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Em Sb 2,23-24, já sob o influxo da cultura helenística, a «imagem» é
concebida de um modo estático, a partir da natureza divina, como qualidade do homem:
«Deus criou o homem para a incorruptibilidade e fê-lo imagem da sua própria natureza
(literalmente, “da sua própria substância”)». Estamos já perante um empobrecimento da
concepção relacional do ser imagem de Deus
48
Deus. O somático pertence também ao ser imagem e este não se
circunscreve às dimensões meramente anímicas, de índole não corpóreo2.
Aliás, todas as funções anímicas são portadoras de uma somatização
própria, pois acontecem no concreto da pessoa em sua condição corpórea3.
Interroguemos sobre o porquê do plural «Façamos»: Reminiscência
de uma concepção politeísta de uma assembleia de deuses que toma uma
deliberação conjunta? Estilo retórico de um plural deliberativo, através do
qual o texto procura assinalar a diferença do homem (fruto de uma decisão
divina) em relação às demais criaturas? Referência a uma divindade
universal, como poderia indicar o plural Eloim, que fala com os seus anjos,
no estilo majestático de uma corte celeste? Meditação de Deus consigo
mesmo, numa intensa comunicação interior, a indicar que o homem brota
da sua reflexão íntima, como se Deus falasse com uma alteridade dentro de
si mesmo? (Moltmann, 280). Várias são, pois, as soluções exegéticas
deixadas em aberto. Não é de excluir, igualmente, uma possível aplicação
antropológica do verbo «façamos». O plural «nós» aqui incluiria a acção
divina e a humana em conjunto. O sujeito da criação seria Deus e o
homem. Neste caso, o dizer de Deus seria dizer ao homem. Deus
responsabiliza-se pelo homem e responsabiliza o homem pelo seu próprio
fazer(-se). O homem faz o homem, o homem faz-se homem. A mudança do
verbo criar (barah) pelo verbo «fazer» deixa em aberto uma possível
extensão antropológica (Pikaza, 36-37).
«O homem (`Adam) à nossa imagem como à nossa semelhança»: Ao
contrário da literatura egípcia que só atribuía ao rei a semelhança com
Deus, Gn 1,26-27 coloca todos os homens nessa possibilidade. Estamos
perante uma «democratização» da mediação divina: Todos os homens são
mediação de Deus enquanto sua imagem. Assim se afirma a recusa de uma
estrutura autoritária, de qualquer sistema, na mediação entre Deus e o
homem. Estamos perante uma recusa de toda a sacralização do poder em
detrimento da fraternidade. Segundo o texto, a grandeza do homem está
acima da grandeza do rei. «Imagem» (selem) indica a estátua, a
2
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios. Antropología teológica
fundamental, Santander 1988, 42; J. B. GREEN. «Restoring the Human Person: New
Testament Voices for a Wholistic and Social Anthropology», in R. J. RUSSELL – N.
MURPHY – T. C. MEYERING – M. A. ARBIB (ed.), Neuroscience and Person, 6-7.
3
Igual perspectiva antropológica está presente na narrativa javista em Gn 2,7:
«Iahweh Deus modelou o homem com argila do solo, insuflou em suas narinas um
hálito de vida e o homem tornou-se um ser vivente». Comentando este versículo, afirma
Ruiz de la Peña em ID, 31: «O que Deus “forma” do pó da terra não é o corpo, mas o
homem. O que Deus “insufla” não é a alma, mas o “alento” (neshamah), vocábulo
praticamente sinónimo de nefesh. O resultado desta operação em dois tempos é o “ser
vivente” (nefesh hajja)». Cf. N. M. LOSS, «La dottrina antropologica di Genesi 1-11»,
in G. DE GENNARO (ed.), L’antropologia biblica, Nápoles 1981, 181; H. W. WOLFF,
Antropología del Antiguo Testamento, 40-41.
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representação plástica, podendo até compreender as estátuas dos ídolos
proibidas pela lei. É um termo que designa uma representação concreta
(tipo retrato). «Como à sua semelhança» (demut, derivação do verbo
damah, que significa «ser como», «assemelhar»). «Semelhança» refere-se à
relação entre duas realidades comparáveis pelo seu aspecto, num
simultâneo movimento de aproximação e diferenciação. O homem recebe
de Deus o seu ser imagem, como representação e estátua viva na criação,
mas não se confunde com Deus. Assemelha-se numa insuperável distância,
que nunca os identifica nem os confunde.
50
Quando Deus cria Adão, cria um ser correspondente, capaz de responder ao
«tu» divino, porque capaz de responder a partir do próprio «eu». A imagem
de Deus é, pois, pessoa5.
«Homem (macho) e mulher (fêmea) os criou»: Esta afirmação parece
matizar a anterior («Eloim criou o humano à sua imagem»). Surge aqui a
aproximação do ser humano aos animais, pois «macho e fêmea» são termos
que, habitualmente, se aplicam aos animais. O homem não se assemelha
apenas a Deus, tem também um parentesco com a besta, que o desumaniza
e o afasta da semelhança com Deus. O ser humano é um ser intermediário
entre o divino e o animalesco, que se pode realizar num sentido ou noutro.
Com Deus partilha uma «imagem» (participa da divindade); com os
animais comunga da mesma condição animalesca. A animalidade é uma
força que estrutura e desintegra a humanidade a partir de dentro, numa
desumanização que é dissemelhança divina. Macho e fêmea nada teria aqui
de positividade da alteridade sexual. Se não for dominada e integrada, esta
força vital pode rapidamente degenerar em violência. Em todo o humano,
há algo de selvagem que espera ser domesticado e humanizado. Tornar-se
humano será então aprender a dominar a força selvagem do desejo, das
emoções, da sexualidade, que nos marca em nossa diferença mas também
em nossa proximidade com os animais. Não está o «macho» ligado a uma
cultura da virilidade, que não é mais do que uma cultura da brutalidade? O
ser humano é chamado a ser pastor da sua própria animalidade (WENIN,
40-44)
O verbo «barah» (criar) significa «fazer de novo», «algo de nunca
antes visto», «inaudito», e tem Deus como único sujeito. Barah significa
também separar. Na frase há um duplo criar: primeiro afirmar-se a relação
de Deus com a humanidade inteira (`Adam com sentido colectivo), e depois
a criação da alteridade sexual homem-mulher (macho-fêmea). Na
interpretação deste versículo situa-se um complexo e fecundo debate
exegético, que intencionalmente referimos em sua pluralidade de
perspectivas, pelos horizontes de actualização que pode abrir:
a) A dimensão relacional seria anterior à aleteridade sexual e à
identidade de género, pois afirma-se como prévia na própria
narrativa a criação da humanidade em sua dimensão colectiva. A
dimensão relacional inscrever-se-ia no próprio ser da pessoa,
como algo de anterior e de prévio à sua própria condição sexual.
A relação homem-mulher, polarizando a complementaridade
relacional, não a esgota, porque a dimensão relacional é algo de
ontologicamente prévio às questões de género e de
identidade/condição sexual. Esta leitura permitira o diálogo com
questões antropológicas de fronteira que, intensa e
5
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Creación, gracia, salvación, 66.
51
apaixonadamente, se debatem na cultura contemporâneas,
precisamente pelos novos estados de consciência e de existência
nelas implicados (a condição sexual, a problemática da identidade
de género não apenas em sua determinação biológica mas
também em sua construção cultural e social, a relação afectiva
entre pessoas do mesmo sexo, as problemáticas ética e de
construção e afirmação da identidade sexual levantadas hoje pela
mudança de sexo, pela transexualidade…). Esta posição é,
assumidamente, heterodoxa. O que parece conter em intuição,
corre o risco de não ser suficientemente confirmado pela própria
crítica textual.
b) A imagem de Deus realiza-se na alteridade sexual entre homem e
mulher. Pois é na alteridade da identidade sexual que cada pessoa
descobre a sua masculinidade e a sua feminilidade.
Consequentemente, afirma-se uma paridade de dignidade na
relação homem-mulher. A verdadeira humanidade é dada na
polaridade do masculino e do feminino, evocando com
essencialidade e profundidade o significado da alteridade e da
relação sexuais. Tal significa a exclusão de toda e qualquer
discriminação, porque empobrece a humanidade do homem e da
mulher. O texto bíblico aludiria, assim, ao sentido profundo
antropológico do encontro sexual, que pertence à plena realização
da condição humana (Brambilla, 351). Esta é a interpretação
tradicionalmente defendida pelo Magistério da Igreja: «A
humanidade aqui é descrita como articulada, desde a sua primeira
origem, na relação do masculino e do feminino. É esta
humanidade sexuada que é explicitamente declarada “imagem de
Deus” (…). “O homem é uma pessoa em uma pessoa em igual
medida, o homem e a mulher” (João Paulo II). A dignidade das
pessoas realiza-se como complementaridade física, psicológica e
ontológica, dando lugar a uma harmoniosa “universalidade
relacional, que só o pecado e as “estruturas de pecado”, inscritas
na cultura tornaram potencialmente conflituosa. A antropologia
bíblica convida a enfrentar com uma dignidade relacional, não
concorrencial nem de desforra, os problemas de sexo»
(CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Carta aos
Bispos da Igreja Católica sobre a colaboração do homem e da
mulher na Igreja e no mundo, 5.8).
O homem como ser-de-relação (a partir de sua determinação
ontológica teologal) realiza-se na sociabilidade, na relação a um
tu: «O homem realiza-se como tal na bipolaridade sexual de varão
e mulher, que o autor vê ordenado à procriação» (J. L. RUIZ DE
PEÑA…). Ruiz da la Peña privilegia aqui uma interpretação do
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ser-imagem como sociabilidade, concretizada na relação esponsal
homem-mulher, expressão da efectiva e afectiva dimensão
comunional e relaciona do ser humano: «no colectivo adam
(substantivo colectivo) surge já essa sociabilidade, «pois só a
comunidade humana, a humanidade enquanto tal, e não o
indivíduo isolado, pode executar o encargo divino de encher a
terra e de submetê-la; somente como ser comunitário realiza Adão
o seu carácter de imagem» (J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de
Dios, 46).
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alimentação vegetariana constitui, portanto, um discreto convite a pôr um
limite a exercer a sua chefia sem violência, pois não tem necessidade para
se alimentar de matar o animal e de o comer» (WENIN, 42). O domínio do
homem sobre os animais pode ser isento de violência. O que qualifica a
imagem não é somente a supremacia sobre os animais, mas a maneira pela
qual este domínio se exerce. O ser humano tem um limite: respeitar a vida e
o lugar dos animais na criação. O v. 30 estende a ementa vegetariana a
todos os animais ligados à terra, incluindo as aves. Profecia de uma paz
universal, de respeito pela vida. «A vida não precisa de morte para se
sustentar. O domínio conferido ao homem sobre o animai não implica um
direito discricionário de vida ou de morte» (RUIZ DE LA PEÑA, 47).
A relação de dependência do homem para com Deus resolve-se,
paradoxalmente, no próprio fundamento da superioridade humana sobre o
resto da criação (cf. Gn 1,16.28;). Adão é a coroação da obra divina; as
demais criaturas são para ele, com a mesma verdade que ele é para Deus.
Esta superioridade não significa uma supremacia caprichosa sobre o criado,
mas que o homem deve governar o criado em nome do próprio Deus,
perante quem é responsável. Todavia é tarefa da teologia cristã libertar a fé
na criação de uma visão excessivamente antropocêntrica do mundo, que
reduz a natureza a objecto de usufruto, de manipulação e de intervenção6. A
diferença do ser humano perante as demais criaturas não implica oposição,
mas sim alteridade. O ser humano faz parte da própria criação, sendo ele
próprio criatura também. Acolhendo a dimensão antropocêntrica das
narrativas bíblicas sobre as origens, acrescentamos que esta não é
exclusiva; completa-se com um dimensão teocêntrica e geocêntrica, se
preferirmos, cosmocêntrica7. O homem situa-se, portanto, numa dupla
relação, para com Deus e para com o mundo, de inferioridade e de
superioridade respectivamente. Mas o homem realiza ainda uma outra
dimensão relacional, para com o tu, o semelhante. É a polaridade homem-
mulher o que realiza cabalmente a essência do homem enquanto imagem de
Deus (cf. Gn 1,27-28). E é a comunidade humana aquela que recebe,
corporativamente, o encargo de governar a terra.
Somente com o homem alcança o agir de Deus o seu record de
bondade: «E Deus viu que estava muito bem» (v. 31ª). Tudo está
excelentemente bem feito. Deus contempla a beleza do criador, que
encontra a sua suprema beleza/bondade no ser humano. Esta contemplação
do criado implica um distanciar-se de Deus, que olha para o que fez. Neste
contemplar distanciado expressa-se a alteridade entre a criação e o criador.
As coisas e os seres não são Deus. Deus suspende constantemente a sua
acção para repousar o seu olhar, e neste antecipado «repouso» Deus dá
espaço de liberdade para as coisas e o homem serem eles próprios. «Para
6
Cf. J. MOLTMANN, Dieu dans la création, 49.
7
Cf. D. J. HALL, Être image de Dieu, 313.
54
fazer ser o que ele criou, considera-o a partir de um olhar que ele abre um
espaço onde o criado vai poder existir» (WENIN, 35).
O sábado acaba a criação. O último dia da semana criadora é o
primeiro dia da existência humana. «Recem-chegado ao ser, Adão
encontra-se não perante a fatiga do trabalho e da obrigação, mas perante o
gozo do descanso, no âmbito da celebração festiva da sua relação com
Deus» (RUIZ DE LA PEÑA, 47). O sábado é um limite (uma paragem e
distância) que Deus impõe à sua capacidade criadora. Deus auto-limita-se
para dar espaço à autonomia do homem e do mundo. Deus dá espaço para
que as criaturas aconteçam em liberdade, para que sejam elas próprias.
«Deus concluiu no sétimo dia a obra que fizera e no sétimo dia descansou,
depois de toda a obra que fizera» (Gn 2,3ª). Deste modo Deus prepara o
terreno para a aliança, que pressupões parceiros livres e autónomos. Um dia
por semana o homem deixa de se fazer activamente. O trabalho, o domínio
e a acção não são o exclusivo da vida humana. O repouso e a festa, a
celebração do gratuito da vida, pertencem também ao ser imagem. No
silêncio sabático, os homens não intervêm através do seu trabalho no
ordenamento do mundo. É o tempo do reconhecimento de que a criação
não é pertença do homem. O sábado constitui, assim, a festa da criação,
profecia escatológica já inscrita nas origens. O sábado aponta para o fim da
criação. Deus deixa as criaturas serem elas próprias. Deus silencia-se
revelando o ser próprio das criaturas. «O repouso do homem das suas obras
humanas torna-se sinal antecipado da festa eterna da glória divina»
(MOLTMANN, 35). O sábado anuncia o «dia do Senhor», o sábado eterno.
Diz ao mesmo tempo a transcendência da alteridade de Deus e a imanência
da sua presença no mundo. Deus é uma voz/palavra de silêncio. O homem
encontra-se no mundo perante o silêncio de Deus. O descanso de Deus é
também descanso da sua palavra criadora. O silêncio de Deus marca o
ritmo da existência: não podemos ter a pretensão de dominar, interpretar,
nomear tudo. Há espaços, realidades, acontecimentos, vivências que são
indizíveis, em que a palavra se recolhe e se cala. Trata-se de uma atitude
respeitosa de fazer acontecer a liberdade do outro, ou o outro em liberdade.
Gn 5,1-2: «No dia em que Deus criou Adão, Ele o fez à semelhança
de Deus. Homem e mulher ele os criou, abençoou-os e deu-lhes o
nome humano no dia em foram criados. Quando Adão completou
cento e trinta anos gerou um filho à sua semelhança, como à sua
imagem e lhe de o nome de Set».
55
Pelo facto de entrar na comunidade humana, por geração biológica, o
homem é portador da sua condição ontológica de ser imagem de Deus. A
passagem de uma geração à outra não implica nenhum défice de
humanidade: o filho é tão humano quanto o pai (WENIN,172). Importa
dizer que a geração não é apenas biológica; é um processo afectivo,
relacional, que permanece e define a identidade do ser pai e do ser filho. O
pai gera continuamente o filho como imagem de Deus na relação; o filho
consente ser gerado, na relação, com o pai. A relação paternidade-filação,
como igualmente a relação esponsal homem-mulher, estão ao mesmo nível
na determinação humana do ser imagem de Deus. O que define bem esta
determinação como realidade ontológica e relacional, através dos graus de
parentesco, elos primários e subsistentes na estruturação da sociabilidade
humana, da comunidade como um «nós» que se vai fazendo na história.
c. Síntese teológica
57
teleológica ou escatologicamente, e não protologicamente8. Ser imagem de
Deus é viver «em Cristo». Se o Antigo Testamento estipula que não há vida
verdadeira fora da relação com Deus, Paulo pensa que não há vida humana
cabal fora da conformação com Cristo. As únicas duas opções que se
oferecem ao homem são ou «em Cristo» ou «em Adão». Ser em Adão é
pertencer ao «homem velho», à condição efémera e já caduca. Pelo
contrário, quem é em Cristo é «uma nova criação» (2 Cor 5,17; Gal 6,15).
Os que são em Adão levam sobre si os estigmas do pecado e da morte; os
que são em Cristo estão ligados à fonte da verdadeira vida, pois Cristo
também é chamado «vida nossa» (Col 3,4)9.
Passando da teologia bíblica à teologia sistemática, podemos
concluir que, para a fé cristã, a antropologia está em função da cristologia;
o que, segundo o Novo Testamento, define o ser humano não é nem um
enunciado abstracto nem o «Adão» do Antigo Testamento, mas Jesus
Cristo, «imagem de Deus», o novo e o verdadeiro Adão10. A cristologia
reforça e define a condição própria do ser homem. Em sua criaturalidade
adâmica, o homem é chamado a tornar-se filho em Cristo, o Filho de Deus
encarnado-humanado. A encarnação de Cristo e a sua consequente
ressurreição conduzem a humanidade àquela condição para a qual Deus a
criou, a filiação divina no amor. O Homem Novo é o homem plenamente
filializado no Espírito. Este homem Novo realiza-se escatologicamente,
antes de mais, em Cristo, e pelo dom do seu Espírito vivificador em toda a
humanidade. A antropologia neotestamentária funda-se, pois. numa
cristologia pneumatológica (ou trinitária), que nos apresenta Cristo, homem
novo, enquanto Filho de Deus gerado no mundo, em nossa condição carnal,
pelo Espírito do amor eterno. Mais profundamente do que descendentes de
Adão, os homens são criados num outro antepassado que é o é também
futuro: Cristo, no qual são e se tornam filhos de Deus. Mais do que dos
seus inícios imperfeitos, os homens dependem da plenitude filial que vem
no fim, de Cristo plena realização do homem novo pelo Espírito da filiação
divina11.
58
encarnação, Ele é o protótipo (a imagem arquetípica) do homem. Criado à
imagem de Cristo, é em Cristo que o homem se plenifica em sua
«iconeidade» filial, no seu ser imagem à semelhança do próprio Filho. Esta
orientação antropológica decididamente cristológica, presente na patrística
tanto grega como latina, não contraria uma dimensão trinitária, porque o
Verbo, tanto em sua preexistência como em sua encarnação, é a pessoa do
Filho. Só que esta perspectiva acaba por relacionar o homem
preponderantemente com a pessoa do Filho, não sendo explicitamente
envolvidas as demais pessoas trinitárias. Todavia, a partir desta perspectiva
cristológica do ser icónico do homem, encontramos também uma
claramente trinitária, tanto no Oriente como no Ocidente. No Oriente
desenvolveu-se à volta do debate trinitário com os Padres Capadócios e no
Ocidente consolida-se com Agostinho, sendo depois retomada por S.
Tomás.
59
por natureza, que só em Deus se realiza. Assim sendo, o homem tende para
Deus, porque possui um elemento divino em si próprio. Esse elemento
divino é explicado pelos Padres em sentido cristológico: Cristo, modelo de
toda a criação, é o arquétipo do homem. Daí que a verdade ontológica do
homem não se encontre em si mesmo, mas no seu arquétipo. Há um
parentesco divino no homem, segundo Gregório de Nissa.
Para os Padres Gregos, Cristo, o Verbo encarnado é o fundamento da
própria criação. Eles têm uma visão de conjunto da história da salvação. A
salvação, sempre cristológica, é já vista pela mediação do Verbo. Não é o
antigo Adão que é modelo do novo, é o novo que modelou o antigo. Cristo
é o princípio e o fim de toda a humanização. É em vista do fim que Deus
tudo criou (Máximo o Confessor). O homem enquanto imagem de Deus
representa um dom, mas também um fim, uma propriedade e uma vocação.
O «à imagem» é uma potencialidade real, diríamos ontológica, mas
somente em potência, que deve conduzir à «união hipostática», ao
«casamento» da natureza humana com a natureza divina. Só então o ser
icónico do homem, ainda em potência, se torna efectivo13.
Deste destino hipostático e «icónico», tiram os Padres Gregos
algumas conclusões: a. Sendo o homem criado para Cristo, há nele uma
necessidade intrínseca de salvação, sempre necessária, mesmo sem a
realidade do pecado. A salvação não é apenas uma consequência do
pecado. O homem, destinado à plenitude, só se realiza como ver
verdadeiramente completo, integral, em Cristo. A Encarnação do Verbo
realiza a plenitude da criação, e esta está destinada àquela. Cristo é, assim,
a salvação do homem não somente pela libertação (redenção) dos pecados,
mas pelo cumprimento da sua vocação divina. E este cumprimento ter-se-ia
realizado mesmo se a queda original não tivesse acontecido. b. Segunda
conclusão: Chamado a divinizar-se, a autêntica divinização é cristificação.
Este dinamismo deve ser desligado da referência ao mal e ligado
unicamente a Cristo. O princípio divino e o fim teocêntrico do homem são
sempre infinitamente maiores do que o mal e o pecado, sempre relativos.
Todavia a cristificação implica um percurso, uma história, determinados
sobretudo pelo futuro, por Aquele que há-de vir. E o futuro não é o
resultado de um determinismo biológico, é a vinda de Cristo recapitulador
do universo, isto é, o Verbo no seu corpo e no seu cosmos transfigurados.
13
Cf. P. NELAS, Le Vivant Divinisé, 27.
60
2.2.1. O homem imagem da Trindade
61
Pai: «Deus é pois Trindade (...) devemos compreender o homem feito à
imagem da Trindade soberana, isto é, a imagem de Deus»18
Consequentemente, a imagem e a semelhança de um significa
necessariamente a imagem e semelhança do Outro. O sujeito de Gn 1,26
(«Façamos o homem à nossa imagem, à nossa semelhança») passa a ser
interpretado como a Trindade no seu conjunto. A alma do homem é, assim,
imagem e reflexo da Trindade no seu conjunto. Todavia é a análise do
amor que leva Agostinho a descobrir na alma humana a imagem divina: o
Amante, o Amado e o Amor. A alma possui três dimensões tão unidas entre
si que não podem existir uma sem as outras, embora sejam distintas: a
memória, a inteligência e a vontade; ou, numa outra tríade, a memória, a
inteligência e o amor. Esta tríade da alma reflecte a Trindade, Pai, Filho e
Espírito Santo. Estas três realidades são inseparáveis, e cada uma possui o
seu próprio ser. Todavia os três são uma única substância, que mutuamente
se relacionam no amor. Sendo o homem imagem da Trindade, pode-se
encontrar no mundo e no seu corpo «vestígios» da Trindade. Entre Deus
uno e trino e a sua imagem, a alma ou o espírito humano, existe uma
diferença fundamental: Na Trindade divina há três pessoas, enquanto no
homem um só. A memória, a inteligência e a vontade pertencem a um
único homem, mas não um único homem19.
S. Tomás retoma a tradição agostiniana da definição do homem
como imagem de Deus. O homem é imagem de Deus somente enquanto
espírito, ou seja, segundo a sua natureza intelectual, racional, pois é pela
alma tem capacidade de conhecer e amar a Deus. No Doutor Angélico,
«segundo a imagem» (referência a Gn 1,26) não significa Cristo, enquanto
imagem arquetípica de Deus, mas indica a distância e a imperfeição da
criatura em relação ao Criador; coloca em relevo a distinção entre Deus e o
homem. Além do mais, para S. Tomás o homem foi criado à imagem da
Trindade; essa é a razão principal da sua não recepção da mediação
cristológica do ser imagem, tão glosado pelo pensamento patrístico. O
homem é criado à imagem da Trindade de pessoas20. Mas aquilo que em
Agostinho constituía a distinção interpessoal (o Amante, o Amado e o
Amor) desaparece em S. Tomás para dar lugar à unidade. O homem é
imagem da Trindade não na sua comunhão interpessoal, não na alteridade
das pessoas divinas, mas na unidade substancial da sua unicidade. Dado
que as três pessoas divinas possuem a mesma essência, o espírito humano é
o reflexo da unidade substancial da Trindade21. O homem é imagem da
Trindade em sua unidade de essência e não na pluralidade das pessoas que
18
S.TO AGOTINHO, De Trinitate, VII, 6.12; XII, 7.9.
19
Cf. L. F. LADARIA, «L’homme créé à l’image de Dieu», in B. SESBÖUÉ
(ed.), Histoire des dogmes, II, Paris 1995, 112-113.
20
S. TOMÁS, Summa Theologiae, I, q.93, a. 1; a.5.
21
Cf. L. F. LADARIA, «L’homme créé à l’immage de Dieu», 132-133.
62
mutuamente se relacionam no amor. Estamos perante o predomínio da
essência sobre e relação, tanto em termos trinitários como em termos
antropológicos.
A reflexão teológica, marcada pelo essencialismo da filosofia
aristotélica, vai perdendo a dimensão relacional da Trindade e,
consequentemente, a antropologia daí consequente resulta, de igual modo,
essencialista e estática. Não desaparece, todavia, por completo uma
compreensão antropológica do ser imagem da Trindade que relacione o
homem com a comunhão das pessoas divinas. Estão filão relacional será
mantido, sobretudo, pela mística, de um modo suspeito e marginal.
Recordemos dois exemplos, separados no tempo e no espaço, a ermita leiga
inglesa, Juliana de Norwich (1342-1416) e o Cardeal alemão Nicolau de
Cusa (1401-1464). Fazendo eco da espiritualidade e dos debates trinitários
medievais, ligados à tradição cisterciense, afirma Juliana: «Pela nossa
criação, Deus todo-poderoso é o Pai da nossa natureza, Deus todo-
sabedoria é a mãe da nossa natureza, no amor e na bondade do Espírito
Santo, um só Deus, um só Senhor». A paternidade pertence a Deus-Pai, a
maternidade a Cristo, a senhoria da graça e da misericórdia ao Espírito
Santo: «Em nosso Pai todo-poderoso temos desde toda a eternidade a nossa
salvaguarda e a nossa felicidade, no que diz respeito à natureza substancial
que Ele nos deu ao nos criar. Na segunda Pessoa, pela sua inteligência e
pela sua sabedoria, nós temos a nossa protecção, no que toca à nossa
sensualidade, a nossa restauração e a nossa salvação. Em nosso Senhor o
Espírito Santo, nós temos a nossa recompensa e o dom para viver e agir, e
eles ultrapassam tudo o que podemos desejar, graças à maravilhosa cortesia
da sua alta graça sobreabundante»22.
Quando Nicolau de Cusa escreve na sua obra De visione Dei (Paris
1514), «tu, Deus meu, que és amor, és amor amante e amor amável e o
nexo do amor amante e do amor amável»23, não deixamos de reconhecer a
trilogia ternária agostiniana: O Pai, o amor amante; o Filho, o amor amado
e o Espírito Santo, o amor que relaciona o Amante e o Amado. Com a
analogia do Amor, o Cardeal alemão mergulha no mistério da união e da
alteridade amorosa da comunhão trinitária, sem, contudo, nomear e
identificar explicitamente as pessoas divinas. Na unidade do mesmo amor
(«a essência do amor perfeito»), há alteridade na realização do mesmo
amor, conforme o ser relação (a especificação amorosa) de cada uma das
pessoas divinas. Deus é uma unidade e pluralidade de amor, «pluralidade
por ser unidade, unidade por ser pluralidade»; «pluralidade de
singularidade, unitrino e triuno»24. Ou, no seu típico jogo de contrários («a
coincidência dos opostos»), Deus é «alteridade sem alteridade, porque é
22
JULIENNE DE NORWICH, Le livre des révelations, Paris 1992, 196-197.
23
NICOLAU DE CUSA, A visão de Deus, Lisboa 19982, 197.
24
NICOLAU DE CUSA, A visão de Deus, 199.
63
uma alteridade que é identidade»25. E numa linguagem dialogal e orante,
Nicolau de Cusa explicita, a partir de uma concepção subjectiva e
pessoalizada, a dimensão trinitária do homem: «Eu sou o amante, eu sou o
amável, eu sou o nexo. Um só é o amor, sem o qual não pode haver
nenhum três. Sou um só, eu que sou o amante, eu mesmo que sou o amável,
eu mesmo que sou o nexo que brota do amor com que me amo» 26. A
unidade da pessoa, que se fundamenta numa ontologia do amor pessoal (o
próprio amor trinitário), comporta uma pluralidade de dimensões (ser
amante, ser amável, ser nexo do amor). Recordamos as evidentes
aproximações às tríades agostinianas do homem enquanto imagem da
Trindade. Em sua subjectividade, o homem experimenta-se como uma
unidade ternária (uma pluralidade), porque essa é a essência do amor.
Tanto em Deus como no homem, «o amor é de uma essência ternária»27,
sem que isso signifique qualquer identificação entre a tríade do amor
humano e a pluralidade do amor trinitário.
25
NICOLAU DE CUSA, A visão de Deus, 200.
26
NICOLAU DE CUSA, A visão de Deus, 201.
27
NICOLAU DE CUSA, A visão de Deus, 202.
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