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Santo Agostinho – Comentário literal ao livro de

Gênesis

“[...]o fato de se fazer a tarde parece significar o pecado da criatura racional, e o


fato de se fazer manhã, a sua renovação. Esta discussão refere-se ao sentido
alegórico-profético, o que não assumimos neste discurso. Determinamos falar agora
sobre as Escrituras de acordo com o sentido próprio dos fatos, não de acordo com os
enigmas das figuras.” – Livro I, XVII, 33, 34.

Ao longo de sua vida, Agostinho trabalhou incansavelmente na interpretação do Gênesis


bíblico, especificamente sobre o mito criacional e não acerca de todo o livro mosaico, a
intenção do doutor da Igreja era lutar contra as mentiras dos maniqueus, seus antigos
companheiros de estudos. Com esse fim, Agostinho escreveu diversos livros de análise do
relato criacional, todos eles, porém, com alto teor alegórico, o que inevitavelmente dava
margens para que os maniqueus interpretassem suas leituras, e delas retirassem justamente a
confirmação de suas heresias. É então que o santo decide se dedicar a estudar o relato de
Moisés sob uma nova perspectiva, a histórica. Apresenta-se claramente um problema de
grande estatura, não é tarefa pouco ousada ler o relato da criação do mundo sem interpretá-lo,
servindo-se unicamente do mundo empírico, ou seja, dos fatos. É então que Agostinho entrega
ao mundo um de seus projetos mais ousados (e surpreendentes), um comentário literal ao livro
de Gênesis. Livre do medo e armado com o cinto da verdade e a espada do Espírito (Ef 6), o
teólogo anuncia que diferente de seus trabalhos anteriores, este não tem como objetivo
trabalhar com o material fornecido pela primeira fonte para tirar de lá ensinamentos, mas
mergulhar na Verdade para nela compreender o que está escrito.

Agostinho instrui os cristãos quanto ao material que tem em mãos alertando-os de que a
Escritura não é um livro científico, não tendo a Palavra de Deus o objetivo primeiro e último de
falar sobre o movimento dos corpos celestes, a física ou a química, mas sim comunicar ao
homem perdido o Caminho da Salvação1, percebe-se claramente a cautela do autor, cautela
essa que ao longo da obra se mostra até mesmo exagerada, pois os argumentos do autor
quando se propõe a falar de temas dos cientistas não deixa nada a desejar aos estudiosos de
sua época. Vemos um desses episódios em II, 4, 8, onde escreve “não há nenhum pequeno
corpúsculo no qual haja limites para a divisão, mas que tudo pode ser dividido infinitamente”,
mostrando um conhecimento de física atômica bastante aprofundado.

Natureza do escrito de Gênesis


O primeiro livro da Escritura não é um livro à parte dos subsequentes, não à toa os primeiros
cinco volumes da Bíblia Sagrada são chamados de Pentateuco, compõem todos eles um bloco
de livros que tem como objetivo a instrução do povo de Deus recém-formado após a saída do
Egito, onde viviam sob organização de um Estado não temente ao Deus de Jacó. Com a
libertação aquele povo perdeu a organização civil, e recebeu das mãos de Deus a
sistematização da vida em sociedade, não apenas no aspecto legal com as tábuas da lei, mas
religioso e social. A esse projeto organizacional não poderia faltar o elemento fundador da

1
Livro I, XX, 39.

1
organização humana, a relação vertical que dá raiz à ordem onde o indivíduo se move de
acordo com a direção que lhe é dirigida do alto. Assim, Moisés entrega não apenas o
ordenamento civil (homem-homem), mas religioso (Deus-homem), o que pode ser constatado
claramente nos dois maiores mandamentos:

O primeiro de todos os mandamentos é: Ouve, Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único


Senhor. Amarás, pois, ao Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a tua
alma, e de todo o teu entendimento, e de todas as tuas forças; este é o primeiro
mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti
mesmo. Não há outro mandamento maior do que estes. – Mc 12.29-31

Agostinho ressalta que antes de entrarmos no relato da criação precisamos entender que,
estudar o Gênesis bíblico não é conhecer a substância da semana da criação, mas lidar com o
discurso naquela semana, com o “disse” de Deus, a ação da Palavra. Diz o santo:

“[...]se alguém não quer que esses termos, que aprendeu nas coisas ínfimas e abjetas,
não se transfiram para aquelas sublimes, com as quais procura serenar a mente ao
contemplá-las, não deve ser forçado a fazê-lo. Pois, quando se compreende o que
deve ser compreendido, não se há de preocupar muito sobre como se chama”.2

O Gênesis é de Moisés, homem, escrevendo em linguagem humana o que lhe foi revelado pelo
Autor que trouxe o ser do não-ser, assim é loucura imaginar que as palavras humanas tem
poder em si para significar o ato divino. O leitor do Gênesis é convidado a buscar no texto a
revelação do Espírito. O Gênesis tem objetivo instrutivo: mostrar aos homens Elohim, o Deus
Criador, e contar como se deu sua obra.

O ser anterior e o Gênesis


Agostinho traz à luz um ponto necessário à compreensão de todo estudante do relato da
criação: o Gênesis em Moisés não fala da geração do invisível, mas do visível. Ler o relato no
Pentateuco, é ter acesso à criação do cosmos no qual vivemos, e não da criação do que é
externo a esse cosmos. Quando vemos nos primeiros versos que “a terra era sem forma e
vazia”, vemos que já há um ser espiritual, do qual não trata o texto. É pressuposto do relato
criacional bíblico: estamos falando da “nossa criação” e não da “criação da eternidade” (Sl
90.2).

Ainda, o texto de Gn 1.1 começa falando sobre um ato de criação relativo a “os céus e a terra”,
a matéria informe a partir da qual se dá todo o desenvolvimento do universo em que o homem
será inserido. “A matéria informe não é anterior às coisas formadas no tempo. Ambas foram
criadas ao mesmo tempo: a matéria de onde tudo foi criado e também o que foi criado”3.

A criação trata da matéria do espírito


O que vemos no Gênesis não é a criação primeira, e sim a formação, ou seja, o dar forma a.
Quem dá forma, dá forma a alguma coisa, e essa coisa da qual o Criador apresenta forma é o
Verbo.

2
Livro IV, IV.
3
Livro I, XV, 29.

2
Quando João diz em seu evangelho que “Todas as coisas foram feitas por ele (o Verbo), e sem
ele nada do que foi feito se fez”, está se referindo justamente ao processo de dar forma física
àquilo que já existia em Deus, seu Filho amado, por meio de quem todas as coisas foram feitas
(Jo 1.3), e no qual todos nós vivemos, nos movemos, e existimos (At 17.28).

Nos dos primeiros capítulos da Escritura o leitor encontra a materialização em Cristo, ao fim do
que o Criador compara a matéria com o Espírito e diz “está muito bom”, referindo-se à perfeita
forma visível do que era então invisível. Temos então no relato da criação a demonstração de
um processo de criação de toda a natureza para louvor e glória do Criador (compreensão do
salmista autor do Sl 148).

Além do Filho ser o motivo da criação, é ele também a medida, o peso e o número dela, ou
seja, é ele o Elemento a ser representado fisicamente. Diz Agostinho:

Não se pode perceber e pensar em medida, número e peso apenas nas pedras e
madeiras e semelhantes grandezas, por maiores que sejam os corpos terrestres ou
celestes. Há medida também na ação; para que não seja interminável e imoderada a
progressão; e há também o número com respeito aos sentimentos e virtudes do
espírito, pelo qual ele passa da deformidade da ignorância para a forma e a beleza
da sabedoria; e há peso na vontade e no amor, nos quais se manifesta o quanto cada
um deve pensar a respeito de seu apetecer, do fugir, do preferir, do estimar menos.
Mas a medida dos espíritos e das mentes é controlada por uma outra medida, e o
número é formado por um outro número, e o peso é atraído por um outro peso. A
medida sem medida é aquela com a qual se compara o que é dela, e ela não é medida
por coisa alguma; o número sem medida é aquele com o qual se formam todas as
coisas, mas ele não é formado; o peso sem peso é aquele pelo qual são atraídas todas
as coisas para que repousem, e seu repouso é puro gozo, e ele para coisa alguma é
atraído.

Aquele que conhece apenas pela vista os termos: medida, número e peso, conhece-os
servilmente. Transcenda, por isso, tudo o que assim conhece, ou se ainda não
consegue, não se prenda aos referidos termos, sobre os quais não pode pensar a não
ser sordidamente.

Jesus é a medida, o número e o peso segundo o qual a obra perfeita é realizada (o modelo em
Ex 25.9 e a medida em Ef 4.13).

Temos então em Gn 1 e 2 a materialização daquele que foi gerado em Deus na eternidade,


como disse o próprio Moisés no Salmo 90 “Senhor, tu tens sido o nosso refúgio de geração em
geração. Antes que nascessem os montes, ou que tivesses formado a terra e o mundo, sim, de
eternidade a eternidade tu és Deus”, e Cristo “antes que Abraão existisse, eu sou” (Jo .8.58).

A organização da criação do mundo


Deus tem o homem como objetivo final de seu projeto, pois ele é sua imagem e semelhança,
não apenas refletindo sua glória como toda a criação reflete, mas sendo ele mesmo pouco
menor que Deus em glória (Sl 8.5), mas igual em imagem. E com esse fim em mente, o Criador
organiza a criação em passos que possibilitam a criação subsequente, como vemos:

3
DIA CRIAÇÃO
1 Luz; dia e noite
2 Atmosfera (céu)
3 Terra; Mar; Flora
4 Corpos celestes
5 Peixes e aves
6 Animais terrestres e homem
7 Término da obra; descanso

O Criador fora dos dias da semana de criação gerou “os céus e a terra”, o que Agostinho
chamará de matéria informe, e o Espírito de Deus pairava por sobre a superfície das águas
criadas. Aqui temos o substrato da criação, a primeira matéria na qual Deus dará todo o
ordenamento do planeta que batizará no verso 10 como “Terra”.

O segundo bloco de texto do primeiro livro da Escritura começa no verso 3 “E disse Deus...”.
Aqui temos o princípio do que chamamos de criação em uma semana (ou sete dias), com o
Criador ordenando pela Palavra: “haja luz”. Ao surgir a luz conforme a medida ordenada, Deus
atesta ser ela a forma perfeita da Luz espiritual que é seu filho (Tg 1.17), Deus então separa a
luz das trevas, esse foi o primeiro dia4.

Encontrava-se o planeta, porém, com uma estrutura que ainda não admitia a vida animal, pois
todo ele compunha-se de terra submersa por um volume de águas excessivo, ao que Deus
separa a água horizontalmente, levantando uma faixa de água por sobre os céus, acima das
nuvens, criando assim um espaço (atmosfera) no qual será depositada a vida terrestre. Temos
aqui o firmamento, a faixa criada que dá sustentação às águas de cima. “Chamou Deus ao
firmamento Céus”, esse foi o segundo dia.

No terceiro dia Deus faz a preparação do solo no qual o homem poderá firmar-se, o qual
encontrava-se até então submerso. É então que Deus ordena que uma grande porção de terra
submersa se eleve, e retira dela a água. Com essa ação, o Criador faz com que essa porção
de terra que agora não está mais submersa se torne “árida” – algumas traduções trazem o
termo original yabbashah como “terra seca” e “elemento seco”, o significado literal é porém o
utilizado na Vulgata Latina, tradução da qual se serve Agostinho, lá foi grafado “árida”. Essa
terra infértil era imprópria para a fecundação (como se vê em Gn 2.5,6).

Ao quarto dia tem-se a formação dos corpos celestes, sendo estes não com função para si
mesmos, mas para a vida terrestre. Diz o texto bíblico “Deus colocou todas essas luzes nos
céus a fim de iluminarem toda a terra, para dirigirem o andamento do dia e da noite e fazerem
separação entre a luz e a escuridão” (1.17).

Em seguida a Fonte de toda vida dá início ao povoamento da Terra, todo o cosmo necessário à
vida já está disposto. São criados os seres vivos aquáticos e as aves do céu. Esse foi o quinto
dia.

Ao sexto dia Deus cria os seres terrestres e o homem, a expressão máxima de sua glória pois
não é uma criatura, mas a semelhança da medida perfeita do Verbo (o primeiro Adão de I Co

4
Quanto ao surgimento da verdadeira luz da qual a luz do dia é apenas um reflexo, disse a Escritura “Ele (João
Batista) não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz. Pois a verdadeira luz, que alumia a todo homem, estava
chegando ao mundo.” – Jo 1.8,9.

4
15). Observe que temos aqui a conclusão da criação, pois no segundo capítulo do Gênesis o
autor começa um novo bloco de texto onde diz “No sétimo dia, Deus já havia terminado a obra
que determinara; nesse dia descansou de todo o trabalho que havia realizado” (2.2).

Dois relatos da criação?


A uma polêmica moderna relacionada à criação o autor do Comentário não dedica muita
atenção. Dizem alguns teólogos (principalmente os não cristãos) que Moisés descreveu dois
relatos criacionistas, um em Gn 1 e outro em Gn 2. Porém, o que vemos na leitura literal
proposta por Agostinho é o que encontramos literalmente no verso 4

“Esta é a história do início da humanidade, no tempo em que Yahweh Deus criou o


Céu e a Terra”

Ou seja, no segundo capítulo o autor passou da visão macroscópica do capítulo primeiro para
uma visão microscópica centrada no universo humano.

“Não havia ainda brotado nenhum arbusto sobre a terra e nenhuma erva dos campos
tinha ainda crescido, porque o SENHOR não havia feito chover sobre a terra e não
havia homem para cultivar o solo. Entretanto...”5.

Encontramos então o ofício do homem no mundo natural reflexivo do Verbo:

“[...]tomou o homem e o colocou no jardim do Éden para zelar por ele”6.

Ao homem foi dado o papel de cultivar a árida para sua manutenção, uma vez que Adão foi
colocado em um Jardim, na região do Éden, local em que o próprio Deus havia feito a
plantação de todo tipo de árvore, e sendo essa região um lugar propício para a agricultura da
árida pois era local rico em recursos hídricos.

A Origem é o fim beatífico do homem


No livro I, V, 10, Agostinho escreve:

O Verbo Filho não tem uma vida informe. Para ele o ser é viver, mas também viver é
o mesmo que viver sábia e bem-aventuradamente. Mas a criatura, ainda que
espiritual e intelectual ou racional, a qual parece ser a mais próxima do Verbo, pode
ter uma vida informe, pois se para ela ser é o mesmo que viver, não é o mesmo viver
que viver sábia e bem-aventuradamente. Pois, afastada da Sabedoria incomutável,
vive néscia e miseravelmente, o que representa sua informidade. Reveste-se de forma,
porém, quando se converte para a incomutável luz da Sabedoria, o Verbo de Deus.
Por ele, pois, subsiste de qualquer modo que exista e viva, converte-se para ele para
viver sábia e bemaventuradamente. O princípio, pois, da criatura intelectual é a
eterna Sabedoria; este princípio, permanecendo em si de modo incomutável, de forma
alguma, por uma oculta inspiração da vocação, cessa de falar à criatura de quem é
princípio, para que se converta àquele do qual procede, porque não pode se formar e

5
Gn 2.5.
6
Gn 2.15.

5
aperfeiçoar de outro modo. Por isso, interrogado sobre quem era, respondeu: “O
princípio, eu que vos falo” (Jo 8.25).

O autor do Comentário não cessa de falar do Cristo, o centro de toda a criação. Lembra-nos o
santo que o Primogênito de toda criação é a única realidade objetiva, em contraste com a
representação do real, o mundo material. Com a leitura de Agostinho, entendemos o que o
apóstolo Paulo disse quando escreveu:

“Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito sobre toda a criação; porquanto


nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra” – Cl 1.15,16

Fernando Melo
Brasília, 3 de agosto de 2022

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