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RESUMO
O presente artigo tem como objetivo apresentar uma exposição concisa de forma
bíblica, histórica e filosófica da doutrina da Trindade com ênfase no Espirito Santo
bem como suas implicações e aplicações na vida cristã.
1 INTRODUÇÃO
2 DESENVOLVIMENTO
1
Paper apresentado à disciplina de Teologia Sistemática III.
2
Aluno do Curso de Teologia do Seminário Martin Bucer, turma 2018.
2.1 A doutrina da Trindade na história
“Todo aquele que quiser ser salvo, é necessário acima de tudo, que sustente
a fé universal. A qual, a menos que cada um preserve perfeita e inviolável,
certamente perecerá para sempre. Mas a fé universal é esta, que adoremos
um único Deus em Trindade, e a Trindade em unidade.” (Credo Atanasiano)
Policarpo, que segundo a tradição foi discípulo do apóstolo João também faz a
sua última oração tendo uma base trinitária:
Senhor, Deus todo-poderoso, Pai de teu Filho amado e bendito, Jesus Cristo,
pelo qual recebemos o conhecimento do teu nome, Deus dos anjos, dos
poderes, de toda criação e de toda a geração de justos que vivem na tua
presença! Eu te bendigo por me teres julgado digno deste dia e desta hora,
de tomar parte entre os mártires, e do cálice de teu Cristo, para a ressurreição
da vida eterna da alma e do corpo, na incorruptibilidade do Espírito Santo.
Com eles possa eu hoje ser admitido à tua presença como sacrifício gordo e
agradável, como tu preparaste de antemão, e como realizaste, ó Deus sem
mentira e veraz. Por isso e por todas as outras coisas, eu te louvo e te bendigo,
te glorifico, pelo eterno e celestial sacerdote Jesus Cristo, teu Filho amado,
pelo qual seja dada glória a ti, com ele e o Espírito, agora e pelos séculos
futuros. Amém (Clássicos da literatura cristã, 2015. p. 88).
Logo depois do Édito de Milão (313), que conferia liberdade de culto aos
cristãos por parte do Império Romano, a igreja cristã começou a ter alguns embates
com grupos heréticos que colocavam a ortodoxia em risco. O primeiro concílio que
aconteceu com caráter polêmico apologético foi o de Niceia (325) que combatia Ário,
presbítero na igreja de Alexandria que ensinava que havia apenas um Deus eterno e
que Cristo fora criado por Deus, uma criatura “intermediaria” entre Deus e a criação.
Essa afirmação por parte de Ário suscitou uma grande controvérsia, a qual chamamos
de “controvérsia ariana” e o resultado foi o Credo Niceno que enfatiza a divindade do
Filho em oposição as ideias de Ário. A partir daí começamos a ter uma forma mais
elaborada da doutrina da Trindade sucumbindo então no Concílio de Constantinopla
(381) que lançou um pouco mais de luz a respeito da pessoa do Espírito Santo.
Podemos dizer, como Alister McGrath (2005. p, 376)nos sugere, que a doutrina
da Trindade ganhou o formato que tomou por conta dos debates cristológicos. Se
Jesus era da mesma substância que Deus e não similar, como devemos então
entender a divindade? Existe mais de um Deus? E o Espirito? Essas perguntas foram
surgindo depois de uma cristologia mais fundamentada e, portanto, formou o conceito
clássico que nós temos da Trindade. Um entendimento mais claro sobre a pessoa do
Espirito veio no Concílio de Constantinopla I (381) convocado pelo imperador
Teodósio I. Esse Concílio foi uma revisão do Credo Niceno com alguns acréscimos a
respeito do Espirito Santo que combatia a heresia macedônita. Macedônio era bispo
de Constantinopla (341 a 460) e ensinava que o Espirito era “ministro e servo” na
mesma categoria dos anjos e que, portanto, era subordinado ao Pai e ao Filho
(CAIRNS, 2008. p. 115). O Concílio de Constantinopla reafirmou o Credo Niceno por
conta de alguns arianos que ainda faziam parte daquele contexto (Pais do Conselho,
381), e também enfatizou a divindade do Espírito combatendo assim a heresia de
Macedônio. Essa definição foi tão importante que no Concílio de Toledo (589) quando
foi recitado o Credo de Constantinopla foram acrescentadas as palavras “e do Filho”
(filioque) à declaração que procede do Pai e do Filho (CAIRNS, 2008. p. 116). Todo o
ocidente tem afirmado a divindade do Espirito como igual em glória ao Pai e ao Filho.
Normalmente os judeus usam o Shema de Israel: שמע ישראל יהוה אלהינו יהוה ׀
;אחד ׃Ouve, Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor (Dt 6:5) para afirmar que
a crença trinitária é inconcebível segundo as escrituras hebraicas. O Shema de Israel
tem sido entendido como o coração do judaísmo que afirma uma unidade absoluta em
Deus. Não é à toa que todo judeu encontra grande problema no cristianismo quando
se depara com a doutrina da Trindade, pois Deus, segundo o mesmo, é uma unidade
absoluta sem espaço para pluralidade. Todavia, essa afirmação é estranha a todo
contexto etimológico dessa passagem, pois o próprio Shema é uma expressão da
triunidade de Deus. Stanley Rosenthal em seu livro “A triunidade de Deus no antigo
testamento” nos mostra que a expressão Shema é uma unidade composta, pois em
diversos textos bíblicos ela aparece no sentido de uma diversidade na unidade e vice-
versa. Ele nos mostra alguns exemplos:
O incrível é que Shema é uma das mais poderosas declarações em favor da
triunidade de Deus que se pode encontrar na Bíblia inteira. A própria palavra
que alegadamente argumenta contra o ensino da triunidade de Deus
realmente afirma que em Deus há pluralidade, pois a última palavra hebraica
do Shema é echad, um substantivo que demonstra unidade que contém
várias entidades. Poderíamos citar um bom número de exemplos. Em
Gênesis 1:5, Moisés empregou essa palavra ao descrever o primeiro dia da
criação: “Chamou Deus à Luz Dia, e às trevas, Noite. Houve tarde e manhã,
o primeiro dia”. A palavra aí traduzida por “primeiro” é a palavra hebraica
echad. Aquele primeiro dia, é claro, consistiu em luz e trevas – manhã e tarde.
Em Gênesis 2:24, Deus revelou o que se fazia necessário para um
casamento feliz. Ele instruiu marido e mulher a tornarem-se “os dois uma só
carne”, indicando que aquelas duas pessoas unir-seiam, formando perfeita e
harmônica unidade. Em tal caso, novamente, a palavra hebraica é echad. O
ponto é claro, portanto – echad é sempre usada para indicar unidade coletiva,
uma unidade em sentido composto. Em Números 13, Moisés registrou o
relato sobre os doze espias hebreus que tinham sido enviados para espiar a
terra de Canaã. Quando retornaram daquela missão, de acordo com o
versículo 23, eles pararam em Escol, onde “cortaram um ramo de vide com
um cacho de uvas”. A palavra que aqui aparece como “um”, em “um cacho”,
novamente é echad, no hebraico. Mas, como 6 é evidente, esse único cacho
de uvas consistia em muitas uvas. Por semelhante modo, em Esdras 2:64,
registram as Escrituras: “Toda esta congregação junta foi de quarenta e dois
mil e trezentos e sessenta”. A palavra hebraica aqui traduzida por toda, na
expressão “toda esta congregação”, é a palavra hebraica echad. É evidente
que aquela congregação de Israel, embora fosse uma só, compunha-se de
muitos indivíduos. De fato, nada menos de 42.360 israelitas a compunham!
(ROSENTHAL. p. 5)
Infere-se, portanto, que dentro das escrituras hebraicas nós temos argumentos
bem consistentes, no que diz respeito a gramática veterotestamentária de que a
própria escritura afirma a unidade pluralidade em Deus.
McGrath nos diz que existem somente dois versículos que são passiveis de
serem interpretados como fundamento para a doutrina da Trindade, que são a fórmula
batismal em Mateus 28.19 e 2Corintios 13.14 (McGRATH, 2005. p. 373). No entanto,
os fundamentos para a doutrina da Trindade não se encontram exclusivamente
nesses textos, mas se encontram no revelar de Deus a sua criação; Deus se revelou
de forma trinitária e a doutrina da Trindade é uma inferência de Deus se revelando na
história segundo as escrituras. Como Alister McGrath (2005. p. 374) mesmo nos diz:
O Pai é revelado em Cristo por meio do Espírito. Nos escritos do Novo
testamento, há uma ligação extremamente próxima entre o Pai, o Filho e o
Espírito. Por diversas vezes, as passagens do Novo Testamento unem esses
três elementos, como parte integrante de um todo maior. Ao que parece, a
totalidade da presença e do poder redentor de Deus somente poderia ser
expressa por meio desses três elementos (vide, por exemplo, 1Cor 12 4-6;
2Co 1.21-2; Gl 4.6; Ef 2.20; 2Ts 2.13,14; Tt 3.4-6; 1Pe 1.2).
No agir de Deus segundo as escrituras nós podemos perceber as três pessoas
da Trindade se manifestando de formas distintas. Quando olhamos a nossa conversão,
por exemplo, nós podemos perceber que a mesma é uma conversão trinitária. O Pai
nos elege (Ef 1.4-5), o Filho expia os pecados do mundo (Jo 1.29) e o Espírito aplica
essa salvação na vida do eleito(Jo 3.4 e Jo 16.7-8). Podemos ver também que ao
Filho e ao Espirito são atribuídas prerrogativas divinas. No prólogo do evangelho de
João nós vemos claramente a divindade de Jesus sendo afirmada (Jo 1-4); Jesus
perdoou pecados(Mc 2.5); Pedro chama Jesus de “nosso Deus e Salvador” (2Pe 1.1);
Lucas em Atos registra um episódio em que Paulo fala aos presbíteros e nesse
episódio ele diz que “Deus comprou a igreja com o seu próprio sangue”(Atos 20.28) e
Paulo afirma em todas as suas cartas que Cristo é Senhor (Kyrios), que era uma
terminologia utilizada para o imperador romano que trazia provisão e segurança aos
moradores, como também no judaísmo era utilizada para Deus, denotando assim a
divindade de Cristo.
Como vimos nos capítulos anteriores, a doutrina da Trindade foi se
estabelecendo a partir de um debate cristológico. Somente em 381 no Concílio de
Constantinopla I ela foi afirmada de forma mais “completa” com uma ênfase no Espirito
Santo. Não obstante, ainda estamos longe de um entendimento mais bíblico e
consistente da pessoa do Espírito. É comum nós visitarmos algumas igrejas em que
o Espirito Santo é totalmente reduzido a uma força impessoal. Um mero poder que
nos serve como uma experiência de êxtase, corroborando assim, infelizmente, com
várias heresias do passado que os nossos pais combateram. Diante disso, é certo
dizer que estamos mais próximos a uma interpretação correta da pessoa do Espírito
Santo em nossos dias?
Quando olhamos o novo testamento podemos ver que ao Espirito Santo são
atribuídas personalidades. A própria palavra parakletos que é normalmente traduzida
no português por “consolador” traz o entendido de personalidade, de um ser existente
e não de um poder. Outro ponto importante para destacar na palavra parakletos é que
ela é polissêmica, ou seja, uma palavra com diversos significados e não somente
“consolador”. Ela pode significar “mestre”, “guia”, “advogado”, etc. Uma palavra que
aborda diversos significados. Existem também muitas passagens que falam a respeito
do Espirito Santo como Deus. No episódio de Atos em que Ananias e Safira mentem
para Deus, Pedro fala que eles mentiram para o Espirito Santo, ou seja, para Deus
(Atos 3.4-5) e a fórmula batismal pode ser encaixada aqui também: Ide, portanto, fazei
discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito
Santo (grifo meu) (Mt 28.19), é estranho ao texto afirmar a divindade do Pai e do Filho
sem atribuir o mesmo ao Espirito, pois o próprio texto coloca o Espirito na mesma
categoria dos dois. Imagine se o texto falasse “...batizando-os em nome do Pai, e do
Filho, e do Arcanjo Miguel...”, ficaria estranho, pois o Pai e o Filho são superiores ao
Arcanjo Miguel, existiria, portanto, um descompasso no texto. Todavia, levando em
consideração que o Espirito Santo é Deus como o Pai e ao Filho o texto fica bem nítido
para nós.
Certa feita, o saudoso Russel Shedd disse que a igreja brasileira é um grande
oceano com um palmo de profundidade. Nós conhecemos muita doutrina, nós falamos
de muitas coisas, mas apenas no superficial, sem nenhuma profundidade. E a doutrina
trinitária está nesse meio. Nós podemos dizer categoricamente que a doutrina da
Trindade é a doutrina mais importante da fé cristã por tratar unicamente com o ser de
Deus. Todas as confissões de fé históricas do protestantismo são unânimes em
afirmar a Trindade assim como os católicos. No entanto, parece que a igreja brasileira
desconhece tal doutrina. Muitos afirmam que a doutrina da Trindade de nada serve
para uma vida prática, pois a mesma se encontra apenas no mundo abstrato sem
nenhuma conexão com a realidade. Kant por exemplo escreveu:
Quanto à doutrina da Trindade, literalmente considerada, não se pode obter
absolutamente nada em termos práticos, mesmo se alguém acredita que a
compreende – e menos ainda se a pessoa está consciente que tal doutrina
ultrapassa todos nossos conceitos. (KANT apud HORREL, 1994).
Não é anormal esse tipo de pensamento nos dias de hoje, geralmente quando
uma doutrina é difícil de ser compreendida, ela logo é descartada por coisas “mais
práticas” e como a Trindade é complexa, ela seria menos prática, coisas de teólogos
de gabinete. Infelizmente essa forma de entender a Trindade está impregnada no
inconsciente coletivo da igreja. Mas afinal, se a Trindade realmente é bíblica, quais
seriam então as aplicações que podemos tirar dela? Dividirei essa resposta em três
partes: a visão da realidade trinitária; a obra trinitária na salvação do crente e a
doxologia trinitária.
Essas características que Leithart nos chama atenção, nada mais é do que um
padrão implícito na realidade. É a forma estrutural do mundo que se apresenta para
nós. As coisas se penetram de tal forma que é impossível pensar nas coisas sem essa
interpenetração. No entanto, as coisas continuam irrefutavelmente distintas umas das
outras em seu contexto específico. Ele mostra isso no aspecto temporal que
compreende passado, presente e futuro; no aspecto relacional em que eu sou
atravessado pelos meus relacionamentos e no aspecto da comunicação em que as
palavras descrevem coisas e as coisas estão inerentemente ligadas as palavras. Essa
coabitação no mundo real não pode ser negada e ela aponta efetivamente para a
doutrina Trindade que deixou as suas digitais na nossa realidade. Francis Schaeffer
entendeu isso muito bem quando disse que não existe outra explicação para a
realidade a parte da Trindade e que se não existisse a Trindade, ele continuaria
agnóstico, pois não existiria explicação para a unidade diversidade no universo
(SCHAEFFER, 2017. p. 52-53).
3 CONCLUSÃO
Como podemos ver a Trindade é basilar na vida da igreja e só ela pode explicar
de forma coerente todos os pormenores da nossa vida. Atanásio entendeu isso muito
bem quando disse que se quisermos salvar a nossa alma devemos pensar assim a
respeito do ser de Deus, pensar de forma trinitária. Nós não estamos lidando com
questões periféricas, mas sim com o próprio ser de Deus que se revelou a nós. O
antigo testamento é bem claro quando nos afirma a pluralidade em Deus e o novo
testamento lança mais luz a esse entendimento. A criação do mundo, a nossa
salvação, a providência, nada mais é do que o agir trinitário de Deus na história. Deus
criou todas as coisas e todas as coisas refletem o seu ser, podemos dizer que o
cosmos reflete a subjetividade de Deus e essa subjetividade de Deus serve de
objetividade para nós. Nós só entendemos de forma consistente o amor, a justiça, os
relacionamentos, etc; porque o próprio ser de Deus elucida isso para nós. Três
pessoas vivendo eternamente em uma união de amor, justiça, misericórdia e graça. A
realidade com a unidade-diversidade só tem sentido por causa da triunidade em Deus,
a nossa salvação só é mais elucidada por conta do ser trinitário de Deus e a nossa
glorificação a ele só tem mais sentido quando contemplamos toda a beleza do seu ser.
Portanto, podemos fazer a mesma oração puritana que diz:
Três em um, um em três, Deus da minha salvação, Pai celestial, Filho bendito,
Espírito eternal, Eu te adoro como único Ser, única Essência, único Deus em
três Pessoas distintas, Por trazeres pecadores ao teu conhecimento e ao teu
reino. O Pai, tu me amaste e enviaste Jesus para me redimir; Ó Jesus, tu me
amaste e assumiste a minha natureza, derramaste teu sangue para lavar
meus pecados, consumaste justiça para cobrir a minha iniquidade; Ó Santo
Espírito, tu me amaste e entraste em meu coração, lá implantaste a vida
eterna, revelaste-me as glórias de Jesus (FERREIRA; MYAT, 2007. p. 7).
Porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele
eternamente. Amém. (Romanos 11.36).
4 REFERÊNCIAS
CAIRNS, Earle E. Cristianismo através dos séculos: uma histórica da igreja cristã.
São Paulo: Vida Nova, 2008. 672 p.
Didaqué: Catecismo dos primeiros cristãos. 1ª ed. São Paulo: Paulus, 1989. 32 p.
POTTER, Ellis. Três teorias do todo. 1ª ed. Brasília: Charpentier: 2019. 188 p.
SCHAEFFER, Francis. O Deus que se revela. 3ª ed. São Paulo: Cultura Cristã,
2017. 144 p.