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2.

O homem, imagem de Deus

2.1. Perspectiva bíblica

2.1.1. O homem criado à imagem de Deus no AT

Poucas vezes o temo «imagem de Deus» é utilizado no Antigo


Testamento. E quando ocorre é, sobretudo, nos textos da chamada tradição
sacerdotal (Gn 1,26-27; 5, 1-2). O grande tema veterotestamentário é o da
Aliança. Todavia foi nesses textos (escassos) da imagem de Deus que o
Novo Testamento foi beber a sua antropologia cristológica, ou melhor, a
sua cristologia antropológica.
Comecemos por Gn 5,1-2: «No dia em que Deus criou Adão, Ele o
fez à semelhança de Deus. Homem e mulher Ele os criou, abençoou-
os e deu-lhes o nome de Homem, no dia em que foram criados». Este
texto parece ser o rascunho de Gn 1,26-27. Aqui não se usa a palavra
imagem; utiliza-se o nome de Adão, como sinónimo de ser humano.
Gn 1,26-27 é, sem dúvida, o texto decisivo:

«Eloim disse. “Façamos o homem (`adam) à nossa imagem, como à


nossa semelhança”. E Eloim criou o homem (há`adam) à sua
imagem. À imagem de Eloim Ele o criou, macho e fêmea Ele os
criou»1.

Segundo a Bíblia de Jerusalém, o recurso ao termo «semelhança»


parece querer atenuar o sentido de «imagem», que poderia indicar uma
paridade entre Deus e o homem. O texto aparece em claro contraste com a
proibição de se fazer qualquer imagem de Deus (cf. Ex 20,4-5), de modo a
salvaguardar a sua absoluta transcendência. Mas como ter então acesso a
Deus? O homem é a única mediação para Deus, uma mediação carnal,
corpórea, que tem em Cristo o seu ápice. As interpretações destes
versículos têm oscilado entre dois pólos: ou se localiza o ser imagem nas
qualidades espirituais, tais como racionalidade, capacidade para o
sobrenatural, ou se remete para qualidades físicossomáticas (a imagem
divina consistiria no rosto, na figura). Porém, a antropologia
veterotestamentária não conhece uma dicotomia entre o anímico e o
somático. É o homem na sua inteireza e na sua unidade que é imagem de

1
Em Sb 2,23-24, já sob o influxo da cultura helenística, a «imagem» é
concebida de um modo estático, a partir da natureza divina, como qualidade do homem:
«Deus criou o homem para a incorruptibilidade e fê-lo imagem da sua própria natureza
(literalmente, “da sua própria substância”)». Estamos já perante um empobrecimento da
concepção relacional do ser imagem de Deus

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Deus. O somático pertence também ao ser imagem e este não se
circunscreve às dimensões meramente anímicas, de índole não corpóreo2.
Aliás, todas as funções anímicas são portadoras de uma somatização
própria, pois acontecem no concreto da pessoa em sua condição corpórea3.
Interroguemos sobre o porquê do plural «Façamos»: Reminiscência
de uma concepção politeísta de uma assembleia de deuses que toma uma
deliberação conjunta? Estilo retórico de um plural deliberativo, através do
qual o texto procura assinalar a diferença do homem (fruto de uma decisão
divina) em relação às demais criaturas? Referência a uma divindade
universal, como poderia indicar o plural Eloim, que fala com os seus anjos,
no estilo majestático de uma corte celeste? Meditação de Deus consigo
mesmo, numa intensa comunicação interior, a indicar que o homem brota
da sua reflexão íntima, como se Deus falasse com uma alteridade dentro de
si mesmo? (Moltmann, 280). Várias são, pois, as soluções exegéticas
deixadas em aberto. Não é de excluir, igualmente, uma possível aplicação
antropológica do verbo «façamos». O plural «nós» aqui incluiria a acção
divina e a humana em conjunto. O sujeito da criação seria Deus e o
homem. Neste caso, o dizer de Deus seria dizer ao homem. Deus
responsabiliza-se pelo homem e responsabiliza o homem pelo seu próprio
fazer(-se). O homem faz o homem, o homem faz-se homem. A mudança do
verbo criar (barah) pelo verbo «fazer» deixa em aberto uma possível
extensão antropológica (Pikaza, 36-37).
«O homem (`Adam) à nossa imagem como à nossa semelhança»: Ao
contrário da literatura egípcia que só atribuía ao rei a semelhança com
Deus, Gn 1,26-27 coloca todos os homens nessa possibilidade. Estamos
perante uma «democratização» da mediação divina: Todos os homens são
mediação de Deus enquanto sua imagem. Assim se afirma a recusa de uma
estrutura autoritária, de qualquer sistema, na mediação entre Deus e o
homem. Estamos perante uma recusa de toda a sacralização do poder em
detrimento da fraternidade. Segundo o texto, a grandeza do homem está
acima da grandeza do rei. «Imagem» (selem) indica a estátua, a

2
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios. Antropología teológica
fundamental, Santander 1988, 42; J. B. GREEN. «Restoring the Human Person: New
Testament Voices for a Wholistic and Social Anthropology», in R. J. RUSSELL – N.
MURPHY – T. C. MEYERING – M. A. ARBIB (ed.), Neuroscience and Person, 6-7.
3
Igual perspectiva antropológica está presente na narrativa javista em Gn 2,7:
«Iahweh Deus modelou o homem com argila do solo, insuflou em suas narinas um
hálito de vida e o homem tornou-se um ser vivente». Comentando este versículo, afirma
Ruiz de la Peña em ID, 31: «O que Deus “forma” do pó da terra não é o corpo, mas o
homem. O que Deus “insufla” não é a alma, mas o “alento” (neshamah), vocábulo
praticamente sinónimo de nefesh. O resultado desta operação em dois tempos é o “ser
vivente” (nefesh hajja)». Cf. N. M. LOSS, «La dottrina antropologica di Genesi 1-11»,
in G. DE GENNARO (ed.), L’antropologia biblica, Nápoles 1981, 181; H. W. WOLFF,
Antropología del Antiguo Testamento, 40-41.

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representação plástica, podendo até compreender as estátuas dos ídolos
proibidas pela lei. É um termo que designa uma representação concreta
(tipo retrato). «Como à sua semelhança» (demut, derivação do verbo
damah, que significa «ser como», «assemelhar»). «Semelhança» refere-se à
relação entre duas realidades comparáveis pelo seu aspecto, num
simultâneo movimento de aproximação e diferenciação. O homem recebe
de Deus o seu ser imagem, como representação e estátua viva na criação,
mas não se confunde com Deus. Assemelha-se numa insuperável distância,
que nunca os identifica nem os confunde.

Contudo Gn 1, 26 não oferece uma definição de homem. O enigma-


homem é aqui resolvido com uma descrição do seu ser relacional. O
homem constitui-se, decifra-se e realiza-se na relação com Deus, pois é
criado como um tu, uma alteridade relacional: «A criação do homem à
imagem de Deus tem como intenção um evento entre Deus e o homem. O
criador cria uma criatura que lhe é conforme, à qual pode falar e que o pode
escutar. Sublinhe-se que o “homem/`Adam” nesta narrativa é um termo
colectivo; na criação à imagem de Deus, pena-se, antes de mais, não num
indivíduo existente por si, mas antes na humanidade, no género humano. A
humanidade é criada como parceiro de Deus» (Westermann/Brambilla,
314). O homem é um ser de relação para com Deus, ser de relação para
com a inteira criação e ser de relação para com o semelhante. A dimensão
relacional é constitutiva do ser homem. Uma ontologia da relação é anterior
a toda e qualquer ética da relação, pois é nela que esta se funda. «Quem
derrama o sangue do homem, pelo homem terá o seu sangue derramado.
Pois à imagem de Deus o homem foi feito» (Gn 9,6). A proibição de
derramar sangue humano apoia-se na grandeza e na dignidade do homem
enquanto imagem de Deus. A condição de ser imagem de Deus, de ordem
relacional e ontológica, implica uma ética, pede e exige comportamentos de
fraternidade. Aqui radica o autêntico culto a Deus: Defender a dignidade da
imagem divina, a dignidade humana, em todas as suas dimensões.
O ser humano é, primária e constitutivamente, um ser de relação para
com Deus enquanto imagem sua. Efectivamente, Adão é, enquanto imagem
de Deus, Senhor da criação, superior ao resto das criaturas, responsável
pelo seu governo. Se é certo que depende de Deus, essa dependência é,
precisamente, o que o liberta de todas as demais dependências. Eis aqui o
radical fundamento da liberdade e da dignidade humanas4. O termo
imagem indica uma reciprocidade relacional; manifesta que Deus é o tu
iniludível de Adão, mas também que, ao contrário, Adão é o tu de Deus.
4
Para Ruiz de la Peña, o termo «imagem de Deus» indica um dos mínimos
inegociáveis da antropologia cristã, precisamente o reconhecimento do ser humano
como qualitativamente superior e irredutível a qualquer outro ser mundano: «Homo
cyberneticus?...», 110-111.

50
Quando Deus cria Adão, cria um ser correspondente, capaz de responder ao
«tu» divino, porque capaz de responder a partir do próprio «eu». A imagem
de Deus é, pois, pessoa5.
«Homem (macho) e mulher (fêmea) os criou»: Esta afirmação parece
matizar a anterior («Eloim criou o humano à sua imagem»). Surge aqui a
aproximação do ser humano aos animais, pois «macho e fêmea» são termos
que, habitualmente, se aplicam aos animais. O homem não se assemelha
apenas a Deus, tem também um parentesco com a besta, que o desumaniza
e o afasta da semelhança com Deus. O ser humano é um ser intermediário
entre o divino e o animalesco, que se pode realizar num sentido ou noutro.
Com Deus partilha uma «imagem» (participa da divindade); com os
animais comunga da mesma condição animalesca. A animalidade é uma
força que estrutura e desintegra a humanidade a partir de dentro, numa
desumanização que é dissemelhança divina. Macho e fêmea nada teria aqui
de positividade da alteridade sexual. Se não for dominada e integrada, esta
força vital pode rapidamente degenerar em violência. Em todo o humano,
há algo de selvagem que espera ser domesticado e humanizado. Tornar-se
humano será então aprender a dominar a força selvagem do desejo, das
emoções, da sexualidade, que nos marca em nossa diferença mas também
em nossa proximidade com os animais. Não está o «macho» ligado a uma
cultura da virilidade, que não é mais do que uma cultura da brutalidade? O
ser humano é chamado a ser pastor da sua própria animalidade (WENIN,
40-44)
O verbo «barah» (criar) significa «fazer de novo», «algo de nunca
antes visto», «inaudito», e tem Deus como único sujeito. Barah significa
também separar. Na frase há um duplo criar: primeiro afirmar-se a relação
de Deus com a humanidade inteira (`Adam com sentido colectivo), e depois
a criação da alteridade sexual homem-mulher (macho-fêmea). Na
interpretação deste versículo situa-se um complexo e fecundo debate
exegético, que intencionalmente referimos em sua pluralidade de
perspectivas, pelos horizontes de actualização que pode abrir:
a) A dimensão relacional seria anterior à aleteridade sexual e à
identidade de género, pois afirma-se como prévia na própria
narrativa a criação da humanidade em sua dimensão colectiva. A
dimensão relacional inscrever-se-ia no próprio ser da pessoa,
como algo de anterior e de prévio à sua própria condição sexual.
A relação homem-mulher, polarizando a complementaridade
relacional, não a esgota, porque a dimensão relacional é algo de
ontologicamente prévio às questões de género e de
identidade/condição sexual. Esta leitura permitira o diálogo com
questões antropológicas de fronteira que, intensa e

5
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Creación, gracia, salvación, 66.

51
apaixonadamente, se debatem na cultura contemporâneas,
precisamente pelos novos estados de consciência e de existência
nelas implicados (a condição sexual, a problemática da identidade
de género não apenas em sua determinação biológica mas
também em sua construção cultural e social, a relação afectiva
entre pessoas do mesmo sexo, as problemáticas ética e de
construção e afirmação da identidade sexual levantadas hoje pela
mudança de sexo, pela transexualidade…). Esta posição é,
assumidamente, heterodoxa. O que parece conter em intuição,
corre o risco de não ser suficientemente confirmado pela própria
crítica textual.
b) A imagem de Deus realiza-se na alteridade sexual entre homem e
mulher. Pois é na alteridade da identidade sexual que cada pessoa
descobre a sua masculinidade e a sua feminilidade.
Consequentemente, afirma-se uma paridade de dignidade na
relação homem-mulher. A verdadeira humanidade é dada na
polaridade do masculino e do feminino, evocando com
essencialidade e profundidade o significado da alteridade e da
relação sexuais. Tal significa a exclusão de toda e qualquer
discriminação, porque empobrece a humanidade do homem e da
mulher. O texto bíblico aludiria, assim, ao sentido profundo
antropológico do encontro sexual, que pertence à plena realização
da condição humana (Brambilla, 351). Esta é a interpretação
tradicionalmente defendida pelo Magistério da Igreja: «A
humanidade aqui é descrita como articulada, desde a sua primeira
origem, na relação do masculino e do feminino. É esta
humanidade sexuada que é explicitamente declarada “imagem de
Deus” (…). “O homem é uma pessoa em uma pessoa em igual
medida, o homem e a mulher” (João Paulo II). A dignidade das
pessoas realiza-se como complementaridade física, psicológica e
ontológica, dando lugar a uma harmoniosa “universalidade
relacional, que só o pecado e as “estruturas de pecado”, inscritas
na cultura tornaram potencialmente conflituosa. A antropologia
bíblica convida a enfrentar com uma dignidade relacional, não
concorrencial nem de desforra, os problemas de sexo»
(CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Carta aos
Bispos da Igreja Católica sobre a colaboração do homem e da
mulher na Igreja e no mundo, 5.8).
O homem como ser-de-relação (a partir de sua determinação
ontológica teologal) realiza-se na sociabilidade, na relação a um
tu: «O homem realiza-se como tal na bipolaridade sexual de varão
e mulher, que o autor vê ordenado à procriação» (J. L. RUIZ DE
PEÑA…). Ruiz da la Peña privilegia aqui uma interpretação do

52
ser-imagem como sociabilidade, concretizada na relação esponsal
homem-mulher, expressão da efectiva e afectiva dimensão
comunional e relaciona do ser humano: «no colectivo adam
(substantivo colectivo) surge já essa sociabilidade, «pois só a
comunidade humana, a humanidade enquanto tal, e não o
indivíduo isolado, pode executar o encargo divino de encher a
terra e de submetê-la; somente como ser comunitário realiza Adão
o seu carácter de imagem» (J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de
Dios, 46).

O relato continua com a bênção e o mandato: V. 28: «Deus


abençoou-os e disse-lhes: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e
submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os
animais que rastejam sobre a terra». Tanto os homens como os animais são
destinatários da bênção de Deus. Esta é compreendida não só na
capacidade de gerar vida, mas também de lhe dar crescimento e amparo. A
fecundidade é uma força criadora (divina) presente no dinamismo biológico
e antropológico da procriação. Porque abençoada, a fecundidade humana
resulta dom (graça). Deus dá ao homem (e aos animais) a capacidade de
serem fecundos, porque o próprio Deus é fecundo enquanto fonte de toda a
vida. Ele é o vivente (BRAMBILLA, 315).
«Dominar» (radah) significa colocar debaixo dos pés, esmagar,
como se faz com as uvas. É utilizado para descrever o pode soberano de um
rei (cf. 1 Re 5,4; Sl 110,1). «Submeter» (kabash) tem conotações
guerreiras, com o sentido de subjugar, de submeter o vencido ao poder do
vencedor (Nm 32,29; 2 Sm 8,11); significa fazer escravos (cf. Jer 34,11-
16). Os verbos, à primeira vista, parecem que o homem recebe um mandato
divino de exercer uma força despótica, violenta até, sobre a criação. Lidos
apenas nesta perspectiva, poderíamos pensar que Deus dá ao homem um
poder discricionário sobre a criação. O domínio do homem sobre a terra é
apresentado como um poder próprio do ser rei. Mas também é missão do
rei assegurar a paz e o bem-estar, ser mediador para povo da bênção divina.
O domínio sobre a terra é um aspecto da bênção divina concedida ao
homem. O homem é rei da criação à imagem do senhor da criação que é
Deus (BRAMBILLA, 316).
O domínio, aparentemente, discricionário é limitado pelo dom de
uma alimentação vegetariana, que não passa pela violência do sacrifício da
vida animal: «E vos dou todas as árvores que dão semente, que estão sob a
superfície d a terra e todas as árvores que dão frutos que dão sementes: isso
será o vosso alimento» (vv. 28-29). Comendo frutos de árvores com
sementes, o homem não destrói a vida, porque esta continua nas sementes
que sobram dos frutos. A própria alimentação não introduz uma ruptura na
fecundidade da vida, que continua a semear-se a colher-se. «O dom de uma

53
alimentação vegetariana constitui, portanto, um discreto convite a pôr um
limite a exercer a sua chefia sem violência, pois não tem necessidade para
se alimentar de matar o animal e de o comer» (WENIN, 42). O domínio do
homem sobre os animais pode ser isento de violência. O que qualifica a
imagem não é somente a supremacia sobre os animais, mas a maneira pela
qual este domínio se exerce. O ser humano tem um limite: respeitar a vida e
o lugar dos animais na criação. O v. 30 estende a ementa vegetariana a
todos os animais ligados à terra, incluindo as aves. Profecia de uma paz
universal, de respeito pela vida. «A vida não precisa de morte para se
sustentar. O domínio conferido ao homem sobre o animai não implica um
direito discricionário de vida ou de morte» (RUIZ DE LA PEÑA, 47).
A relação de dependência do homem para com Deus resolve-se,
paradoxalmente, no próprio fundamento da superioridade humana sobre o
resto da criação (cf. Gn 1,16.28;). Adão é a coroação da obra divina; as
demais criaturas são para ele, com a mesma verdade que ele é para Deus.
Esta superioridade não significa uma supremacia caprichosa sobre o criado,
mas que o homem deve governar o criado em nome do próprio Deus,
perante quem é responsável. Todavia é tarefa da teologia cristã libertar a fé
na criação de uma visão excessivamente antropocêntrica do mundo, que
reduz a natureza a objecto de usufruto, de manipulação e de intervenção6. A
diferença do ser humano perante as demais criaturas não implica oposição,
mas sim alteridade. O ser humano faz parte da própria criação, sendo ele
próprio criatura também. Acolhendo a dimensão antropocêntrica das
narrativas bíblicas sobre as origens, acrescentamos que esta não é
exclusiva; completa-se com um dimensão teocêntrica e geocêntrica, se
preferirmos, cosmocêntrica7. O homem situa-se, portanto, numa dupla
relação, para com Deus e para com o mundo, de inferioridade e de
superioridade respectivamente. Mas o homem realiza ainda uma outra
dimensão relacional, para com o tu, o semelhante. É a polaridade homem-
mulher o que realiza cabalmente a essência do homem enquanto imagem de
Deus (cf. Gn 1,27-28). E é a comunidade humana aquela que recebe,
corporativamente, o encargo de governar a terra.
Somente com o homem alcança o agir de Deus o seu record de
bondade: «E Deus viu que estava muito bem» (v. 31ª). Tudo está
excelentemente bem feito. Deus contempla a beleza do criador, que
encontra a sua suprema beleza/bondade no ser humano. Esta contemplação
do criado implica um distanciar-se de Deus, que olha para o que fez. Neste
contemplar distanciado expressa-se a alteridade entre a criação e o criador.
As coisas e os seres não são Deus. Deus suspende constantemente a sua
acção para repousar o seu olhar, e neste antecipado «repouso» Deus dá
espaço de liberdade para as coisas e o homem serem eles próprios. «Para
6
Cf. J. MOLTMANN, Dieu dans la création, 49.
7
Cf. D. J. HALL, Être image de Dieu, 313.

54
fazer ser o que ele criou, considera-o a partir de um olhar que ele abre um
espaço onde o criado vai poder existir» (WENIN, 35).
O sábado acaba a criação. O último dia da semana criadora é o
primeiro dia da existência humana. «Recem-chegado ao ser, Adão
encontra-se não perante a fatiga do trabalho e da obrigação, mas perante o
gozo do descanso, no âmbito da celebração festiva da sua relação com
Deus» (RUIZ DE LA PEÑA, 47). O sábado é um limite (uma paragem e
distância) que Deus impõe à sua capacidade criadora. Deus auto-limita-se
para dar espaço à autonomia do homem e do mundo. Deus dá espaço para
que as criaturas aconteçam em liberdade, para que sejam elas próprias.
«Deus concluiu no sétimo dia a obra que fizera e no sétimo dia descansou,
depois de toda a obra que fizera» (Gn 2,3ª). Deste modo Deus prepara o
terreno para a aliança, que pressupões parceiros livres e autónomos. Um dia
por semana o homem deixa de se fazer activamente. O trabalho, o domínio
e a acção não são o exclusivo da vida humana. O repouso e a festa, a
celebração do gratuito da vida, pertencem também ao ser imagem. No
silêncio sabático, os homens não intervêm através do seu trabalho no
ordenamento do mundo. É o tempo do reconhecimento de que a criação
não é pertença do homem. O sábado constitui, assim, a festa da criação,
profecia escatológica já inscrita nas origens. O sábado aponta para o fim da
criação. Deus deixa as criaturas serem elas próprias. Deus silencia-se
revelando o ser próprio das criaturas. «O repouso do homem das suas obras
humanas torna-se sinal antecipado da festa eterna da glória divina»
(MOLTMANN, 35). O sábado anuncia o «dia do Senhor», o sábado eterno.
Diz ao mesmo tempo a transcendência da alteridade de Deus e a imanência
da sua presença no mundo. Deus é uma voz/palavra de silêncio. O homem
encontra-se no mundo perante o silêncio de Deus. O descanso de Deus é
também descanso da sua palavra criadora. O silêncio de Deus marca o
ritmo da existência: não podemos ter a pretensão de dominar, interpretar,
nomear tudo. Há espaços, realidades, acontecimentos, vivências que são
indizíveis, em que a palavra se recolhe e se cala. Trata-se de uma atitude
respeitosa de fazer acontecer a liberdade do outro, ou o outro em liberdade.

Outras passagens veterotestamentárias:

Gn 5,1-2: «No dia em que Deus criou Adão, Ele o fez à semelhança
de Deus. Homem e mulher ele os criou, abençoou-os e deu-lhes o
nome humano no dia em foram criados. Quando Adão completou
cento e trinta anos gerou um filho à sua semelhança, como à sua
imagem e lhe de o nome de Set».

A semelhança divina é transmitida pela geração adâmica. A imagem não


está acabada, continua no prolongamento e na propagação da humanidade.

55
Pelo facto de entrar na comunidade humana, por geração biológica, o
homem é portador da sua condição ontológica de ser imagem de Deus. A
passagem de uma geração à outra não implica nenhum défice de
humanidade: o filho é tão humano quanto o pai (WENIN,172). Importa
dizer que a geração não é apenas biológica; é um processo afectivo,
relacional, que permanece e define a identidade do ser pai e do ser filho. O
pai gera continuamente o filho como imagem de Deus na relação; o filho
consente ser gerado, na relação, com o pai. A relação paternidade-filação,
como igualmente a relação esponsal homem-mulher, estão ao mesmo nível
na determinação humana do ser imagem de Deus. O que define bem esta
determinação como realidade ontológica e relacional, através dos graus de
parentesco, elos primários e subsistentes na estruturação da sociabilidade
humana, da comunidade como um «nós» que se vai fazendo na história.

Sab 2,23: «Deus criou o homem para a incorruptibilidade e fê-lo


imagem da sua própria natureza (lit, «de sua própria propriedade»/ «de sua
própria eternidade»).

O homem é criado a partir da vida eterna de Deus e o seu destino só pode


ser a eternidade/a incorruptibilidade da vida. O homem tem a sua origem e
seu fim na vida eterna de Deus, que lhe acontece como dom. No início
inscreve-se já o fim (no protos o eschaton). A vida humana cumpre-se
como história de fecundidade da vida recebida como dom e que só em
Deus se cumpre. O homem é imagem da eternidade de Deus na
temporalidade da sua finitude.

2.2.2. A dimensão cristológica do ser imagem de Deus no NT

No Novo Testamento o tema da imagem divina tem uma


centralidade exclusivamente cristológica: Cristo é a verdadeira imagem de
Deus e a plena realização do ser humano. Será Paulo, sobre tudo, quem fará
esse desenvolvimento cristológico da «imagem de Deus», em estreita
ralação com o tema da redenção (a soteriologia). Cristo, imagem verdadeira
de Deus, restabelece e consuma, ao mesmo tempo, a imagem do homem
obscurecida pelo pecado.

a. Cristo é a verdadeira imagem de Deus

Cristo é «a imagem do Deus invisível» (Col 1,15s); «... onde


resplandece a glória de Cristo, que é imagem de Deus» (2 Cor 4,4); «Sendo
56
Ele [Cristo] o resplendor da sua glória e a imagem da sua substância (...)»
(Hb 1,3). Podemos verificar que nestas passagens se faz uma alusão clara a
Gn 1,26, interpretando essa passagem em sentido cristológico. Cristo, como
imagem perfeita de Deus, é o mediador de toda a criação, porque n’Ele
foram criadas todas as coisas: «Tudo foi criado por Ele. Ele subsiste antes
de todas as coisas e por Ele tudo subsiste» (Col 1,16-17). Cristo, enquanto
homem perfeito, é a meta não só de toda a criação (cf. Col 1,15 b), mas
sobretudo da nova criação (Col 1,18). Ele é o princípio, o primogénito de
dentre os mortos. O homem de Gn 1,26-27 não é senão a promessa
profética do verdadeiro homem futuro, Cristo: « [Adão] é a figura d’Aquele
que havia de vir» (Rm 5,14) nos últimos tempos, cumprindo e realizando,
sua obediência, a antiga promessa (cf. Fil 2,6-11; Col 1,15-20).

b. A semelhança divina do homem é participação


na semelhança divina de Cristo

O homem reflecte a glória de Deus através de uma contínua


transformação gloriosa na imagem de Cristo, mediante a acção do Espírito
(cf. 2 Cor 3,18). O homem está, assim, predestinado a se conformar à
imagem do Filho (cf. Rm 8,29). É na comunhão com Cristo, no Espírito,
que o homem recupera o brilho da imagem obscurecida pelo pecado, e se
converte em verdadeira imagem de Deus. A segunda criação supera e
consuma a primeira: «Não mintais uns aos outros, já que vos despistes do
homem velho com as suas obras e vos revestistes do homem novo (Col 3,9-
10). Com os termos «velho» e «novo» Paulo indica que a conformação à
imagem de Cristo é esse despojar-se de uma imagem velha e o revestir-se
de uma outra, ou seja, a conversão pela fé que justifica. O «revestir-se» de
Cristo indica a nova realidade humana da comunhão com Cristo, que o
baptismo significa. Por outras palavras, esse revestimento da «imagem de
Cristo» é puro dom, total gratuidade. Para Paulo, a maturidade cristã do
homem, o seu tornar-se pessoa, coincide com a cristificação, o tornar-se
homem «à medida da estatura de Cristo» (Ef 4,1).

c. Síntese teológica

A leitura cristológica do conceito veterotestamentário do homem


criado à imagem de Deus, interpreta as origens a partir da plenitude
escatológica de Cristo ressuscitado. Cristo é a origem do mundo, do mesmo
modo de que é também a sua plenitude. À luz do acontecimento-Cristo, o
texto veterotestamentário de Gn 1,26-27, mais do que uma afirmação sobre
a origem, contém uma afirmação sobre o fim, há-de ser entendido

57
teleológica ou escatologicamente, e não protologicamente8. Ser imagem de
Deus é viver «em Cristo». Se o Antigo Testamento estipula que não há vida
verdadeira fora da relação com Deus, Paulo pensa que não há vida humana
cabal fora da conformação com Cristo. As únicas duas opções que se
oferecem ao homem são ou «em Cristo» ou «em Adão». Ser em Adão é
pertencer ao «homem velho», à condição efémera e já caduca. Pelo
contrário, quem é em Cristo é «uma nova criação» (2 Cor 5,17; Gal 6,15).
Os que são em Adão levam sobre si os estigmas do pecado e da morte; os
que são em Cristo estão ligados à fonte da verdadeira vida, pois Cristo
também é chamado «vida nossa» (Col 3,4)9.
Passando da teologia bíblica à teologia sistemática, podemos
concluir que, para a fé cristã, a antropologia está em função da cristologia;
o que, segundo o Novo Testamento, define o ser humano não é nem um
enunciado abstracto nem o «Adão» do Antigo Testamento, mas Jesus
Cristo, «imagem de Deus», o novo e o verdadeiro Adão10. A cristologia
reforça e define a condição própria do ser homem. Em sua criaturalidade
adâmica, o homem é chamado a tornar-se filho em Cristo, o Filho de Deus
encarnado-humanado. A encarnação de Cristo e a sua consequente
ressurreição conduzem a humanidade àquela condição para a qual Deus a
criou, a filiação divina no amor. O Homem Novo é o homem plenamente
filializado no Espírito. Este homem Novo realiza-se escatologicamente,
antes de mais, em Cristo, e pelo dom do seu Espírito vivificador em toda a
humanidade. A antropologia neotestamentária funda-se, pois. numa
cristologia pneumatológica (ou trinitária), que nos apresenta Cristo, homem
novo, enquanto Filho de Deus gerado no mundo, em nossa condição carnal,
pelo Espírito do amor eterno. Mais profundamente do que descendentes de
Adão, os homens são criados num outro antepassado que é o é também
futuro: Cristo, no qual são e se tornam filhos de Deus. Mais do que dos
seus inícios imperfeitos, os homens dependem da plenitude filial que vem
no fim, de Cristo plena realização do homem novo pelo Espírito da filiação
divina11.

2.2. O homem como imagem divina na história do cristianismo

Inspirada nos textos paulinos, a reflexão cristã do homem enquanto


imagem de Deus tem uma fundamentação preponderantemente
cristológica. Sendo Cristo a imagem visível do Deus invisível em a sua
8
J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 80-81.
9
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 81.
10
J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios, 83.
11
Cf. F.-X DURRWELL, O Pai. Deus em seu mistério, S. Paulo 1990, 106.

58
encarnação, Ele é o protótipo (a imagem arquetípica) do homem. Criado à
imagem de Cristo, é em Cristo que o homem se plenifica em sua
«iconeidade» filial, no seu ser imagem à semelhança do próprio Filho. Esta
orientação antropológica decididamente cristológica, presente na patrística
tanto grega como latina, não contraria uma dimensão trinitária, porque o
Verbo, tanto em sua preexistência como em sua encarnação, é a pessoa do
Filho. Só que esta perspectiva acaba por relacionar o homem
preponderantemente com a pessoa do Filho, não sendo explicitamente
envolvidas as demais pessoas trinitárias. Todavia, a partir desta perspectiva
cristológica do ser icónico do homem, encontramos também uma
claramente trinitária, tanto no Oriente como no Ocidente. No Oriente
desenvolveu-se à volta do debate trinitário com os Padres Capadócios e no
Ocidente consolida-se com Agostinho, sendo depois retomada por S.
Tomás.

2.2.1. O homem imagem do Verbo

A noção bíblica de «imagem de Deus» foi interpretada pelos Padres


da Igreja com categorias da cultura grega. Segundo esta, ao mundo visível
contrapunha o mundo invisível. Esta ideia é central no platonismo. O
mundo das ideias é o modelo das coisas visíveis, que estabelece o
fundamento ontológico do criado. As coisas visíveis enquanto imagens
participam da substância do protótipo, a imagem original. Outra ideia
presente na cultura grega, e bastante desenvolvida na Patrística, é o tema da
divinização, da semelhança do homem com Deus, também presente na
filosofia platónica. Apesar do ambiente cultural envolvente, a Patrística
soube manter-se fiel à origem bíblica da fé cristã. O tema paulino de Cristo
verdadeira imagem de Deus e o tema joanino da encarnação do Verbo
serão relacionados com o tema veterotestamentário do homem criado à
imagem e à semelhança de Deus. Aquilo que em Paulo e em João é leitura
cristológica, será convertido pela Patrística em leitura antropológica, tendo
como fundamento a cristologia12.
O homem sendo criado à imagem do Deus infinito, é chamado pela
própria natureza a ultrapassar os limites da criação e a tornar-se infinito. O
homem é capaz de Deus, segundo Atanásio, e por isso está em permanente
progressão, em constante desenvolvimento. O homem é um
«microcosmos». É a síntese do universo, segundo Gregório de Nissa, ou
chamado a tornar-se Deus, segundo Basílio. O homem é, portanto, «um
vivente divinizado», pois possui uma vocação divina; é um ser teológico
12
Cf. P. NELAS, Le Vivant Divinisé. Anthropologie des Pères de l’Église, Paris
1989, 15-31.

59
por natureza, que só em Deus se realiza. Assim sendo, o homem tende para
Deus, porque possui um elemento divino em si próprio. Esse elemento
divino é explicado pelos Padres em sentido cristológico: Cristo, modelo de
toda a criação, é o arquétipo do homem. Daí que a verdade ontológica do
homem não se encontre em si mesmo, mas no seu arquétipo. Há um
parentesco divino no homem, segundo Gregório de Nissa.
Para os Padres Gregos, Cristo, o Verbo encarnado é o fundamento da
própria criação. Eles têm uma visão de conjunto da história da salvação. A
salvação, sempre cristológica, é já vista pela mediação do Verbo. Não é o
antigo Adão que é modelo do novo, é o novo que modelou o antigo. Cristo
é o princípio e o fim de toda a humanização. É em vista do fim que Deus
tudo criou (Máximo o Confessor). O homem enquanto imagem de Deus
representa um dom, mas também um fim, uma propriedade e uma vocação.
O «à imagem» é uma potencialidade real, diríamos ontológica, mas
somente em potência, que deve conduzir à «união hipostática», ao
«casamento» da natureza humana com a natureza divina. Só então o ser
icónico do homem, ainda em potência, se torna efectivo13.
Deste destino hipostático e «icónico», tiram os Padres Gregos
algumas conclusões: a. Sendo o homem criado para Cristo, há nele uma
necessidade intrínseca de salvação, sempre necessária, mesmo sem a
realidade do pecado. A salvação não é apenas uma consequência do
pecado. O homem, destinado à plenitude, só se realiza como ver
verdadeiramente completo, integral, em Cristo. A Encarnação do Verbo
realiza a plenitude da criação, e esta está destinada àquela. Cristo é, assim,
a salvação do homem não somente pela libertação (redenção) dos pecados,
mas pelo cumprimento da sua vocação divina. E este cumprimento ter-se-ia
realizado mesmo se a queda original não tivesse acontecido. b. Segunda
conclusão: Chamado a divinizar-se, a autêntica divinização é cristificação.
Este dinamismo deve ser desligado da referência ao mal e ligado
unicamente a Cristo. O princípio divino e o fim teocêntrico do homem são
sempre infinitamente maiores do que o mal e o pecado, sempre relativos.
Todavia a cristificação implica um percurso, uma história, determinados
sobretudo pelo futuro, por Aquele que há-de vir. E o futuro não é o
resultado de um determinismo biológico, é a vinda de Cristo recapitulador
do universo, isto é, o Verbo no seu corpo e no seu cosmos transfigurados.

13
Cf. P. NELAS, Le Vivant Divinisé, 27.

60
2.2.1. O homem imagem da Trindade

Para além da centralidade cristológica da sua compreensão do


homem como imagem de Deus (imagem de Cristo), S.to Ireneu apresenta-
nos também uma antropologia trinitariamente fundada, ainda que de uma
forma pouco desenvolvida. A imagem trinitária está, claramente, presente
quando afirma que o homem é modelado pelas duas mãos do Pai, o Filho e
o Espírito Santo, aos quais diz: “Façamos o homem»14. O plural do
versículo bíblico é interpretado de uma forma trinitária. A iniciativa
criadora pertence ao Pai, que aparece como sujeito, mas dirigindo-se ao
Filho e o Espírito Santo, convocando-os para a mediação na criação do
homem. Há, todavia, um aspecto pneumatológico a sublinhar: É o homem
em sua inteireza de alma e corpo, que, «recebendo o Espírito de Deus
constitui o homem perfeito»15. Em Ireneu, o Espírito constitui o elo vital
que assegura a relação do homem como Deus; não se colocando,
precisamente, ao nível dos elementos antropológicos, é absolutamente
necessário para que acontece o homem em sua perfeita unidade
antropológica. É o Espírito Santo que garante, pois, a realização do homem
como ser espiritual. Todavia, a dimensão trinitária do ser imagem é, em
Ireneu, uma realidade explicitamente formulada em termos escatológicos,
entendendo por este termo aquilo que de definitivo se realizou em Cristo
para o homem: «Como no princípio da nossa formação em Adão o sopro da
vida vindo de Deus, unindo-se à obra modelada, animou o homem e fê-lo
aparecer como animal dotado de razão, assim, no fim, o Verbo do Pai e o
Espírito de Deus, unindo-se à antiga substância da obra modelada, isto é
Adão, tornou o homem vivo e perfeito, capaz de compreender o Pai
perfeito»16. Em síntese, podemos afirmar que em Ireneu a perspectiva
cristológica do ser imagem harmoniza-se com uma perspectiva trinitária,
pois Aquele à imagem do qual o homem foi criado é o próprio Filho, que
deveria encarnar para elevar o homem à semelhança consigo17.
É, contudo, com Agostinho que a concepção do homem como
imagem da Trindade se impõe no Ocidente latino. Esta sua concepção
situa-se já num contexto de maturidade dos debates trinitários. Para O
Bispo de Hipona não é suficiente considerar a imagem e a semelhança do
homem apenas referidas ao Verbo, porque este é da mesma essência que o
14
S. IRENEU, Adversus Haereses, V, Pr.4.
15
S. IRENEU, Adversus Haereses, V, 8,2: «(...) pois os espíritos sem corpo não
serão nunca homens espirituais; mas é a nossa substância – isto é o composto de alma e
carne – que, recebendo o Espírito de Deus, constitui o homem perfeito (sed substanti
nostra, hoc est animae et carnis adunatio, assumens Spiritu Dei spiritualem hominem
perficit)».
16
S. IRENEU, Adversus Haereses, V,1.
17
Cf. S. IRENEU, Démonstration de la prédication apostolique, 22: SC 406,
115.

61
Pai: «Deus é pois Trindade (...) devemos compreender o homem feito à
imagem da Trindade soberana, isto é, a imagem de Deus»18
Consequentemente, a imagem e a semelhança de um significa
necessariamente a imagem e semelhança do Outro. O sujeito de Gn 1,26
(«Façamos o homem à nossa imagem, à nossa semelhança») passa a ser
interpretado como a Trindade no seu conjunto. A alma do homem é, assim,
imagem e reflexo da Trindade no seu conjunto. Todavia é a análise do
amor que leva Agostinho a descobrir na alma humana a imagem divina: o
Amante, o Amado e o Amor. A alma possui três dimensões tão unidas entre
si que não podem existir uma sem as outras, embora sejam distintas: a
memória, a inteligência e a vontade; ou, numa outra tríade, a memória, a
inteligência e o amor. Esta tríade da alma reflecte a Trindade, Pai, Filho e
Espírito Santo. Estas três realidades são inseparáveis, e cada uma possui o
seu próprio ser. Todavia os três são uma única substância, que mutuamente
se relacionam no amor. Sendo o homem imagem da Trindade, pode-se
encontrar no mundo e no seu corpo «vestígios» da Trindade. Entre Deus
uno e trino e a sua imagem, a alma ou o espírito humano, existe uma
diferença fundamental: Na Trindade divina há três pessoas, enquanto no
homem um só. A memória, a inteligência e a vontade pertencem a um
único homem, mas não um único homem19.
S. Tomás retoma a tradição agostiniana da definição do homem
como imagem de Deus. O homem é imagem de Deus somente enquanto
espírito, ou seja, segundo a sua natureza intelectual, racional, pois é pela
alma tem capacidade de conhecer e amar a Deus. No Doutor Angélico,
«segundo a imagem» (referência a Gn 1,26) não significa Cristo, enquanto
imagem arquetípica de Deus, mas indica a distância e a imperfeição da
criatura em relação ao Criador; coloca em relevo a distinção entre Deus e o
homem. Além do mais, para S. Tomás o homem foi criado à imagem da
Trindade; essa é a razão principal da sua não recepção da mediação
cristológica do ser imagem, tão glosado pelo pensamento patrístico. O
homem é criado à imagem da Trindade de pessoas20. Mas aquilo que em
Agostinho constituía a distinção interpessoal (o Amante, o Amado e o
Amor) desaparece em S. Tomás para dar lugar à unidade. O homem é
imagem da Trindade não na sua comunhão interpessoal, não na alteridade
das pessoas divinas, mas na unidade substancial da sua unicidade. Dado
que as três pessoas divinas possuem a mesma essência, o espírito humano é
o reflexo da unidade substancial da Trindade21. O homem é imagem da
Trindade em sua unidade de essência e não na pluralidade das pessoas que

18
S.TO AGOTINHO, De Trinitate, VII, 6.12; XII, 7.9.
19
Cf. L. F. LADARIA, «L’homme créé à l’image de Dieu», in B. SESBÖUÉ
(ed.), Histoire des dogmes, II, Paris 1995, 112-113.
20
S. TOMÁS, Summa Theologiae, I, q.93, a. 1; a.5.
21
Cf. L. F. LADARIA, «L’homme créé à l’immage de Dieu», 132-133.

62
mutuamente se relacionam no amor. Estamos perante o predomínio da
essência sobre e relação, tanto em termos trinitários como em termos
antropológicos.
A reflexão teológica, marcada pelo essencialismo da filosofia
aristotélica, vai perdendo a dimensão relacional da Trindade e,
consequentemente, a antropologia daí consequente resulta, de igual modo,
essencialista e estática. Não desaparece, todavia, por completo uma
compreensão antropológica do ser imagem da Trindade que relacione o
homem com a comunhão das pessoas divinas. Estão filão relacional será
mantido, sobretudo, pela mística, de um modo suspeito e marginal.
Recordemos dois exemplos, separados no tempo e no espaço, a ermita leiga
inglesa, Juliana de Norwich (1342-1416) e o Cardeal alemão Nicolau de
Cusa (1401-1464). Fazendo eco da espiritualidade e dos debates trinitários
medievais, ligados à tradição cisterciense, afirma Juliana: «Pela nossa
criação, Deus todo-poderoso é o Pai da nossa natureza, Deus todo-
sabedoria é a mãe da nossa natureza, no amor e na bondade do Espírito
Santo, um só Deus, um só Senhor». A paternidade pertence a Deus-Pai, a
maternidade a Cristo, a senhoria da graça e da misericórdia ao Espírito
Santo: «Em nosso Pai todo-poderoso temos desde toda a eternidade a nossa
salvaguarda e a nossa felicidade, no que diz respeito à natureza substancial
que Ele nos deu ao nos criar. Na segunda Pessoa, pela sua inteligência e
pela sua sabedoria, nós temos a nossa protecção, no que toca à nossa
sensualidade, a nossa restauração e a nossa salvação. Em nosso Senhor o
Espírito Santo, nós temos a nossa recompensa e o dom para viver e agir, e
eles ultrapassam tudo o que podemos desejar, graças à maravilhosa cortesia
da sua alta graça sobreabundante»22.
Quando Nicolau de Cusa escreve na sua obra De visione Dei (Paris
1514), «tu, Deus meu, que és amor, és amor amante e amor amável e o
nexo do amor amante e do amor amável»23, não deixamos de reconhecer a
trilogia ternária agostiniana: O Pai, o amor amante; o Filho, o amor amado
e o Espírito Santo, o amor que relaciona o Amante e o Amado. Com a
analogia do Amor, o Cardeal alemão mergulha no mistério da união e da
alteridade amorosa da comunhão trinitária, sem, contudo, nomear e
identificar explicitamente as pessoas divinas. Na unidade do mesmo amor
(«a essência do amor perfeito»), há alteridade na realização do mesmo
amor, conforme o ser relação (a especificação amorosa) de cada uma das
pessoas divinas. Deus é uma unidade e pluralidade de amor, «pluralidade
por ser unidade, unidade por ser pluralidade»; «pluralidade de
singularidade, unitrino e triuno»24. Ou, no seu típico jogo de contrários («a
coincidência dos opostos»), Deus é «alteridade sem alteridade, porque é
22
JULIENNE DE NORWICH, Le livre des révelations, Paris 1992, 196-197.
23
NICOLAU DE CUSA, A visão de Deus, Lisboa 19982, 197.
24
NICOLAU DE CUSA, A visão de Deus, 199.

63
uma alteridade que é identidade»25. E numa linguagem dialogal e orante,
Nicolau de Cusa explicita, a partir de uma concepção subjectiva e
pessoalizada, a dimensão trinitária do homem: «Eu sou o amante, eu sou o
amável, eu sou o nexo. Um só é o amor, sem o qual não pode haver
nenhum três. Sou um só, eu que sou o amante, eu mesmo que sou o amável,
eu mesmo que sou o nexo que brota do amor com que me amo» 26. A
unidade da pessoa, que se fundamenta numa ontologia do amor pessoal (o
próprio amor trinitário), comporta uma pluralidade de dimensões (ser
amante, ser amável, ser nexo do amor). Recordamos as evidentes
aproximações às tríades agostinianas do homem enquanto imagem da
Trindade. Em sua subjectividade, o homem experimenta-se como uma
unidade ternária (uma pluralidade), porque essa é a essência do amor.
Tanto em Deus como no homem, «o amor é de uma essência ternária»27,
sem que isso signifique qualquer identificação entre a tríade do amor
humano e a pluralidade do amor trinitário.

25
NICOLAU DE CUSA, A visão de Deus, 200.
26
NICOLAU DE CUSA, A visão de Deus, 201.
27
NICOLAU DE CUSA, A visão de Deus, 202.

64

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