maneira a alma morta em pecado,
antes recebe a vida espiritual e em seguida exerce fé e
arrependimento e faz boas obras.
Paulo enfatizou este mesmo ponto quando disse que, muito embora
ele plantasse e Apolo regasse, era Deus quem dava o crescimento.
Esforços meramente humanos de nada servem. Na produçã o de uma
colheita de trigo, por exemplo, o homem só pode fazer o que é
externo e mecâ nico para atingir esse fim. É Deus quem dá o
crescimento mediante o controle soberano de forças que estã o
totalmente fora da esfera da influência do homem. Assim também
sucede no tocante à alma humana; nã o importa quã o eloquente seja
o pregador; se Deus nã o abrir o coraçã o nã o se produzirá a
conversã o. O pregador só faz as coisas externas e mecâ nicas; é o
Espírito Santo quem comunica à alma o novo princípio de vida
espiritual.
A doutrina bíblica da queda apresenta o homem como um ser
moralmente arruinado, por natureza incapacitado de fazer qualquer
coisa boa. O crente genuinamente regenerado consegue ver a sua
incapacidade e reconhece que as suas boas obras e méritos nã o
podem conduzi-lo ao céu. Ele reconhece que nã o pode mover-se
espiritualmente, a menos que Deus o mova; ele se dá conta de que o
seu caso se assemelha aos ramos de uma á rvore, os quais nã o
podem produzir brotos, nem folhas, nem fruto, a nã o ser que
recebam a seiva enviada pelas raízes. Ou, no dizer de Calvino:
“Ninguém pode transformar-se a si mesmo em ovelha, a nã o ser que
seja criado como tal unicamente pela graça divina”. Os eleitos ouvem
o evangelho e creem — nem sempre na primeira instâ ncia, mas no
momento assinalado por Deus; os nã o eleitos ouvem, porém nã o
creem, nã o por carecer de evidência suficiente, mas porque a sua
natureza interior é contrá ria à santidade. Ambas as classes de
respostas ao evangelho têm a sua causa numa fonte externa. “Dar-
vos-ei coraçã o novo e porei dentro de vó s espírito novo; tirarei de
vó s o coraçã o de pedra e vos darei coraçã o de carne” (Ez 36.26). Na
Bíblia, o termo “coraçã o” é sinô nimo de “o homem interior”.
Sob os termos do pacto eterno entre o Pai e o Filho, Cristo foi
exaltado à posiçã o de Governante e Mediador de toda a terra, a fim
de dirigir o reino em seu desenvolvimento. Esta é uma das
recompensas pela sua obediência e sofrimento. O seu poder como
Líder supremo é exercido através do Espírito Santo, o qual aplica os
frutos da redençã o à queles que foram comprados, sob as condiçõ es
do tempo e das circunstâ ncias predeterminados no pacto. Somos
informados que nã o se deve a alguma providência ordiná ria que
uma pessoa creia, e sim devido ao mesmo poder que operou quando
Cristo foi levantado dentre os mortos (Ef 1.19, 20). E dito poder é
tã o eficaz numa ressurreiçã o física quanto numa espiritual, como o
foi na ressurreiçã o de Cristo.
Tanto o mundo físico quanto o espiritual sã o criaçã o de Deus. No
mundo físico, Deus converteu soberanamente a á gua em vinho, e o
simples poder da mã o do Senhor curou o leproso. O arminiano
aceita este poder miraculoso de Deus no mundo físico; por que, pois,
ele o nega no mundo espiritual, como se os espíritos dos homens
estivessem além do controle divino? Cremos que Deus pode mudar
uma pessoa má e torná -la boa quando bem quiser. Esta é uma forma
de autoridade que é o direito do Criador de exercer sobre a criatura.
É uma das maneiras mediante as quais ele governa o mundo.
Quando Deus vê que operar dessa maneira é a que mais convém ao
indivíduo e aos interesses de seu reino, é nã o só permissível operar
dessa maneira, mas é também justo que ele assim aja. O efeito surge
imediatamente da voliçã o, como quando foi dito: “Haja luz”. “O ato
divino de salvaçã o”, diz Mozley, “é a conferiçã o desta graça
irresistível. O sujeito da predestinaçã o divina é resgatado por um
ato de poder absoluto, do domínio do pecado; arrebatado do
domínio do pecado quase pela força, por assim dizer, convertido,
enchido do amor para com Deus e para com seu pró ximo, e feito
infalivelmente idô neo a um estado de recompensa final”. [87]
Assim como o olho físico que ficou cego, cuja vista nã o pode ser
restaurada, nã o importa a quantidade ou intensidade de luz que se
projete nele, do mesmo modo a alma morta em pecado nã o pode
obter a vista espiritual, nã o importa a quantidade do evangelho que
lhe seja apresentada. A menos que o bisturi do cirurgiã o, ou um
milagre, restaure o olho à sua condiçã o normal, este jamais poderá
ver; e a menos que a alma seja restaurada imediatamente mediante
a regeneraçã o, ela jamais compreenderá e aceitará a verdade do
evangelho. Deus, na regeneraçã o, ordena ao pecador que viva; este
fica imediatamente cheio de nova vida espiritual. Lídia, a vendedora
de pú rpura da cidade de Tiatira, atentou bem para as coisas que
Paulo falava, porque antes de tudo o Senhor lhe abrira o coraçã o (At
16.14). Cristo ensinou esta mesma verdade quando, em sua oraçã o
intercessó ria, disse a Deus: “assim como lhe conferiste autoridade
sobre toda a carne, a fim de que ele conceda a vida eterna a todos os
que lhe deste” (Jo 17.2); e, outra vez: “Pois assim como o Pai
ressuscita e vivifica os mortos, assim também o Filho vivifica
aqueles a quem quer” (Jo 5.21).
No pacto feito com Adã o, o destino do homem dependia das suas
pró prias obras. Sabemos quais foram os resultados de tal prova. Se o
homem nã o pô de operar a sua salvaçã o num estado de justiça, que
possibilidade ele tem de alcançar a sua salvaçã o pelas suas pró prias
obras, agora que é um ser apostatado de Deus? Afortunadamente
para nó s, Deus tomou este assunto em suas pró prias mã os. Se Deus
decidisse outra vez dar ao homem o livre-arbítrio pelo qual este
pudesse operar a sua pró pria salvaçã o, nã o estaria Deus
estabelecendo outra vez uma dispensaçã o que já se provou inú til e
que culminou em fracasso? Suponhamos que uma pessoa seja
arrastada por uma enchente muito mais poderosa que ela; seria
razoá vel ou sá bio tirá -la da enchente apenas para que ela recupere
as suas forças para novamente submetê-la a uma segunda prova?
Proceder assim nã o seria uma mera zombaria? No entanto, sabemos
que Deus nã o repete as suas dispensaçõ es, e na segunda vez
utilizará um plano distinto. E se de algum modo em tal plano se
levasse em conta as obras, entã o Deus, e nã o o homem, haveria de
ser o autor destas; a nova dispensaçã o, como a antiga, se ajustará ao
estado em que o homem se encontra.
Sabemos que da vontade do homem nã o procede nem pode
proceder alguma propriedade, seja ele apó stata ou nã o, que o ponha
fora do alcance do controle absoluto de Deus. Saulo foi chamado
quando o seu zelo perseguidor ardia intensamente, e foi
transformado em um santo Paulo. O ladrã o na cruz foi chamado nos
ú ltimos instantes da sua vida terrena. Quando Paulo pregou em
Antioquia, “creram todos os que estavam destinados à vida eterna”
(At 13.48). Certamente, se Deus quisesse salvar todos os homens, ele
teria atraído todos eles à salvaçã o. Mas, por razõ es que só foram
parcialmente reveladas, ele deixa muitos em seu estado de
impenitência. Todavia, através de todas as suas obras, Deus nada faz
que seja inconsistente com a natureza do homem como um ser
racional e responsá vel.
Uma das grandes falhas do arminianismo tem sido em ele deixar de
reconhecer a necessidade da obra sobrenatural do Espírito Santo no
coraçã o. O arminianismo converteu a regeneraçã o numa mudança
mais ou menos gradual, efetuada pela pró pria pessoa, numa mera
mudança de propó sito na mente do pecador, que surge devido à
persuasã o moral e ao poder geral da verdade. Além disso, ele insiste
no “livre-arbítrio” humano, em “o poder de determinaçã o contrá ria”,
etc., e tem ensinado que, em ú ltima aná lise, é o pecador que
determina o seu pró prio destino. Equivale dizer, converteu o
homem num só cio de Cristo na salvaçã o, como se a gló ria da
redençã o se dividisse entre a graça de Cristo e a vontade humana,
repartindo o homem seus despojos com Cristo.
Se, como dizem os arminianos, Deus está tentando energicamente
converter cada ser humano, ele está propiciando a um grande
fracasso à sua obra; já que dentre a populaçã o adulta do mundo, até
o momento, onde se conseguiu salvar apenas um, pode ser que ele
tenha permitido que vinte e cinco caiam no inferno. Essa crença
rende mui pouca gló ria à majestade divina. Com respeito à doutrina
arminiana da graça resistível, Toplady diz que esta “é uma doutrina
que apresenta a pró pria Onipotência como desejando e tentando e
se esforçando inutilmente. De acordo com esta doutrina, Deus, ao
tentar (já que parece nã o passar de uma tentativa) converter os
pecadores, pode ser frustrado, derrotado e impedido por estes; Deus
pode, por assim dizer, sitiar com grande persistência a alma do
pecador, no entanto essa alma pode, desde a cidadela do
inconquistá vel livre-arbítrio, hastear a bandeira de desafio a Deus, e
mediante uma contínua e obstinada resistência, junto a vigorosos
embates do livre-arbítrio, forçar Deus a levantar o cerco. Em outras
palavras, o Espírito Santo, apó s longos anos de deferências e
atençõ es ao livre-arbítrio, finalmente pode, como um general
vencido ou um político derrotado, ser posto em ignominiosa fuga, ou
despedido desdenhosamente, sem atingir o fim para o qual foi
enviado”.
É absurdo supor que o pecador possa derrotar o poder criador do
Deus onipotente. “Todo poder me foi dado no céu e na terra”, disse o
Senhor ressurreto. Estas palavras ensinam, inequivocamente, a
autoridade ilimitada do Senhor. “Há para Deus alguma coisa difícil?”
Ele age no exército do céu e nos habitantes da terra de acordo com a
sua vontade, e nã o há quem detenha a sua mã o e lhe diga: “Que
fazes?”. Diante de passagens como estas, e muitas outras do mesmo
efeito, nã o nos cabe imaginar que Deus esteja se digladiando com as
suas criaturas, persuadindo-as, exortando-as, suplicando-lhes,
porém impossibilitado de alcançar o seu propó sito, em razã o da
obstinada oposiçã o das suas criaturas. Se na realidade o chamado
divino nã o é eficaz , poderíamos imaginar Deus dizendo: “Quero que
todos os homens sejam salvos; mas, em ú ltima aná lise, nã o deve ser
como eu quero, e sim como eles querem”. Nesse caso, o Senhor
ficaria no mesmo dilema de Dario que bondosamente desejava
salvar Daniel, mas nã o podia (Dn 6.14). Nenhum crente,
familiarizado com o que as Escrituras ensinam sobre a soberania de
Deus, crerá que este pode ser derrotado de uma maneira tã o
nefanda pelas suas criaturas. E nã o é possível que uma criatura
tenha o poder de desafiar e restringir os propó sitos do Onipotente
antes que as suas obras sejam recompensadas ou castigadas. Além
disso, se Deus carece de poder diante da majestade despó tica da
vontade humana, seria inú til rogar-lhe que converta alguma pessoa;
em tal caso, o mais razoá vel seria dirigir a nossa petiçã o
diretamente à pessoa cuja conversã o nó s almejamos.
 

4. O efeito produzido na alma


O efeito imediato e importante desta mudança interior e purificante
da nossa natureza é que a pessoa ama a justiça e confia em Cristo
para a salvaçã o. Enquanto o elemento natural da pessoa era o
pecado, agora é a santidade; agora o indivíduo aborrece o pecado e
ama o bem. Esta graça eficaz e irresistível converte a pró pria
vontade e produz no indivíduo, mediante um ato criador, um cará ter
santo. Além disso, remove da pessoa o apetite por coisas
pecaminosas, de modo que ela se abstém de pecar, nã o como o
dispéptico que recusa comer as guloseimas que ansiosamente
apetece, para que ao satisfazer o seu apetite nã o seja castigado com
as dores da enfermidade, mas, ao contrá rio, porque aborrece o
pró prio pecado. Agora ama e aprova e se submete voluntariamente
à santa e plena vontade de Deus, a qual antes aborrecia e resistia. A
obediência se converte nã o só em um bem obrigató rio, mas no bem
preferível.
No entanto, cabe-nos assinalar que, enquanto a pessoa permanecer
neste mundo, ela estará exposta a tentaçõ es, uma vez que achará
nela vestígios da velha natureza. Portanto, à s vezes ela será
enganada e pecará ; mas tais pecados sã o apenas as convulsõ es da
velha natureza que, agonizante, se estremece por já haver recebido
o golpe mortal. Os regenerados também sofrem dor, enfermidade,
desâ nimo e até mesmo a pró pria morte, muito embora continuem
avançando rumo à plena salvaçã o.
Neste ponto, muitas pessoas confundem a regeneraçã o com a
santificaçã o. A regeneraçã o é exclusivamente obra da livre graça de
Deus, mediante a qual se implanta na alma um novo princípio de
vida espiritual. A santificaçã o, por sua vez, é um processo através do
qual os resquícios do pecado na vida do crente sã o gradualmente
erradicados, de modo que, como reza o Catecismo maior de
Westminster , somos capacitados a morrer mais e mais e a viver
piamente. A santificaçã o é uma obra conjunta de Deus e o homem.
Consiste no triunfo gradual da nova natureza implantada na
regeneraçã o sobre o pecado que ainda existe no coraçã o depois de
ser regenerado. Em outras palavras, a santificaçã o completa só se
concretiza depois que a vida for em princípio ganha para Deus. A
justiça perfeita é a meta que temos adiante nesta vida, e todo crente
deve manter um constante progresso rumo a essa meta. A
santificaçã o, nã o obstante, nã o se alcança completamente até a
morte, quando entã o o Espírito Santo purifica a alma de todo
vestígio de pecado, a santifica totalmente e a coloca além de toda
possibilidade de pecar.
Estritamente falando, podemos dizer que a redençã o nã o se
concretiza totalmente até que os salvos tenham recebido os seus
corpos glorificados na ressurreiçã o. Em certo sentido, a redençã o foi
completada quando Cristo morreu no Calvá rio; no entanto, ela só é
aplicada gradualmente pelo Espírito Santo. E como o Espírito Santo
aplica eficazmente aos eleitos os méritos do sacrifício de Cristo, a
salvaçã o destes é infalivelmente segura, e a vontade de Deus, no
tocante à salvaçã o do seu povo, jamais pode ser frustrada nem
anulada pela criatura.
 

5. A suficiência da obra de Cristo — o evangelismo


 
Agora passamos a discutir a suficiência da obra de Cristo na
redençã o. Cremos que, mediante o seu sofrimento e morte vicá ria,
Cristo pagou totalmente a dívida que os eleitos tinham para com a
justiça divina, livrando-os assim das consequências do pecado. Além
disso, cremos que Cristo cumpriu a lei da obediência perfeita e viveu
uma vida livre de pecado, conquistando vicariamente para o seu
povo a recompensa da vida eterna. A sua obra proveu
completamente para o seu resgate do pecado e garantiu a sua
participaçã o nas gló rias celestiais. Estas duas faces da sua obra sã o
com frequência denominadas de sua obediência ativa e sua
obediência passiva. Esta doutrina da suficiência da obra de Cristo é
apresentada na Confissão de Westminster quando reza que, pela sua
obediência perfeita e sacrifício perfeito, Cristo “satisfez plenamente
a justiça do Pai; e conseguiu nã o só a reconciliaçã o, mas também
uma herança eterna no reino dos céus, para todos quantos o Pai lhe
deu”. [88] Se Cristo houvesse pago somente a pena devida ao pecado,
e nã o houvesse conseguido também a recompensa da vida eterna,
entã o os escolhidos teriam permanecido naquilo que poderíamos
chamar o ponto zero; isto é, no mesmo estado em que se encontrava
Adã o antes da queda, quando tinha a responsabilidade de obter a
vida eterna pela sua pró pria iniciativa e poder. À afirmaçã o de Paulo
de que Cristo é tudo em todos no que diz respeito à salvaçã o (Cl
3.11), acrescentamos que o homem nada é no que tange a esta obra,
e nele nada há merecedor da salvaçã o.
Aqui, porém, nada melhor podemos fazer senã o citar as palavras do
Dr. Warfield em especial referência a 1 Timó teo 1.15: “Jesus fez tudo
o que está incluso na grande palavra ‘salvar’. Ele nã o veio induzir-
nos a nos salvar a nó s mesmos, ou a ajudar a salvar a nó s mesmos,
ou a capacitar-nos a salvar a nó s mesmos. Ele veio salvar-nos . Foi
por isso que ele foi chamado de Jesus, porque salvaria o seu povo
dos seus pecados… Nada que somos e nada que possamos fazer
entra na mínima medida como base da nossa aceitaçã o por Deus.
Jesus fez tudo! E, ao fazer tudo, ele veio a ser, no mais pleno e mais
amplo e mais profundo sentido, a palavra que significa Salvador.
Para este fim, ele veio ao mundo para salvar pecadores; e nada
menos que a real e completa salvaçã o de pecadores satisfará o relato
de sua obra dada de seus pró prios lá bios e repetida pelos seus
apó stolos. Aliá s, é neste grande fato que aí jaz toda a essência do
evangelho. Pois jamais nos esqueçamos de que o evangelho nã o se
constitui de bons conselhos , e sim de boas obras ; nã o se compõ e de
uma série de especificaçõ es a indicar-nos o que devemos fazer para
ganhar a salvaçã o, mas que nos proclama o que Cristo já fez para
salvar-nos. O que nos é anunciado é a salvaçã o, uma salvaçã o
completa; e o peso de sua mensagem é justamente as palavras do
nosso texto de que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar
pecadores”. [89]
Duvidar que alguém, por quem Cristo morreu, será salvo, ou duvidar
que a justiça eventualmente vencerá , equivale duvidar da suficiência
de Jesus Cristo na obra que ele empreendeu em nosso favor. Na cruz,
Cristo declarou que ele consumava a obra da redençã o que o Pai lhe
dera para fazer. No entanto, no dizer de Toplady, “a pessoa que crê
que tem o poder de aceitar ou rejeitar segundo lhe apraz deve dizer
‘Nã o, tu nã o consumaste a obra de redençã o que o Pai te deu para
fazer; apenas fizeste parte dela, e eu, pessoalmente, devo adicionar-
lhe algo, ou a tua obra de nada servirá ’”.
Somente as posiçõ es que atribuem a Deus todo o poder na salvaçã o
de pecadores sã o consistentemente evangélicas, já que as palavras
evangélico ou evangélica significam que Deus é o ú nico que salva.
Caso se acrescentem fé e obediência, que dependam da decisã o
independente do homem, já nã o temos uma posiçã o evangélica.
Assumir uma posiçã o evangélica com uma expiaçã o universal
conduz necessariamente a uma salvaçã o universal; portanto, para o
arminianismo, pela sua insistência em que Cristo morreu por todos
os homens e que o Espírito se empenha por aplicar esta redençã o a
todos os homens, ainda que somente alguns sejam salvos, nã o pode
ser considerado evangélico.
Podemos ilustrar este princípio do evangelicalismo imaginando um
grupo de pessoas afetadas por uma enfermidade mortal. Caso um
médico lhes administre um tratamento médico que lhes garanta
uma cura eficaz, entã o todos os que recebem tal tratamento serã o
curados. Da mesma maneira, se a obra de Cristo é eficaz, e se é
aplicada pelo Espírito Santo a todos os homens, entã o todos serã o
salvos. Portanto, se o arminiano quer considerar-se evangélico, ele
tem que ser universalista. Somente o calvinismo, ao sustentar uma
posiçã o evangélica com uma expiaçã o limitada, e o qual afirma que a
obra de Cristo logrou o que havia proposto, é consistente com os
fatos das Escrituras e da experiência.
 

6. O conceito arminiano da graça universal


O matiz universalista é sempre proeminente no sistema arminiano.
Temos um claro exemplo desta asseveraçã o nas seguintes palavras
do Professor Henry C. Sheldon, que por vá rios anos esteve
relacionado com a Universidade de Boston. Ele afirma que “o nosso
ponto de vista é em favor da universalidade da oportunidade de
salvaçã o em contraposiçã o a uma eleiçã o exclusiva e incondicional
de indivíduos para a vida eterna”. [90]
Podemos notar nesta
afirmaçã o nã o só (1) a ênfase universalista característica do
arminianismo; mas também (2) a admissã o de que tudo o que Deus
fez para a salvaçã o dos homens na verdade não salva ninguém ,
senã o que apenas abre um caminho de salvação que permite aos
homens salvar-se a si mesmos — o que nos volve praticamente a uma
posiçã o puramente naturalista!
Talvez a declaraçã o mais enfá tica da posiçã o arminiana sobre este
aspecto se encontre no credo da Uniã o Evangélica, ou os chamados
morissonianos, cujo propó sito era protestar contra a eleiçã o
incondicional. Um resumo das suas “Três Universalidades” aparece
no credo nos seguintes termos: “O amor de Deus, o Pai, no dom e
sacrifício de Jesus para todos os homens em todas as partes, sem
distinçã o, exceçã o ou acepçã o de pessoas; o amor de Deus, o Filho,
no dom e sacrifício de si mesmo como a verdadeira propiciaçã o
pelos pecados do mundo inteiro; o amor de Deus, o Espírito Santo,
em sua obra pessoal e contínua de aplicar à s almas de todos os
homens as provisõ es da graça divina”. [91]
Certamente, se Deus ama a todos os homens por igual; e se Cristo
morreu por todos os homens por igual; e se o Espírito Santo aplica
os benefícios da redençã o a todos os homens por igual; entã o, de
duas coisas, uma se deduz da outra: ou que (1) todos os homens sã o
salvos por igual (o que é refutado pelas Escrituras), ou (2) tudo o
que Deus faz em favor do homem nã o o salva, mas o deixa salvar a si
pró prio. E se é assim, entã o perguntamos: o que dizer da nossa
posiçã o evangélica? Significa simplesmente que Deus salva os
pecadores? Se afirmarmos que, depois de Deus realizar toda a sua
obra, ainda dependa da decisã o do homem de “aceitá -la” ou de
“resisti-la”, estaríamos atribuindo ao homem o poder de veto sobre
a obra do Deus onipotente; e a salvaçã o, em ú ltima aná lise,
dependeria do pró prio homem. Neste sistema, nã o importa quã o
grande seja a parte que Deus tenha na obra salvaçã o, o homem é, em
ú ltima aná lise, o fator decisivo. O homem que decide aceitar a
salvaçã o tem algum mérito peculiar; tem por que jactar-se diante
daqueles que se perdem. Ele pode desdenhosamente dizer aos que
perecem: “Vocês tiveram a mesma oportunidade que eu; eu aceitei e
vocês rejeitaram a oferta. Portanto, vocês merecem o castigo”. Quã o
distintas sã o as palavras de Paulo ao dizer: “nã o por obras, para que
ninguém se glorie”; e “aquele que se gloria, glorie-se no Senhor” (Ef
2.9; 1Co 1.31).
A tendência em todos esses sistemas universalistas, nos quais o
homem presunçosamente toma o timã o e se proclama o dono do seu
destino é a de reduzir o cristianismo a uma religiã o de obras. Lutero,
tendo este ponto em mente quando, em alusã o aos moralistas de
seus dias, disse cinicamente: “Sempre queremos inverter as
posiçõ es e fazer o bem, de nossa pró pria iniciativa, à quele pobre
homem, nosso Senhor Deus, de quem, ao contrá rio, deveríamos
receber o bem”.
Zanchi diz que o arminianismo sussurra suavemente ao ouvido do
homem caído que é prerrogativa deste “tanto o querer como o fazer
aquilo que é bom e aceitá vel a Deus: que a morte de Cristo é aceita
por Deus como uma expiaçã o universal, por todos os homens, a fim
de que cada um possa , se quiser , salvar a si pró prio, por sua pró pria
vontade e por suas boas obras; que mediante o exercício de nossos
poderes naturais podemos alcançar a perfeiçã o na vida atual”. E o
Dr. Warfield afirma: “O problema é indubitavelmente fundamental e
está bem delineado. É Deus, o Senhor, que meramente abre ou nã o o
caminho da salvaçã o, e nos deixa, de acordo com a nossa escolha,
caminhar nele? A bifurcaçã o dos caminhos é a velha bifurcaçã o
entre o cristianismo e o auto-soterismo [aquele que salva a si
pró prio]. Certamente, só pode afirmar ser evangélico aquele em
plena consciência descansa inteira e diretamente em Deus, e tã o
somente em Deus, para sua salvaçã o”. [92]
Nenhuma obra das minhas mã os
Pode cumprir os mandamentos da tua lei;
Meu zelo de modo algum pode saber,
Minhas lá grimas para sempre fluir,
Todo o meu pecado nã o poderia expiar
Só tu me salvas, tã o somente tu.
“Nada em minhas mã os trago,
Somente à tua cruz me apego;
Nu vou a ti em busca de roupa,
Desamparado contemplo a tua graça;
Imundo, voou para a tua fonte:
Lava-me, ó Salvador, ou eu morro!”.
 
7. A livre agência do homem não é violada
 
Os opositores desta doutrina comumente a apresentam como uma
doutrina na qual os homens sã o forçados a crer e a ir a Deus contra a
sua vontade; como uma doutrina que reduz os homens ao nível das
má quinas no que diz respeito à salvaçã o. Certamente esta é uma
mera tergiversaçã o da doutrina. Na verdade, nã o é isto o que o
calvinista sustenta; e uma exposiçã o completa da doutrina contradiz
tal tergiversaçã o. A Confissão de Westminster declara que a graça
eficaz que resulta na conversã o é uma obra onipotente, e que nã o
pode ser frustrada, e acrescenta: “Todos aqueles a quem Deus
predestinou para a vida, e somente esses, é ele servido chamar
eficazmente pela sua Palavra e pelo seu Espírito, no tempo por ele
determinado e aceito, tirando-os daquele estado de pecado e morte
em que estã o por natureza para a graça e salvaçã o, em Jesus Cristo.
Isto ele faz iluminando os seus entendimentos, espiritual e
salvificamente, a fim de compreenderem as coisas de Deus, tirando-
lhes os seus coraçõ es de pedra e dando-lhes coraçõ es de carne,
renovando as suas vontades e determinando-as, pela sua
onipotência, para aquilo que é bom, e atraindo-os eficazmente a
Jesus Cristo, mas de maneira que eles vêm mui livremente, sendo
para isso dispostos pela sua graça”. [93]
O poder mediante o qual a obra de regeneraçã o é levada a bom
termo nã o é de uma natureza externa e compulsiva. A regeneraçã o
nã o viola a liberdade do indivíduo, justamente como nã o viola o seu
intelecto, ou a persuasã o do coraçã o. Deus nã o trata o homem como
se fosse uma pedra ou um pedaço de madeira. Tampouco o trata
como um escravo, forçando-o a buscar a salvaçã o contra a sua
pró pria vontade. Deus ilumina a mente e muda todos os conceitos
errô neos que o pecador abriga em seu íntimo sobre Deus, sobre si
mesmo e sobre o pecado. Deus envia o seu Espírito e, de uma
maneira que redunda eternamente para o ensino da sua
misericó rdia e graça, constrange suavemente o pecador a render-se
a ele. A pessoa regenerada começa a ser guiada por novos motivos e
desejos, e as coisas que antes odiava, agora ele ama e deseja. Esta
mudança nã o ocorre em razã o de alguma compulsã o externa, mas
em razã o de um novo princípio de vida gerado na alma e que agora
busca o alimento que só pode satisfazê-la.
A lei espiritual, como a civil, nã o infunde “medo ao que faz o bem,
mas ao que faz o mal”; sem dú vida, temos nas atividades humanas
uma excelente analogia desta verdade. Comparemos o cidadã o que
obedece à s leis com o criminoso. O cidadã o que obedece à s leis
atende aos seus assuntos diá rios sem ter consciência da maioria das
leis da naçã o em que vive. Considera como amigos os oficiais do
governo e a polícia. Esses oficiais representam a autoridade
constituída à qual respeita e na qual se alegra. Esse cidadã o é uma
pessoa livre. Para ela, a lei é a protetora da sua vida, dos seus entes
queridos e da sua propriedade. No caso do criminoso, o quadro se
inverte. Pode ser que ele conheça melhor as leis do que as conhece o
cidadã o que lhas obedece. Pode ser até mesmo que as estude, porém
faz isso simplesmente com o propó sito de evadir-se e frustrar os
propó sitos delas. Tal cidadã o vive do medo. Fortifica a sua casa com
portas à prova de balas e porta uma arma por medo de que a polícia
e outras pessoas lhe façam mal. A sua vida é uma contínua
escravidã o. A sua ideia de liberdade consiste em eliminar a polícia,
corromper os tribunais e desprestigiar as leis e costumes da
sociedade que busca continuamente despojar.
Todos nó s, em nossas experiências cotidianas, temos recusado a
prá tica de certas coisas; mas, ao surgir novos fatores, decidimos
fazer livre e prazerosamente o que antes recusamos fazer.
Certamente, em nossa doutrina nada existe que justifique a
afirmaçã o de que, com base em princípios calvinistas, os homens sã o
forçados a arrepender-se e a crer, querendo-o ou nã o.
Mas, pode ser que surja a pergunta: Certas frases na Bíblia nã o
parecem subentender o contrá rio, tais como: “Se obedecerdes”, “Se
volverdes para o Senhor”, “Se fizerdes o mal”, etc., que o homem
possui livre-arbítrio e capacidade? Cremos ser uma deduçã o
equivocada pensar que, só porque Deus ordene que se faça algo, isso
signifique que o homem seja capaz de obedecer-lhe. Com frequência
os pais provam a obediência dos seus filhos, dizendo-lhes que façam
isto ou aquilo, quando seu verdadeiro propó sito é demonstrar-lhes
que eles nã o possuem capacidade, e com isso movê-los a pedir-lhes
auxílio. Muitas pessoas, ao lerem ou ouvirem frases como as acima,
pensam imediatamente que possuem em si poder suficiente, como o
presunçoso intérprete da lei a quem Jesus disse, “Faze isto, e
viverá s”, seguem em frente crendo que podem alcançar a salvaçã o
mediante as suas boas obras. Mas, quando o homem
verdadeiramente espiritual ouve e lê frases como as acima, dá -se
conta de que nã o tem capacidade de cumprir o mandamento, e
clama ao Pai que lhe dê capacidade para fazê-lo. Passagens nas quais
aparecem frases como as que mencionamos supra simplesmente
ensinam ao homem, nã o que este possa fazê-lo, e sim que deve fazê-
lo. Pobre daquele que se acha em tal cegueira que nã o consegue ver
esta verdade; porquanto, até que ele veja, jamais poderá apreciar
adequadamente a obra de Cristo. Em resposta ao desesperador
clamor do pecador, as Escrituras desvendam uma salvaçã o
absolutamente proveniente da graça, o dom gratuito do amor e a
misericó rdia de Deus em Cristo. E aquele que percebe que assim foi
salvo pela graça, instintivamente clama com Davi: “Senhor, quem
sou eu e quem é a minha casa para que tu me hajas conduzido até
aqui?”.
A graça especial que denominamos de eficaz é com frequência
chamada graça irresistível . Este ú ltimo termo é um tanto impreciso,
já que dá a impressã o que um poder irresistível é exercido por uma
pessoa; e que, em consequência, tal pessoa é compelida a agir contra
os seus desejos. O significado genuíno é, como dissemos
previamente, que a graça eficaz opera nos eleitos de maneira tal que
estes lhe respondem com um ato de decisã o voluntá ria.
 

8. A graça comum
Além da graça especial que redunda na salvaçã o dos escolhidos, há
também o que poderíamos chamar de “graça comum”, ou as
influências gerais do Espírito Santo, nas quais participam, em maior
ou menor grau, todos os homens. Deus faz nascer seu sol sobre bons
e maus, e envia a chuva sobre justos e injustos. Também envia
tempos frutíferos e outorga muitas outras coisas que redundam na
felicidade geral da humanidade. Entre as bênçã os mais comuns que
procedem desta fonte poderíamos mencionar a saú de, a
prosperidade material, a inteligência, os talentos para a arte, a
mú sica, a orató ria, a literatura, a arquitetura, o comércio, as
invençõ es, etc. Muitas vezes os nã o eleitos recebem essas bênçã os
em maior abundâ ncia do que os eleitos; já que, com frequência,
vemos que os filhos deste século, para a sua pró pria geraçã o, sã o
mais sá bios do que os filhos da luz. A graça comum é a fonte de toda
ordem, refinamento, cultura, virtude comum, etc. que vemos no
mundo e através dela se intensifica o poder moral da verdade no
coraçã o e na consciência dos homens e as paixõ es vis sã o refreadas.
A graça comum nã o redunda na salvaçã o, mas impede que este
mundo seja um inferno. Impede a efetuaçã o completa do pecado
assim como a intuiçã o humana impede a fú ria dos animais
selvagens. Impede a manifestaçã o do pecado em toda a sua vileza, e
assim impede que as chamas vivas brotem do fogo fumegante. A
graça comum, assim como a pressã o atmosférica, é universal e
poderosa, mesmo quando nã o é sentida.
Todavia, a graça comum nã o extirpa a raiz do pecado no indivíduo, e
por isso nã o pode produzir uma conversã o genuína. Através da luz
da natureza, as operaçõ es da consciência e, especialmente, através
da apresentaçã o externa do evangelho se faz conhecido ao homem o
que ele deve fazer. Além disso, tais influências gerais do Espírito
Santo podem ser resistidas. As Escrituras ensinam que o evangelho
só é eficaz quando acompanhado pelo poder iluminador e especial
do Espírito, e à parte desse poder ele é pedra de tropeço para os
judeus e loucura para os gentios. Equivale dizer, o homem nã o
regenerado jamais poderá conhecer a Deus além de uma forma
externa; por essa razã o, as Escrituras rezam que a justiça externa
dos escribas e fariseus nã o é justiça alguma. Jesus disse aos seus
discípulos que o mundo nã o pode receber o Espírito da verdade,
“porque nã o o vê nem o conhece”; porém, acrescenta
imediatamente: “Vó s o conheceis, porque ele habita convosco e
estará em vó s” (Jo 14.17). A doutrina arminiana destró i a distinçã o
entre a graça eficaz e a graça comum; e quando muito faz da graça
eficaz uma corroboraçã o sem a qual a salvaçã o é impossível;
enquanto a doutrina calvinista considera a graça eficaz por cuja
assistência a salvaçã o é assegurada.
Com respeito à s reformas produzidas pela graça comum, diz o Dr.
Charles Hodge: “Com frequência ocorre que os homens que foram
imorais mudam toda a sua maneira de viver. Assumem uma conduta
externamente correta, e agem com moderaçã o, pureza, honestidade
e benevolência. Tal mudança é excelente, louvá vel e em grande
medida benéfica à pró pria pessoa e aos que a cercam. Algumas das
causas que produzem tal mudança sã o: o poder da consciência, uma
consideraçã o para com a autoridade de Deus e um temor pela sua
reprovaçã o; uma consideraçã o para com a boa opiniã o dos homens,
ou uma consideraçã o pelos seus interesses pessoais. Mas, seja qual
for a causa imediata de tais reformas, elas estã o muito longe da
santificaçã o. As duas coisas diferem em sua natureza, tanto quanto
um coraçã o limpo difere de roupas limpas. Tais reformas externas
nã o mudam o cará ter interno do homem aos olhos de Deus. Tal
pessoa segue nã o amando a Deus nem nutrindo fé em Cristo, e
carece de toda boa obra e de afetos santos”. [94] E o Dr. Hewlitt
afirma: “Acaso um cadá ver poderá despertar-se no tú mulo ao mais
suave som musical ou mesmo aos ruídos mais estrepitosos?
Evidentemente, nã o. E tampouco o pecador pode despertar-se,
estando o mesmo morto em delitos e pecados, nem pelo troar da lei
nem pela doce melodia do evangelho. ‘Pode, acaso, o etíope mudar a
sua pele ou o leopardo as suas manchas? Entã o, poderíeis fazer o
bem, estando acostumados a fazer o mal’ (Jr 13.23)”. [95]
O seguinte pará grafo do Dr. S. G. Craig expõ e de maneira clara as
limitaçõ es da graça comum: “O cristianismo sustenta que toda a
educaçã o e cultura que deixa Jesus Cristo fora de consideraçã o,
ainda que torne os homens astutos, cultos e brilhantes, carece do
poder necessá rio para transformar o seu cará ter. O má ximo que tais
influências conseguem é limpar a parte externa dos vasos; mas nã o
afetarã o a natureza do seu conteú do. Aqueles que confiam
unicamente na educaçã o, na cultura e em coisas afins, creem que
tudo o que é necessá rio para mudar a oliveira silvestre em boa é
podá -la, regá -la, cultivá -la, ou coisas afins, quando, na realidade, o
que se precisa fazer é enxertá -la num talo de oliveira boa. E até que
isso seja feito, tudo mais será vã o. Com isso, nã o desestimulamos o
valor da educaçã o e da cultura, mas é como se alguém presumisse
que pode purificar as á guas de um rio para melhorar a paisagem
ribeirinha; porém nã o se pode presumir que a educaçã o e a cultura
possam, por si só s, transformar o coraçã o dos filhos dos homens. Um
antigo provérbio reza assim: ‘Tome-se uma á rvore amarga e plante-
a no jardim do É den e regue-a com as á guas do jardim; e que o anjo
Gabriel seja o jardineiro; e mesmo assim a á rvore continuará
produzindo fruto amargo’”. [96]

CAPÍTULO XIV. A PERSEVERANÇA DOS SALVOS


 
1. Exposiçã o da doutrina. 2. A perseverança nã o depende de nossas boas
obras, e sim da graça de Deus. 3. Ainda que seja verdadeiramente salvo, o
crente pode cair temporariamente e pecar. 4. Uma profissã o de fé externa nem
sempre é prova de que a pessoa seja realmente crente. 5. O senso da
insegurança dos arminianos. 6. O propó sito das advertências contra a
apostasia nas Escrituras. 7. Comprovaçõ es bíblicas.
 

1. Exposição da doutrina
A doutrina da perseverança dos salvos aparece na Confissão de
Westminster nos seguintes termos: “Os que Deus aceitou em seu
Bem-amado [Filho], eficazmente chamados e santificados pelo seu
Espírito, nã o podem cair do estado de graça, nem total nem
finalmente; mas com toda a certeza hã o de perseverar nesse estado
até o fim, e estarã o eternamente salvos”. [97]  
Esta nã o é uma doutrina isolada, e sim parte necessá ria do sistema
de teologia calvinista. As doutrinas da eleiçã o e da graça eficaz
implicam logicamente na salvaçã o segura daqueles que recebem
estas bênçã os. Se Deus escolheu absoluta e incondicionalmente
determinadas pessoas para a vida eterna, e se o Espírito aplica
eficazmente a essas pessoas os benefícios da redençã o, entã o a
conclusã o iniludível é que tais pessoas serã o eternamente salvas.
Historicamente, esta doutrina tem sido sustentada por todos os
calvinistas e praticamente negada por todos os arminianos.
Os que buscam refú gio em Jesus têm um só lido fundamento sobre o
qual edificar. Ainda que torrentes de erros inundem a terra e
Sataná s levante contra eles todos os poderes do mundo e toda a
iniquidade do coraçã o, ainda assim jamais fracassarã o; senã o que,
perseverando até o fim, herdarã o as mansõ es preparadas para eles
desde a fundaçã o do mundo. Os santos celestiais sã o mais felizes do
que os crentes na terra, mas sua salvaçã o nã o é mais segura do que a
destes ú ltimos. Uma vez que a fé e o arrependimento sã o dádivas de
Deus, a concessã o dessas dá divas é prova de que o propó sito divino
é salvar aqueles a quem elas sã o conferidas. A concessã o dessas
dá divas evidencia que Deus predestinou os que recebem tais
dá divas para que sejam feitos conformes a imagem do seu Filho; isto
é, sejam como Cristo no cará ter, destino e gló ria; e que Deus
concretizará o seu propó sito infalivelmente. Ninguém pode
arrebatá -los das suas mã os. Os crentes genuínos conservam em seu
interior o princípio de vida eterna, isto é, o Espírito Santo; e uma vez
que o Espírito Santo vive em seu interior, potencialmente eles sã o
santos. E ainda que seja indubitá vel que sã o submetidos a diversas
provas, e inclusive nã o vejam o que haverã o de ser, eles devem
saber que o que foi começado neles atingirá a plena perfeiçã o até o
fim; e a mesma luta que há neles é um sinal de vida e promessa de
vitó ria.
Além do mais, que os nossos oponentes nos digam com respeito aos
que sã o crentes genuínos, mas que, segundo os arminianos, caem da
graça, por que é que Deus nã o os tira do mundo enquanto ainda
estã o em um estado de graça salvadora? Certamente ninguém
ousará dizer que é porque Deus nã o pode, ou porque ele nã o prevê a
sua apostasia futura. Entã o, por que ele permite que esses objetos
do seu amor voltem ao pecado e pereçam? Se na realidade tal fosse o
caso, entã o o seu dom da vida que continua em tais pessoas outra
coisa nã o seria senã o uma maldiçã o infinita. Mas, quem creria que o
Pai celestial nã o cuida perfeitamente bem dos seus filhos? Essa
doutrina equivocada dos arminianos ensina que uma pessoa pode
ser filha de Deus hoje e filha do diabo amanhã ; que pode mudar de
um estado a outro com tamanha rapidez como muda sua mente.
Esta estú pida heresia ensina que a pessoa pode ter nascido do
Espírito, ter sido justificada, e mesmo assim ser reprovada e perder-
se eternamente, sendo a sua vontade e conduta o fator
determinante. Certamente, um Deus amoroso e soberano nã o
permitiria que os seus filhos anulem o seu amor e apostatem.
Além disso, perguntamos a nó s mesmos: se Deus sabe que
determinado crente vai rebelar-se e perecer, é possível que ele o
amasse com profundo afeto mesmo antes de sua apostasia? Se
soubéssemos que alguém, que hoje é nosso amigo, amanhã se
converterá em nosso inimigo, e nos trairá , poderíamos recebê-lo
com intimidade e confiança com que naturalmente o recebemos? O
nosso conhecimento dos seus atos futuros destruiria, em grande
medida, o nosso amor para com tal pessoa.
Ninguém negará que os redimidos no céu serã o preservados em
santidade. Mas, se Deus preserva os santos no céu sem violar a sua
liberdade, nã o poderia ele de igual modo preservar em santidade os
crentes na terra sem violar a liberdade deles?
A natureza da mudança efetuada na regeneraçã o é suficiente
garantia de que a vida comunicada haverá de ser permanente. A
regeneraçã o é uma mudança radical e sobrenatural da natureza
interior, mediante a qual a alma é vivificada espiritualmente, e a
nova vida implantada é imortal. Uma vez que tal mudança ocorre na
natureza interior, isso ocorre numa esfera sobre a qual o homem
nã o tem controle. Nenhuma criatura tem a liberdade de mudar os
princípios fundamentais da sua natureza, já que isso é prerrogativa
de Deus como Criador. Daí, nada que nã o fosse outra obra
sobrenatural de Deus poderia revogar tal mudança e fazer com que
a nova vida desaparecesse. O crente nascido de novo nã o pode
deixar de ser filho do seu Pai celestial, como tampouco um filho aqui
na terra pode deixar de ser filho do seu pai natural. A crença
arminiana de que um crente pode apostatar e perecer surge de um
conceito errô neo do que é em si o princípio da vida espiritual
comunicada à alma na regeneraçã o.
 
2. A perseverança não depende das nossas boas obras, e sim da
graça de Deus
Paulo ensina que os crentes nã o estã o subordinados à lei , e sim à
graça ; e que, uma vez que nã o estã o subordinados à lei, entã o nã o
podem ser condenados por haverem violado a lei. “Porque o pecado
nã o terá domínio sobre vó s; pois nã o estais debaixo da lei, e sim da
graça” (Rm 6.14). O pecado já nã o pode ser a causa da perdiçã o dos
crentes, uma vez que estes estã o sujeitos à graça e já nã o sã o
tratados conforme as suas obras. “E, se é pela graça, já nã o é pelas
obras; do contrá rio, a graça já nã o é graça” (Rm 11.6). “... porque a
lei suscita a ira; mas onde nã o há lei, também nã o há transgressã o”
(Rm 4.15). “... porque, sem lei, está morto o pecado” (Rm 7.8). Isto é,
onde a lei foi abolida, a pessoa nã o pode ser submetida ao castigo
em decorrência do pecado. “Assim, meus irmã os, também vó s
morrestes relativamente à lei, por meio do corpo de Cristo” (Rm
7.4). O que tenta ganhar, pelos seus pró prios esforços, mesmo que
seja a mínima parte da salvaçã o, “está obrigado a guardar toda a lei”
(Gl 5.3). Equivale dizer, render perfeita obediência à lei pelas suas
pró prias forças. Como se pode ver, trata-se de dois sistemas de
salvaçã o radicalmente distintos, diametralmente opostos um ao
outro.
O amor infinito, misterioso e eterno de Deus para com os crentes é
uma garantia de que jamais se perderã o. Este amor divino nã o está
sujeito a flutuaçõ es, mas é tã o imutá vel como o pró prio Ser de Deus.
Além disso, ele é gratuito, e tem-se apoderado de nó s mais
fortemente do que nó s a ele. Ele nã o tem por base o atrativo dos
seus objetos. “Nisto consiste o amor: nã o em que nó s tenhamos
amado a Deus, mas em que ele nos amou e enviou seu Filho como
propiciaçã o pelos nossos pecados” (1Jo 4.10). “Mas Deus prova o seu
pró prio amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nó s,
sendo nó s ainda pecadores. Logo, muito mais agora, sendo
justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira. Porque,
se nó s, quando inimigos, fomos reconciliados com Deus mediante a
morte do seu Filho, muito mais, estando já reconciliados, seremos
salvos pela sua vida” (Rm 5.8-10). Estes versículos enfatizam o fato
de que a nossa posiçã o para com Deus não se baseia em nossos
méritos pessoais . “Sendo inimigos”, Deus nos deu vida espiritual pela
sua graça soberana; portanto, se por nó s ele fez o má ximo, nã o fará
também o mínimo? O escritor da carta aos Hebreus, ao dizer que
Cristo é o “Autor e Consumador da nossa fé”, nos ensina ser
impossível que um dos escolhidos de Deus se perca. Esta passagem
nos ensina que todo o curso da nossa salvaçã o foi planejado e é
dirigido por Deus mesmo. Nem a graça de Deus, nem a contínua
operaçã o dessa graça no crente devem provir de méritos pessoais.
Portanto, se algum crente pudesse cair da graça, seria porque Deus
retirou dele essa graça, o que significaria que Deus mudou o seu
método de proceder, isto é, que ele colocou novamente a pessoa
debaixo do sistema da lei.
Robert L. Dabney expressou esta verdade com muita habilidade no
seguinte pará grafo: “O amor soberano e imerecido é a causa da
vocaçã o eficaz do crente (Jr 31.3; Rm 8.30). E, como a graça é
imutá vel, o efeito também o é. O efeito é a contínua comunicaçã o da
graça ao crente em quem Deus começou uma boa obra. Deus nã o foi
induzido a dar a sua graça ao pecador, em primeira instâ ncia, por ter
visto algo meritó rio ou atrativo no pecador que se arrepende;
portanto, a subsequente ausência de todo bem no pecador nã o pode
ser um motivo novo para que Deus retire dele a sua graça. Quando
Deus conferiu a sua graça ao pecador, ele sabia perfeitamente bem
que este era totalmente depravado e aversivo; portanto, nem a
ingratidã o, nem a infidelidade, por parte do pecador convertido,
podem ser motivos que induzam Deus a mudar o seu parecer ou
retirar dele a sua graça. Deus tinha ciência de toda essa ingratidã o
antes mesmo de conferir-lhe a sua graça. Deus castigará essa
ingratidã o e infidelidade retirando temporariamente o seu Espírito
Santo ou as suas mercês providenciais; mas se o seu propó sito desde
o princípio nã o fosse suportar ditos pecados, perdoando-os em
Cristo, ele nã o teria chamado o pecador, pela sua graça, em primeira
instâ ncia. Em outras palavras, as causas pelas quais Deus
determinou conferir o seu amor eletivo ao pecador se encontram
totalmente em Deus, e nã o no crente; portanto, nada no coraçã o ou
na conduta do crente pode finalmente alterar esse propó sito do
amor divino (Is 54.10; Rm 11.29; cf. Rm 5.8-10; 8.32 com toda a
passagem de Rm 28-39). Esta gloriosa passagem equivale a um
argumento que corrobora a nossa asseveraçã o: ‘Quem nos separará
do amor de Cristo?’”. [98]
O Dr. Charles Hodge escreveu: “Podemos comparar o amor de Deus,
neste aspecto, com o amor materno. Uma mã e nã o ama seu filho por
ser belo. Ao contrá rio, seu amor a conduz a fazer tudo o que é
possível para que o seu filho [ou filha] seja atraente e se mantenha
atraente. Assim também o amor de Deus, igualmente misterioso e
inexplicá vel em sua natureza, embeleza os seus filhos com as
virtudes do seu Espírito e os atavia com as belas vestes da santidade.
Somente a ideia equivocada de que Deus nos ama em razã o da nossa
pró pria bondade é que pode conduzir alguns a imaginar que o amor
divino depende de algum atrativo pessoal inerente a nó s mesmos”.
[99]

Com respeito à salvaçã o dos eleitos, Lutero diz que “o decreto divino
da predestinaçã o é imutá vel e seguro; e a sua execuçã o é igualmente
inalterá vel, e há de ser levado a bom termo com absoluta certeza. Se
ele dependesse de nó s mesmos, que somos tã o débeis, bem poucos,
ou, melhor, ninguém seria salvo; Sataná s venceria a todos nó s”.
Quanto mais meditamos sobre essas verdades, mais agradecidos
deveríamos sentir-nos ante o fato de que a nossa perseverança em
santidade, e a nossa segurança na salvaçã o, nã o dependem de nossa
débil natureza, e sim do contínuo poder sustentador de Deus. Com
Isaías podemos dizer: “Se o Senhor dos Exércitos nã o nos tivesse
deixado um remanescente, seríamos como Sodoma e semelhantes a
Gomorra”. O arminianismo nega a doutrina da perseverança em
razã o de ser um sistema nã o proveniente da pura graça, mas da
graça e das obras; e num sistema tal a pessoa tem de provar que é ao
menos parcialmente merecedora da graça.
 

3. Ainda que verdadeiramente salvo, o crente pode apostatar


temporariamente e pecar
Esta doutrina da perseverança nã o significa que os cristã os nã o
possam, temporariamente, cair vítima do pecado, já que isso é uma
ocorrência muitíssimo comum. Até mesmo os melhores dentre os
homens caem, muito embora jamais sejam completamente
derrotados pelo pecado, porque Deus, mediante a operaçã o da graça
em seus coraçõ es, impede infalivelmente que até mesmo o mais
débil deles finalmente apostate. Ainda temos “este tesouro em vasos
de barro, para que a excelência do poder [ou da gló ria] seja de Deus,
e nã o de nó s” (2Co 4.7).
Com respeito à sua pró pria experiência pessoal, o grande apó stolo
Paulo pô de escrever:
Porque nã o faço o bem que prefiro, mas o mal que nã o
quero, esse faço. Mas, se eu faço o que nã o quero, já nã o
sou eu quem o faz, e sim o pecado que habita em mim.
Entã o, ao querer o bem, encontro a lei de que o mal
reside em mim. Porque, no tocante ao homem interior,
tenho prazer na lei de Deus; mas vejo, em meus
membros, outra lei que, guerreando contra a lei da
minha mente, me faz prisioneiro da lei do pecado que
está em meus membros. Desventurado homem que sou!
Quem me livrará do corpo desta morte? Graças a Deus
por Jesus Cristo, nosso Senhor. De maneira que eu, de
mim mesmo, com a mente, sou escravo da lei de Deus,
mas, segundo a carne, da lei do pecado. (Rm 7.19-25)
Nestes versículos, todo crente genuíno pode ver refletida a sua
pró pria experiência.
Sem dú vida é inconsistente que um cristã o peque; e o escritor da
carta aos Hebreus afirma que os que pecam, “estã o crucificando
para si mesmos o Filho de Deus e expondo-o à ignomínia” (Hb 6.6).
Depois que Davi pecou e se arrependeu, o profeta Natã lhe disse que
o seu pecado fora perdoado, mas que, nã o obstante, “com isto deste
motivo a que blasfemassem os inimigos do SENHOR ” (2Sm 12.14).
Davi e Pedro caíram em pecado temporariamente, mas foram
chamados de volta pelos princípios bá sicos da sua natureza. Judas
apostatou permanentemente, porque era destituído desses
princípios bá sicos.
Enquanto o crente permanecer neste mundo, seu estado é o de luta
contínua. Ele sofre derrotas temporais e ocasionalmente pode até
mesmo parecer que perdeu toda a fé; todavia, se foi genuinamente
salvo, ele nã o pode cair completamente da graça. Se uma vez
experimentou a mudança interior mediante a regeneraçã o, cedo ou
tarde voltará ao redil e será restaurado; ao cair em si, confessará os
seus pecados e implorará o perdã o sem pô r em dú vida a sua
salvaçã o. Pode ser que a sua queda em pecado chegue a prejudicar
seriamente e atrair destruiçã o a outros; mas, no que diz respeito a si
pró prio, a sua queda foi simplesmente temporá ria. Paulo afirmou
que a obra de muitos haveria de queimar-se por estar construída
com materiais inapropriados, mas que eles mesmos seriam salvos
“como que pelo fogo” (1Co 3.12-15). Jesus ensinou isto mesmo na
pará bola da ovelha perdida, a qual o pastor buscou e trouxe
novamente ao redil.
Se realmente os verdadeiros crentes pudessem cair da graça, entã o
os seus corpos, que sã o “templos do Espírito Santo”, se converteriam
em morada do diabo; o que, certamente, faria o diabo mui feliz e lhe
daria oportunidade de blasfemar contra Deus (1Co 6.19). “O crente é
como um homem que vai subindo uma encosta, e ocasionalmente
resvala e cai; porém, nã o obstante isso, ele mantém o seu rosto
voltado resolutamente para o alto. O nã o regenerado, por sua vez,
segue com o seu rosto inclinado para baixo, e segue resvalando
encosta abaixo o tempo todo” (A. H. Strong). “O crente, como um
homem sobre a cobertura de um barco, pode cair uma e outra vez,
porém jamais despencará pela borda” (C. H. Spurgeon).
Neste aspecto, cada um dos eleitos é como o filho pró digo que, por
algum tempo, é enganado pelo mundo e extraviado pelo seu pró prio
apetite carnal. Estando nesta condiçã o, ele busca alimentar-se da
comida de porcos, mas esta nã o lhe satisfaz, e cedo ou tarde, como o
pró digo, se vê premido a dizer: “Levantar-me-ei e irei ter com o meu
pai, e lhe direi: Pai, pequei contra o céu e contra ti”. O pai, sempre
terno, recebe-o com inalterá vel amor e a sua doce voz de boas
vindas ressoa na alma do pró digo: “Este meu filho esteve morto, e
reviveu; esteve perdido, e foi achado”. Note-se que esta pará bola é
totalmente calvinista, já que o pró digo era um filho , portanto nã o
podia perder essa relaçã o. Os que nã o sã o filhos jamais sentem o
desejo de levantar-se e de ir para o Pai.
Pode ser que nos equivoquemos em certas ocasiõ es, como sucedeu
aos gá latas fascinados (Gl 3.1); e ainda pode ser que os nossos afetos
se esfriem como sucedeu na igreja de É feso (Ap 2.4). A igreja pode
adormecer, mas o seu coraçã o vela (Ct 5.2). À s vezes é como se a
graça desaparecesse de um filho de Deus quando, na realidade, nã o é
assim. O sol se eclipsa, porém recobra o seu esplendor. No inverno,
as á rvores perdem as suas folhas e o seu fruto, mas vem a primavera
e voltam a brotar. Israel esteve uma e até mesmo duas vezes diante
dos seus inimigos, porém, ao fim, reconquistou a terra prometida. O
crente, de igual modo, cai com muita frequência; porém, finalmente,
se manterá salvo. É inconcebível que os eleitos de Deus deixem de
alcançar a salvaçã o final. “Nã o há possibilidade de que frustrem o
poder onipotente de Deus. Como Jonas, que tentou escapar da
vontade de Deus e recusou levar a mensagem a Nínive, e que foi
perseguido até o ventre do peixe pelo poder de Deus, até que,
voluntariamente, obedeceu ao mandato divino, assim também o
crente, eventualmente, retornará ao Salvador; e, havendo
confessado as suas falhas, receberá o perdã o dos seus pecados e
será salvo.” [100]
 

4. Uma profissão externa da justiça nem sempre é prova de que


a pessoa é genuinamente cristã
Nã o temos grande dificuldade em explicar aqueles casos em que os
crentes, aparentemente verdadeiros, caíram em apostasia final.
Tanto as Escrituras quanto a experiência nos ensinam que, com
frequência, nos equivocamos em nosso juízo com respeito a outras
pessoas; costuma ser praticamente impossível conhecer claramente
se os tais sã o ou nã o cristã os genuínos. O joio nunca foi trigo; e os
peixes ruins nunca foram saudá veis, apesar do fato de que a sua
verdadeira natureza (tanto do joio quanto dos peixes) nã o chega a
ser bem conhecida. Dado que Sataná s se disfarce em anjo de luz
(2Co 11.14), nã o se deve estranhar que os seus ministros algumas
vezes se disfarcem em agentes da justiça, com as mais enganadoras
aparências de santidade, devoçã o, piedade e zelo. Certamente, uma
profissã o de fé externa nem sempre é garantia de que uma pessoa é
salva. Algumas pessoas, como os fariseus de outrora, aparentam o
que nã o sã o e enganam a muitos. Jesus advertiu a seus discípulos:
“porque surgirã o falsos cristos e falsos profetas operando grandes
sinais e prodígios para enganar, se possível, os pró prios eleitos” (Mt
24.24). E citou as palavras do profeta Isaías, o qual disse: “Este povo
me honra com os lá bios, mas o seu coraçã o está longe de mim. E em
vã o me adoram, ensinando doutrinas que sã o preceitos de homens”
(Mc 7.6,7). Paulo deixou a igreja de sobreaviso sobre aqueles que
eram “falsos apó stolos, obreiros fraudulentos, que se disfarçam em
apó stolos de Cristo” (2Co 11.13). E escreveu aos romanos: “E nã o
pensemos que a palavra de Deus haja falhado, porque nem todos os
de Israel sã o, de fato, israelitas; nem por serem descendentes de
Abraã o sã o todos seus filhos” (Rm 9.6, 7). Joã o menciona os que “se
dizem apó stolos e nã o o sã o” (Ap 2.2); e mais adiante ele adiciona:
“Conheço as tuas obras, que tens nome de que vives e está s morto”
(Ap 3.1).
Todavia, nã o importa quã o efetivamente tais pessoas conseguem
enganar os homens; Deus sempre conhece “a blasfêmia dos que se
dizem judeus, e nã o o sã o, e sim sinagoga de Sataná s” (Ap 2.9).
Vivemos numa época em que multidõ es afirmam ser “cristã s”,
porém carecem totalmente do conhecimento, experiência e cará ter
cristã os — numa época em que, em muitos lugares, a distinçã o entre
a igreja e o mundo tem desaparecido. Como Samuel, com frequência
somos enganados pelas aparências externas e exclamamos:
“Certamente está diante de nó s o ungido do Senhor”; quando, na
realidade, se conhecêssemos os motivos por detrá s das obras de tais
pessoas, nã o nos expressaríamos nem agiríamos assim. Com
frequência nos equivocamos ao julgarmos outras pessoas, e fazemos
isso a despeito de todas as precauçõ es que tomemos. Joã o deu a
verdadeira soluçã o para esses casos quando escreveu: “Eles saíram
do nosso meio; entretanto, nã o eram dos nossos; porque, se
tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco; todavia, eles
se foram para que ficasse manifesto que nenhum deles é dos nossos”
(1Jo 2.19). Todos quantos apostatam permanentemente pertencem
a esse grupo.
Algumas pessoas fazem grande confissã o de sua religiã o, muito
embora nã o conheçam o Senhor Jesus em espírito e em verdade.
Pode ser que tais pessoas excedam a muitos humildes discípulos em
conhecimento intelectual, e por algum tempo podem até mesmo
enganar os pró prios eleitos; contudo seus coraçõ es jamais foram
renovados. No dia do grande juízo muitos dos que algumas vezes
estiveram, em sua vida, vinculados externamente à igreja dirã o:
“Senhor, Senhor! Porventura nã o temos nó s profetizado em teu
nome, e em teu nome nã o expelimos demô nios, e em teu nome nã o
fizemos muitos milagres? Entã o, lhes direi explicitamente: nunca
vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniquidade” (Mt
7.22, 23). O que, naturalmente, nã o seria certo se alguma vez fossem
de fato conhecidos como verdadeiros crentes. Ao chegar o dia em
que for conhecido o verdadeiro cará ter de todo ser humano; e se
manifestarem os segredos de todos os coraçõ es, entã o se verá que
muitos dos que uma vez aparentaram ser crentes genuínos jamais
fizeram parte do povo de Deus. Alguns se apartam de sua profissã o
de fé, mas nenhum cai da graça salvadora de Deus. Os que
apostatam nunca conheceram a graça salvadora de Deus. Sã o como a
semente que foi semeada em solo pedregoso, os quais em si nã o têm
nenhuma raiz e sã o de curta duraçã o; e, ao vir a afliçã o ou a
perseguiçã o, logo tropeçam. É precisamente a esta classe de pessoas
que as Escrituras se referem, ao mencionar alguns que
abandonaram a fé; ou que naufragaram no tocante a uma fé que
nunca possuíram, senã o só na aparência. Há outros que recebem
iluminaçã o suficiente no tocante à s doutrinas do evangelho, a ponto
de pregá -las e ensiná -las a outros, mas, nã o obstante isso, eles
mesmos carecem completamente da verdadeira graça salvadora.
Que pessoas como tais apostatem nã o constitui prova nem exemplo
da apostasia final de santos genuínos.
Tampouco a mera membresia na igreja é garantia de que as pessoas
sã o cristã os reais. Nem todos os membros da igreja militante serã o
membros da igreja triunfante. Com o fim de cumprir certos
propó sitos, algumas pessoas fazem uma profissã o de fé externa do
evangelho, o que as obriga por certo tempo a ser externamente
moralistas e a se relacionar com o povo de Deus. Aparentam ter fé
genuína e continuam assim por algum tempo. Entã o, ou o disfarce de
ovelha lhes é arrancado, ou eles mesmos o removem e voltam
novamente ao mundo. Se pudéssemos ver os verdadeiros motivos
dos seus coraçõ es, descobriríamos que em nenhum momento se
deixaram mover por um genuíno amor para com Deus, senã o que
eram cabritos, e nã o ovelhas; lobos vorazes, e nã o mansos cordeiros.
Pedro fala sobre essas pessoas: “O cã o voltou ao seu pró prio vô mito;
e: A porca lavada voltou a revolver-se no lamaçal” (2Pe 2.22). O que
demonstra que jamais pertenceram ao nú mero dos eleitos.
Muitos dos nã o convertidos ouvem a pregaçã o do evangelho, como
Herodes ouvia Joã o Batista falar. Lemos que “Herodes temia a Joã o,
sabendo que era homem justo e santo, e o tinha em segurança. E,
quando o ouvia, ficava perplexo, escutando-o de boa mente ” (Mc
6.20). Todavia, ninguém que se lembre do decreto de Herodes, pelo
qual ordenou que Joã o Batista fosse morto, e igualmente se lembre
de sua vida em geral, dirá que alguma vez foi cristã o.
Em adiçã o a tudo o que foi dito previamente, deve-se admitir que
muitas vezes as operaçõ es comuns do Espírito, na consciência
iluminada, conduzem a uma reforma e a uma vida externamente
religiosa. Os que experimentam tais operaçõ es do Espírito sã o com
frequência mui severos em sua conduta e mui diligentes em seus
deveres religiosos. A tais pessoas as promessas do evangelho e a
exibiçã o do plano da salvaçã o contidas nas Escrituras lhes parecem
nã o só verdadeiras, mas apropriadas à sua condiçã o, e as recebem
com prazer e creem nelas com uma fé fundamentada na força moral
da verdade. Essa fé continua enquanto segue em frente o estado
mental que a produz, mas quando esse estado mental muda, a
pessoa retorna ao seu costumeiro estado de insensibilidade e a fé
desaparece. É a essa classe de pessoa que Cristo se referia quando
falou daqueles que recebem a Palavra entre pedregulhos ou entre
espinheiros. Numerosos exemplos dessa fé temporá ria aparecem
nas Escrituras e podem ser vistos com muita frequência na vida
diá ria. Tais experiências à s vezes precedem ou acompanham a
conversã o genuína; porém em muitos casos nã o acompanham uma
genuína mudança do coraçã o. Tais experiências podem ocorrer
repetidas vezes, mas os que a experimentam retornam ao seu estado
normal de indiferença e mundanismo. Com frequência se torna
impossível a um observador ou à pró pria pessoa distinguir tais
experiências das genuínas. “Por seus frutos os conhecereis” — é a
prova que o Senhor nos legou. Somente quando tais experiências
resultam numa vida consistentemente santa se reconhecerá o seu
cará ter distintivo.
 

5. O senso de insegurança dos arminianos


Consequentemente, um arminiano, com as suas doutrinas do livre-
arbítrio e da possibilidade de se cair da graça, jamais pode, nesta
vida, ter certeza da sua salvaçã o eterna. Talvez sinta certa segurança
atual da sua salvaçã o; mas, quanto à sua salvaçã o final, nutre apenas
uma leve esperança . Pode ser que considere a sua salvaçã o final
como uma probabilidade, mas nã o poderá estar completamente
seguro da mesma. O arminiano nota muitos dos seus amigos
“crentes” cair e perecer, muito embora tenham tido um bom
começo. Entã o, nã o será o caso disso suceder também a ele?
Enquanto os homens permanecerem no mundo, eles exibirã o os
vestígios da velha natureza pecaminosa ainda operando neles; eles
se verã o rodeados pelos mais atraentes e enganadores prazeres do
mundo e das mais sutis tentaçõ es do diabo. Além disso, em muitas
das igrejas supostamente cristã s se ouvem os falsos ensinos de
ministros modernistas e incrédulos. Se o arminianismo fosse
correto, entã o os crentes ainda ocupariam posiçõ es muito perigosas,
já que o seu destino eterno dependeria da probabilidade de que as
suas débeis vontades continuam escolhendo o bem. Logicamente, a
posiçã o arminiana conduz à errô nea crença de que nã o é possível
ser confirmado na santidade, nem mesmo no pró prio céu; já que
mesmo ali a pessoa reteria seu o livre-arbítrio e poderia pecar
quando bem quiser.
Podemos comparar o arminiano a um indivíduo que herdou uma
fortuna. Ele sabe que muitos outros têm herdado grandes fortunas,
no entanto as perderam em razã o de critério deficitá rio, ou de
alguma fraude, ou de alguma calamidade e daí por diante. Ele,
porém, tem suficiente confiança em sua pró pria capacidade de
administrar sabiamente o seu dinheiro, por isso se convence de que
nã o o perderá . A sua segurança está firmada na confiança que ele
nutre de si mesmo. Outros têm fracassado, sim, mas ele nutre a
confiança de que nã o fracassará . Quando aplicamos esta ilustraçã o
ao reino espiritual, quã o grande é o engano! Quã o lamentá vel é que
uma pessoa que bem conhece a pró pria tendência para o pecado
firme sua segurança de salvaçã o nesse fundamento! Um sistema
como esse deposita a causa da perseverança nã o nas mã os do Deus
onipotente e imutá vel, e sim nas mã os de um débil pecador.
Além disso, nã o nos diz a ló gica arminiana que o mais conveniente
para o crente seria morrer o quanto antes para assegurar-se da
herança que para ele é de valor tã o infinito? Diante do fato de que
tantos têm fracassado, vale a pena permanecer aqui e arriscar a
salvaçã o eterna pelo mero desfruto de um pouco mais de vida neste
mundo? Que diríamos de um comerciante que, a fim de ganhar mais
dinheiro, arrisca toda a sua fortuna numa empresa admitidamente
duvidosa? Tudo isso somado, nã o implicaria que o Senhor tem se
equivocado um sem nú mero de vezes em nã o tirar as pessoas do
mundo enquanto ainda sã o crentes genuínos? Ao menos o autor
deste livro está convencido de que, se ele mantivesse a posiçã o
arminiana e se reconhecesse como cristã o salvo, desejaria morrer o
quanto antes a fim de assegurar-se da sua salvaçã o.
No que diz respeito à s coisas espirituais, um estado de dú vida
equivale a um estado de miséria. A certeza de que nada e ninguém
podem separar o cristã o do amor de Deus é um dos mais profundos
confortos da vida cristã . Negar tal doutrina é destruir o fundamento
de todo deleite entre os crentes que ora se encontram na terra;
porque, que alegria poderã o ter os que creem que a qualquer
momento podem ser enganados e desviados do seu caminho? Se a
nossa segurança tivesse por base unicamente a nossa natureza
mudá vel e indecisa, nunca experimentaríamos a serenidade e a paz
interior que devem caracterizar o crente em Cristo. McFetridge, em
seu livrinho iluminador intitulado Calvinism in History [O calvinismo
na histó ria], afirma: “Posso imaginar claramente o terror que deve
infundir numa alma sensível sentir esta a incerteza da sua salvaçã o e
viver constantemente cô nscia da terrível possibilidade de cair da
graça apó s uma longa e penosa vida cristã , segundo o ensino do
arminianismo. Pessoalmente, eu jamais poderia abraçar uma
doutrina tã o aterradora que enche a alma de constantes e
inexprimíveis dú vidas. Sentir que cruzo o tempestuoso e perigoso
mar da vida dependendo, para minha segurança final, da minha
traiçoeira natureza, produziria em mim uma perpétua consternaçã o.
Nã o, ao contrá rio, eu desejaria saber que a embarcaçã o à qual ele
confiou a minha vida é apropriada para a navegaçã o, e que, ao
embarcar nela, estarei plenamente certo do meu destino”. [101]
Até que apreciemos adequadamente a maravilhosa verdade de que a
nossa salvaçã o nã o depende do nosso débil e vacilante amor para
com Deus, e sim do eterno e imutá vel amor de Deus para conosco,
nã o poderemos ter paz e segurança na vida cristã . E somente o
calvinista, que se reconhece absolutamente seguro nas mã os de
Deus, pode fomentar esse senso interior de paz e segurança,
sabendo que nos eternos conselhos de Deus fui escolhido para ser
santificado e glorificado, e que nada pode frustrar esse propó sito. O
calvinista sabe que o poder que o guarda é tã o inesgotá vel e
invariá vel como a força da gravidade, e que é tã o necessá rio para o
desenvolvimento do seu espírito como o sol e as vitaminas o sã o
para o desenvolvimento do corpo.
 
6. O propósito das advertências contra a apostasia nas
Escrituras
Os arminianos costumam pô r em pauta as advertências contidas nas
Escrituras contra a apostasia, ou a perda da graça, dirigidas aos
crentes, e as quais, insistem, implicam na possibilidade de que os
crentes podem cair da graça. Sem dú vida em certo sentido se pode
dizer que os crentes podem cair — isto é, quando sã o contemplados
em si mesmos, com referência aos seus pró prios poderes e
capacidades, independentemente do propó sito ou do destino que
Deus lhes deu. E todos reconhecem que os crentes podem cair
temporariamente em pecado. Todavia, o principal propó sito dessas
passagens é induzir os homens a cooperar voluntariamente com
Deus para a consecuçã o desses propó sitos. Essas passagens servem
de estímulo e produzem constante humildade, vigilâ ncia e diligência.
Um pai, a fim de conseguir a cooperaçã o voluntá ria de um filho,
pode dizer-lhe que tenha cuidado com um carro que se aproxima,
muito embora o pai nã o tenha nenhuma intençã o de deixar que o
seu filho se encontre numa posiçã o da qual pudesse receber algum
dano. Quando Deus permite que uma alma tenha receio de cair nã o é
prova de que, em seu propó sito secreto, se propô s permitir-lhe que
caísse. Esse receio pode, antes, ser o meio que Deus designou para
impedir que essa alma caia. Em segundo lugar, as exortaçõ es divinas
ao dever sã o perfeitamente consistentes com o propó sito de dar
suficiente graça para o cumprimento dos deveres. Em uma parte,
recebemos a ordem de amar ao Senhor nosso Deus de todo o nosso
coraçã o; na outra, Deus diz: “Porei dentro de vó s o meu Espírito e
farei com que andeis nos meus estatutos”. Ora, ou estas duas
asseveraçõ es sã o consistentes entre si, ou o Espírito Santo se
contradiz consigo mesmo. Certamente o Espírito nã o se contradiz.
Em terceiro lugar, tais advertências sã o, mesmo para os crentes,
estímulos à fé e oraçã o mais intensos. Em quarto lugar, tais
advertências têm o propó sito de demonstrar ao homem o seu dever ,
e nã o a sua capacidade ; a sua debilidade , e nã o a sua força . Em
quinto lugar, convencem os homens da sua falta de santidade e da
sua dependência de Deus. E, em sexto lugar, servem para refrear os
incrédulos e deixá -los sem justificativa.
Tampouco provam algo por passagens tais como: “Se, por causa de
comida, o teu irmã o se entristece, já nã o andas segundo o amor
fraternal. Por causa da tua comida, nã o faças perecer aquele a favor
de quem Cristo morreu” (Rm 14.15). “E assim, por causa do teu
saber, perece o irmã o fraco, pelo qual Cristo morreu” (1Co 8.11). Da
mesma forma, pode-se dizer que a influência de uma pessoa em
particular, ao ser contemplada isoladamente, pode estar destruindo
a nossa civilizaçã o; sabemos, porém, que a nossa civilizaçã o
continua em sua marcha e em seu progresso, já que há outras
influências que contrabalançam a influência adversa. Essas
passagens ensinam simplesmente o seguinte: A despeito da
segurança divina, o que põ e tropeços no caminho do seu irmã o é
responsá vel pelo que faz; e todo aquele que põ e tropeços no
caminho do seu irmã o está fazendo tudo o que pode para a
destruiçã o do seu irmã o.
 

7. Prova bíblica
A prova proveniente das Escrituras em prol desta doutrina é
abundante e clara. Consideraremos agora algumas destas passagens.
“Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulaçã o, ou angú stia,
ou perseguiçã o, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada? Como está
escrito: Por amor de ti, somos entregues à morte o dia todo, fomos
considerados como ovelhas para o matadouro. Em todas estas
coisas, porém, somos mais que vencedores, por meio daquele que
nos amou. Porque eu estou bem certo de que nem a morte, nem a
vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas do presente,
nem do porvir, nem os poderes, nem a altura, nem a profundidade,
nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus,
que está em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm 8.35-39).
“Porque o pecado nã o terá domínio sobre vó s; pois nã o estais
debaixo da lei e sim da graça” (Rm 6.14). “Em verdade, em verdade
vos digo: quem crê em mim tem a vida eterna” (Jo 6.47). “Em
verdade, em verdade vos digo: quem ouve a minha palavra e crê
naquele que me enviou tem a vida eterna, nã o entra em juízo, mas
passou da morte para a vida” (Jo 5.24). No mesmo instante em que
alguém crê, a vida eterna é uma realidade, uma possessã o presente,
e nã o meramente uma dá diva futura e condicional. “Eu sou o pã o
vivo que desceu do céu; se alguém dele comer, viverá eternamente;
e o pã o que eu darei pela vida do mundo é a minha carne” (Jo 6.51).
Nã o diz que temos de comer muitas vezes, e sim que, se comermos,
viveremos eternamente. “Aquele, porém, que beber da á gua que eu
lhe der nunca mais terá sede; pelo contrá rio, a á gua que eu lhe der
será nele uma fonte a jorrar para a vida eterna” (Jo 4.14).
“Estou plenamente certo de que aquele que começou boa obra em
vó s há de completá -la até o Dia de Cristo Jesus” (Fp 1.6). “O que a
mim me concerne, o SENHOR levará a bom termo” (Sl 138.8). “Porque
os dons e a vocaçã o de Deus sã o irrevogá veis” (Rm 11.29). “E o
testemunho é este: que Deus nos deu a vida eterna; e esta vida está
em seu Filho” (1Jo 5.11). “Estas coisas vos escrevi, a fim de saberdes
que tendes a vida eterna, a vó s outros que credes no nome do Filho
de Deus” (1Jo 5.13). “Porque, com uma ú nica oferta, aperfeiçoou
para sempre quantos estã o sendo santificados” (Hb 10.14). “O
Senhor me livrará também de toda obra maligna e me levará salvo
para o seu reino celestial. A ele, gló ria pelos séculos dos séculos.
Amém” (2Tm 4.18). “Porquanto aos que de antemã o conheceu,
também os predestinou. ... E aos que predestinou, a esses também
chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que
justificou, a esses também glorificou” (Rm 8.29, 30). “... nos
predestinou para ele, para a adoçã o de filhos, por meio de Jesus
Cristo, segundo o beneplá cito da sua vontade” (Ef 1.5).
Jesus disse: “Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerã o, e ninguém
as arrebatará da minha mã o. Aquilo que o meu Pai me deu é maior
do que tudo; e da mã o do Pai ninguém pode arrebatar” (Jo 10.28,
29). Podemos notar aqui que a segurança e onipotência de Deus sã o
iguais, já que a primeira descansa na segunda. Deus é mais poderoso
do que o mundo inteiro, e nem homens e nem demô nios podem
roubar-lhe uma das suas joias preciosas. Seria mais fá cil arrancar
uma estrela dos céus do que arrebatar um crente da mã o do Pai. A
salvaçã o dos crentes repousa no poder invencível de Deus; e,
portanto, o crente está fora de todo perigo de destruiçã o. Temos a
promessa de Cristo de que as portas do inferno nã o prevalecerã o
contra sua igreja; se o diabo pudesse arrebatar um aqui e outro ali, e
grandes nú meros em algumas congregaçõ es, entã o a promessa de
Cristo nã o seria segura. Em outras palavras, se um só crente pudesse
perder-se, entã o seria possível, ao menos em princípio, que todos os
crentes possam perder-se, o que converteria em nulidade as
palavras de Cristo.
Quando somos informados que “surgirã o falsos cristos e falsos
profetas operando grandes sinais e prodígios para enganar, se
possível , os pró prios eleitos” (Mt 24.24), cremos que toda pessoa,
sem preconceitos, entenderá que esta é uma afirmaçã o de que é
impossível enganar os eleitos.
A uniã o mística entre Cristo e os crentes é uma garantia de que estes
perseverarã o. “... Porque eu vivo, vó s também vivereis” (Jo 14.19).
Através dessa uniã o, os crentes participam da vida de Cristo. Cristo
está em nó s (Rm 8.10). “... Logo, nã o sou eu quem vive, mas Cristo
vive em mim” (Gl 2.20). Cristo e os crentes possuem uma vida em
comum, como a que existe entre a videira e os ramos. O Espírito
Santo habita nos redimidos de tal maneira que cada crente possui
uma reserva inesgotá vel de força.
O apó stolo advertiu os efésios: “E nã o entristeçais o Espírito de
Deus, no qual fostes selados para o dia da redençã o” (Ef 4.30). Paulo
nã o temia a apostasia, já que pô de dizer com absoluta certeza:
“Graças, porém, a Deus, que, em Cristo, sempre nos conduz em
triunfo e, por meio de nó s, manifesta em todo lugar a fragrâ ncia do
seu conhecimento” (2Co 2.14). O Senhor, falando pelos lá bios do
profeta Jeremias, disse: “Com amor eterno eu te amei” (Jr 31.3) —
que é uma das melhores provas de que o amor de Deus nã o terá fim,
já que tampouco tem começo, porquanto ele é eterno. Na pará bola
dos dois fundamentos se enfatiza o ponto de que a casa que é
edificada sobre a rocha (Cristo) nã o cai quando as tormentas da vida
a fustigarem. Nã o obstante, o arminianismo elabora outro sistema
no qual alguns dos que edificam sobre a rocha ainda caem. No salmo
23, lemos: “... e habitarei na casa do SENHOR para todo o sempre ” (v.
6). O verdadeiro crente nã o é um viajante temporá rio, e sim um
habitante permanente na casa do Senhor. Como despojam este
salmo do seu mais profundo e rico significado aqueles que ensinam
que a graça de Deus é de cará ter temporá rio!
Cristo faz intercessã o pelo seu povo (Rm 8.34; Hb 7.25), e o Pai
sempre o ouve (Jo 11.42). Portanto, o arminiano que sustenta que os
crentes podem cair da graça se vê obrigado ou a negar as passagens
que ensinam que Cristo intercede pelo seu povo, ou a negar as
passagens que ensinam que as suas oraçõ es sã o sempre ouvidas. A
realidade, contudo, é que todo crente possui uma dupla segurança:
Cristo está à destra de Deus intercedendo por nó s; e, além disso, o
Espírito Santo intercede por nó s com gemidos inexprimíveis (Rm
8.26).
Na maravilhosa promessa de Jeremias 32.40, Deus disse que
preservará os crentes da apostasia: “Dar-lhes-ei um só coraçã o,
espírito novo porei dentro deles; tirarei da sua carne o coraçã o de
pedra e lhes darei coraçã o de carne; para que andem nos meus
estatutos; eles serã o o meu povo, e eu serei o seu Deus” (Ez 11.19,
20). Aqui ele promete tirar deles o “coraçã o de pedra” e dar-lhes um
“coraçã o de carne”, para que andem em suas ordenanças e guardem
os seus decretos; e para que sejam o seu povo, e ele, por sua vez, seja
o seu Deus. Pedro declarou que os crentes nã o podem apostatar, já
que sã o “guardados pelo poder de Deus mediante a fé, a fim de que
alcancem a salvaçã o que está preparada para manifestar-se no
ú ltimo tempo” (1Pe 1.5). Paulo afirmou: “Deus pode fazer-vos
abundar em toda graça, a fim de que, tendo sempre, em tudo, ampla
suficiência, superabundeis em toda boa obra” (2Co 9.8). E em
Romanos ele afirma que o servo do Senhor “estará em pé, porque o
Senhor é poderoso para o suster” (Rm 14.4).
Além de todas essas promessas, os crentes têm a promessa adicional
de que “Nã o vos sobreveio tentaçã o que nã o fosse humana; mas
Deus é fiel e nã o permitirá que sejais tentados além das vossas
forças; pelo contrá rio, juntamente com a tentaçã o, vos proverá
livramento, de sorte que a possais suportar” (1Co 10.13). O
livramento de certas tentaçõ es que lhes seriam demasiadamente
fortes é uma dá diva absoluta e livre de Deus dada aos crentes, já que
depende da sua providência quais tentaçõ es eles haverã o de
encontrar no curso das suas vidas, e das quais hã o de ser livrados.
“Todavia, o Senhor é fiel; ele vos confirmará e guardará do Maligno”
(2Ts 3.3). E: “O anjo do SENHOR acampa-se ao redor dos que o temem
e os livra” (Sl 34.7). Em meio a todas as suas provaçõ es e lutas, Paulo
pô de dizer: “Em tudo somos atribulados, porém nã o angustiados;
perplexos, porém nã o desanimados; perseguidos, porém nã o
desamparados; abatidos, porém nã o destruídos... sabendo que
aquele que ressuscitou o Senhor Jesus também nos ressuscitará com
Jesus e nos apresentará convosco” (2Co 4.8, 9, 14).
Enquanto neste mundo, os santos sã o comparados a á rvore que nã o
murcha (Sl 1.3); a cedros que crescem no Líbano (Sl 92.12); ao
monte Siã o, que nã o se move, mas permanece para sempre (Sl
125.1); e a uma casa edificada sobre a rocha (Mt 7.24). O Senhor está
com eles em sua velhice (Is 46.4), e os guia até mesmo na morte (Sl
48.14), de modo que nã o podem perder-se total e finalmente.
Cabe-nos notar outro argumento forte no tocante à segurança dos
crentes, a saber, aquele relacionado com o livro da vida do Cordeiro.
O Senhor disse aos discípulos que se regozijavam ante o fato de que
os demô nios se lhes sujeitavam, que lhes convinha regozijar-se
muito mais porque os seus nomes estavam registrados no livro da
vida do Cordeiro. Este livro é o registro dos eleitos, determinado
pelo inalterá vel conselho de Deus, e ao qual nada se pode
acrescentar nem tirar. Os nomes dos justos estã o escritos nele desde
a fundaçã o do mundo, mas os nomes dos que se perdem nunca
foram escritos nele. Deus nã o comete o erro de escrever no livro da
vida um nome que mais tarde terá que ser apagado. Isto implica que
nenhum dos eleitos jamais se perderá . Jesus disse aos seus
discípulos que se regozijassem porque os seus nomes estavam
registrados nos céus (Lc 10.20). Tais palavras seriam destituídas de
fundamento se fosse possível que os nomes escritos nos céus
pudessem ser apagados no dia seguinte. Paulo escreveu aos
filipenses: “Nossa cidadania está nos céus” (Fp 3.20); e a Timó teo: “O
Senhor conhece os que sã o seus” (2Tm 2.19). Quanto ao ensino
bíblico sobre o livro da vida, veja Lucas 10.20; Filipenses 4.3;
Apocalipse 3.5; 13.8; 17.8; 20.12-15; 21.27.
Portanto, temos aqui umas simples e claras afirmaçõ es de que o
crente continuará na graça, em razã o de que o Senhor se propô s a si
mesmo preservá -los nesse estado. Em todas as promessas citadas
previamente, os eleitos têm uma dupla segurança. Por um lado, eles
têm a segurança de que Deus jamais se apartará deles; e, por outro,
a segurança de que Deus porá o seu temor em seus coraçõ es a fim de
que jamais se apartem dele. Certamente, nenhum crente iluminado
pelo Espírito poderá duvidar de que esta doutrina é realmente
bíblica. Seria ló gico pensarmos que o natural fosse que o homem, no
atual estado de pobreza, miséria e impotência espiritual, abrace
deleitosamente uma doutrina que lhe assegura a posse de uma vida
de eterna felicidade, a despeito de todos os ataques que vêm de fora
e todas as má s tendências que surgem de dentro. Mas nã o é assim.
Em vez disso, ele a rechaça e protesta contra ela. Nã o é difícil de
encontrar as razõ es. Em primeiro lugar, ele tem mais confiança em
si do que deveria ter. Segundo, este esquema é tã o contrá rio ao que
ele está acostumado a ver no mundo natural, que tenta convencer-se
de que este nã o pode ser correto. Terceiro, ele se dá conta de que, se
aceitar esta doutrina, terá que aceitar as demais doutrinas da livre
graça. Por isso ele tenta tergiversar e explicar a seu modo as
passagens bíblicas que a ensinam, e, assim, se aferra a outras
passagens que, superficialmente, aparentam favorecer as suas ideias
preconcebidas. Um sistema de salvaçã o somente pela graça é tã o
contrá rio ao que ele vê na vida diá ria, onde percebe que todos sã o
tratados conforme as suas obras e os seus méritos , que se lhe torna
difícil crer que tal coisa possa ser verídica. Por isso, ele anseia
conquistar a sua salvaçã o por esforços pró prios, ainda que, por
certo, espere uma recompensa mui elevada por um trabalho
demasiadamente deficiente .             
 

SEÇÃO III. OBJEÇÕES QUE COMUMENTE SURGEM CONTRA A


DOUTRINA BÍBLICA DA PREDESTINAÇÃO
 
 
CAPÍTULO XV. QUE A DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃO
EQUIVALE A FATALISMO
 
Têm surgido muitos equívocos que confundem a doutrina cristã da
predestinaçã o com a doutrina pagã do fatalismo. Na realidade, só há
um ponto de concordâ ncia entre estas duas doutrinas, a saber,
ambas sustentam a absoluta certeza de todos os eventos futuros. A
diferença essencial é que o fatalismo nã o deixa lugar a um Deus
pessoal. A doutrina da predestinaçã o sustenta que os eventos
acontecem porque um Deus infinitamente sá bio, poderoso e santo
os ordenou. O fatalismo, em contrapartida, sustenta que todos os
eventos acontecem mediante a operaçã o de uma força cega,
irracional, impessoal, nã o moral, que em nada difere de uma mera
necessidade física, e que arrasta todas as coisas do mesmo modo
que um poderoso rio arrasta um pedaço de madeira.
A doutrina da predestinaçã o ensina que, desde a eternidade, Deus
elaborou um plano ou propó sito unificado, o qual ele leva a bom
termo através da atual ordem mundial de eventos. Ela sustenta
ainda que todos os decretos divinos sã o determinaçõ es racionais
fundamentadas em razõ es suficientes, e que Deus estabeleceu uma
grande meta “rumo à qual toda a criaçã o se move”. A doutrina cristã
da predestinaçã o sustenta que os fins desse plano sã o, em primeiro
lugar, a gló ria de Deus; e, em segundo lugar, o bem do seu povo. O
fatalismo, por sua vez, exclui a ideia de causas finais. Tira as rédeas
do domínio universal das mã os da sabedoria e do amor infinitos e as
coloca nas mã os de uma necessidade cega. Atribui o curso da
natureza e da experiência da humanidade a uma força desconhecida
e irresistível contra a qual é inú til e pueril protestar.
Na doutrina da predestinaçã o, a liberdade e a responsabilidade do
homem sã o completamente preservadas. Em meio à certeza, Deus
ordenou a liberdade humana. O fatalismo, por sua vez, nega que o
homem tenha poder de escolha, isto é, de autodeterminaçã o. Ele
sustenta que os atos humanos se acham tã o fora do controle dos
homens como o estã o as leis da pró pria natureza. O fatalismo, com a
sua ideia de um poder irresistível, impessoal e abstrato, nã o deixa
lugar à s ideias morais; na predestinaçã o, ao contrá rio, estas sã o as
normas de açã o para Deus e para o homem. O fatalismo nã o tem
lugar nem oferece incentivos para a religiã o, o amor, a misericó rdia,
a santidade, a justiça, ou a sabedoria; enquanto a predestinaçã o dá a
essas virtudes o mais só lido fundamento. Finalmente, o fatalismo
conduz ao ceticismo e à desesperança, enquanto a predestinaçã o
exibe a gló ria de Deus e do seu reino em todo o seu esplendor e
propicia uma segurança inamovível.
A predestinaçã o, portanto, difere tanto do fatalismo quanto os atos
de uma pessoa diferem dos movimentos de uma má quina, ou quanto
o inesgotá vel amor do Pai difere da força impessoal da gravidade.
Smith afirma que a predestinaçã o “nos revela a gloriosa verdade de
que as nossas vidas e os nossos coraçõ es sensitivos sã o mantidos,
nã o nas férreas engrenagens de um vasto e inclemente Destino, nem
nas vagas sombras de um absurdo Azar, e sim nas poderosíssimas
mã os de um Deus infinitamente bom e sá bio”. [102]
Calvino repudiou enfaticamente a acusaçã o de que a sua doutrina
equivalia a fatalismo. “O destino ”, disse ele, “é um termo dado pelos
estoicos à sua doutrina da necessidade, a qual eles confeccionaram
de um labirinto de arrazoados contraditó rios; tal doutrina pretende
submeter o pró prio Deus a uma ordem estabelecida e impor-lhe leis
pelas quais ele tem que se reger. A predestinação , contudo, é, de
acordo com as Escrituras, o livre conselho de Deus mediante o qual
ele governa toda a humanidade, a todos os homens e a todas as
coisas, e também a cada parte e partícula do mundo, pela sua infinita
sabedoria e inescrutá vel justiça”. E acrescenta: “... se apenas
tivessem lido os meus escritos, prontamente teriam se convencido
de quã o ofensivo considero o termo profano destino ; e, além disso,
teriam descoberto que este mesmo aborrecível termo foi lançado
sobre Agostinho da parte dos seus opositores”. [103]
Lutero afirma que a doutrina do fatalismo, entre os pagã os, é prova
de que “o conhecimento da predestinaçã o e da presciência de Deus
prevalecia entre alguns setores da humanidade, tanto quanto a ideia
da pró pria divindade”. [104]
Além disso, a histó ria da filosofia
demonstra que o materialismo tem sido essencialmente fatalista, e o
panteísmo tem demonstrado igualmente os seus profundos sulcos
no fatalismo.
Nenhuma pessoa pode ser um fatalista consistente. A fim de o ser,
teria que arrazoar mais ou menos da seguinte maneira: “Se eu
morrer hoje, de nada me serve comer, já que de qualquer modo
morrerei. Nem tampouco necessito comer se hei de viver ainda
muitos anos, já que de qualquer modo viverei. Portanto, nã o
comerei”. Desnecessá rio dizer que, se Deus preordenou que uma
pessoa há de viver, também preordenou que tal pessoa nã o
cometerá a tolice suicida de recusar-se a comer.
No dizer de Hamilton, “esta doutrina só se assemelha
superficialmente à doutrina do ‘fatalismo’ pagã o. O crente está nas
mã os, nã o de um determinismo frio e imutá vel, e sim nas mã os de
um terno e amoroso Pai celestial, que nos amou e nos deu o seu
Filho a fim de morrer por nó s no Calvá rio. O cristã o sabe que ‘todas
as coisas cooperam juntamente para o bem dos que amam a Deus; a
saber, dos que ele chamou segundo o seu propó sito’. O cristã o,
portanto, pode confiar em Deus, porque sabe muito bem que ele é
plenamente sá bio, amoroso, justo e santo. Deus anuncia o porvir
desde o princípio e nã o há razã o para se sentir temor quando as
coisas parecerem voltar-se contra nó s”.
Daí, só uma pessoa que nã o examina a doutrina cristã da
predestinaçã o, ou aquela que nutre malicioso preconceito contra ela,
acusará precipitadamente que a predestinaçã o é fatalismo.
Nenhuma pessoa que saiba a diferença entre estas duas doutrinas
cometerá tal erro.
Uma vez que o universo é uma unidade sistematizada, temos de
escolher entre o fatalismo, o qual, em ú ltima aná lise, nega que haja
tal coisa como uma mente e um propó sito, e a doutrina bíblica da
predestinaçã o, a qual sustenta que Deus criou todas as coisas; que a
sua providência se estende a todas as suas obras; e que, ainda
quando Deus seja livre, também nos criou como seres livres, dentro
dos limites da nossa natureza. A nossa doutrina da predestinaçã o,
em vez de confundir-se com a doutrina pagã do fatalismo, é
plenamente o oposto e a sua ú nica alternativa.  

CAPÍTULO XVI. QUE A DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃO É


INCONSISTENTE COM O LIVRE-ARBÍTRIO E A
RESPONSABILIDADE MORAL DO HOMEM
 
 
1. O problema da liberdade do homem. 2. Esta objeçã o pesa igualmente contra
a presciência divina. 3. A certeza dos acontecimentos futuros é consistente
com a livre agência humana. 4. A vontade natural do homem está escravizada
ao mal. 5. Deus controla a mente dos homens e dá aos cristã os a disposiçã o de
irem a ele. 6. A forma em que a vontade está determinada. 7. Prova bíblica.
 

1. O problema da livre agência do homem


 
O problema com o qual nos defrontamos aqui é o seguinte: Como
pode uma pessoa ser moralmente livre e responsá vel se os seus atos
foram preordenados desde a eternidade? Ao falarmos de liberdade e
responsabilidade moral, nos reportamos à capacidade que cada
indivíduo possui para agir com autodeterminaçã o racional; e por
preordenaçã o nos reportamos ao fato de que, desde a eternidade,
Deus estabeleceu, com absoluta certeza, os acontecimentos que hã o
de suceder na vida de cada pessoa e na natureza. Certamente todos
nó s estamos de acordo que os atos de uma pessoa devem ser sem
compulsã o externa e em conformidade com os seus pró prios desejos
e inclinaçõ es, ou nã o poderíamos considerar a pessoa responsá vel
por eles. Se os atos de um ser moralmente livre fossem contingentes
e incertos, entã o é ó bvio que a preordenaçã o e a livre agência sã o
inconsistentes.
Todo filó sofo que se convence da existência de um Poder mediante o
qual todas as coisas existem e sã o controladas se vê forçado a
inquirir como a vontade finita pode achar expressã o sob o reino do
infinito. A soluçã o a esta difícil pergunta sobre a soberania de Deus e
a livre agência do homem nã o consiste em negar uma e a outra; mas,
antes, numa conciliaçã o que reconheça a realidade de ambas, porém
que dê a preeminência à soberania divina conforme a infinita
exaltaçã o do Criador sobre a criatura pecadora. O mesmo Deus que
decretou todos os eventos também decretou a liberdade humana em
meio a esses eventos, e esta liberdade está tã o certamente
estabelecida como tudo mais. O homem nã o é um autô mato ou uma
má quina. No plano divino, que é infinito em variedade e
complexidade, e se estende de eternidade a eternidade, e inclui
milhõ es de seres livres que agem e interagem, e reagem uns em
relaçã o a outros, Deus decretou que os seres humanos reteriam a
sua liberdade moral sob a sua soberania. Todavia, Deus nã o nos deu
uma explicaçã o formal dessas coisas, e o nosso limitado
entendimento humano nã o está apto para resolver totalmente o
problema. Uma vez que os escritores bíblicos nã o vacilavam em
afirmar o controle absoluto de Deus sobre os pensamentos e as
intençõ es do coraçã o, tampouco se sentiam embaraçados de incluir
os atos de seres livres dentro do plano divino. Que os redatores da
Confissão de fé de Westminster também reconheceram a liberdade do
homem é fá cil de corroborar, já que antes de declarar que “Deus,
desde toda a eternidade, ordenou livre e inalteravelmente tudo o
que acontece”, a CFW acrescenta: “Todavia, agiu de tal modo que
Deus nã o é o autor do pecado, nem faz qualquer violência à vontade
das suas criaturas, nem tira a liberdade, nem a contingência dos
meios ou causas secundá rias; mas, antes, as estabeleceu”.
Muito embora os atos de seres racionais sejam atos pessoais, nã o
obstante, isso se deve, em menor ou maior grau, à agência e eficá cia
do poder divino, exercidas de maneiras legítimas. O seguinte
exemplo ilustra mais ou menos este ponto. Um homem decide
construir um edifício e passa a elaborar o seu plano. A seguir ele
contrata carpinteiros, pedreiros, ferreiros, etc. a fim de concluir a
sua obra. Esses profissionais nã o sã o obrigados a trabalhar. Nem
tampouco sã o coagidos. O proprietá rio simplesmente lhes dirige os
incentivos necessá rios através de pagamentos, condiçõ es de
trabalho, etc. para que os homens trabalhem livre e dispostamente.
Cada um deles faz precisamente segundo a sua profissã o e o
planejamento. A vontade do proprietá rio é a causa primá ria e a
deles, a causa secundá ria. Com frequência dirigimos as açõ es dos
nossos semelhantes sem forçar a sua liberdade ou a sua
responsabilidade. De modo semelhante, e num grau infinitamente
maior, Deus dirige as nossas açõ es. A sua vontade para o curso dos
acontecimentos é a causa primá ria, e a vontade do homem é a causa
secundá ria; e ambas as vontades operam em perfeita harmonia.
Em certo sentido, podemos dizer que o reino dos céus é um reino
democrá tico, muito embora isso pareça um paradoxo. O princípio
essencial de uma democracia se radica “no consenso dos
governantes”. O céu será um reino onde Deus reina soberanamente
como o Rei; mas isso se fará com o consenso dos governantes. A
vontade dos cristã os nã o será violada. Deus exerce a sua influência
de modo tal que os cristã os consentem e aceitam o evangelho e
encontram o seu deleite em fazer a vontade do Rei.
 

2. Esta objeção pesa igualmente contra a presciência divina


 
Cabe assinalar que a objeçã o de que a preordenaçã o é inconsistente
com a liberdade moral pesa igualmente contra a doutrina da
presciência divina. Se Deus conhece de antemã o um evento futuro,
entã o tal evento há de ser tã o inevitavelmente seguro que o mesmo
equivale a preordenaçã o; e se um é inconsistente com a liberdade
moral, entã o o outro também o é. Este fato é admitido mesmo por
muitos dos que nã o sã o calvinistas; e os unitá rios, embora nã o sejam
evangélicos, sã o mais consistentes neste ponto do que os
arminianos. Eles dizem que Deus conhece tudo o que pode ser
conhecido; mas os atos livres sã o incertos; dizer que Deus nã o os
conhece de antemã o nã o lhe traz desonra.
As Escrituras, contudo, contêm prediçõ es de muitos eventos,
grandes e pequenos, que se cumpriram perfeitamente mediante os
atos de agentes livres. Em geral, tais pessoas nem mesmo tinham
consciência de que estavam cumprindo profecias divinas, mas que
agiam livremente, a despeito de agirem precisamente como foi dito
que agiriam. Eis alguns exemplos disso: a rejeiçã o de Jesus pelos
judeus, a divisã o das vestes de Jesus e o uso de sortes pelos soldados
romanos; a negaçã o de Pedro e o canto do galo, a ferida no lado do
Senhor feita por uma lança; a captura de Jerusalém e o subsequente
cativeiro dos judeus; a destruiçã o de Babilô nia, etc. Os escritores
bíblicos criam que estes atos livres eram de antemã o conhecidos [ou
foram determinados] pela mente divina; e, portanto, era
absolutamente certo que se cumpririam. A presciência divina nã o
destruiu a liberdade de Judas e de Pedro — pelo menos eles nã o
criam que foi assim, já que Judas mais tarde regressou e disse:
“Pequei, traindo sangue inocente”; e quando Pedro ouviu o canto do
galo e se lembrou das palavras de Jesus, ele saiu e chorou
amargamente.
No tocante aos eventos relacionados com a entrada triunfal de Jesus,
se diz de Jerusalém: “Os seus discípulos a princípio nã o
compreenderam isto; quando, porém, Jesus foi glorificado, entã o se
lembraram de que estas coisas estavam escritas a respeito dele, e
também de que lhe fizeram isso” (Jo 12.16). O fato de sabermos de
antemã o que um juiz nã o se deixará subornar ou que um esmoler
reagirá fortemente diante de uma barra de ouro, isso nã o altera a
natureza nem prejudica a liberdade de tais atos. E se nó s, com um
conhecimento tã o limitado da natureza de outras pessoas e das
influências que sã o exercidas sobre elas, podemos predizer suas
açõ es com relativa precisã o, porventura Deus, em sua perfeita
compreensã o da natureza de todas as suas criaturas e das
influências que operam sobre elas, nã o pode saber exatamente quais
serã o as suas açõ es?
Portanto, concluímos que a certeza de um ato é consistente com a
liberdade da pessoa que o leva à concretizaçã o; de outro modo, Deus
nã o poderia conhecer de antemã o os atos de agentes livres com
absoluta certeza. A presciência nã o estabelece a certeza dos atos
futuros, mas apenas pressupõ e que sã o infalíveis; e é contraditó rio
afirmar que Deus conhece como certo algum evento que, em sua
pró pria natureza, é certo. Portanto, temos a dizer ou que os eventos
futuros sã o certos e Deus conhece o futuro, ou sã o incertos e ele
desconhece o futuro. As doutrinas da presciência e da preordenaçã o
divinas nã o podem se desvincular uma da outra.
 
3. A certeza é consistente com a livre agência
Tampouco se depreende da absoluta certeza dos atos de uma pessoa
que esta nã o poderia ter agido de outro modo caso o desejasse. Com
frequência a pessoa tem o poder e a oportunidade de fazer o que
com absoluta certeza nã o fará , e de nã o fazer o que com absoluta
certeza fará . Isto é, nenhuma influência externa determina as suas
açõ es. As nossas açõ es estã o em conformidade com os decretos,
porém não com a necessidade — podemos agir de outra maneira e
muitas vezes deveríamos agir de outra maneira. A Judas e aos seus
cú mplices foi permitido cumprir as suas intençõ es e eles
procederam conforme o impulso das suas má s inclinaçõ es. Portanto,
Pedro os acusou do crime, muito embora ao mesmo tempo afirme
que agiram conforme o propó sito de Deus — “sendo este entregue
pelo determinado desígnio e presciência de Deus, vó s o matastes,
crucificando-o por mã os de iníquos” (At 2.23).
Em outros termos, podemos demonstrar também que a certeza é
consistente com a livre agência. Costumamos saber com muita
certeza como vamos agir sob certas condiçõ es, sempre e como
temos a liberdade para fazê-lo. Um pai sabe com certeza que livrará
o filho que se encontra em perigo; e que, ao fazê-lo, estará agindo
livremente. Deus é um Ser livre, porém é indubitá vel que ele sempre
fará o que é correto. Os santos anjos e os redimidos em gló ria sã o
agentes livres; no entanto, sabemos que os anjos nunca pecaram e
nã o pecam; de outro modo, nã o haveria certeza de que eles
permaneceriam no céu. Por outro lado, é também indubitá vel que o
diabo, os demô nios e os homens apó statas pecaram e pecam, muito
embora sejam agentes livres. Em geral, um pai sabe como o seu filho
se relacionará sob certas circunstâ ncias; e, ao controlar ditas
circunstâ ncias, ele determina de antemã o o curso de açã o que o filho
seguirá ; todavia, o filho agirá livremente. Se um pai deseja que o
filho seja médico, ele lhe apresenta certos estímulos, persuade-o a
ler certos livros, a frequentar certas escolas e lhe apresentará os
estímulos externos de maneira tal que o seu plano tenha sucesso. Da
mesma forma, e a um grau infinitamente maior, Deus controla as
nossas vidas de tal modo que os nossos atos sã o levados a bom
termo com toda certeza, muito embora ajamos livremente. O
decreto divino nã o produz o evento, mas apenas estabelece a sua
certeza absoluta; o mesmo decreto que estabelece a certeza do ato,
ao mesmo tempo estabelece a liberdade da pessoa que age.
 

4. A vontade natural do homem está escravizada ao mal


Estritamente falando, podemos dizer que o homem tem a livre
agência, sim, porém somente no sentido em que ele nã o está sob
uma compulsã o externa que interfira em sua liberdade de decisã o
ou em sua responsabilidade. Em seu estado de apostasia, o homem
só possui o que poderíamos chamar “a liberdade da escravidã o”. O
homem está escravizado ao pecado e espontaneamente segue a
Sataná s. Ele nã o possui capacidade ou nenhum incentivo para seguir
a Deus. Portanto, indagamos: Isto merece ser chamado “livre”?
Obviamente, nã o, mas vontade própria seria o termo mais
apropriado para descrever a condiçã o do homem desde a queda, em
vez de vontade livre . É preciso ter em mente que o homem nã o foi
criado cativo do pecado, senã o que, por sua pró pria culpa, ele caiu
dessa condiçã o; e uma perda que voluntariamente atraiu sobre si
nã o o exime da responsabilidade. Quando a sua redençã o for
completada, o homem seguirá a Deus espontaneamente como o
fazem os santos anjos; porém jamais será dono de si mesmo no
sentido absoluto.
Que Lutero sustentava esta doutrina é um fato irrefutá vel. Em seu
livro The Bondage of the Will [A escravidã o da vontade] — cujo
principal propó sito era demonstrar que a vontade do homem, por
natureza, está escravizada somente ao mal; e visto que ele tem
prazer nesta servidã o escravizada, entã o crê ser livre —, ele
afirmou: “Todas as obras dos homens procedem necessariamente,
mesmo sem alguma compulsã o externa, e sã o o cumprimento do
que Deus, desde a eternidade, ordenou e conheceu de antemã o, já
que a vontade de Deus é eficaz e a sua presciência absoluta… Nem a
vontade divina, nem a humana, nada fazem por coaçã o, e o que o
homem faz, quer bom, quer mal, ele o faz com tanto prazer e
vontade como se a sua vontade fosse realmente livre. Mas a vontade
de Deus, além de tudo, é eficaz e inalterá vel, e controla a nossa
vontade”. [105] Em outro lugar, ele diz: “Quando se demonstra que o
livre-arbítrio, uma vez tendo perdido a sua liberdade, é escravo do
pecado e nã o pode fazer nada bom, o termo ‘livre-arbítrio’ é vazio,
cuja realidade se perdeu; e uma liberdade perdida, de acordo com a
minha gramá tica, nã o é nenhuma liberdade”. [106] Lutero denomina
o livre-arbítrio de “um mero engano”; [107] e em outro lugar ele
afirma: “É essencial, necessá rio e proveitoso que o crente entenda
isto: que Deus não conhece nada de antemão por contingência, senão
que ele prevê, dispõe e faz todas as coisas conforme a sua vontade
imutável, eterna e infalível . E esta verdade, como pela descarga de
um raio, lança ao chã o e esmigalha o livre-arbítrio… Do que se
depreende que todas as coisas que fazemos, muito embora nos
pareça que as fazemos mutá vel e contingentemente, ou ainda que
sejam feitas por nó s de maneira fortuita, na realidade sã o feitas
necessá ria e imutavelmente no que diz respeito à vontade de Deus.
Esta vontade divina é eficaz e nã o pode ser frustrada; e o poder de
Deus lhe é natural, e a sua sabedoria é tal que ele nã o pode ser
enganado”. [108]
À s vezes se objeta que, a menos que a vontade do homem seja
plenamente livre, Deus lhe ordena fazer o que ele nã o pode fazer. No
entanto, é preciso indicar que em muitas partes das Escrituras se
ordena aos homens que façam coisas que de modo algum podem
fazer por suas pró prias forças. O homem da mã o ressequida, por
exemplo, recebeu a ordem de estendê-la. O paralítico recebeu a
ordem de levantar-se e caminhar; ao enfermo se ordenou que se
levantasse, tomasse o seu leito e andasse. Ao Lá zaro morto se
ordenou que viesse para fora. Os pecadores recebiam a ordem de
crer; todavia, a fé é “dom de Deus”. “Desperta, ó tu que dormes,
levanta-te de entre os mortos, e Cristo te iluminará ” (Ef 5.14).
“Portanto, sede perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste” (Mt
5.48). A incapacidade do homem na esfera moral, por ser auto-
imposta, nã o o exime de obrigaçã o.
 

5. Deus controla a mente dos homens e dá aos crentes a


disposição de irem a ele
De tal modo Deus controla os sentimentos íntimos, o meio ambiente
externo, os há bitos, os desejos e motivos dos homens, que estes,
livremente, fazem o que Deus lhes impõ e que façam. Esta operaçã o,
ainda que inescrutá vel, é real; e que o nosso conhecimento
atualmente nã o nos permite explicar de modo pleno como Deus
exerce esta influência sem destruir a liberdade do homem,
certamente nã o prova que Deus nã o possa exercitá -la.
No entanto, temos conhecimento suficiente de que a soberania de
Deus e a liberdade do homem sã o realidades, e que elas operam
juntas em perfeita harmonia. Paulo semeava e Apolo regava, mas o
crescimento era Deus quem dava. Paulo disse aos filipenses: “Assim,
pois, amados meus, como sempre obedecestes, nã o só na minha
presença, porém, muito mais agora, na minha ausência, desenvolvei
a vossa salvaçã o com temor e tremor; porque Deus é quem efetua
em vó s tanto o querer como o realizar , segundo a sua boa vontade”
(Fp 2.12, 13). E o salmista declara: “Apresentar-se-á
voluntariamente o teu povo, no dia do teu poder” (Sl 110.3).
Além disso, é preciso ressaltar que as açõ es de uma criatura estã o,
em grande medida, predeterminadas quando Deus lhes imprime
uma “natureza” particular em sua criaçã o. E se lhe é dada a natureza
humana, suas açõ es serã o as açõ es comuns dadas aos homens; se ele
lhe dá a natureza do cavalo, as açõ es serã o conforme essa natureza;
e, de igual modo, quando ele cria as plantas, estas obedecem à s leis
comuns dadas ao mundo vegetal; do que se pode depreender que as
criaturas à s quais Deus dá a natureza humana, nã o foram
preordenadas para que caminhem em quatro patas, nem que
relinchem como os cavalos. Um ato nã o é livre se está determinado
externamente; mas é livre se está determinado racionalmente no
interior, e isto é precisamente o que a preordenaçã o de Deus realiza.
O decreto divino abrangente estabelece que cada pessoa tem de ser
moralmente livre, de posse de um cará ter particular cercado por um
meio ambiente particular, sujeita a certas influências externas,
movida interiormente por certos afetos, desejos, há bitos, etc.; e que,
com base em tudo isso, tomará livre e racionalmente uma decisã o. E
é indubitá vel que a decisã o que tomar será uma e nã o outra; e Deus,
que conhece e controla as causas precisas de cada influência sabe
qual haverá de ser a decisã o, e em certo sentido real a determina.
Zanchi expressou com toda clareza esta mesma ideia, quando
declarou que o homem é um agente moral livre, e a seguir adiciona:
“porém age, desde o primeiro momento de sua vida até o ú ltimo, em
absoluta subordinaçã o aos propó sitos e decretos de Deus (ainda
que, talvez, nã o o saiba nem seja essa a sua intençã o); todavia, nã o
sente qualquer compulsã o, mas age livre e voluntariamente como se
nã o estivesse sujeito a algum controle e como se fosse o dono
absoluto de si pró prio”. E Lutero afirma: “Ainda que tanto os
homens bons quanto os maus cumprem os decretos e desígnios de
Deus mediante os seus atos, nã o obstante nã o sã o externamente
constrangidos a agir como agem, senã o que o fazem
voluntariamente”.
Em concordâ ncia com isto cremos que Deus pode, sem destruir ou
fazer violência à liberdade moral dos homens, exercer sobre eles
uma providência particular e operar neles, pelo Espírito Santo, de tal
modo que vã o a Cristo e perseverem em seu serviço. Além disso,
sustentamos que ninguém tem este poder nem desejo de ir a Cristo,
exceto aqueles a quem Deus previamente tornou dispostos e
desejosos; e que somente aos eleitos ele dá o poder e o desejo. E
mesmo que ele exerça tal influência nos eleitos, contudo estes sã o
tã o livres como aquele a quem persuadimos a passear conosco, caso
o queira.
H. Johnson ilustra a relaçã o que Deus mantém tanto com os salvos
quanto com os perdidos no seguinte pará grafo: “Duzentos homens
violaram a lei e se encontram na prisã o. Caso se logre o perdã o de
cada um deles, de modo que a justiça seja satisfeita e a lei, vindicada,
entã o todos podem sair livres. As portas da prisã o sã o abertas de
par em par e a cada um é garantido o perdã o absoluto e lhes é
assegurado que podem sair. Mas nenhum deles dá sequer um passo.
Suponha-se entã o que, para que o perdã o que se conseguiu a favor
deles nã o seja sem resultado, dirijo-me pessoalmente a cento e
cinquenta deles e com amorosa e insistente persuasã o os convenço a
que saiam. Isso é eleiçã o. Mas, e os outros cinquenta que sã o
mantidos ali? O perdã o continua sendo suficiente para todos; as
portas da prisã o permanecem abertas; e promete-se a liberdade a
todos quantos queiram sair e se apropriem dela; e cada um deles
sabe que pode sair e ser livre se quiser. E se porventura os outros
cinquenta forem forçados a permanecer ali dentro?”. [109]
A antiga doutrina pelagiana, que à s vezes é adotada pelos
arminianos, a saber, que a virtude e o vício derivam seu mérito ou
demérito do poder que a pessoa possui para escolher de antemã o
aquele ou este, logicamente conduz alguém a negar a bondade dos
anjos celestiais, ou dos santos em gló ria, ou até mesmo de Deus, já
que é impossível que os anjos ou os santos ou Deus pequem. Neste
caso, a virtude no estado celestial deixaria de ser meritó ria, já que
ela nã o requer um esforço volitivo. É falsa a ideia de que o poder de
escolha entre o bem e o mal é o que imprime à vontade nobreza e
dignidade. Certamente, o poder de escolha eleva o homem muito
acima da criaçã o irracional, porém nã o é a perfeiçã o da sua vontade.
Mozley afirma: “O estado mais elevado e perfeito da vontade é o de
necessidade; e o poder de escolha, longe de ser essencial a uma
vontade verdadeira e genuína, é, ao contrá rio, a sua fragilidade e
defeito. Que melhor prova da imperfeiçã o e imaturidade da vontade
do que este fato: com o bem e o mal adiante, a vontade nã o sabe qual
deles escolher?”. [110] Nesta vida, a graça pela qual nascem as boas
obras nã o é dada de maneira uniforme; e, portanto, mesmo os
regenerados pecam ocasionalmente; mas na vida vindoura a graça
será ou continuamente comunicada, ou completamente retirada,
quando os atos da vontade forem ou sempre bons ou sempre maus.
Talvez seja possível entender melhor como a vontade divina e a
humana se harmonizam na execuçã o de uma obra, se levarmos em
conta a maneira como as Escrituras foram escritas. Estas sã o, no
sentido mais elevado e ao mesmo tempo as palavras de Deus e as
palavras de homens. Nã o apenas algumas partes ou elementos das
Escrituras apontam para Deus e para os homens; senã o que toda a
Escritura, em todas as suas partes, tanto em sua maneira de
expressã o quanto em seus ensinos, é de Deus e também de homens.
“Inspiraçã o”, diz Hamilton, “nã o significa que Deus usou os
escritores individuais como autô matos, ou que lhes ditou o que
deviam escrever; senã o que o Espírito Santo guiou e controlou os
escritores de maneira tal que o que escreveram era verdadeiro e a
verdade particular , a qual Deus quis dar por escrito ao seu povo.
Deus permitiu que os escritores usassem os seus pró prios talentos,
os seus pró prios idiomas e estilos; porém, ao escreverem, o Espírito
Santo manteve soberanamente os seus escritos isentos de erro, e
lhes deu a verdade exata que Deus quis comunicar ao seu povo
através dos séculos. A Bíblia é, portanto, uma unidade e as suas
partes nã o podem ser separadas sem causar dano irrepará vel à
totalidade”. [111]
Sem dú vida, é contraditó rio supor que “acontecimentos fortuitos”
ou eventos produzidos pela livre agência humana possam ser
conhecidos de antemã o ou que acontecem conforme um arranjo
prévio. Na natureza do caso, ambos devem ser radical e
eventualmente incertos; “de modo que”, no dizer de Toplady,
“aquele que advoga o livre-arbítrio, seja ou nã o deliberadamente, na
verdade é um adorador da deusa Fortuna, e, portanto, inimigo da
Providência”.
A menos que Deus verdadeiramente governe as mentes dos homens,
ele teria que buscar constantemente novos expedientes para
contrabalançar os efeitos das influências introduzidas pelas suas
criaturas. Se na realidade os homens possuíssem o livre-arbítrio,
entã o, ao tentar governar ou converter uma pessoa, Deus teria que
agir como os homens em relaçã o aos seus semelhantes; ou seja, com
vá rios planos em mente a fim de que, se o primeiro plano nã o
funcionar, entã o pode tentar um segundo; e se nem esse funcionar,
entã o tenta o terceiro, e assim por diante. Se os atos de seres livres
sã o incertos, entã o Deus desconhece o futuro, exceto de forma muito
geral. E assim Deus é com frequência tomado de surpresa e também
tem de obter grandes quantidades de conhecimento a cada
momento. Este ponto de vista desonra o Ser de Deus, e é tã o
irracional quanto anti-bíblico. A menos que se negue a onisciência
de Deus, devemos manter que ele conhece toda a verdade, pretérita,
presente e futura; e ainda quando os eventos pareçam incertos pela
ó tica humana, pela ó tica divina eles sã o fixos e seguros. Este
argumento é tã o conclusivo que geralmente se admite a sua força.
Mui débil é o argumento que costumamos ouvir, ou seja, que Deus,
voluntariamente, nã o deseja conhecer alguns atos futuros dos
homens, a fim de que estes mantenham a sua liberdade; isso nã o
tem base nem nas Escrituras nem na razã o. Além do mais, este
argumento apresenta Deus como o pai de crianças travessas, o qual
se esconde para nã o vê-las fazendo algo que nã o lhe é do agrado. Se
Deus é limitado, seja por uma força externa ou pelos seus pró prios
atos, entã o temos apenas um Deus finito.
A ideia arminiana de que Deus busca ansiosamente converter
pecadores, mas nã o pode exercer senã o um poder persuasivo sem
fazer violência à natureza humana, na realidade se assemelha mais à
antiga crença persa que postula dois princípios eternos, do bem e do
mal; um se digladiando com o outro, sem nunca um vencer o outro.
O livre-arbítrio humano arrebata das mã os de Deus as rédeas do
governo e o despoja do seu poder. A teoria arminiana do livre-
arbítrio põ e as criaturas fora do controle absoluto de Deus e, em
certo sentido, lhes dá poder para frustrar a vontade e o propó sito
eternos dele. Além disso, ela dá espaço à possibilidade de que os
anjos e os santos celestiais pequem, produzindo novamente uma
rebeliã o como a que se supõ e ter havido quando Sataná s e os anjos
apó statas foram lançados fora; tal ideia, além do mais, implica a
possibilidade de que o mal se converta em força dominante ou
universal.
 

6. A forma como a vontade está determinada


Dado que o homem é um ser racional, deve haver sempre uma causa
suficiente para que ele atue de maneira particular. Se a vontade
pudesse decidir a favor de um motivo mais frá gil contra um mais
forte, ou sem qualquer motivo, entã o teríamos um efeito sem uma
causa suficiente. Todavia, a pró pria consciência nos ensina que
sempre temos razõ es para o que fazemos; e que, depois de
havermos agido, temos a consciência de que poderíamos ter agido
de maneira distinta; sempre e quando outras opiniõ es ou
sentimentos estejam presentes. Pode ser que o motivo de um ato
particular nã o seja forte, e inclusive pode estar fundamentado em
um arrazoado falso, mas em cada caso particular é suficientemente
forte para exercer o controle. As balanças só se movem em direçã o
contrá ria quando existe uma causa adequada ao efeito. Pode ser que
uma pessoa opte por algo que lhe é desagradá vel; mas, em cada
caso, algum outro motivo está presente que o leve a optar por aquilo
que, de outro modo, nã o teria optado. Alguém disse com razã o:
“Uma pessoa nã o pode preferir contra a sua preferência nem decidir
contra a sua decisã o”.
As voliçõ es dos homens sã o governadas pelas suas naturezas e
surgem conforme os seus desejos, disposiçõ es, inclinaçõ es,
conhecimento e cará ter. Os seres humanos nã o sã o independentes
de Deus, nem das leis mentais e físicas; estas estã o sempre a exercer
a sua influência em cada decisã o. Os seres humanos agem sempre de
uma maneira que as suas inclinaçõ es ou motivos mais fortes os
movem; e a pró pria consciência nos indica que as coisas que mais
nos atraem, em determinado momento, sã o as que determinam as
nossas voliçõ es. O Dr. Hodge escreve: “A vontade nã o está
determinada por uma lei de necessidade; nã o é independente, nem
indiferente, nem está auto-determinada; mas está sempre
determinada pelo estado mental que o precede; de modo que o
homem é livre enquanto as suas voliçõ es forem a expressã o
consciente da sua mente; ou enquanto a sua atividade for
determinada e controlada pela sua razã o e os seus sentimentos”. [112]
A menos que as voliçõ es de uma pessoa sejam baseadas e
determinadas pelo seu cará ter, na verdade elas nã o seriam dela,
nem tampouco seria responsá vel por elas. Em nossas relaçõ es com
os nossos semelhantes, supomos instintivamente que as boas ou
má s obras destes estã o determinadas por um cará ter bom ou mau; e
os julgamos conforme esse critério. “Pelos seus frutos os
conhecereis. Colhem-se, porventura, uvas dos espinheiros ou figos
dos abrolhos? Assim, toda á rvore boa produz bons frutos, porém a
á rvore má produz frutos maus. Nã o pode a á rvore boa produzir
frutos maus, nem a á rvore má produzir frutos bons. Toda á rvore que
nã o produz bom fruto é cortada e lançada ao fogo. Assim, pois, pelos
seus frutos os conhecereis” (Mt 7.16-20). E, novamente: “Porque a
boca fala do que está cheio o coraçã o”. A á rvore nã o pode produzir
fruto bom ou mau sem uma causa; mas isso ocorre estritamente
conforme a sua natureza particular. A á rvore nã o é boa porque o seu
fruto seja bom; mas, ao contrá rio, o fruto é bom porque a á rvore é
boa. Este é também precisamente o caso no que diz respeito aos
seres humanos, segundo somos ensinados por Jesus na pará bola.
Além disso, a menos que a conduta realmente revele o cará ter, de
que outro modo poderíamos julgar, se a pessoa que faz boas obras é
realmente boa, ou se a que faz má s obras é realmente má ? Ainda que
no plano teó rico alguns insistam que a vontade é livre, nã o obstante
na vida diá ria todos dã o por admitido que a vontade é tanto o
produto quanto a revelaçã o da natureza do indivíduo. Quando uma
pessoa exerce uma voliçã o que resulta em roubo ou homicídio,
instintivamente concluímos que tal voliçã o é um genuíno indicador
do cará ter e julgamos a pessoa conforme a vemos.
A pró pria essência da racionalidade consiste em que as voliçõ es
devem ter por base o entendimento, os princípios, os sentimentos,
etc.; e a pessoa cujas voliçõ es nã o estã o baseadas nesses fatores é
considerada néscia. Se apó s cada decisã o a vontade volta a um
estado de indecisã o e oscilaçã o entre o bem e o mal, nã o poderíamos
confiar em nossos semelhantes. A pessoa cuja vontade fosse
realmente “livre” seria um perigoso só cio; já que os seus atos seriam
irracionais e nunca poderíamos saber o que ela faria sob alguma
condiçã o.
É este fato (que as voliçõ es sã o a verdadeira expressã o da natureza
da pessoa) que nos garante que o estado tanto dos salvos quanto
dos perdidos permanecerá no mundo vindouro. Se o mero livre-
arbítrio expusesse necessariamente a pessoa ao pecado, entã o nã o
haveria nem a certeza de que os redimidos no céu se manteriam
livres de pecado e nã o seriam lançados no inferno como sucedeu aos
anjos apó statas. Os santos, contudo, possuem uma inclinaçã o
permanente para o bem e sã o, portanto, livres no sentido mais
elevado. Existe neles uma ausência de luta e suas vontades,
confirmadas em santidade, continuarã o produzindo boas obras com
a facilidade e uniformidade da lei física. Por outro lado, o estado dos
ímpios também é permanente. Uma vez retiradas as influências
restringentes do Espírito Santo, se tornam temerá rios, desafiantes,
blasfemos e irremediavelmente obstinados; continuam submissos
ao pecado. A sua inclinaçã o para a maldade, a iniquidade e o ó dio é
permanente. Já nã o sã o convidados, e sim estrangeiros na terra do
pecado e cidadã os habitantes. Além disso, se a teoria do livre-
arbítrio fosse correta, entã o existiria a possibilidade de
arrependimento depois da morte, já que é razoá vel pensar que ao
menos alguns dos perdidos, ao experimentarem os tormentos do
inferno, reconheceriam os seus erros e se volveriam para Deus.
Neste mundo, com frequência castigos leves sã o eficazes para fazer
com que os homens abandonem as suas vidas de pecado; acaso os
mais severos castigos no mundo vindouro nã o seriam ainda mais
eficazes? Somente o princípio calvinista de que a vontade está
determinada pela natureza da pessoa e pelos incentivos
apresentados chega a uma conclusã o que se harmoniza com as
Escrituras; as quais afirmam que há “um grande abismo” que nã o
permite a uma pessoa passar de um lado para o outro — que os
estados, tanto dos salvos quanto dos perdidos, sã o igualmente
permanentes.
A pessoa que nã o deu atençã o especial a este assunto dá por
admitido que ela possui grande liberdade. Mas quando ela passa a
examinar esta suposta liberdade com mais atençã o, entã o se dá
conta de que está muito mais limitada do que parecia a princípio. Ela
está limitada pelas leis do mundo físico, pelo seu meio ambiente
particular, pelos seus há bitos, pela sua preparaçã o pretérita, pelos
seus costumes sociais, pelo seu temor ao castigo ou à desaprovaçã o,
pelos seus desejos atuais, ambiçõ es, etc.; de modo que está muito
longe de ser a dona absoluta dos seus atos. A cada momento, em
grande medida, ela é o que o seu passado lhe tem feito. Mas,
enquanto ela age sob o controle da sua pró pria natureza e
determina os seus atos de dentro, ela possui toda a liberdade da sua
pró pria natureza da qual é possível a uma criatura. Qualquer outra
classe de liberdade equivale a anarquia.
Uma pessoa pode carregar uma cesta com peixes para onde queira;
no entanto, os peixes se sentem totalmente livres e se movem sem
restriçõ es dentro da cesta. A física nos fala do movimento molecular
em meio à calma de uma massa só lida — quando observamos uma
pedra, ou um pedaço de madeira, ou um metal, nó s os vemos como
se estivessem em perfeita quietude; no entanto, se tivéssemos um
microscó pio suficientemente potente para ver as moléculas
individuais e os á tomos, bem como outros corpos particulares, entã o
veríamos que eles se movem em suas ó rbitas a incríveis velocidades.
A predestinaçã o e a livre agência sã o as colunas gêmeas de um
grande templo; e elas se unem para além das nuvens onde a visã o
humana nã o pode penetrar. Ou, poderíamos dizer que a
predestinaçã o e a livre agência sã o linhas paralelas; e ainda que o
calvinista nã o possa uni-las, o arminiano nã o pode fazê-las cruzar-se
uma com as outras.
Além disso, se admitirmos o livre-arbítrio no sentido de que a
determinaçã o absoluta dos eventos está nas mã os do homem, seria
melhor soletrar o termo livre-arbítrio com L e A maiú sculos, já que
neste caso o homem chegou a ser como Deus — uma causa primá ria,
uma fonte original de açã o —, e teríamos tantos semideuses quanto
livres-arbítrios. A menos que optemos por rejeitar a soberania de
Deus, nã o podemos atribuir ao homem esta independência. Merece
notar — e num sentido é animador observar o fato — que os
filó sofos materialistas e metafísicos negam tã o completamente como
fazem os calvinistas esta coisa chamada livre-arbítrio . Tais filó sofos
sustentam que cada efeito tem uma causa suficiente; e para cada ato
da vontade existe um motivo que, ao menos em um momento, é
suficientemente forte para controlá -la.
 
7. Prova bíblica
As Escrituras ensinam que a soberania divina e a liberdade humana
cooperam em perfeita harmonia; que, ainda quando Deus seja o
soberano governante e seja a causa primá ria, o homem é livre
dentro dos limites da sua natureza e é a causa secundá ria; e Deus
controla os pensamentos e as vontades dos homens de tal modo que
estes, livre e voluntariamente, fazem o que Deus planejou que façam.
Temos um exemplo clá ssico da cooperaçã o entre a soberania divina
e a liberdade humana na histó ria de José. Este foi vendido para o
Egito, onde conseguiu assumir autoridade e prestou um grande
serviço ao prover alimentos durante um período de grande fome.
Certamente a venda de seu irmã o menor como escravo foi um ato
em extremo pecaminoso por parte dos filhos de Jacó ; ao fazê-lo, eles
agiram livremente, já que anos mais tarde confessaram a sua culpa
(Gn 42.21; 45.3). No entanto, José pô de dizer-lhes: “Agora, pois, nã o
vos entristeçais, nem vos irriteis contra vó s mesmos por me
haverdes vendido para aqui; porque, para conservaçã o da vida, Deus
me enviou adiante de vó s. Assim, nã o fostes vó s que me enviaste
para cá , e sim Deus, que me pô s por pai de Faraó , e senhor de toda a
sua casa, e como governador em toda a terra do Egito. Vó s, na
verdade, intentastes o mal contra mim; porém Deus o tornou em
bem, para fazer, como vedes agora, que se conserve muita gente em
vida” (Gn 45.5, 8; 50.20). Os irmã os de José foram movidos pelas
suas má s inclinaçõ es; no entanto, o seu ato foi um elo na cadeia de
eventos através da qual Deus cumpriu o seu propó sito. No entanto,
cabe assinalar que, apesar da sua maldade ser invalidada a favor do
bem, isto nã o os exonerou da culpabilidade.
Faraó agiu injustamente para com seus sú ditos, os filhos de Israel;
no entanto, ele cumpriu o propó sito de Deus, já que Paulo escreveu:
“Porque a Escritura diz a Faraó : Para isto mesmo te levantei, para
mostrar em ti o meu poder e para que o meu nome seja anunciado
por toda a terra” (Rm 9.17; Ê x 9.16; 10.1, 2). Deus leva a bom termo
alguns dos seus planos ao refrear as açõ es pecaminosas dos homens.
Quando os israelitas subiam a Jerusalém três vezes ao ano para
celebrar as suas festas, Deus refreava a avareza das naçõ es vizinhas
a fim de que a terra permanecesse sem ser molestada (Ê x 34.24).
Deus pô s no coraçã o de Ciro, rei da Pérsia, que reconstruísse o
templo em Jerusalém (Ed 1.1-3). O livro de Provérbios afirma:
“Como ribeiros de á guas assim é o coraçã o do rei na mã o do SENHOR ;
este, segundo o seu querer, o inclina” (Pv 21.1). E se Deus inclina o
coraçã o do rei com tanta facilidade, certamente pode igualmente
inclinar o coraçã o dos demais seres humanos.
Temos em Isaías uma extraordiná ria ilustraçã o de como a soberania
divina e a liberdade humana operam conjuntamente em perfeita
harmonia: “Ai da Assíria, cetro de minha ira! A vara na sua mã o é o
instrumento do meu furor. Envio-a contra uma naçã o ímpia e contra
o povo da minha indignaçã o lhe dou ordens para que dele roube a
presa, e lhe tome o despojo, e o ponha para ser pisado aos pés, como
a lama das ruas. Ela, porém, assim nã o pensa, o seu coraçã o nã o
entende assim; antes, intenta consigo mesma destruir e desarraigar
nã o poucas naçõ es. Porque diz: Nã o sã o meus príncipes todos eles
reis? Nã o é calno como Carquemis? Nã o é Hamate como Arpade? E
Samaria, como Damasco? O meu poder atingiu os reinos dos ídolos,
ainda que as suas imagens de escultura eram melhores do que as de
Jerusalém e do que as de Samaria. Porventura, como fiz a Samaria e
a seus ídolos, nã o o faria igualmente a Jerusalém e a seus ídolos? Por
isso, acontecerá que, havendo o Senhor acabado toda a sua obra no
monte Siã o e em Jerusalém, entã o castigará a arrogâ ncia do coraçã o
do rei da Assíria e a desmedida altivez dos seus olhos; porquanto o
rei disse: Com o poder da minha mã o fiz isto; e com a minha
sabedoria, porque sou inteligente; removi os limites dos povos, e
roubei os seus tesouros, e como valente abati os que se assentavam
em tronos. Meti a mã o nas riquezas dos povos como a um ninho e,
como se ajuntam os ovos abandonados, assim eu ajuntei toda a
terra, e nã o houve quem movesse a asa, ou abrisse a boca, ou piasse.
Porventura, gloriar-se-á o machado contra o que corta com ele? Ou
presumirá a serra contra o que a maneja? Seria isso como se a vara
brandisse os que a levantam ou o bastã o levantasse a quem nã o é
pau?” (Is 10.5-15).
Com respeito a esta porçã o bíblica, Rice afirma: “Qual é o significado
ó bvio desta passagem? Em primeiro lugar, que o rei da Assíria, ainda
que arrogante e ímpio, nã o passava de instrumento nas mã os de
Deus para cumprir os seus propó sitos para com os judeus, assim
como o machado, a serra ou o cajado nas mã os do homem; e que
Deus tinha perfeito controle sobre o rei da Assíria. Em segundo
lugar, que a liberdade moral do rei nã o foi destruída ou impedida
por este controle, senã o que o rei tinha a perfeita liberdade para
formar os seus pró prios planos e ser governado pelos seus pró prios
desejos; somos informados que a sua intençã o nã o era cumprir os
propó sitos de Deus, e sim levar a bom termo os seus ambiciosos
projetos pessoais. ‘Ainda que ele nã o pensasse assim, nem o seu
coraçã o imaginasse desta maneira, mesmo assim o seu pensamento
de eliminar muitas naçõ es será desarraigado.’ Em terceiro lugar, a
passagem ensina que o rei foi considerado responsá vel pela sua
arrogâ ncia e maldade, muito embora Deus o controlasse a fim de
cumprir os seus sá bios propó sitos. Deus decretou castigar os judeus
pelo seu pecado. Para executar tal propó sito, ele escolheu o rei da
Assíria e o enviou contra os judeus. O rei, todavia, haveria de ser
mais tarde castigado pelos seus planos malignos. Nã o é evidente,
pois, que as Escrituras ensinam que Deus pode controlar e de fato
controla inclusive os homens ímpios de modo que os seus
propó sitos se cumpram, sem violar a liberdade destes?”. [113]
Aquele que aceita a Bíblia como a Palavra de Deus nã o deve nutrir
dú vida de que a crucifixã o de Cristo — o evento mais pecaminoso de
toda a histó ria — foi preordenada: “... porque verdadeiramente se
ajuntaram nesta cidade contra o teu santo Servo Jesus, ao qual
ungiste, Herodes e Pô ncio Pilatos, com gentios e gente de Israel, para
fazerem tudo o que a tua mã o e o teu propó sito predeterminaram”
(At 4.27, 28). “... Sendo este entregue pelo determinado desígnio e
presciência de Deus, vó s o matastes, crucificando-o por mã os de
iníquos” (At 2.23); e “mas Deus, assim, cumpriu o que dantes
anunciara por boca de todos os profetas: que o seu Cristo havia de
padecer” (At 3.18). “Pois os que habitavam em Jerusalém e as suas
autoridades, nã o conhecendo Jesus nem os ensinos dos profetas que
se leem todos os sá bados, quando o condenaram, cumpriram as
profecias; e, embora nã o achassem nenhuma causa de morte,
pediram a Pilatos que ele fosse morto. Depois de cumprirem tudo o
que a respeito dele estava escrito, tirando-o do madeiro, puseram-
no em um tú mulo” (At 13.27-29).
Além disso, muitos outros eventos relacionados com a crucifixã o
foram preordenados: a partilha das roupas de Cristo e o lançamento
de sortes sobre as suas roupas (Sl 22.18; Jo 19.24); o vinagre
misturado com fel que lhe deram a beber (Sl 69.21; Mt 27.34; Jo
19.29); as injú rias da parte das multidõ es (Sl 22.6-8; Mt 27.39); a
sua crucifixã o ao lado de dois bandidos (Is 53.12; Mt 27.38); o fato
de que nenhum dos seus ossos foi quebrado (Sl 34.20; Jo 19.36); o
seu lado perfurado por lança (Zc 12.10; Jo 19.34-37), etc. Julgue você
mesmo se as infernais blasfêmias da parte de alguns dos que
presenciavam a crucifixã o sã o ou nã o prova de que os que as
proferiam eram agentes livres! Por outro lado, leia todas as
prediçõ es e profecias e relatos da tragédia e diga-nos se cada
incidente foi ou nã o ordenado por Deus. Além disso, estes eventos
nã o poderiam ter sido preditos detalhadamente pelos profetas do
Antigo Testamento, séculos antes de acontecerem, a menos que
fossem absolutamente infalíveis no plano preordenado por Deus. No
entanto, muito embora preordenados, foram concretizados por
pessoas que desconheciam quem realmente era Cristo e também
desconheciam o fato de que estavam cumprindo os decretos divinos
(At 13.27, 29; 3.17). Se engolirmos o camelo, crendo que o evento
mais pecaminoso da histó ria foi preordenado no plano de Deus; e foi
dirigido de modo a redundar na redençã o do mundo, acaso
peneiraremos o mosquito nos recusando a crer que os eventos
insignificantes das nossas vidas diá rias também sã o parte desse
plano e foram delineados com bons propó sitos?
 

8. Prova bíblica adicional


Pv 16.9; Jr 10.23; Ê x 12.36; Ed 6.22; Ed 7.6; Is 44.28; Ap 17.17; 1Sm
2.25; 1Rs 12.11,15; 2Sm 17.14.    

CAPÍTULO XVII. QUE A DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃO FAZ


DEUS O AUTOR DO PECADO
 
1. O problema do mal. 2. Casos nos quais o pecado foi controlado a favor do
bem. 3. A queda de Adã o é parte do plano divino. 4. O resultado da queda de
Adã o. 5. As forças do mal estã o sob o perfeito controle de Deus. 6. Os atos
pecaminosos só ocorrem pela permissã o divina. 7. Comprovaçõ es bíblicas. 8.
Comentá rios de Smith e Hodge. 9. A graça de Deus é apreciada mais
profundamente depois que a pessoa vem a ser vítima do pecado. 10. O
calvinismo oferece uma soluçã o mais satisfató ria ao problema do mal que
qualquer outro sistema.
 
1. O problema do mal
É possível que surja a seguinte objeçã o: se Deus preordenou todos
os eventos deste mundo, entã o, por isso, ele seria o autor do pecado.
Para começar, admitimos que a existência do pecado num universo
sob o controle de um Deus infinito em sabedoria, poder, santidade e
justiça é um mistério inescrutá vel que nã o podemos explicar
plenamente em nosso atual estado de conhecimento. Agora vemos
somente através de um espelho, obscuramente. O pecado nunca
pode ser explicado em termos da ló gica ou da razã o, porquanto ele é
essencialmente iló gico e irracional. O mero fato de que o pecado
existe tem sido utilizado por ateus e céticos em inumerá veis
ocasiõ es como argumento nã o só contra o calvinismo, mas também
contra o teísmo em geral.
Os Padrõ es de Westminster, ao tratar do profundo mistério do mal,
procedem com muitíssima cautela a fim de salvaguardar o cará ter
de Deus mesmo da mais leve insinuaçã o do mal. O pecado é
atribuído à liberdade dada ao homem. Com respeito a todos os atos
pecaminosos, os padrõ es afirmam enfaticamente que “a
pecaminosidade destes procede unicamente da criatura, e nã o de
Deus, o qual, por ser absolutamente santo e justo, nã o é, nem pode
ser, o autor do pecado nem se compraz no mesmo”. [114]
Ainda que nã o nos caiba explicar como Deus, em seu conselho
secreto, governa e controla os atos pecaminosos dos homens,
devemos saber que em tudo o que faz, Deus jamais se desvia da sua
perfeita justiça. Em todas as manifestaçõ es do seu cará ter, Deus se
manifesta de maneira preeminente como o Santo. As profundas
operaçõ es dele sã o mistérios; estas devem ser adoradas, porém nã o
devemos tentar fazer detida investigaçã o delas; e nã o fosse o fato de
algumas pessoas persistirem em afirmar que a doutrina da
predestinaçã o faz Deus o autor do pecado, poderíamos deixar o
assunto aqui.
Uma explicaçã o parcial do pecado se encontra no fato de que, muito
embora nas Escrituras se ordene continuamente ao homem a nã o
pecar, contudo lhe é permitido pecar, caso o queira. Nã o se exerce
sobre a pessoa nenhuma compulsã o; esta é simplesmente deixada
ao livre exercício da sua pró pria natureza, e a responsabilidade é tã o
somente da pessoa. Contudo, nã o devemos pensar que isso constitui
mera permissã o, já que tal coisa acontece com pleno conhecimento
da natureza da pessoa e a sua tendência a pecar, colocando-a Deus
em ou lhe permitindo um ambiente particular, tendo perfeito
conhecimento de que o pecado particular será cometido. Mas ainda
que Deus permita o pecado, a sua relaçã o com este é meramente
negativa e o mesmo lhe constitui uma abominaçã o que ele odeia
com ó dio total. O motivo de Deus permitir o pecado e o motivo de o
homem praticá -lo sã o radicalmente distintos. Muitos se confundem
neste ponto em razã o de nã o entenderem que Deus, em sua justiça,
ordena as coisas que os homens impiamente fazem. Além disso, a
consciência de cada pessoa, depois de cometer algum pecado, lhe
afirma que ela é a ú nica responsá vel e que nã o tinha que cometê-lo
se voluntariamente decidisse abster-se dele.
Os reformadores reconheceram o fato de que o pecado, tanto em sua
entrada no mundo quanto em suas manifestaçõ es subsequentes, é
parte do plano divino; que a explicaçã o de sua existência, à medida
que seja possível dar alguma explicaçã o, encontra-se no fato de que
o pecado está completamente sob o controle de Deus; e que há de
ser controlado de tal maneira que finalmente redunde na
manifestaçã o da gló ria divina. Podemos estar certos de que Deus
jamais teria permitido a entrada do pecado a menos que, mediante a
sua providência secreta e controladora, fosse capaz de exercer uma
influência sobre as mentes dos ímpios, de modo que o mal feito por
estes finalmente redundasse no bem. Deus nã o só opera todos os
afetos bons e santos no coraçã o dos seus filhos, mas também
controla perfeitamente todos os afetos depravados e malignos dos
ímpios e os dirige conforme a sua vontade; de sorte que estes
sentem o desejo de fazer o que Deus planejou fazer por meio deles.
Com frequência os ímpios se gloriam no êxito dos seus propó sitos;
mas, no dizer de Calvino, “em ú ltima instâ ncia, as suas obras provam
que estavam simplesmente cumprindo o que Deus havia ordenado, e
isso contra as suas pró prias vontades, enquanto o ignoravam
completamente”. Mas, apesar de Deus controlar os afetos
depravados dos homens a fim de que os seus propó sitos se
cumpram, ele, nã o obstante, os castiga pelos seus pecados e os força
a se sentirem condenados em suas pró prias consciências.
“Um monarca pode proibir a traiçã o; mas a sua proibiçã o nã o o
obriga a fazer tudo o que esteja em seu poder para impedir a
desobediência à sua proibiçã o. Pode ser que ele nã o impeça a traiçã o
e nã o castigue o traidor com o intuito de promover o bem do seu
reino. Que em vista do bem que há de resultar ele decide nã o
impedir a traiçã o nã o implica nenhuma contradiçã o ou oposiçã o da
parte do monarca.” [115]
No que concerne ao problema do mal, o Dr. A. H. Strong faz as
seguintes observaçõ es: “(1) Que a liberdade da vontade é necessá ria
para a virtude; (2) que Deus sofre impacto por causa do pecado mais
que o pecador; (3) que Deus nã o só permitiu o pecado, mas também
fez provisã o para a redençã o; e (4) que Deus, eventualmente,
vencerá todo o mal para todo o sempre”. E agrega: “É possível que os
anjos eleitos pertençam a um sistema moral no qual o pecado é
impedido mediante motivos constritivos. Nã o podemos negar que
Deus poderia impedir o pecado em um sistema moral. Todavia, é
duvidoso que ele pudesse impedir o pecado no melhor dos sistemas
morais. A liberdade mais perfeita é indispensá vel para a consecuçã o
da mais elevada virtude”. [116] Fairbairn nos deixou um excelente
pensamento no seguinte pará grafo: “Mas, por que Deus criou
alguém capaz de pecar? Porque somente assim ele podia criar um
ser capaz de obedecer. A capacidade de fazer o bem implica na
capacidade de fazer o mal. A má quina nã o pode nem obedecer nem
desobedecer, e a criatura que nã o tem esta dupla capacidade
poderia muito bem considerar-se uma má quina, porém jamais um
filho. Pode-se conseguir a perfeiçã o moral, porém nã o pode ser
criada; Deus pode criar um ser capaz de atos morais, mas nã o um
ser com todos os frutos da moralidade armazenados em seu
interior”.
 
2. Casos nos quais o pecado tem sido controlado em prol do
bem
Ao longo de todas as Escrituras encontramos numerosos exemplos
de atos pecaminosos que foram permitidos e entã o controlados de
modo que redundassem em bem. Consideremos alguns exemplos do
Antigo Testamento. O ato de Jacó enganar a seu pai já idoso e cego,
muito embora fosse um ato em si pecaminoso, nã o obstante foi
permitido e usado como um elo na cadeia de eventos pelos quais se
cumprisse o plano divino revelado, de que o mais velho servisse ao
mais moço. A Faraó e aos egípcios se permitiu que afligissem os
israelitas para que, pela libertaçã o destes, se multiplicassem as
maravilhas divinas na terra do Egito (Ê x 11.9), a fim de que todas as
coisas fossem narradas à s geraçõ es futuras (Ê x 10.1, 2) e a fim de
que a gló ria divina se manifestasse em toda a terra (Ê x 9.16). A
maldiçã o que Balaã o pretendia pronunciar sobre os israelitas se
converteu em bênçã o (Nm 24.10; Ne 13.2). O soberbo rei pagã o
assírio, inconscientemente, chegou a ser o servo do Senhor para
executar vingança sobre o povo apó stata: “Ela, porém, assim nã o
pensa, seu coraçã o nã o entende assim” (Is 10.5-15). As calamidades
que sobrevieram a Jacó , pela ó tica humana, parecem ser meras
desgraças, acidentes comuns, acontecimentos fortuitos. No caso de
Jó , quando estudamos o relato mais detidamente, vemos Deus por
detrá s de tudo, exercendo completo controle, permitindo ao diabo
afligir, ainda que até certo ponto; ordenando todos os
acontecimentos a fim de lograr o desenvolvimento da paciência e do
cará ter de Jó e usando até mesmo a tempestade, aparentemente sem
sentido, para levar a bom termo os seus propó sitos sublimes e
amorosos.
No Novo Testamento encontramos o mesmo ensinamento. A morte
de Lá zaro, vista pela ó tica humana de Maria e Marta, e daqueles que
foram condoer-se delas, era uma grande desgraça; mas, pela ó tica
divina, aquela enfermidade “nã o é para morte, e sim para a gló ria de
Deus, a fim de que o Filho de Deus seja por ela glorificado” (Jo 11.4).
A morte de Pedro (aparentemente por crucifixã o) teria como fim a
glorificaçã o de Deus (Jo 21.19). Jesus, ao cruzar o mar da Galileia
com os seus discípulos, poderia ter impedido a tempestade e
permitido uma travessia serena, mas isso nã o teria redundado em
sua gló ria nem confirmado a fé dos discípulos como o foi o seu
salvamento. As severas repreensõ es de Paulo fizeram com que os
coríntios fossem “contristados para arrependimento”, “contristados
segundo Deus”, “porque a tristeza segundo Deus produz
arrependimento para salvaçã o, que a ninguém traz pesar; mas a
tristeza do mundo produz morte” (2Co 7.9, 10). À s vezes o Senhor
entrega alguém a Sataná s por certo tempo a fim de que os seus
sofrimentos corporais e mentais lhe produzam salvaçã o (1Co 5.5).
Paulo, falando das adversidades que sofrera, disse: “E, para que nã o
me ensoberbecesse com a grandeza das revelaçõ es, foi-me posto um
espinho na carne, mensageiro de Sataná s, para me esbofetear, a fim
de que nã o me exalte. Por causa disto, três vezes pedi ao Senhor que
o afastasse de mim. Entã o, ele me disse: A minha graça te basta,
porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza. De boa vontade, pois,
mais me gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim repouse o
poder de Cristo. Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injú rias,
nas necessidades, nas perseguiçõ es, nas angú stias, por amor de
Cristo. Porque, quando sou fraco, entã o é que sou forte” (2Co 12.7-
10). Esta passagem demonstra como Deus converteu o veneno do
monstro mais cruel e mais pecador de todos os tempos em antídoto
para curar o orgulho do apó stolo.
E se poderia dizer, até certo ponto, que a razã o pela qual se permite
o pecado é para que “onde o pecado abundou, superabundou a
graça”. Graça tã o profunda e insondá vel jamais teria se manifestado
se o pecado fosse excluído.
De fato, lucramos muito mais pela salvaçã o em Cristo do que o que
perdemos pela queda de Adã o. Quando o Verbo se encarnou, a
natureza humana foi incorporada no pró prio seio da divindade, e
agora os redimidos alcançam uma posiçã o muito mais elevada pela
uniã o com Cristo do que Adã o poderia ter alcançado sem cair, sem
perseverar e sem ser admitido ao céu.
Calvino expressou esta verdade nas seguintes palavras: “Porém
Deus, que uma vez ordenou que a luz brilhasse nas trevas, poderia,
se o quisesse, fazer surgir maravilhosamente o livramento do
pró prio inferno e assim converter em luz as pró prias trevas. No
entanto, o que faz Sataná s? Em certo sentido, a obra de Deus!
Equivale dizer, Deus, subjugando a Sataná s em obediência à sua
providência, o controla conforme a sua vontade e usa as artimanhas
e os intentos do grande inimigo para levar a bom termo os seus
pró prios princípios eternos”. [117]
Até mesmo as pró prias perseguiçõ es que os justos sofrem foram
designadas para bons propó sitos. Paulo ensina que a “ nossa leve e
momentânea tribulaçã o produz para nó s eterno peso de gló ria,
acima de toda comparaçã o” (2Co 4.17). Sofrer com Cristo equivale
estar unido mais estreitamente a ele, e promete-se uma grande
recompensa no céu aos que sofrem por ele (Mt 5.10-12). Foi escrito
aos filipenses: “Porque vos foi concedida a graça de padecerdes por
Cristo e nã o somente de crerdes nele” (Fp 1.29). E somos
informados que os apó stolos, depois de serem maltratados
publicamente, “se retiraram do Sinédrio regozijando-se por terem
sido considerados dignos de sofrer afrontas por esse Nome” (At
5.41). O escritor da carta aos Hebreus afirma esta mesma verdade
ao escrever: “Toda disciplina, com efeito, no momento nã o parece
ser motivo de alegria, mas de tristeza; ao depois, entretanto, produz
fruto pacífico aos que têm sido por ela exercitados, fruto de justiça”
(Hb 12.11).
No dizer do Dr. Charles Hodge: “Os atos dos ímpios, ao perseguirem
a Igreja Primitiva, foram ordenados por Deus visando a uma mais
ampla e rá pida proclamaçã o do evangelho. O sofrimento dos
má rtires foi o meio nã o só para expandir a igreja, mas também para
purificá -la. A apostasia do homem do pecado, por haver sido predita,
estava predeterminada. A destruiçã o dos huguenotes na França, a
perseguiçã o dos puritanos na Inglaterra, tudo isso serviu de
fundamento para o desenvolvimento da América do Norte com uma
raça de homens piedosos e vigorosos que fizeram dessa terra um
lugar de refú gio para as naçõ es, o lar da liberdade civil e religiosa.
Crer que Deus nã o preordena tudo o que acontece certamente
destruiria a confiança que os seus filhos devem depositar nele. E é
precisamente em razã o do fato de que Deus reina, e faz a sua
vontade no céu e na terra, que o seu povo pode repousar em perfeita
segurança sob a sua diretriz e proteçã o”. [118]
Muito embora muitos dos atributos divinos se manifestassem na
criaçã o e no governo do mundo, outros, como o da justiça ou o da
misericó rdia ou o da graça nã o se manifestaram nem estiveram em
operaçã o, o quanto podemos saber, até a queda e a subsequente
redençã o do homem. Tais atributos nã o foram conhecidos senã o
pelo pró prio Deus, desde a eternidade. Se nã o fosse permitido a
entrada do pecado na criaçã o, esses atributos teriam permanecido
sepultados numa noite eterna. E o universo, sem o conhecimento
desses atributos, seria como a terra sem a luz do sol. Portanto,
permitiu-se o pecado a fim de que a misericó rdia de Deus se
manifestasse através do perdã o, e a sua justiça manifestada através
do castigo. A entrada do pecado outra coisa nã o é senã o o resultado
de um propó sito firme que Deus estabeleceu na eternidade, e pelo
qual ele propô s revelar à s suas criaturas racionais, tã o completa e
cabalmente quanto fosse possível, em todas as perfeiçõ es
concebíveis.
 

3. A queda de Adão é parte do plano divino


A queda de Adã o, e através dela a queda da raça, nã o foi fortuita nem
acidental, mas foi decretada nos conselhos secretos de Deus. Somos
informados que Cristo foi “destinado [como sacrifício pelo pecado]
desde antes da fundaçã o do mundo” (1Pe 1.20). Paulo fala do
“propó sito eterno” que foi estabelecido em Cristo Jesus, nosso
Senhor (Ef 3.11). O escritor de Hebreus faz referência ao “sangue da
eterna aliança” (13.20). E uma vez que o plano de redençã o se
originou na eternidade, o plano de permitir que o homem caísse em
pecado, do qual havia de ser redimido, também remonta à
eternidade; de outro modo nã o teria havido ocasiã o para a
redençã o. De fato, o plano para todo o curso dos acontecimentos do
mundo, inclusive a queda, a redençã o e todos os demais eventos,
estava diante de Deus em sua totalidade antes que o universo fosse
criado; e Deus, deliberadamente, ordenou que esta série de eventos,
e nã o outra, se concretizasse no tempo e no espaço.
E a menos que a queda estivesse no plano de Deus, o que seria da
nossa redençã o em Cristo? Acaso isso foi apenas um expediente
temporal ao qual Deus recorreu a fim de opor-se à rebeliã o do
homem? Formular a pergunta equivale a contestá -la. Através das
Escrituras, a redençã o é apresentada como o livre e gratuito
propó sito de Deus desde a eternidade. No exato momento em que o
homem cometeu o primeiro pecado, Deus interveio soberanamente
com uma promessa de libertaçã o. Embora a gló ria de Deus se
manifeste em toda a criaçã o, é na obra da redençã o que ela
especialmente se manifesta. A queda do homem, portanto, foi só
uma parte, e uma parte necessá ria, do plano; e mesmo Watson,
ainda que arminiano confesso, diz que “a redençã o do homem,
através de Cristo, nã o foi uma ideia pó stuma que teria ocorrido a
Deus apó s a apostasia do homem; foi, antes, uma disposiçã o; e,
quando o homem caiu, ele se deparou com a justiça de mã os dadas
com a misericó rdia”. [119] Das ruínas da queda, Deus edificou uma
nova criaçã o espiritual muito mais gloriosa do que a primeira.
Nã o obstante, o arminianismo consequente apresenta Deus como
um espectador desinteressado e inativo, chocado pela queda de
Adã o e mui surpreso e frustrado pela criatura saída das suas mã os.
Nó s, por nossa vez, sustentamos que Deus planejou de antemã o a
queda; que a queda de modo algum o tomou de surpresa; e, depois
de ocorrer, Deus nã o sentiu haver cometido um erro ao criar o
homem. Se Deus quisesse, poderia ter impedido a entrada de
Sataná s no jardim e preservado Adã o num estado de santidade
como fez com os santos anjos. O mero fato de que Deus planejou a
queda é prova suficiente de que ele nã o esperava que o homem lhe
glorificasse mantendo-se num estado de santidade.
Nã o obstante, cabe assinalar que Deus nã o forçou o homem a cair ou
apostatar. Simplesmente reteve de Adã o a graça restringente e
imerecida mediante a qual Adã o infalivelmente nã o caísse, graça
esta que ele nã o tinha a obrigaçã o de conferir-lhe. No tocante a si
mesmo, Adã o poderia ter-se mantido livre de pecar se quisesse;
porém, no tocante a Deus, era absolutamente certo que ele haveria
de cair. Adã o agiu tã o livremente como se nã o existisse um decreto,
e tã o infalivelmente como se nã o tivesse liberdade. Os judeus, no
que diz respeito à sua liberdade, poderiam ter quebrado os ossos de
Cristo; mas o fato é que isso nã o era possível ocorrer, já que estava
escrito: “Nenhum de seus ossos será quebrado” (Sl 34.20; Jo 19.36).
O decreto de Deus nã o remove a liberdade do homem; e, na queda,
Adã o exerceu livremente as emoçõ es naturais da sua vontade.
A razã o da queda se encontra no fato de que “Deus sujeitou a todos
em desobediência, a fim de ter misericó rdia de todos” (Rm 11.32); e,
outra vez, “já em nó s mesmos, tivemos a sentença de morte, para
que nã o confiemos em nó s e sim no Deus que ressuscita os mortos”
(2Co 1.9); e seria difícil achar linguagem que afirme mais
explicitamente o controle divino e a iniciativa divina do que esta.
Por razõ es sá bias, aprouve a Deus permitir aos nossos primeiros
pais ser tentados e cair, e entã o vencer os seus pecados para a sua
pró pria gló ria. Todavia, a permissã o e controle do pecado nã o fazem
Deus o autor do mesmo. É como se Deus permitisse a queda a fim de
demonstrar o que o livre-arbítrio haveria de fazer; e logo, exercendo
seu controle sobre o pecado, ele demonstrou o que as bênçã os da
sua graça e os juízos da sua justiça podem fazer.
Neste ponto, queremos adicionar algo mais sobre a natureza da
queda. Foi dada a Adã o a mais favorá vel oportunidade de granjear a
vida eterna e a bênçã o para ele e para a sua posteridade. Ele foi
criado santo e posto em um mundo isento de pecado. Esteve
rodeado de toda a beleza do paraíso e lhe foi dada a permissã o de
comer de todos os frutos, exceto um, o que certamente nã o era uma
proibiçã o tã o grave. Deus mesmo veio ao jardim e se fez
companheiro de Adã o. Em linguagem clara e inequívoca, ele foi
advertido que nã o comesse do fruto, senã o certamente morreria.
Adã o foi posto sob uma prova de obediência pura, já que, ao comer
do fruto, o qual moralmente nã o teria sido em si nem bom nem
ruim. A obediência é a virtude que na criatura racional é,
poderíamos dizer, a mã e e guardiã de todas as demais.
 

4. O resultado da queda de Adão


Apesar de todas as suas vantagens, Adã o desobedeceu
deliberadamente, e a sentença de morte com que fora ameaçado
caiu sobre ele. Tal sentença inclui obviamente algo mais que a
dissoluçã o do corpo. A palavra “morte”, como usada nas Escrituras
em referência aos efeitos do pecado, inclui cada uma das formas de
mal infligido como castigo pelo pecado. Essencialmente, significa
morte espiritual ou a separaçã o de Deus, a qual é tanto temporal
quanto eterna — a perda do favor divino em todas as suas formas.
Significa o oposto da recompensa prometida, que foi a bendita e
eterna vida celestial. Portanto, significa as misérias eternas do
inferno, juntamente com as misérias que se experimentam nesta
vida, que outra coisa nã o sã o senã o as antecipaçõ es das misérias
infernais. A natureza dessa morte pode ser vista, em parte, nos
efeitos do pecado que atualmente sobrevieram à humanidade, e
também mediante o contraste com a vida que os redimidos
experimentam em Cristo. Era uma morte que fez com que o pecado,
em vez da santidade, se convertesse no elemento natural do homem,
de maneira que agora, em sua natureza nã o regenerada, o homem
sente repulsa pelo evangelho e todas as coisas santas. Devido a essa
condiçã o, o homem é tã o totalmente incapaz de apreciar a redençã o
pela fé em Cristo como um morto de ouvir os sons deste mundo. Que
a morte com que foi ameaçado nã o era primariamente a morte física
se demonstra pelo fato de Adã o viver muitos anos depois da queda;
enquanto que, espiritualmente, ficou alienado de Deus no momento
em que ele pecou e foi lançado para fora do paraíso. Por essa razã o,
em seu estado atual, o homem se espanta com qualquer apariçã o do
sobrenatural. Muito embora a morte física, em certo sentido, lhe
sobreviesse imediatamente, já que, ainda quando os nossos
primeiros pais viveram muitos anos, começaram a envelhecer
imediatamente. Desde a queda, a vida foi uma incessante marcha
rumo ao tú mulo. Eis as palavras de Charles Hodge: “O dia em que
Adã o comeu o fruto proibido, ele morreu. O castigo com que fora
ameaçado nã o foi um castigo momentâ neo, e sim a sujeiçã o
permanente a todos os males que emanam da justa reprovaçã o de
Deus”. [120]
Além disso, o mundo inteiro cria que a queda de Adã o, como a
cabeça natural e federal da raça, trouxe o mal nã o só a si, mas
também a toda a sua posteridade; de modo que, no dizer do Dr.
Hodge, “em virtude da uniã o federal e natural entre Adã o e a sua
posteridade, o seu pecado, ainda que nã o fosse um ato pessoal da
sua posteridade, é imputado aos seus descendentes de modo tal que
veio a ser a base judicial nã o só do castigo pessoal de Adã o, mas
também o castigo dos seus descendentes... Imputar o pecado, na
linguagem bíblica e teoló gica, significa imputar a culpa do pecado. E
culpa nã o significa criminalidade ou a justa retribuiçã o moral ou
demérito, muito menos contaminaçã o moral, e sim a obrigaçã o
judicial de satisfazer a justiça”. [121] O pecado de Adã o, portanto, é
lançado na conta de sua posteridade. Inclusive as criancinhas, as
quais nã o cometeram pecados concretos, sofrem a dor e a morte.
Ora, as Escrituras ensinam de maneira uniforme que o sofrimento e
a morte sã o o salá rio do pecado. No entanto, seria injusto que Deus
submetesse ao castigo aqueles que nã o sã o culpados. Portanto, dado
que o castigo cai sobre as criancinhas, concluímos que estas sã o
culpadas; no entanto, como elas nã o pecaram pessoalmente, entã o
devem ser culpadas do pecado de Adã o. Todos os que herdaram a
natureza humana de Adã o estavam nele como uma semente no fruto
e cresceram, por assim dizer, como uma só pessoa nele. Adã o foi
arruinado completa e absolutamente pela queda. Ele caiu do estado
de justiça ou santidade original em que foi criado em um
angustiante estado de pecado, o qual surgiu tã o efetivamente como a
perfuraçã o de um olho traz à pessoa perpétua escuridã o. A ira e
maldiçã o de Deus repousaram sobre ele e se apoderou dele o senso
de culpabilidade, vergonha, contaminaçã o, degradaçã o, temor ao
castigo e o desejo de escapar da presença de Deus.
Há um perfeito paralelo entre a maneira em que a culpa de Adã o nos
é imputada e a maneira em que a justiça de Cristo nos é imputada,
de modo que uma ilustra a outra. Tornamo-nos malditos através de
Adã o e redimidos através de Cristo, ainda que, certamente, nã o
sejamos pessoalmente mais culpados do pecado de Adã o do que
pessoalmente merecedores da justiça de Cristo. É um absurdo
redondo sustentar a salvaçã o por intermédio de Cristo, a menos que
sustentemos também a maldiçã o por intermédio de Adã o; já que o
cristianismo tem por base o princípio de representaçã o. A menos
que a raça se tornasse maldita em Adã o, nã o teria existido a
necessidade de ser ela redimida por Cristo. A histó ria da queda,
apresentada de uma maneira profunda e ao mesmo tempo simples
no capítulo três de Gênesis, é, portanto, de significaçã o universal. E é
tã o somente o calvinismo que faz justiça à ideia da unidade orgâ nica
da raça humana e ao profundo paralelo que Paulo traça entre o
primeiro e o segundo Adã o.
 

5. As forças do mal estão sob o perfeito controle de Deus


Cremos que Deus governa os assuntos dos homens; que os seus
decretos sã o absolutos e incluem tudo o que acontece. Portanto,
cremos que as naçõ es e os indivíduos estã o predestinados para o
bem ou o mal que lhes sobrevém. Quando divisamos o panorama
com mais amplitude, entã o nos damos conta de que até mesmo os
atos pecaminosos dos homens têm o seu lugar no plano divino; e é
somente devido à nossa natureza finita e imperfeita, a qual nã o
compreende todas as relaçõ es e conexõ es, que tais atos parecem ser
contrá rios a este plano. Tomemos como ilustraçã o a folha utilizada
para produzir mú sica na pianola. Quando vemos a folha deslizar-se
através da pianola, entendemos como esta funciona; todavia, se
fô ssemos encontrá -la em outro lugar, e nunca antes a tivéssemos
visto funcionar, concluiríamos que se trata simplesmente de um
papel de pobre qualidade, cheio de agulheiros. Todavia, quando a
utilizamos devidamente em seu pró prio lugar, ela produz a mais
bela mú sica. A menos que creiamos que Deus ordenou todos os
eventos, e que o curso de cada um deles, em nossa vida pessoal, é
bom, certamente sentiríamos muito desalentados em tempos de
adversidade. Como Jacó , confrontado com o que lhe parecia ser uma
grande desventura, e pouco antes de reunir-se a José, o seu filho
favorito, concluiu: “Todas essas coisas vêm contra mim”, assim
também pode se dar que nos suceda ser esse justamente o momento
quando, quem sabe, o Senhor de fato está preparando grandes
coisas para nó s.
Como apresentamos previamente, a doutrina bíblica é que Deus
refreia o pecado dentro de certos limites para que do mal produza
bem e controle o mal para a sua pró pria gló ria. Como Deus é infinito
em poder e sabedoria, o pecado nã o podia existir exceto pela sua
permissã o. Deus tinha a liberdade de criar e nã o criar este mundo
atual ou outro inteiramente distinto. Todas as forças do mal estã o
sob o seu absoluto controle e ele poderia muito bem aniquilá -las
num instante caso fosse essa a sua vontade. O assassino é mantido
com vida e deve a Deus a força que utiliza para matar a sua vítima.
Quando Jesus disse: “Afasta-te de mim, Sataná s”, este se afastou
imediatamente; e quando ordenou aos espíritos imundos que se
calassem e saíssem das pessoas possessas, obedeceram
imediatamente. O salmista expressou a sua confiança no poder de
Deus para controlar os pecadores quando, ao contemplar as obras
destes, escreveu: “Ri-se aquele que habita nos céus; o Senhor zomba
deles” (Sl 2.4). Jó disse: “Com ele está a força e a sabedoria; seu é o
que erra e o que faz errar” (Jó 12.16). O que significa que tanto os
homens bons quanto os maus estã o sob o controle providencial de
Deus.
A menos que o pecado ocorra conforme o propó sito e a permissã o
de Deus, ele ocorreria à deriva. Em tal caso, o mal seria um princípio
independente e incontrolá vel, e entã o teríamos que adotar a ideia
pagã do dualismo. Entretanto, cabe assinalar que a doutrina que
sustenta que há forças de pecado, rebeliã o e trevas na pró pria
natureza da livre agência, forças estas que podem ser mais fortes
que a onipotência divina, tal ideia põ e em risco até mesmo a
segurança e felicidade dos santos na gló ria.
Lutero expressou a sua posiçã o sobre este ponto nestas palavras: “O
que mantenho e defendo é o seguinte: que Deus, onde opera sem a
graça do seu Espírito, opera tudo e em todos, até mesmo nos ímpios;
e somente ele move, opera e dirige mediante a sua onipotência todas
as coisas que somente ele criou, e dita onipotência nã o pode ser nem
apagada nem mudada por coisa alguma, senã o que todas as coisas,
por necessidade, seguem e obedecem à dita onipotência, cada uma
conforme a medida do poder dado por Deus. Por conseguinte, todas
as coisas, inclusive os ímpios, cooperam com Deus”. [122] E Zanchi
escreveu: “Devemos, pois, ter cuidado de nã o abandonar a
onipotência de Deus sob o pretexto de que tentamos exaltar a sua
santidade; Deus é infinito em ambos os atributos e, portanto,
nenhum deve ser menosprezado ou obscurecido. Dizer que Deus
anula absolutamente o pecado e o seu cometimento, enquanto a
experiência nos informa que o pecado é uma realidade diá ria,
equivale representar a Deidade como um Ser débil e impotente, que
deseja que as coisas aconteçam de uma maneira diferente, porém
nã o consegue concretizar o seu desejo”. [123]
Um dos melhores comentá rios mais recentes a esse respeito é o de
E. W. Smith, em seu pequeno, porém admirá vel, livro, The Creed of
the Presbyterians . “Se fô ssemos crer que uma coisa tã o potente e
temível como o pecado irrompeu na ordem original do universo em
desafio ao propó sito de Deus, e que se encontra atualmente em
sedicioso desafio à onipotência divina, poderíamos sucumbir ao
terror e à desesperança. Mas inexprimivelmente reconfortante e
confortadora é a segurança bíblica das nossas normas doutrinais,
[124]
as quais expressam que, por detrá s da violenta importunaçã o e
fustigaçã o dos propó sitos e agências malignos subjaz, em onipotente
e firme amplexo, um propó sito divino que governa tudo. Deus reina
supremo sobre o pecado e sobre tudo mais. A sua soberana
providência ‘abarca nã o só a primeira queda, mas também todos os
demais pecados, tanto dos anjos quanto dos homens’; de modo que
estes sã o parte e desenvolvimento da sua providência, tanto quanto
o sã o os movimentos das estrelas ou as atividades de espíritos nã o
apostatados no pró prio céu. Tendo ele decidido permitir o pecado,
por razõ es sá bias e santas, ainda que nã o reveladas a nó s, também
procedeu ‘a restringir sá bia e poderosamente’ todo pecado, de modo
que nenhum pecado jamais pudesse ultrapassar o limite que ele
prescreveu; e procedeu a ‘ordená -lo e a governá -lo’ de modo que se
cumpram os ‘seus santos propó sitos’, e se manifestem na
consumaçã o de todas as coisas nã o só o seu ‘infinito poder’, mas
também a sua ‘inescrutá vel sabedoria’ e a sua ‘infinita bondade’”.
[125]
Floyd E. Hamilton escreveu: “Deus criou o ser humano com a
possibilidade de pecar, e ele tem o poder para interferir a qualquer
momento e impedir o ato pecaminoso. Todavia, ainda quando nã o
tenha um propó sito de levar a bom termo a permissã o do ato, ou
mesmo de permiti-lo quando tem o poder de interferir, ele faz com
que a responsabilidade final do ato repouse sobre Deus. Além disso,
se Deus nã o tem um propó sito que queira alcançar, entã o
certamente é repreensível ao nã o impedir o ato! Há aqueles que
tentam evitar esta conclusã o, dizendo que Deus nã o interfere
porque, ao fazê-lo, destruiria a liberdade do homem. Neste caso, a
liberdade do homem seria de mais valor do que a sua salvaçã o
eterna! Mas até mesmo isto nã o elimina de Deus a responsabilidade
final de permitir o ato pecaminoso; ele tem o poder de impedir o ato
pecaminoso, porém nã o tem um propó sito de levar a bom termo a
permissã o do ato; nã o obstante, a fim de proteger a liberdade do
homem, ele permite a este trazer sobre si o castigo eterno. Um deus
como este seria, certamente, um deus bem pobre!”. [126]
Portanto, Deus é finalmente responsá vel pelo pecado, já que tem o
poder de impedi-lo, porém nã o o faz, ainda quando a
responsabilidade imediata repouse unicamente sobre o homem.
Certamente Deus nunca é a causa eficiente do pecado. Agostinho,
Lutero e Calvino frequentemente enfatizaram esta verdade do
controle absoluto e soberano de Deus, ao provarem que o curso
atual do mundo é o que desde a eternidade Deus se propô s seguir.

6. Os atos pecaminosos só ocorrem pela permissão divina


As boas obras dos homens sã o, portanto, asseguradas pelo decreto
positivo de Deus, enquanto as obras pecaminosas só ocorrem pela
permissã o divina. As obras pecaminosas, contudo, ocorrem em
razã o de algo mais que uma mera permissã o, já que de outro modo
nã o haveria a certeza de que ocorram. Com respeito a este tema,
David S. Clark diz: “A explicaçã o mais razoá vel é que a natureza
pecaminosa irá até o limite fixado por Deus; portanto, a limitaçã o do
pecado por parte de Deus assegura de que modo e quando
acontecerá . Sataná s nã o pô de ir com Jó além do que Deus lhe
permitiu; ainda que, sem lugar a dú vida, fez tudo o que Deus lhe
permitiu”. [127] E, em consonâ ncia com essas palavras, W. D. Smith
afirma: “Quando se sabe com toda certeza que será feito, a menos
que seja evitado, e existe a determinaçã o de nã o evitá -lo, fica
estabelecido tã o certamente como se fora decretado que seria feito
por meio de alguém. Em um caso, a absoluta certeza do evento surge
por meio de uma agência posta; no outro, surge igualmente certo,
porém por meio de uma agência retida. Em ambos os casos, esse é
um decreto imutá vel. Os pecados de Judas e a crucifixã o do Salvador
foram decretados tã o imutavelmente pela permissã o divina como a
vinda do Salvador ao mundo o foi positivamente. Podemos notar do
que foi dito anteriormente a harmonia entre a Confissão de fé de
Westminster e o senso comum, quando disse que, ‘Deus, desde a
eternidade, ordenou livre e inalteravelmente, pelo sá bio e santo
conselho de sua vontade, tudo o que acontece’, etc. Além disso,
podemos notar a perfeita harmonia da Confissão com a afirmaçã o de
que Deus ‘nã o é o autor do pecado’, etc.”. [128]
Agostinho expressou um pensamento parecido, quando disse: “pelo
qual, aquelas poderosas obras de Deus, inusitadamente perfeitas,
feitas em absoluta conformidade com o desígnio da sua vontade, sã o
tais que, de maneira maravilhosa e inefá vel, até mesmo as coisas
contrá rias à sua vontade nã o sã o feitas sem o seu consentimento; já
que nada acontece a menos que ele o permita. Todavia, ele as
permite nã o contra a sua vontade, e sim em conformidade com a sua
vontade. E como ele é um Deus de bondade, tampouco permitiria
que alguma coisa má acontecesse a menos que, como Deus
onipotente, pudesse fazer surgir do mal o bem”. [129]
Mesmo as obras de Sataná s sã o controladas e limitadas de modo que
cumpram os propó sitos de Deus. Ainda que Sataná s busque
determinadamente a destruiçã o dos ímpios e trabalhe
diligentemente por consegui-lo, mesmo assim tal destruiçã o
procede de Deus. Em primeiro lugar, é Deus quem decreta que os
ímpios têm de sofrer, e a Sataná s simplesmente permite que lhes
inflija o castigo. Os motivos por detrá s dos propó sitos de Deus e
aqueles por detrá s dos propó sitos de Sataná s sã o, certamente,
infinitamente distintos. Deus decretou a destruiçã o de Jerusalém;
Sataná s também desejava o mesmo, porém por razõ es distintas.
Agostinho afirma que Deus deseja com boa vontade o que Sataná s
deseja com má vontade — como sucedeu na crucifixã o de Cristo, a
qual foi guiada a fim de que redundasse na redençã o do mundo. À s
vezes Deus usa as vontades e as paixõ es malignas dos homens em
vez das boas vontades dos seus servos para concretizar os seus
propó sitos. Esta verdade foi expressa em palavras claras pelo Dr.
Warfield: “Todas as coisas acham a sua unidade em seu plano
eterno; e nã o meramente a sua unidade, mas também a sua
justificativa de ser; inclusive o mal, apesar de reter a sua qualidade
de mal e odioso aos olhos do Deus santo; e algo que deve ser tratado
com absoluta aversã o; nã o ocorre independentemente da sua
provisã o ou contra a sua vontade, mas surge no mundo que ele
mesmo criou como o instrumento mediante o qual ele opera o bem
supremo”. [130]
 

7. Prova bíblica
Que esta é a doutrina da Escritura é abundantemente claro. A venda
de José ao Egito, por mã os humanas, foi um ato em extremo
pecaminoso; todavia, vemos que este foi controlado de modo que
redundasse nã o só a favor de José, mas também dos seus irmã os.
Quando remontamos este evento à sua fonte conseguimos ver que
Deus foi o seu autor e que ocupou o seu preciso lugar no plano
divino. Mais tarde, José disse aos seus irmã os: “Agora, pois, nã o vos
entristeçais, nem vos irriteis contra vó s mesmos, por me haverdes
vendido para aqui; porque, para conservaçã o da vida, Deus me
enviou adiante de vó s. Assim, nã o fostes vó s que me enviastes para
cá , e sim Deus” (Gn 45.5, 8; 50.20). A Bíblia afirma que Deus
endureceu o coraçã o de Faraó (Ê x 4.21; 9.12); e as palavras de Deus
a Faraó foram estas: “mas, deveras, para isso te hei mantido, a fim de
mostrar-te o meu poder, e para que seja o meu nome anunciado em
toda a terra” (Ê x 9.16). E disse Deus a Moisés: “Eis que endurecerei o
coraçã o dos egípcios, para que vos sigam e entrem nele [Mar
Vermelho]; serei glorificado em Faraó e em todo o seu exército, em
seus carros e em seus cavalarianos” (Ê x 14.17).
Simei amaldiçoou a Davi, porque o Senhor dissera: “pois, se o
SENHOR lhe disse: Amaldiçoa a Davi, quem diria: Por que assim
fizeste?” (2Sm 16.10, 11). Em outra ocasiã o, ao sofrer injusta
violência da parte dos seus inimigos, Davi reconheceu que “fora
Deus quem o fez”. Com respeito aos cananeus, foi dito: “Porquanto
do SENHOR vinha o endurecimento do seu coraçã o para saírem à
guerra contra Israel, a fim de que fossem totalmente destruídos e
nã o lograssem piedade alguma; antes, fossem de todo destruídos,
como o SENHOR tinha ordenado a Moisés” (Js 11.20). Ofni e Fineias,
filhos ímpios de Eli, “nã o ouviram a voz do seu pai, porque o SENHOR
os queria matar” (1Sm 2.25).
Inclusive Sataná s e os espíritos malignos sã o utilizados para dar
cumprimento ao propó sito divino. Entã o se ordenou a um espírito
maligno que fosse e enganasse os profetas do rei Acabe a fim de
servir como instrumento da vingança divina sobre os ímpios.
“Perguntou o SENHOR : Quem enganará a Acabe, para que suba e caia
em Ramote-Gileade? Um dizia desta maneira, e outro, de outra.
Entã o, saiu um espírito, e se apresentou diante do SENHOR , e disse:
Eu o enganarei. Perguntou-lhe o SENHOR : Com quê? Respondeu ele:
Sairei e serei espírito mentiroso na boca de todos os seus profetas.
Disse o SENHOR : Tu o enganará s e ainda prevalecerá s; sai e faze-o
assim. Eis que o Senhor pô s o espírito mentiroso na boca de todos
estes profetas e o SENHOR falou o que é mau contra ti” (1Rs 22.20-
23). Lemos de Saul que “era atormentado por um espírito maligno
da parte do Senhor” (1Sm 16.14). “Suscitou Deus um espírito de
aversã o entre Abimeleque e os cidadã os de Siquém; e estes se
houveram aleivosamente contra Abimeleque” (Jz 9.23). Significa que
os espíritos malignos que atormentavam os pecadores procederam
do Senhor. E é da parte do Senhor que os maus impulsos que surgem
dos coraçõ es dos pecadores tomam uma ou outra forma específica
(2Sm 24.1).
Em uma parte, somos informados que Deus, a fim de castigar um
povo rebelde, incitou Davi a fazer o censo do povo (2Sm 24.1, 10);
porém, na outra parte, se faz alusã o a este mesmo fato, informando-
nos que Sataná s foi quem castigou o orgulho de Davi e o incitou a
que fizesse o censo de Israel (1Cr 21.1). Podemos ver aqui que
Sataná s foi tomado como a vara da ira de Deus, e que Deus verga os
coraçõ es de pecadores e de demô nios para onde bem o queira.
Apesar de toda relaçã o adú ltera e incestuosa ser abominaçã o a Deus,
à s vezes ele usa esses mesmos pecados para castigar outros
pecados, como sucedeu no caso de Absalã o para castigar o adultério
de Davi. Antes que Absalã o levasse a bom termo o seu pecado, foi
comunicado a Davi que esta havia de ser a forma de seu castigo ser-
lhe aplicado: “Eis que da tua pró pria casa suscitarei o mal sobre ti, e
tomarei as tuas mulheres à tua pró pria vista, e as darei ao teu
pró ximo, o qual se deitará com elas, em plena luz deste sol” (2Sm
12.11). Como podemos ver, esses fatos nã o foram, em todos os
sentidos, contrá rios à vontade de Deus.
Em 1 Crô nicas 10.4, lemos que “Saul tomou a espada e se lançou
sobre ela”. Este ato foi deliberado e pecaminoso. No entanto, tal ato
cumpriu, por sua vez, a justiça divina e o propó sito divino que fora
revelado anos antes acerca de Davi; já que um pouco mais adiante
lemos: “e também, porque interrogara e consultara uma
necromante, e nã o ao SENHOR , que, por isso, o matou e transferiu o
reino a Davi, filho de Jessé” (1Cr 10.13, 14). Em certo sentido, lemos
que é Deus quem faz o que permite ou impele as suas criaturas a
fazer.
O mal ameaçado contra Jerusalém em razã o da sua apostasia é
descrito como vindo diretamente de Deus (2Rs 22.20). O salmista
reconheceu que até mesmo o ó dio dos seus inimigos fora incitado
por Jeová a fim de castigar um povo rebelde (Sl 105.25). Isaías
reconheceu que até mesmo a apostasia e desobediência de Israel
estavam no plano divino: “Ó SENHOR , por que nos fazes desviar dos
teus caminhos? Por que endureces o nosso coraçã o, para que nã o te
temamos? Volta, por amor dos teus servos e das tribos da tua
herança” (Is 63.17). Em 1 Crô nicas 5.22, lemos: “Porque muitos
caíram feridos à espada, pois de Deus era a peleja”. O néscio
procedimento de Roboã o que resultou na captura do reino foi
“desígnio do Senhor” (1Rs 12.15). Temos tudo isso resumido na
passagem de Isaías, que disse: “Eu formo a luz e crio as trevas; faço a
paz e crio o mal; eu, o SENHOR , faço todas estas coisas” (Is 45.7); e no
livro de Amó s, onde lemos: “Tocar-se-á a trombeta na cidade, sem
que o povo se estremeça? Sucederá algum mal à cidade, sem que o
SENHOR o tenha feito?” (Am 3.6).
Uma aná lise do Novo Testamento revela a mesma doutrina. Já
demonstramos que a crucifixã o de Cristo foi parte do plano divino.
Ainda que a sua morte fosse realizada por mã os de ímpios que
ignoravam a importâ ncia do evento que estavam realizando, nã o
obstante “Deus, assim, cumpriu o que dantes anunciara por boca de
todos os profetas: que o Cristo havia de padecer” (At 3.18). A
crucifixã o foi o cálice que o Pai lhe deu para beber (Jo 18.11). Estava
escrito: “Ferirei o pastor, e as ovelhas do rebanho ficarã o dispersas”
(Mt 26.31). Quando Moisés e Elias apareceram a Jesus no monte da
transfiguraçã o, “falavam da sua partida, que ele estava para cumprir
em Jerusalém” (Lc 9.31). Com respeito à sua morte, Jesus afirmou:
“Porque o Filho do homem, na verdade, vai segundo o que está
determinado, mas ai daquele por intermédio de quem ele está sendo
traído!” (Lc 22.22); e novamente: “Nunca lestes nas Escrituras: A
pedra que os construtores rejeitaram, essa veio a ser a principal
pedra, angular; isto procede do Senhor e é maravilhoso aos nossos
olhos?” (Mt 21.42); e em nenhuma outra ocasiã o o Senhor ensinou
mais claramente que a cruz era parte do plano divino do que no
Jardim de Getsêmani, quando disse: “Adiantando-se um pouco,
prostrou-se sobre o seu rosto, orando e dizendo: Meu Pai, se
possível, passa de mim este cá lice! Todavia, nã o seja como eu quero,
e sim como tu queres” (Mt 26.39). Jesus se entregou
deliberadamente para ser crucificado, quando poderia muito bem
ter chamado “mais de doze legiõ es de anjos”, caso o quisesse (Mt
26.53). Pilatos cria que tinha poder para crucificar ou para soltar o
Senhor; este, porém, lhe respondeu que, se isso nã o lhe fosse dado
de cima, nã o teria nenhum poder (Jo 19.10, 11).
Era parte do plano divino que Cristo viesse ao mundo, sofresse e
morresse morte violenta, a fim de expiar os pecados do seu povo.
Portanto, Deus simplesmente permitiu que homens pecadores
pusessem sobre ele essa vil carga, e guiou os atos deles para a sua
pró pria gló ria na redençã o do mundo. Os que crucificaram a Cristo
agiram em perfeita harmonia com a liberdade das suas naturezas
pecaminosas, e eles foram os ú nicos responsá veis pelo seu pecado.
Nessa ocasiã o, como em muitas outras, Deus fez com que a ira do
homem redundasse no seu louvor. Seria difícil expressar em
linguagem mais explícita a ideia de que o plano de Deus se estende a
todas as coisas que aquela utilizada aqui pelos escritores bíblicos. A
crucifixã o no Calvá rio, portanto, nã o foi uma derrota, e sim uma
vitó ria; e o grito “Está consumado!” manifesta o glorioso êxito da
obra redentora que o enalteceu como o Filho. O que “está escrito de
Jesus nas Escrituras do Antigo Testamento tem nele o seu infalível
cumprimento; e dele está suficientemente escrito ali para assegurar
aos seus seguidores que no curso da sua vida e até mesmo no
aparentemente estranho e inesperado fim ele nã o foi vítima da
casualidade ou do ó dio dos homens, em consequência do qual a sua
obra fosse malograda ou, talvez, inclusive a sua missã o ficasse
frustrada; senã o que seguiu passo a passo rumo à meta o caminho
marcado nos conselhos da eternidade, e o qual foi suficientemente
revelado desde os tempos antigos, nas Escrituras, a ponto de
permitir que todos os que nã o sã o ‘insensatos e tardos de coraçã o
para crer tudo o que os profetas disseram’ percebam que o Cristo
teve que viver precisamente a vida que viveu e cumprir
precisamente o destino que cumpriu”. [131]
Outros casos registrados no Novo Testamento também ensinam a
mesma liçã o. Quando Deus rejeitou os judeus como povo, nã o foi
sem propó sito nem meramente a fim de que “caíssem”; mas para
que, pela sua transgressã o, viesse a salvaçã o dos gentios, para
provocá -los a ciú me, a fim de que estes também abraçassem o
cristianismo (Rm 11.11). Lemos que a cegueira de um homem nã o
foi causada pelo seu pecado ou o dos seus pais, mas para dar a Jesus
oportunidade de manifestar o seu poder e gló ria restaurando-lhe a
vista; ou, como o expressa o escritor bíblico: “mas para que se
manifestem nele as obras de Deus” (Jo 9.3). A afirmaçã o do Antigo
Testamento de que o propó sito de Deus em levantar Faraó foi o de
demonstrar o seu poder e proclamar o seu nome é reiterada em
Romanos 9.17. Este ensino geral atinge o seu ponto má ximo na
afirmaçã o de Paulo de que “todas as coisas cooperam para o bem
dos que amam a Deus , dos que são chamados segundo o seu
propósito ” (Rm 8.28).
Se, como afirmam as Escrituras, Deus preordenou a crucifixã o de
Cristo e os demais eventos que temos mencionado, entã o ninguém
pode negar que Deus preordenou o pecado. Que as obras
pecaminosas têm o seu lugar no plano divino é ensinado reiteradas
vezes. E se tal coisa ofende algumas pessoas, entã o, uma vez mais,
instamos com elas que considerem quantas vezes as Escrituras
declaram que os juízos de Deus sã o “insondá veis”. Daí, os que
afirmam que a nossa doutrina faz Deus o autor do pecado suscitam
esta objeçã o nã o só contra nó s, mas também contra Deus; já que a
nossa doutrina é claramente aquela que Deus ensina.
 

8. Comentários de Smith e Hodge


A relaçã o que Deus mantém com o pecado é admiravelmente
ilustrada no seguinte pará grafo do livrinho What is Calvinism? [O
que é calvinismo?], de W. D. Smith, o qual tomamos a liberdade de
citar: “Imagine-se um vizinho que possui uma destilaria ou uma
cantina que serve de escâ ndalo a todos em volta dele — vizinhos
cobrando, bebendo e inclusive trabalhando no dia do Senhor, com a
consequente miséria e angú stia que tudo isso produz a algumas
famílias, etc. Além disso, imagine-se que eu possua certa previsã o e
posso ver, com absoluta certeza, uma cadeia de eventos em conexã o
com um plano de operaçõ es que tenho em mente para o bem
daquela vizinhança. Vejo que posso, com a minha pregaçã o, ser o
instrumento na conversã o e reforma do dono da destilaria e,
portanto, decido fazê-lo. Ao agir dessa maneira, estou decretando
positivamente a reforma do homem; isto é, determino fazer aquilo
que redundará na reforma certa do homem e cumpro o meu decreto
mediante uma agência positiva. Mas, olhando um pouco mais
adiante na cadeia dos eventos, descubro, com a mesma plena
certeza, seus clientes beberrõ es se enchendo de ira e cometendo
muitos pecados ao derramarem a sua maldade sobre o taverneiro e
sobre mim. Nã o só blasfemarã o contra Deus e contra a religiã o, mas
ainda queimarã o a sua casa e tentarã o queimar a minha. Entã o,
podemos ajuizar-nos de que este mal, que entra no meu plano, de
modo algum pode ser-me atribuído, apesar de eu ser o autor do
plano que, em suas operaçõ es, o produzirá . Podemos ver, portanto,
que qualquer ser inteligente pode pô r em vigência um plano e levá -
lo a bom termo no qual bem sabe, com toda certeza, que entrará o
mal e, contudo, ele nã o é o autor do mal nem o responsá vel pelo
mesmo. Olhando um pouco além, na cadeia dos eventos, descubro
que, ao ser-lhes permitido, os furiosos vizinhos lhe tirarã o a vida; e,
além disso, vejo que, ao ser poupada a sua vida, ele virá a ser tã o
notó rio pelo bem, que virá a ser, em comparaçã o com o mal que
antes fazia, uma grande bênçã o à vizinhança e à sociedade. Portanto,
determino agir com base no plano como um todo; e, ao fazê-lo,
decreto positivamente a reforma do homem e o bem que virá daí; e
decreto permissivamente as obras ímpias dos demais; todavia, é
ó bvio que de modo algum sou o culpado dos pecados desses ú ltimos.
De igual modo, Deus ‘preordenou tudo o que acontece’, de uma ou
de outra destas maneiras”. [132]
A esse respeito, Charles Hodge afirma: “Um juiz justo, ao pronunciar
sentença contra um criminoso, talvez saiba que isso causará
sentimentos malvados e amargos no criminoso ou nos coraçõ es dos
seus amigos; nã o obstante, o juiz está livre de toda culpa. Pode ser
que um pai, ao deserdar um filho réprobo, saiba que as
consequências inevitá veis do seu procedimento serã o granjear ele
ainda mais maldade da parte do filho; contudo, o pai está fazendo o
bem. A infalível consequência de Deus abandonar os anjos apó statas
e os finalmente impenitentes é que estes continuarã o no pecado;
todavia, a santidade de Deus permanece intocá vel. A Bíblia ensina
que Deus abandona judicialmente os homens em seus pecados,
entregando-os a uma mente reprová vel, e nisso ele é mui santo e
justo. Portanto, nã o é certo que uma pessoa seja responsá vel por
todas as consequências seguras dos seus atos. Pode ser e sem
dú vida é infinitamente sá bio e justo que Deus permita o pecado, e
que adote um plano do qual o pecado é uma consequência ou um
elemento seguro; todavia, como ele nem é a causa do pecado, nem
tenta os homens a cometê-lo, afirmamos que ele nã o é e nem pode
ser o autor do pecado, e tampouco se compraz nisso”. [133]
 

9. A graça de Deus é valorizada mais profundamente depois que


a pessoa vem a ser vítima do pecado
Em certas ocasiõ es nos é permitido cair em pecado para que, uma
vez libertados do mesmo, valorizemos a nossa salvaçã o mais
profundamente. Na pará bola dos dois devedores, um devia
quinhentos dená rios e outro, cinquenta. Nã o tendo eles com que
pagar, o credor perdoou a ambos. Qual deles amará mais ao credor?
Naturalmente, o que mais foi perdoado. Ceando na casa de Simã o o
fariseu, Cristo pronunciou esta pará bola e a aplicou ao pró prio
Simã o e à mulher penitente que ungia os seus pés. Esta fora
grandemente perdoada e estava profundamente agradecida; Simã o,
contudo, nã o recebera dito favor e, portanto, nã o sentia a devida
gratidã o. “Aquele a quem pouco lhe é perdoado, pouco ama” (Lc
7.41-50).
À s vezes a pessoa, como o filho pró digo, nã o valoriza o lar do Pai
nem respeita a sua autoridade até que haja experimentado os
devastadores efeitos do pecado e as ferinas dores da fome, da
tristeza e da desgraça. Parece que o homem livre tem, até certo grau,
que aprender com a experiência antes que possa valorizar a
inteireza dos caminhos da justiça e render obediência incondicional
e honra a Deus. Já citamos Paulo para o efeito de que “Deus a todos
encerrou na desobediência, a fim de usar de misericó rdia para com
todos” (Rm 11.32); e, “contudo, já em nó s mesmos, tivemos a
sentença de morte, para que nã o confiemos em nó s e sim no Deus
que ressuscita os mortos” (2Co 1.9). A criatura nã o pode apreciar
devidamente a misericó rdia de Deus até que seja resgatada de um
estado de miséria. Depois que o coxo que mendigava à porta do
templo foi curado por Pedro e Joã o, ele valorizou a sua saú de como
nunca antes, e “entrou com eles no templo, caminhando e louvando
a Deus”. E depois que somos libertados do poder e da culpa do
pecado, passamos a apreciar a graça de Deus como jamais a
teríamos apreciado. É -nos dito que até mesmo nosso Senhor Jesus
Cristo, em sua natureza humana, foi aperfeiçoado pelas afliçõ es,
ainda que nele, certamente, nã o houvesse pecado algum.
 

10. O calvinismo oferece uma solução satisfatória ao problema


do mal mais do que qualquer outro sistema
A verdadeira dificuldade que enfrentamos aqui é a de explicar por
que um Deus infinito em santidade, poder e sabedoria criou um
universo no qual o mal moral haveria de prevalecer tã o
extensamente; e especialmente a de explicar por que se permitiu
que o mal resultasse na miséria eterna de tantas de suas criaturas.
Todavia, esta dificuldade nã o é exclusiva ao calvinismo, mas uma
que o teísmo em geral enfrenta; e enquanto outros sistemas sã o
totalmente inadequados nas suas explicaçõ es do pecado, o
calvinismo propicia uma explicaçã o bastante satisfató ria ao
reconhecer que Deus é o responsá vel ú ltimo, já que ele o poderia ter
impedido. O calvinismo afirma, além do mais, que Deus tem um
propó sito definido ao permitir cada pecado individual, havendo-o
ordenado “para a sua pró pria gló ria”. Hamilton afirmou: “Se temos
de aceitar o teísmo, entã o o ú nico teísmo respeitá vel é o calvinismo”.
O calvinismo ensina que Deus nã o só sabia o que fazia quando criou
o homem, mas também tinha um propó sito de permitir o pecado. E,
que melhor explicaçã o do que esta pode oferecer alguém que creia
ser Deus o Criador e o soberano Governante deste universo?
Com respeito à primeira queda do homem, afirmamos que a causa
próxima foi a instigaçã o do diabo e o impulso do pró prio coraçã o de
Adã o e Eva; isto uma vez estabelecido, assim eximimos a Deus de
toda culpa . Paulo afirma que Deus “habita em luz inacessível”. A
nossa visã o mental nã o pode compreender os profundos mistérios
divinos mais do que os nossos olhos físicos podem resistir à luz do
sol. Quando o apó stolo contemplou essas coisas, outra coisa nã o
pô de fazer senã o exclamar: “Ó profundidade da riqueza, tanto da
sabedoria como do conhecimento de Deus! Quã o insondá veis sã o os
seus juízos, e quã o inescrutá veis, os seus caminhos!” (Rm 11.33). E
dado que o nosso intelecto humano nã o pode elevar-se a altitudes
tã o inacessíveis, cabe-nos adorar com reverência, temor e tremor, e
nos abstermos de explicar mistérios tã o elevados e profundos, os
quais nem mesmo os anjos podem penetrar. Além disso, lembremo-
nos que juntamente com este pecado Deus proveu uma redençã o
efetuada gratuitamente por ele mesmo; e é, sem dú vida, devido à s
nossas limitaçõ es que nã o conseguimos ver que esta é a explicaçã o
plenamente suficiente. O decreto da redençã o é tã o antigo como o
decreto da apostasia; e aquele que ordenou o pecado também
ordenou a maneira de escapar-se dele.
Já que as Escrituras ensinam que Deus é perfeitamente justo; e que
em todos aqueles atos sobre os quais somos capazes de passar juízo
descobrimos que ele é perfeitamente justo; confiamos que nas á reas
sobre as quais ainda nã o nos foram reveladas ele também é justo e
tem soluçõ es para aqueles problemas que nó s mesmos nã o podemos
solucionar. Podemos confiar que o Juiz de toda a terra agirá com
justiça, e à medida que nos for revelado o seu plano aprenderemos a
render-lhe graças pelas coisas pretéritas e a confiar nele pelas coisas
futuras.
De nada vale dizer, portanto, que Deus previu o mal, porém nã o o
incluiu no seu plano — já que, se o previu e se apesar de havê-lo
previsto ainda criou o mundo, entã o os atos pecaminosos foram
parte do plano, ainda que uma parte indesejá vel. Negar a Deus esta
previsã o é considerá -lo cego. De fato, nem sequer poderíamos
respeitar a um Deus que age dessa maneira. Além disso, essa crença
deixa a Deus a responsabilidade final pelo pecado, já que ele poderia
ter ao menos se abstido de criar.
Que os atos pecaminosos dos homens têm o seu lugar, e um lugar
necessá rio no plano divino, fica claramente demonstrado no curso
da histó ria. Por exemplo, o assassinato do Presidente McKinley foi
um ato pecaminoso; todavia, desse ato dependia o papel que
Theodore Roosevelt havia de exercer como Presidente dos Estados
Unidos; e se esse elo na cadeia dos eventos fora distinto, todo o
curso da histó ria, a partir daquele momento até o fim do mundo,
teria sido radicalmente distinto. O mesmo se deu no caso de Lincoln.
Se Deus se propô s que o mundo chegasse ao estado atual em que
nos encontramos hoje, entã o esses acontecimentos foram
indispensá veis. Ainda uma breve consideraçã o de nossa parte nos
convenceria que todos os acontecimentos, inclusive aqueles que sã o
aparentemente insignificantes, ocupam o seu lugar preciso, e que
dã o lugar a influências cada vez mais amplas que em pouco tempo
se estendem até os confins da terra; e que, se somente um deles
fosse omitido, digamos cinquenta anos atrá s, o mundo atual teria
sido muito distinto.
Uma prova adicional importante de que Paulo ensinou a doutrina
que os calvinistas sustentam que ele ensinou, encontramo-la nas
objeçõ es que ele mesmo pô s na boca dos seus opositores, ou seja,
dita doutrina apresenta Deus como injusto: “Há injustiça da parte de
Deus?” (Rm 9.14); e, que ela destró i a responsabilidade das pessoas:
“Tu, porém, me dirá s: De que se queixa ele ainda? Pois quem jamais
resistiu à sua vontade?” (Rm 9.19). Estas sã o as mesmas objeçõ es
que hoje continuam surgindo na mente dos homens contra a
doutrina calvinista da predestinaçã o; porém ditas objeçõ es nã o têm
a mínima admissibilidade quando sã o dirigidas contra a doutrina
arminiana. Uma doutrina que nã o proporciona a mínima razã o para
tais objeçõ es nã o pode ter advinda do ensino do grande apó stolo .
 
CAPÍTULO XVIII. QUE A DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃO
APAGA TODOS OS MOTIVOS PARA O ESFORÇO HUMANO
 
1. Tanto os meios como os fins estã o preordenados. 2. Resultados prá ticos.
 

1. Tanto os meios como os fins estão preordenados


A objeçã o de que a doutrina da predestinaçã o oblitera todos os
motivos para o esforço humano tem por base a falá cia de que os fins
estã o determinados sem referência aos meios. Vale assinalar,
contudo, que nã o foram preordenados meramente alguns eventos
isolados aqui e ali, mas toda a cadeia de eventos, com todas as suas
inter-relaçõ es e conexõ es. No plano divino, todas as partes formam
uma unidade. Falar dos meios implica também falar dos fins. Se
Deus estabeleceu que uma pessoa colha, também estabeleceu que
antes de tudo outra semeie. Se Deus ordenou que um ser humano
seja salvo, também ordenou que o mesmo ouça o evangelho e que
creia e se arrependa. O mesmo se pode dizer de um agricultor que se
recuse a lavrar o solo conforme as leis reveladas na luz da natureza
e a experiência até que tenha conhecimento do propó sito secreto de
Deus com respeito à fruiçã o da pró xima colheita, quanto de alguma
pessoa que se recusa trabalhar nas esferas morais e espirituais por
desconhecer o fruto que Deus poderia produzir por meio do seu
trabalho. Nã o obstante, a realidade é que comumente o fruto surge
de onde o trabalho preliminar tem sido fielmente realizado. Se
labutamos no serviço do Senhor e fazemos uso diligente dos meios
que ele prescreveu, temos o grande estímulo de saber que é
precisamente por esses mesmos meios que ele determinou realizar
a sua grande obra.
Mesmo aqueles que aceitam as afirmaçõ es das Escrituras de que
Deus “faz todas as coisas segundo o desígnio de sua vontade” e
afirmaçõ es afins no sentido de que o controle providencial de Deus
abarca todos os eventos das suas vidas, sabem que isso nã o interfere
sequer um mínimo em sua liberdade pessoal. Acaso os que
apresentam esta objeçã o permitem que a sua confiança na soberania
divina determine a sua conduta nos assuntos temporais? Acaso
recusam alimento quando sentem fome, ou a medicina quando ficam
doentes, porque Deus determinou a hora e o modo como haverã o de
morrer? Acaso omitem os meios usuais de adquirir riquezas ou
distinçã o porque Deus dá riquezas e honra a quem lhe apraz?
Quando, em assuntos fora da esfera da religiã o, alguém reconhece a
soberania de Deus, e mesmo assim age em plena consciência da sua
liberdade, nã o é pecaminoso e néscio apresentar como justificativa,
pela omissã o do seu bem-estar espiritual e eterno, de que nã o é livre
e responsá vel? Ao contrá rio, a sua consciência nã o testifica que a
ú nica razã o pela qual nã o é seguidor de Jesus se deve ao fato de que
nunca se dispô s a segui-lo? Suponhamos que, quando o homem
paralítico foi conduzido a Jesus e ouviu as palavras: “Levanta-te e
anda”, lhe houvesse respondido: “Nã o posso; sou paralítico!”. Ao agir
assim, o paralítico teria morrido nesse estado. Mas, reconhecendo a
sua incapacidade e depositando a sua confiança naquele que lhe
ordenou que se levantasse, obedeceu e foi curado. É o mesmo
Salvador onipotente que chama pecadores mortos em pecado a que
se dirijam a ele; e podemos estar certos de que o que vai a ele
descobrirá que os seus esforços nã o foram inú teis. Eis a realidade: a
menos que reconheçamos Deus como aquele que soberanamente
dispõ e todos os eventos; e que, em meio à certeza, ordenou a
liberdade humana, contaremos com pouco estímulo para trabalhar.
Se fô ssemos crer que o nosso êxito e o nosso destino dependessem
primariamente da vontade de criaturas débeis e pecadoras,
teríamos bem pouco incentivo para o esforço pessoal.
“De joelhos, o arminiano se esquece de todos aqueles enigmas da
ló gica que têm distorcido de sua mente a predestinaçã o; e de forma
espontâ nea reconhece com gratidã o que a sua conversã o é obra da
graça preveniente de Deus, sem a qual nem a sua mera vontade, nem
a obra feita por ele, jamais poderiam tê-lo transformado em uma
nova criatura. Além disso, ele ora pelo derramamento do Espírito de
Deus que refreia, convence, renova e santifica os homens; ora pela
diretriz divina nos eventos humanos e pelo transtorno dos
conselhos e frustraçã o dos planos de homens ímpios; dá gló ria e
honra ao Senhor pelo que faz nesse sentido, subentendendo com
isso que Deus reina; que é ele que se dispõ e soberanamente de
todos os acontecimentos; e que todo bem e toda frustraçã o do mal
se devem a ele, enquanto todo o mal se deve à pró pria criatura.
Reconhece que a presciência divina está vinculada
inseparavelmente à sabedoria do seu propó sito eterno. As suas
oraçõ es pela certeza da sua esperança, ou pela atual fruiçã o dela,
pressupõ em a convicçã o de que Deus pode e efetivamente livrará os
seus pés da queda e da sua inclinaçã o para a rebeliã o; e que o
propó sito divino forma um nexo tã o infalível entre a graça atual e a
gló ria eterna, que nada poderá separá -lo do amor de Deus que está
em Cristo Jesus, nosso Senhor.” [134]
Dado que os eventos futuros estã o velados e nos sã o desconhecidos,
deveríamos ser tã o diligentes na nossa labuta e tã o assíduos no
cumprimento do nosso dever como se nada a respeito fosse
decretado. Com frequência nos é dito que deveríamos orar como se
tudo dependesse de Deus e trabalhar como se tudo dependesse de
nó s mesmos. Eis o comentá rio de Lutero a respeito: “É -nos
ordenado que trabalhemos com mais afinco precisamente porque
todas as coisas futuras sã o incertas em relaçã o a nó s; como reza
Eclesiastes: ‘Semeia pela manhã a tua semente e à tarde nã o
repouses a mã o, porque nã o sabes qual prosperará ; se esta, se
aquela ou se ambas igualmente serã o boas’ (Ec 11.6). Todas as
coisas futuras estã o fora do alcance do nosso conhecimento, muito
embora o cumprimento de todas as coisas seja absolutamente
seguro. A plena certeza dos eventos futuros infunde em nó s o temor
de Deus para que nã o presumamos, ou cheguemos a sentir-nos
demasiadamente confiantes, enquanto a incerteza produz em nó s
confiança para que nã o nos afundemos na desesperança”. [135]
“O campesino, tendo ouvido um sermã o sobre os decretos de Deus,
tomou o caminho perigoso para a sua casa, e nã o o caminho mais
seguro; e, em consequência, quebrou a sua carroça; antes de
terminada a sua travessia, concluiu que, de qualquer modo, fora
predestinado para ser um imbecil; e que, portanto, solidificou a sua
vocaçã o e eleiçã o.” [136]
Em certa ocasiã o, apó s terminada uma conferência teoló gica, uma
senhora se aproximou de Charles Hodge e lhe perguntou: “O senhor
crê, Dr. Hodge, que o que há de ser será ?”. E o Dr. Hodge respondeu:
“Assim é, minha senhora. Você gostaria que eu cresse que o que há
de ser nã o será ?”.
Neste ponto, lembremo-nos também do caso de um escocês acusado
e condenado por assassinato, o qual disse ao juiz: “Eu estava
predestinado desde a eternidade para cometer esse crime”. Ao que
respondeu o juiz: “Se é assim, entã o eu estava predestinado desde a
eternidade para sentenciá -lo à forca, o que agora passo a fazer”.
Pode ser que alguns se inclinem a pensar: se nada, exceto o poder
criador de Deus, pode tornar possível que nos arrependamos e
creiamos, entã o tudo o que podemos fazer é esperar passivamente
até que tal poder seja exercido. Ou pode ser que alguém pergunte: se
nã o podemos efetuar a nossa salvaçã o, por que labutar por ela? Vale
dizer que, em toda á rea do esforço humano, o resultado depende da
cooperaçã o de causas sobre as quais nã o temos nenhum controle.
Simplesmente devemos fazer uso dos meios apropriados e confiar
na cooperaçã o das demais agências. Nã o obstante, temos a
promessa expressa de Deus de que os que buscam acharã o; os que
pedem receberã o; e os que batem na porta lhe será aberta. Isso é
mais do que é dado aos homens do mundo para que sejam
estimulados em sua busca de riquezas, conhecimento, ou posiçã o; e,
racionalmente, nã o podemos demandar mais que isso. Aquele que lê
e medita na Palavra de Deus ordinariamente é regenerado pelo
Espírito Santo, quem sabe no pró prio ato de ler. “Ainda Pedro falava
estas coisas quando caiu o Espírito Santo sobre todos os que ouviam
a palavra” (At 10.44). Shakespeare põ e na boca de um de seus
personagens: “Nã o é culpa das nossas estrelas, querido Bruto, e sim
nossa, que somos subalternos”. [137]  
Portanto, a incapacidade do pecador para salvar a si pró prio nã o
deve torná -lo menos diligente em buscar a sua salvaçã o da maneira
que Deus estabeleceu. Algum leproso, enquanto Cristo estava na
terra, poderia ter raciocinado que, como nã o podia curar a si
mesmo, simplesmente esperasse que Cristo viesse e o curasse.
Todavia, o efeito natural da convicçã o da total incapacidade é o de
impelir a pessoa a buscar ajuda na fonte donde unicamente pode vir
a ajuda. O homem é uma criatura alienada de Deus, arruinada e
impotente, e até que ele saiba disso, continuará vivendo sem
esperança e sem Deus no mundo.

2. Resultados práticos
A genuína tendência dessas verdades nã o é fazer os homens
indolentes e displicentes, e sim de comunicar energia e estímulo aos
seus esforços. Com frequência, heró is e conquistadores, como César
e Napoleã o, se sentiram possuídos do senso de destino. Este senso
comunica serenidade, infunde novos brios e imprime a invencível
determinaçã o de levar a bom termo o esforço até o fim colimado.
Metas extensas e difíceis só podem ser alcançadas por pessoas que
têm confiança em si e que nã o permitem que os obstá culos que
porventura encontrem as desanimem. “Uma vez abraçada esta ideia
de destino”, disse Mozley, “por ser o efeito natural do senso de
poder, serve para aumentar grandemente tal senso. Tã o logo a
pessoa se considere predestinada para alcançar algum grande fim,
ela age com muito mais vigor e constâ ncia para alcançá -lo; ela nã o
se sente dividida por dú vidas ou debilitada por escrú pulos ou
temores; ela crê plenamente que se sairá triunfantemente, e esta
convicçã o é o maior auxílio para o êxito. Em grande medida, a ideia
de um destino conduz à sua pró pria concretizaçã o. Vale dizer que
isso diz respeito ao homem moral e espiritual, bem como ao homem
natural, e se aplica a metas e propó sitos religiosos tanto quanto a
metas e propó sitos que têm a ver com a gló ria humana”. [138]
Em seu pequeno, porém valioso livro, The Creed of the Presbyterians
[O credo dos presbiterianos], E. W. Smith escreve: “O mais
confortante e enobrecedor é também o mais vigoroso dos credos.
Que a sua sombria caricatura, a doutrina fatalista, haja inspirado nos
coraçõ es humanos uma energia ao mesmo tempo sublime e
espantosa é um acontecimento comum da histó ria. O impulso
avassalador do maometismo durante os seus primó rdios, mediante
o qual logrou estabelecer-se no oriente e mediante o qual quase
conquistou o ocidente, deveu-se à convicçã o dos seus seguidores de
que as suas conquistas nã o estavam em outra coisa senã o no
cumprimento dos decretos de Alá . O que sustentou Á tila, o uno, em
sua terrível e destrutiva marcha foi a sua convicçã o de que ele fora
destinado a ser o ‘azorrague de Deus’. A energia e audá cia que
permitiram a Napoleã o tentar e alcançar aparentes impossibilidades
foram alentadas pela convicçã o secreta de que ele era ‘o homem do
destino’. O fatalismo deu origem a uma raça de titã s, os quais
manifestaram uma energia sobre-humana, por se considerarem
instrumentos de um poder sobre-humano.
“Se a sombria caricatura desta doutrina [fatalismo] alentou tal
energia, a genuína doutrina da predestinaçã o deve inspirar uma
energia ainda mais sublime; já que todo o verdadeiramente
inspirador nela se manifesta com força ainda maior quando, em vez
de um destino cego ou de uma deidade fatalista, substituímos tudo
isso por um Deus sá bio que decretou todas as coisas. Ela me faz
sentir que em todo dever a cumprir, que em toda reforma
necessá ria, outra coisa nã o estou fazendo senã o cumprir o eterno
propó sito de Jeová ; ela me faz ouvir em todo o meu corpo, em toda
batalha a favor do bem, o som das Reservas Infinitas em marcha; e
serei soerguido para além de todo medo do homem ou da
possibilidade do fracasso final.” [139]
Em um perió dico britâ nico, The Daily Express , de 18 de abril de
1929, aparece um artigo sobre Earl Haig, que era Comandante em
Chefe dos exércitos britâ nicos durante a Primeira Guerra Mundial; e
que, além do mais, era escocês presbiteriano calvinista. “O aspecto
mais extraordiná rio da personalidade de Haig é que o reservado,
frio e formal militar tinha uma fé profunda; e nas mais severas crises
da guerra ele cria implicitamente que a sua ajuda viria do alto; e
considerava a si mesmo como o escolhido do Senhor, o ú nico
Cromwell que podia vencer o inimigo. O Sr. Haig estava
genuinamente convencido de que a posiçã o da qual havia sido
chamado era aquela que somente ele podia ocupar no exército
britâ nico. E nã o era orgulho. Nã o havia ninguém menos inclinado a
subestimar o seu pró prio valor ou capacidade; era a opiniã o baseada
no discernimento de todos os fatores. Ele chegou a considerar-se,
com uma fé quase calvinista, como o instrumento predestinado da
providência para alcançar a vitória a favor dos exércitos britânicos.
Sua pujante confiança em si mesmo foi reforçada pela concepção que
tinha de si mesmo como o filho do destino ”.
A tendência genuína dessas verdades é, como já dissemos
previamente, nã o a de tornar os homens indolentes e displicentes,
nem a de adormecê-los nas fraudas da presunçã o e da segurança
carnal, mas a de infundir-lhes vigor e inspirar neles genuína
confiança. Tanto a razã o quanto a experiência nos ensinam que,
quanto maior é a esperança de êxito, mais forte é o motivo para o
esforço. A pessoa que se sente segura no uso de meios apropriados
possui o maior dos incentivos ao esforço; de outro lado, onde há
pouca esperança haverá pouca disposiçã o para o esforço; e onde nã o
há esperança, também nã o há nenhum esforço. Portanto, o crente
que possui os mandamentos de Deus e a promessa de que o esforço
dos que obedecem e reverentemente fazem uso dos meios
apropriados serã o abençoados, possuem o maior dos incentivos à
diligência. Além disso, o crente é elevado e inspirado pela firme
convicçã o de que ele mesmo está destinado a uma coroa celestial.
Quem ensinou a doutrina da eleiçã o mais claramente ou em
linguagem mais convincente do que o apó stolo Paulo? E, no entanto,
quem foi mais zeloso e mais incansá vel em suas labutas do que ele?
O seu ensino o converteu em missioná rio e o impeliu a proclamar o
cristianismo como o credo final e triunfante. Quã o alentador foi para
ele, em Corinto, ouvir as palavras: “Nã o temas; pelo contrá rio, fala e
nã o te cales; porquanto eu estou contigo, e ninguém ousará fazer-te
mal, pois tenho muito povo nesta cidade” (At 18.9, 10). E que maior
incentivo ao esforço lhe foi dado, de que a sua pregaçã o haveria de
ser o meio divinamente estabelecido para a conversã o de muitas
dessas pessoas? Note bem que Deus nã o lhe disse quantas pessoas
ele tinha naquela cidade, nem quem eram elas. O ministro do
evangelho pode seguir em frente confiante no êxito, sabendo que,
por este meio estabelecido por Deus, ele determinou salvar um
grande nú mero de pessoas em cada época. De fato, um dos maiores
incentivos à s missõ es é que o evangelismo deve satisfazer a vontade
de Deus para o mundo inteiro; e somente quando se reconhece a
soberania de Deus em todas as esferas da vida é que também se
sente a mais profunda paixã o pela gló ria divina.
A experiência da igreja em todas as épocas tem sido que esta
doutrina tem conduzido os homens nã o à negligência nem a uma
insensível indiferença nem a uma rebelde oposiçã o a Deus, e sim à
submissã o e a uma só lida confiança no poder divino. A promessa
feita a Jacó de que a sua posteridade haveria de ser uma grande
naçã o de modo algum o impediu de fazer uso de todos os meios
disponíveis para a sua proteçã o quando parecia que Esaú de fato o
mataria, a ele e a toda a sua família. Quando Daniel entendeu pelas
profecias de Jeremias que o tempo para a restauraçã o de Israel
estava para se cumprir, ele se dedicou a orar intensamente por isso
(Dn 9.3). Logo depois que se revelou a Davi que Deus estabeleceria a
sua casa, este orou intensamente em prol desse fato (2Sm 7.27-29).
Ainda que Cristo conhecesse o que fora estabelecido para o seu
povo, ele orou intensamente pela preservaçã o deste (Jo 17). E ainda
que a Paulo se revelasse que ele haveria de ir a Roma e ali dar
testemunho, isso de modo algum serviu para torná -lo displicente
quanto à sua vida. Ao contrá rio, tomou toda precauçã o para se
proteger de um juízo injusto da parte da turba de Jerusalém e contra
uma viagem importunante (At 23.11; 25.10, 11; 27.9, 10). O decreto
de Deus foi que todos os tripulantes do barco haveriam de se salvar,
porém esse decreto incluía o livre, corajoso eficaz esforço da parte
dos marinheiros. A liberdade e a responsabilidade dos marinheiros
nã o foram diminuídas sequer um mínimo. O efeito prá tico desta
doutrina tem sido, pois, o de conduzir os homens a frequente e
fervorosa oraçã o, sabendo eles que os seus tempos estã o nas mã os
de Deus e que cada evento das suas vidas é ordenado por Deus.
Além do mais, cabe-nos afirmar que, enquanto o pecador
permanecer ignorante da sua condiçã o perdida e sem esperança,
este continuará sendo negligente. Provavelmente nã o haja um
pecador descuidado no mundo que nã o creia em sua perfeita
capacidade de converter-se a Deus, quando bem lhe apraza; e por
razã o desta crença prorroga o seu arrependimento até o tempo mais
conveniente. Justamente à medida que aumenta a sua confiança em
sua pró pria capacidade, assim aumentará a sua negligência; e
permanece adormecido no pró prio ponto de partida da destruiçã o
eterna. Somente quando o pecador sente a sua total incapacidade e
dependência da graça soberana é que ele busca socorro unicamente
onde pode encontrá -lo.
CAPÍTULO XIX. QUE A DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃO
APRESENTA DEUS COMO ALGUÉM QUE FAZ ACEPÇÃO DE
PESSOAS
 
1. Todos os sistemas enfrentam as mesmas dificuldades. 2. Deus nã o faz
acepçã o de pessoas. 3. Evidentemente, ele nã o trata a todos igualmente — ele
dá a uns o que retém de outros. 4. A parcialidade de Deus em parte é explicada
pelo fato de que ele é soberano e os seus dons sã o oriundos da graça.
 
1. Todos os sistemas enfrentam as mesmas dificuldades
 
Se todos os homens estã o mortos em pecado, e carecem de poder
para restaurar a si pró prios à vida espiritual, entã o surge a
pergunta: por que Deus exerce o seu poder para regenerar a uns
enquanto a outros ele deixa perecer? Alega-se que a justiça demanda
que todos tenham igual oportunidade; que todos tenham, seja por
natureza ou por graça, poder para alcançar a sua pró pria salvaçã o.
No entanto, cabe-nos dizer que objeçõ es como estas nã o sã o
dirigidas exclusivamente contra o sistema calvinista. Os ateus as
apresentam contra o teísmo em geral. As perguntas que geralmente
formulam sã o: se Deus é infinito em poder e santidade, por que ele
permite tanto pecado e miséria no mundo? E por que ele permite
que os ímpios prosperem por tanto tempo, enquanto os justos com
frequência sofrem pobreza e sofrimentos?
Os sistemas anti-calvinistas, contudo, nã o podem oferecer a essas
dificuldades soluçõ es verdadeiras. Se admitirmos que a regeneraçã o
é obra do pró prio pecador, e que cada pessoa possui suficiente
capacidade e conhecimento para adquirir a sua pró pria salvaçã o,
segue sendo procedente que no estado atual do mundo só
comparativamente poucos sã o salvos, e que Deus nã o intervém a fim
de impedir que a maioria das pessoas adultas pereça em seus
pecados. Os calvinistas nã o negam tais dificuldades; porém
sustentam que ditos problemas nã o pertencem exclusivamente ao
seu sistema, e ficam satisfeitos com a soluçã o parcial que as
Escrituras apresentam. Estas ensinam que o homem foi criado
santo; que deliberadamente desobedeceu à lei divina e caiu em
pecado; que, como resultado dessa queda, os descendentes de Adã o
entram no mundo em um estado de morte espiritual; que Deus
jamais os obriga a pecar, senã o que, ao contrá rio, exerce influências
que deveriam induzir as criaturas racionais a que se arrependam e
busquem esta graça a fim de serem salvas; e que pelo exercício do
seu infinito poder, vastas multidõ es, que de outro modo
continuariam em seu estado pecaminoso, sã o conduzidas à salvaçã o.
 

2. Deus não faz acepção de pessoas


Quem “faz acepçã o de pessoas” é alguém que, atuando como juiz,
nã o trata os que comparecem diante dele conforme o seu cará ter,
senã o que nega a uns o que justamente lhes pertence e dá a outros o
que nã o lhes pertence por direito — isto é, alguém governado pelo
preconceito e por motivos sinistros, e nã o pela justiça e pela lei. As
Escrituras negam que Deus faça acepçã o de pessoas neste sentido; e
se a doutrina da predestinaçã o apresenta Deus atuando desta
maneira, teríamos que admitir que ele julga injustamente e tal
objeçã o seria fatal. 
As Escrituras ensinam que Deus nã o faz acepçã o de pessoas, porque
ele nã o escolhe um e rejeita outro com base nas circunstâ ncias
externas; como raça, nacionalidade, riquezas, poder, nobreza, etc.
Pedro disse que Deus nã o faz acepçã o de pessoas, já que ele nã o faz
distinçã o entre judeus e gentios. Sua conclusã o, apó s ser
divinamente enviado a pregar o evangelho ao centuriã o romano,
Cornélio, foi que: “Reconheço, por verdade, que Deus nã o faz
acepçã o de pessoas; pelo contrá rio, em qualquer naçã o, aquele que o
teme e faz o que é justo lhe é aceitá vel” (At 10.34,35). Através de
toda a sua histó ria, os judeus creram que, como povo, eram objetos
exclusivos do favor de Deus. Uma leitura cuidadosa de Atos 10.1 a
11.18 revelará quã o revolucioná ria era a ideia de que o evangelho
tinha de ser pregado igualmente aos gentios.
Da mesma forma, Paulo afirma: “gló ria, porém, e honra, e paz a todo
aquele que pratica o bem, ao judeu primeiro e também ao grego.
Porque para com Deus nã o há acepçã o de pessoas” (Rm 2.10, 11). E,
outra vez, “nã o pode haver judeu nem grego; nem escravo nem
liberto; nem homem nem mulher; porque todos vó s sois um em
Cristo Jesus”. A seguir adiciona que judeu nã o é aquele que o é
externamente, mas os de Cristo sã o aqueles que, em um sentido
mais profundo, sã o “da linhagem de Abraã o” e “herdeiros segundo a
promessa” (Gl 3.28, 29). Em Efésios 6.5-9 se ordena que os escravos
e os senhores se tratem entre si com justiça; porque Deus, que é o
Senhor de ambos, nã o faz acepçã o de pessoas; e Colossenses 3.25
inclui igualmente as relaçõ es entre pais e filhos e entre esposas e
esposos. Tiago diz que Deus nã o faz acepçã o de pessoas, porque nã o
faz distinçã o entre rico e pobre, nem entre os que usam vestes finas
e os que se vestem com simplicidade (2.1-9). O termo “pessoa”,
nestes versículos, significa nã o o homem interior, ou a alma, e sim a
aparência externa, que tã o frequentemente nos influencia de modo
tã o marcante. Portanto, quando as Escrituras afirmam que Deus nã o
faz acepçã o de pessoas, isso nã o significa que Deus trata todos em
pé de igualdade, mas que a razã o pela qual ele salva um e rejeita
outro nã o é porque um seja judeu e o outro, gentio; ou porque um
seja rico e o outro, pobre, etc.
 
3. Evidentemente, Deus não trata todos em pé de igualdade; ele
dá a um o que retém do outro
É um fato ó bvio que em seu governo providencial do mundo, Deus
nã o confere os mesmos ou iguais favores a todas as pessoas. A
disparidade é muitíssimo evidente para ser negada. As Escrituras
nos afirmam e as experiências da vida cotidiana nos demonstram
que existe uma grande variedade na distribuiçã o dos favores divinos
— e isso com justiça, já que esses favores sã o dados gratuitamente ,
e nã o por dívida. Neste ponto, o calvinista se baseia na realidade dos
fatos que o mesmo experimenta. Que os homens neste mundo se
encontram desigualmente favorecidos, tanto em suas disposiçõ es
íntimas quanto em suas circunstâ ncias externas, é uma realidade
que nenhum argumento pode refutar. Uma criança nasce saudá vel,
com honra e riqueza, de pais eminentemente bons e sá bios; que
desde a mais tenra infâ ncia é criada no conhecimento e temor do
Senhor; e é galardoada com a oportunidade de conhecer a verdade
conforme as Escrituras. Outra nasce doente, sem honra, em pobreza,
de pais perdulá rios e depravados que rejeitam, ridicularizam e
menosprezam a fé cristã , e que tudo fazem para que o seu filho nã o
receba as influências do evangelho. Uns nascem com coraçõ es e
consciências sensíveis, o que lhes permite viver vidas de inocência e
pureza; outros nascem com paixõ es violentas, e inclusive com fortes
tendências para o mal, as quais aparentemente sã o herdadas e sã o
incorrigíveis. Uns sã o felizes e outros, miserá veis. Uns nascem em
terras cristã s e civilizadas onde sã o educados e cuidados com
esmero; outros nascem nas mais profundas trevas do paganismo.
Em geral, a criança cercada por influências cristã s chega a ser um
cristã o piedoso e vive uma vida de grande prestaçã o de serviço;
enquanto a outra, cujo cará ter é moldado sob a influência de ensinos
e exemplos corruptores, vive em impiedade e morre impenitente.
Um é salvo, o outro perece. E acaso alguém ousará negar que as
influências condutivas à salvaçã o, sob as quais vivem alguns
indivíduos, sã o muito mais favorá veis do que as que influem sobre
outros? Toda pessoa sincera nã o deve admitir que, se os indivíduos
mudassem de lugar, provavelmente o seu cará ter também seria
mudado? Que, se o filho de pais piedosos fosse filho de pais ímpios e
vivesse sob as mesmas influências corruptoras com toda
probabilidade ele pereceria em seus pecados? Em sua misteriosa
providência, Deus colocou as pessoas sob influências bem distintas,
e por essa razã o os resultados sã o bem distintos. Certamente ele
conheceu de antemã o os resultados distintos que surgiriam antes
que as pessoas nascessem. Esses sã o fatos que ninguém pode negar
ou explicar a seu modo. E se devemos crer que o mundo é
governado por um Ser pessoal e inteligente, devemos também crer
que essas desigualdades nã o surgiram por acaso ou por acidente, e
sim seguindo um propó sito e designaçã o de que tudo o que acontece
na vida de cada indivíduo já foi determinado pelo soberano
beneplá cito de Deus. No dizer de N. L. Rice, “até mesmo os
arminianos se veem obrigados a reconhecer que Deus faz grandes
diferenças em seus tratos com a família humana; nã o só na
distribuiçã o de bênçã os temporais, mas também na de dons
espirituais — uma diferença que os obriga, caso queiram ser
consistentes, a sustentar a doutrina da eleiçã o. Nã o conceder o
evangelho e a influência divina a certas pessoas certamente
equivale, em termos gerais, a reprovaçã o”. [140]
Os calvinistas meramente presumem que, na dispensaçã o de sua
graça, Deus opera precisamente como opera ao conferir outros
favores. Se em princípio fosse injusto que Deus cometesse
parcialidade na distribuiçã o de bens espirituais, seria nã o menos
injusto ser ele parcial em sua distribuiçã o de bens temporais. No
entanto, a realidade é que ele, no exercício da sua soberania
absoluta, faz as mais estreitas distinçõ es entre os homens desde o
início de suas vidas; e que o faz sem levar em conta todo mérito
pessoal tanto na distribuiçã o de bens temporais quanto na
distribuiçã o dos meios essenciais para a salvaçã o. Daí as Escrituras
afirmarem acerca do Espírito Santo: “distribuindo-as, como lhe
apraz, a cada um individualmente” (1Co 12.11); e em parte alguma
nas Escrituras lemos que Deus seja imparcial na comunicaçã o da sua
graça. Com respeito aos seus tratos com as naçõ es, vemos que Deus
tem favorecido a umas mais que a outras — por exemplo, a Israel
nos tempos pretéritos, e a Europa e as Américas nos tempos atuais,
enquanto a Á frica e o Oriente continuam subsistindo em densas
trevas e maldiçã o de religiõ es falsas — um fato que todos deveriam
admitir.
Ainda que os judeus sejam um povo pequeno e desobediente, Deus
lhes conferiu favores que nã o tem conferido à s demais naçõ es do
mundo. “De todas as famílias da terra, somente a vó s outros vos
escolhi” (Am 3.2). “Qual, pois, a vantagem do judeu? Ou qual a
utilidade da circuncisã o? Muita, sob todos os aspectos .
Principalmente porque aos judeus foram confiados os orá culos de
Deus” (Rm 3.1, 2). Esses favores nã o foram conferidos por haver
algo meritó rio nos pró prios judeus, já que uma e outra vez eles
foram repreendidos por serem “povo rebelde e de dura cerviz”.
Mateus 11.25 registra uma oraçã o na qual o Senhor afirmou: “Graças
te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas
aos sá bios e instruídos e as revelaste aos pequeninos”. Nessas
palavras, Cristo deu graças ao Pai por fazer aquilo que os arminianos
protestam como sendo injusto e censuram como sendo parcialidade.
Caso se pergunte: Por que Deus nã o outorga as mesmas ou iguais
bênçã os a todas as pessoas? Só podemos responder que isso nã o nos
foi revelado completamente. Na vida cotidiana, vemos que ele nã o
trata a todos com igualdade. Por razõ es sá bias conhecidas
unicamente por ele, a alguns concede bênçã os que nã o mereciam —
fazendo-os devedores da sua graça — e a outros retém dons que ele
nã o está na obrigaçã o de conferir.
Todavia, nã o há sequer um membro dessa raça apó stata que nã o
seja tratado pelo seu Criador melhor do que merece . E como a graça
é um favor exibido à quele que nã o o merece, Deus tem o direito
soberano de conferir mais graça a uma pessoa do que a outra. No
dizer de W. G. T. Shedd: “A concessã o da graça comum aos nã o
eleitos demonstra que a ausência da eleiçã o nã o exclui os nã o eleitos
no reino dos céus por eficiência divina; já que a graça comum nã o é
apenas um convite para se crer e se arrepender, e sim um auxílio real
a isso; um auxílio que é anulado unicamente pela obstinada
resistência do nã o eleito, e nã o por algo na natureza da graça
comum, ou por algum ato preventivo da parte de Deus. A falta ou
falha da graça comum para salvar o pecador se deve unicamente ao
pecador; e este nã o tem nenhum direito de utilizar uma falha
pessoal como razã o pela qual tem o direito à graça especial de
Deus”. [141]
Caso se objete que Deus deve dar a cada pessoa uma oportunidade
de ser salva, respondemos que o chamamento externo dá a cada
pessoa que o recebe uma chance de se salvar. A mensagem é: “Creia
no Senhor Jesus Cristo e você será salvo”. Essas palavras dã o a cada
pessoa a oportunidade de se salvar; e nada fora da pró pria natureza
da pessoa a impede de crer. Shedd expressou esta ideia muito bem
nas seguintes palavras: “O mendigo que desdenhosamente rejeita
certa quantia em dinheiro, que lhe é oferecida por alguém
benevolente, nã o pode acusar este de ser mesquinho e desamoroso,
depois da recusa de receber aquela quantia. O pecador que protesta
que Deus o ignorou na concessã o da graça regeneradora depois de
haver abusado da graça comum, virtualmente está dizendo ao ‘Alto e
Sublime que habita a eternidade: Tentaste converter-me uma vez do
pecado; tenta de novo, mas com maior tenacidade’”. [142]
Um argumento forte contra a objeçã o arminiana de que esta
doutrina faz Deus injustamente parcial se radica no fato de que,
ainda quando Deus tenha manifestado a sua graça salvadora a seres
humanos alienados dele, ele nã o fez provisã o para a redençã o do
diabo e os anjos apó statas. Se é consistente com a infinita bondade e
justiça de Deus passar por alto todos os anjos apó statas, deixando-os
sofrer as consequências do seu pecado, entã o por certo é também
consistente com a sua bondade e justiça passar por alto alguns da
raça humana apó stata, deixando-os em seu pecado. Quando o
arminiano admite que Cristo nã o morreu pelos anjos apó statas ou
demô nios, e sim unicamente por seres humanos apó statas, ele está
admitindo a expiaçã o limitada e em princípio está fazendo o mesmo
tipo de distinçã o que o calvinista faz, o qual afirma que Cristo
morreu unicamente pelos eleitos.
Os homens, com o seu conhecimento limitado e à s vezes equivocado,
nã o têm o direito de censurar a Deus pela distribuiçã o da sua graça.
Tã o irracional seria acusar a Deus de injustiça por haver ele criado
todas as criaturas com natureza angelical; e por nã o havê-las
preservado em santidade como fez com os anjos no céu (como
poderia ter feito); como seria acusá -lo de injustiça por nã o haver ele
redimido toda a raça humana. Tã o difícil é entender por que ele
salva uns e outros nã o. Obviamente, ele nã o impede a perdiçã o
daqueles que, sem dú vida alguma, tem o poder de salvar. E se os que
creem na providência de Deus dizem que ele tem razõ es sá bias para
permitir que tantos de nossa raça pereçam, os que advogam em prol
da sua soberania podem dizer que ele tem razõ es sá bias para salvar
uns e nã o outros. E tã o razoá vel seria argumentar que, como Deus
castiga a uns, deveria, portanto, castigar a todos; porém ninguém
chega a tal extremo.
Admitimos que, de nossa ó tica humana, pareceria mais razoá vel e
mais consistente com o cará ter de Deus que ele jamais permitisse
que o pecado e a miséria entrassem em nosso universo; ou, uma vez
entrados, que se fizesse provisã o para a sua total erradicaçã o do
universo, a fim de que todas as criaturas racionais fossem
perfeitamente santas e fiéis para todo o sempre. Mas a verdade é
que nã o haveria fim para tais planos se cada pessoa tivesse a
liberdade de formar um plano de operaçõ es divinas em
conformidade com as suas pró prias ideias do que seria melhor e
mais sá bio. Estamos confinados aos fatos como aparecem na Bíblia,
nas operaçõ es providenciais ao nosso redor, e em nossas pró prias
experiências religiosas; e somente o sistema calvinista satisfaz essas
realidades.
 

4. A parcialidade de Deus em parte é explicada pelo fato de que


ele é soberano e os seus dons são provenientes da graça
Nã o se pode dizer que Deus aja injustamente para com aqueles que
nã o estã o incluídos nesse plano de salvaçã o. Os que apresentam essa
objeçã o nã o levam em consideraçã o o fato de que Deus nã o está
tratando meramente com criaturas, e sim com criaturas pecadoras
que perderam todo o direito à misericó rdia divina. Agostinho
escreveu: “A condenaçã o do ímpio é uma questã o de dívida, de
justiça e do que é justamente merecido; enquanto a graça conferida
aos que sã o salvos é gratuita e imerecida, de modo que o pecador
condenado nã o pode alegar que nã o é merecedor do seu castigo nem
o crente jactar-se ou vangloriar-se como se fosse merecedor da sua
recompensa. Portanto, no curso deste procedimento nã o há acepçã o
de pessoas. Os condenados e os eleitos constituíram originalmente
uma mesma massa, todos igualmente infectados pelo pecado e
merecedores da retribuiçã o divina. Os eleitos, por sua vez, podem
aprender da condenaçã o dos demais que esse teria sido o seu
pró prio castigo, se a graça de Deus nã o operasse em seu favor”. E
Calvino afirma a mesma coisa: “O Senhor pode outorgar a sua graça
a quem ele quiser outorgá -la, porque ele é misericordioso e, todavia,
nã o pode dá -la a todos porque ele é um juiz justo; pode manifestar a
sua graça, dando a uns o que nunca merecem, ou manifestar o
demérito de todos deixando de estender a sua graça a todos”.
Parcialidade , no sentido em que os opositores comumente usam a
palavra, é impossível na esfera da graça. A parcialidade só pode
existir na esfera da justiça, na qual as pessoas envolvidas possuem
certos direitos . Podemos atender um mendigo e a outro, nã o, já que
nã o devemos nada a nenhum deles. A pará bola dos talentos foi
pronunciada por nosso Senhor para ilustrar a doutrina da soberania
divina na concessã o de dá divas imerecidas ; e a regeneraçã o da alma
é uma das maiores dessas dá divas.
O principal ensino da pará bola dos trabalhadores na vinha é que
Deus é soberano na administraçã o das suas dá divas. Tanto ao salvo
quanto ao nã o salvo ele pode dizer: “Amigo, eu nã o o ofendo… Nã o
me é lícito fazer o que quero do que é meu? Ou você nutre inveja
porque eu sou bom?” (Mt 20.13-15). Ele disse a Moisés: “Terei
misericó rdia de quem me aprouver ter misericó rdia, e me
compadecerei de quem me aprouver ter compaixã o”; e Paulo anexa:
“Assim, pois, nã o depende de quem quer ou de quem corre, mas de
Deus usar a sua misericó rdia. Logo, tem ele misericó rdia de quem
quer e também endurece a quem lhe apraz” (Rm 9.15-18). A uns ele
estende a sua misericó rdia; a outros, aplica a sua justiça; e será
glorificado por todos. Assim como uma pessoa pode dar esmola a
uns e a outros, nã o, de igual modo Deus pode dar a sua graça, que é
esmola celestial, a quem ele a queira dar. Pela sua pró pria natureza,
a graça é gratuita; e a pró pria desigualdade em sua distribuiçã o
demonstra que ela é de fato gratuita. Se alguém tivesse o direito de
reivindicá -la, ela cessaria de ser graça e seria dívida. Se porventura
Deus for despojado da sua soberania, neste aspecto, entã o a salvaçã o
vem a ser assunto de dívida para com cada pessoa.
Se dez pessoas devem cada uma dez mil reais a um credor, e este,
por razõ es pessoais, perdoa a dívida a sete dentre elas, porém nã o à s
outras três, estas nã o têm embasamento para se queixar. Se três
criminosos sã o sentenciados à morte por haverem cometido
assassinato e a seguir dois deles sã o perdoados — quem sabe por
descobrir-se que prestaram um grande serviço ao seu país em
tempo de guerra —, acaso isso faz injustiça à execuçã o do terceiro?
Supõ e-se que nã o; já que, em seu caso, nã o há causa que intervenha
para livrá -lo do castigo pelo seu crime. E se a um príncipe terreno
permite que proceda dessa maneira, acaso o Senhor soberano nã o
poderá agir da mesma maneira para com os seus sú ditos rebeldes?
Quando toda a humanidade era merecedora do castigo, como
acusaríamos a Deus de injustiça por haver castigo somente uma
parte dela? E, cabe afirmar, uma parte comparativamente pequena.
Aqui, Warburton apresenta uma excelente ilustraçã o. Ele imagina
um caso em que uma dama vai a um orfanato e entre as centenas de
crianças ali escolhe uma, adota-a como sua filha e deixa as demais.
“Ela poderia ter escolhido também as outras, já que possuía os
meios; mas escolheu apenas uma. Acaso você dirá que a mulher
cometeu injustiça, ou foi parcial, ou agiu de má fé por haver
escolhido, no exercício de seu indiscutível direito e privilégio,
somente a essa criança, para que a mesma desfrutasse das
comodidades do seu lar e para que fosse a herdeira das suas
possessõ es, deixando todas as demais, provavelmente a perecer em
necessidade, ou a mergulhar cada vez mais na miserá vel condiçã o de
criança sem lar? Porventura você já ouviu, alguma vez, alguém
acusar de injustiça ou de maldade a outro alguém que procedeu
dessa maneira? Ao contrá rio, nã o se devem considerar louvá veis tais
açõ es? Nã o se falam delas em termos elevados do amor, da piedade
e da compaixã o das pessoas que assim procedem? Ora, qual a razã o
de tal atitude? Por que nã o se objeta que foi injusto escolher um, em
particular, e nã o outros ou todos eles? Eis a razã o — porque os
homens sabem — como nó s também o sabemos — que todas essas
crianças estavam exatamente na mesma condiçã o, e que nenhuma
delas possuía o mínimo direito, ou o mínimo vestígio de direito,
sobre a pessoa cuja vontade e prazer adotou uma dentre elas para
ser sua. Acaso você pode perceber alguma diferença entre este ato
de Deus e o da minha vizinha? As crianças daquele orfanato nã o
tinham nenhum direito sobre a minha vizinha. Nem tampouco os
homens apó statas tinham algum direito sobre Deus, e a eleiçã o
divina, justamente por ser livre e imerecida, foi justa e correta. E
esta livre e imerecida eleiçã o de antemã o, da parte de Deus, à luz da
ruína que o homem trouxe sobre si, é tudo o que significa a doutrina
calvinista da predestinaçã o”.
Dado que os méritos do sacrifício de Cristo foram de valor infinito, o
plano que inicialmente surge em nossa mente é que Deus deveria ter
salvado a todos. No entanto, Deus decidiu manifestar eternamente a
sua justiça assim como a sua misericó rdia. Se todos fossem salvos,
nã o se aquilataria o que o pecado merecia; e se ninguém fosse salvo,
nã o se demonstraria o que a graça podia conferir. Além disso, o fato
de se prover a salvaçã o, nã o para todos, mas somente para alguns,
faz com que ela seja mais apreciada por aqueles a quem ela é dada.
Todavia, foi melhor para o universo, em geral, que se permitisse a
alguns que seguissem os seus pró prios caminhos e assim se
demonstrasse quã o horrenda é a oposiçã o a Deus.
Mas é possível que alguém indague: o que dizer da pessoa nã o
regenerada, da pessoa nã o escolhida, que foi deixada em pecado,
sujeita ao castigo eterno, incapaz até mesmo de ver o reino de Deus?
Respondemos: lembre-se do pecado original; em Adã o, que foi
designado a cabeça federal e o representante de todos os seus
descendentes, a raça humana teve a oportunidade mais justa e
favorá vel de salvaçã o, porém ele a perdeu. A justificativa da eleiçã o
de alguns e de passar por alto os demais se acha no fato de que
“todos pecaram e estã o destituídos da gló ria de Deus”. Sem lugar a
dú vida, há as melhores razõ es para escolher alguns e passar por alto
os demais, contudo tais razõ es nã o foram reveladas. No entanto,
sabemos que nenhum dos perdidos sofre qualquer castigo
imerecido. Os perdidos desfrutam, neste mundo, das coisas boas
provenientes da providência da mesma forma que os filhos de Deus,
e com frequência com mais abundâ ncia que estes. A consciência e a
experiência testificam que somos membros de uma raça apó stata, e
cada ser humano que nã o alcança a vida eterna sabe que a
responsabilidade descansa primordialmente sobre si mesmo. Além
disso, se todos os homens se encontram em sua atual condiçã o de
perdiçã o e ruína devido à operaçã o de princípios justos da parte de
Deus (e quem dirá que nã o o sã o?), entã o podem justamente ser
deixados para sofrer o merecido castigo. Constitui um absurdo dizer
que, de um lado, os pecadores merecem a miséria eterna; mas que,
do outro lado, seria injusto que sofressem; já que isto equivaleria
dizer que a aplicaçã o de um castigo merecido é injusta. Além disso,
poderíamos anexar que o homem em sua condiçã o alienada de Deus
nã o sente desejo algum de ser salvo, e que da massa corrupta de
seres humanos Deus “tem misericó rdia de quem quer e endurece a
quem lhe apraz”. Este é o ensino uniforme das Escrituras. O que
nega isto nega o cristianismo e põ e em xeque o governo do mundo
da parte de Deus.
Cabe assinalar que todos nó s somos parciais. Tratamos os membros
da nossa pró pria família ou nossos amigos com grande parcialidade,
muito embora saibamos que nã o merecem mais, ou, talvez, que
merecem menos, que o que merecem muitos outros dentre os
nossos conhecidos. Nã o significa que, se concedemos favores a uns,
somos obrigados a conceder a outros os mesmos ou iguais favores.
O arminiano, todavia, prescreve como regra para o Altíssimo que a
sua graça deve estender-se a todos igualmente, como se se tratasse
do tesouro pú blico. No dizer de Toplady: “Se um amigo terreno me
presenteia com certa quantia em dinheiro, nã o seria irracional,
ingrato e presunçoso da minha parte recusar tal presente,
ofendendo o doador por nã o haver conferido o mesmo presente ao
meu vizinho?”.
Portanto, à objeçã o de que a doutrina da predestinaçã o apresenta
Deus como “parcial”, respondemos: Sim, é verdade. Porém
afirmamos que ela nã o o apresenta como injustamente parcial.
CAPÍTULO XX. QUE A DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃO É
DESFAVORÁVEL À BOA MORALIDADE
 
 
1. Os meios tanto quanto os fins estã o preordenados. 2. Amor e gratidã o a
Deus pelo que ele tem feito em nosso favor é a mais forte e ú nica base
permanente para a moralidade. 3. Os frutos prá ticos do calvinismo na histó ria
sã o a sua melhor defesa.
 
1. Os meios tanto quanto os fins estão preordenados
Com frequência ouvimos a objeçã o de que este sistema estimula os
seres humanos à negligência e indiferença em sua conduta moral e
em seu crescimento na graça, em razã o de que sua bem-aventurança
eterna já está assegurada. Essa objeçã o é dirigida principalmente
contra as doutrinas da eleiçã o e da perseverança dos crentes.
Todavia, tal objeçã o, da mesma forma que diz que este sistema serve
de obstá culo ao esforço humano, é completamente refutada pelo
grande princípio que sustentamos e ensinamos, a saber, que tanto os
meios quanto os fins já foram preordenados. O decreto de Deus, de
que a terra seja frutífera, nã o exclui, mas inclui, a luz do sol, as
chuvas, o cultivo do solo da parte do lavrador, etc. Se Deus
preordenou que um homem colha mais, também preordenou que
antes de tudo ele lavre, semeie, cultive e faça tudo o que for
necessá rio para lograr a colheita. Assim como o propó sito de
construir inclui o preparo da pedra, o corte da madeira e a
preparaçã o de todos os materiais a serem usados na construçã o da
estrutura; e assim como a declaraçã o de guerra implica armas,
muniçõ es, navios e outro equipamento necessá rio; assim a eleiçã o
de alguns para o desfruto da vida eterna no céu inclui a sua eleição
para a santidade aqui na terra . Nã o é o indivíduo como tal que é
predestinado para a vida eterna, e sim o indivíduo santo e virtuoso .
Paulo ensinou em termos os mais claros que o pró prio propó sito da
eleiçã o visava a que “sejamos santos e sem má cula diante dele” (Ef
1.4); que fomos predestinados para sermos “feitos conformes a
imagem do seu Filho” (Rm 8.29); e que Deus nos escolheu “desde o
princípio para a salvaçã o, mediante a santificaçã o do Espírito e fé na
verdade” (2Ts 2.13). “E creram todos os que estavam destinados à
vida eterna” (At 13.48). Os predestinados, os chamados, os
justificados, os glorificados sã o sempre as mesmas pessoas (Rm
8.29, 30). Portanto, o propó sito de Deus conforme a eleiçã o
permanecerá (Rm 9.11).
A posiçã o calvinista sobre este tema aparece bem apresentada na
Confissão de Westminster , onde lemos: “Assim como Deus destinou
os eleitos para a gló ria, assim também, pelo eterno propó sito da sua
vontade, preordenou todos os meios conducentes a esse fim; os que,
portanto, sã o eleitos, achando-se caídos em Adã o, sã o remidos por
Cristo, sã o eficazmente chamados para a fé em Cristo, pelo seu
Espírito que opera no tempo devido, sã o justificados, adotados,
santificados e guardados pelo seu poder, por meio da fé salvadora.
Além dos eleitos nã o há nenhum outro que seja remido por Cristo,
eficazmente chamado, justificado, adotado, santificado e salvo”. [143]
“Deus decretou que se acrescessem quinze anos à vida de Ezequias;
isso nã o tornou Ezequias descuidado da sua saú de nem negligente
da sua alimentaçã o; ele nã o disse: ‘Ainda que me lance ao fogo, ou à s
á guas, ou tome veneno, de qualquer modo viverei mais quinze anos;
e sim, que a providência natural no devido uso de meios agiu
juntamente a fim de levá -lo ao período de tempo preordenado por
Deus.” [144]
Como todos os eventos estã o mais ou menos
estreitamente relacionados, e como Deus age usando meios, se ele
nã o determinasse os meios como faz com os eventos, nã o haveria
certeza a respeito dos pró prios eventos. Na redençã o do homem,
Deus decretou nã o só a obra de Cristo e do Espírito Santo, mas
também a fé, o arrependimento e a perseverança dos seus
escolhidos.
Quando esta doutrina foi ensinado por Paulo em outra ocasiã o e
essa mesma objeçã o foi aduzida contra ela — isto é, que “a fé
invalida a lei”, ou, em outras palavras, já que somos salvos mediante
a fé, nã o mais temos que guardar a lei moral — a sua resposta
enfá tica foi: “Nã o, de maneira nenhuma! Antes, confirmamos a fé”
(Rm 3.31). Como podemos ver, há uma invariá vel conexã o
estabelecida entre a salvaçã o eterna como fim e a fé e santificaçã o
como meios que conduzem a esse fim.
Certamente o crente ideal nã o cometerá nenhum pecado. O crente é
salvo para que pratique boas obras, e é ordenado a este fim: “nã o
dando nó s nenhum motivo de escâ ndalo em coisa alguma, para que
o nosso ministério nã o seja censurado” (2Co 6.3). As Escrituras nã o
conhecem nenhuma perseverança que nã o seja para a santidade,
nem propiciam um senso de segurança que nã o esteja unido a uma
presente e crescente santidade. A virtude e a piedade sã o, portanto,
os efeitos, e nã o as causas da eleiçã o, à qual nã o se pode anexar
nenhuma outra causa que nã o seja a boa e soberana vontade de
Deus. É verdade que alguns avançam muito mais em santidade do
que outros, e continuam nesse estado por um período muito mais
longo do que outros; nã o obstante, aquele que nã o participa de certo
grau de santidade, neste mundo, espera em vã o desfrutar a
felicidade no mundo vindouro. A todos quantos Deus escolheu para
serem perfeitamente felizes na eternidade também escolheu para
serem parcialmente felizes neste mundo; e como a santidade é
essencial à felicidade de um ser inteligente, portanto já neste mundo
começa nele aquela santidade sem a qual ninguém verá o Senhor.
 
2. Amor e gratidão a Deus pelo que ele tem feito em nosso favor
são a mais forte e única base permanente para a moralidade
Aqueles que apresentam a objeçã o que estamos considerando agora
dã o por garantido que os crentes — aqueles que, mediante o
onipotente poder de Deus, têm sido conduzidos da morte à vida, do
pecado à santidade; que têm contemplado parcialmente o amor e a
gló ria de Deus revelados em Cristo — sã o incapazes de ser
influenciados por motivos que nã o sejam aqueles que surgem da
consciência de um interesse egoísta pela sua pró pria segurança e
felicidade. E, efetivamente, como diz Cunningham, eles fazem a
confissã o, “primeiro, que toda decência externa que sua conduta
exiba hoje se deve exclusivamente ao temor ao castigo; e, segundo,
que, se apenas estivessem isentos do castigo, encontrariam muito
mais satisfaçã o servindo ao diabo do que a Deus; e que jamais lhes
ocorreria demonstrar alguma gratidã o para com aquele que lhes
conferiu a segurança e a libertaçã o em que tanta confiança
depositam”. [145]
O contraste entre a base de moralidade calvinista e a base de
moralidade arminiana é apresentado claramente no seguinte
pará grafo de McFetridge: “As duas grandes fontes que movem os
homens sã o, de um lado, a convicção e a ideia ; do outro, a emoção e
o sentimento ; e o cará ter moral de cada pessoa será moldado à
medida que estes o controlem. O homem guiado por convicçã o e
ideias é o homem de estabilidade; ele nã o pode ser mudado a menos
que primeiramente a sua consciência seja mudada; o homem guiado
por emoçã o e sentimento, por sua vez, é um homem instá vel. O
arminianismo apela principalmente para os sentimentos; sustenta
que o homem possui absoluto controle moral de si mesmo, e que é
capaz, em todo movimento, de determinar o seu estado eterno, pelo
qual naturalmente busca, acima de tudo, incitar as emoçõ es.
Considera como ú til a tudo o que licitamente desperta os sentidos. O
arminiano é, portanto, religiosamente falando, uma pessoa dos
sentidos, do sentimento, e por isso se inclina para todas aquelas
coisas que apelam para o olho e satisfazem o ouvido. Sua
moralidade, portanto, como depende principalmente das emoçõ es,
é, consequentemente, propensa a frequentes flutuaçõ es, subindo e
descendo com a onda de sensaçã o sobre a qual anda. O calvinismo,
por sua vez, é um sistema que apela para a ideia mais que para o
sentimento, para a consciência mais que para a emoçã o. Para o
calvinista, todas as coisas se encontram sob um perfeito e grande
sistema de leis divinas, que operam em desafio aos sentimentos, e
que devem ser obedecidos à custa da pró pria alma. O seu
pensamento nã o é sentimento , e sim convicção . O calvinismo faz
com que a voz de Deus, falando à alma, seja o guia da conduta. Busca
convencer os homens e nã o enchê-los de uma sensaçã o fugaz.
Portanto, para o calvinista, um profundo senso do dever é a coisa
mais importante em sua vida moral. A sua primeira e ú ltima
pergunta é: É correto? E tem de se convencer disso antes e acima de
tudo. Portanto, para ele a consciência ocupa o primeiro lugar em
todo assunto prá tico. Na concepçã o calvinista, Deus traçou o
caminho no qual o homem tem de caminhar — um caminho que nã o
mudará ; e se requer do homem que caminhe nele, com alegria e
otimismo, com o sentimento que deseja, seja muito ou pouco.
Portanto, o calvinista nã o é, pela ó tica religiosa, uma pessoa de
expressã o, e sim, antes, uma pessoa de reflexã o; de modo que a sua
moralidade, seja o que for em outros aspectos, se caracteriza pela
estabilidade e fortaleza, o que à s vezes pode converter-se em
pertiná cia e severidade”. [146]
O nosso amor para com Deus seria, quando muito, apenas um amor
tíbio, se crêssemos que o seu amor e favor para conosco
dependessem apenas da nossa boa conduta. O seu amor para
conosco é como um imenso sol , que tem brilhado desde o princípio
e continuará brilhando sem fim, enquanto o nosso amor para com
ele é, quando muito, apenas uma pequena chama. Portanto, temos a
certeza de que Deus jamais permitirá que os objetos do seu amor se
percam. O amor baseado em interesses pessoais nã o é moral no
mais elevado sentido; entretanto, o calvinismo é o ú nico sistema de
fé que apresenta um motivo puramente desinteressado, isto é, o
reconhecimento de que o que salva os homens é tã o somente a livre
graça e o imerecido amor de Deus, à parte de todo e qualquer mérito
humano. Quando o crente se lembra que foi salvo unicamente pelo
sofrimento e morte de Cristo, o seu substituto, o amor e a gratidã o
enchem o seu coraçã o; e, como Paulo, considera que o mínimo que
pode oferecer a Cristo, em troca, é a sua vida integral em amoroso
serviço. Contemplando-se salvo unicamente pela graça, o crente
aprende a amar a Deus pelo que este é, e o serviço prestado a ele de
todo o coraçã o se converte no deleite da sua vida. A obediência vem
a ser nã o só o bem obrigató rio, mas o bem preferido.
O motivo que move os santos na terra é o mesmo em princípio,
ainda que nã o tã o intenso, que aquele que move os santos na gló ria,
cuja constante delícia é a realizaçã o das mais nobres das açõ es e
serviços, a saber, louvar a Deus e cumprir a sua vontade
esmeradamente sem interrupçõ es nem derrotas. “Tendo sempre um
intenso senso arrebatador da sua bondade para com eles, os santos
em gló ria exercitam as suas mentes perfeitamente puras em
administrar louvor e gló ria a ele por havê-los libertado da ruína
merecida, e havê-los conduzido à s benditas mansõ es onde se
encontram cumulados de repouso, felicidade, complacência e gló ria
completamente imerecidos”. [147]    
Amor puro e gratidã o pura para com Deus, e nã o temor egoísta, sã o
o incentivo de obediência aceitá vel, e é unicamente desses
elementos que procederá a elevada e pura moralidade. Jesus nã o
temia que um senso de segurança eterna conduzisse os seus
discípulos à libertinagem, conquanto ele lhes disse: “Regozijai-vos
porque os vossos nomes estã o registrados nos céus”. Portanto, os
eleitos possuem a maior das razõ es para amar e glorificar a Deus; e é
mera calú nia dizer que a doutrina da predestinaçã o é propícia à
libertinagem e que é desfavorá vel à moralidade.
 

3. Os frutos práticos do calvinismo na história são a sua melhor


defesa
O calvinismo responde à acusaçã o de ser desfavorá vel à moralidade,
nã o meramente confrontando a razã o com a razã o, mas
apresentando fatos bem conhecidos que desmentem as falsas
acusaçõ es. O calvinismo simplesmente pergunta: Que frutos rivais
podem outros sistemas apresentar em oposiçã o à queles exibidos
pelos líderes protestantes do período da Reforma e à elevada
moralidade dos puritanos? Lutero, Calvino, Zuínglio e seus
auxiliares imediatos eram todos “calvinistas” sumá rios, e o maior
avivamento espiritual de todos os tempos surgiu sob a sua
influência. Os da Inglaterra que sustentaram este sistema de fé
foram tã o estreitos no que concerne à pureza na doutrina, à pureza
na adoraçã o e à pureza na vida diá ria, que os seus pró prios inimigos
foram as suas melhores testemunhas, os quais os denominaram de
“puritanos”. Os puritanos da Inglaterra, os “pactuantes” da Escó cia e
os huguenotes da França eram homens da mesma fé religiosa e das
mesmas qualidades morais. Que o sistema de Calvino produziu
precisamente o mesmo tipo de homens, em cada um desses países, é
prova do seu poder na formaçã o do cará ter.
Com respeito aos puritanos neste país, disse McFetridge: “Dentre
toda a gente nas colô nias americanas, eles (os puritanos, calvinistas
da Nova Inglaterra) eram moralmente sem par. Foram homens e
mulheres de consciência , de convicções inquebrantáveis . Certamente
nã o foram pessoas dadas ao sentimentalismo. Nã o eram
simpatizantes de observâ ncias meramente espetaculares. Para eles,
a vida era uma experiência nobilíssima, séria e solene para ser gasta
com manifestaçõ es piedosas e com rapsó dias emocionais. Criam
com toda sua alma em um Deus justo, um céu e um inferno. Sentiam,
no mais profundo do seu coraçã o, que a vida era curta e grandes as
suas responsabilidades. A sua religiã o foi, portanto, a sua pró pria
vida. E todos os seus pensamentos e relaçõ es estiveram saturados
dela. Nã o só os homens, mas também os animais sentiam as suas
favorá veis influências. Crueldade para com os animais era uma
ofensa civil. Neste aspecto estavam dois séculos adiantados da
maior parte da humanidade. Por serem tã o industriosos, frugais e
empreendedores, a sua influência seguiu os seus passos e desceu a
seus filhos e aos filhos dos seus filhos. A embriaguês, a profanaçã o e
a mendicidade foram pouco conhecidas entre eles. Nã o careciam de
cadeados nem de proteçã o contra ladrõ es para guardar as
possessõ es que haviam adquirido honestamente. Onde a
honestidade era a norma de vida, a simples fechadura de madeira foi
proteçã o suficiente. Como resultado, as suas vidas foram saudá veis e
vigorosas. Viviam vidas longas e felizes, criavam famílias grandes e
devotas, e desciam à s suas sepulturas ‘como o feixe de trigo que se
colhe a seu tempo’, em paz com Deus e os seus semelhantes,
regozijando-se na esperança de uma bendita ressurreiçã o”. [148]
Além disso, devemos ter em mente, como diadema sobre a fronte da
moralidade calvinista, que em toda a histó ria dos puritanos somos
informados que nunca houve sequer um caso de divórcio . Quã o
imensa é a necessidade de uma influência como esta hoje! A
desobediência à lei em geral foi um fenô meno quase desconhecido
entre os puritanos, se é que de fato houve alguma. Se, pois, o
calvinismo foi desfavorá vel à moralidade, como se alega, seria
realmente uma estranha coincidência que onde foi de maior força
tenha havido também a mais baixa incidência de crime. Na opiniã o
de Froude: “Este é o problema: as uvas nã o crescem entre sarças.
Naturezas nobres nã o se formam pela força de teorias intolerantes e
cruéis. A vida espiritual está saturada de aparentes paradoxos. O
efeito prá tico de uma crença é a verdadeira prova da sua solidez.
Onde encontramos a vida heroica como fruto uniforme de uma
opiniã o particular, é pueril alegar contra os fatos que o resultado
deveria ter sido distinto”. [149]
Na opiniã o de Henry Ward Beecher: “Nã o há sistema que se
equiparasse ao calvinismo, ao intensificar ao má ximo ideias de
excelência moral e pureza de cará ter. Nunca houve um sistema,
desde que o mundo existe, que apresente ao homem tais motivos à
santidade, ou que produza tã o imensos recursos para fazer frente à s
forças do pecado. Somos informados que o calvinismo molda os
homens com martelo e cinzel. E assim é; o resultado é má rmore
monumental. Outros sistemas deixam os homens moles e sujos; o
calvinismo os faz de má rmore branco, a fim de que permaneçam
para sempre”. [150]
Em vez de ser um sistema que conduz à imoralidade e à
desesperança, o calvinismo resulta sendo o oposto na vida diá ria.
Nã o há outro sistema que tenha despertado nas pessoas ideais de
liberdade religiosa e civil, no que tem conduzido a tã o elevados
ideais de moralidade e esforço em todas as fases da vida humana.
Onde a fé reformada haja se estabelecido, ela tem feito com que o
país se transforme como a rosa, ainda que fosse um país pobre como
a Holanda, ou a Escó cia, ou a Nova Inglaterra. Isso foi admitido por
Macauley e muitos outros, e certamente é um pensamento mui
reconfortante .

CAPÍTULO XXI. QUE A DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃO


IMPOSSIBILITA A OFERTA SINCERA DO EVANGELHO AOS NÃO
ELEITOS
 
1. A mesma objeçã o se aplica contra a presciência de Deus. 2. A oferta é feita
sinceramente.
 
1. A mesma objeção se aplica contra a presciência de Deus
Muito embora o evangelho seja oferecido a muitos que nã o o
aceitarã o, e que por razõ es subjetivas nã o podem aceitá -lo, ele é, nã o
obstante, oferecido sinceramente a todos. A objeçã o que à s vezes os
arminianos apresentam no sentido de que, se a doutrina da
predestinaçã o for correta, o evangelho nã o pode ser oferecido
sinceramente aos nã o eleitos, fica suficientemente refutada pelo fato
de que esta objeçã o pesa de igual modo contra a doutrina da
presciência de Deus. Poderíamos perguntar: como a oferta da
salvaçã o pode ser feita sinceramente à queles que Deus bem sabe,
antecipadamente, que a menosprezarã o e a rejeitarã o,
especialmente quando a sua culpa e condenaçã o só intensificarã o o
seu procedimento empedernido? Os arminianos admitem que Deus
conhece antecipadamente quem aceitará e quem rejeitará a
mensagem do evangelho; todavia, sabem que estã o sob mandato
divino de pregar essa mensagem a todos os homens, e com isso nã o
sentem que estã o agindo insinceramente ao cumprir o mandato.
No entanto, a dificuldade em ambos os casos é meramente subjetiva
e surge em razã o do nosso conhecimento limitado e da nossa
incapacidade de compreender os caminhos de Deus que sã o
inescrutá veis (Is 55.8, 9). Sabemos que o Juiz de toda a terra fará o
que é justo, e confiamos nele mesmo quando a nossa débil razã o nã o
consegue entender os seus caminhos. Sabemos que Deus fez
abundante provisã o para todo aquele que vai a ele, e que todo o que
sinceramente aceita será salvo. Dos pró prios lá bios de Cristo temos
uma pará bola que ilustra bem o amor de Deus para com os seus
filhos. O pai viu o pró digo quando vinha ainda longe, correu, o
abraçou e o beijou. Deus está disposto a dar as boas vindas a
qualquer pró digo que vai a ele.
 
2. A oferta é feita sinceramente
Deus ordenou a Moisés que reunisse os anciã os de Israel, fosse a
Faraó e exigisse dele que deixasse Israel ir caminho de três dias ao
deserto a fim de celebrar uma festa e oferecer sacrifícios. No
entanto, no versículo que segue imediatamente Deus mesmo diz:
“Eu sei, porém, que o rei do Egito nã o vos deixará ir se nã o for
obrigado por mã o forte” (Ê x 3.18, 19). Se nã o é inconsistente com a
sinceridade de Deus ordenar a todos os homens que o amem ou
sejam perfeitos (Lc 10.27; Mt 5.48), tampouco é inconsistente com a
sua sinceridade ordenar-lhes que se arrependam e creiam no
evangelho. Uma pessoa pode ser totalmente sincera ao estender um
convite que bem sabe nã o será aceito. Um pai que sabe que os seus
filhos vã o agir indevidamente se sente constrangido a ensinar-lhes o
que é correto. As suas advertências e solicitaçõ es sã o sinceras; o
problema está nos filhos.
Porventura alguém manterá que Deus nã o pode oferecer a salvaçã o
sinceramente a uma pessoa moralmente livre a menos que, além do
convite, exerça influência especial que induza a pessoa a aceitá -la?
Depois de uma guerra civil em um país, à s vezes sucede que o
general do exército vencedor estenda perdã o aos seus opositores,
sempre e quando estes estejam dispostos a abandonar as suas
armas, regressar aos seus lares e viver pacificamente, ainda quando
saiba que, por orgulho ou por má vontade, muitos se recusarã o a
aceitá -lo. O general faz a oferta de boa fé, mesmo que, por razõ es
sá bias, determine nã o forçar o assentimento dos opositores,
supondo que possui esse poder.
Imaginemos o caso de um barco com muitos passageiros a bordo
que se afunda a certa distâ ncia da praia. Um homem aluga uma
lancha de um porto pró ximo e sai a resgatar os seus familiares.
Sucede que a lancha que utiliza é suficientemente grande para
acomodar todos os passageiros; e entã o convida todos da
embarcaçã o acidentada que entrem em sua lancha. No entanto, ele
bem sabe que muitos, seja porque ainda nã o se aperceberam do
perigo que correm ou por má vontade para com ele, ou por outras
razõ es, nã o aceitarã o. Porventura, com isso a sua oferta se torna
menos sincera? “Se os familiares de certo homem e outras pessoas
má s se encontrassem presos, e por amor aos seus familiares e com o
propó sito de redimi-los o homem ofereça um resgate suficiente para
granjear a libertaçã o de todos os cativos, é ó bvio que todos
poderiam sair com base no resgate, mesmo sabendo nó s que o
resgate foi oferecido especialmente só a uma parte do grupo. Ou
pode ser que um homem faça uma festa aos seus pró prios amigos e
resulte que as provisõ es sã o tã o abundantes que decida abrir as suas
portas a todos os que quiserem vir. Isso é precisamente o que Deus,
em conformidade com a doutrina calvinista, fez. Movido por um
amor especial para com os seus escolhidos, e com o fim de assegurar
a salvaçã o destes, ele enviou o seu Filho para fazer o que justifica a
oferta da salvaçã o a todos os que decidam aceitá -la.” [151]
Quando o evangelho é apresentado à raça humana em geral, nada,
exceto uma pecaminosa renú ncia por parte de alguns, impede que
este seja aceito e desfrutado. Nã o há nenhum obstá culo no caminho.
Tudo o que o chamado contém é verdadeiro; este se adapta à s
condiçõ es de todos os homens e é oferecido gratuitamente caso se
arrependam e creiam. Nenhuma influência externa os constrange a
rejeitá -lo. Os eleitos o aceitam; os nã o eleitos podem aceitá -lo, caso o
queiram, e nada fora da sua pró pria natureza os faz agir de outro
modo. No dizer do Dr. Hodge: “De acordo com o esquema calvinista,
os nã o eleitos possuem todas as vantagens e oportunidades de
adquirir a salvaçã o, as quais, de acordo com qualquer outro sistema,
sã o concedidas à humanidade indiscriminadamente. O calvinismo
ensina que um plano de salvaçã o adaptado a todos os homens e
adequado à salvaçã o de todos, é gratuitamente oferecido a todos,
muito embora o propó sito secreto de Deus fosse que o mesmo
tivesse precisamente o efeito que na experiência vemos que tem. Ao
adotar este plano, o seu propó sito foi salvar os seus escolhidos,
porém, consistentemente, oferece os benefícios a todos os que está
dispostos a recebê-los. Nenhum anti-calvinista pode demandar mais
que isso”. [152]
Os arminianos objetam que Deus nã o pode oferecer o evangelho
à queles que, em seu conselho secreto, nã o foram destinados a
aceitá -lo; contudo, descobrimos que as Escrituras ensinam que Deus
age precisamente assim. Já aludimos à s suas ordens a Faraó . Isaías
foi chamado a proclamar perdã o aos judeus, e em 1.18,19 vemos que
ele estendeu a oferta graciosa de perdã o e purificaçã o. Mas, em 6.9-
13, logo depois da sua gloriosa visã o e vocaçã o oficial como profeta,
ele é informado que esta pregaçã o se destina a endurecer os seus
concidadã os até que fossem quase totalmente destruídos. Ezequiel
foi enviado a proclamar perdã o à casa de Israel, mas lhe foi dito de
antemã o que nã o o ouviriam (Ez 3.4-11). Mateus 23.33-37
apresenta o mesmo ensinamento. Essas passagens ensinam que
Deus fez aquilo que os arminianos dizem que ele nã o deveria fazer.
Portanto, a objeçã o ora em consideraçã o nã o surgiu devido a um
errô neo ensino calvinista do plano divino, mas devido a premissas
equivocadas dos pró prios arminianos.
O decreto da eleiçã o é secreto. E como ao pregador nã o foi revelado
quem dentre os seus ouvintes sã o eleitos e quem nã o o sã o, nã o lhes
é possível apresentar o evangelho unicamente aos eleitos. O seu
dever é olhar com esperança para aqueles a quem dirige a sua
pregaçã o e orar por eles com a esperança de que cada um seja eleito.
A fim de oferecer a sua mensagem aos eleitos, ele tem que oferecê-la
a todos; e o mandamento da Escritura é claro de que ela seja
oferecida a todos. Até mesmo os eleitos têm de ouvir antes que
possam crer e aceitar (Rm 10.13-17). Nã o obstante, o leitor atento
poderá perceber que os convites nã o sã o de cunho geral, mas sã o
direcionados aos “fatigados”, aos “sedentos”, aos que “têm fome”,
aos que “quiserem”, aos que “estã o cansados e sobrecarregados”, e
nã o aos que estã o inconscientes de toda necessidade e que sã o
renitentes a ser reformados. Ainda que a mensagem seja pregada a
todos, é Deus quem escolhe dentre os ouvintes aqueles a quem
dirige a palavra, e os faz conhecer esta eleiçã o através do
testemunho interno do Espírito Santo. Os eleitos, portanto, recebem
a mensagem como a promessa de salvaçã o, mas aos nã o eleitos isso
parece uma estultícia, ou se a sua consciência é despertada, como
um juízo condenató rio. Em termos gerais, os nã o eleitos nã o estã o
preocupados pela salvaçã o nem invejam a esperança de salvaçã o
dos eleitos; mas, antes, gracejam e desdenham a estes. E dado que é
um segredo quem dentre o auditó rio sã o escolhidos, o pregador nã o
sabe quem recebeu a mensagem para a salvaçã o e quem a recebeu
para a condenaçã o. Dado que entre os pró prios eleitos existem
tantas debilidades, e que o maligno é tã o esperto em se disfarçar em
anjo de luz e apresentar uma exibiçã o externa de boas obras e
palavras, o pregador nã o pode estar seguro do resultado. No
entanto, o resultado da pregaçã o nã o está nas mã os do pregador, e
sim nas de Deus; e com frequência sucede que os sermõ es que
pareceram infrutíferos foram fortalecidos e se tornaram eficazes
pelo Espírito Santo.
Embora seja verdade que os nã o eleitos nã o irã o a Deus nem se
arrependerã o dos seus pecados e nem viverã o vidas morais, nã o
obstante o seu dever é fazer isso. Embora membros de uma raça
apó stata, os nã o eleitos sã o seres morais livres, responsá veis pelo
seu cará ter e conduta. Portanto, Deus é perfeitamente consistente ao
ordenar-lhes que se arrependam. Para Deus, nã o proceder assim
equivaleria a um repú dio das exigências da sua lei. Comumente
ouvimos a ideia de que o homem nã o tem a obrigaçã o de fazer algo
no tocante ao qual nã o tem completa e perfeita capacidade em si
mesmo. No entanto, tal raciocínio é falso; já que a incapacidade do
homem foi adquirida por ele mesmo. O homem foi criado justo e se
afundou voluntariamente no pecado. Portanto, ele é tã o responsá vel
como aquele que, para evadir-se do serviço militar, se mutila
deliberadamente, ou de uma mã o ou de um olho. Se a incapacidade
cancelasse a obrigaçã o, entã o Sataná s, com a sua depravaçã o
inerente, nã o teria qualquer obrigaçã o de fazer o bem, e a sua
perversa inimizade com Deus e os homens nã o seria pecado. Em tal
caso, os pecadores em geral estariam acima da lei moral.
Em conclusã o, podemos dizer, além do mais, que, mesmo em relaçã o
aos nã o eleitos, a pregaçã o nã o é inteiramente inú til; já que, assim,
estes vêm a ser os objetos de influências restritivas e reguladoras
que os impedem de pecar mais do que fariam se nã o houvessem
ouvido a mensagem anunciada.     

CAPÍTULO XXII. QUE A DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃO


CONTRADIZ AS PASSAGENS UNIVERSALISTAS DAS ESCRITURAS
 
1. Os termos “desejar”, “querer” e “todos”. 2. O evangelho se destina
igualmente aos judeus e aos gentios. 3. O termo “mundo” tem vá rios
significados. 4. Consideraçõ es gerais.
 
1. Os termos “desejar, “querer” e “todos”
É possível que surja a pergunta: Acaso a doutrina da predestinaçã o
nã o fica totalmente refutada pelas passagens das Escrituras que
ensinam que Cristo morreu por “todos os homens” ou pelo “mundo
inteiro”, e que Deus quer que todos sejam salvos? Em 1 Timó teo 2.3-
4, Paulo se reporta a “Deus, nosso Salvador, o qual deseja que todos
os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da
verdade”. (E a palavra “todos”, nos informam dogmaticamente os
nossos opositores, significa todo ser humano.) Em Ezequiel 33.11,
lemos: “Tã o certo como eu vivo, diz o SENHOR Deus, nã o tenho prazer
na morte do perverso, mas em que o perverso se converta do seu
caminho e viva”; e em 2 Pedro 3.9, lemos: “nã o querendo que
nenhum pereça, senã o que todos cheguem ao arrependimento”.
Esses versículos ensinam simplesmente que Deus é benevolente e
nã o se deleita nos sofrimentos das suas criaturas, justamente como
um pai humano nã o se deleita no castigo que à s vezes tem que
aplicar a seu filho. Deus nã o ordena decretivamente a salvaçã o de
todos os homens, nã o importa quanto ele deseje isso; e se algum
versículo ensinasse que ele decretou ou se propô s salvar a todos os
homens, ele estaria contradizendo as outras partes das Escrituras
que ensinam que Deus governa soberanamente e que o seu
propó sito é que alguns sejam expostos ao castigo.
A palavra “querer” é usada nas Escrituras de modos distintos e até
mesmo em nossa conversaçã o diá ria. À s vezes é usada no sentido de
“decreto”, ou “propó sito”, e à s vezes no sentido de “desejo” ou
“anelo”. Um juiz justo nã o quer (ou deseja) que alguma pessoa seja
condenada à forca ou sentenciada à prisã o, contudo ao mesmo
tempo quer (pronuncia ou decreta sentença) que a pessoa culpada
seja assim castigada. De igual modo e devido a razõ es suficientes,
uma pessoa pode querer ou decidir que lhe seja decepado um dos
seus braços, ou que lhe seja tirado um dos seus olhos, ainda quando
certamente nã o o deseja. As palavras gregas theolo e boulomai , que
à s vezes sã o traduzidas pelo verbo “querer”, sã o também usadas no
sentido de “desejar”, ou “anelar”. Por exemplo, Jesus disse à mã e de
Tiago e Joã o: “Que queres?” (Mt 20.21); lemos que alguns escribas e
fariseus “ gostam de andar com vestes talares” (Lc 20.46); alguns
escribas e fariseus disseram a Jesus: “Mestre, queremos da tua parte
algum sinal” (Mt 12.38); Paulo disse: “prefiro falar na igreja cinco
palavras com o meu entendimento, para instruir outros, a falar dez
mil palavras em outra língua” (1Co 14.19).
Da mesma forma, a palavra “todos” é usada nas Escrituras de
diversas maneiras. Em alguns casos, obviamente, nã o significa cada
indivíduo; por exemplo, de Joã o Batista se diz: “Saíam a ter com ele
toda a província da Judéia e todos os habitantes de Jerusalém; e,
confessando os seus pecados, eram batizados por ele no rio Jordã o”
(Mc 1.5). Depois que Pedro e Joã o curaram o paralítico à porta do
templo, lemos que “porque todos glorificavam a Deus pelo que
acontecera” (At 4.21). Jesus disse aos seus discípulos que seriam
“odiados de todos ” por causa do seu nome (Lc 21.17). Paulo foi
acusado “que por toda parte ensina todos a serem contra o povo,
contra a lei e contra este lugar” (At 21.28). Quando Jesus disse: “E
eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim mesmo” (Jo
12.32), obviamente nã o se referia a cada indivíduo da humanidade,
já que a histó ria demonstra que nem todas as pessoas sã o atraídas a
ele. Certamente, ele nã o atrai os milhõ es de pagã os que morrem em
completa ignorâ ncia do Deus verdadeiro. O que ele quis dizer foi que
um grande nú mero de todas as naçõ es e classes seria salvo; e isso é
precisamente o que vemos suceder. Em Hebreus 2.9, lemos que
aprouve a Jesus provar a morte “por todo homem”. O original grego
nã o usa a palavra “homem”, mas simplesmente diz “por todos ”.
Assim, pois, se nã o devemos limitar o significado aos que sã o
atualmente salvos, por que limitá -lo aos homens? Por que nã o
incluir os anjos apó statas, ou mesmo o pró prio diabo, e os animais
irracionais?
É prová vel que 1 Coríntios 15.22 seja o versículo mais utilizado
pelos arminianos para refutar o calvinismo. O versículo reza:
“Porque, assim como, em Adã o, todos morrem, assim também todos
serã o vivificados em Cristo”. É preciso dizer que este versículo é
totalmente inaplicá vel aqui. O versículo é parte do famoso capítulo
de Paulo sobre a ressurreiçã o e o contexto deixa claro que ele nã o
está falando da vida neste mundo, seja física ou espiritual, mas da
vida oriunda da ressurreiçã o. Os versículos 20 e 21 rezam assim:
“Porque, assim como em Adã o todos morrem, também em Cristo
todos serã o vivificados”; que isso nã o se refere a uma regeneraçã o
ou a uma vivificaçã o neste mundo atual, mas à nova vida
comunicada na ressurreiçã o, se faz evidente pelo que segue
imediatamente nos versículos 23 e 24: “Cada um, porém, pela sua
pró pria ordem: Cristo, as primícias; depois, os que sã o de Cristo, em
sua vinda. E, entã o, virá o fim, quando ele entregar o reino ao Deus e
Pai”, etc. Cristo é o primeiro a entrar na vida da ressurreiçã o; e, logo
em sua vinda , os seus escolhidos a experimentarã o. E entã o vem o
fim, isto é, o fim do mundo, e a vinda do reino celestial em sua
plenitude; e o que Paulo ensina é que nesse tempo a gloriosa vida
oriunda da ressurreiçã o será uma realidade para todos os que estão
em Cristo . Isso é possível porque Cristo é a cabeça federal e
representativa dos escolhidos. Pelo seu poder, todos os que
pertencem a Cristo serã o levantados para a nova vida com ele. E este
ponto é ilustrado pelo evidente fato de que a raça humana apostatou
em Adã o, o qual era a cabeça federal e representativa da raça
humana. O que Paulo de fato diz é isto: “Porque, assim como todos
os nascidos em Adã o morrem, também todos os que nascem em
Cristo serã o vivificados”. O versículo 22, portanto, nã o se refere a
algo pretérito, nem atual, mas a algo futuro; e é totalmente
inaplicá vel à controvérsia entre arminianos e calvinistas.
Nã o foi à humanidade em sua totalidade que Deus amou e redimiu
por intermédio de Cristo. O hino de louvor de Joã o, “À quele que nos
ama, e, pelo seu sangue, nos libertou dos nossos pecados, e nos
constituiu reino, sacerdotes para o seu Deus e Pai, a ele a gló ria e o
domínio pelos séculos dos séculos. Amém” (Ap 1.5, 6),
evidentemente procede com base na hipó tese de uma eleiçã o
definida e uma expiaçã o limitada a favor de certo nú mero de
escolhidos, já que o amor de Deus foi a causa e o sangue de Cristo o
meio eficaz da redençã o destes. A afirmaçã o de que Cristo morreu
por “todos” fica ainda mais clara no câ ntico que os redimidos entã o
entoam diante do trono do Cordeiro: “e entoavam novo câ ntico,
dizendo: Digno és de tomar o livro e de abrir-lhe os selos, porque
foste morto e com o teu sangue compraste para Deus os que
procedem de toda tribo, língua, povo e nação ” (Ap 5.9). É fá cil ver
que a palavra “todos”, aqui, significa todos os eleitos, toda a sua
igreja, todos os que o Pai deu ao Filho, etc., e nã o universalmente
todos os homens e cada pessoa individualmente. As hostes dos
redimidos estarã o compostas de pessoas de todas as classes e
condiçõ es de vida, de príncipes e campesinos, de ricos e pobres, de
escravos e livres, de homens e mulheres, de jovens e idosos, de
judeus e gentios, pessoas de todas as naçõ es e raças, de norte a sul e
de leste a oeste.
 

2. O evangelho é igualmente para judeus e gentios


Em alguns casos, a palavra “todos” é usada com o fim de ensinar que
o evangelho visa tanto aos gentios quanto aos judeus. Ao longo dos
séculos da sua histó ria, os judeus foram, com poucas exceçõ es, os
recipientes exclusivos da graça salvífica de Deus. Como povo
escolhido, eles abusaram grandemente dos seus privilégios.
Presumiram que a mesma distinçã o seria mantida na era
messiâ nica, e viviam sempre inclinados a apropriar-se do Messias
como sendo exclusivamente deles. Tã o rígido era o exclusivismo
farisaico, que os gentios eram chamados estrangeiros, cã es, ralé,
imundos; e nã o se permitia que um judeu mantivesse comunhã o e
relacionamento com um gentio (Jo 4.9; At 10.28; 11.3).
Em épocas passadas, a salvaçã o dos gentios constituía um mistério
que nã o fora dado a conhecer (Ef 3.4-6; Cl 1.27). Foi por essa razã o
que Pedro foi censurado pela igreja em Jerusalém depois de pregar o
evangelho a Cornélio, e é como se quase pudéssemos ouvir o suspiro
de surpresa na exclamaçã o dos líderes, quando, apó s a defesa de
Pedro, disseram: “Logo também aos gentios foi por Deus conhecido
o arrependimento para vida” (At 11.18). Para que se entenda bem
quã o revolucioná ria era essa ideia, é só ler Atos 10.1-11.18.
Portanto, esta era uma verdade que entã o se fazia particularmente
necessá ria enfatizar, e que foi ensinada em termos os mais claros e
só lidos. Paulo viria a ser testemunha “a todos os homens”, isto é, a
judeus e a gentios, do que ele vira e ouvira (At 22.15). Usada neste
sentido, a palavra “todos” nã o se refere a indivíduos, e sim a à
humanidade em geral.
 

3. O termo “mundo” tem vários significados


Quando nos é dito que Cristo morreu “pelos nossos pecados, e nã o
somente pelos nossos pró prios, mas ainda pelos do mundo inteiro”
(1Jo 2.2), ou que veio “salvar o mundo” (Jo 12.47), o significado é
que nã o só os judeus, mas também os gentios, estã o inclusos na sua
obra salvífica; o mundo como tal ou a raça humana como tal tem de
ser redimida. Quando Joã o Batista disse, “Eis o Cordeiro de Deus que
tira o pecado do mundo”, ele nã o estava pronunciando aos crentes
um discurso teoló gico, e sim pregando a pecadores; e nã o teria sido
natural, naquele momento, discutir a expiaçã o limitada ou qualquer
outra doutrina que só teria sido entendida pelos crentes. Somos
informados que Joã o Batista “veio como testemunha para que
testificasse a respeito da luz, a fim de que todos viessem a crer por
intermédio dele” (Jo 1.7). Dizer, porém, que o ministério de Joã o
propiciava uma oportunidade a cada ser humano para exercer fé em
Cristo seria irracional. Joã o nunca pregou aos gentios. Sua missã o
visava a que Cristo “se manifestasse a Israel” (Jo 1.31); e na natureza
do caso só um nú mero limitado de judeus foi a ele para ouvi-lo.
Algumas vezes o termo “mundo” (à s vezes “terra”) é usado quando
se faz alusã o a uma grande parte do mundo, como quando se diz que
o diabo é “o enganador de toda a terra” ou que “toda a terra” se
maravilhou indo apó s a besta (Ap 13.3). Se em 1 Joã o 5.19, “sabemos
que somos de Deus, e que o mundo inteiro jaz no maligno”, o autor
estivesse se referindo a cada indivíduo do gênero humano, entã o ele
mesmo e aqueles a quem escrevia também estavam sob o maligno, e
teria se contraditado em dizer que eles eram de Deus. À s vezes este
termo significa apenas uma parte relativamente pequena do mundo,
como quando Paulo escreveu à nova igreja cristã em Roma, dizendo
que a fé deles “era proclamada em todo o mundo” (Rm 1.8).
Ninguém dentre os crentes teria louvado os romanos pela sua fé em
Cristo, e de fato o mundo em geral nem sequer sabia que dita igreja
existia em Roma. Portanto, Paulo apenas se referia ao mundo crente
ou à igreja cristã , que nã o passava de uma parte comparativamente
insignificante do mundo real. Pouco antes do nascimento de Jesus,
“naqueles dias, foi publicado um decreto de César Augusto,
convocando toda a populaçã o do império para recensear-se. Todos
iam alistar-se, cada um à sua pró pria cidade” (Lc 2.1, 3); no entanto,
sabemos que o escritor tinha em mente só aquela parte do mundo,
comparativamente pequena, controlada por Roma. Ao sermos
informados que no dia de Pentecostes “estavam habitando em
Jerusalém judeus, homens piedosos, vindos de todas as naçõ es
debaixo do céu” (At 2.5), aqui só se alude à quelas naçõ es
imediatamente conhecidas dos judeus, já que os versículos 9 a 11
enumeram os representados. Paulo escreveu que o evangelho “foi
pregado a toda criatura debaixo do céu...” (Cl 1.23). Lemos que a
deusa Diana dos efésios era venerada “por toda a Á sia e no mundo
inteiro” (At 19.27). Somos informados que a fome que veio sobre o
Egito nos dias de José atingiu “toda a terra”, e que “de todas as terras
vinham ao Egito, para comprar de José” (Gn 41.57).
Em nossa conversaçã o diá ria, com frequência falamos do mundo dos
negó cios, do mundo educacional, do mundo da política, etc., mas nã o
queremos dizer que cada pessoa do mundo é negociante, ou que é
culta, ou que é política. Quando dizemos que determinada
companhia automobilística vende carros ao mundo inteiro, nã o
queremos dizer que atualmente ela vende a cada indivíduo, e sim
que vende a qualquer um que esteja disposto a pagar o preço do
carro. Podemos dizer de um mestre de literatura, em determinada
cidade, que ensina a todo mundo — nã o que todo o mundo estuda
com ele, mas que todos os que estudam fazem-no sob ele. A Bíblia
está escrita na linguagem corrente das pessoas e deve ser entendida
dessa maneira.
Versículos como Joã o 3.16, “porque Deus amou o mundo de tal
maneira, que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que
nele crê nã o pereça, mas tenha a vida eterna”, propiciam farta prova
de que a redençã o que os judeus pensavam monopolizar é universal
quanto ao espaço. Deus amou o mundo de tal maneira, nã o a uma
pequena porçã o do mundo, mas ao mundo em sua totalidade; que
deu seu Filho unigênito para a sua redençã o. Nã o só a extensã o, mas
a intensidade do amor de Deus está claramente presente mediante
um pequeno advérbio “tal” — Deus amou o mundo de tal maneira,
que deu o seu Filho unigênito para morrer pelo mundo. Mas, onde
está a prova tã o alardeada de sua universalidade no tocante aos
indivíduos? Com frequência, este versículo é forçado a tal extremo
que Deus é apresentado como amoroso demais para castigar alguma
pessoa, e tã o saturado de misericó rdia que nã o pode tratar os
homens conforme as normas fixas da justiça, muito embora os
homens mereçam. O leitor cuidadoso, ao comparar este versículo
com outras partes das Escrituras, se precaverá de que é preciso pô r
certa restriçã o à palavra “mundo”. Um escritor fez a seguinte
pergunta: “Deus amou Faraó ? (Rm 9.17). Ele amou os amalequitas?
(Ê x 17.14). Ele amou os cananeus, os quais deviam ser exterminados
sem misericó rdia? (Dt 20.16). Ele amou os amorreus e moabitas que
nã o deviam ser recebidos na congregaçã o [judaica]? (Dt 23.3). Ele
ama os praticantes de iniquidade? (Sl 5.5). Ele ama os vasos de ira
preparados para destruiçã o, aos quais suporta com muita paciência?
(Rm 9.22). Ele amou Esaú ? (Rm 9.13)”.
 

4. Considerações gerais
Nem o convite profético, “Ah! Todos vó s, os que tendes sede, vinde
à s á guas; e vó s, os que nã o tendes dinheiro, vinde, comprai e comei;
sim, vinde e comprai, sem dinheiro e sem preço, vinho e leite” (Is
55.1), e outras referências do mesmo teor, contradizem esta
posiçã o; já que a maior parte da humanidade nã o está sedenta , e sim
morta — morta em pecado, escrava perdida e voluntá ria de Sataná s,
e incapaz de sentir fome ou sede de justiça. O convite gratuito de ir a
Cristo é recusado, nã o porque haja algo fora das pessoas que as
impeça de vir, mas porque até que nasçam de novo mediante a graça
e pela agência do Espírito Santo elas nã o têm nem vontade nem o
desejo de aceitar o convite. É Deus que comunica a vontade e gera o
desejo nos que foram predestinados para a vida (Rm 11.7, 8; 9.18).
Quem quiser pode vir; mas uma pessoa que está totalmente imersa
no paganismo, por exemplo, nã o tem a oportunidade de ouvir a
oferta de salvaçã o e, portanto, nã o pode vir. “A fé vem pelo ouvir”; e
onde nã o há fé nã o pode haver salvaçã o. Tampouco pode vir a
pessoa que ouve o evangelho, mas ainda é governada por princípios
e desejos que a fazem odiá -lo. Tal pessoa é escrava do pecado e age
de acordo com a sua natureza. Aquele que quiser pode escapar de
um edifício em chama, sempre e quando as escadas possam ser
utilizadas; mas aquele que está dormindo, ou aquele que nã o crê que
o incêndio é suficientemente perigoso que o faça fugir, nã o possui a
vontade, e, portanto, perece nas chamas. Clark afirma que “Os
arminianos nã o se cansam de citar a frase: ‘aquele que quiser, que
venha’, ou ‘aquele que crê’, dando a entender que a fé e a decisã o sã o
obras exclusivas dos homens, e, portanto, contradiz a eleiçã o
soberana. No entanto, cabe dizer que, mesmo quando as afirmaçõ es
bíblicas que os arminianos citam sejam corretas, estas nã o tocam o
ponto em questã o. O ponto vital é muito mais profundo; isto é, como
uma pessoa passa a querer? Se tal pessoa quer, certamente pode
escolher; mas a natureza pecaminosa oposta a Deus tem que ser
mudada pela palavra de Deus, pela graça de Deus, pelo Espírito de
Deus, ou pela soberana intervençã o a fim de que possa querer”. [153]
Estritamente falando, estas nã o sã o ofertas divinas feitas
indiscriminadamente a toda a humanidade, e sim dirigidas a pessoas
escolhidas e sã o ouvidas incidentalmente por outros.
Se as palavras de 2 Timó teo 2.4, as quais afirmam que Deus “quer
que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno
conhecimento da verdade”, fossem entendidas no sentido
arminiano, entã o teríamos que supor ou que Deus é frustrado em
seus desejos, ou que todos os homens, sem exceçã o, serã o salvos.
Todavia, a doutrina que atribui frustraçã o à Deidade contradiz
aquelas passagens que ensinam a soberania de Deus. A vontade de
Deus, neste aspecto, tem sido a mesma através dos séculos. Se ele
quisesse que os gentios fossem salvos, por que entã o limitou o
conhecimento do caminho da salvaçã o aos estreitos limites da
Judéia? Certamente, ninguém negará que teria sido muito fá cil fazer
chegar o evangelho tanto aos gentios quanto aos judeus. Onde ele
nã o fez provisã o de meios podemos estar certos de que nã o
determinou os fins. Vale a pena citar a resposta de Agostinho
à queles que apresentavam esta objeçã o em seus dias: “Quando o
Senhor lamenta que quis ajuntar os filhos de Jerusalém como a
galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das suas asas, porém nã o
quiseram, acaso temos de concluir que a vontade de Deus foi
vencida por um nú mero de homens débeis, de modo que o Deus
Onipotente nã o pô de realizar o que quis ou se propô s a fazer? Se
assim fosse, entã o que diríamos daquela onipotência mediante a
qual ele fez tudo o que quis no céu e na terra? Além disso, quem
seria tã o néscio que afirme que Deus nã o pode converter as
vontades perversas dos homens como deseja, quando deseja e o
quanto deseja? Ora, quando age assim, ele o faz em virtude da sua
misericórdia ; e quando nã o o faz, é movido pelo juízo que nã o o faz”.
A melhor interpretaçã o de um texto como 1 Timó teo 2.4 é a que o
interpreta como nã o se referindo a homens individualmente, mas
como a ensinar a verdade geral de que Deus é benevolente e que nã o
se deleita no sofrimento e na morte das suas criaturas. Além do
mais, podemos adicionar que, se fô ssemos interpretar as passagens
universalistas em um sentido evangélico e aplicá -las tã o
amplamente como fazem os arminianos, entã o ditas passagens
ensinariam a salvaçã o universal — um ensino que é contraditado
pelas Escrituras e que de fato nã o é mantido nem mesmo pelos
pró prios arminianos.
Como dissemos no capítulo sobre a expiaçã o limitada, há um sentido
em que Cristo morreu pela humanidade em geral. Nã o há qualquer
distinçã o de idade ou país, de cará ter ou condiçã o. A raça humana
caiu em Adã o e no sentido coletivo é redimida em Cristo. A obra de
Cristo impediu a execuçã o imediata do castigo pelo pecado em sua
relaçã o com toda a raça humana. Além do mais, a sua obra traz
muitas bênçã os temporais e físicas à humanidade em geral, e põ e o
fundamento para a oferta do evangelho a todos quantos o ouçam.
Esses resultados da sua obra se aplicam a toda a humanidade.
Todavia, isso nã o significa que ele morreu por todos igualmente e
com o mesmo propó sito.
É verdade que alguns textos, lidos isoladamente, parecem ensinar a
posiçã o arminiana. Mas, se esse fosse o caso, a Bíblia ficaria reduzida
a uma massa de contradiçõ es; porque há outros textos que ensinam
a predestinaçã o, a incapacidade, a eleiçã o, a perseverança, etc. E tais
textos de nenhuma maneira legítima podem ser interpretados em
harmonia com o arminianismo. A ú nica maneira de determinar o
significado do escritor sacro, nesses casos, é pela analogia da
Escritura. Dado que a Bíblia é a Palavra de Deus, ela é
intrinsecamente consistente. Portanto, se encontramos uma
passagem que isoladamente pode ser interpretada de duas
maneiras, uma das quais se harmoniza com o resto das Escrituras,
enquanto a outra nã o se harmoniza, somos obrigados a aceitar a
primeira. Este é um princípio reconhecido de interpretaçã o, a saber,
que as passagens mais obscuras devem ser interpretadas à luz de
passagens mais claras, e nã o vice-versa . Já demonstramos que a
evidência apresentada em defesa do arminianismo, a qual em
primeira instâ ncia aparenta possuir certa credibilidade, pode ser
interpretada legitimamente de maneira a harmonizar-se com o
calvinismo. Em vista das muitas passagens calvinistas e a ausência
de passagens genuinamente arminianas, afirmamos, sem vacilaçã o,
que o sistema calvinista é o verdadeiro.
Este é o verdadeiro universalismo das Escrituras — a cristianizaçã o
universal do mundo e a completa derrota das hostes espirituais da
maldade. Certamente isso nã o significa que cada indivíduo será
salvo, já que, sem lugar a dú vida, muitos se perdem. Assim como na
salvaçã o do indivíduo se perde muito do serviço a Cristo que seria
possível prestar, e se cometem muitos pecados, o mesmo sucede na
salvaçã o do mundo. Um nú mero considerá vel se perde; o processo
da salvaçã o, contudo, finalizará num grande triunfo, e os nossos
olhos contemplarã o “o glorioso espetá culo de um mundo salvo”. As
palavras do Dr. Warfield sã o bem apropriadas aqui: “É assim que a
raça humana atinge o objetivo para o qual foi criada, e o pecado nã o
a arrebata das mã os de Deus: o propó sito primá rio de Deus para
com a raça é cumprido; e por Cristo, a raça do homem, posto que
caída no pecado, é recuperada para Deus e cumpre o seu destino
original”. [154]
Assim que, enquanto o arminianismo nos oferece um universalismo
espú rio, o qual é, quando muito, um universalismo de oportunidade ,
o calvinismo nos oferece o verdadeiro universalismo na salvação da
raça humana . E tã o somente o calvinismo, com a sua ênfase nas
doutrinas da eleiçã o soberana e da graça eficaz, pode olhar
confiadamente para o futuro com a esperança de ver um mundo
redimido.           

SEÇÃO IV. CONFRONTOS


 
CAPÍTULO XXIII. SALVAÇÃO PELA GRAÇA
 
1. O pecador é merecedor de castigo eterno. 2. Deus pode conferir ou reter a
sua graça como bem lhe aprouver. 3. O homem nã o pode conquistar a
salvaçã o. 4. O ensino das Escrituras. 5. Observaçõ es adicionais.
 
1. O pecador é merecedor de castigo eterno
A Bíblia declara que a salvaçã o dos pecadores é um assunto da
graça. Efésios 1.7-10 ensina que o propó sito principal de Deus na
obra da redençã o era o de exibir a gló ria deste atributo divino, de
modo que, através dos séculos sucessivos, o universo inteligente a
admire à medida que se manifesta por meio do seu imerecido amor
e infinita bondade para com as criaturas culpadas, vis e
desamparadas. Por conseguinte, os homens sã o representados como
mergulhados num estado de pecado e miséria do qual por si só s sã o
totalmente incapazes de se livrar. Todavia, muito embora
merecedores da ira e da condenaçã o divinas, Deus, ao enviar o seu
Filho, determinou, em sua graça, prover-lhes da redençã o,
assumindo a natureza e culpa destes, obedecendo e sofrendo
vicariamente; e, além disso, ele enviou o Espírito Santo que aplica a
redençã o comprada pelo seu pró prio Filho eterno. Com base no
mesmo princípio de representatividade, em virtude do qual o
pecado de Adã o nos é imputado, isto é, posto em nossa conta, de tal
maneira que somos tidos como plenamente responsá veis por ele, e
pelo qual sofremos as suas consequências, o nosso pecado, por sua
vez, é imputado a Cristo e sua justiça é imputada a nó s. O Catecismo
maior de Westminster expressa isso de uma maneira concisa e clara,
quando responde à pergunta: “O que é justificaçã o? Justificaçã o é um
ato da livre graça de Deus para com os pecadores, no qual ele
perdoa todos os seus pecados, aceita e considera as suas pessoas
justas aos seus olhos, nã o por qualquer coisa neles operada ou por
eles feita, mas unicamente pela perfeita obediência e plena
satisfaçã o de Cristo, a eles imputada por Deus e recebida só pela fé”.
[155]

Aqui nos convém assinalar que é imprescindível ter sempre em


mente a distinçã o entre os dois pactos: o pacto de obras, sob o qual
Adã o foi posto e o qual resultou na queda da raça em pecado; e o
pacto de graça, sob o qual Cristo foi enviado como Redentor. Como
dissemos em outra parte, em princípio, o sistema arminiano nã o faz
distinçã o entre o pacto de obras e o pacto de graça; exceto, talvez, no
sentido de que Deus agora oferece a salvaçã o em termos mais
acessíveis, e que, em vez de exigir obediência perfeita, aceita aquela
fé e obediência que o pecador incapacitado pode render. Nesse
sistema, o peso da obediência recai sobre o pró prio homem e a sua
salvaçã o depende, em primeira instâ ncia, das suas pró prias obras.
A palavra “graça” significa o amor ou favor imerecido de Deus para
com os pecadores, o que implica que a graça é algo conferido à parte
de qualquer mérito que porventura exista no homem; introduzir
obras ou mérito em qualquer parte deste sistema vicia a sua
natureza e frustra o seu propó sito. A graça, por ser graça, nã o é
outorgada com base em méritos, senã o que, como o seu pró prio
nome denota, é necessariamente gratuita. O homem, por tornar-se
escravo do pecado, nã o pode ostentar nenhum mérito; o que ele
merece, na realidade, é o castigo, e nã o dons ou favores. Qualquer
bem que porventura o homem possua, ele o deve a Deus; e, portanto,
o que os homens certamente nã o possuem é porque Deus nã o lho
deu. A graça, por ser conferida sem levar em conta quaisquer
méritos anteriores, é soberana e concedida somente à queles a quem
Deus selecionou para recebê-la. Esta soberania da graça, e nã o que
fosse prevista ou que o pecador haja intentado preparar-se para
recebê-la, põ e os homens sob o controle absoluto de Deus e converte
a salvaçã o numa obra que depende absolutamente da infinita
misericó rdia divina. Nisto achamos a base para a sua eleiçã o ou
rejeiçã o de pessoas particulares.
Devido à sua absoluta perfeiçã o moral, Deus demanda completa
pureza e perfeita obediência da parte das suas criaturas inteligentes;
e é na justiça perfeita de Cristo, imputada aos redimidos, que Deus
fez provisã o dessa perfeiçã o. Portanto, quando Deus contempla os
redimidos, ele os vê cobertos pela alva tú nica da justiça de Cristo, e
nã o por uma que seja propriamente deles. As Escrituras ensinam
claramente que Cristo sofreu como substituto, “o justo pelos
injustos”; e quando o homem se anima a pensar que a sua salvaçã o
se deve a algum poder ou obra pró pria, e nã o unicamente à graça
divina, Deus é despojado de parte da sua gló ria. Nenhuma boa obra
nesta vida poderá jamais ser tida como equivalente justo das
bênçã os da vida eterna. Benjamin Franklin, muito embora nã o
calvinista, expressou esta mesma ideia quando escreveu: “Aquele
que, ao dar um copo de á gua a uma pessoa sedenta, espere ser
recompensado com uma bela fazenda, pode ser considerado
modesto em sua petiçã o, comparado com aquele que pensa ser
merecedor do reino dos céus pelo pouco bem que faz aqui na terra”.
Na realidade, nada mais somos do que meros recipientes ; jamais
apresentamos a Deus uma recompensa adequada, senã o que
recebemos constantemente bens das suas mã os; e assim será por
toda a eternidade.
 

2. Deus pode conferir ou reter a sua graça como bem lhe


aprouver
Dado que Deus fez provisã o desta redençã o ou expiaçã o à s suas
pró prias custas, ele tem o direito de escolher a quem deseja salvar
por meio da mesma. Nã o há nada que a doutrina bíblica da redençã o
enfatiza mais do que o seu cará ter absolutamente gratuito. Os vasos
de misericó rdia, ao serem separados da massa original, nã o com
base em obras pessoais, mas unicamente em virtude da graça de
Deus, podem ver quã o imenso é o dom que lhes é oferecido. No
futuro se descobrirá que muitos dos que herdam as bênçã os
celestiais foram neste mundo pecadores muito piores do que muitos
dos que se perderam.
A doutrina da predestinaçã o deita abaixo todo pensamento de
justiça pró pria que tente diminuir a gló ria de Deus. Ela convence
à quele que é salvo de que a ú nica coisa que ele pode fazer é ser
eternamente grato ao Deus que o salva. Daí, no sistema calvinista se
exclui toda a jactâ ncia, e se preservam plenamente a honra e a gló ria
que pertencem exclusivamente a Deus. No dizer de Zanchi: “O maior
dos santos nã o pode se gloriar acima do mais vil dos pecadores, mas
é conduzido a render toda a gló ria por sua salvaçã o, tanto do pecado
quanto do inferno, à boa vontade e ao propó sito soberano de Deus,
que em sua graça foi quem estabeleceu uma diferença entre ele e o
mundo que jaz na perversidade”. [156]
 

3. O homem não pode conquistar a salvação


Por natureza, os seres humanos sentem que devem conquistar a sua
salvaçã o, e o sistema que apela, de alguma forma, para dita
tendência exerce muita atraçã o sobre eles. Paulo, porém, destró i
essa ideia quando afirma: “Porque, se fosse promulgada uma lei que
pudesse dar vida, a justiça, na verdade, seria procedente da lei” (Gl
3.21). E Jesus disse aos seus discípulos: “Assim também vó s, depois
de haverdes feito quanto vos foi ordenado, dizei: Somos servos
inú teis, porque fizemos apenas o que devíamos fazer” (Lc 17.10).
Toda a nossa justiça, no dizer de Isaías, é como “trapo de imundícia”
(Is 64.6). Quando Isaías escreveu, “Ah! Todos vó s, os que tendes
sede, vinde à s á guas; e vó s, os que nã o tendes dinheiro, vinde,
comprai e comei; sim, vinde e comprai, sem dinheiro e sem preço,
vinho e leite” (Is 55.1), o seu convite é dirigido aos pobres, aos
famintos, aos sedentos, a que viessem e tomassem posse e
desfrutassem da provisã o divina, livre de qualquer custo, como se
tivessem o direito a ela. E comprar sem dinheiro significa que os
bens já foram produzidos e providos à custa de outro. Quanto mais
avançamos na vida cristã , menos inclinados somos em atribuir a nó s
algum mérito e mais dispostos a render graças a Deus por tudo. O
crente visualiza nã o só a vida eterna, mas também olha para trá s,
para a eternidade antes da fundaçã o do mundo, e descobre no
propó sito eterno do amor divino a origem e a â ncora firme da sua
salvaçã o.
Se a salvaçã o é pela graça, como nos ensinam as Escrituras com toda
clareza, entã o nã o pode ser pelas obras, sejam estas atuais ou
previstas. É oportuno assinalar que no ato de crer nã o há mérito
algum, já que a pró pria fé é dom de Deus. Ele opera no coraçã o dos
seus escolhidos através do Espírito Santo a fim de que estes creiam,
e a fé é apenas o ato de receber o dom conferido. A fé é meramente a
causa instrumental, e nã o a causa meritó ria da salvaçã o. O que Deus
ama em nó s nã o é os nossos pró prios méritos, e sim o dom que ele
mesmo nos conferiu, porque a sua imerecida graça precede as
nossas obras meritó rias. Deus nã o confere a sua graça meramente
quando oramos por ela, senã o que a pró pria graça nos move a orar a
ele pela sua continuaçã o e aumento.
O livro de Atos revela que a pró pria recepçã o da fé é uma obra da
graça divina (18.27); que somente os que estavam ordenados para a
vida eterna criam (13.48); e que é prerrogativa de Deus abrir o
coraçã o para que se dê atençã o ao evangelho (16.14). A fé, portanto,
tem a sua raiz nos conselhos eternos, e os eventos no tempo sã o
apenas os resultados que a manifestam. Paulo atribui à graça de
Deus o fato de sermos “feitura dele, criados em Cristo Jesus para as
boas obras, as quais Deus preparou de antemã o para que
andá ssemos nelas” (Ef 2.10). As boas obras, portanto, de modo
algum sã o a causa meritó ria, e sim os frutos e a prova da salvaçã o.
Lutero ensinou exatamente isso quando escreveu: “Alguns, ainda
que atribuam escasso poder ao livre-arbítrio, insistem que tal poder
é capaz de alcançar a justiça e a graça. E quando sã o interrogados,
por que Deus justifica a um e não a outro , recorrem ao livre-arbítrio
e respondem: porque um se esforça e o outro, não; e Deus considera
ao que se esforça, e despreza ao que não se esforça; de outro modo,
Deus seria injusto ”. [157]
Conta-se que Jeremy Taylor e um companheiro, caminhando por
uma rua londrina, se aproximaram de um ébrio estendido na rua. O
companheiro de Taylor teceu um comentá rio depreciativo a respeito
do ébrio; Taylor, porém, detendo-se e olhando para o ébrio,
respondeu: “Se nã o fosse pela graça de Deus, quem estaria aí
vilmente prostrado seria Jeremy Taylor”. O espírito que Jeremy
Taylor manifestou naquela ocasiã o é o que deve persistir em cada
cristã o que já foi resgatado do pecado. A Bíblia manifesta uma e
outra vez que Israel devia a sua separaçã o dos demais povos da
terra nã o a algo bom e desejá vel existente neles, mas unicamente à
graça e ao amor fiel e contínuo de Deus, apesar da sua constante
apostasia, pecaminosidade e rebeliã o.
Paulo diz que os que querem basear a sua salvaçã o nos seus
pró prios méritos, esses tais estã o “procurando estabelecer a sua
pró pria justiça, nã o se sujeitaram à que vem de Deus”; e, portanto,
nã o fazem parte da igreja de Cristo. O apó stolo deixa claramente
estabelecido que “a justiça de Deus” nã o é concedida mediante a fé, e
que só entramos no céu pelos méritos de Cristo.
“Nenhum dos redimidos jamais apreciou
Quã o profundas foram as á guas
E quã o escura foi a noite
Que o Senhor enfrentou,
Antes de encontrar
A ovelha desgarrada que se perdeu”.
 

4. O ensino das Escrituras


Passaremos agora a considerar alguns versículos das Escrituras
onde somos ensinados que os nossos pecados foram imputados a
Cristo; e a seguir a outros que ensinam que a justiça de Cristo foi
imputada a nó s.
“Certamente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas
dores levou sobre si; e nó s o reputá vamos por aflito, ferido de Deus
e oprimido. Mas ele foi transpassado pelas nossas iniquidades; o
castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras
fomos sarados. Todos nó s andá vamos desgarrados como ovelhas;
cada um se desviava pelo caminho, mas o SENHOR fez cair sobre ele a
iniquidade de nó s todos” (Is 53.4-6). “Ele verá o fruto do penoso
trabalho da sua alma e ficará satisfeito; o meu Servo, o Justo, com o
seu conhecimento, justificará a muitos, porque as iniquidades deles
levará sobre si. Por isso, eu lhe darei muitos como a sua parte, e com
os poderosos repartirá ele o despojo, porquanto derramou a sua
alma na morte; foi contado com os transgressores; contudo, levou
sobre si o pecado de muitos e pelos transgressores intercedeu” (Is
53.11, 12). “Aquele que nã o conheceu pecado, ele o fez pecado por
nó s; para que, nele, fô ssemos feitos justiça de Deus” (2Co 5.21).
Nessas passagens se ensinam claramente ambas as verdades —
nossos pecados sã o imputados a Cristo, e a sua justiça nos é
imputada. Convém assinalar que de nenhuma outra maneira Cristo
podia ser “feito pecado”, ou sermos feitos “justiça de Deus nele”,
senã o por imputaçã o. Cristo, “carregando ele mesmo em seu corpo,
sobre o madeiro, os nossos pecados, para que nó s, mortos para os
pecados, vivamos para a justiça; pelas suas chagas fostes sarados”
(1Pe 2.24). Aqui, uma vez mais, ambas as verdades aparecem juntas.
“Pois também Cristo morreu, uma ú nica vez, pelos pecados, o justo
pelos injustos, para conduzir-vos a Deus” (1Pe 3.18). Estes, e muitos
outros textos afins, provam claramente a doutrina da substituiçã o. E
se alguém crê que tais textos nã o provam que a morte de Cristo foi
um verdadeiro e adequado sacrifício pelos nossos pecados, entã o a
linguagem humana nã o o pode expressar.
Que a sua justiça nos é imputada, isso nos é ensinado em linguagem
igualmente clara.
“Visto que ninguém será justificado diante dele por obras da lei, em
razã o de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado. Mas
agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei
e pelos profetas; justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para
todos [e sobre todos] os que creem; porque nã o há distinçã o, pois
todos pecaram e carecem da gló ria de Deus, sendo justificados
gratuitamente, pela sua graça, mediante a redençã o que há em
Cristo Jesus; a quem Deus propô s, no seu sangue, como propiciaçã o,
mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por ter Deus, em sua
tolerâ ncia, deixado impunes os pecados anteriormente cometidos;
tendo em vista a manifestaçã o da sua justiça no tempo presente,
para ele mesmo ser justo e o justificador daquele tem fé em Jesus.
Onde, pois, a jactâ ncia? Foi de todo excluída. Por que lei? Das obras?
Nã o; pelo contrá rio, pela lei da fé. Concluímos, pois, que o homem é
justificado pela fé, independentemente das obras da lei” (Rm 3.20-
28).
“Pois assim como, por uma só ofensa, veio o juízo sobre todos os
homens para condenaçã o, assim também, por um só ato de justiça,
veio a graça sobre todos os homens, para a justificaçã o que dá vida.
Porque, como, pela desobediência de um só homem, muitos se
tornaram pecadores, assim também, por meio da obediência de um
só , muitos se tornarã o justos” (Rm 5.18, 19).
“Sim, deveras considero tudo como perda, por causa da sublimidade
do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; por amor do qual
perdi todas as coisas e as considero como refugo, para conseguir
Cristo e ser achado nele, nã o tendo justiça pró pria, que procede de
lei, senã o a que é mediante fé em Cristo, a justiça que procede de
Deus, baseada na fé” (Fp 3.8, 9).
À luz dessas passagens, nã o é estranho que alguém que diga ser
regido pelas Escrituras insista em sustentar o seu pró prio esquema
de salvaçã o com base nas obras, nã o importa o grau de importâ ncia
que o mesmo atribua a tais obras?
Paulo escreveu aos Romanos: “Porque o pecado nã o terá domínio
sobre vó s; pois nã o estais debaixo da lei e sim da graça” (Rm 6.14).
Equivale dizer, Deus os tirou do sistema de lei sob o qual se
encontravam, e os pô s sob o sistema da graça; o que implica que
Deus, em sua soberania, nã o permitirá que eles caiam novamente
sob o domínio do pecado. De fato, se porventura caíssem, seria tã o
somente porque Deus os tirara do sistema da graça e os pusera
novamente sob o sistema da lei, sob o qual, portanto, as suas
pró prias obras haveriam de determinar o seu destino. Na natureza
do caso, enquanto a pessoa se acha sob a graça, a mesma está livre
de qualquer exigência que a lei poderia exercer sobre ela em virtude
do pecado. Ser salvo pela graça significa que Deus nã o trata o
pecador como merece, mas que soberanamente pô s de lado a lei e o
salva a despeito do seu justo merecimento — certamente
purificando-o do pecado antes que o mesmo possa entrar na
presença divina.
Paulo se esforça por todos os meios para apresentar de maneira
clara o fato de que a graça de Deus nã o é algo que conquistamos
pelos nossos pró prios esforços, mas algo que Deus nos confere
gratuitamente. Se a graça pudesse ser conquistada por esforços
humanos, entã o ela deixaria de ser graça (Rm 11.6).
 

5. Observações adicionais
Na atual condiçã o da raça, todos os homens se encontram diante de
Deus, nã o como cidadã os de uma naçã o aos quais se deve tratar em
pé de igualdade e dar-lhes a mesma “oportunidade” de salvaçã o,
mas como criminosos culpados e condenados diante de um juiz
justo. Ninguém tem o direito à salvaçã o. A maravilha das maravilhas
nã o é que Deus nã o salve a todos, senã o que, sendo todos culpados,
ele perdoa a alguns; e a resposta à pergunta, por que Deus nã o salva
a todos?, tem de ser achada nã o na negaçã o arminiana da
onipotência da sua graça, e sim no fato de que, como afirma o Dr.
Warfield, “Deus, no seu amor, salva, da delinquente raça humana
tantos quantos lhe permite a aquiescência da sua natureza inteira”.
[158]
Por razõ es suficientes para si mesmo, Deus vê que o melhor nã o
é salvar a todos, e sim permitir a alguns que sigam os seus pró prios
caminhos e reservá -los para o castigo eterno a fim de mostrar quã o
vil é o pecado e a rebeliã o contra Deus.
As Escrituras ressaltam com frequência que a salvaçã o é pela graça,
como se antecipassem a dificuldade que os homens teriam em
entender que a salvaçã o nã o pode ser comprada pelas pró prias
obras. Também destroem a arraigada crença de que Deus é obrigado
a conferir a salvaçã o a alguém. “Porque pela graça sois salvos,
mediante a fé; e isto nã o vem de vó s; é dom de Deus; nã o de obras,
para que ninguém se glorie” (Ef 2.8, 9). “E se é pela graça, já nã o é
pelas obras; do contrá rio, a graça já nã o é graça” (Rm 11.6). “Visto
que ninguém será justificado diante dele por obras da lei, em razã o
de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado” (Rm 3.20).
“Ora, ao que trabalha, o salá rio nã o é considerado como favor, e sim
como dívida” (Rm 4.4). “Pois quem é que te faz sobressair? E que
tens tu que nã o tenhas recebido? E, se o recebestes, por que te
vanglorias, como se nã o o tiveras recebido?” (1Co 4.7). “Mas, pela
graça de Deus, sou o que sou; e a sua graça, que me foi concedida,
nã o se tornou vã ” (1Co 15.10). “Ou quem primeiro deu a ele para
que lhe venha a ser restituído?” (Rm 11.35). “Porque o salá rio do
pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em
Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm 6.23).
A graça e as obras sã o conceitos que se excluem mutuamente. Seria
mais fá cil unir o pó lo norte com o pó lo sul do que conseguir a
coalizã o da graça e das obras na salvaçã o. Seria tã o absurdo falar de
um “dom comprado” quanto de uma “graça condicional” — porque,
quando a graça deixa de ser absoluta, ela também deixa de ser graça.
Portanto, quando as Escrituras afirmam que a salvaçã o é por graça,
devemos entender que, ao longo de todo o processo, a salvaçã o é
obra de Deus, e qualquer obra verdadeiramente meritó ria, feita por
algum ser humano, entra em cena meramente como resultado da
mudança operada por Deus no indivíduo.
O arminianismo destró i este cará ter puramente gratuito da
salvaçã o, e põ e no lugar dele um sistema de graça e obras. No
sistema arminiano, nã o importa quã o pequena é a parte que
desempenha as obras, sempre sã o necessá rias e consideradas como
a base da distinçã o entre os salvos e os perdidos, e por isso
propiciam que os salvos se gloriem sobre os perdidos, já que ambos,
certamente, tiveram a mesma oportunidade. Paulo, todavia, diz que
toda jactâ ncia fica excluída, e que ninguém pode se gloriar, senã o no
Senhor (Rm 3.27; 1Co 1.31). O redimido, que reconhece ter sido
salvo unicamente pela graça, traz em mente o lodaçal do qual foi
tirado, e a sua atitude para com os perdidos é de lá stima e
compaixã o, já que bem sabe que, se nã o fosse a graça de Deus, ele se
encontraria na mesma condiçã o dos que perecem. O canto do
redimido é “Nã o a nó s, ó Senhor, nã o a nó s, mas ao teu nome dá
gló ria pela tua misericó rdia e pela tua verdade”.      
 
CAPÍTULO XXIV: A CERTEZA PESSOAL DE QUE ALGUÉM SE
ENCONTRA ENTRE OS ELEITOS
 
1. A base dessa certeza. 2. O ensino das Escrituras. 3. Conclusã o.
 
1. A base dessa certeza
Todos os cristã os genuínos podem e devem saber que estã o entre os
predestinados para a vida eterna. Como a fé em Cristo, que é um
dom de Deus, é o meio de salvaçã o e é conferida somente aos eleitos,
a pessoa que sabe que possui essa fé pode estar certa de que se
encontra entre os eleitos. A mera presença da fé, nã o importa quã o
débil seja ela, sempre e quando é uma fé genuína, é prova de
salvaçã o. “E creram todos os que haviam sido destinados para a vida
eterna” (At 13.48). A fé é um milagre da graça naqueles que já foram
salvos — uma garantia espiritual de que a sua salvaçã o já foi
“consumada” na cruz e confirmada na manhã da ressurreiçã o. Os
salvos sabem que o amor de Deus já foi derramado em seus
coraçõ es e que os seus pecados já foram perdoados. No Progresso do
Peregrino somos informados que, quando os pecados do cristã o
foram perdoados, uma pesada carga caiu dos seus ombros e ele
experimentou grande alívio. Toda pessoa convertida deve saber que
é um dos eleitos, já que o Espírito Santo renova somente aqueles que
sã o escolhidos pelo Pai e redimidos pelo Filho. “É néscio pensar que
alguém que ama sinceramente a Jesus Cristo e confia nele como o
seu Salvador e amorosamente lhe obedece como o seu Senhor ainda
careça da eleiçã o divina. Ao contrá rio, é por ser um dos eleitos de
Deus que tal pessoa pode exercer fé em Cristo para a salvaçã o da sua
alma e imitar a Cristo na conduta diá ria. É impossível que um crente
em Cristo nã o seja eleito de Deus, porque é tã o somente pela eleiçã o
divina que alguém crê em Cristo. Nã o necessitamos nem devemos
buscar em nenhum outro lugar uma prova da nossa eleiçã o. Se
cremos em Cristo e lhe obedecemos, entã o somos os seus filhos
eleitos.” [159]
Cada pessoa que ama a Deus e sente um genuíno anseio de salvaçã o
em Cristo está entre os eleitos, já que os nã o eleitos nunca
experimentam esse amor ou desejo. Os nã o eleitos, ao contrá rio,
amam o mal e aborrecem a justiça em harmonia com as suas
naturezas pecaminosas. “O indivíduo cumpre o seu dever para com
Deus e o seu semelhante? Ele é honesto, justo, caridoso e sincero? Se
a resposta é sim, e está ciente do poder para continuar nessas
virtudes, entã o pode estar certo de que foi predestinado para a
felicidade eterna.” [160]
“Nó s sabemos que já passamos da morte para a vida, porque
amamos os irmã os; aquele que nã o ama permanece na morte” (1Jo
3.14). “Todo aquele que é nascido de Deus nã o vive na prá tica de
pecado; pois o que permanece nele é a divina semente; ora, esse nã o
pode viver pecando, porque é nascido de Deus” (1Jo 3.9). Equivale
dizer, pecar vai de encontro aos princípios internos do crente.
Quando ele pondera profunda e sobriamente sobre o pecado, este
lhe soa como algo aversivo e o odeia. Do mesmo modo que um bom
cidadã o nada faz em detrimento de sua naçã o, assim o crente
verdadeiro nada faz que resulte em prejuízo do reino de Deus. Na
prá tica, ninguém neste mundo vive uma vida perfeitamente isenta
de pecado; nã o obstante, esta é a meta ideal que todo cristã o busca
alcançar.
O Dr. Warfield afirma que “em 2 Pedro 1.10, o apó stolo nos exorta a
que procuremos ‘confirmar nossa vocaçã o e eleiçã o, com diligência
cada vez maior’. Ele nã o diz que, por meio de boas obras, podemos
obter de Deus um decreto de eleiçã o em nosso favor. O que ele nos
ensina é que, cultivando o gérmen da vida espiritual implantado por
Deus, este chegue ao seu pleno florescimento — ocupando-nos de
nossa salvaçã o, nã o sem Cristo, e sim em Cristo — poderemos
alcançar a certeza da eleiçã o que professamos. As boas obras,
portanto, sã o sinal e prova da eleiçã o, e quando sã o tomadas no
sentido pleno em que Pedro as considera aqui, como o ú nico sinal e
prova da eleiçã o. Nunca poderemos saber se somos eleitos de Deus
para a vida eterna exceto por manifestar em nossas vidas os frutos
da eleiçã o — fé e virtude, conhecimento e domínio pró prio,
paciência e piedade, amor fraternal. É inú til buscar a certeza da
eleiçã o à parte de uma vida santa. Deus escolheu seu povo antes da
fundaçã o do mundo precisamente para que fossem santos. A
santidade, por ser o produto necessá rio, é, portanto, o sinal
inequívoco da eleiçã o”. [161]
No dizer de Toplady: “Uma pessoa que experimenta o poder da vida
espiritual sabe com toda certeza se sobre ela brilha o semblante de
Deus, ou se ainda anda em trevas como o viajante sabe se está
viajando sob um sol refulgente ou sob a chuva”.
Como posso saber se me encontro entre os eleitos? É como
perguntar: Como sei se sou ou nã o um cidadã o leal? Ou: Como posso
distinguir entre o preto e o branco, ou entre o doce e o amargo?
Todos nó s sabemos instintivamente qual é a nossa atitude para com
o nosso país; e as Escrituras e a consciência nos dã o evidência
igualmente clara se somos ou nã o eleitos de Deus. Todo filho ou filha
de Deus deve estar plenamente cô nscio desse fato. Paulo exortou os
coríntios: “Examinai-vos a vó s mesmos se estais na fé; provai-vos a
vó s mesmos” (2Co 13.5).
 

2. O ensino das Escrituras


Temos a certeza de que “o pró prio Espírito testifica com o nosso
espírito que somos filhos de Deus” (Rm 8.16). “Aquele que crê no
Filho de Deus tem, em si, o testemunho” (1Jo 5.10). “E o testemunho
é este: que Deus nos deu a vida eterna; e esta vida está em seu Filho.
Aquele que tem o Filho tem a vida; aquele nã o tem o Filho de Deus
nã o tem a vida. Estas coisas vos escrevi, a fim de saberdes que
tendes a vida eterna, a vó s outros que credes em o nome do Filho de
Deus” (1Jo 5.11-13). O crente renascido recebe o evangelho em seu
coraçã o, mas o nã o regenerado o rejeita: “Nó s somos de Deus;
aquele que conhece a Deus nos ouve; aquele que nã o é da parte de
Deus nã o nos ouve. Nisto reconhecemos o espírito da verdade e o
espírito do erro” (1Jo 4.6). “E aquele que guarda os seus
mandamentos permanece em Deus, e Deus, nele. E nisto
conhecemos que ele permanece em nó s, pelo Espírito que nos deu”
(1Jo 2.24). “E, porque vó s sois filhos, enviou Deus ao nosso coraçã o o
Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai!” (Gl 4.6). A pessoa
regenerada reconhece instintivamente a Deus como o seu Pai. “Nó s
sabemos que já passamos da morte para a vida, porque amamos os
irmã os; aquele que nã o ama permanece na morte” (1Jo 3.14). “Todo
aquele que crê que Jesus é o Cristo é nascido de Deus” (1Jo 5.1).
Significa que todos os que confessam a Jesus como Senhor — que
bendita certeza! “Se sabeis que ele é justo, reconhecei também que
todo aquele que pratica a justiça é nascido dele” (1Jo 2.29). Aqueles
que ouvem e recebem de braços abertos o evangelho sã o vivificados
por este princípio interior e salvadora.
“Por isso, quem crê no Filho tem a vida eterna; o que, todavia, se
mantém rebelde contra o Filho nã o verá a vida, mas sobre ele
permanece a ira de Deus” (Jo 3.36). “Por isso, vos faço compreender
que ninguém que fala pelo Espírito de Deus afirma: Aná tema, Jesus!
Por outro lado, ninguém pode dizer: Senhor Jesus!, senã o pelo
Espírito Santo” (1Co 12.3). Com isto somos ensinados que uma
pessoa verdadeiramente salva não pode rejeitar Jesus e injuriá -lo; e
todo aquele que olha para Jesus como o Senhor e o seu Senhor já foi
regenerado e está entre os eleitos. Cada pessoa sabe qual é a sua
atitude para com Jesus; e, tendo ciência disso, pode julgar se é salva
ou nã o. Que cada um faça a si mesmo esta pergunta: qual é a minha
atitude para com Cristo? Eu estaria disposto a recebê-lo se neste
momento ele aparecesse para falar comigo pessoalmente? Eu o
receberia como o meu Amigo, ou me recusaria a encontrar-me com
ele? Os que esperam com alegria a vinda de Cristo podem saber que
sã o salvos.
Visto que estas sã o marcas indubitá veis da salvaçã o, estabelecidas
nas Escrituras, uma pessoa que honestamente se examina pode
saber se está ou nã o entre o povo de Deus. Pode ainda julgar outros
com prudência utilizando os mesmos critérios; se vemos em outras
pessoas os frutos externos da eleiçã o, e nos convencemos de sua
sinceridade, podemos concluir razoavelmente que sã o eleitas. Paulo
nutria certeza no tocante aos cristã os tessalonicenses, pois ele
escreveu: “reconhecendo, irmã os, amados de Deus, a vossa eleiçã o,
porque o nosso evangelho nã o chegou até vó s tã o somente em
palavra, mas, sobretudo, em poder, no Espírito Santo e em plena
convicçã o, assim como sabeis ter sido o nosso procedimento entre
vó s e por amor de vó s” (1Ts 1.4, 5); e, de igual modo, reconheceu
que Deus havia escolhido, em Cristo, os efésios, visto que lhes
escreveu: “assim como nos escolheu, nele, antes da fundaçã o do
mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante ele; e em amor
nos predestinou para ele, para a adoçã o de filhos, por meio de Jesus
Cristo, segundo o beneplá cito da sua vontade” (Ef 1.4, 5).
 

3. Conclusão
Por outro lado, nunca devemos declarar que alguém nã o é eleito,
nã o importa quã o pecador seja ele no momento, já que o Espírito
Santo ainda pode conduzir à fé e ao arrependimento até mesmo a
pessoa mais vil. A conversã o de muitos eleitos está ainda no futuro.
Por essa razã o, ninguém tem o direito de declarar positivamente a si
mesmo ou a outra pessoa definitivamente nã o eleita, já que ninguém
sabe como Deus haverá de agir para com ela ou para com outras
pessoas. Nã o obstante, podemos dizer que os que morrem
impenitentes certamente se perdem, já que as Escrituras sã o
explícitas a esse respeito.
Infelizmente, nem todo cristã o possui esta certeza de salvaçã o,
porque tal certeza provém do conhecimento dos nossos pró prios
recursos e forças morais, e o que subestima a si pró prio pode
carecer ingenuamente desta certeza. O cristã o costuma sentir-se
desanimado em razã o da sua fé ser muito frá gil, porém nem por isso
deve pensar que nã o é eleito. Quando a fé se fortalece e as noçõ es
equivocadas sobre a salvaçã o se aclaram, é privilégio e dever de
todo cristã o saber que é salvo e desvencilhar-se daquele medo da
apostasia que constantemente observa todo arminiano prá tico
enquanto continua nesta vida. Portanto, ainda que a certeza da
salvaçã o seja desejá vel e fá cil de obter por todo aquele que tenha
feito algum progresso na vida cristã , nem sempre pode utilizar esse
fato como prova para determinar se uma pessoa é ou nã o
verdadeiramente cristã .
Deus promete que todo aquele que vai a ele em Cristo nã o será
lançado fora (Jo 6.37), e que todo aquele que deseja pode beber da
á gua da vida, sem dinheiro e sem preço, e aquele que pede receberá .
A base da nossa certeza se encontra tanto dentro como fora de nó s.
Portanto, se algum cristã o genuíno nã o tem a certeza de que é
eternamente salvo, a culpa está nele, e nã o no plano de salvaçã o ou
nas Escrituras.   
 

CAPÍTULO XXV. A PREDESTINAÇÃO NO MUNDO FÍSICO


 
1. A uniformidade da lei natural. 2. Comentá rios de eminentes cientistas e
teó logos. 3. Somente o sistema calvinista se harmoniza com a ciência e a
filosofia modernas.
 
1. A uniformidade da lei natural
No que respeita ao universo físico, nã o existe nenhuma dificuldade
em crer numa predestinaçã o absoluta. O curso dos eventos no
universo físico foi predestinado imutavelmente quando Deus criou o
mundo e estabeleceu as leis naturais da gravidade, a luz, o
magnetismo, a afinidade química, os fenô menos elétricos, etc. À
parte da intromissã o da mente e dos milagres, o curso da natureza
manifesta uma uniformidade fá cil de predizer. Isso nã o só tem sido
admitido, mas também dogmaticamente sustentado e ensinado por
muitos dos grandes cientistas. Os á tomos se movem em padrõ es
bem definidos. Os objetos materiais que usamos sã o governados por
leis fixas. Se tivéssemos conhecimento preciso de todos os fatores
envolvidos poderíamos determinar com exatidã o qual seria o efeito
de uma pedra em sua queda, ou de uma explosã o, ou de um tremor
de terra. O telescó pio revela milhõ es de longínquos só is que seguem
cursos exatos e predeterminados e cujas posiçõ es podem ser
preditas em mil anos.
No sistema solar, os planetas e os satélites se movem em perfeita
simetria em suas ó rbitas, e é possível predizer eclipses com grande
exatidã o. Antes do eclipse solar de 1924, os astrô nomos anunciaram
o curso que seguiria a sombra da lua sobre a terra e calcularam o
tempo em que aconteceria em vá rias cidades, e o calcularam com
uma margem de erro de apenas quatro segundos!
Os astrô nomos nos informam que os mesmos princípios que operam
em nosso sistema solar também operam nas milhares de estrelas a
trilhõ es de quilô metros de distâ ncia de nó s. Os físicos analisam a luz
que vem do sol e das estrelas, e nos informam que nã o só os mesmos
elementos que se encontram na terra como o ferro, carbono,
oxigênio, entre outros, se encontram também nesses astros, mas que
ditos elementos se encontram praticamente na mesma proporçã o lá
e cá .
Da lei da gravidade aprendemos que todo objeto material no
universo atrai outro objeto material com uma força diretamente
proporcional à s suas massas e inversamente proporcional ao
quadrado da distâ ncia entre os seus centros. Equivale dizer, todo
grã o de areia no deserto ou na praia guarda uma relaçã o com todos
e cada um dos só is no universo. O leve copo de neve exerce a sua
influência sobre o grande globo terrestre e vice-versa. O
microscó pio igualmente revela maravilhas tã o admirá veis como as
que o telescó pio revela. A providência de Deus se estende tanto aos
á tomos quanto à s estrelas, e cada um exerce a sua influência
particular, pequena, porém precisa. Em todo lugar existe uma ordem
perfeita, e Deus sequer descuidou de um detalhe da sua gloriosa
obra.
 

2. Comentários de eminentes cientistas e teólogos


Certa vez disse Huxley que, se o homem possuísse um conhecimento
exato das leis naturais, antes de surgir as plantas e os animais na
terra, poderia predizer nã o só o relevo geográ fico e o clima de
qualquer regiã o em particular, mas também a flora e fauna de ditas
regiõ es — tudo surgindo, segundo ele cria, da geraçã o espontâ nea
da vida de matéria inorgâ nica. Muito embora nã o aceitemos o seu
conceito sobre a origem da vida, nã o obstante as suas palavras nos
dã o uma ideia da grande uniformidade que existe nas leis da
natureza.
Certa vez este autor participou de uma discussã o conduzida pelo Dr.
H. N. Russell, diretor do Departamento de Astronomia da
Universidade de Princeton e um dos astrô nomos mais eminentes da
nossa época, na qual o Dr. Russell afirmou que, à parte da influência
da mente, ele cria numa predestinaçã o absoluta que veio a ser
efetiva pelas leis fixas da natureza.
“A uniformidade das leis da natureza”, disse o Dr. Charles Hodge, “é
uma revelaçã o constante da imutabilidade de Deus. Tais leis sã o as
mesmas que têm operado desde o princípio da criaçã o, e sã o as
mesmas que operam em todas as partes do universo. E convém
assinalar que as leis que regulam as operaçõ es da razã o e da
consciência nã o sã o menos está veis”. E novamente diz: “Se em todas
essas esferas inferiores da sua criaçã o Deus age em conformidade
com um plano preestabelecido, seria estranho concluir que nas
esferas mais elevadas das suas operaçõ es, que dizem respeito ao
destino dos homens, ele deixasse tudo à casualidade e permitisse
que tomasse um curso indeterminado para um fim indeterminado.
As Escrituras afirmam claramente que, no que respeita à s
dispensaçõ es da graça, Deus nã o só vê o fim desde o princípio, mas
também dirige todas as coisas conforme o conselho da sua vontade,
ou conforme o seu propó sito eterno”. [162]
O Dr. Abraham Kuyper, sem dú vida um dos mais destacados
teó logos do século passado, afirma: “É um fato que as realizaçõ es da
ciência em nossa época têm se inclinado quase unanimemente a
favor do calvinismo no que respeita à antítese entre a unidade e a
estabilidade do decreto divino, que o calvinismo professa, e a
superficialidade e imprecisã o que os arminianos preferem. Os
sistemas dos grandes teó logos estã o, quase sem exceçã o, a favor da
unidade e estabilidade”. E o Dr. Kuyper prossegue dizendo que estes
sistemas “demonstram claramente que o desenvolvimento da
ciência em nossa época pressupõ e um cosmo que nã o pode ser
vítima dos caprichos do azar, senã o que existe e se desenvolve com
base em um princípio, de acordo com uma ordem fixa, e se move
rumo a um fim definido. Essa asseveraçã o, como se pode ver, é
diametralmente oposta ao sistema arminiano, porém em completa
harmonia com a posiçã o calvinista, que postula a existência em Deus
de uma vontade suprema, que é a causa de tudo o que existe e que
sujeita todas as coisas a ordenanças e as dirige rumo a um plano
preestabelecido”. E, novamente, ele pergunta: Que é a doutrina da
preordenaçã o, senã o aquela que postula que “o cosmo nã o é um
joguete do capricho e da casualidade, senã o que obedece à lei e à
ordem; e afirma, além disso, que existe uma inalterá vel vontade que
leva a bom termo os seus propó sitos, seja na natureza, seja na
histó ria?”. [163]
 

3. Somente o sistema calvinista se harmoniza com a ciência e a


filosofia modernas
A cosmovisã o calvinista, que enfatiza a inalterabilidade e certeza do
curso dos acontecimentos, está , portanto, em surpreendente
harmonia com a ciência e a filosofia modernas. Quã o absurda é a
alegaçã o que alguns costumam fazer no sentido de que, nã o importa
quã o claramente a doutrina da predestinaçã o é ensinada nas
Escrituras, ela é refutada pela verdade estabelecida por outras
fontes! Esta alegaçã o procede de pessoas que simplesmente desejam
estabelecer um sistema de teologia diferente. No entanto, qualquer
que esteja familiarizado com a ciência e a filosofia modernas (com a
psicologia fisioló gica, por exemplo), as quais enfatizam o fato de que
existem leis universalmente fixas, sabe que esta alegaçã o é
totalmente oposta à verdade. Observe a ênfase atual no
behaviorismo (comportamentalismo), o determinismo e a herança
bioló gica. E o que é a lei de Mendel senã o predestinaçã o na esfera da
genética? A tendência atual é, antes, contrá ria ao conceito de
liberdade e contingência. O universo é conhecido como um todo
sistemá tico, inter-relacionado em todas as suas partes, que segue
um curso bem definido e preordenado. Os cientistas e filó sofos
modernos mais proeminentes sustentam a posiçã o calvinista de um
universo unificado, muito embora, certamente, utilizem uma
nomenclatura diferente e tenham uma ideia diferente do
sobrenatural. Ainda que neguem a liberdade ou inclusive a
personalidade de Deus e as suas metafísicas deterministas estejam
em total discordâ ncia com a verdadeira doutrina da providência e
da graça e tentem explicar os processos mentais do cérebro, e
inclusive a pró pria vida, em termos de leis físicas e químicas,
contudo a sua opiniã o dos fatos coordenados da vida e da natureza é
totalmente calvinista.
Sem fé na unidade, estabilidade e ordem das coisas, que é o que o
calvinismo ressalta, nã o é possível que a ciência avance para além de
meras conjeturas. A ciência está baseada na fé na interconexã o ou
unidade orgâ nica do universo, numa convicçã o firme de que as
nossas vidas sã o regidas por leis ou princípios estabelecidos por
algum Poder ou Criador extraterreno. Portanto, quanto mais
aprendemos da ciência, mais claramente vemos a unidade que existe
entre todas as coisas.
Ao estudar a histó ria, podemos notar que ela é também uma “cadeia
de eventos”. Assim como cada grã o de areia mantém uma relaçã o
com cada sol no universo, de igual modo cada evento tem o seu
lugar preciso e necessá rio no desenvolvimento da histó ria. Todos
nó s podemos lembrar-nos de eventos comparativamente
insignificantes que mudaram o curso das nossas vidas; e o resultado
da omissã o de um desses elos se torna radicalmente distinto. Com
frequência uma coisa bem pequena dá lugar a uma série de eventos
que transtorna o mundo, como sucedeu em 1914, quando um
conspirador sérvio assassinou o arquiduque da Á ustria, dando lugar
à Guerra Mundial. Muitas pessoas, mui naturalmente, nã o se
dispõ em a atribuir os atos livres de homens e anjos, especialmente
os atos pecaminosos destes, à preordenaçã o de Deus. No entanto, se
Deus realmente governa o mundo, entã o todos os eventos, nã o só os
do mundo natural, mas também no reino dos acontecimentos
humanos, devem estar sob o plano e controle providencial de Deus;
e as Escrituras ensinam claramente que os atos livres de homens e
anjos sã o preordenados por Deus, da mesma forma que os eventos
do mundo material.
Este quá druplo argumento da ciência, da filosofia, da histó ria e das
Sagradas Escrituras nã o deve ser subestimado. E ainda que seja
certo que a ciência, a filosofia e a histó ria reduzam a doutrina da
predestinaçã o a uma rígida força impessoal, nã o obstante, quando se
lança a radiante luz do evangelho sobre estas esferas, demonstrando
que as escolhas de certas raças, as decisõ es pessoais e os
chamamentos divinos sã o feitos pela graça soberana e nã o
meramente por uma vontade soberana, vemos que os propó sitos
eternos de Deus operam a favor e nã o contra o homem; e o coraçã o
encontra descanso e conforto no fato de que o amor e a misericó rdia
de Deus sã o tã o ternos quanto firmes sã o os seus propó sitos.

CAPÍTULO XXVI. UMA COMPARAÇÃO DA DOUTRINA CRISTÃ


COM A DOUTRINA ISLÂMICA DA PREDESTINAÇÃO
 
1. Elementos que ambas as doutrinas têm em comum. 2. A tendência islâ mica
para o fatalismo. 3. A doutrina cristã da predestinaçã o nã o teve a sua origem
na doutrina islâ mica. 4. As duas doutrinas contrastadas.

1. Elementos que ambas as doutrinas têm em comum


Ainda que o islamismo seja uma religiã o falsa e totalmente inapta
para salvar a alma do pecado, contudo contém certos elementos de
verdade, e temos a obrigaçã o de honrar a verdade, nã o importa a
fonte donde ela proceda. Froude afirma: “A fortaleza do islamismo
jaz no seu ensino sobre a onipotência e onipresença de um Espírito
eterno, o Criador e Governante de todas as coisas, em cujo propó sito
eterno se encontram todas as coisas, e a cuja vontade todas as coisas
obedecem”. [164] A grande semelhança entre a doutrina bíblica da
predestinaçã o e a do Alcorã o tem sido notada por muitos escritores.
O Dr. Samuel M. Zwemer, que pode ser considerado “o apó stolo do
mundo islâ mico”, nos mostra a semelhança entre a Reforma na
Europa sob Calvino e aquela na Ará bia sob Maomé. Eis o que ele diz:
“O Islã é em muitos sentidos o calvinismo do Oriente. O Islã , como o
Calvinismo, é um chamado a reconhecer a soberania da vontade
divina. ‘Nã o existe deus senã o Deus’. A religiã o islâ mica também viu
na natureza e buscou na revelaçã o a majestade da presença e do
poder de Deus e as manifestaçõ es transcendentes e onipotentes da
sua gló ria. No dizer de Maomé, ‘nã o há outro deus senã o Deus, o
vivente, o auto-suficiente, aquele que nã o vacila nem dorme — seu
trono abarca os céus e a terra, e ninguém pode aproximar-se dele
senã o com a sua permissã o. Somente Deus é exaltado e sublime’. É
este vital princípio teísta que explica a vitó ria do Islã sobre a débil,
dividida e idó latra cristandade do Oriente no século sexto. A
mensagem de Maomé, ‘Nã o existe deus senã o Deus; Deus é rei, e
devemos obedecer-lhe e certamente lhe obedeceremos’, foi um dos
mais simples ensinos sobre a natureza de Deus e a sua relaçã o com o
homem já proclamados. Este foi o Islã oferecido ao fio de espada aos
povos que haviam perdido a capacidade de entender todo e
qualquer outro argumento”. [165]
Além do Alcorã o, há certas tradiçõ es ortodoxas que dizem conter os
ensinos de Maomé sobre este tema. Algumas dessas tradiçõ es
explicam, em linguagem quase idêntica à linguagem bíblica, que,
antes de uma pessoa nascer, um anjo desce e escreve o seu destino.
Somos informados que o anjo pergunta: “Oh, Senhor, miserá vel ou
abençoado? E prossegue escrevendo um ou outro dos dois destinos;
e volta a perguntar: Oh, Senhor, homem ou mulher? E escreve uma
ou outra coisa. O anjo escreve ainda a conduta moral do ser pró ximo
a nascer, e igualmente a sua vocaçã o, o fim da sua vida e a porçã o de
bem que há de receber nesta vida. Entã o (se diz ao anjo): Sela o
livro, pois nada lhe será acrescentado, nem nada lhe será retirado”.
Em outra tradiçã o, lemos de um mensageiro de Deus que se
expressa assim: “Nã o há ninguém, nem há alguma alma que tenha
nascido, cujo lugar, seja o Paraíso ou o inferno, nã o foi preordenado
por Deus e cujo destino, seja miserá vel ou bendito, nã o foi escrito de
antemã o”. [166]
Ainda que o Alcorã o e as tradiçõ es ensinem uma preordenaçã o
rígida da conduta moral e do destino futuro, também ensinam uma
doutrina de liberdade humana, da qual se faz necessá rio modificar
as afirmaçõ es mais fortes sobre a predestinaçã o divina em harmonia
com a doutrina da liberdade humana. Aqui, como igualmente nas
Escrituras, nã o se trata de explicar como as verdades
aparentemente opostas da soberania divina e a liberdade humana
devem ser conciliadas.
 

2. A tendência islâmica para o fatalismo


Nã o obstante, como uma questã o de fato, o islamismo põ e tanta
ênfase em Deus como causa unida de todos os eventos que
praticamente exclui as causas secundá rias. A ideia de que o homem,
de algum modo, é a causa dos seus pró prios atos já quase
desapareceu, e o fatalismo, a crença comum dos á rabes em seu
estado de semi-civilizaçã o antes de Maomé, é a força que controla as
especulaçõ es e prá ticas do mundo islâ mico. Como o explica o Dr.
Zwemer: “De acordo com essas tradiçõ es e a interpretaçã o das
mesmas por mais de dez séculos na vida dos mulçumanos, esta
classe de predestinaçã o deve ser denominada simplesmente de
fatalismo, já que o fatalismo é a doutrina de uma necessidade
inevitá vel e implica um poder soberano, onipotente e arbitrá rio”.
[167]

Na prá tica, o islamismo sustenta uma predestinaçã o de fins sem


levar em conta os meios pelos quais se atingem tais fins. O contraste
com o sistema cristã o, neste sentido, pode ser visto claramente na
seguinte anedota. Um barco com ingleses e islamitas a bordo se
deslizou pelo mar. Acidentalmente, um dos passageiros caiu no mar.
Os islamitas, observando com grande indiferença o passageiro
acidentado, disseram: “Se está escrito no livro do destino que ele
haja de perecer, nada há que possamos fazer”; e com isso o
deixaram. Os ingleses, por sua vez, replicaram: “Talvez esteja escrito
que tenhamos de salvá -lo”, e lançaram uma corda e o tiraram da
á gua.
 

3. A doutrina cristã da predestinação não tem sua origem na


doutrina islâmica
 
Todavia, diga-se o que quiser da doutrina da predestinaçã o,
ninguém argumentará racionalmente que a doutrina cristã teve a
sua origem na doutrina islâ mica. Agostinho, reconhecido igualmente
por protestantes e cató licos como sendo o personagem mais
eminente da igreja cristã da sua época, e a quem os protestantes
consideram como sendo o personagem mais importante entre Paulo
e Lutero, ensinou esta doutrina com grande convicçã o mais de dois
séculos antes que surgisse o islamismo; além disso, esta doutrina foi
ensinada agressivamente por Cristo e os apó stolos já no início da era
cristã , sem mencionar o relevante papel que ocupou no Antigo
Testamento.
Ao estudar a histó ria e os ensinos do islamismo, devemos precaver-
nos de que eles se compõ em de três partes: uma derivada dos
judeus, e outra, dos cristã os, e a terceira, dos á rabes pagã os. Como
podemos ver, parte do sistema outra coisa nã o é senã o cristianismo
de segunda mã o. Mas, seria razoá vel que um crente proceda a
rejeitar alguns artigos do seu credo só porque foram adotados por
Maomé? Convém assinalar que agir assim deixaria imensas brechas
em nosso credo, já que, além da doutrina da predestinaçã o, Maomé
também cria em um só Deus verdadeiro, aboliu totalmente a
adoraçã o aos ídolos, cria nos anjos, em uma ressurreiçã o e em um
juízo geral, em um céu e um inferno, no uso tanto do Antigo
Testamento quanto do Novo Testamento, e reconheceu tanto a
Moisés quanto a Cristo como profetas de Deus. Portanto, nã o causa
estranheza que elementos da doutrina cristã da predestinaçã o
fossem incorporados no sistema islâ mico e unidos à doutrina pagã
do fatalismo.
Um estudo histó rico do tema demonstra que os islamitas têm
mantido um tipo de arminianismo em suas fileiras como temos feito,
e que os temas da predestinaçã o e do livre-arbítrio têm sido
debatidos pelos eruditos islâ micos com tanta paixã o e veemência
como dentro do pró prio cristianismo. Os turcos da seita de Omar
sustentam a doutrina da predestinaçã o absoluta, enquanto os persas
da seita de Ali negam a predestinaçã o e sustentam o livre-arbítrio
com tanto fervor como qualquer arminiano.
 

4. As duas doutrinas contrastadas


Ainda que os termos usados para descobrir as doutrinas reformada
e islâ mica da predestinaçã o sejam tã o semelhantes, nã o obstante os
resultados de ambas as doutrinas estã o longe um do outro como o
oriente do ocidente. À medida que esquadrinhamos o tema mais
profundamente, mais superficial se torna a semelhança entre ambas
as doutrinas. O ponto de maior aparência jaz no fato de que tudo o
que sucede se dá conforme a vontade de Deus. No entanto, o termo
‘a vontade de Deus’ significa coisas muito distintas em ambas as
doutrinas. O Islã reduz Deus a uma categoria da vontade e o faz
déspota, um déspota oriental, infinitamente acima da humanidade.
O Deus islâ mico nã o nutre o menor interesse pelo cará ter, e sim pela
submissã o. A atividade primordial dos homens consiste, portanto,
em obedecer aos seus decretos, de modo que, como disse Zanchi, a
predestinaçã o é “uma espécie de força cega, veloz e avassaladora
que, para o bem ou para o mal, com ou sem zelos, arrasta
violentamente todas as coisas adiante, com pouca ou nenhuma
consideraçã o pela natureza peculiar e respectiva das causas
secundá rias”. E no que respeita à liberdade humana, o Dr. Zwemer
afirma que na doutrina do Islã “a onipotência de Deus é tã o absoluta
que exclui toda atividade da parte da criatura. A ú nica liberdade que
o Islã reconhece é a classificada sob o termo Kasb ; isto é, o
reconhecimento de um ato como pró prio, mas que, depois de tudo,
outra coisa nã o é senã o um ato que o indivíduo estava obrigado a
realizar como parte da vontade divina”.
O Alcorã o e as tradiçõ es ortodoxas nã o têm quase nada a dizer sobre
o pecado e a responsabilidade moral; e a moralidade do sistema
islâ mico é notoriamente defectiva. No Islã é difícil evitar a conclusã o
de que Deus é o autor do pecado. O conceito islâ mico da origem do
pecado e o seu cará ter é totalmente distinto do conceito cristã o.
O Islã nã o tem uma doutrina da paternidade de Deus e nenhuma
doutrina da redençã o que suavize a doutrina dos decretos. Deus é
simplesmente representado como tendo criado de forma arbitrá ria
um grupo de pessoas para o paraíso e outro para o inferno; os
eventos na vida de cada pessoa estã o ordenados de tal modo que
apenas dã o lugar à responsabilidade e culpabilidade moral. Os
islamitas negam que tenha havido uma eleiçã o em Cristo para graça
e gló ria, e que Cristo fosse morto como sacrifício pelos escolhidos.
Tampouco tem algo a dizer com respeito à eficá cia da graça salvífica
ou a perseverança; e, até mesmo com respeito à predestinaçã o dos
eventos temporais, as suas ideias costumam ser rudes e confusas. O
atributo do amor está ausente em Alá . A ideia de que Deus nos ama
ou que devamos amá -lo é uma ideia estranha ao islamismo, e o
Alcorã o a duras penas faz alusã o a este tema que aparece em todas
as partes da nossa Bíblia.
Em conclusã o, podemos dizer que o credo arminiano tem bem
pouco atrativo para os islamitas. No que respeita ao trabalho
missioná rio, as igrejas calvinistas entraram no mundo do islamismo
antes e muito mais energicamente do que qualquer outro grupo de
igrejas e por mais de cem anos têm sido praticamente as ú nicas
igrejas que desafiaram o islamismo em sua terra de origem. Elas têm
ocupado os centros estratégicos e hoje realizam a maior parte da
obra missioná ria no mundo mulçumano. Com a soberania de Deus
como fundamento, a gló ria de Deus como meta, e a vontade de Deus
como motivaçã o, as igrejas presbiterianas e as reformadas estã o
particularmente capacitadas a conquistar os coraçõ es islâ micos para
a lealdade a Cristo, e estã o fazendo frente, com grandes esperanças
de êxito, à mais difícil de todas as empresas missioná rias, a
evangelizaçã o do mundo mulçumano.   

SEÇÃO V. A PREDESTINAÇÃO E A VIDA CRISTÃ

CAPÍTULO XXVII. A IMPORTÂNCIA PRÁTICA DA DOUTRINA


 
1. A influência que a doutrina da predestinaçã o exerce na vida diá ria do
cristã o. 2. Uma fonte de segurança e valor. 3. A ênfase calvinista posta na obra
divina da salvaçã o do homem. 4. Somente o calvinismo vence todas as provas.
5. As doutrinas calvinistas nã o sã o absurdas quando entendidas corretamente.
6. A Assembleia de Westminster e a Confissão de fé de Westminster . 7. Estas
doutrinas devem ser ensinadas e praticadas publicamente. 8. Os votos de
ordenaçã o e a obrigaçã o do ministro. 9. A Igreja Presbiteriana mantém uma
posiçã o aberta e tolerante. 10. Razõ es pelas quais o calvinismo se encontra
parcialmente eclipsado em nossos dias.
 
1. A influência que a doutrina da predestinação exerce na vida
diária do cristão
É totalmente falso que esta seja uma mera teoria, fria, á rida e
especulativa ou um sistema insensível de doutrinas estranhas, como
muitos opinam. Este sistema é, ao contrá rio, um relato vital e
importante das relaçõ es de Deus com o homem, e encerra em si
grandes verdades prá ticas que servem, mediante a influência do
Espírito Santo, para moldar os afetos do coraçã o e dar diretriz
correta à conduta. Com respeito a isso, Calvino escreveu: “Quisera
eu, em primeiro lugar, exortar os meus leitores a que tenham
presente esta admoestaçã o, de que este grande tema nã o é, como
muitos imaginam, uma disputa intrincada e contenciosa, nem uma
especulaçã o sem proveito que só serve para cansar a mente dos
homens; mas, antes, um tema proveitoso que redunda em benefício
dos crentes. Já que nos edifica solidamente na fé, nos ensina a ser
humildes, e nos leva a admirar a bondade infinita de Deus para
conosco. E nã o há meio mais eficaz para edificar a nossa fé do que
abrirmos os nossos ouvidos para a eleiçã o divina, a qual o Espírito
de Deus sela em nossos coraçõ es enquanto ouvimos, mostrando-nos
que a eleiçã o procede da eterna e imutá vel boa vontade de Deus
para conosco; e que, portanto, nã o pode ser anulada nem alterada
por nenhuma tempestade do mundo, por nenhum ataque de
Sataná s, por nenhuma mudança nem nenhuma inconstâ ncia ou
debilidade da carne. E quã o imenso é o conforto que
experimentamos quando entendemos que a causa dela se acha
exclusivamente no seio de Deus”. [168] Cremos que estas sã o palavras
verdadeiras e mui necessá rias em nossos dias.
O cristã o que entesoura esta doutrina em seu coraçã o sabe que o
rumo da sua vida é aquele que o conduzirá ao céu; que o seu
caminho terreno foi preordenado para ele, pessoalmente; e que,
portanto, esse é um bom caminho. Ainda que nã o compreenda todos
os detalhes, pode olhar confiantemente para o futuro até mesmo no
meio das adversidades, porquanto sabe que o seu destino eterno
está garantido, e que o seu futuro é saturado de bênçã os; e que nada
nem ninguém pode despojá -lo desse inestimá vel tesouro. Além
disso, ele sabe que, uma vez terminada a sua peregrinaçã o, poderá
olhar para trá s e ver que cada sucesso da sua vida foi determinado
por Deus com um propó sito particular, e se sentirá grato por ter
sido conduzido através de todas as suas experiências particulares.
Uma vez convencido dessas verdades, o cristã o sabe que virá o dia
em que poderá dizer a todos os que o afligiram ou perseguiram,
como disse José aos seus irmã os: “Vocês maquinaram o mal contra
mim, Deus, porém, o converteu em bem”. Este glorioso conceito de
Deus como o Alto e Sublime, que continua interessado nos mínimos
acontecimentos, nã o deixa lugar à quilo que os homens denominam
unicamente de casualidade, sorte ou azar. Quando uma pessoa se
reconhece como escolhida do Senhor, e sabe que cada um dos seus
atos tem um significado eterno, compreende com a má xima clareza
quã o séria é a vida e, portanto, sente nova e poderosa determinaçã o
de fazer grandes coisas que redundem na gló ria de Deus.
 

2. Uma fonte de certeza e coragem


No dizer de Rice: “A doutrina da providência particular é a que
propicia aos cristã os certeza no meio do perigo, certeza esta de que
o caminho do dever é o caminho do bem e da prosperidade. Além do
mais, essa doutrina move os cristã os a viverem vidas virtuosas,
mesmo quando isso os exponha a grandes opró brios e perseguiçõ es.
Quã o frequentemente, quando nuvens e escuridã o parecem apossar-
se dos cristã os, eles podem regozijar-se na certeza de que recebe de
todo o coraçã o as palavras do Salvador: ‘Nunca vos deixarei, nem
vos abandonarei’”. [169] A segurança que esta doutrina comunica ao
cristã o em suas provaçõ es surge da certeza de que os seus assuntos
nã o dependem do seu pró prio poder ou, melhor, da sua debilidade, e
sim das poderosas e seguras mã os do Pai Onipotente — que sobre
ele está a bandeira do amor e debaixo dele estã o os braços eternos.
Além disso, o cristã o sabe que mesmo o diabo e os homens ímpios,
nã o importa quantos males tentem infligir, sã o nã o só refreados por
Deus, mas também compelidos a fazer a vontade de Deus. Eliseu,
solitá rio e esquecido, considerou que eram mais os que estavam
com ele do que os que estavam contra ele, porque viu nas nuvens os
carros e os cavalos do Senhor. Os discípulos, sabendo que os seus
nomes estavam escritos no céu, resolveram enfrentar as
perseguiçõ es; e em certa ocasiã o, ao serem açoitados e escarnecidos,
“se retiraram do Sinédrio regozijando-se por terem sido
considerados dignos de sofrer afrontas por esse Nome” (At 5.41).
“A meditaçã o piedosa sobre a predestinaçã o e a nossa eleiçã o em
Cristo”, reza o artigo dezessete do credo da Igreja Anglicana, “é fonte
de doce, grato e inexprimível consolo para os cristã os”. E nas
palavras de Paulo, “nã o viveis ansiosos por nada”. Somente quando
sabemos que Deus realmente reina, de seu trono, sobre o universo, e
que ele ordenou que sejamos nó s os seus filhos amados, é que
podemos ter essa paz interior em nossos coraçõ es.
O Dr. Clarence E. Macartney, em um sermã o sobre a predestinaçã o,
disse: “As supostas desditas e adversidades da vida assumem um
matiz distinto quando as contemplamos através do cristal da
predestinaçã o. É triste ouvir pessoas que tentam vezes e mais vezes
viver a sua vida, dizendo a si pró prias: ‘Se apenas tivesse escolhido
outra profissã o’; ‘Se apenas tivesse tomado outro caminho na
encruzilhada da vida’; ‘Se apenas tivesse casado com outra pessoa’.
Expressõ es como essas demonstram profunda debilidade e nã o sã o
cristã s. É verdade que em certo sentido temos entretecido a rede do
destino da nossa vida com as nossas pró prias mã os, mas também é
indubitá vel que Deus fez a sua parte nisso. É a parte de Deus, e nã o a
nossa, que nos injeta fé e esperança”. Blaise Pascal, numa
maravilhosa carta escrita a um amigo angustiado pela morte de um
ente querido, em vez de repetir as costumeiras palavras de conforto,
animou-o com a doutrina da predestinaçã o, dizendo: “Se
considerarmos atentamente este acontecimento, nã o como o efeito
da casualidade, nem como uma fatal necessidade da natureza, mas
como o resultado inevitá vel, justo, santo, de um decreto da
providência divina, concebido desde a eternidade, para ser
executado no ano, dia, hora, lugar e da maneira como aconteceu,
entã o adoraremos em humilde silêncio a sublimidade impenetrá vel
dos decretos do Senhor; adoraremos a santidade dos seus decretos;
bendiremos as obras da sua providência e, unindo a nossa vontade à
do pró prio Deus, deixaremos com ele, nele e para ele o que ele
decidiu fazer em nó s e para nó s desde a eternidade”.
O calvinista genuíno vê a mã o e o propó sito de Deus em tudo, e sabe
que mesmo os seus sofrimentos, pesares, perseguiçõ es, derrotas,
etc., nã o sã o os resultados da casualidade nem acidentes, senã o que
foram planejados e preordenados, e que sã o maneiras que Deus
utiliza para discipliná -lo para o seu pró prio bem. O calvinista sabe
que Deus nã o aflige os seus filhos desnecessariamente; sabe que, no
plano divino, todas as suas afliçõ es foram estritamente ordenadas
quanto ao nú mero, peso e medida; e que nã o continuarã o nem um
só instante além do que Deus considera necessá rio. No momento de
pesar, o seu coraçã o, confiante nessas verdades, instintivamente
adere a esta fé, sentindo que a afliçã o foi enviada por razõ es sá bias e
benignas, ainda que desconhecidas. Nã o importa quã o dolorosas e
desconcertantes sejam as afliçõ es, um momento de reflexã o o faz
voltar a si novamente, e os pesares e tribulaçõ es perdem, em grande
medida, o seu fio lancinante.
De acordo com estas verdades, as Escrituras declaram: “todas as
coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles
que sã o chamados segundo o seu propó sito” (Rm 8.28). “Filho meu,
nã o menosprezes a correçã o que vem do Senhor, nem desmaies
quando por ele és reprovado; porque o Senhor corrige a quem ama e
açoita a todo filho a quem recebe” (Hb 12.5, 6). “É o SENHOR ; faça o
que bem lhe aprouver” (1Sm 3.18). “Porque para mim tenho por
certo que os sofrimentos do tempo presente nã o podem ser
comparados com a gló ria a ser revelada em nó s” (Rm 8.18). “Bem-
aventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem, e vos
perseguirem, e, mentindo, disserem todo mal contra vó s. Regozijai-
vos e exultai, porque é grande o vosso galardã o nos céus; pois assim
perseguiram aos profetas que viveram antes de vó s” (Mt 5.11, 12).
“Se perseveramos, também com ele reinaremos” (2Tm 2.12). “O
SENHOR o deu e o SENHOR o tomou; bendito seja o nome do SENHOR ”
(Jó 1.21). E se alguém nos difama, ao menos nã o nos sintamos tã o
ofendidos; senã o que, como Davi, possamos dizer: “Deixai-o; que
amaldiçoe, pois o SENHOR lhe ordenou” (2Sm 16.11).
Nossa predestinaçã o é a nossa ú nica garantia segura de salvaçã o.
Outras coisas podem propiciar-nos conforto, mas somente a
predestinaçã o pode propiciar-nos segurança! A predestinaçã o dá ao
evangelho o seu verdadeiro significado, isto é, “boas novas”.
Qualquer outro sistema que sustente que o sacrifício de Cristo na
realidade nã o salvou a ninguém, senã o que meramente fez possível
a salvaçã o de todos, sempre e quando os homens satisfaçam alguns
requisitos, esse reduz o evangelho a nada mais que um bom
conselho, e qualquer sistema que só leva consigo uma mera
“possibilidade” de salvaçã o, também leva, por necessidade ló gica,
uma “possibilidade” de perdiçã o. Quã o distinto é para o homem no
seu estado de apostasia se o evangelho é boas novas ou meramente
bons conselhos! O mundo está saturado de bons conselhos; inclusive
os livros dos filó sofos pagã os contêm muitos bons conselhos; mas
somente o evangelho tem as boas novas de que Deus nos redimiu .
Este sistema, apesar de ló gico e severo que aparenta ser, nã o
infunde tristeza nem passividade; ao contrá rio, infunde coragem e
atividade. O calvinista, reconhecendo-se imortal até que o seu
trabalho se concretize, experimenta, como resultado, grande
coragem. Smith descreveu muito bem o calvinista nas seguintes
palavras: “Uma vez resgatado do terrível abismo e colocado sobre a
Rocha eterna, o seu coraçã o transborda de amorosa gratidã o; a sua
alma vive consciente de um amor divino que jamais o abandonará e
de um poder divino que nele e através dele está cumprindo os
propó sitos de eterno bem e vive cingido de uma força invencível. Em
um sentido muito mais nobre do que Napoleã o jamais sonhou, ele
reconhece ser um homem de destino’”. E acrescenta: “O calvinismo é
ao mesmo tempo o credo mais satisfató rio e o mais estimulante”.
[170]

Além de propiciar incentivos à coragem, a doutrina da


predestinaçã o serve de incentivo à humildade e à gratidã o. Na atual
etapa da sua vida, o cristã o se considera como um tiçã o tirado do
fogo. Reconhecendo que foi salvo nã o por mérito ou sabedoria
pró pria, mas unicamente pela graça e misericó rdia de Deus, ele se
sente profundamente consciente da sua dependência de Deus, e isso
lhe serve de grande incentivo para viver uma vida íntegra. Enfim,
nã o há maneira mais segura de encher a mente com reverência,
humildade, paciência e gratidã o do que impregná -la com esta
doutrina da predestinaçã o.
 

3. A ênfase calvinista posta na agência divina na salvação do


homem
Aquele que ignora estas verdades mais profundas trazidas à luz pela
doutrina da predestinaçã o poderá chegar a ser apenas um cristã o
muito imperfeito. Nã o poderá apreciar adequadamente a gló ria de
Deus, nem as riquezas da graça comunicadas pela redençã o em
Cristo; porque em nenhuma outra parte a gló ria de Deus brilha com
tanto fulgor, livre da contaminaçã o proveniente das obras humanas,
do que na predestinaçã o dos eleitos para a vida. Esta doutrina nos
ensina que tudo o que somos e tudo o que há de valor em nossa
posse devemo-lo à graça divina. Além disso, a predestinaçã o
repreende o orgulho humano e exalta a misericó rdia divina; ela
mostra que o homem nada é e que Deus é tudo, e assim preserva a
verdadeira relaçã o entre a criatura e o infinitamente exaltado
Criador; exalta um soberano absoluto, o qual é o governante
universal, e humilha diante dele todos os demais soberanos, desse
modo enfatizando o fato de que todos os homens em si mesmos e à
parte do favor especial de Deus se encontram no mesmo nível; além
disso, ela tem defendido os direitos da humanidade onde quer que
ela penetre, seja na esfera do Estado ou da igreja.
A doutrina da predestinaçã o enfatiza o lado divino da salvaçã o,
enquanto o seu sistema rival enfatiza o lado humano. A doutrina da
predestinaçã o grava em nó s o fato de que a nossa salvaçã o é
puramente pela graça, e que nã o somos melhores do que os que
foram abandonados a sofrer pelos seus pecados. Portanto, ela nos
move a ser mais caridosos e tolerantes para com os nã o salvos e a
sentir eterna gratidã o a Deus por haver nos dado a salvaçã o eterna.
Ela nos ensina que em nosso estado de alienaçã o de Deus a nossa
sabedoria nã o passa de loucura; a nossa fortaleza pessoal nã o passa
de debilidade; e a nossa justiça, meros trapos de imundícia. Ela nos
ensina, além do mais, que a nossa confiança é posta em Deus, e que
somente dele vem o nosso socorro. Ela nos ensina a liçã o que tantos
ignoram para o seu pró prio prejuízo, a saber, a bendita liçã o de
desesperar-nos de nós mesmos . Lutero diz que frequentemente se
sentia ofendido por esta doutrina, porque ela o impelia a
desesperar-se de si mesmo; mas que, mais tarde, se deu conta de
que este tipo de desesperança lhe era mui proveitoso e era algo
semelhante à graça divina. Com certeza, esta doutrina fornece a
resposta mais perguntas; envolve menos dificuldades; provê uma
base mais só lida à fé e à esperança; e exalta e glorifica a Deus mais
que qualquer outra doutrina que porventura se lhe oponha. Nã o
constitui uma exasperaçã o dizer que esta doutrina é fundamental
aos conceitos religiosos dos escritores bíblicos, e erradicá -la do
Antigo Testamento equivaleria alterar toda a revelaçã o bíblica. O Dr.
J. Gresham Machen disse a respeito: “O calvinista se vê constrangido
a considerar a teologia arminiana como uma séria depreciaçã o da
doutrina bíblica da graça divina; e igualmente séria é a ideia que o
arminiano tem de sustentar no tocante à s doutrinas das igrejas
reformadas”. [171]
É evidente, pois, que há somente duas teorias que os que se
autodenominam de evangélicos podem sustentar no tocante a este
importante tema. Todos os que têm feito algum estudo sobre o tema
e chegaram a algumas conclusõ es a respeito sã o ou calvinistas ou
arminianos. Nã o existe outra posiçã o que o “cristã o” possa assumir.
Os que negam a natureza sacrificial da morte de Cristo adotam um
sistema de auto-salvaçã o, um naturalismo, e por isso nã o podem ser
considerados “cristã os” no sentido histó rico e pró prio do termo.
À moda de comparaçã o, podemos dizer que a Igreja Luterana
ressalta o fato de que a salvaçã o é unicamente pela fé; a Igreja
Batista destaca a importâ ncia dos sacramentos, particularmente o
batismo, e o direito dos indivíduos e das congregaçõ es de exercerem
o seu critério pessoal nos assuntos religiosos; a Igreja Metodista
enfatiza o amor de Deus para com os homens e a responsabilidade
do homem para com Deus; a igreja congregacional destaca o direito
do critério pessoa e das congregaçõ es locais de dirigirem os seus
pró prios assuntos; a igreja cató lico-romana enfatiza a unidade da
igreja e a importâ ncia do seu vínculo com a igreja apostó lica. Todas
essas ênfases, ainda que em si mesmas vá lidas, perdem a sua
importâ ncia diante da grande doutrina da soberania e majestade de
Deus que se destaca nas igrejas presbiterianas e reformadas. Os
princípios enfatizados pelas outras igrejas sã o princípios mais ou
menos antropoló gicos; o nosso, por sua vez, é um princípio teoló gico
e nos apresenta o Deus Supremo, Alto e Sublime, que ocupa o trono
do domínio universal.
O Dr. Warfield nos forneceu uma excelente aná lise dos princípios
formativos das igrejas luteranas e das igrejas reformadas. Apó s
afirmar que a distinçã o nã o é que os luteranos neguem a soberania
de Deus, nem que os reformados neguem a salvaçã o pela fé somente,
adiciona: “O luteranismo, proveniente das angú stias de uma alma
destroçada pelo senso de culpa, busca a paz com Deus e acha essa
paz na fé e aí se detém. Seu interesse primordial é posto na paz da
alma justificada. O calvinismo formula com a mesma veemência a
grande indagaçã o: ‘Que farei para ser salvo?’. E a responde da
mesma maneira. Mas nã o se detém aí. Formula uma pergunta ainda
mais profunda: ‘Donde provém a fé pela qual sou justificado?’. O
calvinista sente grande zelo pela salvaçã o, porém mais ainda pela
honra de Deus, e é esta a pergunta que vivifica as suas emoçõ es e
vitaliza os seus esforços. O calvinista começa, se centra e termina
com a visã o de Deus em sua gló ria; e busca, acima de todas as coisas,
render a Deus a gló ria que lhe pertence em cada esfera da vida”. [172]
E adiciona: “O fundamento do pensamento calvinista é, numa
palavra, a visã o de Deus em sua majestade”; e assim que o homem
tenha captado esta visã o, ele fica, “por um lado, cheio do senso de
sua indignidade como criatura, e muito mais como pecador ante a
presença de Deus; e, por outro lado, cheio de indescritível assombro
de que, nã o obstante, este mesmo Deus é aquele que recebe
pecadores”. Toda dependência de si mesmo desaparece, e depende
unicamente da graça de Deus. Na natureza, na histó ria, na graça, em
todo lugar, de eternidade em eternidade, o calvinista vê a atividade
de Deus que a tudo enche.
Se Deus tem um plano definido para a redençã o do homem, é de
suma importâ ncia que conheçamos esse plano. A pessoa que
contempla uma má quina complexa, porém desconhece o propó sito
para o qual ela foi planejada, e ignora a relaçã o entre as suas partes
distintas, nã o a poderá entender nem usar de maneira ú til. De igual
modo, se desconhecemos o plano da salvaçã o, ou a grande finalidade
desse plano, ou a relaçã o entre as partes distintas, ou se as
entendemos erroneamente, as nossas ideias serã o confusas e
errô neas e nã o poderemos aplicá -lo devidamente a nó s mesmos ou
apresentá -lo a outras pessoas. Dado que a doutrina da
predestinaçã o nos revela tanto respeito para com o caminho da
salvaçã o, e dado que provê tã o grande conforto e segurança ao
cristã o, ela é uma gloriosa e bendita verdade.
Nã o vacilamos em afirmar que este sistema de fé e doutrina,
revelado por inspiraçã o do Espírito Santo, é o sistema filosó fico
verdadeiro e final. A teologia estuda Deus mesmo; as ciências físicas
e as artes liberais estudam apenas suas vestiduras. Portanto, a
teologia é a “rainha das ciências”. A filosofia, como tem sido
usualmente estudada pelas diferentes escolas de pensamento, é o
fundamento e a mestra das ciências meramente humanas, porém em
si é apenas uma ciência auxiliar no estudo da teologia.
A teologia calvinista é o tema mais glorioso que já ocupou a mente
do homem. O seu pró prio ponto de partida é uma profunda
contemplaçã o da exaltaçã o e perfeiçã o de Deus. As suas sublimes
doutrinas da graça soberana, do poder e da gló ria de Deus, a elevam
a regiõ es muito mais elevadas do que qualquer outro sistema.
Aquele que esquadrinha esse tema é levado a exclamar com o
salmista: “Tal conhecimento é maravilhoso demais para mim; é
sobremodo elevado, nã o o posso atingir” (Sl 139.6). Ou, com o
apó stolo Paulo: “Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria
como do conhecimento de Deus! Quã o insondá veis sã o os seus
juízos, e quã o inescrutá veis, os seus caminhos” (Rm 11.33). Esse é
um tema que tem desafiado os intelectos de todos os grandes
pensadores, e nã o nos surpreende que estas sejam coisas que os
pró prios anjos anelam por perscrutar. Passar de outros sistemas
para este é como passar da boca de um rio para um grande oceano;
as superficialidades ficam para trá s e nos sentimos em um profundo
e vasto mar.
 

4. Somente o calvinismo suplanta todas as provas


A harmonia que existe entre todos os ramos da doutrina da
Escritura é tal que a verdade e o erro quanto a qualquer uma delas
quase inevitavelmente produzem verdade e erro, em maior ou
menor grau, em todas as demais — o que equivale dizer que
somente os calvinistas sustentam ideias bíblicas em todos os
aspectos no que tange à s principais doutrinas do cristianismo. Nã o
significa, contudo, que as partes essenciais das doutrinas mais
importantes, tais como a divindade de Cristo, a sua morte sacrificial,
a sua ressurreiçã o, a obra do Espírito Santo, entre outras, nã o sejam
também sustentadas por outros, e sim que a tendência geral de
conceitos equivocados com respeito à s doutrinas distintivamente
calvinistas é o afastamento paulatino das demais doutrinas bíblicas.
Os anti-calvinistas, em geral, empobrecem tã o seriamente doutrinas
tais como a da expiaçã o, da obra do Espírito Santo, da culpa e
incapacidade do homem, da regeneraçã o, entre outras, que estas à s
vezes se convertem em nada mais que conceitos vazios; e unido a
esse empobrecimento muitas vezes se manifesta a tendência de
passá -las por alto completamente. Os anti-calvinistas, em geral, nã o
distinguem adequadamente entre a obra objetiva de Cristo por nós e
a sua obra subjetiva em nós ; e, portanto, a expiaçã o fica reduzida
praticamente a uma mera exibiçã o e prova de amor indiscriminado
de Deus para com os homens, mediante o qual se manifesta a sua
disposiçã o de perdoá -los. A tendência, em sistemas nã o calvinistas, é
a de adotar a teoria da “persuasã o moral” da expiaçã o; o calvinismo,
por sua vez, sustenta que o sofrimento de Cristo satisfez plenamente
a justiça de Deus — que os sofrimentos de Cristo foram um
equivalente pleno dos sofrimentos que os escolhidos mereciam
pelos seus pecados.
Vivemos numa época em que, praticamente, todas as igrejas
protestantes histó ricas estã o ameaçadas de dentro pelo ceticismo.
Muitas delas já sucumbiram; e a linha de descida foi inevitavelmente
do calvinismo para o arminianismo, e do arminianismo para o
modernismo e unitarismo; e esta ú ltima posiçã o tem demonstrado
ser autodestrutiva. Cremos firmemente que o futuro do cristianismo
está estreitamente ligado ao futuro do calvinismo. A histó ria do
modernismo e do unitarismo, na América do Norte, tem
demonstrado que tais sistemas sã o frá geis demais para suster-se.
Onde os princípios do calvinismo sã o abandonados, existe uma
poderosa tendência para o naturalismo. Alguns têm expressado — e
cremos que corretamente — que nã o há um meio termo consistente
entre o calvinismo e o ateísmo.
Estas distinçõ es que apresentamos aqui entre o calvinismo e o
arminianismo sã o amplas e importantes; e até que alguém faça um
estudo especial destas verdades, nã o se dará conta de quanta
heresia tem sido incorporada no sistema arminiano. Se um sistema é
verdadeiro, o outro é radicalmente falso. Como calvinistas convictos,
cremos que as nossas doutrinas sã o a verdade final, e que sã o
eternamente verdadeiras. Cremos que este é o único sistema de
verdade cristã ensinado na Bíblia e o ú nico que pode ser defendido
ló gica e respeitosamente diante do mundo. E certamente é muito
mais fá cil defender um tipo de cristianismo em harmonia com as
Escrituras e com a razã o do que defender qualquer outro tipo.
Cremos que o calvinismo e um teísmo consistente nã o têm
meramente pontos em comum, mas que sã o idênticos; e desviar-se
do calvinismo é o mesmo que desviar-se de uma concepçã o
verdadeiramente teísta do universo. O Dr. Warfield tem afirmado
que o calvinismo é “o verdadeiro teísmo”, que é “o evangelicalismo
em sua pura e ú nica expressã o está vel”; que é “religiã o em sua mais
elevada concepçã o”. Cremos que o futuro do cristianismo — como já
se deu no passado — dependerá do futuro do calvinismo, e que, à
medida que o cristianismo avance no mundo, o sistema de doutrina
calvinista ocupará gradualmente o primeiro lugar.
O arminianismo, em razã o da sua posiçã o inconsistente como
sistema, já que se encontra numa posiçã o intermédia entre uma
religiã o calcada na graça e uma religiã o calcada nas obras, nã o tem
podido oferecer, senã o bem pouca, resistência à s tendências
naturalistas dos ú ltimos anos. Praticamente, todas as igrejas que
professam o arminianismo têm sido absorvidas pelo liberalismo
atual.
“Se havemos nã o só de defender o cristianismo de ataques
modernistas”, diz o Dr. S. G. Craig, “mas também de apresentá -lo
como opçã o vá lida, devemos empreender essa tarefa armados de
uma visã o total da vida e do mundo, consistente e científica, baseada
em fatos e princípios cristã os. Pessoalmente, sustento que essa
plena visã o cristã da vida e do mundo só a teremos no calvinismo; e,
portanto, o renascimento do calvinismo é a necessidade imperativa
do momento, se é que temos realmente de defender com êxito
diante do foro do pensamento mundial até mesmo aquilo a que
chamamos simplesmente de cristianismo”. O já falecido Henrique B.
Smith tinha razã o, ao menos em princípio, ao escrever: “Uma coisa é
certa — que a ciência ateia transtornará todas as coisas, menos a
verdadeira ortodoxia cristã . Todas as frá geis teorias e as moluscas
formaçõ es e os imediatos purgató rios de especulaçã o se irã o por
á gua abaixo. A luta será entre uma firme e cabal ortodoxia e um
firme e cabal paganismo. Será Agostinho ou Comte, Ataná sio ou
Hegel, Lutero ou Schopenhauer, J. S. Mill ou Joã o Calvino”. A luta é
entre o naturalismo da ciência e o sobrenaturalismo do
cristianismo; todo os esquemas de transigência estã o destinados ao
fracasso. (Convém assinalar, contudo, que nã o somos contra a
verdadeira ciência. Reconhecemos o grande valor da biologia, da
química, da física, da astronomia, etc., e estamos de acordo em que
muito de nosso progresso deste século só tem sido possível
mediante as contribuiçõ es que estas ciências têm feito. Aceitamos a
verdade, nã o importa de que fonte ela vem, e cremos que no fim a
verdade justificará o cristianismo. O salmista declarou: “Os céus
proclamam a gló ria de Deus, e o firmamento anuncia as obras de
suas mã os” (Sl 19.1). E, em outra parte, ele diz: “Ó SENHOR , Senhor
nosso, quã o magnífico em toda a terra é o teu nome!” (Sl 8.1).
Certamente, quanto mais informaçõ es tivermos dessas ciências,
melhor entenderemos a Deus. A nossa contenda é, antes, contra
certos cientistas incrédulos que tentam aplicar as suas teorias
anticristã s, e com frequência ateias, à s esferas da religiã o e da
filosofia, e professam falar com autoridade sobre temas que
desconhecem.)
É interessante notar como, na histó ria da igreja, outros sistemas de
teologia têm surgido e desaparecido, enquanto este sistema ainda
subsiste. O arminianismo, ao menos em sua forma atual, é de origem
comparativamente recente. Desde a época da Reforma até fins do
século dezoito ele foi rejeitado pelos sínodos e credos protestantes.
Mesmo a igreja cató lica nã o lhe tem dado boas vindas. No quarto
século, Agostinho conseguiu que a sua doutrina da predestinaçã o
fosse reconhecida como verdadeira doutrina da cristandade, e a
igreja cató lica nunca adotou, consistente e oficialmente, as doutrinas
arminianas. De igual modo, isso tem se dado com o nestorianismo, o
arianismo, o pelagianismo, o semipelagianismo, o socinianismo,
entre outros. Todos esses sistemas têm sido sustentados por alguns,
porém têm desaparecido; enquanto que o nosso sistema, conhecido
em épocas distintas como agostinianismo ou calvinismo, tem
perdurado fundamentalmente sem mudança em seus princípios
bá sicos. Acaso esta nã o é uma prova convincente de que este é o
sistema verdadeiro? No que respeita ao calvinismo que a Confissão
de Westminster apresenta, o Dr. C. W. Hodge afirmou: “As
modificaçõ es mais recentes do calvinismo já é coisa do passado, e a
forma pura e consistente do sobrenaturalismo e evangelicalismo se
mantém como uma barreira inexpugná vel contra as torrentes
naturalistas que ameaçavam afogar todas as igrejas da cristandade”.
A mente ló gica e consistente só encontra descanso no calvinismo.
Que esse é um sistema ló gico é admitido até mesmo pelos seus
opositores. Uma pessoa que conhece o que é o calvinismo o amará
ou sentirá por ele aversã o; mas, mesmo que sinta por ele aversã o,
nã o poderá falar dele senã o respeitosamente. À s vezes se ouve a
crítica de que o calvinismo põ e ênfase exagerada na ló gica e bem
pouca na emoçã o. É verdade que o calvinismo nã o arde em chamas
como a palha; mas, como o carvã o, uma vez aceso, produz um
intenso e contínuo calor. No dizer do Professor H. H. Meeter: “O
calvinismo se distingue entre os sistemas religiosos por ser
altamente intelectual. O calvinismo é conhecido pela sua dialética.
Os calvinistas sã o reconhecidos entre os teó logos como os ló gicos
por excelência. Oliverio Wendell Holmes, em sua paró dia ‘A obra
mestra do diá cono’, satirizou este aspecto do calvinismo. O antigo
coche de cavalos, tã o excelentemente construído, que cada
torcedura e cada parafuso, cada eixo e cada vareta, tinha a mesma
força que os demais, e que se desaprumava sempre diante da igreja,
representava para ele a histó ria do calvinismo. Este, como obra
mestra da ló gica, continuou durante séculos, mas foi tido como
desalinhado quando surgiu o transcendentalismo como filosofia
predominante na Nova Inglaterra”. [173]
Nã o obstante, a objeçã o de que o calvinismo enfatiza demais a ló gica
nã o possui base adequada, como poderá ver todo aquele que o
analisar sem preconceitos. Nã o obstante, se temos de errar em um
dos dois lados, provavelmente será preferível errar no lado do
intelecto, e nã o no das emoçõ es. Mas, a quem já se lhe ocorreu
descartar um sistema por ser demasiadamente ló gico? Ao contrá rio,
nó s, calvinistas, nos gloriamos na consistência ló gica do nosso
sistema.
 

5. As doutrinas calvinistas não são absurdas quando entendidas


corretamente
Talvez nã o haja outro sistema de pensamento que seja tergiversado
tã o séria e deploravelmente, e à s vezes até mesmo de forma
deliberada, como o calvinismo. Muitos dos que têm criticado o
sistema calvinista têm agido assim sem havê-lo estudado
adequadamente, e pode-se dizer que os nossos opositores, em geral,
conhecem apenas o que têm captado pelo ouvir dizer e, portanto, as
suas ideias sobre o tema carecem de conexã o e consistência. A
doutrina da predestinaçã o, em especial, converte a sabedoria do
mundo em alvo de riso; a sabedoria do mundo, por sua vez, tenta
apresentar a predestinaçã o como um conceito ridículo. Se há uma
doutrina que para os judeus é pedra de tropeço e para os gentios é
loucura, com certeza é esta. Apresentada sem adorno, a doutrina da
predestinaçã o parece paradoxal, e os que só a conhecem de maneira
superficial provavelmente lhes surpreenda o fato de que dita
doutrina tenha sido sustentada por tantas mentes piedosas e
brilhantes. Nã o obstante, o cará ter paradoxal da doutrina
desaparece em grande medida, se nã o é que desaparece
completamente, quando examinamos detidamente o seu
fundamento e construçã o.
Por essa razã o pedimos que o sistema calvinista seja examinado sem
sentimentalismo e que o mesmo seja estudado em suas relaçõ es e
consistência ló gica. Já vimos previamente que este sistema está
solidamente cimentado na autoridade das Escrituras; e quando
adicionamos a isso a evidência proveniente das leis da natureza e
dos fatos da vida humana, entã o podemos ver quã o possível,
prová vel e justo é este sistema. Visto sob esta luz, o sistema cessa de
ser a doutrina arbitrariamente iló gica e imoral que os opositores se
deleitam em caricaturar, e se converte em um sistema que projeta
imensa gló ria sobre a majestade divina. Certamente as doutrinas
calvinistas nã o sã o as que o homem natural espera encontrar. A
salvaçã o calcada nas obras humanas e o sistema que, com mais
naturalidade, apela para a razã o entenebrecem o homem. Caso se
permita ao homem elaborar um sistema de sua pró pria preferência,
nã o há sequer uma probabilidade em mil de que se desenvolva um
sistema no qual um redentor, agindo em sua capacidade
representativa, conquista estas bênçã os e as confere aos seus
redimidos. Zanchi afirma: “A mente carnal sente horror ao encarar
esta verdade; em contrapartida, a mente do homem espiritual a
abraça com afeto”. [174] É evidente que o calvinismo apela para a
revelaçã o divina no lugar da razã o humana, para os fatos no lugar
dos sentimentos; para o conhecimento no lugar da suposiçã o; para a
consciência no lugar da emoçã o.
Como dissemos previamente, muitas pessoas consideram este
sistema uma imbecilidade. No entanto, quando as doutrinas deste
sistema sã o estudadas cuidadosamente, descobrimos que nã o sã o
tã o incertas e difíceis como alguns pretendem que sã o; a incerteza e
dificuldade que elas causam em grande medida se devem ao
orgulho, à teimosia, ao pecado e à ignorâ ncia da verdadeira condiçã o
de nosso coraçã o. No entanto, os que chegam a abraçar este sistema
se sentem como se estivessem vivendo em um mundo distinto, tã o
distinta é a sua visã o da vida. No dizer de Calvino: “Para onde quer
que os filhos de Deus volvam a sua vista podem observar cegueira,
ignorâ ncia, insensibilidade, a ponto de encher-se de horror; por
outro lado, aqueles que, em meio a essa escuridã o, têm recebido
iluminaçã o divina, têm ciência e sentem isso em si pró prios”. [175]
Parafraseando as palavras de Pope, poderíamos dizer deste sistema:
“Um pouco da doutrina da predestinaçã o é algo perigoso. Entã o, ou
se beba profundamente desse manancial sagrado, ou nem mesmo se
toque nele”. Aqui, como em alguns outros casos, os primeiros sorvos
confundem e perturbam a mente; no entanto, sorvos mais
profundos vencem os efeitos inebriantes e restauram os nossos
sentidos.
Esta sublime filosofia da soberania de Deus e da liberdade do
homem aparece em toda a Bíblia. Nã o obstante, nã o se faz nenhuma
tentativa de explicar como essas duas verdades se relacionam. A
suposiçã o invariá vel é que Deus é o governante soberano que
governa até mesmo os pensamentos, sentimentos e impulsos
íntimos dos homens; em contrapartida, o homem nunca é
apresentado senã o como um ser inteligente, livre e moral,
responsá vel pelos seus atos. As doutrinas da preordenaçã o,
soberania e controle providencial seguem de mã os dadas com as da
liberdade e responsabilidade das criaturas racionais. Nã o afirmamos
que a doutrina da predestinaçã o é isenta de toda e qualquer
dificuldade, senã o que afirmamos que negá -la resulta em mais e
maiores dificuldades do que sustentá -la. Que um Ser de infinita
sabedoria, poder e bondade, tenha criado um universo e logo o
tenha deixado à deriva como um grande barco sem piloto constitui
uma suposiçã o que subverte as nossas ideias bá sicas de Deus,
contradiz o reiterado testemunho das Escrituras e contraria a nossa
experiência diá ria e ao nosso senso comum. Charles Hodge, em sua
introduçã o à discussã o do tema sobre Os Decretos de Deus , afirma:
“Deve-se lembrar que a teologia nã o é filosofia. A teologia nã o
pretende descobrir verdades, nem conciliar o que ensina como a
verdade com todas as demais verdades. A sua esfera é simplesmente
a de declarar o que Deus revelou em sua Palavra e defender essas
declaraçõ es, até onde seja possível, de interpretaçõ es errô neas e de
objeçõ es. É necessá rio ter em mente este limitado e humilde ofício
da teologia quando falamos das obras e propó sitos de Deus. ‘Assim
também, as coisas de Deus, ninguém conhece senã o o Espírito de
Deus’ (1Co 2.11). Portanto, ao discutir os decretos de Deus, tudo o
que propomos fazer é simplesmente declarar o que aprouve ao
Espírito de Deus revelar sobre o tema”. [176]
 

6. A Assembleia de Westminster e a Confissão de fé de


Westminster
O sistema de teologia, comumente conhecido como o calvinismo ou
a fé reformada, encontrou a sua mais perfeita expressã o na
Confissão de Westminster . Aquela Assembleia foi chamada pelo
parlamento inglês de Sessã o [ou Conferência]. O seu trabalho se
prolongou cerca de cinco anos e meio e concluiu em 1648. Aquela
Assembleia foi um corpo representativo de cento e vinte e um
ministros ou teó logos, onze lordes, vinte membros da Câ mara dos
Comuns, de todos os condados da Inglaterra e das universidades de
Oxford e Cambridge, e sete comissionados da Escó cia. E se a
julgarmos pelo grau e a habilidade dos seus trabalhos ou pela sua
influência sobre as geraçõ es subsequentes, veremos que ela mantém
a primazia entre os concílios protestantes. A mais importante
produçã o da Assembleia foi a confissã o de fé, um compêndio
inigualá vel de verdade bíblica e a mais nobre realizaçã o do melhor
período do protestantismo britâ nico. Essa confissã o foi chamada
com razã o a obra mestra teoló gica dos ú ltimos quatro séculos. O Dr.
Warfield disse que a Confissão de Westminster é “a mais completa,
elaborada e cuidadosamente redigida de todas as confissõ es; a mais
perfeita e a mais vital expressã o já escrita por mã os humanas, de
tudo o que compõ e aquilo que denominamos de religião evangélica ,
e de tudo o que se deve salvaguardar, se é que a religiã o evangélica
tem de perdurar no mundo”.
O Dr. F. W. Loetscher, em um discurso perante a Assembleia Geral da
Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos, em 1929, reportando-se à
Confissão de Westminster , empregou frases como as seguintes: “essa
incompará vel obra de cunho religioso e teoló gico; esse nobilíssimo
produto do grande avivamento religioso a que chamamos a
Reforma; esse inigualá vel formulá rio que a cristandade de fala
inglesa, ao menos, tem chegado a considerar como a expressã o mais
abrangente, precisa e adequada do evangelho puro da graça de
Deus”. E, no mesmo discurso, ele disse: “Estou ciente de que tal
caracterizaçã o desses venerá veis documentos parecerá a muitos,
ainda que a muitos dentre os quais tenho a honra de dirigir-me
nesta ocasiã o, como um exagero injustificado e talvez até como um
verdadeiro anacronismo, já que a moda do dia é a de minimizar a
importâ ncia dos credos. E a nossa Confissão , como muitas outras,
tem que sofrer a dolorosa experiência de ser desacreditada mesmo
no lar dos que professam ser os seus adeptos”.
Nestes Padrõ es de Westmisnter temos a mais sublime concepçã o de
verdade teoló gica que já penetrou na mente do homem. Como
sistema, eles exibem muito mais profundidade de visã o teoló gica do
que qualquer outro e sã o justamente merecedores do elogio dos
séculos. É um sistema que produz homens de só lidas convicçõ es
doutrinais. A pessoa que o abraça possui uma base doutrinal de
grande solidez e nã o será “levado por nenhum vento de doutrina,
por estratagema humano, que para enganar emprega com astú cia as
artimanhas do erro”.
No entanto, muito embora a Confissão de Westminster seja tã o ló gica,
clara e abrangente em suas afirmaçõ es, infelizmente é negligenciada
hoje pelos membros e até mesmo pelos ministros das igrejas
presbiterianas e reformadas. No dizer do Dr. Frank H. Stevenson, o
primeiro presidente da junta diretora do Seminá rio Teoló gico de
Westminster: “A Confissão de fé , embora seja parte da constituiçã o
da Igreja Presbiteriana, encontra-se abandonada e quase esquecida,
ainda que sem emendas e sem alteraçõ es durante esses vinte e cinco
anos de confusã o doutrinal. A Confissão de Westminster é o credo da
igreja e cada uma das suas linhas é um baluarte valoroso. Nã o só por
ser o que é, mas porque dá a Cristo toda a honra que merece, essa
Confissão é um digno estandarte sob o qual podemos continuar o
que Paulo profeticamente chamou ‘o bom combate da fé’”. [177]
Concordamos totalmente com essas palavras.
 

7. Estas doutrinas devem ser ensinadas e proclamadas


publicamente
A doutrina da predestinaçã o soberana, em pé de igualdade com as
demais doutrinas distintivas do sistema calvinista, deve ser
ensinada e proclamada publicamente, a fim de que os verdadeiros
cristã os se reconheçam como os objetos especiais do amor e da
misericó rdia de Deus e sejam confirmados e fortalecidos na certeza
da sua salvaçã o. Que desdita é que uma verdade que rende tanta
gló ria ao seu Autor, e que é o pró prio fundamento da felicidade do
cristã o, seja suprimida ou confinada meramente à queles que se
encontram se especializando em teologia! Esta doutrina é uma das
mais consoladoras de todas as Escrituras; e, além do mais,
dificilmente exista uma doutrina cristã que possa ser proclamada
em sua pureza e plenitude sem se reportar à predestinaçã o. Todas
as doutrinas deste sistema estã o de tal modo relacionadas e
entrelaçadas umas à s outras, que qualquer uma delas sempre
guarda alguma relaçã o com as demais; e é precisamente a doutrina
da predestinaçã o a que une e organiza todas as demais.
Desvinculadas da doutrina da predestinaçã o, as demais doutrinas
nã o podem ser entendidas de forma adequada, nem apreciadas em
sua importâ ncia relativa. Zanchi afirmou com respeito à posiçã o que
ocupa a doutrina da predestinaçã o no sistema cristã o: “Todas as
artes têm uma espécie de vínculo e conexã o mú tuos, e mediante
uma espécie de relaçã o recíproca sã o unificadas e entrelaçadas
umas à s outras. O mesmo se pode dizer desta importante doutrina; a
predestinaçã o é o vínculo que une e sustenta todo o sistema cristã o
e sem a qual tal sistema se desmoronaria. A doutrina da
predestinaçã o é o cimento que mantém o edifício intato; é a pró pria
alma que anima o corpo inteiro. Esta doutrina está tã o entrelaçada
com todo o esquema de doutrina evangélica que, se for excluída, o
sistema morre exangue”. [178]
Temos a ordem de ir e pregar o evangelho; mas, à medida que
qualquer uma das partes do evangelho é excluída, ou ignorada,
estamos sendo infiéis a esse mandato. Nenhum ministro cristã o tem
o direito de tomar tesouras e cortar da Bíblia aquelas passagens que
nã o lhe agradam. No entanto, praticamente, nã o é justamente isso
que alguns fazem deixando de lado, deliberadamente, doutrinas
importantes das Escrituras? Paulo disse aos convertidos através do
seu ministério que “jamais deixando de vos anunciar coisa alguma
proveitosa e de vo-la ensinar publicamente e também de casa em
casa... Portanto, eu vos protesto, no dia de hoje, que estou limpo do
sangue de todos; porque jamais deixei de vos anunciar todo o
desígnio de Deus” (At 20.20, 26, 27). Se o ministro cristã o quiser
dizer essas mesmas palavras hoje, entã o que se cuide de nã o omitir
tã o importante verdade. Paulo, em repetidas ocasiõ es, fez referência
a estas doutrinas. Sua carta aos Romanos (caps. 8 a 11) e aos Efésios
(caps. 1 e 2) sã o as mais proeminentes sobre esta questã o. Ao
escrever aos cristã os romanos, Paulo estava, na verdade, levando ao
mundo inteiro estas doutrinas e, portanto, selando sobre elas o
imprimatur universal ; e se ele as considerou de tanta importâ ncia
que as ensinou aos cristã os da recém fundada igreja de Roma, a qual
ele nem mesmo visitara, estejamos certos de que elas sã o também
importantes para os cristã os de hoje. Cristo e os apó stolos
anunciaram estas verdades, nã o só a umas poucas pessoas, mas à s
multidõ es. Dificilmente há um capítulo no Evangelho de Joã o que
nã o mencione ou nã o faça alusã o à eleiçã o ou à reprovaçã o. Quando
uma pessoa indaga sinceramente: “A Bíblia ensina a
predestinaçã o?”, nã o temos outra resposta senã o afirmar que sim —
a predestinaçã o é ensinada constantemente tanto no Antigo como
no Novo Testamento. Além disso, a Confissão de Westminster faz isso
explicitamente. Portanto, devemos ensiná -la e explicá -la o quanto
nos for possível. Paulo nos exorta a que nos vistamos “de toda a
armadura de Deus”; todavia, a pessoa que desconhece esta grande
doutrina da predestinaçã o carece de grande parte dessa armadura.
Agostinho censurou os que em seus dias faziam pouco caso da
doutrina da predestinaçã o, e quando ocasionalmente era acusado de
ensiná -la demasiada e abertamente, ele refutou a acusaçã o
afirmando que podemos seguir as Escrituras para onde estas nos
queiram levar. Lutero e especialmente Calvino enfatizaram estas
verdades; e Calvino as desenvolveu tã o clara e convincentemente,
que desde entã o o sistema passou a ser chamado “calvinismo”. Estas
doutrinas nã o só foram ensinadas nos países em que a Reforma teve
seu maior impacto, mas também, mais tarde, na Holanda, na Escó cia,
na Inglaterra, durante a época da Assembleia de Westminster, e na
América do Norte, nos primó rdios da sua histó ria, onde produziram
profundas convicçõ es religiosas em todas as classes de pessoas.
Calvino se convenceu de que a doutrina da eleiçã o devia ser o
pró prio centro da confissã o da igreja, e mantinha que, se assim nã o
fosse, a igreja veria algum dia esta maravilhosa doutrina sepultada e
esquecida. E ele tinha razã o; os que nã o lhe dã o a importâ ncia que
bem merece, e a devida ênfase, seja na Inglaterra, Escó cia, Holanda,
Estados Unidos da América, ou no Canadá , já a perderam quase
completamente.
Aquele a quem se recomendou uma mensagem do Rei deve
transmiti-la tal como a recebeu; e, certamente, a maior das
mensagens, a predestinaçã o para a vida, nã o deve ser passada por
alto. No dizer de Zanchi: “Um embaixador deve transmitir a
mensagem inteira para a qual foi incumbido. Nã o deve omitir
nenhuma parte dela, mas deve declarar, em sua totalidade e sem
reservas, a mensagem do soberano a quem representa. Deve
assegurar-se de dizer nem mais nem menos o que as instruçõ es do
seu governo requerem, do contrá rio se verá exposto à reprovaçã o
ou até mesmo a perder a cabeça. Que o ministro de Cristo considere
isso com toda seriedade”. [179] Estas sã o doutrinas que foram dadas
expressamente por revelaçã o divina. Elas redundam na gló ria de
Deus, comunicam conforto e valor aos eleitos e deixam os pecadores
sem justificativa. Certamente, o homem nã o gosta de ser informado
que é pecador e que nã o pode socorrer a si mesmo. Esta doutrina lhe
soa profundamente humilhante. Mas se ele realmente está perdido
sem Cristo, entã o, quanto mais cedo tomar conhecimento dessa
doutrina, tanto melhor para ele. A recusa de ensinar esta doutrina
equivale a ser infiel ao nosso Senhor e negligente para com o nosso
dever em relaçã o ao nosso pró ximo. Agir com pouco caso para com
ela equivale a agir como o médico que se recusa a fazer uma cirurgia
a fim de salvar a vida de uma pessoa, porquanto sabe que a dita
cirurgia causará dor ao paciente. Se estas verdades fossem
anunciadas sem temor, o modernismo e o ceticismo nã o teriam tido
acesso em nossas igrejas. O nú mero de cristã os professos
possivelmente seria bem reduzido, todavia mais leais e efetivos em
seus esforços cristã os.
O ensino destas doutrinas, naturalmente, suscitará alguma
controvérsia. Mas a controvérsia nã o deve ser considerada como um
mal absoluto. Enquanto existir o erro deve haver controvérsia. Os
ataques dos pagã os e hereges, contra as doutrinas da igreja durante
os primeiros séculos do cristianismo e durante a Idade Média,
forçaram a igreja a reexaminar as suas doutrinas, desenvolvê-las,
explicá -las, purificá -las e corroborá -las. Esses ataques fizeram com
que a Bíblia fosse estudada mais minuciosamente. Brilhantes
estudiosos da Bíblia escreveram livros e artigos sobre a fé cristã , e
como resultado a igreja foi grandemente enriquecida pelos frutos
intelectuais e espirituais assim produzidos.
Nã o procede dizer que as pessoas já nã o têm interesse em ouvir a
pregaçã o doutrinal. Se o ministro crê em suas doutrinas e as
apresenta com convicçã o e como assuntos de vital importâ ncia,
certamente encontrará ouvintes interessados em ouvi-las. Hoje
vemos milhares de pessoas que rejeitam os sermõ es enunciados dos
pú lpitos sobre os sucessos do momento, temas sociais, assuntos
políticos e questõ es meramente éticas e visam a encher as suas
vidas com filosofias ocultas e pueris. A verdade é que, em muitos
aspectos, estamos mais pobres espiritualmente do que deveríamos
estar, porque em nossa confusã o e perplexidade teoló gica nã o temos
feito justiça a estes grandes princípios doutrinais. Se estas doutrinas
forem enunciadas corretamente, sã o sumamente interessantes e
ú teis. A experiência do autor como mestre da Bíblia tem sido que
nã o há temas que mais entusiasmam e cativam a atençã o dos
estudantes do que estes. Além disso, indagamos: que justificativa
tem a Igreja Presbiteriana para continuar como denominaçã o
particular se renunciar o calvinismo como nã o essencial? Boa parte
da nossa atual debilidade se deve ao fato de que os presbiterianos
têm recebido muito pouca instruçã o sobre estas doutrinas
distintivas do sistema presbiteriano, e esta falta de instruçã o tem
levado diretamente ao movimento ecumênico no qual se fazem
grandes empenhos por unir igrejas muito diferentes que conservam
um mínimo de doutrina.
A doutrina da predestinaçã o visa aos cristã os genuínos. Deve-se
tomar muita precauçã o quando ela é ensinada aos nã o convertidos.
É quase impossível convencer a algum descrente da sua veracidade,
e de fato o coraçã o do nã o regenerado em geral sente profunda
aversã o por uma doutrina como esta. Se ela for enfatizada antes que
se compreendam as verdades mais simples do sistema cristã o,
possivelmente será mal-entendida e em tal caso é possível que ela
conduza uma pessoa a maior desesperança. Ao ensiná -la ao nã o
convertido ou à queles que apenas dã o os primeiros passos na vida
cristã , devemos apresentar e enfatizar principalmente a parte do
homem na obra da salvaçã o — a fé, o arrependimento, a reforma
moral, etc. Estes sã o os passos elementares com respeito à
consciência do indivíduo. Nesta etapa inicial nã o é necessá rio dizer
muito acerca das verdades mais profundas que se reportam à parte
de Deus na salvaçã o. Como no estudo da matemá tica nã o iniciamos
com a á lgebra ou o cá lculo, e sim com os problemas singelos da
aritmética, assim também neste caso o melhor a fazer é apresentar
antes as verdades mais elementares. E entã o, depois que a pessoa
estiver salva e houver percorrido alguma distâ ncia na vereda cristã ,
entã o ela se dá conta de que na sua salvaçã o a obra de Deus foi
primordial e a sua secundá ria; que foi salva pela graça e nã o pelas
pró prias obras. Calvino afirmou que a doutrina da predestinaçã o
“nã o é assunto para meninos pensar muito nele”; e Strong afirmou:
“Esta doutrina constitui um dos ensinos mais profundos das
Escrituras, a qual, para ser entendida, requer uma mente madura e
uma experiência profunda. Pode ser que o iniciante na vida cristã
nã o veja o seu valor ou até mesmo a sua verdade; mas, com o passar
dos anos, essa doutrina se converterá num firme cajado que lhe
servirá de apoio”. [180] E embora seja correto dizer que esta doutrina
nã o pode ser apreciada adequadamente pelo nã o convertido, nem
por aqueles que estã o dando os primeiros passos na vida cristã , nã o
obstante deve ser propriedade comum de todos os que têm
caminhado certa distâ ncia por essa vereda.
É digno de nota que, ao escrever suas Institutas , Calvino nã o tratou
da doutrina da predestinaçã o nos primeiros capítulos. Antes, ele
desenvolveu as outras doutrinas do sistema cristã o e,
deliberadamente, passou por alto esta doutrina, mesmo em certas
partes onde teríamos pensado que naturalmente a discutiria.
Somente na ú ltima parte da sua discussã o teoló gica é que ele
desenvolve a fundo a doutrina da predestinaçã o, tornando-a como a
coroa e gló ria de todo o sistema.
Devemos acrescentar ainda que a pregaçã o desta doutrina deve ser
feita com cuidado e sem exagero em qualquer uma das suas partes, e
é preciso demonstrar também que ela se acha fundamentada nã o na
vontade arbitrá ria, e sim na sabedoria e no amor infinitos de Deus.
 
8. Os votos de ordenação e a obrigação do ministro
Todo ministro ou presbítero ordenado na Igreja Presbiteriana e na
Igreja Reformada jura solenemente perante Deus e os homens que
aceita e adota sinceramente a confissã o de fé da sua igreja como
aquela que contém o sistema de doutrina das Sagradas Escrituras.
[181]
Dado que essas confissõ es sã o inteiramente calvinistas, significa
que ninguém que nã o seja calvinista pode honesta e
conscientemente aceitar esta ordenaçã o. Um arminiano nã o tem
sequer um mínimo de direito de ser ministro de uma igreja
calvinista, e aquele que chega a ser ministro de uma igreja calvinista
carece de boa moralidade tanto quanto de boa teologia. Declarar
uma coisa e crer noutra é inconsistente com o cará ter de um homem
honesto. Todavia, apesar dos nossos votos de ordenaçã o serem
totalmente calvinistas, quã o poucos ministros proclamam estas
doutrinas! Ao ouvir os sermõ es do pú lpito das igrejas nominalmente
calvinistas, seria difícil determinar quais sã o as doutrinas essenciais
da fé reformada. Nossos pú lpitos, bem como as publicaçõ es de
nossas igrejas e nossas escolas e seminá rios, se acham saturados das
doutrinas arminianas do mérito e do livre-arbítrio . As Igrejas
Presbiterianas e as Reformadas da atualidade parecem nã o ter um
conceito adequado da importâ ncia fundamental da sua herança
doutrinal. Os escritos de Calvino e de Lutero, tanto quanto dos
grandes teó logos puritanos, bem como os dos grandes teó logos
desde entã o deveriam ser mais bem conhecidos pelos nossos jovens
teó logos. É possível que a forma escolá stica e o estilo um tanto
intrincado dessas obras tenham dissuadido a muitos de estudá -las a
fundo, mas devemos ter em mente que o estudo da teologia nã o visa
a desfrutar meramente do prazer que ele pode brindar-nos. As
profundas obras dos grandes mestres de teologia nã o sã o obras
novelescas nem aventurosas.
Muitos jovens se engajam no ministério sem estar realmente
familiarizados com a doutrina da igreja a que eles se propõ em
servir, e quando ouvem alguns que declaram as Padrõ es de
Westminster, eles os consideram “pregadores de doutrinas
estranhas”. A grande necessidade da igreja atual é de homens de
convicçõ es só lidas e mentes determinadas ancoradas na verdade, e
nã o de modernistas ou liberais latitudiná rios que oscilam de um
lado para o outro se gloriando de nã o ter opiniõ es dogmá ticas nem
preferências teoló gicas. Tudo parece indicar que a maioria dos
nossos ministros já nã o crê nas doutrinas calvinistas e muitos,
contrá rios aos seus solenes votos de ordenaçã o, estã o fazendo tudo
quanto possam, por meio de métodos artificiais e desonestos, para
destruir a fé que uma vez solenemente professaram defender com o
auxílio do Espírito Santo. Se estas doutrinas sã o verdadeiras, entã o
devem ser ensinadas e defendidas clara e positivamente em nossas
igrejas, seminá rios e universidades. Se nã o sã o verdadeiras, entã o
devem ser eliminadas da Confissão de fé . A honestidade é tã o
importante numa denominaçã o religiosa quanto num partido
político. O ministro presbiteriano é alguém que se comprometeu
com um sistema de doutrina. Portanto, os que negam as doutrinas
calvinistas, dos seus pú lpitos presbiterianos estã o sendo falsos para
com os seus votos de ordenaçã o e devem procurar outras
denominaçõ es que sustentem as suas opiniõ es. Nenhum oficial da
igreja tem o direito de aceitar as honras e remuneraçõ es que recebe
pela aceitaçã o externa de um credo que ele mesmo nã o crê nem
ensina.
No dizer de Shedd:
O credo da igreja é um solene contrato entre os membros da
igreja; bem maior que a plataforma de um partido político
entre os políticos. Há aqueles que nã o percebem a imoralidade
que envolve violar um contrato quando diz respeito a uma
denominaçã o religiosa; em contrapartida, quando é um
partido político a organizaçã o afetada pela dissoluçã o do
compromisso, esses mesmos sã o os primeiros a perceber e
denunciar com forte veemência a perfídia. Por exemplo, se o
grupo de pessoas dentro do partido republicano tentasse
mudar a plataforma desse partido enquanto ainda continuasse
exercendo os cargos e recebendo os salá rios que lhes foi
assegurado ao professar total fidelidade ao partido, e ao
prometer sujeitar-se aos princípios fundamentais sobre os
quais o partido está fundado e com base nos quais esse partido
se diferencia de outros partidos políticos, tã o logo a acusaçã o
de desonestidade política repercutiria por toda a organizaçã o
republicana. E depois de desvincular os violadores dos seus
cargos ou, talvez, depois da sua expulsã o da organizaçã o
política, se alguns protestassem contra as medidas
disciplinares, impugnando-as como injustas, sem sombra de
dú vida a imprensa republicana ignoraria completamente tã o
ridículo protesto. Quando a desonestidade política exige
tolerâ ncia quanto à adoçã o de políticas mais “liberais” do que
a que o partido favorece, e os salá rios partidá rios continuam
sendo recebidos enquanto se defende sentimentos distintos
aos da maioria dos partidá rios do partido, é dito que ninguém
é obrigado a unir-se ao partido republicano ou a permanecer
nele, mas que se alguém se une ao mesmo ou permanece nele,
está sob a obrigaçã o de se submeter estritamente ao credo do
partido e nã o tentar, secreta ou abertamente, alterá -lo. Que o
credo dos republicanos é para os republicanos, e nã o para
outros, é algo em que todos parecem estar de acordo; porém,
que o credo calvinista é para os calvinistas, e nã o para outros,
parece ser posto em dú vida por alguns.
Se no cerne do partido democrata surgisse uma facçã o que
demandasse o direito, enquanto permanece dentro do partido,
de adotar os princípios republicanos, ser-lhe-ia dito que o
lugar apropriado para tal projeto é fora do partido democrata,
e nã o dentro dele. Nã o lhe seria negado o direito de ensinar as
suas pró prias opiniõ es, e sim o direito de sustentar e propagar
as suas opiniõ es com os fundos e a influência do partido
democrata. Aos inconformados seria dito simplesmente: “Nã o
podemos impedir que tenham as suas ideias particulares e
jamais o impedimos, porém nã o têm direito algum de divulgá -
las dentro da nossa organizaçã o”. [182]
As igrejas calvinistas costumam ser acusadas de intolerâ ncia ou de
perseguiçã o quando, com base nos desvios do credo da igreja, sã o
levadas a bom termo algumas investigaçõ es judiciais. No entanto,
sustentamos que dita acusaçã o é injusta e que toda a igreja tem o
direito de exigir dos seus ministros e mestres que as suas pregaçõ es
e ensinos se conformem com as normas da denominaçã o.
Estas consideraçõ es fazem ver claramente por que muitos de nó s
sentimos tã o pouco entusiasmo pelos movimentos ecumênicos que
se propõ em a unir grupos que sustentam sistemas doutrinais
totalmente distintos. Cremos que o sistema calvinista é o ú nico
ensinado nas Escrituras e vindicado pela razã o e, por conseguinte, é
o mais está vel e o de maior influência no fomento da justiça. Nã o
obstante, respeitamos o direito de todos os que diferem de nó s com
base em seu critério pessoal, e nos regozijamos sinceramente no
bem que podem conseguir. Regozijamo-nos no fato de que outros
sistemas de teologia se aproximem do nosso; todavia, nã o podemos
consentir o empobrecimento da nossa mensagem proclamando
menos do que encontramos ensinado nas Escrituras. Se pudesse ser
consumada uma uniã o na qual o calvinismo fosse aceito como o
sistema realmente ensinado na Bíblia, aceitaríamos deleitosamente
tal uniã o; todavia, cremos que, ao aceitarmos algo menos que isso,
equivaleria abandonar a verdade vital. Além disso, nã o valeria a
pena propagar uma posiçã o suficientemente vaga que abraçasse o
calvinismo e outros sistemas de doutrina em pé de igualdade.
Cremos que a vantagem superficial de nú meros adicionais que
resultasse de uma uniã o importaria muito pouco em comparaçã o
com a desarmonia espiritual que inevitavelmente haveria de surgir.
Daí desejarmos permanecer sendo presbiterianos até que as
doutrinas da fé reformada, que outra coisa nã o sã o senã o as
doutrinas da Palavra de Deus, se convertam nas doutrinas da igreja
universal.
Estas doutrinas, ora tã o negligenciadas ou desconhecidas, e até
muitas vezes combatidas abertamente, foram universalmente
sustentadas e proclamadas dos pú lpitos pelos reformadores, e
depois da Reforma foram incorporadas nos credos, catecismos e
artigos de todas as igrejas protestantes. Quem quer que compare os
sermõ es pronunciados em nossos dias com os dos reformadores nã o
terá dificuldade em perceber quã o contraditó rios e irreconciliá veis
sã o aqueles com estes.
 

9. A Igreja Presbiteriana mantém uma posição aberta e


tolerante.
Ainda que a Igreja Presbiteriana seja preeminentemente uma igreja
doutrinal, ela nunca exige de alguém que solicita a sua adesã o a total
aceitaçã o das suas normas. Sua ú nica condiçã o à membresia é uma
aceitá vel profissã o de fé em Cristo. Exige-se que os seus ministros e
presbíteros sejam calvinistas; porém nã o exige isso da sua
membresia laica. Como calvinistas, reconhecemos deleitosamente
como irmã o e irmã na fé todo aquele que confia em Cristo para a
salvaçã o, nã o importa quã o inconsistentes sejam as suas crenças. No
entanto, cremos que o calvinismo é o ú nico sistema genuinamente
bíblico, e ainda que se possa ser cristã o sem que se creia em toda a
Bíblia, o cristianismo de cada pessoa será imperfeito em proporçã o
à s divergências do sistema de doutrina bíblica. O Professor F. E.
Hamilton disse a respeito: “É indubitá vel que uma pessoa cega,
surda e muda pode conhecer um pouco do mundo que a cerca
através dos sentidos que lhe restam, mas o seu conhecimento será
bem deficitá rio e provavelmente impreciso. De modo parecido, uma
pessoa que nunca conheceu ou nunca aceitou os mais profundos
ensinamentos da Bíblia incorporados no calvinismo ainda assim
pode ser crente, mas será um crente muito imperfeito, e o dever dos
que conhecem toda a verdade é de conduzir tal pessoa ao ú nico
depó sito que contém as riquezas plenas do verdadeiro
cristianismo”. Eis as palavras do Dr. Craig: “O calvinista nã o difere
de outros cristã os em classe, mas somente em grau, assim como
exemplares mais ou menos bons de alguma coisa diferem de
exemplares mais ou menos maus”. No nosso caminho para o céu
nem todos somos calvinistas, mas todos o seremos ao chegarmos lá .
Ao menos nã o se pode negar que, quando “chegarmos à plena
unidade da fé” (Ef 4.13), e conhecermos toda a verdade, ou todos
nó s seremos calvinistas, ou todos arminianos.
É preciso ter sempre em mente que o calvinismo inclua muito mais
do que as doutrinas particulares que o distinguem do arminianismo.
O calvinismo ensina firmemente as grandes doutrinas da Trindade,
da divindade de Cristo, dos milagres, da expiaçã o, da ressurreiçã o,
da inspiraçã o das Escrituras, entre outras, que sã o parte da fé
comum da cristandade evangélica.
Com respeito à natureza aberta e tolerante da Igreja Presbiteriana,
tomaremos a seguir o privilégio de citar extensamente o pequeno e
admirá vel livro do Dr. E. W. Smith, The Creed of Presbyterians — do
qual mais de sessenta e cinco mil có pias já foram distribuídas:
A catolicidade do presbiterianismo, a sua liberalidade de
pensamento e de sentimento, e o seu espírito alheio a todo e
qualquer sectarismo e intolerâ ncia é uma das suas sublimes
características. A catolicidade do presbiterianismo nã o é mero
sentimento. Nã o é um assunto de confissã o individual ou de
orató ria enunciada do pú lpito. A catolicidade do
presbiterianismo está calcada no seu credo, é ensinada pelos
nossos Padrõ es e é parte integral da nossa doutrina da igreja.
A nossa Confissão declara que “A Igreja Visível, que também é
cató lica ou universal, sob o Evangelho (nã o sendo restrita a
uma naçã o, como antes sob a Lei), consiste de todos aqueles
que, pelo mundo inteiro, professam a verdadeira religiã o,
juntamente com os seus filhos” (CFW XXV.II). Repudiamos
formal e publicamente o conceito de “a” igreja e apenas
afirmamos que somos uma igreja de Jesus Cristo. Os nossos
Padrõ es nã o só estã o isentos de denú ncias contra crenças de
igrejas evangélicas irmã s contrá rias à s nossas, mas sã o
também as ú nicas normas eclesiá sticas que reconhecem
explícita e oficialmente a outras igrejas evangélicas como
“verdadeiros ramos da igreja de Jesus Cristo” [ Book of Church
Order (cap. II, par. II).]. A nossa Confissão dedica todo um
capítulo à doutrina da “Comunhã o dos santos”. Esse capítulo
ensina que “a santa confraternidade e comunhã o” nos dons e
virtudes pessoais de cada um e em adoraçã o e mú tuo serviço
no amor, “deve estender-se a todos os que em toda a parte
invocam o nome do Senhor Jesus” (CFW XXVI.II).
A catolicidade das nossas normas acha bela expressã o na
atitude presbiteriana para com todas as igrejas evangélicas
irmã s. Ainda que algumas igrejas da cristandade evangélica
excluam as demais denominaçõ es irmã s, o sentimento e
prá tica da Igreja Presbiteriana nã o comungam com tal atitude.
Na Igreja Presbiteriana, tratamos os membros e ministros de
outras igrejas evangélicas como genuínos membros e
ministros em pé de igualdade conosco como parte da igreja de
Cristo.
Ainda quando algumas igrejas evangélicas recusem dar cartas
de transferência aos fiéis da sua congregaçã o que desejam
estabelecer-se em outras comunhõ es, nó s nã o temos tal
costume. Nã o recusamos dar cartas de transferência a
membros que desejam unir-se a congregaçõ es batistas,
episcopais ou outra denominaçã o cristã ; ao contrá rio, pedimos
a todos da mesma maneira e com a mesma afetuosa confiança
como se estivessem sendo transferidos para outra igreja de
nossa mesma denominaçã o.
Algumas denominaçõ es evangélicas negam a validade das
ordenaçõ es praticadas pelas igrejas irmã s; e quando um
ministro ou membro de uma denominaçã o irmã deseja unir-se
a ela, exige-se que o ministro seja novamente ordenado e o
membro, rebatizado. Tal prá tica é totalmente contrá ria ao
espírito e costume dos presbiterianos. Na Igreja Presbiteriana,
nunca repetimos estes ritos. Aceitamos a validade das
ordenanças de uma igreja irmã como as ministradas por nó s
mesmos.
Ainda que muitas igrejas evangélicas excluam ministros das
igrejas irmã s de pregar em seus pú lpitos, ou oficiar em
parceria algumas das suas cerimô nias, a Igreja Presbiteriana
nã o costuma proceder dessa maneira. Tal prá tica é alheia ao
coraçã o e procedimento presbiterianos. Sentimos a mesma
liberdade e cordialidade em estender um convite a ministros
episcopais, ou batistas, ou de outras denominaçõ es
evangélicas a ocupar os nossos pú lpitos, ou a auxiliar-nos na
ministraçã o da Santa Ceia, que fazemos em estender convite
aos nossos pró prios pastores.
Os presbiterianos nã o excluem das nossas congregaçõ es a
nenhum crente genuíno. Nã o rejeitamos nenhuma ordenaçã o
ministerial de outra igreja evangélica. Nã o repudiamos
nenhum sacramento bíblico ministrado por igrejas irmã s.
Retribuindo o mal com o bem, reconhecemos o nosso co-
ministro da Igreja Anglicana como verdadeiro ministro de
Cristo, e a todo irmã o que já foi batizado por imersã o como
validamente batizado. Respondemos de todo o coraçã o ao
“amém” dos metodistas; entoamos com os nossos irmã os todo
salmo que ponha a coroa na cabeça de Cristo; e com amor
sincero convidamos os nossos irmã os na fé, nã o importa o
nome da denominaçã o, a participar conosco dos elementos
que representam o corpo partido e o sangue derramado do
Salvador. Nã o nutrimos nenhum preconceito, nenhuma
exclusividade, nem capricho de nenhuma índole, que
porventura restrinja os nossos afetos cristã os e que cause uma
brecha entre nó s e outros servos de nosso Senhor. A nossa
catolicidade é tã o ampla como é ampla a cristandade
evangélica.
E afirma novamente: “A catolicidade da Igreja Presbiteriana pode
ser vista além da sua ú nica admissã o de membresia. Ela demanda
como ú nico requisito de admissã o uma confissã o respaldada pela
vida de fé no Senhor Jesus Cristo. Nã o se pede do solicitante que
subscreva as nossas normas ou que abrace a nossa teologia. Nã o lhe
é requerido que seja calvinista, mas somente que seja crente em
Cristo. Ele nã o é submetido a nenhuma prova que determine se é
ortodoxo ou nã o, apenas se espera dele uma confissã o de ‘fé em
Cristo e obediência a ele’. [183] Pode ser que o crente tenha ideias
imperfeitas sobre a trindade e a expiaçã o; pode ser que nã o esteja
totalmente de acordo com as nossas doutrinas sobre o batismo de
crianças, a eleiçã o e a perseverança final; no entanto, se confia e
obedece a Cristo como o seu Salvador e Senhor pessoal, as portas da
Igreja Presbiteriana lhe estã o abertas e todos os privilégios da sua
comunhã o estã o à sua disposiçã o”.
“Quando as igrejas prescrevem outras condiçõ es de membresia, nã o
se atêm à simples condiçã o de salvaçã o estabelecida nas Escrituras,
elas tornam mais difícil a entrada à igreja do que ao céu. A Igreja
Presbiteriana é marcantemente contrastada com a tirania e
exclusividade eclesiá stica. As suas normas declaram que uma
simples fé em Cristo nos faz membros da família de Deus; ‘aqueles
que fizeram profissã o de fé em Cristo podem participar de todos os
direitos e privilégios da igreja’. [184] Quã o ampla e maravilhosa é a
catolicidade das portas do céu para receber todos os filhos de Deus”.
Apó s declarar que a família das igrejas presbiterianas e as
reformadas constituem na mais numerosa família evangélica do
mundo, o Dr. Smith, com grande eloquência, apresenta o seguinte
magnífico resumo das aquisiçõ es missioná rias destas igrejas: “Ainda
mais cató lico e imponente que o nú mero de paroquianos que
compõ em a Igreja Presbiteriana é a extensã o mundial do império
presbiteriano. Enquanto os adeptos de outras comunhõ es
evangélicas se acham mais ou menos estabelecidos em países
particulares, os luteranos na Alemanha, os episcopais na Inglaterra,
os metodistas nos Estados Unidos da América do Norte, o exército
presbiteriano se encontra espalhado por todo o mundo. Atualmente,
a Igreja Presbiteriana se encontra espalhada em mais continentes e
entre o maior nú mero de naçõ es, povos e línguas do que qualquer
outra igreja evangélica no mundo. Na Europa continental ela tem
como testemunhas as igrejas histó ricas, presbiteriana e reformada,
na Á ustria, Boêmia, Galícia, Morá via, Hungria, Bélgica, França,
Alemanha, Itá lia, Grécia, Holanda, Rú ssia e Espanha. Está arraigada
também e é frutífera na Inglaterra, Escó cia, Estados Unidos da
América do Norte, Canadá , Á ustria, Nova Zelâ ndia, Índias orientais
— os povos que abraçam esta fé e ordem que abrangem o mundo
inteiro. O presbiterianismo possui um poder de adaptaçã o que nã o
se iguala a nenhum outro sistema. Além do mais, tem produzido um
nú mero marcantemente maior de eminentes pregadores,
evangelistas, editores, escritores, educadores, estadistas e líderes
cívicos; e da sua abundante vida espiritual emanam as poderosas
forças das missõ es cristã s para todo o mundo pagã o.
 

10. Razões por que atualmente o calvinismo se encontra


parcialmente eclipsado hoje
A que se deve a atual apostasia do calvinismo? Que hoje os célebres
cinco pontos da estrela calvinista já nã o brilham com o mesmo
fulgor é algo que bem poucos disputarã o. Quando consideramos a
tendência do pensamento moderno, entã o podemos precaver-nos
facilmente de que a influência do calvinismo se encontra num nível
bem baixo. Em muitas regiõ es onde ele uma vez floresceu, está
quase desaparecido. Praticamente nã o existem “calvinistas
comprometidos com a sua fé reformada” entre os líderes mais
reconhecidos do pensamento religioso na França, Suíça ou
Alemanha, onde no passado o calvinismo foi uma força contundente.
Na Inglaterra, o calvinismo praticamente desapareceu. Na América
do Norte, há poucas igrejas que abracem agressivamente a herança
calvinista. Nã o obstante, nos agrada dizer que na Escó cia a heroica
Igreja Livre ainda eleva sua voz no meio da dolorosa apostasia nas
grandes igrejas. E, na Holanda, há algumas igrejas realmente
calvinistas no mundo moderno — onde a religiã o cristã , baseada nas
Escrituras, é ensinada agressivamente conforme a fé reformada.
No entanto, a histó ria nos ensina claramente que períodos de
prosperidade espiritual vêm seguidos de períodos de depressã o
espiritual. Mas, sobretudo, cremos na invencibilidade da verdade. “A
verdade, ainda que tardia, voltará a ressurgir; a ela pertencem as
interminá veis eras de Deus.”
Nã o nos deve surpreender o fato de que o calvinismo é cercado de
muitos adversá rios. No entanto, resta o fato de que “o homem
natural nã o aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe sã o
loucura; e nã os pode entendê-las, porque elas se discernem
espiritualmente” (1Co 2.14), e por isso este tema será considerado
pelo homem natural como sendo estranho e louco. Entretanto, a
natureza humana alienada do Criador continua sendo o que é; e, no
entanto, permanece o decreto que estabelece que Cristo será para o
homem natural “pedra de tropeço e rocha de ofensa” (1Pe 2.8); e,
por isso, estas doutrinas serã o sempre uma ofensa a muitos.
Tampouco deve surpreender-nos o fato de que o imortal reformador
suíço, que ocupou lugar tã o proeminente no desenvolvimento e
defesa destas doutrinas, de um lado foi o mais sinceramente amado
e admirado, e, do outro, o mais acirradamente odiado e caluniado
dentre os eminentes líderes da igreja.
Dado que a fé e o arrependimento sã o dons de Deus, a incredulidade
do mundo nã o nos deve surpreender, já que até mesmo os homens
mais sá bios e astutos não podem crer a menos que antes de tudo
recebam tais dons. A primeira Epístola aos Coríntios declara: “Pois
está escrito: Destruirei a sabedoria dos sá bios e aniquilarei a
inteligência dos instruídos” (1Co 1.19); e: “Porque a sabedoria deste
mundo é loucura diante de Deus; porquanto está escrito: Ele apanha
os sá bios na pró pria astú cia deles”; e ainda: “O Senhor conhece os
pensamentos dos sá bios, que sã o pensamentos vã os. Portanto,
ninguém se glorie nos homens; porque tudo é vosso” (1Co 3.19-21).
A causa de uma pessoa crer está na vontade de Deus ; o mero som
externo das palavras do evangelho é em vã o recebido pelo ouvido,
até que apraza a Deus tanger o coraçã o.
Este sistema sempre foi fortemente repelido pelo mundo, tanto
atualmente quanto nas eras passadas. Mas nã o podia se dar de outro
modo, já que o homem está , por natureza, inimizado com aquele de
cuja mente estas doutrinas emanam. Nã o se deve esperar que Deus,
em sua sabedoria, e o homem, em sua estultícia, concordem sobre
algum assunto. Deus é Soberano infinitamente sá bio e santo; o
homem, em seu estado natural é um rebelde cegado pelo pecado que
nã o quer ser governado e menos ainda por um Governante absoluto.
Dado que a inimizade do coraçã o do homem para com as doutrinas
distintivas da cruz é hoje tã o grande e intensa como sempre foi, um
sistema como o pelagianismo ou naturalismo, que ensina que a
salvaçã o é obtida pelas nossas pró prias boas obras; ou um sistema
como o arminianismo, que ensina que a salvaçã o é obtida em parte
pelas obras e em parte pela graça, é o que naturalmente acha pronta
aceitaçã o da parte do coraçã o nã o regenerado. Quando o evangelho
chega a ser aceito pelo homem natural, entã o podemos estar certos
de que tal evangelho nã o é o mesmo que Paulo proclamava. E cabe-
nos afirmar aqui que em quase todos os lugares onde Paulo pregou o
evangelho, este causou ou motim ou avivamento, e em muitos casos
ambas as coisas ao mesmo tempo. “É possível que o calvinismo seja
impopular em alguns lugares”, escreve McFetridge, “mas, por que
nã o o haveria de ser? Certamente nã o poderá ser menos impopular
que as doutrinas do pecado e da graça reveladas no Novo
Testamento”.
Outra razã o por que o calvinismo se encontra hoje parcialmente
eclipsado se deve à sua extraordiná ria ênfase sobre o supernatural.
O calvinismo vê Deus em tudo o que acontece e em todas as coisas,
de eternidade em eternidade. A mã o de Deus está presente em todos
os eventos da histó ria e o propó sito divino se revela através de
todos os acontecimentos. Vivemos numa época oposta ao
supernatural; e, portanto, oposta ao calvinismo. Hoje, a ênfase é
posta nas ciências físicas, no racionalismo tanto no pensamento
quanto no sentimento. Mesmo dentro de alguns setores do
cristianismo, a tendência é considerar a Bíblia como uma mera
produçã o humana e considerar Cristo meramente como um homem
extraordiná rio. O modernismo atual, que em sua forma consequente
é puro naturalismo e auto-sotérico, é a antítese do calvinismo. O
resultado de tudo isso é uma religiã o naturalista que exclui Deus do
seu cená rio; portanto, nã o causa estranheza que o calvinismo, com a
sua forte ênfase no supernatural, seja em nossos dias impopular, e
que os adeptos de tais doutrinas compõ em uma minoria. Nã o
obstante, a veracidade ou falsidade das doutrinas das Escrituras nã o
dependem do voto de uma maioria.
Nas palavras seguintes, o Dr. B. B. Warfield, esse gigante de
pensamento e de açã o, nos apresenta uma magnífica aná lise da
atitude do mundo, em anos recentes, para com o calvinismo. Apó s
informar-nos que o calvinismo é “o verdadeiro teísmo”, “religiã o em
sua mais sublime concepçã o” e “evangelicalismo em sua pura e
ú nica expressã o está vel”, acrescenta:
Considere-se o orgulho do homem, a sua concepçã o de
liberdade pessoal, o seu alarde de poder, o seu repú dio à
imposiçã o da vontade de outro sobre a sua. Considere-se a
arraigada confiança do pecador em sua pró pria natureza como
sendo fundamentalmente boa e em sua plena capacidade de
cumprir o que justamente lhe possa ser exigido.
Na realidade, porventura causa-nos estranheza que neste
mundo — nesta presente época do mundo — seja algo difícil
de preservar nã o só ativamente, mas de maneira vital e
dominante, a percepçã o da onipresente mã o de Deus que a
tudo determina, o senso de absoluta dependência dele, a
convicçã o da nossa total incapacidade para salvarmos a nó s
mesmos do pecado — em sua mais elevada concepçã o? Para
explicar o eclipse que ora sofre o calvinismo no mundo atual,
nã o seria suficiente assinalar simplesmente a dificuldade
natural — nessa época, o naturalista, cô nscio dos seus novos
poderes contra as forças da natureza e saturado de orgulho
pelas recentes obtençõ es e pelo bem estar material — de
manter em sua perfeiçã o a percepçã o da mã o dominante de
Deus em todas as coisas; de manter o senso de dependência
em um poder supremo; bem como de preservar, com toda a
profundidade, o senso de pecado, indignidade e impotência?
Acaso nã o é a depressã o que o calvinismo experimenta, à
medida que seja real, consequência meramente disso, que a
visã o de Deus ficou obscurecida em nossa época devido aos
abundantes triunfos humanos, que o sentimento religioso
deixou de ser, até certo ponto, a força determinante na vida, e
que a atitude evangélica de completa dependência de Deus
para a salvaçã o nã o acha acesso nos homens acostumados a
fazer a sua pró pria vontade e que, portanto, vivem
convencidos de que o céu pode também ser alcançado pelas
suas pró prias forças? [185]
Apesar de tudo, o calvinista nã o deve sentir-se descoroçoado. A
religiã o fá cil de hoje, com sua ênfase nos problemas sociais e nã o na
doutrina, tem dado lugar a que multidõ es, que em outras épocas
teriam permanecido do lado de fora, se unam à igreja; e o mero fato
de que os calvinistas nã o sejam tã o salientes na congregaçã o nã o
significa necessariamente que o seu nú mero tenha decrescido. No
dizer do Dr. Warfield, “é bem prová vel que atualmente existam mais
calvinistas no mundo do que antes”. “Mesmo relativamente, as
igrejas que professam ser calvinistas nã o estã o ficando para trá s.
Além disso, existem importantes tendências no pensamento
moderno que de um modo ou de outro redundam em favor do
calvinismo. Sobretudo, podemos encontrar em todo lugar crentes
humildes que na tranquilidade de vidas segregadas têm percebido a
visã o de Deus em sua gló ria, e que abrigam em seu coraçã o a vital
chama de uma total dependência dele, o que outra coisa nã o é senã o
a pró pria essência do calvinismo”. [186] E acrescenta: “Creio que o
calvinismo, assim como tem sido a força vital da cristandade
evangélica no passado, continuará sendo a sua força no presente, e a
sua esperança no futuro”.
Em estreita conformidade com estas palavras, o Dr. F. W. Loetscher
afirmou: “Nã o é de estranhar que a nossa época, embriagada pelo
conhecimento, desdenhosa do passado, intolerante para com os
credos e dogmas, assim como da sua autoridade, seja humana ou
divina, e arrastada pelas correntes do naturalismo ateísta e a
evoluçã o panteísta, esteja direcionando a sua poderosa artilharia de
incredulidade contra o calvinismo, por ser este o mais poderoso
baluarte da revelaçã o e redençã o sobrenaturais. Faz alguns anos, o
Professor Henry B. Smith profetizou: ‘Uma coisa é certa — a ciência
ateia desarraigará tudo, menos a só lida ortodoxia cristã ’. Portanto,
aceitemos resolutamente este repto, e regozijemo-nos, já que é tã o
impossível que o calvinismo desapareça da face da terra, a ponto de
o pecador perder totalmente o seu senso de dependência de Deus, e
o Onipotente abdique ao trono do domínio universal”.
James Antony Froude, o eminente professor de histó ria da igreja da
universidade de Oxford, na Inglaterra, referindo-se à frouxa religiã o
tã o comum em seus dias, disse: “Esta nã o é a religiã o dos seus pais,
aquele calvinismo que destruiu a tirania espiritual, que derrotou a
reis, e que libertou a Inglaterra e a Escó cia, ao menos por algum
tempo, de mentiras e charlatanices. O calvinismo é o espírito que se
levanta contra a falsidade, o espírito que, como já se disse, surgiu e
ressurgiu, e ao seu devido tempo ressurgirá outra vez, a menos que
Deus seja um logro e o homem como a besta que perece”.
Disse também o Dr. Abraham Kuyper: “O calvinismo nã o só tem um
futuro; o calvinismo tem o futuro. Tudo mais desmorona e
desvanece. Teologicamente, há muita fadiga ao nosso redor, e muito
esforço desnecessá rio diante dos povos, porque o calvinismo é
muito grande para eles. Mas, por ser o que é, o calvinismo captura os
espíritos e nã o os soltará ”.
Talvez valha a pena assinalar aqui que o autor deste livro nã o foi
educado numa igreja calvinista, e se lembra de quã o revolucioná rias
lhe pareciam estas doutrinas quando pela primeira vez teve contato
com elas. Durante certo período, enquanto cursava os seus estudos
na universidade, ele leu o primeiro volume da Teologia sistemática
de Charles Hodge, a qual contém um capítulo sobre “Os Decretos de
Deus”, e expõ e estas verdades de um modo tã o convincente, que
jamais pô de esquecê-las. Além disso, ele pô de afirmar com certo
orgulho que só chegou a esta posiçã o apó s uma luta mental e
espiritual profundamente severa, e sente profunda simpatia para
com aqueles que podem ser chamados a ter experiência afim. Ele
conhece o sacrifício que lhe custou ter que separar-se da igreja da
sua juventude, uma igreja que ensinava um sistema que continha
muito erro. A maioria dos seus familiares mais pró ximos e amizades
pertencia a essa igreja, e ele espera que seja perdoado se demonstra
alguma tolerâ ncia para com aqueles “presbiterianos de nascimento”
que continuam na Igreja Presbiteriana enquanto se opõ em ou
ridicularizam abertamente estas doutrinas .                                    
 

 
 
 

SEÇÃO VI. A INFLUÊNCIA DO CALVINISMO

CAPÍTULO XXVIII. CALVINISMO NA HISTÓRIA


 
1. Antes da Reforma. 2. A Reforma. 3. O calvinismo na Inglaterra. 4. O
calvinismo na Escó cia. 5. O calvinismo na França. 6. O calvinismo na Holanda.
7. O calvinismo na América do Norte. 8. O calvinismo e o governo
representativo. 9. O calvinismo e a educaçã o. 10. Joã o Calvino. 11. Conclusã o.

1. Antes da Reforma
É possível que cause algum assombro descobrir que a doutrina da
predestinaçã o nã o foi um tema especial de estudo até quase fins do
século quarto. Alguns dos pais mais antigos da igreja puseram mais
ênfase nas boas obras, tais como a fé, o arrependimento, as esmolas,
as oraçõ es, o batismo, entre outros temas, como base da salvaçã o.
Muito embora ensinassem que a salvaçã o é por intermédio de
Cristo, também sustentavam que o homem tinha poder pleno para
aceitar ou rejeitar o evangelho. Em alguns dos seus escritos, há
passagens em que se reconhece a soberania de Deus; mas, lado a
lado com estas, aparecem outras que falam da liberdade absoluta da
vontade humana. Dado que nã o pudessem conciliar estes dois
pontos, entã o se inclinaram a negar a doutrina da predestinaçã o e
possivelmente também a da presciência absoluta de Deus.
Ensinaram um tipo de sinergismo em que há uma cooperaçã o entre
a graça e o livre-arbítrio. Ao homem nã o foi fá cil abandonar a ideia
de que ele mesmo pode operar a sua pró pria salvaçã o. Ao fim,
porém, como resultado de um processo longo e lento, ele conseguiu
alcançar a grande verdade de que a salvaçã o é um soberano dom
concedido à parte de méritos pessoais, a qual foi decretada desde a
eternidade, e que Deus é o seu autor em todas as etapas. Esta
verdade cardinal do cristianismo foi vista com clareza, pela primeira
vez, por Agostinho, o grande teó logo do Ocidente. Em suas doutrinas
do pecado e da graça, Agostinho foi muito além do que conseguiram
os teó logos que o precederam, e ensinou que a eleiçã o é
incondicional e provém da mera graça, e restringiu os propó sitos da
redençã o ao círculo definido dos eleitos. Todo aquele que conhece a
histó ria eclesiá stica nã o tem como negar que Agostinho foi um
homem eminente, e que os seus labores e escritos contribuíram
mais para a promoçã o da sã doutrina e o avivamento da religiã o
genuína do que os de qualquer outro homem que tenha vivido no
período transcorrido entre Paulo e Lutero.
Antes da época de Agostinho, a igreja havia se ocupado
principalmente de corrigir as heresias que surgiam dentro da
pró pria igreja e de refutar os ataques do mundo pagã o ao seu redor.
Portanto, bem pouca atençã o se deu ao desenvolvimento
sistemá tico das doutrinas. E o fato de a doutrina da predestinaçã o
ter recebido tã o pouca atençã o durante essa época se deveu, em
grande medida, à tendência de confundi-la com a doutrina pagã do
fatalismo, que era tã o comum em quase todo o império romano. Mas
o século quarto foi um tempo de relativa tranquilidade, uma nova
era no estudo da teologia, e os teó logos lograram dar mais ênfase ao
conteú do doutrinal da sua mensagem. Agostinho foi levado a
desenvolver as suas doutrinas do pecado e da graça em parte devido
à sua experiência pessoal de conversã o, de uma vida mundana para
o cristianismo; e em parte devido à necessidade de refutar os
ensinos de Pelá gio, o qual ensinava que o homem, em seu estado
natural, tinha completa capacidade para operar a sua pró pria
salvaçã o; que a queda de Adã o nã o teve grande efeito na
humanidade, exceto para servir de mau exemplo à humanidade; que
a vida de Cristo tem valor para os homens primordialmente como
exemplo; que em sua morte Cristo foi mais ou menos como o
primeiro má rtir cristã o, e que nã o estamos sob nenhuma
providência especial de Deus. Por sua vez, Agostinho ensinou que
toda a raça humana caiu em Adã o; que todos os homens, por
natureza, sã o depravados e estã o mortos espiritualmente; que a
vontade é livre para pecar, porém nã o é livre para fazer o bem aos
olhos de Deus; que Cristo sofreu como substituto pelos eleitos; que
Deus elegeu aos que quis, sem levar em conta qualquer mérito da
parte da criatura; e que a graça salvífica é aplicada aos eleitos, pelo
Espírito Santo, de maneira eficaz. Desta maneira, Agostinho se
constituiu no primeiro e genuíno intérprete do apó stolo Paulo e fez
com que a sua doutrina fosse aceita pela Igreja.
Apó s a época de Agostinho, houve um retrocesso e se deteve o
progresso que estas doutrinas chegaram a desfrutar. Negras nuvens
da ignorâ ncia cegaram o povo. A igreja se tornou mais e mais
ritualística ao ponto de chegar a crer que a salvaçã o vinha através da
igreja externa. O sistema de méritos cresceu até chegar ao seu ponto
culminante nas “indulgências”. O papado chegou a exercer um poder
imenso, tanto na esfera política quanto na eclesiá stica, e por toda a
Europa cató lica a falta de moral chegou a ser quase intolerá vel.
Mesmo o sacerdó cio se corrompeu de maneira alarmante, e na lista
de pecados e vícios humanos nã o aparece nenhum mais imoral ou
mais ofensivo do que os que mancharam as vidas de alguns dos
papas, tais como Joã o XXIII e Alexandre VI. 
Desde os dias de Agostinho até a época da Reforma, nã o se pensou
muito na doutrina da predestinaçã o. Mencionaremos apenas dois
nomes destacados desse período: Gottschalk, que foi encarcerado e
condenado por ensinar a predestinaçã o; e Wycliffe, “o luzeiro da
alvorada da Reforma”, que viveu na Inglaterra. Este foi um
reformador do tipo calvinista, que proclamava a soberania de Deus e
a predestinaçã o de todas as coisas. O seu sistema de fé era muito
parecido com o que mais tarde Lutero e Calvino ensinaram. Os
valdenses, igualmente, podem ser mencionados, já que em certo
sentido eram “calvinistas” antes da Reforma, sendo a predestinaçã o
uma das suas doutrinas.

2. A Reforma
Em essência, a Reforma foi um ressurgimento do agostinianismo, e
através dela o cristianismo evangélico logrou uma vez mais um
lugar de honra. É preciso ter em mente que Lutero, o primeiro líder
da Reforma, era um monge agostiniano e que foi de sua rigorosa
teologia agostiniana que formulou o seu grande princípio de
justificação pela fé somente . Lutero, Calvino, Zuínglio e todos os
demais reformadores que se destacaram nesse período eram firmes
crentes na predestinaçã o. Em sua obra, The Bondage of the Will [A
servidã o da vontade], Lutero apresentou a doutrina tã o
enfaticamente como qualquer outro dos teó logos reformados.
Melanchton, em seus primeiros escritos, considerou a predestinaçã o
como sendo o princípio fundamental do cristianismo , ainda que mais
tarde modificasse esta posiçã o e elaborou um tipo de “sinergismo”
em que Deus e o homem têm que cooperar no processo da salvaçã o.
A posiçã o que a Igreja Luterana adotou em seus primó rdios no que
tange à predestinaçã o foi se modificando de modo gradual até que
fosse descartada completamente, rejeitando a sua forma calvinista e
passou a sustentar em seu lugar uma doutrina de graça e expiaçã o
universais, a qual sustenta até hoje. O lugar que Lutero ocupa na
Igreja Luterana no que tange a esta doutrina parece-se com a que
Agostinho ocupa na Igreja Cató lica Romana — isto é, ele é
considerado como um herege de tã o irrecusá vel autoridade, que é
mais admirado do que censurado.
Em grande medida, Calvino edificou sobre o fundamento de Lutero.
A sua compreensã o dos princípios bá sicos da Reforma foi mais clara,
o que lhe permitiu desenvolvê-los de maneira mais completa e
aplicá -los mais amplamente. Poderíamos dizer que Lutero enfatizou
a salvaçã o pela fé e o seu princípio fundamental foi mais ou menos
subjetivo e antropoló gico, enquanto Calvino enfatizou o princípio da
soberania de Deus e desenvolveu um princípio mais objetivo e
teoló gico. O luteranismo era, antes, uma religiã o de um homem que,
depois de uma longa e dolorosa busca, encontrou a salvaçã o e ficou
satisfeito em desfrutar a luz da presença de Deus; enquanto o
calvinismo, nã o satisfeito com isso, prosseguiu indagando como e
por que Deus salvou o homem.
Na opiniã o de Froude, “as congregaçõ es luteranas se viram
libertadas da superstiçã o, mas somente pela metade, e nã o tiveram
â nimo para continuar a luta até o seu ponto culminante. E medidas
pela metade significavam indiferença e convicçõ es pela metade e
uma miscelâ nea de verdade e erro. Medidas pela metade nã o
podiam extinguir as fogueiras que Felipe da Espanha acendeu nem
levantar homens na França ou na Escó cia para fazer-lhes frente aos
príncipes da casa de Lorena. Era uma premente necessidade para os
reformadores se colocarem numa posiçã o mais definida e acharem
um líder de convicçõ es inflexíveis. Joã o Calvino veio a ser esse líder.
Em tempos difíceis, fazem falta homens de cará ter firme, cujos
intelectos possam penetrar as pró prias raízes de onde a verdade
pode ser distinguida das mentiras. Fica mal aos defensores da
religiã o quando ‘o aná tema’ se encontra em seu pró prio
acampamento. E isto se pode dizer de Calvino, que até onde permitia
o estado do conhecimento, nenhum olho pô de detectar de um modo
mais agudo as partes defeituosas do credo da igreja, nem houve um
reformador na Europa tã o resoluto em pô r à prova, extirpar e
destruir o que com clareza se manifestava como falso, e fazer a
verdade a regra da vida prá tica até a sua ú ltima fibra”. [187]
Este é o testemunho do famoso historiador da Universidade de
Oxford. Os escritos de Froude revelam claramente que ele nã o
amava o calvinismo; e, de fato, muitas vezes era chamado um crítico
do calvinismo. As suas palavras, portanto, simplesmente expressam
as conclusõ es imparciais de um grande erudito que observa o
sistema e o homem cujo nome leva dito sistema desde a posiçã o
imparcial da investigaçã o erudita.
Em outra conexã o, Froude afirma: “Os calvinistas têm levado a
alcunha de intolerantes. Mas intolerâ ncia para com um inimigo que
busca matá -lo me parece ser uma atitude justificá vel. Os cató licos
decidiram adicionar ao seu já incrível credo um novo artigo, a saber,
que tinham o direito de enforcar e queimar a todos os que nã o
estivessem de acordo com eles; e nesta luta os calvinistas, com a
Bíblia em mã os, apelaram para o Deus das batalhas. Entã o se
fizeram cada vez mais severos, ferozes — ou, talvez, se poderia dizer
— mais faná ticos. E era muito natural que fosse assim. Eles
meditavam muito, como homens piedosos em geral se inclinam a
fazer em tempo de sofrimento e dor, no poder providencial do que
tudo dispõ em. Desse modo, a sua carga se fez mais leve ao
considerarem que Deus havia determinado que a suportassem. Mas,
a despeito de tudo isso, eles atraíram para as suas fileiras quase
todos os da Europa Ocidental que ‘aborreciam a mentira’. Ainda que
derribados, conseguiram pô r-se novamente em pé. Ainda que
fracionados, nenhuma força conseguiu subjugá -los. Detestaram,
mais que qualquer outro grupo de homens, toda mentira, toda
impureza, todo mal moral até onde pudessem reconhecê-lo como
tal. Todo o temor de praticar o mal que porventura exista na
Inglaterra e Escó cia, neste momento, é vestígio das convicçõ es
gravadas no coraçã o dos povos pelos calvinistas. E ainda que isso
nã o chegasse a destruir o romanismo, que ainda perdura e ainda
pode perdurar por muito tempo, nã o obstante conseguiram
arrancar-lhe os seus dentes; forçaram-no a abandonar esse
detestá vel princípio pelo qual arrogava para si o direito de matar
aqueles que dissentiam dele. Além disso, pode-se dizer que, por
haver envergonhado o romanismo até que abandonasse a sua
corrupçã o prá tica, os calvinistas tornaram possível que o
romanismo revivesse”. [188]
Durante a Reforma, a Igreja Luterana nã o se separou tã o
completamente da Igreja Romana como fez a Igreja Reformada. De
fato, alguns luteranos assinalaram com orgulho que o luteranismo
foi uma “reforma moderada”. Muito embora os protestantes
apelassem para a Bíblia como a autoridade final, a tendência no
luteranismo foi a de preservar todo o antigo sistema que nã o tinha
necessariamente de ser descartado, enquanto a tendência na Igreja
Reformada foi a de descartar tudo quanto nã o tinha que ser
preservado. De igual modo, no que diz respeito à relaçã o entre a
igreja e o Estado, os luteranos permitiram que os príncipes nã o só
exercessem grande influência na igreja, mas também determinaram
a religiã o em seus domínios — uma tendência que conduz ao
estabelecimento de uma igreja do Estado — enquanto os
reformados prontamente exigiram a separaçã o total da Igreja e o
Estado.
Como foi dito anteriormente, a Reforma foi na essência um
ressurgimento do agostinianismo. No ponto de partida, as igrejas
luteranas e as reformadas mantiveram a mesma posiçã o no tocante
ao pecado original, à eleiçã o, à graça eficaz, à perseverança, etc.
Estas doutrinas, portanto, constituíram o verdadeiro
protestantismo. No dizer de Hastie, “o princípio da predestinaçã o
absoluta foi nem mais nem menos que o poder hercú leo da Reforma,
em seus primó rdios, através do qual ela conseguiu estrangular as
serpentes da superstiçã o e da idolatria tanto na Alemanha como em
outros lugares; e quando perdeu a sua força no seu primeiro lar, ela
continuou sendo a medula e a coluna dorsal da fé na Igreja
Reformada, e o poder que a conduziu triunfante por todas as lutas e
provas”. [189] No dizer de Rice, “um fato que fala muito em prol do
calvinismo é que a mais gloriosa revoluçã o na histó ria da igreja no
mundo desde os dias dos apó stolos foi efetuada pelas bênçã os de
Deus sobre as suas doutrinas”. [190] E vale dizer que o arminianismo
como sistema era desconhecido nos dias da Reforma. Nã o foi até
1784, quase três séculos depois, que esse sistema foi defendido por
uma igreja organizada. Assim como no quinto século houve dois
sistemas contrá rios, conhecidos como o agostinianismo e o
pelagianismo, mais tarde surgindo o sistema de abrandamento
conhecido como o semi-pelagianismo, da mesma maneira na
Reforma houve dois sistemas, o protestantismo e o romanismo,
aparecendo mais tarde o arminianismo, ou que se poderia chamar o
semi-protestantismo. Em cada caso houve dois sistemas fortemente
opostos entre si, com o subsequente surgimento de um sistema
conciliató rio.

3. O calvinismo na Inglaterra
A histó ria da Inglaterra demonstra que foi o calvinismo que
permitiu que o protestantismo triunfasse ali. Muitos dos
protestantes mais influentes que foram a Genebra durante o reinado
da rainha Maria, mais tarde alcançaram elevadas posiçõ es na igreja
sob o reinado de Elizabete. Entre estes se encontravam os
tradutores da versã o da Bíblia denominada de Genebra, a qual, que
se diga de passagem, deve muito a Calvino e a Beza, e a qual
continuou sendo a versã o inglesa mais popular até meados do
século dezessete, quando foi substituída pela versã o do rei James
[ou Tiago]. A influência de Calvino pode ser vista nos Trinta e Nove
Artigos da Igreja da Inglaterra, particularmente no artigo XVII, o
qual confessa a doutrina da predestinaçã o. Cunningham mostra que
todos os grandes teó logos da igreja estabelecida durante os reinados
de Henrique VIII, Eduardo VI e Elizabete I eram adeptos da
predestinaçã o, e que o arminianismo de Laud e seus sucessores
nasceu de um desvio desta posiçã o original.
Se fô ssemos buscar os verdadeiros heró is da Inglaterra, encontrar-
lhes-íamos naquele nobre grupo de calvinistas cuja insistência numa
forma de adoraçã o e de vida mais pura ganhou para eles o apelido
“puritanos” e aos quais Macaulay se refere como “possivelmente o
mais extraordiná rio conjunto de homens que o mundo já produziu”.
Como disse Brancroft, “o fato de os ingleses terem abraçado o
protestantismo se deve aos puritanos”. E Smith afirma: “A
importâ ncia deste fato é imensa. O protestantismo inglês, com a sua
Bíblia aberta e a liberdade religiosa e intelectual, era o vislumbre
nã o só do protestantismo das colô nias norte-americanas, mas
também o dessa raça viril e crente que por três séculos tem sido
disseminada a linguagem, a religiã o e as instituiçõ es pelo mundo
inteiro”. [191]
Cromwell, o grande líder calvinista e membro do Parlamento inglês,
se alicerçou sobre a só lida rocha do calvinismo e fez seguir ao seu
lado soldados que, por sua vez, se alicerçaram sobre a mesma rocha.
O resultado foi um exército que em pureza e heroísmo sobrepujou a
todos os que o mundo havia conhecido até entã o. Esse exército, na
opiniã o de Macaulay, “jamais encontrou inimigo, nas Ilhas Britâ nicas
ou no continente, que chegasse a resistir o seu combate. Os
guerreiros puritanos da Inglaterra, Escó cia, Irlanda e Flandes, ainda
que muitas vezes se vissem rodeados por dificuldades e tivessem
que lutar, em vá rias ocasiõ es, contra forças até três vezes mais
numerosas, nã o só conseguiram vencer em todas as suas batalhas,
mas também conseguiram destruir toda força opositora. Com o
passar do tempo, chegaram a considerar os exércitos mais
renomados da Europa com desdenhosa confiança. Mesmo os
desterrados “Cavaliers” (partidá rios de Carlos I da Inglaterra)
sentiram certo orgulho nacional ao ver uma brigada dos seus
compatriotas, superada em nú mero por inimigos e abandonada
pelos seus amigos, conseguir nã o só que a infantaria espanhola de
maior excelência retrocedesse em fuga desordenada, mas também
abrisse passagem pela borda de uma trincheira que fora declarada
inconquistá vel pelo mais há bil dos marechais da França”. E adiciona:
“O que principalmente distinguiu o exército de Cromwell de outros
exércitos foi a austera moralidade e o temor de Deus que saturava as
tropas. Os mais entusiastas Realistas admitem ainda que nesse
acampamento excepcional jamais se ouviu qualquer blasfêmia, nem
se percebeu qualquer embriaguez ou jogo de azar, e que durante o
longo domínio militar a propriedade dos cidadã os pacíficos e a
honra das mulheres foram mantidas como sagradas. Nenhuma
criada se queixou do galanteio descortês dos soldados ingleses. E
nem sequer uma peça de metal foi tirada de uma ourivesaria”. [192]
O Professor John Fiske, que figura entre os mais eminentes
historiadores norte-americanos, disse: “Nã o é exagero dizer que no
século dezessete o futuro político da humanidade dependia das
questõ es que se debatiam na Inglaterra. Se nã o fosse pelos
puritanos, a liberdade política provavelmente teria desaparecido do
mundo. Se alguma vez houve homens que sacrificaram a sua vida
pela humanidade, foram aqueles homens inflexíveis da ‘Cavalaria de
Cromwell’, cujos lemas eram textos das Sagradas Escrituras e cujos
gritos de guerra eram hinos de louvor”. [193]
Quando os má rtires protestantes morriam nos vales do Piamont, e o
autocrata papal sentava em seu trono com toda pompa, recolhendo
as suas ensanguentadas vestes, foi Cromwell, o puritano, respaldado
por um concílio e uma naçã o de iguais convicçõ es, que exigiu que
essas perseguiçõ es cessassem.
Em três diferentes ocasiõ es se ofereceu a Cromwell e se tentou que
ele aceitasse a coroa da Inglaterra, mas cada vez ele o recusou. No
tocante à doutrina, descobrimos que os puritanos foram genuínos
descendentes de Joã o Calvino. Eles, e tã o somente eles, mantiveram
acesa a preciosa chama da liberdade inglesa. Em vista desses fatos,
ninguém pode negar a imparcialidade da conclusã o de Fiske, de que
“seria difícil superestimar o que a humanidade deve a Joã o Calvino”.
McFetridge, em seu pequeno e esplêndido livro, Calvinism in
History , disse: “Se perguntá ssemos outra vez, quem operou a
liberdade inglesa, a histó ria nos forçaria a responder: O ilustre
calvinista, Guilherme, Príncipe de Orange, que, como disse Macaulay,
descobriu na só lida e aguda ló gica da escola de Genebra algo que
satisfazia o intelecto e o seu cará ter; cuja religiã o tinha como pedra
angular a doutrina da predestinaçã o; e que, pela sua penetrante
visã o ló gica, afirmou que abandonar a doutrina da predestinaçã o
equivaleria abandonar também a sua crença na providência divina,
o que, necessariamente, o conduziria a converter-se em um mero
epicurista. E ele tinha razã o em afirmar tal coisa, porque a
predestinaçã o e a providência de Deus sã o doutrinas gêmeas. Se
aceitarmos uma, somos obrigados a aceitar a outra, caso queiramos
ser consistentes”. [194]

4. O calvinismo na Escócia
O melhor caminho para descobrir os frutos prá ticos de um sistema
religioso é examinando as pessoas ou o país onde ao longo de
geraçõ es dito sistema exerceu domínio indisputá vel. Ao avaliar o
catolicismo romano, por exemplo, teríamos que fixar-nos em um
país como Espanha, ou Itá lia, ou Colô mbia, ou México. Em cada um
desses países, podemos ver os efeitos de tal sistema, seja na esfera
religiosa, seja na política. De igual modo, se fô ssemos aplicar a prova
ao calvinismo, teríamos que fixar-nos em um país onde este foi por
muito tempo a religiã o preponderante. A Escó cia é esse país.
McFetridge nos afirma que, antes que o calvinismo chegasse ali,
“densas trevas cobriam a terra e penetravam a mente do povo como
um pesadelo eterno”. [195] No dizer de Smith, “quando o calvinismo
alcançou os escoceses, estes eram vassalos da Igreja de Roma,
dominados pelos clérigos ignorantes, miserá veis, conspurcados no
corpo, na mente e na moral. Buckle os descreve como ‘asquerosos
em sua aparência e no lar’, ‘míseros desditosos’, ‘excessivamente
ignorantes e supersticiosos’ — ‘com a superstiçã o arraigada
profundamente em seu cará ter’. No entanto, maravilhosa foi a
transformaçã o quando as grandes doutrinas, aprendidas na Bíblia
por Knox, na Escó cia, e logo depois mais profundamente em
Genebra, aos pés de Calvino, resplandeceram em sua mente. Foi
como se o sol despontasse no horizonte à meia-noite. Knox fez do
calvinismo a religiã o da Escó cia, e o calvinismo fez da Escó cia o
modelo de moralidade do mundo inteiro. Sem lugar à dú vida, é um
fato significativo que no país onde o calvinismo prevalece mais, o
crime tem o menor nível; que de todas as naçõ es do mundo atual, a
que é reconhecida como a mais moral, seja também a que é mais
calvinista; que naquela terra, onde o calvinismo exerceu maior
influência, a moralidade, tanto individual quanto nacional, tem
alcançado seu nível mais elevado”. [196] Na opiniã o de Carlyle, “o que
Knox fez pela sua naçã o podemos chamar uma ressurreiçã o dentre
os mortos”. Na opiniã o de Froude, “John Knox foi o homem sem o
qual a Escó cia, como o mundo moderno entã o conhecido, nã o teria
chegado nem mesmo a existir”.
Em um sentido muito real, a Igreja Presbiteriana da Escó cia é filha
da Igreja Reformada de Genebra. A Reforma escocesa, ainda que
surgisse mais tarde, foi muito mais consistente e radical do que foi
na Inglaterra, e resultou no estabelecimento de um presbiterianismo
calvinista no qual somente Cristo era reconhecido como a cabeça da
igreja.
Naturalmente, é fá cil de selecionar o homem que nas mã os da
providência divina foi o principal instrumento na Reforma escocesa
— este foi John Knox. Foi ele quem semeou a semente da liberdade
civil e religiosa e quem transformou a sociedade. É a ele que os
escoceses devem a sua existência nacional. Na opiniã o de Philip
Schaff, “Knox foi o homem mais ilustre da Escó cia, assim como
Lutero o foi entre os alemã es”.
Schaff escreve ainda: “O heró i da Reforma escocesa, ainda que fosse
quatro anos mais velho que Calvino, sentou-se humildemente a seus
pés e chegou a ser mais calvinista que o pró prio Calvino. John Knox
passou os cinco anos do seu exílio (1554-1559), durante o reinado
de Maria a Sanguiná ria, principalmente em Genebra, e encontrou ali
‘a mais perfeita escola de Cristo que já houve desde os dias dos
apó stolos’. E foi conforme esse modelo que dirigiu os escoceses com
intrépido valor e energia de um semi-barbarismo medieval à luz da
civilizaçã o moderna e o seu nome chegou a ser, depois de Lutero,
Zuínglio e Calvino, o mais ilustre na histó ria da Reforma
Protestante”. [197]
Na opiniã o de Froude, “nã o há personagem mais eminente em toda a
histó ria da Reforma nesta ilha do que John Knox. É tempo da
histó ria da Inglaterra render honra à quele sem o qual a Reforma
teria fracassado entre nó s; porque o contagioso fervor de Knox
salvou a Escó cia; e se a Escó cia tivesse retrocedido para o
catolicismo, nem a sabedoria dos ministros de Elizabete, nem os
ensinamentos dos seus bispos, nem mesmo as suas pró prias
artimanhas teriam evitado que a revoluçã o eclodisse na Inglaterra.
Knox foi a voz que informou os campesinos de Lothians que eram
homens tã o livres e iguais aos olhos de Deus como qualquer um dos
orgulhosos nobres ou prelados que haviam pisoteado os seus
antepassados. Knox foi o antagonista que Maria Stuart jamais pô de
calar nem Maitland enganar; foi ele que fez dos pobres plebeus do
seu país homens inflexíveis,; e, embora severos, intolerantes,
supersticiosos e faná ticos, contudo foram homens que nem rei, nem
nobre, nem sacerdote puderam obrigar a se submeter novamente à
tirania. E a recompensa deste grande homem foi a ingratidã o
daqueles que mais deveriam ter rendido honra à sua memó ria”. [198]
A teologia reformada escocesa, em seus primó rdios, se baseou no
princípio da predestinaçã o. Knox recebera a sua teologia
diretamente de Calvino em Genebra, e a sua principal obra teoló gica
foi o seu tratado sobre a predestinaçã o — uma polêmica aguda,
convincente e firme contra crenças vagas que estavam se
propagando pela Inglaterra e por outros lugares. Durante os séculos
dezessete e dezoito, temas como a predestinaçã o, a eleiçã o, a
reprovaçã o, a extensã o e o valor da expiaçã o e a perseverança dos
cristã os foram os que cativaram o interesse do campesino escocês.
Desde a Escó cia, estas doutrinas se espalharam rumo ao sul, por
toda a Inglaterra e Irlanda, e através do Atlâ ntico em direçã o ao
Ocidente. Em certo sentido, pode-se chamar a Escó cia “a pá tria mã e
do presbiterianismo moderno”.

5. O calvinismo na França
De igual modo, a França, durante esta época, ardeu também com o
espírito livre, radiante e enérgico do calvinismo. “A França traz à
memó ria os calvinistas huguenotes. E o mundo conhece o seu
cará ter. Seja porque fossem perseguidos na sua pá tria mã e ou
porque estivessem no exílio, a sua pureza moral e o seu heroísmo
foram motivo de grande admiraçã o quer por parte dos seus amigos,
quer por parte dos seus inimigos.” [199] Lemos na Enciclopédia
Britâ nica: “A sua histó ria é uma maravilha permanente que exibe o
poder contínuo de convicçõ es religiosas bem arraigadas. O relato do
sofrimento dos huguenotes constitui um dos mais extraordiná rios e
heroicos episó dios da histó ria religiosa”. Estes compunham a
industriosa classe artesã da França e ser “honesto como um
huguenote” se converteu em um provérbio que demonstrava o mais
elevado grau de integridade.
No dia de Sã o Bartolomeu, domingo, 24 de agosto de 1572, um
grande nú mero de protestantes foi assassinado traiçoeiramente em
Paris, e muitos dias depois seguiram repetindo as espantosas cenas
em distintas partes da França. O nú mero total dos que perderam a
vida no massacre do dia de Sã o Bartolomeu tem sido estimado entre
10.000 a 50.000, ainda que a estima de Schaff seja de 30.000. Essas
violentas perseguiçõ es induziram milhares de protestantes
franceses a fugir para a Holanda, Alemanha, Inglaterra e América do
Norte. A perda para a França foi irrepará vel. Macaulay, historiador
inglês, disse daqueles que se estabeleceram na Inglaterra: “Os
refugiados mais humildes estavam intelectual e moralmente acima
das pessoas comuns de qualquer reino da Europa”. O grande
historiador Lecky, ainda que fosse um impassível racionalista,
escreveu: “O massacre dos huguenotes, ao ser revogado pelo Edito
de Nantes, foi o massacre dos mais íntegros, dos mais modestos, dos
mais virtuosos, e, em termos gerais, o elemento mais instrutivo da
naçã o francesa, e abriu caminho para a inevitá vel degradaçã o do
cará ter nacional, e eliminou o ú ltimo e importante baluarte que
poderia ter detido a força da torrente do ceticismo e vício que um
século mais tarde derrocaria merecidamente tanto o altar quanto o
trono”. [200]
Na opiniã o de Warburton, “aquele que tenha lido a histó ria destes
bem sabe quã o cruéis e injustas foram as perseguiçõ es instigadas
contra eles. O sangue mais nobre da França inundou os campos de
batalha; permitiu-se ao mais brilhante dos gênios da França jazer
abandonado e perecendo de fome na prisã o; e os indivíduos mais
nobres que a França já possuiu foram caçados e mortos tã o
brutalmente como animais selvagens”. E anexa: “Em todo sentido,
foram imensamente superiores ao resto dos seus compatriotas. A
estrita sobriedade da sua vida, a pureza dos seus atos, os seus
há bitos diligentes e a sua completa separaçã o da grosseira
sensualidade que corrompia toda a vida nacional da França, neste
período, foram sempre meios eficazes para revelar os princípios que
sustentavam, e ainda assim o consideraram os seus inimigos”. [201]
A libertinagem dos reis havia se infiltrado da aristocracia até a
plebe; a religiã o havia se convertido numa lava imunda, só
consistente com a sua crueldade; os monastérios haviam se
convertido em antros de iniquidade; o celibato chegou a ser uma
fonte pestilenta de incontinência e impureza; a imoralidade, o
desenfreio, o despotismo e a extorsã o no Estado e na igreja eram
indescritíveis; o perdã o dos pecados podia ser comprado com
dinheiro e um vergonhoso trá fico de indulgências era executado sob
a sançã o do papa; alguns dos papas eram monstruosos em sua
iniquidade; a ignorâ ncia que existia era horripilante; a educaçã o
estava confinada ao clero e aos nobres; no entanto, muitos dos
sacerdotes nã o sabiam nem ler nem escrever; e a sociedade em geral
havia se desmoronado.
Esta descriçã o, ainda que parcial, nã o é exagerada. No entanto, em
contrapartida muitos cató lico-romanos sinceros buscavam
seriamente reformar a sua igreja por dentro, mas esta se encontrava
em uma condiçã o irreformá vel. Qualquer mudança, se é que fosse
possível, teria que vir de fora. Em outras palavras, ou nã o haveria
qualquer reforma, ou estaria fazendo oposiçã o a Roma.
Nã o obstante, as ideias protestantes começavam a infiltrar-se
gradualmente na França a partir da Alemanha. Calvino começou o
seu trabalho em Paris e prontamente foi reconhecido como um dos
líderes do novo movimento na França. O seu fervor despertou a
oposiçã o das autoridades eclesiá sticas e teve que fugir se quisesse
conservar a sua vida. E ainda que jamais regressasse a França depois
que se estabeleceu em Genebra, ele permaneceu sendo o líder da
reforma francesa e a cada passo era consultado. E foi ele que
proporcionou aos huguenotes o seu credo e a sua forma de governo.
E através do período subsequente, de acordo com o testemunho
unâ nime da histó ria, foi o sistema de fé conhecido como o
calvinismo que inspirou os protestantes franceses em sua luta
contra o papado e os seus partidá rios reais.
O que o puritano foi na Inglaterra, o “Covenanter” foi na Escó cia e o
huguenote, na França. Que o calvinismo produziu o mesmo tipo de
homem em cada um destes países é a prova mais patente do seu
poder na formaçã o do cará ter.
O calvinismo se propagou tã o rapidamente pela França, que Fisher,
em sua History of the Reformation [A histó ria da Reforma], nos
informa que em 1561 os calvinistas compunham uma quarta parte
da populaçã o. McFetridge calcula que foram ainda mais. Diz ele: “Em
menos de meio século, este chamado sistema inflexível de fé havia
penetrado todas as regiõ es do país e atraíra para as suas fileiras
quase a metade da populaçã o e quase toda pessoa ilustre. Tã o
numerosos e poderosos formaram os seus adeptos que mais parecia
que por certo tempo toda a naçã o se deixasse cativar pelas suas
doutrinas”. [202] Smiles, em seu livro, Huguenots in France [Os
huguenotes na França], escreve: “É interessante especular sobre a
influência que a religiã o de Calvino, sendo ele mesmo francês,
exercera na histó ria da França, da mesma forma que no cará ter
individual do francês, se o equilíbrio das forças conduzisse a naçã o
completamente para o protestantismo, como quase sucedeu nos fins
do século dezessete”. [203] Sem dú vida, a histó ria da naçã o teria sido
muito mais distinta do que é.

6. O calvinismo na Holanda
Temos outro glorioso capítulo na histó ria do calvinismo e da
humanidade na luta que libertou os Países Baixos do poder
dominante do papado e do cruel jugo da Espanha. As torturas da
inquisiçã o foram aplicadas aqui como em poucos outros lugares. O
duque de Alba se vangloriava de haver entregue 18.600 hereges ao
verdugo em apenas cinco anos.
Como afirma Motley, “o patíbulo tinha as suas vítimas diá rias, porém
nã o converteu nenhuma delas. Houve homens que arriscavam as
suas vidas e sofriam tanto quanto os homens podem chegar a
arriscar e sofrer neste mundo e pela causa mais nobre que possa
inspirar a humanidade”. Motley nos fala ainda em seu livro de “o
heroísmo de homens que caminhavam pelas chamas e de mulheres
que cantavam hinos de vitó ria enquanto eram cerradas vivas”. Em
outra parte, ele anexa: “O nú mero de holandeses queimados,
enforcados, decapitados, ou sepultados vivos, em obediência aos
editos de Carlos V, pelo delito de ler a Bíblia ou de olhar com
desdém para um ídolo ou de considerar absurda a presença do
corpo e sangue de Cristo numa hó stia, foi estimado pelas
autoridades confiá veis em cerca de cem mil, e nunca menos de
cinquenta mil”. [204] Durante essa memorá vel luta de oitenta anos,
mais protestantes morreram pelas suas convicçõ es, nas mã os dos
espanhó is, do que os má rtires cristã os sob os imperadores romanos
durante os primeiros três séculos. Na Holanda, a histó ria coroa o
calvinismo como o credo dos má rtires, dos santos e dos heró is.
Por quase três geraçõ es, a Espanha, a naçã o mais poderosa da
Europa naquele período, tentou destruir o protestantismo e a
liberdade política dos holandeses calvinistas, porém fracassou. Os
holandeses, por quererem adorar a Deus de acordo com os ditames
da sua consciência, e nã o sob as irritantes cadeias de um sacerdó cio
corrupto, foram dominados e submetidos à s mais cruéis torturas
que os espanhó is puderam inventar. E caso se indague quem
libertou aquele país, a resposta teria que ser: “Foi o Príncipe de
Orange, aquele calvinista conhecido na histó ria como Guilherme o
Taciturno, juntamente com aqueles que sustentavam o mesmo
credo”. O Dr. Abraham Kuyper afirma: “Se o poder de Sataná s,
naquele tempo, nã o fosse quebrantado pelo heroísmo do espírito
calvinista, a histó ria dos Países Baixos, de toda a Europa e do mundo
inteiro, teria sido tã o dolorosamente triste e sombria, como agora é,
graças ao calvinismo, brilhante e inspiradora”. [205]
Se o espírito do calvinismo nã o prorrompesse na Europa ocidental
apó s o começo da Reforma, o espírito de indiferença teria triunfado
na Inglaterra, na Escó cia e na Holanda. O protestantismo nesses
países jamais poderia ter subsistido; e através das medidas
comprometedoras de um protestantismo romanizado, a Alemanha,
com toda probabilidade, teria se sujeitado novamente ao domínio da
Igreja de Roma. Se o protestantismo houvesse falhado em qualquer
desses países, é bem prová vel que o resultado fosse fatal também
noutros países. Tã o estreitamente entrelaçado estava o destino
dessas naçõ es, que em certo sentido dependia do desenlace da luta
na Holanda. Se a Espanha obtivesse a vitó ria na Holanda, é prová vel
que a Igreja Romana houvesse fortalecido de tal maneira que
chegasse a subjugar o protestantismo também na Inglaterra. Ainda
como estavam as coisas, era como se, ao menos por certo tempo, a
Inglaterra se volvesse novamente para o romanismo. Se isso
ocorresse, o desenvolvimento da América do Norte teria sido
impedido automaticamente, e com toda probabilidade todo o
continente americano teria ficado sob o controle da Espanha.
Além disso, tenhamos em mente que quase todos os má rtires nesses
países foram calvinistas, sendo muito poucos, comparativamente, os
luteranos e os arminianos. O Professor Fruin observa que “na Suíça,
França, Holanda, Escó cia e Inglaterra, e onde quer que o
protestantismo teve que se estabelecer ao fio da espada, foi o
calvinismo que obteve a palma da vitó ria”. E como quer que se
interprete este fato, a verdade do caso é que os calvinistas foram os
ú nicos protestantes lutadores.
Há ainda outro serviço que a Holanda prestou e que nã o devemos
ignorar. Os puritanos, apó s serem expulsos da Inglaterra pelas
perseguiçõ es religiosas e antes da sua transmigraçã o para a América
do Note, foram para a Holanda onde estiveram em contato com
pessoas de uma vida religiosa que, da perspectiva calvinista, lhes foi
muito benéfica. Os líderes mais importantes foram Clyfton,
Robinson e Brewster, os três da Universidade de Cambridge. E estes
três formaram um trio tã o nobre e heró ico como qualquer outro que
já existiu na histó ria de qualquer país, sendo, além de tudo, firmes
calvinistas que sustentavam as doutrinas fundamentais do
reformador genebrino. O historiador norte-americano Bancroft tem
razã o quando denomina os puritanos de “homens da mesma fé que
Calvino”.
J. C. Monsma, em seu livro, What Calvinism Has Done for America [O
que o calvinismo fez pela América], nos fornece o seguinte resumo
da vida dos puritanos na Holanda: “Quando os puritanos partiram
de Amsterdam, rumo a Leyden, o Rev. Clyfton, o seu principal líder,
decidiu permanecer onde estava, sendo entã o eleito pelo povo como
novo líder ou pastor, e tendo como seu principal assistente o Rev.
John Robinson”. Robinson era calvinista convicto e se opunha aos
ensinamentos de Armínio, cada vez que lhe surgia uma
oportunidade. Temos o testemunho incontestá vel de Eward
Winslow de que Robinson, durante o tempo em que o arminianismo
conquistava terreno na Holanda, foi convidado por Polyander,
Festus Homilius, entre outros teó logos holandeses a tomar parte nos
debates com Episcopio, o novo líder dos arminianos que logravam
vitó ria na Academia de Leyden. Robinson aceitou o convite e chegou
a ser reconhecido por pouco tempo como um dos mais eminentes
teó logos daquele período. Em 1624, ele escreveu um tratado
magistral, com o título A Defense of the Doctrine Propounded by the
Synod of Dort [Uma defesa da doutrina proposta pelo Sínodo de
Dort]. Como o Sínodo de Dordrecht, conhecido internacionalmente,
se caracterizou por um calvinismo estrito em todas as suas decisõ es,
nã o temos que acrescentar nada mais sobre as tendências teoló gicas
de Robinson.
“Os puritanos sustentavam as mesmas doutrinas das igrejas
reformadas (calvinistas) na Holanda e em outras partes. Robinson,
em sua Apology , publicada em 1619, um ano antes da partida dos
puritanos da Holanda, escreveu em termos solenes: ‘Professamos
diante Deus e diante dos homens que tal é a nossa conformidade, no
tocante à religiã o, com as igrejas reformadas da Holanda, que
concordamos com todos e cada um dos artigos de fé dessas igrejas,
tal como aparecem na Harmonia das Confissões de Fé publicada sob
esse nome’”. [206]

7. O calvinismo na América do Norte


Ao estudarmos a influência que o calvinismo teve como força
política na histó ria dos Estados Unidos da América do Norte,
deparamo-nos com uma das pá ginas mais brilhantes da histó ria
calvinista. O calvinismo chegou à América do Norte no barco
Mayflower; e Bancroft, o mais proeminente dos historiadores norte-
americanos, declara que os peregrinos eram “calvinistas conforme o
sistema mais rigoroso”. [207] John Endicott, o primeiro governador
do Masschusetts Bay Colony; John Wintrop, o segundo governador
da dita colô nia; Tomá s Hooker, o fundador de Connecticut; John
Davenport, o fundador do New Haven Colony; e Rogerio Williams, o
fundador de Rhode Island Colony, eram todos calvinistas. William
Penn foi discípulo dos huguenotes. Estima-se que dos 3.000.000 de
norte-americanos durante o tempo da Revoluçã o norte-americana,
900.000 eram de origem escocesa ou de descendência escocesa e
irlandesa; 600.000 eram puritanos ingleses e 400.000 eram da
Igreja Reformada da Holanda ou da Alemanha. Além do mais, os
episcopais tinham uma confissã o de fé calvinista em seus Trinta e
Nove Artigos; e muitos dos huguenotes franceses também vieram
para esta terra da América do Norte. Portanto, vemos que em torno
de um terço da populaçã o colonial foi educado na escola de Calvino.
Na histó ria do mundo, nunca houve uma naçã o fundada por pessoas
como estas. Além do mais, essas pessoas nã o vieram à América do
Norte com o propó sito primá rio de desenvolver interesses e
ganâ ncias comerciais, e sim pelas suas profundas convicçõ es
religiosas. É como se as perseguiçõ es religiosas em vá rios países da
Europa servissem providencialmente para selecionar as pessoas
mais progressistas e ilustres para levar a bom termo a colonizaçã o
da América do Norte. Seja como for, geralmente se admite que os
ingleses, os escoceses, os alemã es e os holandeses foram as pessoas
da mais marcante influência na Europa. Além disso, devemos ter em
mente que os puritanos que compunham a maior parte dos
habitantes da Nova Inglaterra, trouxeram consigo um
protestantismo calvinista, que eram fiéis adeptos das doutrinas dos
grandes reformadores, que sentiam uma grande repulsa pelo
formalismo e a opressã o, tanto na igreja como no Estado, e que o
calvinismo continuou sendo a teologia prevalecente na Nova
Inglaterra durante todo o período colonial.
Com essa tela de fundo, nã o nos surpreenderá descobrir que os
presbiterianos tiveram uma parte muito importante na Revoluçã o
norte-americana. O historiador norte-americano Bancroft escreveu:
“A influência que a religiã o exerceu na Revoluçã o de 1776 veio
diretamente dos presbiterianos. Foi simplesmente o fruto dos
princípios que o presbiterianismo do Velho Mundo semeou em seus
filhos: os puritanos da Inglaterra, os covenanters da Escó cia, os
huguenotes da França, os calvinistas da Holanda e os presbiterianos
de Ulster”. Tã o apaixonados e agressivos eram os presbiterianos em
seu zelo pela liberdade, que a guerra era conhecida na Inglaterra
como “a religiã o presbiteriana”. Um fervoroso colono, partidá rio do
Rei Jorge III escreveu numa carta: “Eu atribuo a culpa de todos estes
extraordiná rios acontecimentos aos presbiterianos. Eles têm sido a
causa principal de todas estas manifestaçõ es malditas. Eles sempre
se opõ em e sempre se oporã o ao governo por causa do inquieto e
turbulento espírito antimoná rquico que os tem caracterizado em
todo lugar”. [208]
Quando a notícia de “estes extraordiná rios
acontecimentos” chegou à Inglaterra, o Primeiro Ministro Horatio
Walpole disse no Parlamento: “A nossa prima América escapou com
um pastor presbiteriano” (John Witherspoon, presidente de
Princeton, signatá rio da Declaraçã o de Independência).
A histó ria declara eloquentemente que a democracia norte-
americana nasceu do cristianismo e que este cristianismo é nada
mais nada menos que o calvinismo. O grande conflito revolucioná rio
que resultou na formaçã o da naçã o norte-americana foi levado a
bom termo principalmente por calvinistas, muitos dos quais foram
educados na escola estritamente presbiteriana de Princeton, e esta
naçã o é a sua dá diva a todos quantos amam a liberdade.
J. R. Sizoo afirmou: “Quando por fim se conseguiu que Cornwallis
retrocedesse e se rendesse em Yorktown, todos os coronéis do
exército colonial, exceto um, eram presbíteros da Igreja
Presbiteriana. Mais da metade de todos os soldados e oficiais do
exército norte-americano, durante a Revoluçã o, eram
presbiterianos”. [209]
O testemunho de Emilio Castelar, o famoso estadista, orador e
erudito espanhol, é interessante e de grande valor. Castelar tinha
sido professor de filosofia na Universidade de Madrid antes de
entrar na política, e foi nomeado presidente da repú blica
estabelecida pelos liberais em 1873. Como cató lico romano, ele
odiava Calvino e o calvinismo. Ele afirmou: “Era necessá rio que o
movimento republicano surgisse de uma moralidade mais austera
do que a de Lutero, a saber, a de Calvino, e uma igreja mais
democrá tica do que a da Alemanha, a saber, a de Genebra. A
democracia anglossaxô nica teve como fundamento um livro de uma
sociedade primitiva — a Bíblia. Essa democracia é o produto de uma
rigorosa teologia apreendida pelos poucos refugiados cristã os nas
lú gubres cidades da Holanda e Suíça, onde a vetusta figura de
Calvino ainda lança a sua sombra... uma democracia que permanece
serena em sua grandeza, constituindo a parte mais nobre, mais
moral e mais ilustre da raça humana”. [210]
Motley disse: “Na Inglaterra, as sementes da liberdade incorporadas
no calvinismo e preservadas através dos longos anos de prova por
fim estavam destinadas a espalhar-se e a produzir as mais
abundantes colheitas da liberdade em repú blicas que ainda nã o
haviam nascido”. [211] “Os calvinistas fundaram as democracias da
Inglaterra, Holanda e América do Norte.” E anexa: “As liberdades
políticas da Inglaterra, da Holanda e da América do Norte se devem
aos calvinistas mais que a qualquer outro grupo de homens”. [212]
Merece a nossa consideraçã o o testemunho de outro famoso
historiador, o francês Taine, que pessoalmente nã o tinha nenhum
credo religioso. Com respeito aos calvinistas, ele disse: “Esses
homens sã o os verdadeiros heró is da Inglaterra. Foram eles que a
fundaram, e isto apesar da corrupçã o dos Stewards; e conseguiram
tal façanha pelo exercício do dever, pela prá tica da justiça, pelo
trabalho assíduo, pela defesa do direito, pela resistência à opressã o,
pela conquista da liberdade e pela repressã o do vício. Eles fundaram
a Escó cia e os Estados Unidos da América do Norte; e hoje estã o,
através dos seus descendentes, fundando a Austrá lia e colonizando
o mundo”. [213]
Em seu livro, The Creed of Presbyterians [O credo dos
presbiterianos], E. W. Smith formula esta pergunta se referindo aos
colonos da América do Norte: “Onde estes aprenderam os imortais
princípios dos direitos do homem, da liberdade humana, da
igualdade e da autonomia sobre os quais cimentaram a sua
repú blica e os quais sã o hoje a gló ria distintiva dessa civilizaçã o
norte-americana? Eles os aprenderam na escola de Joã o Calvino. Foi
ali que o mundo moderno os aprendeu. É isso que nos ensina a
histó ria”. [214]  
Passemos agora a considerar a influência que a Igreja Presbiteriana,
como igreja, exerceu na formaçã o da repú blica norte-americana. Na
afirmaçã o do Dr. W. H. Roberts, em um discurso que pronunciara
diante da Assembleia Geral, “foi por três quartos do século, a ú nica
representante neste continente de governo republicano, como se
encontra organizado hoje na naçã o”, e acrescenta: “Desde 1706 até o
início da revoluçã o, a ú nica instituiçã o em existência, que
representava a nossa organizaçã o política nacional atual, foi o
Sínodo Geral da Igreja Presbiteriana da América do Norte. Somente
ela, entre as organizaçõ es coloniais, tanto eclesiá sticas como
políticas, exerceu autoridade derivada dos pró prios colonos, sobre
as comunidades espalhadas por todas as colô nias desde a Nova
Inglaterra até Geó rgia. É preciso lembrar-se que as colô nias, durante
os séculos dezessete e dezoito, ainda que dependentes da Inglaterra,
eram independentes entre si. Até 1774, ainda nã o existia um corpo
como o Congresso Continental. A condiçã o religiosa do país era
semelhante à condiçã o política. As igrejas congregacionais da Nova
Inglaterra nã o estavam vinculadas umas à s outras, e à parte do
governo civil careciam de poder. Nas colô nias, a Igreja Episcopal
ainda nã o estava organizada, e o seu sustento e ministério
dependiam da igreja estabelecida da Inglaterra; além disso, estava
saturada de uma intensa lealdade à monarquia britâ nica. Até 1771, a
Igreja Reformada holandesa ainda nã o tinha uma organizaçã o
eficiente e independente, e a Igreja Reformada alemã nã o chegou a
alcançar essa condiçã o até 1793. As igrejas batistas eram
organizaçõ es separadas, as metodistas eram praticamente
desconhecidas e os quá queres eram pacifistas”.
Delegados das igrejas presbiterianas se reuniam a cada ano no
Sínodo Geral, e a igreja veio a ser, como nos informa o Dr. Roberts,
“um elo de uniã o e reciprocidade entre grandes setores da
populaçã o das colô nias divididas”. Portanto, porventura causa
estranheza que sob a sua influência os sentimentos de verdadeira
liberdade, da mesma forma que os princípios de um evangelho puro,
fossem pregados através de todo o territó rio desde Long Island até
Carolina do Sul, e que, sobretudo, um espírito de unidade entre as
colô nias começasse a fazer-se sentir? É incalculá vel a influência que
essa repú blica eclesiá stica exerceu no que diz respeito à origem da
naçã o, sendo ela, desde 1706 a 1774, a ú nica representante neste
continente de instituiçõ es republicanas bem desenvolvidas. Os
Estados Unidos da América do Norte devem muito à mais antiga das
repú blicas americanas, a Igreja Presbiteriana”. [215]
Certamente isto nã o significa que a Igreja Presbiteriana fosse a ú nica
fonte da qual foram obtidos os princípios sobre os quais se fundou
dita Repú blica; no entanto, afirma-se que os princípios que
aparecem nos Padrõ es de Westminster foram o principal
fundamento. “A Igreja Presbiteriana foi a primeira que ensinou,
praticou e sustentou nesta terra a forma de governo em
concordâ ncia com o qual a Repú blica foi organizada” (Roberts).
No início da luta revolucioná ria, os ministros e igrejas
presbiterianas se encontravam ao lado dos colonos, e Bancroft
atribui a estes o primeiro passo para a independência. [216] O Sínodo
que se reuniu em Filadélfia em 1775 foi o primeiro corpo religioso a
expressar aberta e publicamente o seu desejo de separar-se da
Inglaterra. Dito Sínodo exortou aos que estavam sob a sua jurisdiçã o
a que nã o deixassem de contribuir, de todas as formas, para
promover o fim a que se propuseram, e instou com eles a que
orassem pelo Congresso que ora se encontrava reunido.
Naquele tempo, a Igreja Episcopal estava ainda unida à Igreja da
Inglaterra, e, portanto, se opunha à Revoluçã o. No entanto, um
nú mero considerá vel de pessoas dentro dessa igreja lutava
intensamente pela independência, propiciando as suas riquezas e
influência. Vale dizer que o Comandante em Chefe dos exércitos
norte-americanos, George Washington, “o pai da nossa pá tria”, era
membro dessa igreja. O pró prio Washington assistiu e ordenou a
todos os seus homens que assistissem aos cultos celebrados pelos
seus capelã es, os quais eram ministros das distintas igrejas. Além
disso, em certa ocasiã o, ele doou quarenta mil dó lares com o fim de
estabelecer um colégio presbiteriano em seu estado natal, que em
reconhecimento à sua doaçã o se chamou Washington College.
N. S. McFetridge lançou luz sobre outro importante acontecimento
durante o período revolucioná rio. Visando a maior exatidã o e
inteireza, lançaremos mã o do privilégio de citá -lo extensamente.
“Outro fator importante no movimento de independência”, diz ele,
“foi o que se conhece como a ‘Declaraçã o de Mecklenburg’. Esta foi
proclamada pelos presbiterianos escoceses e irlandeses da Carolina
do Norte em 20 de maio de 1775, ou seja, um ano antes de redigida a
Declaraçã o da Independência. Esta foi a cordial saudaçã o dos
escoceses e irlandeses aos seus valorosos irmã os do norte, e o seu
intrépido desafio ao poder da Inglaterra. Os presbiterianos
escoceses e irlandeses seguiram bem de perto o desenvolvimento da
luta entre as colô nias e a Coroa, e ao ouvir a declaraçã o apresentada
pelo Congresso ao Rei, declarando à s colô nias em franca rebeliã o,
estimaram que era o tempo de expressar abertamente o seu
sentimento. Como consequência, organizaram um corpo
representativo em Charlotte, Carolina do Norte, o qual, por decisã o
unâ nime, declarou aos colonos livres e independentes, e também
declarou que, desse momento em diante, todas as leis e comissõ es
do rei ficavam invalidadas”. E continua:
Na Declaraçã o aparecem resoluçõ es como as que seguem:
“Pela presente, dissolvemos os vínculos políticos que nos têm
unido à pá tria mã e, e por esse meio ficamos eximidos de toda
lealdade à coroa britâ nica. Pela presente, declaramo-nos um
povo livre e independente; somos, e por direito devemos ser,
uma associaçã o soberana e autô noma, sob o controle
unicamente do nosso Deus e do governo geral do Congresso; e
para a apresentaçã o dessa associaçã o, comprometemos
solenemente a nossa cooperaçã o e inclusive as nossas pró prias
vidas, as nossas fortunas e a nossa sagrada honra”. Esta
assembleia se compunha de vinte e sete calvinistas tenazes,
dos quais uma terça parte se compunha de presbíteros da
Igreja Presbiteriana, inclusive o presidente e o secretá rio; e
um deles era ministro presbiteriano. O homem que redigiu
esse famoso e importante documento foi o secretá rio, Efrain
Brevard, presbítero regente da Igreja Presbiteriana, graduado
do Colégio de Princeton. Bancroft escreve que dita declaraçã o
era “de fato uma declaraçã o em pé de igualdade com um
sistema completo de governo”. [217]
Essa declaraçã o foi
enviada ao Congresso em Filadélfia por mã os de um
mensageiro especial, e foi publicada no Cape Fear Mercury ,
distribuída por todo o país. Também foi remetida com toda
rapidez à Inglaterra, onde causou grande comoçã o.
A identidade de sentimento e a similaridade de expressã o
entre esta Declaraçã o e a grande Declaraçã o escrita por
Jefferson nã o podiam passar desapercebidas do historiador;
por isso Tucker, em seu livro, Life of Jefferson [Vida de
Jefferson], disse: “Todos podiam perceber que um desses
escritos foi copiado do outro”. No entanto, é ó bvio que Brevard
nã o poderia ter “copiado” do documento de Jefferson, já que
ele escreveu o seu mais de um ano antes. Portanto, Jefferson,
em consonâ ncia com seu bió grafo, teria “emprestado” de
Brevard. No entanto, este foi um plá gio tã o proveitoso, que o
mundo o perdoará sem reservas. Ao corrigir sua primeira
có pia da Declaraçã o, pode-se observar em vá rias partes que
Jefferson apagou as palavras originais e intercalou as que
aparecem originalmente na Declaraçã o de Mecklenberg.
Ninguém poderá nutrir dú vida de que Jefferson tinha diante de
si as resoluçõ es de Brevard enquanto escrevia sua imortal
Declaraçã o. [218]
Esta notá vel semelhança entre os princípios expressos na Forma de
Governo da Igreja Presbiteriana e os expostos na Constituiçã o dos
Estados Unidos da América do Norte produziu um grande volume de
comentá rios. O Dr. E. W. Smith se expressa nestes termos:
Quando os pais da nossa repú blica se sentaram para redigir
um sistema de governo popular e representativo, a sua tarefa
nã o foi difícil como alguns têm suposto, porque eles já tinham
um modelo pelo qual se guiar. [219]
Caso se pergunte a um cidadã o comum dos Estados Unidos da
América do Norte quem foi o fundador da sua pá tria, o autor
da nossa grande repú blica, pode ser que o mesmo nã o saiba
responder. Podemos imaginar o seu assombro ao ouvir a
resposta dada a esta pergunta pelo famoso historiador alemã o,
Ranke, um dos mais destacados eruditos dos tempos
modernos. Ranke escreveu: “Joã o Calvino foi, de fato, o
fundador virtual da América do Norte”. [220]
D’Aubigne, cuja histó ria da Reforma constitui um clá ssico, escreve:
“Calvino foi o fundador da mais grandiosa das repú blicas. Os
puritanos que deixaram a sua pá tria durante o reinado de Tiago I e
chegaram à s á ridas terras da Nova Inglaterra, fundando populosas e
poderosas colô nias, foram os seus filhos; e a naçã o norte-americana
que tã o rapidamente temos visto crescer, ostenta por pai o humilde
reformador das margens do Lago Leman”. [221]
O Dr. E. W. Smith afirma: “Estes princípios revolucioná rios de
liberdade e autocracia republicana, expostos e incorporados no
sistema de Calvino, foram semeados na América do Norte, onde
produziram colheita farta; e quem foram os semeadores? Sem
dú vida, foram os calvinistas. Apesar de soar estranho aos ouvidos de
alguns as palavras de Ranke, a relaçã o vital que existe entre Calvino
e o calvinismo, por um lado, e a fundaçã o das instituiçõ es livres da
América do Norte, por outro lado, os historiadores de todos os
países e de todos os credos reconhecem e sustentam esse fato”. [222]
Tudo isso tem sido claramente entendido e imparcialmente
reconhecido por penetrantes e filó sofos historiadores da estirpe de
Brancroft, o qual, ainda que longe de ser calvinista, considera
Calvino “o pai da América do Norte”, e anexa: “Aquele que nã o honra
a memó ria e respeita a influência de Calvino, conhece bem pouco a
origem da liberdade na América do Norte”.
Podemos apreciar ainda mais claramente a veracidade dos
testemunhos citados previamente quando nos lembramos que dois
terços da populaçã o durante a época da Revoluçã o foram instruídos
na escola de Calvino, e quando nos lembramos quã o unida e
entusiasticamente os calvinistas lutaram pela causa da
independência.
Durante a época da Revoluçã o, praticamente nã o havia metodistas
na América do Norte; e, de fato, a Igreja Metodista nã o foi
organizada oficialmente como tal na Inglaterra até o ano de 1784, ou
seja, três anos depois de terminada a Revoluçã o. Joã o Wesley, ainda
que um homem bom e nobre, era um Tory (realista) e cria na
obediência passiva. Todavia, muito embora tenha escrito contra a
“rebeliã o” norte-americana, aceitou o afortunado resultado.
McFetridge afirmou: “Os metodistas eram uma pequena minoria nas
colô nias quando teve início a luta pela independência. Em 1773,
afirmavam ter cerca de cento e sessenta membros. Os seus ministros
eram quase todos da Inglaterra, e eram fiéis partidá rios da Coroa e
contra a independência. Portanto, quando a guerra se prorrompeu,
tiveram que fugir do país. As suas ideias políticas naturalmente
concordavam com as de um grande líder, Joã o Wesley, o qual fazia
uso de todo o poder da sua eloquência e influência contra a
independência das colô nias. [223] Wesley, nã o obstante, nã o podia
prever que a América do Norte independente seria o campo onde a
sua nobre igreja haveria de recolher as suas mais abundantes
colheitas e que naquela Declaraçã o, à qual se opô s com tanta
insistência, jazia a segurança das liberdades dos seus seguidores”.
[224]

As grandes lutas pela liberdade civil e religiosa na Inglaterra e na


América do Norte foram fomentadas e inspiradas pelo calvinismo, e
levadas a bom termo, em grande medida, pelos calvinistas. Mas,
como a maioria dos historiadores nunca estudou o calvinismo a
fundo, jamais poderiam dar-nos um relato verídico e completo do
que dito credo tem feito nestes países. Faz-se necessá rio a luz da
investigaçã o histó rica para demonstrar-se como os antepassados de
ambos os países creram e se regeram pelos princípios calvinistas.
Vivemos numa época em que em grande medida se tem ignorado os
serviços dos calvinistas durante a fundaçã o da América do Norte,
razã o por que se torna um tanto difícil discutir o tema sem dar a
impressã o de que aqui se faz um mero encô mio ao calvinismo.
Podemos, todavia, com toda a confiança, render honra ao Credo que
produziu tã o doces frutos e ao qual os Estados Unidos da América
do Norte tanto devem.

8. O calvinismo e o governo representativo


Ainda que nã o exista conexã o orgâ nica entre a liberdade civil e a
religiosa, nã o obstante elas possuem uma forte afinidade entre si; e
onde uma nã o existe, tampouco a outra poderá prevalecer por muito
tempo. A histó ria manifesta eloquentemente que a religiã o de um
povo depende da sua liberdade ou da sua escravidã o. As doutrinas
que sustentam e os princípios que adotam sã o, portanto, de
suprema importâ ncia, já que virã o a ser a base sobre a qual a sobre-
estrutura da sua vida e do seu governo haverã o de descansar. Neste
sentido, o calvinismo tem sido revolucioná rio, já que tem ensinado a
igualdade natural dos homens, e a sua tendência essencial tem sido
a de destruir toda distinçã o de classe e toda presunçã o de
superioridade baseada em riquezas e em privilégios adquiridos.
Pelo seu amor à liberdade, o calvinista se converteu em lutador
contra aquelas distinçõ es artificiais que colocam alguns homens
acima dos demais.
Politicamente, o calvinismo tem sido a principal fonte do governo
republicano moderno. O calvinismo e o republicanismo estã o
relacionados entre si como causa e efeito; e, onde um povo possui o
primeiro, o segundo prontamente se desenvolverá . O pró prio
Calvino sustentou que a igreja, sob a égide de Deus, era uma
repú blica espiritual; o que demonstra que ele era teoricamente
republicano. Tiago I conhecia muito bem os efeitos do calvinismo,
quando afirmou: “O presbiterianismo e a monarquia sã o tã o afins
como o sã o Deus e o diabo”. E Bancroft fala do “cará ter político do
calvinismo, o qual os monarcas daquela época com unanimidade e
com juízo distintivo consideravam republicanismo”. Outro
historiador norte-americano, John Fiske, escreveu: “Seria difícil
superestimar o que a humanidade deve a Joã o Calvino. O pai
espiritual de Coligny, de Guilherme o Taciturno e de Cromwell deve
ocupar o primeiro lugar entre os chefes de Estado maior da
democracia moderna. A promulgaçã o desta teologia foi um dos
passos mais importantes que a humanidade jamais havia dado rumo
à liberdade individual”. [225] Emilio Castelar, o líder dos espanhó is
liberais, afirmou que “a democracia anglo-saxô nica é o produto de
uma teologia severa aprendida nas cidades da Holanda e da Suíça”.
Buckle, em seu livro History of Civilization , disse: “Em essência, o
calvinismo é democrá tico” (I, 669). E De Tocqueville, um há bil
escrito político, o denomina de “uma religiã o democrá tica e
republicana”. [226]
Tal sistema nã o só inspirou em seus seguidores um espírito de
liberdade, mas também os preparou de modo prá tico para os seus
direitos e deveres como homens livres. Além disso, deu a cada
congregaçã o o direito de eleger os seus pró prios oficiais e de dirigir
os seus pró prios assuntos. Fiske a considera “uma das escolas mais
efetivas que já existiu no treinamento de homens para a
administraçã o de governo autô nomo local”. [227]
A liberdade
espiritual é a fonte e o sustentá culo de todas as outras liberdades;
portanto, nã o nos deve causar surpresa quando somos informados
que os princípios que guiaram esses homens em seus assuntos
eclesiá sticos foram os que também moldaram as suas ideias
políticas. Instintivamente, preferiram um governo representativo e
obstinadamente resistiram a todo governante injusto. Uma vez
derrotado o despotismo religioso, o despotismo civil nã o pode
prevalecer por um tempo.
Poderíamos dizer que a repú blica espiritual fundada por Calvino
repousa sobre quatro princípios bá sicos. Estes têm sido resumidos
por um eminente estadista e jurista inglês, Sir James Stephen, da
seguinte maneira: “Estes princípios foram: Em primeiro lugar, que a
vontade do povo era a ú nica fonte legítima do poder dos
governantes; em segundo lugar, que o poder era delegado pelo povo
aos seus governantes por meio de eleiçõ es, nas quais todo homem
adulto podia exercer o seu direito ao voto; em terceiro lugar, que na
esfera eclesiá stica o clero e o laicato tinham o direito de exercer
autoridade igual e coordenadamente; e, em quarto lugar, que
nenhuma aliança ou dependência mú tua, ou qualquer outra relaçã o
definida, deveria existir entre a igreja e o Estado”. [228]
O princípio da soberania de Deus, quando foi aplicado aos assuntos
do governo, demonstrou ser de grande importâ ncia. Deus, como o
governante supremo, é soberano; e qualquer autoridade que o
homem exerça se deve ao fato de que esta lhe fora conferida por
Deus gratuitamente. As Escrituras, por conter eternos princípios
normativos para todas as idades e para todas as pessoas, foram
tomadas como a autoridade final. As seguintes palavras das
Escrituras declaram que o Estado é uma instituiçã o divinamente
estabelecida: “Todo homem esteja sujeito à s autoridades superiores;
porque nã o há autoridade que nã o proceda de Deus; e as
autoridades que existem foram por ele instituídas. De modo que
aquele que se opõ e à autoridade resiste à ordenaçã o de Deus; e os
que resistem trarã o sobre si mesmos condenaçã o. Porque os
magistrados nã o sã o para temor, quando se faz o bem, e sim quando
se faz o mal. Queres tu nã o temer a autoridade? Faze o bem e terá s
louvor dela, visto que a autoridade é ministro de Deus para o teu
bem. Entretanto, se fizeres o mal, teme; porque nã o é sem motivo
que ela traz a espada; pois é ministro de Deus, vingador, para
castigar o que pratica o mal. É necessá rio que lhe estejais sujeitos,
nã o somente por causa do temor da puniçã o, mas também por dever
da consciência. Por esse motivo, também pagais tributos, porque sã o
ministros de Deus, atendendo, constantemente, a este serviço. Pagai
a todos o que lhes é devido: a quem tributo, tributo; a quem imposto,
imposto; a quem respeito, respeito; a quem honra, honra” (Rm 13.1-
7).
No entanto, cabe dizer que nenhum tipo de governo, seja
democracia ou repú blica ou monarquia, foi considerado como
divinamente estabelecido para uma época ou povo em particular,
ainda que o calvinismo mostrasse uma preferência pelo sistema
republicano. “Qualquer que fosse o sistema de governo”, diz Meeter,
“fosse monarquia ou democracia ou qualquer outra forma, em cada
caso o governante (ou os governantes) teria que atuar como o
representante de Deus, e administrar os assuntos do governo em
conformidade com as leis divinas. Este princípio fundamental
fornece, ao mesmo tempo, o mais elevado incentivo para a
preservaçã o da lei e da ordem entre os cidadã os que, por amor a
Deus, deveriam render obediência aos poderes superiores, sem
importar quais fossem. É daqui que o calvinismo deduz um governo
altamente está vel”. E continua:
No entanto, em contrapartida, o mesmo princípio da soberania
de Deus serviu também como uma poderosa defesa da
liberdade dos cidadã os contra governantes despó ticos.
Quando os governantes nã o faziam caso da vontade de Deus,
menosprezavam os direitos dos governados e se tornavam
abusivos, os cidadã os, em razã o da sua responsabilidade para
com Deus, o supremo soberano, tinham o privilégio e o dever
de recusar obediência, e até mesmo, caso fosse necessá rio,
destituir o déspota através das autoridades menores
estabelecidas por Deus para a proteçã o dos direitos do povo.
[229]

As ideias calvinistas sobre o governo e os governantes foram


habilmente expostas por J. C. Monsma no seguinte pará grafo: “Os
governos sã o instituídos por Deus mediante a instrumentalidade do
povo. Nenhum imperador ou presidente tem em si mesmo o poder
inerente; qualquer poder que possua, a autoridade que exerça, é
poder e autoridade derivados da suprema Fonte divina; portanto, o
que tais governantes possuem, na realidade nã o é poder, e sim a
justiça, e justiça que provém da eterna Fonte de justiça. Daí ser
muito fá cil para o calvinista respeitar as leis e ordenanças do
governo. Se o governo fosse apenas questã o de um grupo de homens
obrigados a satisfazer os desejos de uma maioria popular, o
calvinista, por seu profundo amor pela liberdade, prontamente se
rebelaria. Mas, como sua firme crença é que por detrá s do governo
Deus está , em vez de se rebelar, se prostra diante dele com profunda
reverência. Nesta convicçã o jaz também a razã o fundamental desse
profundo e quase faná tico amor pela liberdade, inclusive pela
liberdade política, que sempre foi o característico do calvinismo
genuíno. Para o calvinista, o governo é servo de Deus e, portanto,
todos os oficiais, como homens , estã o no mesmo plano com os seus
sú ditos; e em nenhum sentido podem se considerar superiores. Por
essa mesma razã o, o calvinista prefere o governo do tipo
republicano. A soberania de Deus, o cará ter derivativo dos poderes
do governo e a igualdade dos homens como tais, nã o encontra
expressã o mais clara e eloquente em nenhuma outra forma de
governo”. [230]
A teologia calvinista exalta um ú nico Soberano e exige que todos os
outros soberanos se prostrem diante da sua majestosa presença.
Portanto, o direito divino dos reis e os decretos infalíveis dos papas
nã o puderam prevalecer entre pessoas que atribuíam soberania
unicamente a Deus. Mas ainda que esta teologia exalte a Deus
infinitamente como o Governante Onipotente do céu e da terra e
demande que todos os homens se prostrem diante dele, nã o
obstante também incrementa a dignidade do indivíduo e ensina que
todos os homens, como tais, sã o iguais. O calvinista, por temer a
Deus, nã o teme a ninguém. E sabendo que ele o escolheu, nos
conselhos eternos, e o destinou para as gló rias celestiais, possui algo
que dissipa a tendência de render favores aos homens, e opaca o
brilho de toda grandeza terrena. Se a orgulhosa aristocracia traça a
sua linhagem através das geraçõ es de antepassados de elevada
estirpe, ainda com maior orgulho, os calvinistas apontam para o
livro da vida que registra a mais nobre concessã o de direitos
decretada desde a eternidade pelo Rei dos reis. Os calvinistas, pela
sua linhagem superior a qualquer linhagem terrena, na realidade
sã o os verdadeiros nobres, os nobres do céu, filhos e sacerdotes de
Deus, co-herdeiros com Cristo, e reis e sacerdotes divinamente
ungidos e consagrados. Infunda-se à mente e ao coraçã o do homem
a verdade da soberania de Deus, e será como se introduzisse ferro
no sangue. A fé reformada se rende a um mui valioso serviço ao
ensinar aos indivíduos os seus direitos.
O arminianismo, pela sua radical tendência aristocrá tica, se
contrasta de maneira impressionante com as tendências
democrá ticas e republicanas inerentes à fé reformada. Nas igrejas
presbiterianas e nas reformadas, o presbítero vota no Presbitério,
ou no Sínodo, ou na Assembleia Geral em completa igualdade com o
seu pastor; nas igrejas arminianas, por sua vez, o poder jaz em
grande medida nas mã os do clero e é bem pouca a autoridade da
parte do laicato. O sistema episcopal faz finca pé no governo
hierá rquico. O arminianismo e o catolicismo romano (que
praticamente é arminiano) vicejam sob um governo moná rquico,
mas o calvinismo acha a sua vida limitada ali. O romanismo, por sua
vez, nã o viceja numa repú blica, mas ali o calvinismo se expande. No
plano civil, o governo eclesiá stico aristocrá tico tende para a
monarquia, enquanto o governo eclesiá stico republicano tende para
a democracia. McFetridge diz que “o arminianismo é desfavorá vel à
liberdade civil, e o calvinismo é desfavorá vel ao despotismo. Os
governantes despó ticos dos tempos antigos puderam dar-se conta
da verdade dessas premissas; e, reclamando o direito divino dos
reis, temiam tanto ao calvinismo quanto ao republicanismo”. [231]
 

9. O calvinismo e a educação
De igual modo, a histó ria testifica da estreita relaçã o que existe
entre o calvinismo e a educaçã o. Onde quer que este tenha
penetrado também se implantou a escola e se deu um enérgico
impulso à educaçã o popular. O calvinismo é um sistema que
demanda maturidade intelectual. De fato, podemos dizer que a sua
pró pria existência está intrinsecamente vinculada à educaçã o do
povo, já que se requer certa preparaçã o intelectual para se conhecer
o sistema e poder delinear tudo o que ele envolve. Este sistema
apela de maneira contundente para a razã o humana e insiste que o
homem deve amar a Deus nã o só de todo o seu coraçã o, mas
também de toda a sua mente. Calvino sustentava que “a verdadeira
fé tem de ser uma fé inteligente”; e a experiência tem demonstrado
que a piedade sem o conhecimento é em grande medida tã o
perigosa quanto o conhecimento sem a piedade. Além do mais,
Calvino viu claramente que a acepçã o e a difusã o do seu sistema
doutrinal dependiam nã o só da preparaçã o dos que haviam de
ensiná -lo, mas também da capacidade intelectual dos que haviam de
abraçá -lo. Calvino culminou a sua obra em Genebra com o
estabelecimento da Academia, onde milhares de alunos da Europa
continental e das Ilhas Britâ nicas se sentaram a seus pés, levando de
volta as doutrinas aprendidas para todos os rincõ es da cristandade.
Knox regressou de Genebra completamente convencido de que a
educaçã o do povo era o baluarte mais poderoso do protestantismo e
o mais só lido fundamento do estado. “O romanismo impõ e o sistema
sacerdotal e o calvinismo impõ e o sistema pedagó gico”, é o dito
antigo, cuja veracidade nã o pode ser negada por nenhuma pessoa
que porventura examine os fatos.
O anelo calvinista pela educaçã o tem inspirado um imenso nú mero
de famílias calvinistas na Escó cia, Inglaterra, Holanda e América do
Norte a se submeter a aperturas econô micas a fim dar a seus filhos
uma só lida educaçã o. A famosa má xima de Carlyle, “considerava
uma verdadeira tragédia que um ser com capacidade intelectual
tenha de morrer na ignorâ ncia”, expressa uma ideia estritamente
calvinista. Onde quer que o calvinismo haja penetrado, o
conhecimento e a instruçã o sejam fomentados, aí se desenvolve
também uma geraçã o viril de pensadores. Os calvinistas nã o sã o
famosos em construir grandes catedrais, pois têm gasto seu tempo e
recursos na construçã o de escolas, colégios e universidades. Quando
os puritanos da Inglaterra, os covenanters da Escó cia e os
reformados da Holanda e Alemanha chegaram à América do Norte,
também trouxeram consigo nã o só a Bíblia e a Confissão de
Westminster , mas também a escola.
As três universidades norte-americanas de maior importâ ncia
histó rica, Harvard, Yale e Princeton, originalmente foram fundadas
por calvinistas, com o fim de dar aos estudantes uma base só lida em
teologia em pé de igualdade com outros ramos do conhecimento.
Harvard, estabelecida em 1636, foi fundada com o propó sito
primordial de servir para o treinamento de ministros evangélicos e
mais da metade das suas primeiras classes graduadas passaram a
exercer o ministério cristã o. Yale, que também é conhecida como “a
mã e das faculdades”, foi por um tempo considerá vel uma instituiçã o
estritamente puritana. E Princeton, fundada pelos presbiterianos
escoceses, também teve um fundamento totalmente calvinista.
Como afirmou Bancroft: “Fazemos alarde das nossas escolas;
Calvino foi o pai da educaçã o pú blica e que deu origem ao sistema de
escolas pú blicas”. [232]
“Onde quer que o calvinismo exerceu
domínio”, continua afirmando, “buscou promover a educaçã o entre
o povo e em cada territó rio plantou a escola”. [233]
Como Smith vê, “o nosso sistema escolar, do qual tanto alardeamos,
deve a sua existência à série de influências que desde a Genebra de
Calvino passaram através da Escó cia e Holanda para a América do
Norte; e durante os primeiros duzentos anos da nossa histó ria quase
todos os colégios e seminá rios e quase todas as academias e escolas
foram construídos e sustentados por calvinistas”. [234]
O Prof. H. H. Meeter, do Calvin College, expressa muito bem a relaçã o
que existe entre o calvinismo e a educaçã o nos dois seguintes
pará grafos:
A ciência e a arte sã o dons da graça comum de Deus e
precisam ser utilizadas e desenvolvidas como tais. A natureza
é obra das suas mã os, a incorporaçã o das suas ideias e, na sua
forma mais pura, o reflexo das suas virtudes. Deus é o
pensamento unificador de toda ciência, já que tudo o que ele
criou outra coisa nã o é senã o o desdobramento do seu plano.
Muito bem, juntamente com essas razõ es teó ricas há razõ es
muito prá ticas devido à s quais o calvinista sempre esteve
intensamente interessado na educaçã o, visto que os calvinistas
têm sido a vanguarda do movimento moderno da educaçã o
universal. Essas razõ es prá ticas têm a ver diretamente com a
fé calvinista. Os romanistas, por exemplo, poderiam prescindir
da educaçã o uma vez que para eles o clero, nã o o laicato, é que
decide os assuntos relacionados com o governo e a doutrina da
igreja. Os seus interesses, portanto, nã o demandam a instruçã o
do povo. No que diz respeito à salvaçã o, tudo de que o laicato
romano necessita é uma fé implícita no que a igreja crê; nã o é
necessá rio que ele forneça explicaçã o inteligente dos
princípios da sua fé. No que respeita ao culto, nã o é o sermã o, e
sim o sacramento, o importante meio de comunicar as bênçã os
da salvaçã o, sendo o sermã o de muito menos importâ ncia. E
este sacramento nã o requer inteligência, já que ele é obra ex
opere operato [que age por si mesmo].
Para o calvinista, o assunto é o oposto disso. O governo da
igreja está nas mã os dos presbíteros, dos leigos, e sã o estes
que tomam as decisõ es, tanto em assuntos do governo da
igreja quanto dos assuntos da sua doutrina. Além disso, o
pró prio laicato tem o solene dever, sem a mediaçã o de uma
ordem sacerdotal, de ocupar-se da sua salvaçã o, e nã o basta
ter uma fé implícita no que a igreja crê. O crente deve ler a
Bíblia e conhecer o seu credo que, por certo, é altamente
intelectual. Cabe dizer que, mesmo para o luterano, a educaçã o
nã o era um assunto de tanta importâ ncia como o era para o
calvinista. E embora o luterano ensinasse que cada indivíduo
tinha que ocupar-se pessoalmente da sua educaçã o, todavia
nos círculos luteranos o laicato foi excluído do ofício do
governo da igreja e também, por consequência, do dever de
tomar decisõ es no tocante a assuntos de doutrina. À luz dessas
consideraçõ es, faz-se evidente por que o calvinista é um tenaz
promotor da educaçã o. Se por um lado Deus tem de ser
proclamado soberano na esfera da ciência, e por outro o
sistema calvinista requer a educaçã o do povo para poder
sobreviver, nã o deve causar-nos surpresa que o calvinista
enfatize tanto o ensino. Para o calvinista a educaçã o é uma
questã o de vida ou morte. [235]
Os elevados padrõ es que tradicionalmente têm caracterizado as
igrejas presbiterianas e as reformadas, no tocante à preparaçã o
ministerial, sã o dignos de destaque. Enquanto muitas outras igrejas
ordenam homens como ministros e missioná rios, e lhes permitem
pregar, mesmo que tenham pouca preparaçã o, as igrejas
presbiterianas e as reformadas, por sua vez, insistem que o
candidato para o ministério seja um estudante graduado de uma
escola de nível universitá rio, e que tenha estudado pelo menos dois
ou três anos sob algum professor aprovado em teologia. Como
resultado, um maior nú mero desses ministros consegue manejar os
assuntos das influentes igrejas urbanas. E ainda que ditas exigências
signifiquem que haja menos ministros, também significam um
ministério mais bem preparado e mais bem pago.
 

10. João Calvino


Joã o Calvino nasceu em 10 de julho de 1509, em Noyon, antiga
cidade francesa, cerca de cento e dez quilô metros a noroeste de
Paris. Seu pai, homem de cará ter um tanto introspectivo e austero,
era o secretá rio apostó lico do bispo de Noyon e amigo íntimo das
melhores famílias da vizinhança. A sua mã e se destacou pela sua
beleza e piedade, porém morreu quando ele era ainda jovem.
Calvino recebeu a melhor educaçã o que a França dessa época podia
oferecer, e estudou sucessivamente nas três principais
universidades desse país, a saber, a de Orleans, a de Bourges e a de
Paris, de 1528 a 1533. O seu pai queria que ele estudasse leis, já que
dita profissã o, em geral, enriquecia e propiciava prestígio aos que a
exerciam. No entanto, nã o sentindo particular vocaçã o para essa
profissã o, o jovem Calvino se dedicou ao estudo da teologia, na qual
encontrou a esfera de trabalho para a qual era idô neo. Ele tem sido
descrito como sendo tímido e retraído, muito estudioso e pontual no
seu trabalho, movido por um estrito senso do dever e extremamente
religioso. Desde a tenra idade, ele demonstrou possuir um intelecto
capaz de argumentar de maneira clara e convincente e de analisar
com ló gica. Pela sua diligência no estudo, ele logrou acumular na sua
mente muita informaçã o valiosa; mas, como consequência, a sua
saú de ia se debilitando paulatinamente. E tanto era o seu progresso
intelectual, que em certas ocasiõ es era solicitado que assumisse o
lugar dos professores, e era considerado pelos demais estudantes
como mestre em vez de aluno. Durante este período da sua vida, era
cató lico romano devoto e de cará ter íntegro. Uma brilhante carreira
como humanista, ou advogado, ou eclesiá stico começava a
despontar-se diante dele, quando de repente se converteu ao
protestantismo e decidiu tomar parte na sorte da pobre e
perseguida seita.
Sem nenhuma intençã o da sua parte, e inclusive contra a sua
vontade, Calvino chegou a ser o líder do partido evangélico em Paris
em menos de um ano apó s a sua conversã o. O seu profundo
conhecimento e o seu fervor ao falar eram tais que era impossível
ouvi-lo sem sentir-se grandemente impressionado. Enquanto
permaneceu na Igreja Romana, ele abrigava a esperança de poder
reformá -la por dentro em vez de apenas por fora. Schaff nos lembra
que “todos os reformadores nasceram, foram batizados,
confirmados e educados na Igreja Romana histó rica, a qual logo os
lançou fora; como sucedeu com os apó stolos, que foram
circuncidados e educados na sinagoga, a qual logo os expulsou”. [236]
O fervor e o zelo do novo reformador nã o tardaram a despertar a
oposiçã o e se fez necessá rio que escapasse para poder salvar a vida.
O historiador da igreja, Philip Schaff, nos informa sobre a fuga de
Calvino de Paris no seguinte pará grafo: “Nicolá s Cop, amigo de
Calvino e filho de um eminente médico da família real (Guilherme
Cop de Basiléia), foi eleito Reitor da Universidade a 10 de outubro
de 1533. Em primeiro de novembro, dia de Todos os Santos, ele
pronunciou o costumeiro discurso inaugural diante de grande
assembléia na igreja dos Maturines. O discurso, a pedido do novo
Reitor, foi escrito por Calvino e consistia num chamado à reforma
com base no Novo Testamento, e era um intrépido ataque aos
teó logos escolá sticos de entã o, os quais foram apresentados como
um grupo de sofistas, desconhecedores do evangelho. A Sorbone e o
Parlamento consideraram este discurso acadêmico como sendo uma
declaraçã o de guerra à Igreja de Roma, e o condenaram à s chamas.
Cop foi posto de sobreaviso e fugiu para Basiléia, onde se
encontravam os seus familiares. (Foram oferecidas 300 coroas pela
sua captura, vivo ou morto.) Diz-se que Calvino, o verdadeiro autor
desse distú rbio, desceu por uma janela, usando uns lençó is, e
escapou de Paris vestido de viticultor com um ancinho nos ombros.
A sua habitaçã o foi inspecionada e os seus livros e papeis
confiscados pela polícia. Entre 10 de novembro de 1534 e 5 de maio
de 1535, vinte e quatro protestantes inocentes foram queimados
vivos em lugares pú blicos da cidade. Muitos outros foram mutilados,
encarcerados e torturados, e um grande nú mero, entre eles Calvino
e Du Tillet, fugiu para Estrasburgo. Pelo espaço de quase três anos,
Calvino perambulou como evangelista errante de um lugar a outro
pela França meridional, Suíça e Itá lia, usando nomes fictícios, até
chegar em Genebra, o seu destino final”. [237]
Pouco tempo depois, ou talvez antes disso, que a primeira ediçã o
das suas Institutas aparecera, em março de 1536, Calvino e Luis Du
Tillet cruzaram os Alpes rumo à Itá lia, onde o renascimento artístico
e literá rio teve a sua origem. Ali, ele trabalhou como evangelista até
que a Inquisiçã o começou a sua obra de rechaçar o Renascimento e a
Reforma, a qual os considera como duas serpentes gêmeas. Dali ele
seguiu o seu caminho, provavelmente através de Asota e o Grande
Sã o Bernardo, para a Suíça. De Basiléia ele se dirigiu para o seu
povoado nativo de Noyon, pela ú ltima vez, com o fim de acertar
alguns assuntos de família. A seguir, com o seu irmã o menor,
Antô nio, e a sua irmã , Maria, ele partiu da França para sempre com a
esperança de se estabelecer em Basiléia ou Estrasburgo e assim
viver tranquilamente como estudioso e escritor. No entanto, devido
ao estado de guerra que existia entre Carlos V e Francisco I, a rota
direta por Lorena se encontrava bloqueada, pelo que teve de
desviar-se por Genebra.
Ele pensava pernoitar em Genebra apenas uma noite, mas a
Providência decretara que nã o seria assim. Farel, o reformador
genebrino, ao inteirar-se da sua estadia na cidade, instintivamente
sentiu que Calvino era o homem que haveria de completar e salvar a
Reformar de Genebra. Schaff nos fornece uma excelente descriçã o
do encontro entre Calvino e Farel. Entã o escreve: “Imediatamente,
Farel visitou Calvino e o deteve, como por mandado divino. Calvino
objetou, apresentando como justificativa a sua juventude, a sua
inexperiência, a sua necessidade de mais estudo e a sua
característica tímida, o que ele entendia incapacitá -lo para exercer
um cargo pú blico. Mas todas essas justificativas foram em vã o, já
que Farel, ‘que ardia com um extraordiná rio zelo por promover o
evangelho’, o ameaçou com a maldiçã o do Deus Onipotente se
insistisse em dar mais importâ ncia aos seus estudos do que à causa
de Cristo. Calvino sentiu medo e foi movido pelas palavras do
intrépido evangelista, e sentiu ‘como se do alto Deus lhe estendesse
sua mã o’. Entã o ele cedeu e aceitou o chamado para o ministério,
como mestre e pastor da igreja evangélica de Genebra”.
Calvino era vinte e cinco anos mais novo que Lutero e Zuínglio, e
tinha a grande vantagem de poder edificar sobre o fundamento que
estes já haviam posto. Os primeiros dez anos da carreira pú blica de
Calvino coincidiram com os ú ltimos dez anos de Lutero, mas nunca
chegaram a se conhecer pessoalmente. No entanto, Calvino foi amigo
íntimo de Melanchton e manteve contato com este por
correspondência até a morte deste ú ltimo.
Na época em que Calvino apareceu em pú blico, ainda nã o havia
determinado se Lutero seria o heró i de uma bem sucedida empresa
ou a vítima de um grande fracasso. Lutero havia produzido novas
ideias; a Calvino coube elaborá -las em um sistema, preservar e
desenvolver o que aquele tã o nobremente havia começado. O
movimento protestante carecia de unidade e corria o risco de
afundar-se nas areias movediças das disputas doutrinais, porém
escapou a este destino principalmente pelo novo impulso que lhe
deu o reformador genebrino. A Igreja Romana operava como uma
poderosa entidade e buscava destruir, por meios lícitos ou ilícitos,
os diferentes grupos protestantes que haviam surgido no norte.
Zuinglio se prevenira desse perigo tratando de unir os protestantes
contra a sua inimiga comum. Em Marburgo, depois de sú plicas e
lá grimas em seus olhos, Zuínglio estendeu a mã o de fraternidade a
Lutero, a despeito das suas diferenças no tocante ao modo da
presença de Cristo na Ceia do Senhor; Lutero, porém, restringido
por uma consciência estreita e dogmá tica, a rejeitou. Calvino
também, trabalhando na Suíça, com muitas oportunidades de levar a
bom efeito a uniã o da igreja italiana, percebeu a necessidade de
manter o protestantismo unido e lutou por consegui-lo. Ele escreveu
a Cranmer, na Inglaterra: “Anelo ver uma santa uniã o entre os
membros de Cristo. No que a mim concerne, se puder servir a esta
causa, com prazer cruzaria dez mares a fim de concretizar esta
unidade”. A sua influência, através dos seus livros, cartas e
estudantes, foi sentida poderosamente em vá rias países, e a
afirmaçã o de que foi ele quem salvou o movimento protestante da
destruiçã o nã o parece exagerada.
Pelo espaço de trinta anos, o principal interesse que cativou Calvino
foi o de promover a Reforma. Reed afirma: “Ele se esforçou por
alcançá -lo ao má ximo das suas forças, lutou por isso com aquela
coragem que jamais se descaiu, sofreu por isso com aquela coragem
que jamais vacilou e se mostrou disposto, em todo momento, a
morrer por isso; e podemos dizer que, literalmente, ele derramou
cada gota da sua vida por isso, sem qualquer vacilaçã o e com toda a
abnegaçã o. Em vã o se buscará na histó ria um homem que se
sacrificou por um propó sito definido com a má xima persistência e
com a má xima abnegaçã o do que Calvino pela Reforma do século
XVI”. [238]  
É bem prová vel que nenhum servo de Cristo, desde os dias dos
apó stolos, foi ao mesmo tempo tã o amado e tã o odiado; tã o
admirado e tã o aborrecido; tã o elogiado e tã o culpado; tã o
abençoado e tã o amaldiçoado como o foi o fiel, valoroso e imortal
Calvino. Vivendo numa época de turbulenta polêmica e sendo a
sentinela do movimento de reforma na Europa Ocidental, ele foi
observado por todos e esteve sob a mira dos ataques de todas as
partes. As paixõ es religiosas e sectá rias sã o as mais profundas e
intensas, e diante do bem e do mal que bem sabemos existir na
natureza humana neste mundo, nã o deve causar-nos surpresa que
os ensinamentos e escritos de Calvino fossem recebidos da maneira
como o foram.
Quando Calvino tinha apenas 26 anos de idade, ele publicou em
latim a sua Instituição da religião cristã . A primeira ediçã o consistiu
de um breve compêndio de todos os elementos essenciais do seu
sistema; e, considerando a idade do autor, isso foi um verdadeiro
prodígio de precocidade intelectual. Mas ela foi ampliada cinco
vezes o tamanho original e publicada em francês, porém sem mudar
radicalmente nenhuma das doutrinas apresentadas na primeira
ediçã o. Quase imediatamente, as Institutas chegaram a ocupar o
primeiro lugar como sendo a melhor apresentaçã o e defesa da causa
protestante. Outros escritos trataram de certas fases do movimento,
porém aqui estava um que o apresentava como uma unidade. No
dizer de Reed, “Nã o é fá cil superestimar o valor desta atribuiçã o à
Reforma”. Tanto protestantes quanto romanistas testificaram do seu
valor. Os protestantes o consideraram a maior de todas as bênçã os;
os romanistas o difamaram com a má xima crueldade e maldiçõ es.
Por ordem da Sorbone, em Paris e em outros lugares, e por toda
parte encontrou os mais violentos ataques verbais e por meio de
escritos. Florimond de Raemond, teó logo cató lico-romano, o
denomina de “o Corã o, o Talmude da heresia, a principal causa da
nossa ruína”. Kampachulte, outro cató lico-romano, testifica que
“este foi o arsenal donde todos os inimigos da Antiga Igreja
granjearam as suas mais ferinas armas”, e que “nenhuma obra
escrita durante a época da Reforma foi mais temida pelos cató licos
romanos, e mais ardentemente combatida, e perseguida com o mais
profundo ó dio, do que o foram as Institutas de Calvino”. Além do
mais, é possível ver a sua popularidade no fato de que reiteradas
ediçõ es foram produzidas em rá pida sucessã o; elas foram
traduzidas em quase todos os idiomas da Europa ocidental; e
chegaram a ser o livro-texto das escolas das Igrejas Reformadas e
forneceram o material do qual foram formados os seus credos”. [239]
“De todos os serviços que Calvino prestou à humanidade”, segundo
afirma o Dr. Warfield — “nem foram poucos e insignificantes —, o
maior deles foi, sem a menor dú vida, de dar à humanidade este
sistema de pensamento religioso, ao qual comunicou nova vida
mediante a força de seu gênio”. [240]
As Institutas foram recebidas imediatamente pelos protestantes com
efusivos elogios e como sendo a mais clara, só lida, ló gica e
convincente defesa das doutrinas cristã s desde os dias dos
apó stolos. Schaff as descreve muito bem afirmando que nelas
“Calvino apresentou uma exposiçã o sistemá tica da religiã o cristã em
geral e uma defesa da fé evangélica em particular, com o fim
apologético e prá tico de defender os protestantes da calú nia e
perseguiçã o à qual estavam expostos, especialmente na França”. [241]
A obra está saturada de uma intensa convicçã o e de uma intrépida e
rigorosa argumentaçã o, subordinando a razã o e a tradiçã o à
autoridade suprema das Escrituras. Elas foram reconhecidas como o
mais importante livro do século e através das quais os princípios do
calvinismo foram propostos extensamente. Albrecht Ritschl as
denomina de “a obra mestra da teologia protestante”. O Dr. Warfield
nos afirma que “apó s três séculos e meio, elas ainda mantinham a
sua inquestioná vel preeminência como o mais importante e
influente de todos os tratados dogmá ticos”. E, outra vez, ele afirma:
“Mesmo da perspectiva meramente literá ria, elas ocupam uma
posiçã o tã o elevada em sua classe, que todo aquele que porventura
presuma conhecer os melhores livros que existem no mundo se vê
obrigado a familiarizar-se também com este livro. O que Tucídides é
entre os gregos, ou Gibbon entre os historiadores ingleses do século
dezoito; o que Platã o é entre os filó sofos; o que a Ilíada é entre as
épicas ou Shakespeare entre os dramaturgos, isso é o que as
Institutas de Calvino sã o entre as obras teoló gicas”. [242] As Institutas
produziram grande consternaçã o na Igreja Romana e foi uma
poderosa força unificadora entre os protestantes. Elas
demonstraram que Calvino era o mais há bil apologeta do
protestantismo e o mais temível antagonista com quem os
romanistas tinham que enfrentar. Na Inglaterra, as Institutas
desfrutaram de uma popularidade quase sem paralelo, e foram
usadas como livro texto nas universidades. Em curto tempo, elas
foram traduzidas para nove idiomas europeus; e simplesmente se
deve a uma grave deficiência na maioria dos relatos histó ricos que a
sua importâ ncia nã o tenha sido apreciada nos anos recentes.
Apenas umas poucas semanas depois da publicaçã o das Institutas ,
Bucer, o terceiro em importâ ncia entre os reformadores alemã es,
escreveu a Calvino: “É evidente que o Senhor o elegeu como o seu
ó rgã o para conferir as mais ricas bênçã os à sua igreja”. Lutero nunca
escreveu uma teologia sistemá tica. Muito embora os seus escritos
fossem volumosos, versavam sobre diversos temas e muitos deles
tratavam dos problemas da sua época. Portanto, foi a Calvino que
coube a tarefa de apresentar sistematicamente a fé evangélica.
Calvino era antes de tudo um teó logo. Ele e Agostinho sã o, sem a
menor dú vida, os principais intérpretes sistemá ticos do sistema
cristã o desde os dias de Sã o Paulo. Melanchton, que foi o príncipe
entre os teó logos luteranos, e que apó s a morte de Lutero foi
reconhecido como o “Mestre da Alemanha”, considerava Calvino
como “o teó logo” por excelência.
Se a linguagem das Institutas à s vezes nos parece um tanto á spera,
devemos ter em mente que esta era a característica e debilidade da
controvérsia teoló gica da época. O período em que Calvino viveu foi
polêmico. Os protestantes viviam envolvidos numa luta de vida ou
morte com Roma, e as provocaçõ es que induziam à impaciência
foram muitas e sérias. O pró prio Lutero chegou a extremos mais
graves que Calvino no uso de linguagem á spera, como se poderá
notar no exame da sua obra The Bondage of the Will [A escravidã o
da vontade], um escrito polêmico sobre o livre-arbítrio e contra as
ideias de Erasmo. Além disso, nenhum dos escritos protestantes foi
tã o á spero e abusivo como o foram os decretos de excomunhã o,
aná temas, entre outros, da Igreja Cató lica Romana, dirigidos contra
os protestantes.
Além das Institutas , Calvino escreveu comentá rios de quase todos
os livros do Antigo e do Novo Testamento. Esses comentá rios
traduzidos para o inglês compõ em cinquenta e cinco volumes de
tamanho considerá vel, e junto aos seus demais escritos constituem
uma obra extraordiná ria. A qualidade desses escritos é tal que logo
chegaram a ocupar o primeiro lugar entre as obras exegéticas das
Escrituras; e dentre todos os antigos comentá rios nenhum é citado
com maior frequência pelos eruditos modernos do que os de
Calvino. Sem a menor dú vida, Calvino foi o mais importante dos
exegetas do período da Reforma. Assim como Lutero foi o príncipe
dos tradutores, Calvino foi o príncipe dos comentaristas.
A fim de se poder apreciar o verdadeiro valor dos comentá rios de
Calvino, é preciso ter em mente que estes se basearam em princípios
exegéticos pouco comuns em sua época. Disse R. C. Reed: “Ele foi o
precursor em abandonar o antigo costume de alegorizar as
Escrituras. Dito costume foi praticado desde os primeiros séculos do
cristianismo e tal prá tica foi sancionada pelos mais importantes
personagens da igreja, desde Orígenes até Lutero — prá tica que
converteu a Bíblia em objeto de interpretaçã o arbitrá ria, e que exige
como principal requisito do exegeta apenas uma interpretaçã o
imaginativa”. [243] Calvino, por sua vez, se ateve estritamente ao
espírito e letra do autor e assumiu que o escritor tinha um
pensamento definido expresso em linguagem comum e corrente.
Com toda franqueza, ele pô s a descoberto as doutrinas e prá ticas
corruptas da Igreja Cató lica Romana. Os seus escritos inspiraram os
amigos da Reforma e os muniu com as suas mais mortíferas
muniçõ es. Dificilmente poderemos superestimar a influência que
Calvino exerceu ao promover e salvaguardar a Reforma.
Calvino foi um erudito no conhecimento patrístico e escolá stico.
Uma vez educado nas principais universidades do seu tempo, ele
possuía pleno conhecimento do latim e do francês, bem como um
bom conhecimento do grego e hebraico. Os seus principais
comentá rios apareceram em versõ es francesas e latinas, e sã o obras
de grande integridade, eminentemente imparciais e honestas, que
demonstram o equilíbrio e a moderaçã o singulares do autor. Além
do mais, as obras de Calvino deram forma e permanência ao entã o
instá vel idioma francês, assim como de maneira semelhante sucedeu
ao idioma alemã o em virtude da traduçã o da Bíblia feita por Lutero.
Outro testemunho que nã o devemos omitir é o de Armínio, aquele
que deu origem ao sistema oposto [arminianismo]. Sem qualquer
sombra de dú vida, temos aqui o testemunho de uma fonte imparcial.
Armínio afirmou: “Depois do estudo das Escrituras, exorto aos meus
alunos que esquadrinhem os comentá rios de Calvino, a quem elogio
de uma forma mais elevada que o pró prio Helmick (este foi um
teó logo holandês); porque testifico que nã o há quem o supere na
interpretaçã o da Escritura, e os seus comentá rios devem ser
apreciados mais altamente que tudo o que temos recebido dos pais
da igreja; de maneira que considero que ele possui em maior grau
que quase todos os outros, o que se poderia chamar um elevado
dom de profecia”. [244]  
A influência de Calvino chegou a estender-se ainda mais em razã o da
volumosa correspondência que manteve com líderes da igreja, com
príncipes e com nobres, por toda a cristandade protestante. Mais de
trezentas dessas cartas ainda estã o preservadas, e em geral nã o sã o
breves intercâ mbios afetuosos, e sim longos tratados e
minuciosamente escritos expondo de maneira magistral as suas
ideias sobre intrincados assuntos eclesiá sticos e teoló gicos. A sua
influência como guia da Reforma, por toda a Europa, através das
suas cartas, foi verdadeiramente profunda.
Devido à tentativa de Calvino e Farel de impor um sistema de
disciplina demasiadamente estreito em Genebra, eles tiveram que
abandonar temporariamente a cidade. Isto sucedeu dois anos depois
que Calvino chegou ali. Entã o, este foi para Estrasburgo, a sudoeste
da Alemanha, onde foi calorosamente recebido por Bucer e os
demais líderes da Reforma alemã . Na Alemanha, ele passou os três
anos seguintes em trabalhos tranquilos e benéficos como professor,
pastor e escritor, e teve a oportunidade de se familiarizar
pessoalmente com o luteranismo. Uma vez ali, ele recebeu grande
apreciaçã o da parte dos líderes luteranos e uma estreita uniã o com a
Igreja Luterana, ainda que se sentisse desfavoravelmente
impressionado pela falta de disciplina e pela dependência que o
clero tinha dos governantes seculares. Mais tarde demonstrou
sincero interesse pelo bom progresso da Reforma na Alemanha
como o provam a sua correspondência e os seus vá rios escritos.
Durante a sua ausência de Genebra, os acontecimentos chegaram a
tal ponto que era como se os frutos da Reforma ali se perdessem, e
por isso foi solicitado a regressar urgentemente. Depois de ser
instado reiteradas vezes, por vá rias fontes, acedeu e empreendeu o
seu trabalho onde chegara anteriormente.
A cidade de Genebra, situada à s margens do lago que levava o
mesmo nome, foi o lar de Calvino. Ali, entre os Alpes coroados de
neve, ele passou a maior parte da sua vida adulta, e dali a Igreja
Reformada se espalhou pela Europa e América do Norte. Nos
assuntos da igreja, assim como nos do estado, a pequena Suíça
exerceu uma influência que, em proporçã o ao seu tamanho, nã o teve
comparaçã o.
A influência de Calvino em Genebra nos mostra de maneira clara o
poder transformador do seu sistema. O eminente historiador da
igreja, Philip Schaff, afirma que “eram pessoas joviais, alegres,
afeiçoadas aos entretenimentos pú blicos, ao baile, ao canto, à s
má scaras e à folgança. Eram ricas em imprudência, jogo,
embriaguez, adultério, blasfêmia e toda classe de vícios. A
prostituiçã o era aprovada pelo Estado e era presidida por uma
mulher conhecida como a rainha do bordel . O povo era ignorante. Os
sacerdotes nã o se preocupavam em instruí-lo, dando-lhes eles
mesmos todo tipo de mal exemplo”. De um estudo da histó ria
contemporâ nea, descobrimos que pouco antes de Calvino chegar a
Genebra os monges e inclusive os bispos eram culpados de crimes
que hoje seriam castigados com a pena de morte. O resultado do
esforço de Calvino em Genebra foi tal que a cidade adquiriu mais
fama pela vida sossegada e ordenada dos cidadã os do que
anteriormente tivera em razã o da sua maldade. John Knox, como
muitos outros milhares de admiradores que chegaram para
assentar-se aos pés de Calvino como estudantes, encontrou ali o que
ele denominou de “a mais perfeita escola de Cristo que jamais
existiu sobre a face da terra desde os dias dos apó stolos”.
Devido ao esforço de Calvino, Genebra se converteu num lugar de
refú gio para os perseguidos e numa escola prá tica da fé reformada.
Refugiados de todos os países da Europa que fugiram para aquela
cidade, voltando mais tarde para os seus respectivos países, levaram
consigo os princípios da Reforma ensinados ali com toda clareza.
Genebra foi um centro do qual emanou o poder espiritual e as forças
educativas que serviram para guiar e moldar a Reforma nos países
adjacentes. Diz Bancroft: “Mais disposto a fazer o bem à raça
humana do que Salomã o, e mais abnegado do que o pró prio Licurgo,
o gênio de Calvino infundiu elementos perdurá veis à s instituiçõ es de
Genebra e a converteu, para o mundo moderno, na fortaleza
invencível de liberdade popular, em fértil sementeira da
democracia”. [245]
Temos outro testemunho da efetividade das influências que
emanaram de Genebra numa das cartas do cató lico-romano
Francisco de Sales ao duque de Saboya, instando a que se pusesse
fim à s atividades de Genebra como centro do que a Igreja Romana
denomina de heresia . Ele afirma: “Todos os hereges respeitam
Genebra como o asilo da sua religiã o. Nã o há cidade, na Europa, que
forneça maiores incentivos à propagaçã o da heresia, já que ela é a
porta para a França, Itá lia e a Alemanha, e ali se podem achar
pessoas de todas as naçõ es — italianos, franceses, alemã es, polacos,
espanhó is, ingleses e de países ainda mais remotos. Além do mais,
todos nó s temos conhecimento do grande nú mero de ministros
treinados ali. O ano passado enviou vinte à França. E até na
Inglaterra há ministros de Genebra. E que direi das suas magníficas
imprensas, por meio das quais o mundo é inundado com os seus
livros iníquos, chegando ao extremo de distribuí-los à custa pú blica.
Todas as empresas levadas a bom termo contra a Santa Sé e contra
os príncipes cató licos têm a sua origem em Genebra. Nã o há cidade
na Europa que hospede mais apó statas de toda classe, tanto
seculares quanto religiosos. Portanto, concluo que a destruiçã o de
Genebra naturalmente traria como resultado a dispersã o da
heresia”. [246]
Outro testemunho vem de outro dos mais acerbos inimigos do
protestantismo, Felipe II de Espanha. Ele escreveu ao rei da França:
“Esta cidade é a fonte de toda classe de mal para a França, e é a mais
temível inimiga de Roma. Estou disposto em qualquer momento a
cooperar com todo o poder do meu reino a fim de destruí-la. E
quando se esperava que o duque de Alba passasse perto de Genebra
com o seu exército, o papa Pio V solicitou dele que se dirigisse a ela e
“destruísse esse ninho de diabos e apó statas”. Em 1558, a famosa
academia de Genebra abriu as suas portas. Lado a lado com Calvino,
havia ali dez há beis e versados professores que ensinavam
gramá tica, ló gica, matemá tica, física, mú sica e línguas antigas. O
êxito que logrou foi extraordiná rio. Durante o seu primeiro ano se
registraram mais de novecentos estudantes, principalmente
refugiados dos distintos países europeus; e quase igual nú mero
assistiu à s conferências teoló gicas ministradas por Calvino com o
fim de se prepararem para servir como evangelistas e mestres nos
seus respectivos países e estabelecer igrejas conforme o modelo que
viram ali. A academia de Genebra permaneceu como a principal
escola de teologia reformada e de cultura literá ria por mais de
duzentos anos.
Calvino foi o primeiro dos reformadores a exigir total separaçã o da
igreja e o estado, promovendo assim outro princípio que tem sido de
incalculá vel valor. A reforma alemã foi decidida pela vontade dos
príncipes; a reforma da suíça, pela vontade do povo; ainda que em
cada caso houvesse certa simpatia entre os governantes e a maioria
da populaçã o. Nã o obstante, os reformadores suíços, enquanto
viviam na repú blica de Genebra, desenvolveram uma igreja livre no
seio de um estado livre, enquanto Lutero e Melanchton, em razã o da
veneraçã o à s instituiçõ es moná rquicas e ao império alemã o,
inculcaram a obediência passiva na política e puseram a igreja em
servidã o à autoridade civil.
Calvino morreu no ano de 1564 com 55 anos de idade. Beza, seu
amigo íntimo e sucessor, disse que a sua morte chegou tã o
serenamente como o sono, e adiciona: “Assim ele partiu para o céu,
ao tempo em que o sol poente, aquele brilhante luminar, era a
lâ mpada da igreja. Durante a noite e ao dia seguinte houve um
intenso pesar e lamento em toda a cidade; a Repú blica perdia o seu
mais sá bio cidadã o; a igreja, o seu fiel pastor; e a academia, um
mestre incompará vel”.
Em um livro comparavelmente recente, o Prof. Harkness escreveu:
“Calvino viveu e morreu em pobreza. A sua casa era escassamente
mobiliada e a sua maneira de vestir-se era muito modesta. Ele doou
generosamente aos necessitados e gastou pouco consigo mesmo. Em
certa ocasiã o, o Conselho lhe presenteou com um abrigo como
expressã o de estima e como proteçã o contra o frio do inverno.
Calvino aceitou essa deferência com palavras de agradecimento; em
outras ocasiõ es, porém, recusou ajuda financeira e cortesmente
repeliu tudo o que nã o fosse estritamente o seu modesto salá rio.
Durante a sua ú ltima enfermidade, o Conselho quis pagar as suas
despesas médicas, mas ele nã o quis aceitar tal regalia, dizendo que
sentia escrú pulos ante o recebimento até mesmo do seu salá rio
regular quando se achava incapacitado de trabalhar. Ainda que os
seus bens materiais fossem poucos quando morreu, a herança
espiritual que deixou é de valor incalculá vel”. [247] Schaff descreve
Calvino como “uma dessas pessoas que infundem respeito e
admiraçã o mais que afeto, e com as quais nã o é fá cil manter um
relacionamento familiar, mas que faz bem conhecê-las mais
intimamente. Quanto mais as conhecemos, mais as admiramos e
estimamos”. Schaff fala da sua morte nestes termos: “Calvino
proibira expressamente toda e qualquer pompa em seu funeral e o
erguimento de qualquer monumento em seu tú mulo. Seu desejo era
ser sepultado, como Moisés, fora do alcance da idolatria. Isso era
consistente com a sua teologia, a qual humilha ao homem e exalta a
Deus”. [248] Inclusive se desconhece o lugar do seu tú mulo no
cemitério de Genebra. Exibe-se aos visitantes uma simples lá pide
com as iniciais J. C. como sendo o local onde jazem os seus restos
mortais, muito embora nã o haja absoluta certeza que esse seja o
local. Ele mesmo rogou que nã o se erigisse monumento no lugar da
sua sepultura. S. L. Morris disse que o verdadeiro monumento de
Calvino é, nã o obstante, “cada governo republicano no mundo, o
sistema de escolas pú blicas de cada naçã o e ‘as igrejas reformadas
pelo mundo fora que mantêm o sistema representativo’”.
Harkness, muito embora nem sempre um escritor favorá vel,
escreveu o seguinte: “Aqueles que veem em Calvino somente uma
severidade impassível nã o notam a doçura quase feminina que
demonstrava em muitos dos seus relacionamentos com os seus
paroquianos. Ele se solidarizava com estes em seus pesares e se
regozijava com eles em suas alegrias. Algumas das suas cartas
à queles que haviam sofrido perdas em seus lares sã o obras mestras
de terna simpatia. Quando se celebrava uma boda ou nascia uma
criança, ele exibia o seu afetuoso interesse pessoal em meio ao
evento. Nã o era coisa rara vê-lo deter-se na rua mesmo diante das
suas muitas obrigaçõ es a dar uma amistosa palmada e uma palavra
de estímulo a alguma criança escolar. Os seus inimigos poderã o
denominá -lo de papa ou rei ou califa; no entanto, os seus amigos o
estimavam como irmã o e amado líder”. [249] Numa das suas cartas a
um amigo, ele escreveu: “Logo irei visitar-te e entã o poderemos
passar um bom momento juntos”.
Agora temos de considerar um acontecimento na vida de Calvino
que até certo ponto eclipsou a sua boa reputaçã o e o expô s a
acusaçõ es de intolerâ ncia e perseguiçã o. Referimo-nos à morte de
Serveto ocorrida em Genebra durante o período em que Calvino
trabalhava ali. Que este é um erro, todos o admitem. A histó ria só
reconhece um ser intocá vel — o Salvador dos pecadores. Todos os
demais demonstram defeitos [humanos] que inibem a idolatria. 
Nã o obstante, tem-se com frequência criticado Calvino com
excessiva severidade como se a responsabilidade repousasse tã o
somente sobre ele, quando, na verdade, o caso é que contra Serveto
se celebrou um juízo que durou mais de dois meses; e, além disso,
ele foi sentenciado por uma seçã o inteira do Conselho civil, e isso de
acordo com as leis que eram entã o reconhecidas por toda a
cristandade. Longe de instar que a sentença fosse mais severa,
Calvino instou, sim, que a morte nã o fosse por fogo, e sim por
espada; todavia, a sua petiçã o foi negada. A Calvino e aos homens da
sua época nã o se deve julgar estrita e unicamente pelas altas normas
do nosso século vinte, senã o que devem ser julgados à luz do seu
pró prio século — o século dezesseis. Já vimos os grandes
desenvolvimentos em muitas á reas: mais tolerâ ncia civil e religiosa;
reformas penais; a aboliçã o nã o só da escravidã o, mas também do
trá fico de escravos, do feudalismo, da queima de bruxas, melhoria
nas condiçõ es dos pobres, entre outros benefícios, ainda que
tardiamente, contudo sã o os resultados genuínos dos ensinamentos
cristã os. O erro dos que respaldaram e praticaram o que hoje
deveria ser considerado intolerâ ncia foi o erro geral da época.
Portanto, nã o deveríamos, se quisermos julgar com imparcialidade,
permitir que tais erros nos deixem a impressã o desfavorá vel quanto
ao cará ter e aos motivos daqueles homens, e muito menos que tais
erros nos prejudiquem contra as suas doutrinas sobre outros e mais
importantes temas.
Os protestantes tinham acabado de desfazer-se do jugo de Roma, e
em sua luta por defender-se muitas vezes se viram obrigados a
combater a intolerâ ncia com intolerâ ncia. Ao longo dos séculos
dezesseis e dezessete, a opiniã o pú blica, em todos os países
europeus, justificava o direito e o dever dos governos civis de
proteger e respaldar a ortodoxia e castigar a heresia, sustentando
que todo herege obstinado e blasfemo era digno de ser silenciado
com a morte, se fosse necessá rio. Os protestantes se diferenciavam
dos romanistas basicamente em sua definiçã o do que constituía
heresia e por exercer maior moderaçã o no castigo dos hereges. A
heresia era considerada como um pecado contra a sociedade, e em
alguns casos era tida como sendo algo pior que o homicídio, já que
este só destró i o corpo, enquanto aquela destró i a alma. Hoje nos
movemos rumo a outro extremo e a opiniã o pú blica manifesta uma
indiferença mó rbida para com a verdade ou o erro. Durante o século
dezoito, a intolerâ ncia foi gradualmente solapada. Inglaterra e
Holanda, países protestantes, foram as primeiras a conceder
liberdade religiosa e civil, e a Constituiçã o dos Estados Unidos da
América do Norte deu o toque final à teoria ao pô r todas as
denominaçõ es cristã s em pé de igualdade diante da lei, garantindo-
lhes o pleno desfruto dos seus direitos.
O procedimento de Calvino no caso de Serveto foi plenamente
aprovado por todos os príncipes reformadores da época.
Melanchton, o líder teoló gico da Igreja Luterana, justificou absoluta
e reiteradamente o procedimento de Calvino e do Conselho de
Genebra, e inclusive o assinalou como exemplo a ser imitado. Quase
um ano depois da morte de Serveto, ele escreveu a Calvino: “Li o seu
livro, no qual você refutou com clareza as horrendas blasfêmias de
Serveto. A igreja atual e a das geraçõ es futuras devem sentir-se
agradecidas a você. Estou perfeitamente de acordo com a sua
opiniã o. Também mantenho que os magistrados procederam
corretamente ao castigar esse blasfemo, depois de haver memorá vel
julgamento”. Bucer, o terceiro em importâ ncia entre os
reformadores alemã es, Bullinger, o amigo íntimo e digno sucessor
de Zuínglio, da mesma forma que Farel e Beza na Suíça, respaldaram
Calvino. Nesse tempo, Lutero e Zuínglio já haviam morrido; e,
portanto, pode-se questionar se eles teriam ou nã o aprovado aquela
execuçã o, muito embora, em certa ocasiã o, Lutero e os teó logos de
Wittenberg aprovaram sentenças de morte contra alguns
anabatistas alemã es, aos quais consideravam hereges perigosos —
acrescentando que, se era cruel castigá -los dessa forma, muito mais
cruel seria permitir que difamassem do ministério da Palavra e,
assim, expor o mundo à destruiçã o; e da mesma forma Zuínglio, em
certa ocasiã o, nã o fez objeçã o à sentença de morte contra um grupo
de seis anabatistas suíços. A opiniã o pú blica no tocante à execuçã o
de Serveto sofreu uma grande reversã o, e embora tal execuçã o fosse
aprovada pelos melhores homens do século dezesseis, nã o se
harmoniza com as ideias do século vinte.
Como foi dito previamente, a Igreja Cató lica Romana, durante esse
mesmo período, foi desesperadamente intolerante para com os
protestantes; e estes, até certo grau e em defesa pró pria, se viram
forçados a seguir o exemplo dessa igreja. Philip Schaff afirma o
seguinte com respeito à s perseguiçõ es romanas: “Basta-nos apenas
mencionar as cruzadas contra os albigenses e valdenses,
sancionadas por Inocêncio III, considerado um dos papas mais
importantes e enérgicos; as torturas da Inquisiçã o espanhola,
celebradas com festas religiosas; e cinquenta mil ou mais
protestantes executados durante o reinado do duque de Alba na
Holanda (1567-1573); as centenas de má rtires queimados em
Smithfield sob o reinado de Maria a Sanguiná ria; e as reiteradas
perseguiçõ es em massa contra os inocentes valdenses na França e
em Piamonte, os quais clamavam ao céu por justiça. É inú til lançar a
culpa desses acontecimentos no governo civil. O papa Gregó rio XIII
comemorou o massacre de Sã o Bartolomeu nã o só com câ nticos de
açã o de graças nas igrejas de Roma, mas de maneira ainda mais
deliberada e permanente, por meio de uma medalha representando
‘A matança dos huguenotes’ por um anjo irado”. [250]
Da mesma forma, o Dr. Schaff escreve: “A Igreja Romana perdeu o
poder e, em grande medida, a disposiçã o de perseguir pelo fogo e
pela espada. Alguns dos seus mais elevados dignitá rios repudiam o
princípio da perseguiçã o, especialmente na América do Norte onde
desfrutam de todos os benefícios da liberdade religiosa; contudo, a
cú ria romana nunca rejeitou oficialmente a teoria sobre a qual está
baseada a prá tica da perseguiçã o. Ao contrá rio, vá rios papas, desde
a Reforma, o têm aprovado. Por exemplo, o papa Pio IX, no Sílabus
de 1864, condenou expressamente como um dos erros desta época a
doutrina da tolerâ ncia e da liberdade religiosa. Esse papa foi
declarado pelo Vaticano infalível no decreto de 1870, o qual inclui
todos os seus predecessores (a despeito do embaraçoso caso do
Papa Honó rio I) e todos os seus sucessores na cadeira de Sã o Pedro”.
[251]
E em outra parte ele acrescenta: “Se os romanistas condenaram
Calvino, isso se deve ao fato de o odiarem, e o condenaram por
seguir o exemplo que eles mesmos deram neste caso particular”.
Serveto era espanhol e se opô s ao cristianismo, tanto em sua forma
cató lico-romana quanto em sua forma protestante. Schaff o qualifica
de “um desassossegado faná tico, um pseudo-reformador panteísta, o
herege mais ousado e blasfemo do século dezesseis”. [252] Em outra
parte, Schaff declara que Serveto era “orgulhoso, insolente,
intrigante, vingativo, irreverente no uso da linguagem, enganador e
mentiroso”; e acrescenta que este abusou do papismo e dos
reformadores com a mesma linguagem imoderada. [253] Bullinger
declara que, se o pró prio Sataná s saísse do inferno, nã o poderia usar
linguagem mais blasfema contra a Trindade do que fez este
espanhol. O cató lico romano Bolsec, em sua obra sobre Calvino,
denomina Serveto de um “homem sumamente arrogante e
insolente”, “um monstruoso herege”, que mereceu ser exterminado.
Serveto fugira de Viena (distrito da França) para Genebra. Enquanto
era julgado em Genebra, o Conselho recebeu uma mensagem dos
juízes cató licos de Viena, juntamente com uma có pia da sentença de
morte que lhe havia dado ali, solicitando que ele fosse enviado de
volta para ser submetido ao castigo, do mesmo modo que já se havia
procedido com a sua efígie e os seus livros. O Conselho recusou
aceder a esta petiçã o, porém prometeu que se faria plena justiça.
Serveto preferiu ser julgado em Genebra, já que só vislumbrava em
Viena uma funesta fogueira. É bem prová vel que o comunicado de
Viena fizesse com que o Conselho de Genebra fosse mais severo no
tocante à ortodoxia, já que, neste respeito, nã o desejava ser
precedido pela Igreja Romana.
Antes da sua chegada a Genebra, Serveto tentara entabular contato
com Calvino através de uma longa série de cartas. Por algum tempo,
Calvino contestou essas cartas de uma forma detalhada; porém, ao
ver que os resultados eram baldados, entã o interrompeu a sua
correspondência. Nã o obstante, Serveto continuou escrevendo-lhe e
as suas cartas assumiram um tom mais arrogante e até mesmo
insultante. Este considerava Calvino o papa do protestantismo
ortodoxo, e determinara ou convertê-lo ou derrotá -lo. Na época em
que Serveto partiu para Genebra, o partido dos libertinos, que se
opunham a Calvino, controlava o Conselho da cidade.
Aparentemente, Serveto planejou unir-se a esse partido com o fim
de expulsar Calvino. Este se deu conta do perigo e nã o tinha a
disposiçã o de permitir que os erros daquele se propagassem em
Genebra. Portanto, considerou que o seu dever era silenciar um
homem tã o perigoso, e se propô s forçá -lo a retratar-se dos seus
erros; e, se nã o o conseguisse, entã o passaria a castigá -lo como bem
merecia. Serveto foi imediatamente preso e julgado. Calvino
conduziu a parte teoló gica do julgamento e Serveto foi achado
culpado de heresia, falsidade e blasfêmia. Durante o longo
julgamento, Serveto se mostrou obstinado e tentou envolver
Calvino, injuriando-o com os termos mais grosseiros possíveis. [254]
O resultado do julgamento foi deixado ao critério da corte civil, a
qual pronunciou a sentença de morte na fogueira. Calvino solicitou
que a fogueira fosse substituída pela espada; no entanto, a sua
petiçã o foi sem efeito; portanto, a responsabilidade final da morte
pela fogueira repousa sobre o Conselho.
O Dr. Emilé Doumergue, autor de Jean Calvin , a obra mais exaustiva
e de maior autoridade que já foi publicada sobre Calvino, disse o
seguinte sobre a morte de Serveto: “Calvino fez com que Serveto
fosse preso assim que chegou a Genebra, e compareceu na corte
como o seu acusador. O seu desejo era que este fosse condenado à
morte, porém nã o morte na fogueira. No dia 20 de agosto de 1553,
Calvino escreveu a Farel: ‘Espero que Serveto seja condenado à
morte, porém desejo que seja poupado da crueldade do castigo’ —
referindo-se à fogueira. Farel lhe respondeu no dia 8 de setembro:
‘Neste caso, nã o me parecem corretos os seus ternos sentimentos’; e
prossegue a adverti-lo que tivesse cuidado que, ‘desejando que a
crueldade do castigo de Serveto seja mitigada, esteja você agindo
como amigo do homem que é o seu maior inimigo. Suplico-lhe que
proceda de maneira tal que no futuro ninguém tenha a ousadia de
ensinar tais doutrinas e causar tantos problemas por longo tempo
sem ser castigado’”.
A despeito dessa exortaçã o, Calvino nã o modificou a sua opiniã o
pessoal, mas tampouco conseguiu que ela prevalecesse. No dia 26 de
outubro, ele escreveu novamente a Farel: ‘Amanhã Serveto será
conduzido à fogueira. Temos feito todo o possível para mudar a
forma da morte, mas tem sido em vã o. Quando nos virmos, eu lhe
direi a razã o por que nã o tive êxito’”. [255]
“Portanto, a censura que é lançada sobre Calvino, mais do que sobre
qualquer outra pessoa — a queima de Serveto — foi algo ao qual
Calvino se opô s tenazmente. Ele nã o foi o responsá vel por isso. Fez o
que pô de para evitar que Serveto fosse queimado na fogueira. Mas,
quantas censuras sã o lançadas sobre ele por causa dessa fogueira
com as suas chamas e fumaça! O fato é que, sem a fogueira, a morte
de Serveto teria passado quase inadvertidamente”.
Doumergue prossegue informando-nos que a morte de Serveto foi “
o erro da época , erro esse do qual Calvino nã o foi pessoalmente
responsá vel. A sentença de morte foi pronunciada só depois de se
consultar as igrejas suíças, algumas das quais, deve-se saber, nã o
tinham boas relaçõ es com Calvino (mas, nã o obstante, consentiram).
Além disso, a sentença foi pronunciada pelo Conselho no qual os
empedernidos inimigos de Calvino, os livres pensadores, formavam
a maioria”. [256]
Que o pró prio Calvino rejeitou a responsabilidade, pode-se ver
claramente nos seus escritos posteriores: “Desde o dia em que
Serveto se tornou réu da sua heresia”, disse ele, “nã o se faz nenhuma
referência ao seu castigo, do qual pode testificar todo homem
probo”. [257] E numa das suas respostas posteriores a um dos
ataques feitos contra ele, disse: “Quisera eu saber por qual ato
particular meu sou acusado de crueldade. Eu mesmo desconheço tal
ato, a menos que se reportem à morte do seu grande mestre,
Serveto. No entanto, que eu mesmo roguei com empenho que ele
nã o fosse castigado com a morte, é algo que os seus pró prios juízes
podem testificar, entre os quais, nesse tempo, dois eram os seus [de
Serveto] fiéis partidá rios e defensores”. [258]
Antes que Serveto fosse preso, e durante as primeiras etapas do
julgamento, Calvino advogou em prol da pena de morte, baseando os
seus argumentos principalmente na lei mosaica, que reza: “Aquele
que blasfemar o nome do SENHOR será morto” (Lv 24.16) — uma lei
que Calvino considerava tã o obrigató ria como o decá logo e também
aplicá vel à heresia. Todavia, ele deixou que fosse o Conselho civil a
ditar a sentença. Calvino considerou Serveto como sendo o maior
inimigo da Reforma e cria sinceramente que era direito seu e dever
do Estado castigar os que afrontassem a igreja. Além disso, ele se
sentiu chamado, providencialmente, para purificar a igreja de toda
corrupçã o, e até o dia da sua morte jamais mudou o seu parecer nem
se arrependeu de haver procedido como o fez no caso de Serveto.
O Dr. Abraham Kuyper, estadista e teó logo holandês, numa
conferência na América do Norte há poucos anos atrá s, expressou
alguns pensamentos relacionados com este tema que vale a pena
reiterar: “O dever do governo de extirpar toda classe de religiã o
falsa e idolá trica nã o é algo que começou com o calvinismo, mas que
data da época de Constantino o Grande e foi a reaçã o contra as
horríveis perseguiçõ es que os seus predecessores pagã os no trono
imperial infligiram à seita do Nazareno. Desde aquela época este
sistema de perseguiçã o fora defendido por todos os teó logos
romanistas e aplicado por todos os príncipes cristã os. Na época de
Lutero e Calvino, era a firme crença universal que esse sistema era o
verdadeiro. Todo teó logo proeminente da época, principalmente
Melanchton, aprovou a morte pelo fogo ao qual Serveto foi
submetido; e o patíbulo, levantado pelos luteranos em Leipzig para
executar Kreel, o consumado calvinista, foi infinitamente mais
censurá vel se for visto pelo prisma protestante”.
“Mas, apesar de os calvinistas, durante a época da Reforma,
caminharem submissamente como má rtires rumo ao patíbulo e à
fogueira, à s dezenas de milhares (os luteranos e os cató lico-romanos
sendo tã o poucos que nem vale a pena nomeá -los), contudo a
histó ria tem sido culpada da grave injustiça de lançar-lhes em rosto,
perpetuamente, como sendo um crime nefando, a morte de Serveto
pela fogueira”.
“Nã o obstante, nã o só deploro dita fogueira, senã o que,
incondionalmente, a desaprovo; porém, nã o como se fosse a
expressã o de uma característica peculiar do calvinismo, mas, ao
contrá rio, como o fatal efeito secundá rio de um sistema já
encanecido pela velhice que o calvinismo encontrou em existência e
sob o qual crescera e do qual ainda nã o lograra livrar-se
completamente”. [259]
No entanto, quando consideramos este fato à luz do século dezesseis
e as diferentes facetas do caso — isto é, a aprovaçã o de dito fato
pelos demais reformadores, uma opiniã o pú blica que detestava a
tolerâ ncia por considerar que era sinal de indiferença para com a
verdade e que justificava a pena de morte por heresia e blasfêmia, a
sentença pronunciada contra Serveto pelas autoridades cató lico-
romanas, o cará ter de Serveto e a sua atitude para com Calvino, a
sua viagem a Genebra com o propó sito de causar problemas, a
sentença ditada por uma corte civil fosse do controle de Calvino, e a
petiçã o de Calvino de que a forma do castigo fosse menos severa —
temos de concluir que houve numerosas circunstâ ncias atenuantes
e, que se diga o que quiser, Calvino agiu movido por um estrito
senso do dever. “Que ele seja julgado pelo prisma que se deseje,
pinte-o como Cromwell pediu que fosse pintado — “com todas as
cores” — e como escreveu Schaff: “Quanto mais ele é conhecido,
mais é admirado”. Calvino foi, sem a menor sombra de dú vida, um
homem enviado por Deus, que comoveu o mundo como poucos
fizeram na histó ria do mundo.

11. Conclusão
Temos examinado o sistema calvinista com bastante detalhe e temos
visto a influência que ele tem exercido na igreja, no Estado, na
sociedade e na educaçã o. Temos considerado também as objeçõ es
que comumente surgem contra esse sistema e a sua importâ ncia
prá tica. Resta-nos, pois, fazer algumas observaçõ es gerais com
respeito ao sistema em sua totalidade.
Uma prova confiá vel do cará ter de indivíduos ou de sistemas se
encontra nas palavras de Cristo: “Pelos seus frutos os conhecereis”.
Para os calvinistas, tanto quanto para o calvinismo, ser julgado
conforme essa má xima é um prazer. As vidas e as influências dos
que têm sustentado a fé reformada sã o uns dos melhores e mais
convincentes argumentos em seu favor. Smith nos fala de “esse
divinamente vital e exuberante calvinismo, criador do mundo
moderno, mã e de inumerá veis heró is, santos e má rtires, ao qual a
histó ria, julgando a á rvore pelos frutos, coroa como o mais excelente
credo da cristandade”. [260] O veredicto imparcial da histó ria é que,
como modelador do cará ter e arauto da liberdade aos homens e à s
naçõ es, o calvinismo mantém a supremacia entre todos os sistemas
religiosos do mundo. Ao passar revista aos grandes homens dos
Estados Unidos da América do Norte, descobrimos que o nú mero de
presidentes, legisladores, juristas, escritores, editores, mestres e
comerciantes presbiterianos é proporcionalmente muito maior que
o de outras denominaçõ es. Todo historiador imparcial admitirá que
foi a revolta protestante contra Roma o que permitiu ao mundo
moderno degustar pela primeira vez a verdadeira liberdade
religiosa e civil, e que as naçõ es que têm conseguido e desfrutado de
maior liberdade foram aquelas que sofreram as influências do
calvinismo. Além do mais, o calvinismo tem feito com que esse
grande manancial de vida que é a liberdade religiosa e civil flua
sobre todas as extensas planícies da histó ria moderna. Quando
comparamos países como a Inglaterra, Escó cia e América do Norte,
com outros como França, Espanha e Itá lia, os quais nunca estiveram
sob as influências diretas do calvinismo, podemos ver facilmente
quais sã o os resultados prá ticos. A depressã o econô mica e moral nos
países cató lico-romanos tem produzido decréscimo até mesmo no
índice de natalidade, de modo que a populaçã o em ditos países tem
permanecido quase estacioná ria, enquanto a populaçã o nos demais
países supramencionados tem aumentado.
Um breve relance na histó ria da igreja ou dos credos histó ricos do
protestantismo revela que as doutrinas que hoje sã o conhecidas
como calvinismo foram as que produziram a Reforma e tornaram
possível que os seus frutos fossem preservados. Todo aquele que
conhece a histó ria da Europa e da América do Norte concordará com
a surpreendente declaraçã o do Dr. Cunningham de que, “depois de
Paulo, Joã o Calvino é quem mais tem feito a favor do mundo”. E o Dr.
Smith escreveu: “Certamente, deveria emudecer os difamadores do
calvinismo que, ao lembrar-se daqueles homens que sustentaram
esse credo, passamos a herdar, como os frutos do seu sangue e
esforços, das suas oraçõ es e ensinamentos, a nossa liberdade civil, a
nossa fé protestante e os nossos lares cristã os. O leitor atento, ao
observar que estas três bênçã os jazem na raiz de tudo aquilo que
consideramos como sendo o melhor e o mais importante no mundo
moderno, talvez se surpreenda com a declaraçã o implícita de que a
nossa atual civilizaçã o cristã outra coisa nã o é senã o o fruto do
calvinismo”. [261]
Ao afirmar que o calvinismo tem sido o credo de santos e heró is,
estamos apenas repetindo o inegá vel testemunho da histó ria. No
dizer de Froude, “seja qual for a causa, os calvinistas foram os ú nicos
protestantes que lutaram. E foi da fé destes que nasceu o valor
necessá rio para defender a Reforma, e se nã o fosse por eles a
Reforma teria fracassado”. Ao longo dos séculos, os milhares que
caíram vítimas da tirania espiritual, quando o protestantismo na
Inglaterra, Escó cia, Holanda e Suíça era mantido ao fio da espada, o
calvinismo mostrou ser o ú nico sistema capaz de fazer-lhe frente e
de destruir as grandes forças da Igreja Romana. A sua inigualá vel
falange de má rtires é uma das coroas de gló ria. Na mensagem da
Conferência Metodista à Aliança Presbiteriana de 1896 se liam estas
gratas palavras: “A sua igreja tem produzido o memorá vel e
inspirador espetá culo, nã o simplesmente de uma solitá ria alma
heroica aqui e ali, mas de geraçõ es de almas fiéis sempre dispostas a
seguir alegremente para a prisã o e até mesmo para a pró pria morte
por amor a Cristo e à sua verdade. Esta singular honra visa a vó s, e
com toda razã o, a parte mais preciosa da sua rica herança”. “Nã o há
outro sistema de religiã o no mundo inteiro”, afirma McFetridge,
“que possa exibir tã o gloriosa fileira de má rtires da fé. Quase todo
homem e mulher que porventura preferiu caminhar rumo à s
chamas antes que negar a fé ou manchar sua consciência foi um
devoto seguidor, nã o ú nica e primordialmente do Filho de Deus, mas
também daquele ministro de Deus que converteu Genebra no
luzeiro da Europa, Joã o Calvino”. [262] O mundo moderno deveria ser
grato à vitalidade e fecundidade divinas deste sistema, e mesmo que
em anos recentes começou a reconhecê-lo, jamais poderá pagar-lhe
o devido preço.
Já dissemos que a teologia calvinista produz indivíduos amantes da
liberdade. Onde quer que essa teologia viceja, o despotismo nã o
pode permanecer. Portanto, o calvinismo logo deu origem a um tipo
de governo eclesiá stico revolucioná rio, mediante o qual o povo seria
governado e atendido nã o por homens designados por algum
homem em particular, nem por um grupo de homens postos acima
dos demais, mas por pastores e oficiais eleitos pelos pró prios
associados. Dessa maneira, a religiã o está nas mã os do povo, nã o
acima do povo. Temos testemunho da eficiência deste governo de
uma fonte surpreendente, a saber, do eminente arcebispo cató lico-
romano de Nova York, Hughes. Eis as suas palavras: “Ainda que seja
direito meu considerar a autoridade exercida pela Assembleia Geral
como usurpaçã o, contudo devo confessar, juntamente com todo
homem familiarizado com a forma em que dita Assembleia está
organizada, que, no tocante ao propó sito de governo popular e
político, a sua estrutura é pouco inferior à do pró prio Congresso.
Dita Assembleia opera conforme o princípio de um centro de
irradiaçã o que nã o tem paralelo ou rival entre as demais
denominaçõ es do país”. [263]
Da liberdade e responsabilidade na igreja só há um passo para a
liberdade e responsabilidade no estado; e, historicamente, a causa
da liberdade nã o encontra defensores mais valorosos ou resolutos
do que os seguidores de Calvino.
Na opiniã o de Warburton, “o calvinismo nã o é um credo nebuloso e
teó rico. A despeito de todas as asseveraçõ es dos seus adversá rios,
ele nã o incita o homem a cruzar os braços num espírito de
indiferença fatalista sem compreender as necessidades dos que o
rodeiam e de todos os terríveis males que, como chagas supuradas,
jazem na face descoberta da sociedade”. [264]
Dito credo tem
produzido maravilhosas transformaçõ es morais onde quer que ele
penetre. Quanto à pureza de vida, temperança, diligência e caridade,
os calvinistas se mantêm sem paralelo.
Jaime Antony Froude é reconhecido como um dos mais eminentes
historiadores e homens de letras da Inglaterra. Por vá rios anos foi
professor de histó ria em Oxford, a maior universidade da Inglaterra.
Apesar do seu sistema nã o ser o calvinismo, e à s vezes é qualificado
como um adversá rio do mesmo, nã o obstante estar isento de
preconceitos e dos ignorantes ataques contra o calvinismo, os quais
têm sido tã o comuns em anos recentes, provocarem nele a justa
impaciência do erudito.
Disse Froude: “Pedirei que [o leitor] considere, quanto possível, que,
sendo o calvinismo um credo duro e iló gico que a erudiçã o moderna
afirma ser, ele atraiu, em tempos passados, de maneira tã o singular,
alguns dos melhores homens que já existiram; e como se dá que,
sendo como nos é dito, seja ele fatal à moralidade por negar o livre-
arbítrio, a sua primeira manifestaçã o onde quer que se estabeleceu
foi a de destruir a distinçã o entre pecados e crimes e fazer da lei
moral a regra de vida de estados políticos e de indivíduos?
Novamente pedirei que você considere por que, se o calvinismo é
um credo de servidã o intelectual, conseguiu inspirar e sustentar os
mais valorosos esforços jamais exercidos pelo homem a fim de
quebrar o jugo de todo governo injusto? Quando tudo mais fracassa
— quando o patriotismo cobre o seu rosto e toda intrepidez humana
se vê debilitada — quando o intelecto se rende, como disse Gibbon,
‘com um sorriso ou um suspiro’, satisfeito em filosofar secretamente
e render culto pú blico com o vulgo — quando a emoçã o, o
sentimento e a terna piedade imaginativa chegam a ser as servas da
superstiçã o, imaginando-se que nã o há diferenças entre a verdade e
a mentira — aquele credo servil denominado de calvinismo, numa
ou noutra de suas muitas formas, apresenta sempre uma fronte
inflexível à ilusã o e à mentira, e sempre prefere ser pulverizado
como pedra em vez de dobrar-se diante a violência ou debilitar-se
diante da tentaçã o”. [265]
Com o fim de ilustrar isto, Froude menciona Guilherme o Taciturno,
Lutero, Calvino, Knox, Coligny, Cromwell, Milton e Bunyan, e fala
deles: “Estes homens possuem todas as qualidades que dã o nobreza
e grandeza à natureza humana — homens cuja vida foi tã o íntegra
como foi potente o seu intelecto, e cujas lides pú blicas foram sem
vestígios de egoísmo; inalteravelmente justos, onde o dever requeria
deles que fossem inflexíveis, porém com singular ternura de
coraçã o; francos, verazes, alegres, com profundo senso de humor,
enfim, tã o distintos em seu cará ter diante de todo faná tico irritá vel;
e, além do mais, todos eles foram homens que conseguiram soar a
nota a todo valoroso e fiel coraçã o na Europa a qual vibrou
instintivamente”. [266]
Passaremos agora a considerar o calvinismo como força
evangelizadora . Uma prova bem prá tica para qualquer sistema de
doutrina religiosa é: “Em comparaçã o a outros sistemas, acaso este
prova ser bem sucedido no tocante à evangelizaçã o do mundo?”.
Salvar pecadores e convertê-los à santidade prá tica é o principal
propó sito da igreja neste mundo; e o sistema que nã o consegue
passar neste teste deve ser descartado, nã o importa quã o popular
seja ele em outros sentidos.
O primeiro grande avivamento cristã o, quando três mil pessoas
foram convertidas, ocorreu sob a pregaçã o de Pedro em Jerusalém, o
qual se expressou nestes termos: “sendo este entregue pelo
determinado desígnio e presciência de Deus, vó s o matastes,
crucificando-o por mã os de iníquos” (At 2.23). E o grupo de
discípulos, em intensa oraçã o pouco tempo depois, se expressou da
seguinte maneira: “porque verdadeiramente se ajuntaram nesta
cidade contra o teu santo Servo Jesus, ao qual ungiste, Herodes e
Pô ncio Pilatos, com gentios e gente de Israel; agora, Senhor, olha
para as suas ameaças e concede aos teus servos que anunciem com
toda a intrepidez a tua palavra” (At 4.27, 28). Essas palavras nã o sã o
outra coisa senã o calvinismo puro.
O seguinte grande avivamento na igreja, ocorrido no século quarto
mediante a influência de Agostinho, também se baseou nestas
doutrinas, como poderá ver sem qualquer dificuldade quem leia a
literatura dessa época. A Reforma, que todos consideram como o
maior avivamento religioso genuíno desde os dias do Novo
Testamento, ocorreu sob a pregaçã o solidamente predestinadariana
de Lutero, Zuínglio e Calvino. A Calvino e ao Almirante Coligny
pertence a honra de terem sido os que inspiraram a primeira
empresa missioná ria protestante no exterior, a saber, a expediçã o
ao Brasil em 1555. É verdade que a empresa e as guerras religiosas
europeias impediram que a mesma se repetisse por um tempo
considerá vel.
McFetridge nos forneceu alguns fatos interessantes e
comparativamente desconhecidos acerca da origem da Igreja
Metodista. Diz ele: “Falamos da Igreja Metodista começando com um
avivamento. E assim foi. Mas o primeiro e principal autor desse
avivamento nã o foi Wesley, e sim Whitefield, um calvinista
inflexível. Muito embora mais jovem que Wesley, foi ele quem
primeiro se lançou a pregar nos campos, atraindo multidõ es de
seguidores e angariando dinheiro para construir capelas. Foi
Whitefield que solicitou aos dois Wesley que se unissem a ele. E teve
que usar muitos argumentos e persuasõ es para sobrepor aos seus
preconceitos contra o movimento. Whitefield começou a grande
obra em Bristol e Kingswood, e milhares se uniram a ele, prontos a
ser organizados em igrejas, quando solicitou o auxílio de Wesley.
Este, com todo o seu zelo, era um anglicano austero e conservador
em muitas das suas convicçõ es. Ele cria que mesmo as criancinhas
deviam ser batizadas por imersã o, e demandava que os dissidentes
deviam ser rebatizados antes de serem aceitos na igreja. Tampouco
conseguia aceitar que se pregasse em algum lugar que nã o fosse
estritamente uma igreja. ‘Ele considerava quase pecado salvar almas
em algum outro lugar que nã o fosse a igreja’. Portanto, quando
Whitefield lhe rogou que se unisse a ele no movimento popular,
Wesley recusou essa solicitaçã o. Ao fim, cedeu à s persuasõ es de
Whitefield; mas, nessa decisã o, se deixou influenciar pelo que
muitos consideravam uma superstiçã o. Ele e Charles, seu irmã o,
primeiramente abriram a Bíblia ao acaso esperando que os seus
olhos se pousassem em algum texto que confirmasse a sua decisã o.
Ao abrirem a Bíblia, nenhum dos textos tinha qualquer relaçã o com
o tema. Entã o, recorreram ao sortilégio, lançando sortes para decidir
o assunto. A sorte que coube a Wesley indicava que ele consentisse;
e, portanto, ele acedeu. Dessa forma, ele empreendeu a tarefa com a
qual o seu nome esteve tã o íntima e honrosamente associado desde
entã o”.
“O movimento metodista dependeu de Whitefield de uma maneira
tal que este chegou a ser chamado ‘o fundador calvinista do
metodismo’, e até o fim da sua vida permaneceu sendo o seu
representante ante os olhos do mundo intelectual. Em suas Cartas ,
Walpole menciona Wesley apenas uma vez em relaçã o à origem do
metodismo, enquanto ele menciona Whitefield com muita
frequência. Mant, em sua série de conferências, considera o
metodismo um acontecimento completamente calvinista. Nem o
mecanismo, nem a força que lhe deu origem vieram de Wesley. A
pregaçã o nos campos, que deu ao movimento o seu cará ter
agressivo e o preparou e fortaleceu para fazer frente à s poderosas
forças que estavam armadas contra ele teve início com Whitefield,
enquanto ‘Wesley foi arrastado a empreendê-lo com má vontade’.
Na linguagem cortês da época, o ‘calvinismo’ e o ‘metodismo’ eram
termos sinô nimos, e os metodistas foram denominados de ‘outra
seita do presbiterianismo’”.
“Foi o calvinismo, e nã o o arminianismo, que deu origem (se é que se
possa dizer que algum sistema doutrinal deu origem a outro) ao
grande movimento religioso do qual a Igreja Metodista nasceu”.
“Ainda que certamente seja preciso honrar Wesley pelo seu esforço
a favor dessa igreja, nã o devemos esquecer aquele grande calvinista,
Jorge Whitefield, o qual deu a essa igreja o seu primeiro impulso e o
seu cará ter mais distintivo. E se este vivesse mais tempo, e nã o
temesse a ideia de ser fundador de uma igreja, bem diferentes
teriam sido os resultados dos seus esforços. Por sua vez, ele
estabeleceu congregaçõ es para que outros as organizassem em
igrejas, bem como construíssem capelas e, assim, outros
proclamassem ali o evangelho”. [267]
Deve-se mencionar ainda o fato de que Wesley cria em bruxaria. Nã o
crer em bruxas era considerado por ele como uma concessã o a
incrédulos e a racionalistas. Muitos dos seus bió grafos têm passado
por alto este ponto, ainda que alguns dos escritores mais favorá veis
à sua causa tenham admitido que ele expressou as suas crenças em
palavras inconfundíveis. Em seu periódico podemos ler o seguinte
relato de uma menina propensa a certos ataques: “Quando se
indagou ao anciã o, Dr. Alexander, qual era o mal de que se queixava
a menina, este respondeu: ‘É o que noutro tempo se chamava um
caso de feitiçaria’. E por que nã o denominá -lo hoje com os mesmos
termos? Porque os incrédulos erradicaram a bruxaria do mundo, e
os cristã os complacentes, em grandes nú meros, se unem aos
incrédulos nesta tarefa”. Muito embora Calvino vivesse pouco mais
de dois séculos antes de Wesley e nã o desfrutasse das vantagens do
progresso científico e intelectual que se deu durante essa época, nã o
encontramos nele tã o estranha credulidade. Os seus escritos nã o só
se acham isentos de bruxaria, mas também contêm numerosas
advertências contra tal crença.
O famoso batista inglês, Charles Haddon Spurgeon (1834-1892), um
dos mais destacados pregadores do mundo, se expressou da
seguinte maneira: “Nunca me envergonho de declarar que sou
calvinista. E digo sem vacilar que sou batista; mas, caso me
perguntem qual é o meu credo, entã o respondo: ‘O meu credo é
Jesus Cristo’”.
E novamente afirma: “Muitos dos nossos pregadores calvinistas nã o
nutrem o povo de Deus. Creem na eleiçã o, porém nã o a ensinam.
Consideram que a redençã o particular é a verdade, porém a mantêm
fechada no cofre do seu credo e nunca, durante todo o seu
ministério, a trazem para a luz. Sustentam a doutrina da
perseverança dos crentes, porém persistem em nã o fazê-la
conhecida. Creem que existe aquilo a que chamamos vocaçã o eficaz,
porém nã o creem que Deus os chamou a proclamá -la com
frequência. O grande erro desses pregadores é que nã o proclamam
abertamente o que creem. Se você os ouve pregar cinquenta vezes,
nem assim saberia quais sã o as doutrinas do evangelho ou qual o
sistema de salvaçã o que confessam. E, por isso, o povo de Deus
perece de fome”.
Quando alcançamos o estudo das missõ es estrangeiras, descobrimos
que este sistema de fé tem sido o meio mais importante de levar o
evangelho à s naçõ es pagã s. Paulo, a quem os adversá rios mais
liberais do calvinismo consideram o responsá vel pelo matiz
calvinista no pensamento teoló gico da igreja, foi o maior e mais
influente dos missioná rios. Se fô ssemos fazer uma lista dos heró is
das missõ es protestantes, descobriríamos que quase todos eles
foram discípulos de Calvino. Temos Carey e Martyn na Índia;
Livingston e Moffat na Á frica; Morrison na China, Paton nos mares
do sul; e muitos outros. O calvinismo que esses homens professaram
e possuíram foi um calvinismo dinâ mico e nã o está tico; este era nã o
apenas o seu credo, mas também a sua forma de vida.
Com respeito à s missõ es estrangeiras, o Dr. F. W. Loetscher afirmou:
“Ainda que, como todas as nossas igrejas irmã s, temos motivo de
lamentar por nã o avançarmos muito diante dos extraordiná rios
recursos que possuímos e as enormes necessidades das naçõ es
pagã s, ao menos podemos dar graças a Deus que os nossos
venerá veis pais fizessem um bom começo em seu esforço por
estabelecer missõ es por todo o mundo; que hoje as igrejas
calvinistas ultrapassam todas as demais em sua dá diva para esta
causa; e, em particular, que a nossa denominaçã o tenha tido a honra
e privilégio ú nico de desempenhar as suas transcendentes
responsabilidades, confrontando cada uma das grandes religiõ es
nã o cristã s, e proclamando o evangelho em mais continentes, e entre
mais naçõ es, povos e línguas, que qualquer outra igreja evangélica
no mundo”. [268]
Ainda que para alguns pareça um exagero desautorizado, nã o
vacilamos em dizer que através dos séculos o calvinismo, intrépida e
racionalmente polêmico em sua insistência em defender a sã
doutrina, tem sido a força genuína da igreja cristã . As normas
tradicionalmente elevadas das igrejas calvinistas, no tocante à
pregaçã o ministerial e à cultura têm produzido uma grande safra ao
conduzir multidõ es aos pés de Jesus, nã o com mera excitaçã o
temporá ria, mas numa aliança perpétua. Julgado pelos seus frutos, o
calvinismo tem demonstrado ser sem paralelo a força
evangelizadora mais eminente do mundo.
Sem a menor sombra de dú vida, o calvinismo possui um glorioso
testemunho na histó ria da civilizaçã o moderna, e os seus inimigos
nã o podem honestamente negar este testemunho. Em vã o se tentará
achar um testemunho mais nobre do que este. “Os chamados liberais
sempre o consideraram um mistério”, sã o as palavras de Henry
Ward Beecher, “que os calvinistas, com o que eles consideram
crenças e doutrinas despó ticas e rígidas, sempre foram os mais
firmes e valorosos defensores da liberdade. O efeito de despertar
um profundo anelo pela liberdade na mente daqueles que adotaram
os certamente severos princípios do calvinismo tem sido um
enigma. Mas a verdade é esta: o calvinismo tem feito o que nenhuma
outra religiã o jamais conseguiu fazer: Apresentar ao mundo o mais
elevado ideal humano e destruir todo obstá culo imaginá vel a fim de
alcançar dito ideal.
“O calvinismo intensifica de maneira indescritível a individualidade
do homem e demonstra, em clara e irresistível luz, a
responsabilidade do homem diante de Deus e a sua relaçã o com a
eternidade. Apresenta ao ser humano alguém que penetra a vida sob
o peso de uma tremenda responsabilidade, resoluto em sua marcha
rumo ao tú mulo, com um ú nico consolo — ter a certeza do céu e de
que escapará ao inferno”.
“O calvinista, portanto, vê o homem compelido, constrangido,
açambarcado pelas mais poderosas e influentes forças. O homem
está em marcha rumo à eternidade, onde logo se verá ou coroado no
céu ou prostrado no sufocante interno para todo o sempre. E quem
se atreverá a pô r peias a tal criatura? Abram caminho! Nã o criem
obstá culo; e, se o fizer, terá problema com a sua pró pria alma.
Deixem-no livre para encontrar o seu caminho para Deus. Nã o
interfiram nele nem em seus direitos. Deixem-no escapar à sua
salvaçã o como possa. Nã o se deve pô r nenhuma mã o opressora
sobre uma criatura que segue em frente numa carreira como esta —
uma carreira cujo fim tem de ser a gló ria eterna ou a miséria
inexprimível para toda a eternidade”. [269]
Adotando o eloquente pará grafo de outro, “Pode parecer que esta
á rvore, à vista de olhos preconcebidos, tenha uma casca á spera, um
tronco coberto de protuberâ ncias e ramos retorcidos em formas
emaranhadas. Mas é preciso ter em mente que essa á rvore nã o é um
broto nascido ontem. Esses ramos relutam contra as tempestades de
mil anos; esse tronco se retorceu pelo vermelho relâ mpago e se
cicatrizou pela descarga do raio; e sobre a sua á spera casca é
possível observar as marcas do machado de combate e do projétil.
Esse antigo carvalho nã o possui a graciosa beleza e a sedosa
suavidade de uma planta protegida do inverno, mas possui uma
majestade que sobrepuja toda graça e uma grandeza muito maior
que a mais intensa beleza. Pode ser que as suas raízes sejam
retorcidas no seio do solo, mas algumas delas se acham saturadas do
sangue do glorioso campo de batalha; outras estã o entrelaçadas em
torno das estacas dos má rtires; outras estã o escondidas em
solitá rias selas e tranquilas bibliotecas onde profundos pensadores
passam a meditar e a orar como em alguma Patmos apocalíptica; sua
raiz principal, contudo, retrocede rumo ao passado, onde está
enlaçada em vivo e amoroso abraço ao redor da cruz do Calvá rio. É
possível que os seus ramos estejam retorcidos, mas pendem
revestidos com o mais rico e forte metal da civilizaçã o e do
cristianismo da histó ria humana”. [270]
Ao examinar este sistema, sentimo-nos como alguém sentado diante
do teclado de um grande ó rgã o. Nossos dedos tocam as teclas,
enquanto registro apó s registro abre a caixa de pressã o, até que o
coro pleno responde com impressionante harmonia. O calvinismo
toca toda a mú sica da vida, porque antes e acima de todas as coisas
ele busca o Criador em todas as partes. Ou, é como se estivéssemos
além mar com a grande abó bada celeste acima de nó s, a vasta
expansã o da eternidade rodeando a nossa alma; e em tudo e acima
de todas as coisas está Deus . Ou, como se estivéssemos parados
sobre as rochas que, fendendo-se, deixam a passagem à s nossas
costas; e o abismo diante dos nossos olhos, como poderoso rio do
tempo fluindo de eternidade em eternidade; o sol em seu zênite,
irradiando a sua brilhante luz e calor; e a nossa alma, começando
com um murmú rio, reflete o eco das palavras: “Ó profundidade das
riquezas!”. O calvinismo nos apresenta Deus e traça as suas pisadas
— Deus, em toda a sua grandeza, majestade, sabedoria, santidade,
justiça e amor. O calvinismo nos apresenta Deus em um trono alto e
sublime; e a nossa alma outra coisa nã o faz senã o prorromper,
novamente: “Que é o homem para que dele te lembres?”.
Esse nã o é um fú til e oco elogio ao calvinismo. Com os fatos e
observaçõ es anteriores, todo leitor instruído e imparcial da histó ria
estará de acordo. Além disso, o autor diria deste livro o que o Dr. E.
W. Smith, em seu livro The Creed of Presbyterians [O credo dos
presbiterianos], disse no final do capítulo sobre “O credo provado
por seus frutos” — isto é, que estes fatos e observaçõ es “se
apresentam, nã o com o propó sito de incitar à vaidade
denominacional, mas com o fim de que o nosso coraçã o se encha de
gratidã o a Deus por essa histó ria pretérita e pela atual eminência
que deveria servir-nos de ‘um incentivo à nobreza’; e, sobretudo,
despertar em nosso coraçã o um santo entusiasmo por esse sistema
de verdade divina que tem sido o principal fator na formaçã o da
América do Norte e do mundo moderno”.
Concluindo, diríamos que neste livro o leitor encontrará uma
teologia muito antiga — teologia tã o antiga quanto a pró pria Bíblia,
tã o antiga até mesmo mais que o pró prio mundo, já que este plano
de redençã o se achava escondido nos eternos conselhos de Deus.
Nele nã o se tenta encobrir o fato de que as doutrinas sustentadas e
defendidas nestas pá ginas sã o verdadeiramente maravilhosas e
assombrosas. Sã o suficientes para despertar o pecador modorrento
que tomou como indubitá vel durante toda a sua vida que pode
ajustar as suas contas com Deus como lhe apraz; e também sã o
suficientes para despertar o “crente” letá rgico que vive enganando-
se a si mesmo na mortal tranquilidade de uma religiã o carnal. No
entanto, por que essas doutrinas nã o haveriam de causar assombro?
Se a pró pria natureza está saturada com maravilhas, acaso a
revelação nã o pode estar também? Basta alguém dar uma breve
olhadela para alguns livros para se dar conta de que a ciência traz à
luz muitas verdades assombrosas, as quais pessoas sem educaçã o
acham difíceis, e até mesmo impossíveis de crer, e nã o será possível
que isto suceda também a pessoas sem entendimento espiritual no
tocante à s verdades reveladas? Se o evangelho nã o desperta nem
aterroriza nem assombra alguém quando lhe é apresentado, entã o
tal evangelho nã o é verdadeiro. Por sua vez, a quem o arminianismo
já produziu assombro com sua doutrina de que o pró prio homem
molda o seu pró prio destino? Nã o basta ignorar meramente, ou
mesmo ridicularizar estas doutrinas como muitos tendem a fazer. A
pergunta é: estas doutrinas sã o verdadeiras? Se o sã o, por que
ridicularizá -las? Se nã o o sã o, entã o que sejam refutadas.
Concluímos com a asseveraçã o de que este grande sistema de
pensamento religioso que leva o nome de Calvino é nã o mais nem
menos do que a esperança do mundo.
 
 
 
 
 
 

APÊNDICE
 
O seguinte material de Romans: An Interpretative Outline [Romanos:
um esboço interpretativo], (p. 144-147), composto por David N.
Steele e Curtis C. Thomas, contrasta os cinco pontos do calvinismo
com os cinco pontos do arminianismo, da maneira mais clara e
concisa que já vimos em qualquer parte. Este material aparece
também em seu livro menor intitulado The Five Points of Calvinism
[Os cinco pontos do calvinismo] (p. 16-19). Ambos os livros sã o
publicados por The Presbyterian and Reformed Publishing Co.,
Filadélfia (1963). Os senhores Steele e Thomas têm servido por
vá rios anos como pastores de uma Igreja Batista do Sul em Little
Rock, Arkansas.
 
OS “CINCO PONTOS” DO OS “CINCO PONTOS” DO CALVINISMO
ARMINIANISMO
I. Livre-arbítrio ou capacidade I. Depravação total ou
humana incapacidade total
Ainda que a natureza humana Devido à queda, o pecador é
fosse seriamente afetada pela incapaz de crer no evangelho e
queda, o homem, todavia, nã o ser salvo, já que este está morto,
perdeu de todo sua capacidade é cego e surdo para as coisas de
espiritual. Deus, em sua graça, Deus; seu coraçã o é
capacita o pecador a fim de que, extremamente enganoso e
por sua pró pria vontade, se perverso. Sua vontade nã o é
arrependa e creia. Cada pecador livre, senã o que está escravizada
tem o livre-arbítrio e seu à natureza pecaminosa;
destino eterno depende de como portanto, ele nã o quer — e, de
ele o usa. A liberdade do homem fato, nã o pode — escolher o bem
consiste em poder escolher o e rejeitar o mal no que tange à s
bem e rejeitar o mal na esfera coisas espirituais. Portanto, o
espiritual; sua vontade nã o está mero auxílio do Espírito nã o é
escravizada a uma natureza suficiente para conduzir o
pecaminosa. O pecador pode ou pecador a Cristo, mas é
cooperar com o Espírito de Deus absolutamente necessá rio que
e ser regenerado, ou resistir a haja regeneraçã o em virtude da
graça de Deus e perder-se para qual o Espírito comunica ao
sempre. O pecador necessita do pecador vida e uma nova
auxílio do Espírito, mas nã o tem natureza. A fé nã o é algo com o
que ser regenerado pelo Espírito qual o homem contribui para a
antes de poder crer, já que a fé é salvaçã o, e sim é em si mesma
um ato do homem e precede ao uma parte do dom da salvaçã o
novo nascimento. A fé é o dom — é o dom de Deus dado ao
do pecador para com Deus; ela é pecador, nã o o dom do pecador
a contribuiçã o do homem para a dado a Deus.
salvaçã o. II. Eleição incondicional
II. Eleição condicional Que Deus escolheu
O fato de Deus haver escolhido determinados indivíduos para a
certos indivíduos para a salvaçã o, antes da fundaçã o do
salvaçã o antes da fundaçã o do mundo, se deve unicamente à
mundo se deve a isto: que Deus sua vontade soberana. Sua
viu de antemã o que tais eleiçã o de certos pecadores nã o
indivíduos haveriam de tem por base um conhecimento
responder ao seu chamado. prévio de uma resposta ou ato
Deus escolheu somente aqueles de obediência (tais como a fé, o
que ele viu de antemã o que arrependimento, etc.) por parte
creriam no evangelho de sua dos pecadores. Ao contrá rio,
livre vontade. As obras futuras Deus é quem dá a fé e o
desses indivíduos determinam, arrependimento a cada pessoa
portanto, a eleiçã o. A fé que eleita. Essas obras sã o o
Deus viu de antemã o e sobre a resultado, nã o a causa da eleiçã o
qual baseou sua eleiçã o nã o foi divina. A eleiçã o, portanto, nã o
comunicada pelo Espírito Santo, está determinada nem
mas se origina da vontade do condicionada por alguma
pró prio homem. Pertence ao virtude ou obra meritó ria
homem, portanto, a prerrogativa prevista por Deus no homem.
de crer e ser escolhido para a Aqueles a quem Deus elegeu em
salvaçã o. Deus escolheu sua soberania sã o movidos pelo
somente aqueles que ele sabia Espírito Santo a aceitar a Cristo.
que haveriam de escolher a Portanto, a causa fundamental
Cristo por sua pró pria vontade. da salvaçã o nã o é a decisã o do
A causa fundamental da pecador de aceitar a Cristo, e
salvaçã o é, portanto, a decisã o sim a eleiçã o do pecador por
do pecador de escolher a Cristo, parte de Deus.
e nã o a eleiçã o do pecador por III. Redenção particular ou
parte de Deus. expiação limitada
III. Redenção universal ou A obra redentora de Cristo teve
expiação geral como fim salvar unicamente os
A obra redentora de Cristo eleitos; e, com efeito, assegurou
adquiriu para todos os homens a a salvaçã o destes. Em sua morte,
oportunidade de ser salvos, Cristo sofreu como substituto
porém nã o garantiu a salvaçã o particularmente pelo pecado
de nenhum deles. Muito embora dos eleitos. Além de apagar os
Cristo tenha morrido por todos pecados destes, a redençã o fez
os homens, somente os que provisã o de tudo quanto era
creem nele sã o salvos. Sua necessá rio para alcançar a
morte tornou possível a Deus salvaçã o, inclusive a fé que os
perdoar os pecadores sempre e une a ele. O dom da fé é
quando estes crerem, porém nã o comunicado infalivelmente pelo
apagou os pecados de ninguém. Espírito a todos por quem Cristo
A redençã o em Cristo é eficaz morreu, garantindo a salvaçã o
somente se o homem decidir de cada um deles.
aceitá -la. IV. O chamado irresistível do
IV. O Espírito Santo pode ser Espírito Santo ou graça
resistido eficazmente irresistível
O Espírito chama de maneira Além do chamado geral para a
especial à queles que, pelo salvaçã o, feito a todos os que
evangelho, sã o chamados de ouvem o evangelho, o Espírito
maneira geral; ele faz tudo o que Santo faz aos eleitos um
pode para conduzir cada chamado especial, o qual
pecador à salvaçã o. No entanto, inevitavelmente os conduz à
o chamado do Espírito pode ser salvaçã o. O chamado geral, feito
resistido, já que o homem é a todos sem distinçã o, pode ser,
livre. O Espírito nã o pode e com frequência é, rejeitado;
regenerar o pecador até que por sua vez, o chamado especial
este creia; a fé (que é feito somente aos eleitos nã o
contribuiçã o do homem) pode ser rejeitado, mas resulta
precede e torna possível o novo sempre na conversã o destes. Por
nascimento. O livre-arbítrio, intermédio deste chamado, o
portanto, limita o Espírito na Espírito atrai irresistivelmente
aplicaçã o da obra redentora de os pecadores a Cristo, já que ele
Cristo. O Espírito Santo pode nã o está limitado pela vontade
levar a Cristo somente aqueles do homem em sua obra salvífica,
que o permitam. O Espírito nã o nem depende do homem para
pode comunicar vida até que o alcançar seu propó sito. O
pecador responda. A graça de Espírito induz benignamente o
Deus, portanto, nã o é invencível; pecador eleito a cooperar, a crer,
pode ser, e muitas vezes é, a arrepender-se e a ir a Cristo
resistida e frustrada pelo espontâ nea e voluntariamente.
homem. Portanto, a graça de Deus é
V. Cair da graça invencível; redunda sempre na
Os que creem e sã o salvaçã o daqueles a quem lhes é
verdadeiramente salvos podem oferecida.
perder sua salvaçã o por nã o V. Perseverança dos santos
perseverar na fé. Todos os escolhidos por Deus,
Nem todos os arminianos estã o redimidos em Cristo, e a quem o
de acordo neste ponto; alguns Espírito comunicou a fé, sã o
sustentam que os crentes estã o eternamente salvos e
eternamente salvos — que uma perseveram até o fim, já que sã o
vez o pecador é regenerado, preservados na fé pelo poder de
jamais pode perder-se. Deus, o Todo-Poderoso.
Segundo o arminianismo: De acordo com o calvinismo:
A salvaçã o é efetuada mediante A salvaçã o é efetuada pela
os esforços conjuntos de Deus onipotência do Deus Trino. O Pai
(que toma a iniciativa) e o escolheu um povo; o Filho
homem (que cabe responder) — morreu por esse povo; e o
sendo a resposta do homem o Espírito Santo torna efetiva a
fator determinante. Deus morte de Cristo conduzindo os
providenciou a salvaçã o para eleitos à fé e ao arrependimento
todos, mas sua provisã o só é e a que voluntariamente
eficaz naqueles que de sua obedeçam ao evangelho. O
pró pria vontade “decidem” processo complexo (eleiçã o,
cooperar com ele e aceitar sua redençã o, regeneraçã o) é obra
oferta de graça. No momento de Deus e é exclusivamente pela
crucial, a vontade do homem graça. Portanto, Deus, e nã o o
exerce um papel decisivo; homem, determina quem há de
portanto, o homem, e nã o Deus, ser os que recebem o dom da
determina quem será os que salvaçã o.
recebem o dom da salvaçã o. REAFIRMADO
  pelo Sínodo de Dort
REJEITADO Este sistema de teologia foi
pelo Sínodo de Dort reafirmado pelo Sínodo de Dort
Este foi o sistema de em 1619, sendo reconhecido
pensamento apresentado no como a doutrina da salvaçã o
“Remonstrance” (protesto) contida nas Sagradas Escrituras.
(ainda que os cinco pontos nã o O sistema foi entã o formulado
estavam ordenados em “cinco pontos” (em resposta
originalmente do modo como os aos cinco pontos submetidos
apresentamos aqui). Esse pelos arminianos) e desde entã o
sistema foi submetido pelos tem sido conhecido como “os
arminianos da igreja da Holanda cinco pontos do calvinismo”.
em 1610 com o propó sito de que  
aquela igreja os adotasse; porém
foi rejeitado pelo Sínodo de Dort
em 1619 sobre a base de que
nã o era bíblico.
 

[1]
Prefá cio à Predestinação , por Zanchius, p. 16.
[2]
Calvinism , p. 23.
[3]
Ibid ., p. 21.
[4]
Cunningham, Historical Theology , II, p. 418, 419.
[5]
O autor, sendo leigo, é membro da Igreja Presbiteriana Ortodoxa. Esta é uma das
denominaçõ es pequenas que buscam fielmente preservar a herança reformada.
[6]
Institutas , Livro III, cap. XXI, Sec. 5.
[7]
Citado por Toplady no Prefá cio à Predestination de Zanchius.
[8]
Lectures on Calvinism , p. 272.
[9]
Popular Letures on theological Themes , p. 158.
[10]
The Creed of Presbyterians , p. 159.
[11]
Theology , p. 214.
[12]
The Creed of Presbyterians , p. 160.
[13]
Biblical Doctrines , p. 13, 22.
[14]
Biblical Doctrines , art. “Predestination”, p. 9.
[15]
Breve catecismo de Westminster , pergunta e resposta 11.
[16]
Systematic Theology , I, p. 583.
[17]
Toplady, Prefá cio à Predestination de Zanchius, p. 14.
[18]
Biblical Doctrines , p. 14.
[19]
Sermã o do Moderador sobre predestinaçã o pregado diante da Assembleia Geral da
Igreja Presbiteriana, E.U.A., 1924.
[20]
Theology , p. 212.
[21]
Systematic Theology , p. 356.
[22]
Ibidem , p. 357.
[23]
Warburton, Calvinism , p. 11.
[24]
McFetridge, Calvinism in History , p. 136.
[25]
Systematic Theology , II, p. 356, 559, 531.
[26]
Para uma exposiçã o mais exaustiva e erudita da doutrina da inspiraçã o e da revelaçã o,
veja Warfield, The Inspiration and Authority of the Bible , 1948, editado pelo Dr. Samuel G.
Craig.
[27]
Calvinism , p. 21.
[28]
Historical Theology , II, p. 298.
[29]
Institutas , Livro III, Cap. XXI, Seçã o. 1 e 2.
[30]
Cap. IX, Sec. III.
[31]
Bondage of the Will , p. 125.
[32]
Warburton, Calvinism , p. 48.
[33]
Warfield, Biblical Doctrines , p. 440.
[34]
What is Calvinism , p. 125-127.
[35]
A. A. Hodge, panfleto, Presbyterian Doctrine , p. 23.
[36]
Idem , p. 19, 20.
[37]
Warburton, Calvinism , p. 34.
[38]
Systematic Theology , II, p. 198, 199, 201.
[39]
Presbyterian Doctrine , p. 21.
[40]
Theology , p. 330.
[41]
Cap. III. Seçõ es III-VI.
[42]
Institutas , Livro III, Cap. XXI, Sec. 1.
[43]
Panfleto, Election , p. 10.
[44]
Warfield, Biblical Doctrines , p. 50.
[45]
Cunningham, Historical Theology , II, p. 398.
[46]
Idem , II, p. 467.
[47]
Theology , p. 230.
[48]
Citado por Ness, Antidote Against Arminianis m , p. 34.
[49]
Cap. III.2; XVI.2, 3.
[50]
Warfield, Biblical Doctrines , art. “ Predestinatio n” , p. 63.
[51]
Ness, Antidote Against Arminianis m , p. 31.
[52]
The Augustinian Doctrine of Predestination , p. 297.
[53]
Cap. III, Sec. VII.
[54]
Institutas , Livro III, Cap. XXIII.
[55]
No prefá cio à Epístola aos Romanos, citado por Zanchius, Predestination , p. 92.
[56]
Biblical Doctrines , art. Predestination , p. 64.
[57]
Idem , p. 54.
[58]
Rice, God Sovereign and Man Free , pp. 3, 4.
[59]
Warfield, Biblical Doctrines , p. 35.
[60]
A Syllabus of Systematic Theology , p. 219, 220.
[61]
Systematic Theology , II, p. 652.
[62]
Bondage of the Will , p. 252.
[63]
X.4.
[64]
Historical Theology , II, p. 397.
[65]
Zanchius, Predestination , Introduçã o, p. 19.
[66]
O plano da salvação , p. 19.
[67]
Systematic Theology , II, p. 318.
[68]
Idem , II, p. 317.
[69]
Calvinism, Pure and Mixed , p. 84.
[70]
Jesus as He Was and Is , p. 276.
[71]
Biblical Doctrines , art. “ The Millennium and the Apocalyps e ” , p. 647.
[72]
Warfield, artigo “Are They Few that be Saved?”. Artigo disponível como apêndice em O
plano da salvação (Brasília, DF: Monergismo, 2019).
[73]
Snowden, The Coming of the Lord , p. 250.
[74]
Snowden, idem , p. 265.
[75]
Two Studies in the History of Doctrine , p. 230.
[76]
Christianity Today , janeiro de 1931, p. 14.
[77]
X.III.
[78]
Idem , janeiro de 1931, p. 14.
[79]
Calvin Memorial Addresses , p. 112.
[80]
Em muitos círculos calvinistas se prefere falar de “expiaçã o definida” ou “expiaçã o
particular”, em vez de “expiaçã o limitada”.
[81]
Cap. III, Sec. VI.
[82]
Historical Theology , II, p. 333.
[83]
Cap. X, Seçõ es I e II.
[84]
Pergunta e resposta 31.
[85]
Systematic Thelogy , II, p. 688.
[86]
Idem , II, p. 35.
[87]
The Augustinian Doctrine of Predestination , p. 8.
[88]
Cap. VIII, Sec. V.
[89]
The Power of God Unto Salvation , p. 48-50.
[90]
System of Christian Doctrine , p. 417.
[91]
The Religious Controversies of Scotland , p. 187.
[92]
O plano da salvação , p. 74.
[93]
Cap. X, Sec. I.
[94]
Systematic Theology , III, p. 214.
[95]
Sound Doctrine , p. 21.
[96]
Jesus as He Was and Is , p. 191, 199.
[97]
Cap. XVII, Sec. I.
[98]
Theology , p. 690.
[99]
Systematic Theology , III, p. 112.
[100]
Floyd E. Hamilton, art. “The Reformed Faith in the Modern World”.
[101]
Pá gina 112.
[102]
The Creed of Presbyterian , p. 167.
[103]
The Secret Providence of God , reimpresso em Calvin’s Calvinism , p. 261 e 262.
[104]
Bondage of The Will , p. 31.
[105]
Citado por Lanchius, p. 56.
[106]
Bondage of the Will , p. 125.
[107]
Idem , p. 5.
[108]
Ibidem , p. 26, 27.
[109]
Panfleto, The Love of God for Every Man .
[110]
The Augustinian Doctrine of Predestination , p. 73.
[111]
The Basis of Christian Faith , p. 162.
[112]
Systematic Theology , II, p. 288.
[113]
God Sovereign and Man Free , p. 70, 71.
[114]
V.IV.
[115]
Tyler, Memoir and Lectures , p. 250-252.
[116]
Strong, Systematic Theology , p. 357.
[117]
The Secret Providence of God , reimpresso em Calvin’s Calvinism , p. 240.
[118]
Systematic Theology , I, p. 545.
[119]
Theological Institutes , II, cap. 18.
[120]
Systematic Theology , II, p. 120.
[121]
Idem , p. 193.
[122]
Bondage of the Will , p. 301.
[123]
Predestination , p. 55.
[124]
V.4.
[125]
P. 177.
[126]
Artigo, The Reformed Faith in the Modern World .
[127]
A Syllabus of Systematic Theology , p. 113.
[128]
What is Calvinism? , p. 32.
[129]
Citado em Calvin’s Calvinism , p. 290.
[130]
Biblical Doctrines , artigo, “Predestination”, p. 21.
[131]
Warfield, Biblical Doctrines , artigo “The Foresight of Jesus”, p. 73.
[132]
Ibid. , p. 33-35.
[133]
Systematic Theology , I, p. 547.
[134]
Atwater, artigo “Calvinism in Doctrine and Life”; The Presbyterian Quarterly and
Princeton Review , 1875, p. 84.
[135]
Bondage of the Will , p. 87.
[136]
Strong, Systematic Theology , p. 361.
[137]
Jú lio César, 1:2.
[138]
The Augustinian Doctrine of Predestination , p. 41.
[139]
Ibid. , p. 180, 181.
[140]
God Sovereign and Man Free , p. 136, 139.
[141]
Calvinism, pure and Mixed , p. 59.
[142]
Idem , p. 51.
[143]
III.VI.
[144]
Ness, Antidote Against Arminianism , p. 41.
[145]
Historical Theology , II, p. 279.
[146]
Calvinism in History , pp. 107, 108.
[147]
Walmsley, S. G. U. pamfleto Num. 173, p. 67.
[148]
Calvinism in History , p. 128.
[149]
Calvinism , p. 8.
[150]
Citado por McFetridge, Calvinism in History , p. 121.
[151]
Hodge, Systematic Theology , II, p. 556.
[152]
Idem , II, p. 644.
[153]
Sylabus of Systematic Theology , p. 208.
[154]
O plano da salvação (Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019), p. 123.
[155]
Pergunta e resposta 70.
[156]
Predestination , p. 140.
[157]
The Bondage of the Will , p. 338.
[158]
O plano da salvação (Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019), p. 87.
[159]
Warfield, panfleto, Election , p. 18.
[160]
Mozley, The Augustinian Doctrine of Predestination , p. 45.
[161]
Panfleto, Election , p. 17, 18.
[162]
Systematic Theology , I, p. 539; II, p. 314.
[163]
Lectures on Calvinism , p. 149, 150.
[164]
Calvinism , p. 28.
[165]
Artigo, Calvinism and the World of Islam .
[166]
Salisbury, artigo, Mahommedan Doctrine of Predestination and Free Will .
[167]
Moslem, Doctrine of God , p. 97.
[168]
Calvin’s Calvinism , p. 29.
[169]
God Sovereign and Man Free , p. 46.  
[170]
The Creed of Presbyterians , p. 53, 94.
[171]
Christianity and Liberalism , p. 51.
[172]
Artigo, Calvin as Theologian and Calvinism Today , p. 23, 24.
[173]
The Fundamental Principle of Calvinism , p. 25.
[174]
Ibid. , p. 152.
[175]
Calvin’s Calvinism , p. 30.
[176]
Systematic Theology , I, p. 535.
[177]
Artigo publicado em Christianity Today , sep. 1930, p. 7.
[178]
Predestination , p. 124.
[179]
Idem .
[180]
Systematic Theology , p. 368.
[181]
Veja a Forma de Governo, XIII.IV e XV.XII.
[182]
Shedd, Calvinism, Pure and Mixed , p. 160.
[183]
Confissão de fé , XXVIII.IV.
[184]
Livro de Ordem Eclesiá stica, III.3.
[185]
Artigo, Calvinism Today , p. 7.
[186]
Artigo, The Theology of Calvin , p. 8.
[187]
Calvinism , p. 42.
[188]
Idem , p. 44.
[189]
History of the Reformation , p. 224.
[190]
God Soverein and Man Free , p. 14.
[191]
The Creed of Presbyterians , p. 72.
[192]
Macaulay, History of England , I, p. 119.
[193]
The Beginnings of New England , p. 37, 51.
[194]
Ibid. , p. 52.
[195]
Calvinism in History , p. 124.
[196]
The Creed of Presbyterians , p. 98, 99.
[197]
The Swiss Reformation , II, p. 818.
[198]
History of England , X, p. 437.
[199]
Smith, The Creed of Presbyterians , p. 83.
[200]
English History , século 18, I; p. 264, 265.
[201]
Calvinism , p. 84, 92.
[202]
Calvinism History , p. 144.
[203]
Ibid. , p. 100.
[204]
Rise of the Dutch Republic , I, p. 114.
[205]
Lectures on Calvinism , p. 44.
[206]
Ibid. , p. 72 e 73.
[207]
History of the United States , I, p. 463.
[208]
Presbyterians and the Revolution , p. 49.
[209]
They Seek a Country , J. G. Slosser, editor, p. 155.
[210]
Harper’s Monthly , June and July, 1872.
[211]
The United Netherlands , III, p. 121.
[212]
The United Netherlands , IV, p. 548, 547.
[213]
English Literature , II, p. 472.
[214]
Ibid. , p. 121.
[215]
Discurso sobre “The Westminster Standards and the Formation of the American
Republic”.
[216]
History of the United States , X, p. 77.
[217]
U. S. History , VIII, p. 40.
[218]
Calvinism in History , p. 85-88.
[219]
The Creed of Presbyterians , p. 142.
[220]
Idem , p. 119.
[221]
Reformation in the Time of Calvin , I, p. 5.
[222]
The Creed of Presbyterians , p. 132.
[223]
Bancroft, U. S. History , vol. VII, p. 261.
[224]
Calvinism in History , p. 74.
[225]
Begnnings of New England , p. 58.
[226]
Democracy , I, p. 384.
[227]
Beginnings of New England , p. 59.
[228]
Lectures on the History of France , p. 415.
[229]
H. H. Meeter, The Fundamental Principles of Calvinism , p. 92.
[230]
What Calvinism Has Done for America , p. 6.
[231]
Calvinism in History , p. 21.
[232]
Miscellaneous, p. 406.
[233]
History of the United States , II, p. 463.
[234]
The Creed of Presbyterians , p. 148.
[235]
The Fundamental Principles of Calvinism , p. 96-99.
[236]
The Swiss Reformation , p. 312.
[237]
Schaff, The Swiss Reformation , p. 322.
[238]
Calvin Memorial Addresses , p. 34.
[239]
Idem , p. 20.
[240]
Artigo, The Theology of Calvin , p. 1.
[241]
The Swiss Reformation , p. 330.
[242]
Calvin and Calvinism , p. 8, 374.
[243]
Calvin Memorial Addresses , p. 22.
[244]
Citado por James Orr, Calvin Memorial Addresses, p. 92.
[245]
Miscellaneous , p. 406.
[246]
Vie de ste. François de Sales, por son neveu, p. 20.
[247]
John Calvin, The Man and His Ethics , p. 54.
[248]
The Swiss Reformation , p. 826.
[249]
John Calvin, The Man and His Ethics , p. 55.
[250]
History of the Swiss Reformation , II, p. 698.
[251]
Ibid. , p. 699.
[252]
The Creeds of Christendom , II, p. 698.
[253]
The Swiss Reformation , II, p. 787.
[254]
Veja Schaff, The Swiss Reformation , II, p. 778.
[255]
Opera XVIV, p. 590, 613-657.
[256]
Doumergue, artigo, “What Ought to be Known about Calvin”, em The Evangelical
Quartely , janeiro de 1929.
[257]
Opera , VIII, p. 461.
[258]
Calvin’s Calvinism , p. 346.
[259]
Lectures on Calvinism , p. 129.
[260]
The Creed of Presbyterians , p. vii.
[261]
Idem , p. 74.
[262]
Calvinism in History , p. 113.
[263]
Presbyterians and the Revolution , p. 140.
[264]
Calvinism , p. 78.
[265]
Calvinism, p. 7.
[266]
Idem , p. 8.
[267]
Calvinism in History , p. 151-153.
[268]
Discurso diante da Assembleia Geral da Igreja Presbiteriana, E.U.A., 1929.
[269]
Plymouth Pulpit , artigo “Calvinism”.
[270]
Power and Claims of Calvinitic Literature , p. 35, citado de Smith, The Creed of
Presbyterians , p. 105.

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