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1.1.

Dimensão trinitária da criação

O mistério da criação encontra o seu fundamento numa compreensão


de Deus como ser pessoal, como comunhão de pessoas. A doutrina da
Trindade constitui a premissa irrenunciável da doutrina da criação. Pois um
Deus solitário seria um Deu sem alteridade e, consequentemente, sem
amor. E a criação aconteceria como uma necessidade: Deus produziria algo
fora de si para ter onde colocar o seu amor. A gratuidade da criação, a sua
não necessidade, só pode partir de um Deus que é em si própria alteridade,
comunhão interpessoal de alter idades, pura gratuidade amorosa.

1.1.1. Desenvolvimento do dogma

Dizer que Deus é criador não explicita em sua totalidade a verdade


da fé cristã. Esta, desde símbolos antigos passando pela patrística, pela
teologia medieval e pela mística, proclama que Deus é criador em seu
mistério de comunhão interpessoal, e que a criação surge do seio da
Trindade como sua exteriorização amorosa, onde estão implicadas cada
uma das pessoas divinas bem como a unidade de amor e de vida que lhes é
comum. A unidade e a diversidade intrínsecas da criação têm o seu
fundamento na própria unidade e pluralidade da comunhão trinitárias. No
desenvolvimento que se segue procuraremos assinalar os pontos
determinantes do desenvolvimento dogmático da criação como
acontecimento trinitário, bem como as consequências de uma concepção de
Deus que se concentra em sua unidade substancial.

a. A reflexão dos Padres da Igreja (momentos significativos)

A grande preocupação dos Padres da Igreja no aprofundamento da fé na criação é combater


o perigo dualista do gnosticismo e do maniqueísmo. Destacamos três autores: Ireneu e Orígenes no
Oriente, e Agostinho no Ocidente.

Ireneu, no século III, opõe ao dualismo metafísico da gnose uma


concepção histórica da salvação. Há um único plano de salvação que
abarca criação e redenção. Na criação Deus já anuncia a redenção futura. E
a redenção é a plenitude do seu desígnio salvífico começado na criação.
Para Ireneu o Pai é o único criador, mas cria pela mediação do Verbo
(Cristo) e do Espírito Santo, que são as mãos do Pai: «É o Pai que fez o
mundo... Ele que modelou o homem». O Pai é a fonte da economia da
salvação e, portanto, também da criação. A ideia das mãos exprime bem a

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prioridade do Pai sobre o Filho e o Espírito. Numa passagem da sua obra A
Demonstração da Pregação Apostólica especifica Ireneu a relação do Filho
e do Espírito Santo com a criação: «O Verbo estabelece, ou seja, dá forma
existência, enquanto o Espírito Santo dispõe a diversidade das potências.
Acima de todas as coisas, está o Pai; através de todas as coisas está o Filho,
pois é por seu intermédio que todas as coisas foram feitas pelo Pai; por fim,
em todos nós existe o Espírito Santo que grita “Abba”, Pai». O Verbo é o
agente da criação seguindo uma ideia paulina; o Espírito Santo é Aquele
que dá potência, que acaba a obra começada. É o garante da diversidade do
criado. Ireneu apresenta-nos ainda uma centralidade cristológica e pascal
do mistério da criação. Há uma estreita relação entre a eficácia cósmica de
Cristo e a crucifixão visível de Jesus. A criação liga-se ao mistério da
encarnação do Verbo: «O que nos últimos tempos se fez homem era já no
mundo e no plano invisível sustentava todas as coisas». Como, segundo
Ireneu, o mistério da cruz estava já imprimido de forma invisível em toda a
criação. A criação é portadora, misteriosamente, da paixão de Cristo,
porque o Verbo crucificado é o mesmo que governa e dispõe todas as
coisas: «Ele, que já se encontrava no mundo, encontrava-se imprimido em
forma de cruz na criação inteira, enquanto Verbo de Deus governando e
dispondo todas as coisas». Por isso Cristo, em sua encarnação e paixão-
ressurreição, recapitula todas as coisas.
Origenes vê a criação também como o início da história da salvação.
A criação-redenção tem, neste Autor, um carácter fortemente dramático,
pela sua concepção trágica de pecado. Influenciado pelo platonismo, dá à
criação um carácter mais espiritual, pois considera que todo o mundo
material é de segunda ordem, criado para castigo e expiação dos pecadores.
Todavia, Orígenes nunca chegou a afirmar que o mundo fosse mau, mas
também nunca o considera como bom. Deus criou primeiro um reino de
espíritos (e daí a sua teoria da pré-existência das almas), e só depois da
queda de alguns espíritos criou o mundo material, para aí os educar e os
punir.
Agostinho, na passagem do século IV para o século V, inicia no
Ocidente a reflexão sobre a criação, em tom polémico contra a heresia
manique ia. Adoptando uma concepção mais filosófica (ontológica) de
criação, Agostinho abandona o realismo bíblico, em que o tempo é o meio
onde Deus realiza o seu plano salvífico. Tudo o que existe vem de Deus
(Conf. XII, 11). A criação, que inaugura o tempo, está sujeita ao mutável.
Por isso, para Agostinho, o tempo é exílio e Deus pátria definitiva. Contra a
teses emanacionistas, Agostinho afirma que Deus cria do nada: «Foram
feitas por vós do nada, não, porém da vossa substância ou de certa matéria
pertencente a outrem ou anterior a vós» (Conf. XIII, 3). Pertencendo à
exclusiva bondade e liberdade de Deus, a criação é boa. E a vontade livre e
gratuidade de Deus dá origem à diversidade e à beleza das criaturas: «Da

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plenitude da tua bondade subsiste a tua criatura» (Conf. XIII, 2).
Interpretando Gn 1,1, Agostinho oferece-se uma leitura trinitária da
criação: «Sois Vós, meu Deus, pois Vós, Pai, criastes o céu e a terra no
princípio da vossa sabedoria, que é a vossa sabedoria que de Vós nasceu,
igual e coeterna convosco, isto é, no vosso Filho» (Conf. XIII, 5). O Pai
cria mas cria no Filho. No aspecto cristológico desta leitura falta a unidade
entre criação e salvação. A criação aparece, é certo, centrada no Filho/o
Verbo, mas silenciando-se a futura encarnação. A preocupação de
Agostinho é mais ontológica do que histórico-salvífica. Agostinho anuncia
já o futuro reducionismo da criação às origens, desenvolvida na teologia
posterior, em que se perde por completo o seu sentido dinâmico. Num
outro texto, Agostinho, de sentido também cristológico, Agostinho não
deixa de relaciona a criação com a salvação, obras do único e mesmo
Autor: «Com efeito, um só são o Criador e o Salvador da natureza. Não
devemos pois louvar o Criador de tal modo que nos vejamos forçados e
persuadidos que é supérfluo o Salvador» (De natura et gratia, 34.39).
Todavia falta estabelecer o nexo intrínseco entre criação e salvação.
Contudo Agostinho não deixa de relacionar a criação com a unidade
das pessoas divinas: «E, como eu acreditava que o meu Deus é Trino,
procurava a Trindade nas vossas Escrituras e via que o vosso Espírito
«pairava sobre as águas». Eis a vossa Trindade, meu Deus: Pai, filho e
Espírito santo» (Conf. XIII, 5). A criação enquanto acontecimento de amor
é revelada pelo Espírito Santo. É bom que Deus seja amado naquilo que
criou, e é o Espírito Santo, dom do próprio amor de Deus, que assegura a
nossa resposta amorosa a Deus enquanto criaturas, reconhecendo a
bondade das próprias criaturas: «Deus somente será amado pelo Espírito
que nos concedeu, “pois a caridade de Deus foi difundida em nossos
corações pelo Espírito que nos foi dado” (Rm 8,2». O Espírito Santo é
como que o olhar interior em nós que nos ajuda a penetrar o mistério da
criação, e a partir desta o mistério do próprio Deus.

b. Os símbolos da fé

Nas fórmulas de fé mais antigas a afirmação da dimensão trinitária


da criação não é formalmente explicitada. Confessa a Deus como «Pai
omnipotente» (Dz 1), indicando, assim, a sua senhoria absoluta sobre o
mundo. Só a partir do século IV se acrescenta nos símbolos ocidentais a
primeiro artigo a palavra «criador», ou o sintagma «criador do céu e da
terra». Por seu lado o papel de Cristo na criação é silenciado. A criação é
uma realização exclusiva do Pai «todo-poderoso, pantokrator». «Creio em
um só Deus Pai, todo-poderoso»: Estamos perante uma constelação
complexa e com uma tríplice ligação: o laço entre Deus e Pai; entre Pai e
todo-poderoso e entre Deus e todo-poderoso. A expressão «Deus todo-

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poderoso» é frequente nos textos patrísticos antes do século IV (Clemente
de Roma, Policarpo, Justino, Ireneu…). Por seu lado, a origem da
expressão «Deus Pai todo-poderoso» deve procurar-se na liturgia
eucarística primitiva, enquanto louvor da comunidade dirigido ao Pai.
Neste sentido, apresenta-se como uma herança das bênçãos judaicas. A
expressão, como tal, não se encontra nas Escrituras, mas os elementos que
a compõem estão todos aí. Nos LXX, Kyrios Pantokrator traduz o hebraico
Jahweh Sabaoth (Job 5,17). Encontra-se igualmente em Am 5,6 «Kyrios,
ho Theos, Pantokrator. O Senhor Deus, o todo-podeoroso». No Novo
Testamento o termo pantokrator encontra-se em 2 Cor 6,18; Ap 4,8. A
cópula «Deus-Pai», ou «Deus e Pai» é frequente no Novo Testamento:
«Deus nosso Pai» (Gal 1,3); «… para glória de Deus, o Pai» (Fl 2,11); «…
existe um só Deus, o Pai» (1 Cor 8,6); «… há um só Deus e Pai de todos»
(Ef 4,6). Comummente, o termo «Deus» (ho Theos, com artigo) designa o
Pai, e daí a sua frequente acopulação com este.
Mas de que paternidade se trata? Deus é aqui o Pai de Jesus Cristo, o
pai dos cristãos e de toda a humanidade, ou o pai de todas as criaturas? Ou
trata-se de uma referência inclusiva, que integra todas as significações? Os
textos patrísticos do século II atestam que a paternidade criadora e
universal de Deus é colocada em primeiro lugar, como bem o demonstra a
passagem de Clemente de Roma: «Pai e criador do mundo inteiro». A
relação entre «Pai» e «todo-poderoso» do Símbolo dos Apóstolos vai neste
sentido. Essa paternidade criadora e universal de Deus, expressa pelo «Pai
omnipotente», é explicitada pela referência à criação que vem a seguir. A
paternidade de Deus está ligada à sua soberania cósmica; é uma
paternidade universal e criadora. «A paternidade tem aqui o significado
primordial de paternidade criadora, sem que isto suponha excluir a
paternidade de Deus para quem se transformou em seu filho e adquiriu pela
sua união com o Filho Jesus Cristo, também a filiação divina»1. A
referência à paternidade criadora de Deus não exclui, portanto, o sentido de
Deus como Pai dos cristãos e de todos os homens. Deus é o Pai de um
povo, gerado pelo Espírito filial no baptismo. Embora não se possa inferir
directamente no contexto do primeiro artigo, a expressão «Pai todo-
poderoso», analisada na estrutura sequencial do Símbolo dos Apóstolos,
não pode deixar de anunciar a paternidade de Deus em relação a Jesus
Cristo, seu Filho. Esta relação será afirmada, precisamente, pelo segundo
artigo. «Deus é o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo»2, pois Cristo manifesta
o segredo da paternidade de Deus, simultaneamente dos cristãos, de todos
os homens e mulheres, e de todas as criaturas. Deus é em tudo e para tudo e
todos Pai, precisamente porque é o Pai de Jesus Cristo. «Omnipotens»
traduz no latim o termo grego «pantokrator». Este termo supõe um
1
S. CURA ELENA, «Símbolos de fé», 832.
2
POLYCARPE DE SMYRNE, Aux Philippiens, 12,2 : SC 10 bis, 221.

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significado activo de quem governa todas as coisas, enquanto o termo
latino tem um significado mas restrito, e será interpretado como a
capacidade de Deus para fazer tudo o que quer. Com palavras de B.
Sesboüé:

Pantokrator diz mais que o omnipotens latino. Pois não se trata somente da
capacidade daquele que tudo pode fazer. Este termo activo indica a actualização
desta capacidade numa perspectiva de soberanidade real, de majestade, de
autoridade e de transcendência. Evoca também a actividade criadora e a
providência de um Deus que “suporta” todo o universo3.

A especificação «criador do céu e da terra» aparece, no Ocidente, a


partir do século VI, por influência dos símbolos orientais. Estes, precisam:
«Criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis»
(Símbolo de Cirilo de Jerusalém, de Epifânio, Arménio, Antioqueno…). A
adição «de todas as coisas visíveis e invisíveis» provem de Colossenses,
com a diferença de que no Símbolo dos Apóstolos se aplica ao Pai aquilo
que a Epístola diz de Cristo, o Filho: «porque nele foram criadas todas as
coisas, nos céus e na terra, visíveis e invisíveis» (Col 1,16). Estamos
perante uma reinterpretação trinitária, pela tradição cristã, daquilo que o
Novo Testamento afirma sobre a mediação criadora de Cristo, que «é antes
de tudo e tudo nele subsiste» (Col 1,17). Identificamos, de imediato, na
expressão «criador do céu e da terra» o início do relato bíblico do Génesis:
«No princípio criou Deus o céu e a terra» (Gn 1,1)4, retomado por Nem 9, 6
e Ap 10,6: «… [Deus] que criou o céu e tudo o que nele existe, a terra e
tudo o que nela existe, o mar e tudo o que nele existe». A ideia de uma
Trindade criadora está já presente nos escritos paulinos: «(…) existe um só
Deus, o Pai, de quem tudo procede e para quem nós somos e um só Senhor,
Jesus Cristo, por quem nós somos e por quem nós somos» ( 1 Cor 8,6). Na
citação paulina, o papel criador do Filho, de Cristo, interpretado como
mediador, é afirmado juntamente com o do Pai, origem e fim da própria
criação. Apesar da ausência de referência directa ao papel do Espírito
Santo, afirma-se assim a criação como acontecimento trinitário. «Céu e
terra» constitui um binómio posicional, típico da linguagem hebraica, para
exprimir uma totalidade, Significa aqui a totalidade do universo criado,
expressão da liberdade criadora de Deus. Afirma o Catecismo da Igreja
Católica:

3
B. SESBOÜÉ, «Le contenu de la tradition: règle de foi et Symboles (IIe-V
siècles)», 107.
4
«Três coisas são afirmadas nesta primeiras palavras da Escritura: Deus eterno
deu um princípio a tudo quanto existe fora d‟Ele. Só Ele é criador (o verbo “criar” – em
hebraico “barah” – tem sempre Deus por sujeito. E tudo quanto existe (expresso pela
fórmula “o céu e a terra”) depende d‟Aquele que lhe deu o ser»: Catecismo da Igreja
Católica, 290.

40
Na Sagrada Escritura, a expressão «Céu e terra» significa. Tudo o que existe,
toda a criação. Indica também o laço que, no interior da Criação, ao mesmo
tempo une e distingue o Céu e a Terra: «a terra» é o mundo dos homens; «o céu»
ou «os Céus» pode designar o firmamento (cf. Sl 1A, 2) mas também o «lugar»
próprio de Deus: «Pai-nosso que estás nos céus» (Mt 5,16), em por conseguinte,
também «o Céu» que é a glória escatológica. Finalmente, a palavra «Céu» indica
o «lugar» das criaturas espirituais – os anjos – que rodeia Deus5.

A fé cristã na criação, enquanto acontecimento trinitário, está na


continuidade da fé hebraica no Deus criador que, pela sua palavra, dá
origem ao novo e ao outro (barah). A referência, no Símbolo dos
Apóstolos, a Deus Pai «criador do céu e da terra» é uma clara refutação das
teses gnóstica e maniqueias, que compreendiam a matéria como
degradação e a criação como emanação e divisão da divindade. Com esta
expressão, além de se afirmar a bondade do criado e a sua dependência em
relação ao Pai, afirma-se, por outro lado, a transcendência e alteridade de
Deus Pai, enquanto criador. A totalidade da realidade funda-se na
paternidade de Deus; o fundamento ontológico do criado é o amor criador
do Pai, o mesmo que gera o Filho na eterna fecundidade do Espírito.
No Oriente, por seu lado, tem-se um concepção mais trinitária da
criação. Enquanto no Ocidente latino a criação é uma acção atribuída ao
Pai, no Oriente grego é clara a mediação cristológica. Na fórmula oriental
do Símbolo dos Apóstolos de S. Cirilo de Jerusalém professa-se: «Cremos
em um só Deus, Pai omnipotente, criador do céu e da terra, de todo o
visível e invisível; e em um só Senhor Jesus Cristo, Filho unigénito, que
nasceu do Pai, de Deus verdadeiro, antes de todos os séculos, por quem
tudo foi criado» (Dz 9). A novidade da fórmula está em duas afirmações: a
primeira relativa ao Pai-Criador, «do céu e da terra, de todo o visível e
invisível»; e a segundo relativa ao Filho, também criador, «por quem tudo
foi criado». O acrescento da primeira expressão procura combater os
desvios dualistas do gnosticismo e do maniqueísmo. Deus-Pai é assim
proclamado criador absoluto, do invisível, o espiritual, e do visível, o
material. Mas o Pai não cria sozinho; cria por intermédio do Filho, que
coopera com o Pai na acção criadora, sendo a mesma atribuída a ambos,
mas sem confusão de missões. O mesmo acto criador do Deus Trino
realiza-se na pessoa do Pai enquanto origem absoluta da criação, e na
pessoa do Filho enquanto causa instrumental, enquanto mediação do Pai.
Na fórmula mais extensa do Símbolo de Epifânio, que é uma exposição do
Símbolo de Niceia aos catecúmenos, encontramos claramente esse
paralelismo diferenciados na única acção criadora do Pai e do Filho:
«Cremos é um só Deus, Pai omnipotente, fazedor de todas as coisas, as
visíveis e as invisíveis, e em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho unigénito de
5
Catecismo da Igreja Católica, 326.

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Deus, gerado de Deus Pai (...) por quem foram feitas todas as coisas, o que
há no céu e na terra, o visível e o invisível» (Dz 13).
Há ainda a notar nestas fórmulas a expressão «gerado, não criado»
(genitum, non factum) integrada no artigo de fé sobre o Filho. A geração
que dá o ser ao Filho é diferente da natureza da criação, pela qual os seres
vêm à existência. É uma geração espiritual e eterna: o Pai nunca existiu
sem o Filho e o Filho é coeterno ao Pai. O termo pretende apenas superar a
ideia ariana que tudo o que é gerado pertence ao âmbito da criação 6. A
expressão «gerado, não criado» é explicitada com a seguinte:
«consubstancial ao Pai»7. Esta distinção entre geração e criação, a primeira
operando-se no seio da própria divindade e a segunda exteriorizando-se
para fora dela, introduz uma diferenciação originária e radical entre o
divino e o mundano (o criado). O Filho, porque gerado do Pai, pertence à
ordem do eterno; o mundo, porque criado numa relação de liberdade,
pertence à ordem do temporal e do contingente. Há uma radical alteridade
entre o criado e o Deus Trino. Aspecto não suficientemente explicitado mas
também não excluída é a relação da criação com a pessoa do Espírito
Santo. Como podemos ler no Símbolo Niceno-Constantinopolitano, que
dominicalmente professa na eucaristia: «Creio no Espírito Santo, Senhor
que dá a vida...». O sintagma «Senhor que dá a vida» não pode deixar de se
aplicar à criação, pois o Espírito Santo é o princípio fundante da vida
trinitária que é oferecida a todas as criaturas, como seu fundamento
ontológico. «… que dá a vida»: Dador da vida é a qualificação que o Novo
Testamento aplica, sobretudo, ao Espírito Santo (cf. 2 Cor 3,6; Jo 6,63).
Porque dá a vida, o Espírito não é criatura. Com esta referência à dádiva da
vida, alude-se não só à acção criadora do Espírito mas também à acção
santificadora, pois o Espírito é o dom da vida divina aos crentes. É criador
e recriador (santificante). O Espírito Santo é o dom da vida de Deus em
nós. Ele dá a vida divina porque a possui em si próprio. Mas esta vida que
dá recebe-a do Pai.
Assinalamos, por último, o Símbolo de fé do I Concílio de Toledo
(400?), que numa confissão de fé sintética proclama a Trindade em sua
unidade e pluralidade pessoais como criadora: «Acreditamos em um só
Deus verdadeiro, Pai, Filho e Espírito Santo, fazedor do visível e do
invisível, por quem todas foram feitas todas as coisas no céu e na terra»
(Dz 19).

6
S. CURA ELENA, «Concílios», 169.
7
«Consubstancial»=homo ousios (da mesma substância).

42
1.1.2. Reflexão sistemática

a. Uma ontologia do amor na base da criação

Todas as criaturas têm a sua origem na plenitude amorosa da


comunhão trinitária, de simultânea unidade e diversidade. O amor da
comunhão trinitária, em sua simultânea oblatividade e receptividade, em
sua unidade e diversidade, constitui o fundamento ontológico do real. Neste
fundamento ontológico do real, compreende-se melhor que a unidade
intrínseca do cosmos e da humanidade, seja uma unidade n alteridade, uma
unidade na diversidade. Algo que só o amor permite. Ruiz de la Peña
chama-lhe mesmo «ontologia da agápe»8, do puro dom gratuito, em estreita
correspondência com a teologia da paternidade divina. Só um Deus Pai
omnipotente pode ser, por sua vez, criador e salvador; e é essa qualidade
paternal de Deus que serve de fundamento ao seu poder criador9. À
paternidade divina corresponde uma ontologia do amor, pois só de um
Deus cujo ser é, sem rodeios, amor pode predicar-se a criação, o
surgimento do distinto de si como algo livremente querido e, por isso,
digno do seu amor enquanto distinto10. Um amor que surge também do
nada e que, por isso mesmo, é criador, porque absolutamente livre e
gratuito. É, precisamente, a partir desta ontologia do amor que o
cristianismo se distancia tanto do monismo, pois não crê que o mundo seja
absoluto, eterno e auto-suficiente, como do dualismo, pois professa um
optimismo ontológico universal, não acreditando em parcelas de realidade
contaminadas de antemão. Quer a realidade quer e a história têm ambas a
sua origem no puro amor gratuito11.
A afirmação da criação como acontecimento de amor só é possível
na base de uma compreensão de Deus como ser pessoal, e, portanto, como
comunidade de pessoas, como comunhão trinitária. Na revelação do Deus
trinitário aparece em toda a sua radicalidade e claridade a liberdade e a
gratuidade do amor criador da própria comunhão interpessoal divina. Como

8
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, «Materia, materialismo, creacionismo»,
Salmanticensis 32 (1985) 67; ID., «Creación», in C. FLORISTÁN – J. J. TAMAYO
(ed.), Conceptos fundamentales del cristianismo, Madrid 1996, 268]. O conceito de
«metafísica da caridade (da agápe)» é também formulado pela COMMISSIONE
TEOLOGICA INTERNAZIONALE, «Teologia-cristologia-antropologia», Civiltà
Cattolica 3181 (1983) 57.
9
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Teología de la creación, 125; ID., Creación,
gracia, salvación, 18. Para um eco desta mesma reflexão de Ruiz de la Peña, cf. L. F.
LADARIA, Introducción a la antropología teológica, 57.
10
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Teología de la creación, 136.
11
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, «Materia, materialismo, creacionismo», 68; ID.,
«Dualismo», in X. PIKAZA - N. SILANES (ed.), Diccionario teológico, 366-368.

43
afirma Ruiz de la Peña, «a doutrina da Trindade é a premissa iniludível da
doutrina da criação. Um Deus solitário é ou um Deus sem amor (o amor
reclama alteridade) ou um Deus que produz algo fora de si para ter onde
colocar o seu amor; nesse caso, a criação seria necessária e o amor não
seria propriamente amor, pois faltar-lhe-ia a sua componente básica que é a
liberdade»12. Neste sentido, a criação só pode ser um gesto de amor, amor
tanto mais gratuito quanto o seu objecto é suscitado eternamente pelo
amante, pois Deus é Aquele que criando por amor torna amável a realidade
amada: «O amor é a fonte, o fundo, o sustento e o fim de todo o real» 13. A
realidade é, pois, uma grandeza fundada e digna de crédito. A
fundamentação do real a partir de uma ontologia do amor, ou da relação,
constitui actualmente um dos aspectos mais promissores da reflexão
teológica, sobretudo quando a base dessa concepção ontológica é o ser da
comunhão interpessoal da própria Trindade. Antes de ser uma categoria
ética, o amor é uma categoria ontológica14.

b. A liberdade e gratuidade da criação (a criação a partir


do nada)
A radical dependência do mundo em relação a Deus, que não só lhe
deu um ser de origem como assegura também um ser-em-plenitude, é
através do conceito tradicional de «criação a partir do nada» (creatio ex
nihilo). Este conceito recorda-nos que não há nada que preexista à acção
criadora, a motive ou a funde, fora de Deus. Esta fórmula cumpre, assim,
uma dupla função, negativa e positiva: Serve, por um lado, para drenar
qualquer resíduo de dualismo na representação das origens do cosmos; e
serve, por outro, para afirmar que nada há realmente existente que não
esteja atingido pela acção salvadora de Deus. Ao nada do conceito de
criação, corresponde o tudo do conceito de salvação15, sendo esta,
precisamente, o dom de uma plenitude de vida inscrita, a título de
promessa, no nada (no vazio) criador de Deus. Este nada é já o espaço da

12
J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Teología de la creación, 137. Outras referências à
fundamentação trinitária da criação em Teología de la creación, 266-268, a partir da
conexão entre Deus pessoal-Deus trinitário-criação-analogia do ser. A refexão tológica
contemporânea tem insistido fortemente no nexo intrínseco entre a Trindade e a criação:
cf. F.-X. DURRWELL, Le Père, 110-135; B. FORTE, Trinidad como historia,
Salamanca 1988, 161-165; G. GRESHAKE, Il Dio unitrino. Teologia trinitaria, Bréscia
2000, 247-342; L. F. LADARIA, Antropologia teologica, 664-699; ID., Introducción a
la antropología teológica, 54-58; A. SCOLA – G. MARENZO – J. PRADES LÓPEZ,
La persona umana, 86-87.
13
J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Teología de la creación, 268
14
Cf. J. H. WALGRAVE, «Personalisme et anthropologie chrétienne»,
Gregorianum 65 (1984) 457; D. J. HALL, Être image de Dieu, Montréal-Paris 1998,
199; P. CODA, «Trinità e ontologia dell‟agape», Credere Oggi 21 (2001) 116-125.
15
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Teología de la creación, 123.

44
acção de uma gratuidade criadora e salvadora. Mas mais do que um
raciocínio metafísico, a criação é, sobretudo, um mistério de fé a
acreditar16. E com uma marca claramente rahneriana, afirma textualmente
Ruiz de la Peña:

A criatura é o que o criador quis chegar a ser. Deus não é só o criador de um


mundo distinto de si: Deus é, ele próprio, criatura: A forma de existência
definitiva (não episódica nem transitória) de Deus revelado em Jesus Cristo é a
encarnação. Nestas formulações late a novidade inaudita do cristianismo, o seu
carácter decididamente escandaloso. Ora bem; se Cristo, o mistério por
antonomásia, é um fragmento da criação (“primogénito da criação”, como o
chama Col 1,15) da sua história, da sua materialidade, então a criação é
certamente mistério de fé17.

Só em Cristo se esclarece o porquê e o para quê das criaturas. N„Ele


sabemos finalmente o que a realidade criada é: O infinitamente distinto de
Deus e, todavia, o substancialmente assumível no seu ser pessoal. A
encarnação ratifica, assim, o valor e a dignidade do próprio real, pois o
próprio Criador pode tornar-se criatura. E se o mundo é o «corpo dilatado
do homem», sê-lo-á também do homem-Deus. Pois quando Deus criava o
mundo, estava a formar para si próprio um corpo18. Enquanto criado na
alteridade amorosa de Deus, o mundo apresenta-se como a própria
corporeidade divina, ratificada no mistério da encarnação. O mundano, o
criatural e o carnal fazem parte do corpo de Deus. No mistério do Verbo
encarnado, Deus assume a própria condição de criaturalidade, em toda a
sua inteireza.
A criação é um acto livre de Deus. Se nada pré-existe à acção
criadora de Deus, logo nada obriga desde fora Deus a criar. Como também
não há nada no ser de Deus que o obrigue a criar. O mundo existe apenas
porque Deus o quer. Aquele que não precisa em absoluto de nós, outorgou
o ser ao mundo por pura gratuidade. A criação é, de certo modo, graça,
gratia prima, ordenada à graça sobrenatural. Como, em consequência, a
negação da liberdade criadora de Deus conduz à negação da própria ordem
sobrenatural, ao fundamento último de toda a realidade. E, como afirma
Ruiz de la Peña, «porque Deus cria chamando como chama à aliança, ou
seja, por pura liberalidade, o acto criador torna-se o primeiro passo de uma
história de salvação, presidida pelo desígnio gratuito, livre, de Deus»19. A
salvação não é vista meramente como uma consequência da desordem
cósmica, introduzida pelo pecado do homem na criação, mas como o

16
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Teología de la creación, 128.
17
J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Teología de la creación, 129.
18
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Teología de la creación, 129.
19
J. L.RUIZ DE LA PEÑA, Teología de la creación, 135. Entendimento
semelhante partilha F.-X. DURRWELL, Le Père, 130.

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destino último que Deus imprime à própria criação, a plenitude da vida no
amor.

c. Autonomia e historicidade da criação

A fé cristã afirma que o mundo foi criado pelo Deus Trino. Deste
modo, o cristianismo distancia-se, de imediato, quer do dualismo quer do
panteísmo. Com a primeira parte de afirmação, «o mundo foi criado»,
afirma-se que toda a realidade procede de Deus e, enquanto tal, é boa. Com
a expressão «por Deus» afirma-se a transcendência do próprio Deus em
relação ao mundo e a alteridade deste em relação a Deus. Assim se recusa
quer uma valorização quer uma desvalorização absolutas do mundo20. O
mundo é realmente, pois Deus, comunhão interpessoal de amor, confere-
lhe o ser. E porque não tem razão de ser em si mesmo, o mundo é como
que criatura. Aí radica a sua radical precariedade, cujo ser se funda numa
relação de dependência para com Deus. Deste modo mergulhamos na
própria textura ontológica do real: a condição própria do real é a sua
criaturalidade. As consequências desta afirmação são evidentes: a
realidade, porque desdivinizada, resulta desdemonizada, e o mundo, porque
não divino, resulta mundano. Por isso mesmo, o homem pode percebê-lo,
manejá-lo e governá-lo21.
Partindo de uma concepção dinâmica do mundo, que se contempla
como processo aberto, o Vaticano II apresenta a actividade humana como
colaboradora na obra de Deus. O mundo, reconhece o Concílio, é a
combinação de duas vontades que se completam, a humana e a divina:

A actividade humana individual e colectiva, aquele imenso esforço com que os


homens, no decurso dos séculos, tentaram melhorar as condições de vida,
corresponde à vontade de Deus. Pois o homem criado à imagem de Deus,
recebeu o mandamento de dominar a terra com tudo o que ela contém e governar
o mundo na justiça e na santidade (...). Longe de pensar que as obras do engenho
e do poder humano se opõem ao poder de Deus, ou de considerar a criatura
racional como rival do Criador, os cristãos devem, pelo contrário, estar
convencidos de que as vitórias do género humano manifestam a grandeza de
Deus e são frutos do seu desígnio inefável (GS 34).

O mundo, entregue ao cuidado, é portador de uma autonomia


própria, que o homem deve respeitar: «Em virtude do próprio facto da
criação, todas as coisas possuem consistência, verdade, bondade e leis
próprias, que o homem deve respeitar, reconhecendo os métodos peculiares
de cada ciência e arte» (GS 36). A teologia da criação, postulando uma
autonomia relativa do mundo, jamais o considera dissociado de Deus,
20
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Teología de la creación, 116.
21
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Teología de la creación, 117.

46
reduzido a mera natureza colocada à voragem da posse e da utilização
humanas. Este é o erro da modernidade, que com o seu optimismo
racionalista e técnico, levou o homem a pôr em causa a integridade da
criação. Sobre toda a criação, o homem é chamado a exercer como que um
sacerdócio, tomando o mundo em sua mãos, integrando-o criativamente e
referindo-o constantemente a Deus. Deste modo o homem liberta a criação
dos seus limites e faz com que esta seja em plenitude22.
O Deus Uno e Trino criador não é só o que está na origem da criatura
(causa eficiente); é além disso o que «lança» a criação para diante, o que a
«atrai», o que a «move», ao suscitar nela uma incessante dinâmica de
autotranscendência. O mundo apresenta-se como um sistema aberto a Deus
e Deus como um ser aberto ao mundo23. Deus cria permanentemente, não
só dando vida às criaturas, mas assegurando que estas cumpram o seu
destino de vida em plenitude. Deus, vida pessoal em plenitude, dá o ser à
criatura; introduz nela uma pulsão no sentido de ser mais24. Tal
interpretação permite compreender o sentido teológico de criação no
contexto de uma cosmovisão evolutiva.

22
Cf. J. ZIZIOULAS, Il creato come eucaristia, Magnano 1994, 67.
23
Cf. J. MOLTMANN, Dieu dans la création, Paris 1988, 265-276; L. F.
LADARIA, Introducción a la antropología teológica, 50.
24
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Teología de la creación, 121.

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