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Gênesis
Agostinho instrui os cristãos quanto ao material que tem em mãos alertando-os de que a
Escritura não é um livro científico, não tendo a Palavra de Deus o objetivo primeiro e último de
falar sobre o movimento dos corpos celestes, a física ou a química, mas sim comunicar ao
homem perdido o Caminho da Salvação1, percebe-se claramente a cautela do autor, cautela
essa que ao longo da obra se mostra até mesmo exagerada, pois os argumentos do autor
quando se propõe a falar de temas dos cientistas não deixa nada a desejar aos estudiosos de
sua época. Vemos um desses episódios em II, 4, 8, onde escreve “não há nenhum pequeno
corpúsculo no qual haja limites para a divisão, mas que tudo pode ser dividido infinitamente”,
mostrando um conhecimento de física atômica bastante aprofundado.
1
Livro I, XX, 39.
1
organização humana, a relação vertical que dá raiz à ordem onde o indivíduo se move de
acordo com a direção que lhe é dirigida do alto. Assim, Moisés entrega não apenas o
ordenamento civil (homem-homem), mas religioso (Deus-homem), o que pode ser constatado
claramente nos dois maiores mandamentos:
Agostinho ressalta que antes de entrarmos no relato da criação precisamos entender que,
estudar o Gênesis bíblico não é conhecer a substância da semana da criação, mas lidar com o
discurso naquela semana, com o “disse” de Deus, a ação da Palavra. Diz o santo:
“[...]se alguém não quer que esses termos, que aprendeu nas coisas ínfimas e abjetas,
não se transfiram para aquelas sublimes, com as quais procura serenar a mente ao
contemplá-las, não deve ser forçado a fazê-lo. Pois, quando se compreende o que
deve ser compreendido, não se há de preocupar muito sobre como se chama”.2
O Gênesis é de Moisés, homem, escrevendo em linguagem humana o que lhe foi revelado pelo
Autor que trouxe o ser do não-ser, assim é loucura imaginar que as palavras humanas tem
poder em si para significar o ato divino. O leitor do Gênesis é convidado a buscar no texto a
revelação do Espírito. O Gênesis tem objetivo instrutivo: mostrar aos homens Elohim, o Deus
Criador, e contar como se deu sua obra.
Ainda, o texto de Gn 1.1 começa falando sobre um ato de criação relativo a “os céus e a terra”,
a matéria informe a partir da qual se dá todo o desenvolvimento do universo em que o homem
será inserido. “A matéria informe não é anterior às coisas formadas no tempo. Ambas foram
criadas ao mesmo tempo: a matéria de onde tudo foi criado e também o que foi criado”3.
2
Livro IV, IV.
3
Livro I, XV, 29.
2
Quando João diz em seu evangelho que “Todas as coisas foram feitas por ele (o Verbo), e sem
ele nada do que foi feito se fez”, está se referindo justamente ao processo de dar forma física
àquilo que já existia em Deus, seu Filho amado, por meio de quem todas as coisas foram feitas
(Jo 1.3), e no qual todos nós vivemos, nos movemos, e existimos (At 17.28).
Nos dos primeiros capítulos da Escritura o leitor encontra a materialização em Cristo, ao fim do
que o Criador compara a matéria com o Espírito e diz “está muito bom”, referindo-se à perfeita
forma visível do que era então invisível. Temos então no relato da criação a demonstração de
um processo de criação de toda a natureza para louvor e glória do Criador (compreensão do
salmista autor do Sl 148).
Além do Filho ser o motivo da criação, é ele também a medida, o peso e o número dela, ou
seja, é ele o Elemento a ser representado fisicamente. Diz Agostinho:
Não se pode perceber e pensar em medida, número e peso apenas nas pedras e
madeiras e semelhantes grandezas, por maiores que sejam os corpos terrestres ou
celestes. Há medida também na ação; para que não seja interminável e imoderada a
progressão; e há também o número com respeito aos sentimentos e virtudes do
espírito, pelo qual ele passa da deformidade da ignorância para a forma e a beleza
da sabedoria; e há peso na vontade e no amor, nos quais se manifesta o quanto cada
um deve pensar a respeito de seu apetecer, do fugir, do preferir, do estimar menos.
Mas a medida dos espíritos e das mentes é controlada por uma outra medida, e o
número é formado por um outro número, e o peso é atraído por um outro peso. A
medida sem medida é aquela com a qual se compara o que é dela, e ela não é medida
por coisa alguma; o número sem medida é aquele com o qual se formam todas as
coisas, mas ele não é formado; o peso sem peso é aquele pelo qual são atraídas todas
as coisas para que repousem, e seu repouso é puro gozo, e ele para coisa alguma é
atraído.
Aquele que conhece apenas pela vista os termos: medida, número e peso, conhece-os
servilmente. Transcenda, por isso, tudo o que assim conhece, ou se ainda não
consegue, não se prenda aos referidos termos, sobre os quais não pode pensar a não
ser sordidamente.
Jesus é a medida, o número e o peso segundo o qual a obra perfeita é realizada (o modelo em
Ex 25.9 e a medida em Ef 4.13).
3
DIA CRIAÇÃO
1 Luz; dia e noite
2 Atmosfera (céu)
3 Terra; Mar; Flora
4 Corpos celestes
5 Peixes e aves
6 Animais terrestres e homem
7 Término da obra; descanso
O Criador fora dos dias da semana de criação gerou “os céus e a terra”, o que Agostinho
chamará de matéria informe, e o Espírito de Deus pairava por sobre a superfície das águas
criadas. Aqui temos o substrato da criação, a primeira matéria na qual Deus dará todo o
ordenamento do planeta que batizará no verso 10 como “Terra”.
O segundo bloco de texto do primeiro livro da Escritura começa no verso 3 “E disse Deus...”.
Aqui temos o princípio do que chamamos de criação em uma semana (ou sete dias), com o
Criador ordenando pela Palavra: “haja luz”. Ao surgir a luz conforme a medida ordenada, Deus
atesta ser ela a forma perfeita da Luz espiritual que é seu filho (Tg 1.17), Deus então separa a
luz das trevas, esse foi o primeiro dia4.
Encontrava-se o planeta, porém, com uma estrutura que ainda não admitia a vida animal, pois
todo ele compunha-se de terra submersa por um volume de águas excessivo, ao que Deus
separa a água horizontalmente, levantando uma faixa de água por sobre os céus, acima das
nuvens, criando assim um espaço (atmosfera) no qual será depositada a vida terrestre. Temos
aqui o firmamento, a faixa criada que dá sustentação às águas de cima. “Chamou Deus ao
firmamento Céus”, esse foi o segundo dia.
No terceiro dia Deus faz a preparação do solo no qual o homem poderá firmar-se, o qual
encontrava-se até então submerso. É então que Deus ordena que uma grande porção de terra
submersa se eleve, e retira dela a água. Com essa ação, o Criador faz com que essa porção
de terra que agora não está mais submersa se torne “árida” – algumas traduções trazem o
termo original yabbashah como “terra seca” e “elemento seco”, o significado literal é porém o
utilizado na Vulgata Latina, tradução da qual se serve Agostinho, lá foi grafado “árida”. Essa
terra infértil era imprópria para a fecundação (como se vê em Gn 2.5,6).
Ao quarto dia tem-se a formação dos corpos celestes, sendo estes não com função para si
mesmos, mas para a vida terrestre. Diz o texto bíblico “Deus colocou todas essas luzes nos
céus a fim de iluminarem toda a terra, para dirigirem o andamento do dia e da noite e fazerem
separação entre a luz e a escuridão” (1.17).
Em seguida a Fonte de toda vida dá início ao povoamento da Terra, todo o cosmo necessário à
vida já está disposto. São criados os seres vivos aquáticos e as aves do céu. Esse foi o quinto
dia.
Ao sexto dia Deus cria os seres terrestres e o homem, a expressão máxima de sua glória pois
não é uma criatura, mas a semelhança da medida perfeita do Verbo (o primeiro Adão de I Co
4
Quanto ao surgimento da verdadeira luz da qual a luz do dia é apenas um reflexo, disse a Escritura “Ele (João
Batista) não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz. Pois a verdadeira luz, que alumia a todo homem, estava
chegando ao mundo.” – Jo 1.8,9.
4
15). Observe que temos aqui a conclusão da criação, pois no segundo capítulo do Gênesis o
autor começa um novo bloco de texto onde diz “No sétimo dia, Deus já havia terminado a obra
que determinara; nesse dia descansou de todo o trabalho que havia realizado” (2.2).
Ou seja, no segundo capítulo o autor passou da visão macroscópica do capítulo primeiro para
uma visão microscópica centrada no universo humano.
“Não havia ainda brotado nenhum arbusto sobre a terra e nenhuma erva dos campos
tinha ainda crescido, porque o SENHOR não havia feito chover sobre a terra e não
havia homem para cultivar o solo. Entretanto...”5.
Ao homem foi dado o papel de cultivar a árida para sua manutenção, uma vez que Adão foi
colocado em um Jardim, na região do Éden, local em que o próprio Deus havia feito a
plantação de todo tipo de árvore, e sendo essa região um lugar propício para a agricultura da
árida pois era local rico em recursos hídricos.
O Verbo Filho não tem uma vida informe. Para ele o ser é viver, mas também viver é
o mesmo que viver sábia e bem-aventuradamente. Mas a criatura, ainda que
espiritual e intelectual ou racional, a qual parece ser a mais próxima do Verbo, pode
ter uma vida informe, pois se para ela ser é o mesmo que viver, não é o mesmo viver
que viver sábia e bem-aventuradamente. Pois, afastada da Sabedoria incomutável,
vive néscia e miseravelmente, o que representa sua informidade. Reveste-se de forma,
porém, quando se converte para a incomutável luz da Sabedoria, o Verbo de Deus.
Por ele, pois, subsiste de qualquer modo que exista e viva, converte-se para ele para
viver sábia e bemaventuradamente. O princípio, pois, da criatura intelectual é a
eterna Sabedoria; este princípio, permanecendo em si de modo incomutável, de forma
alguma, por uma oculta inspiração da vocação, cessa de falar à criatura de quem é
princípio, para que se converta àquele do qual procede, porque não pode se formar e
5
Gn 2.5.
6
Gn 2.15.
5
aperfeiçoar de outro modo. Por isso, interrogado sobre quem era, respondeu: “O
princípio, eu que vos falo” (Jo 8.25).
O autor do Comentário não cessa de falar do Cristo, o centro de toda a criação. Lembra-nos o
santo que o Primogênito de toda criação é a única realidade objetiva, em contraste com a
representação do real, o mundo material. Com a leitura de Agostinho, entendemos o que o
apóstolo Paulo disse quando escreveu:
Fernando Melo
Brasília, 3 de agosto de 2022