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Santo Agostinho

Ó Deus das virtudes! Converte-nos e mostra-nos tua face, e seremos salvos! Porque,
para onde quer que se volte a alma humana, onde quer que se estabeleça fora de ti,
sempre encontrará dor, mesmo que sejam as belezas que estão fora de ti e fora de si
mesma; e todavia, estas nada seriam se não existissem em ti. Elas nascem e morrem;
e, nascendo, começam a existir, e crescem para alcançar a perfeição e, uma vez
perfeitas, começam a envelhecer e morrem. Embora nem tudo envelheça, tudo perece.
Logo, quando os seres nascem e se esforçam para existir, quanto mais depressa
crescem para existir, tanto mais se apressam para deixar de existir. Esta é a sua
condição. Eis tudo o que lhes deste, porque são partes de coisas que não existem
simultaneamente, mas, morrendo e sucedendo-se umas às outras, formam o conjunto
de que são partes.

Assim forma-se também nosso discurso, por meio dos sinais sonoros; este nunca se
realizaria se uma palavra não se extinguisse, depois de pronunciadas suas sílabas,
para dar lugar à seguinte.

Que minha alma te louve por tudo isto, ó Deus, criador de todas as coisas; mas não
se pegue a elas com o visco do amor dos sentidos, pois também elas caminham para o
não-ser, e dilaceram a alma com desejos pestilenciais, e ela quer existir e gosta de
descansar nas coisas que ama. Mas nelas não acha onde, porque as coisas não são
estáveis. Elas são fugazes, e quem poderá segui-las com os sentidos da carne? Ou
quem as pode alcançar, mesmo estando presentes? Lento é o sentido da carne, por
ser da carne, mas essa é a sua condição. É suficiente para o que foi criado, mas não o
é para reter o curso das coisas, do princípio que lhes foi fixado, até o fim que lhes foi
designado, porque em teu Verbo, que as criou, ouvem estas palavras: “Daqui até
ali”. – Santo Agostinho, Confissões, X

A vida da Igreja ao longo dos primeiros quatro séculos é difícil de entender, ao observarmos
sob o único ângulo que nos é permitido, o de dois mil anos de distância, não é possível anotar
os movimentos das “pedras vivas” que constituem o edifício, temos apenas uma leitura um
tanto breve do caráter histórico de Jesus Cristo, e muito menos informação possuímos com
relação aos apóstolos e primeiros discípulos que levaram a semente do Evangelho pelo
mundo. Vemos, portanto, que Deus não reservou para o Cristianismo material suficiente para
se fazer uma história, definitivamente não estava na preocupação de Deus estabelecer em
tábuas de pedra a Nova Aliança, como previam os profetas ao dizer “registrarei o conteúdo da
minha Lei na mente deles e a escreverei no mais íntimo dos seus sentimentos: seus
corações”1. É conclusivo então observar que olhar para os últimos dois milênios e buscar
reconstruir a história do cristianismo é uma tentativa vã de remontar peças de um quebra-
cabeça para o qual Deus não dispôs peças suficientes. Há mais peças faltantes que presentes.

1
Jr 31.33, ver também II Co 3.3 e Hb 8.10.

1
O que chamamos de “A História da Igreja” é, na verdade, “Uma história da Igreja”, e não
devemos temer a utilização do artigo indefinido, temos exemplos bem mais grandiosos que o
nosso e, não obstante, muito mais humildes textualmente como os próprios evangelhos
sinópticos (εὐαγγέλιον, mensagem de boa nova) que, divinamente inspirados, nos foram
transmitidos em três versões sinópticas. Veja que não há aqui “O Evangelho”, mas três, e um
quarto de abordagem não-histórica, o joanino. Quando falamos sobre uma história da Igreja
não estamos dizendo que há outra história (ou outra Igreja, como diria Gustavo Corção), mas
sim que é uma história a relatada aqui nesse obra, como haverá outra relatada em outra obra
de outro autor, ainda que com o mesmo conjunto de fatos o que poderíamos chamar de um
“modelo de história da Igreja”, contando com um cerne comum acrescido de notas do autor.

O cerne é o mesmo, sempre. Você, leitor, pode percorrer dezenas de obras diferentes como eu
fiz, poderá ir além consultando ainda mais literatura e material histórico mas, certamente,
concluirá que a fonte para a História da Igreja é composta de documentos da Igreja (concílios,
sínodos, originais e cópias, bulas, encíclicas etc.), registros históricos (Josefo, Policarpo,
Eusébio, Jerônimo...) e material histórico-arqueológico (Arco de Constantino, Basílica do Santo
Sepulcro, Manuscritos do Mar Morto etc). Não há material extra, não há novidades a esse
respeito, não há fontes diferenciadas e nenhum autor de História da Igreja pode lançar algo
novo sobre o assunto depois de consultar “fontes inéditas” pois não as há. Partimos todos de
um mesmo cerne, adicionando notas do autor.

E com relação ao que a Igreja viveu entre Nicéia


e Constantinopla só nos resta anotarmos de
próprio punho alguns pontos, como o que julgo
ser essencial antes de chegar ao credo
constantinopolitano: a vida e obra de Santo
Agostinho.

Julgo dessa forma porque me é a única


disponível, creio que cada homem possui apenas
uma forma de ver a vida, algo que alguns
chamam de defeito, mas que eu prefiro chamar
de estilo. Acredito que cada autor só consegue
ver de uma forma e assim descrever, ainda que
possa simular uma visão prismática esse será
seu estilo, e só possuirá este. A meu ver,
Aurelius Augustinus Hipponensis ou “Agostinho
de Hipona” é o divisor da história cristã – por tão
diversos motivos que seria banal listá-los, mais
indicado é discorrer sobre o assunto e tentar ao
longo de alguns capítulos dar o relevo necessário
para a compreensão do que atestamos aqui.
Figura 1 – San Agustín, óleo sobre tela por
Antonio Rodríguez (1636 – 1691).

2
Uma base acadêmica para a teologia cristã
Com sua formação intelectual, Agostinho serviu a Igreja como uma ferramenta de
transformação da religião cristã por completo. Enquanto ao longo da patrística os teólogos do
oriente e ocidente produziam uma base para a defesa de seus pontos de vista relativos à
teologia cristã, Agostinho fez caminho reverso iniciando sua vida com um apontamento para
Cristo, enquanto viveu em busca da compreensão do Evangelho. Esse apontamento trabalhou
no futuro bispo de Hipona como uma promessa, ou para utilizar um termo que veio a se tornar
marca da teologia agostiniana, uma eleição, chamado. Agostinho estava destinado
previamente a percorrer aquele caminho e a servir seu Deus da forma como serviu, e essa
certeza habitou sua mente como se vê

“Receberam-me os consolos do leite humano, do qual nem minha mãe, nem minhas
amas enchiam os seios; mas eras tu que, por meio delas, me davas aquele alimento da
infância, de acordo com o seu desígnio, e segundo os tesouros dispostos por ti até no
mais íntimo das coisas.” Confissões, VI

Nesse trecho de seu texto autobiográfico, Agostinho discorre sobre seu nascimento e
desenvolvimento na primeira infância, abordagem clássica daqueles que entendem ser Deus
agente eterno para cumprimento de sua vontade (Sl 139.13; Jr 1.5). O autor aqui prossegue
com a descrição de como o Criador conduziu a vida do filho de Patrício e Mônica, um casal que
trazia as características díspares necessárias para a formação da personalidade do doutor da
Igreja, homem poderoso em palavras e em atos, filosofia e teologia, de poderosa mente e
grande coração. Filho de pai pagão e mãe cristã, o jovem Agostinho recebeu profícua instrução
latina com aulas de grego e hebraico, assim como conviveu com alunos de escolas filosóficas
das mais diversas, e tudo isso por insistência de seu pai que investiu o que tinha e o que não
tinha para que seu filho alcançasse grande estatura intelectual; da parte de sua mãe, recebeu o
alimento espiritual do qual não se nutre em escolas, mas por meio do Deus que responde
orações (Mt 7.7; Jo 16.24). Sedento de tudo quanto lhe era oferecido, Agostinho mergulhou
nos escritos de filosofia, na busca pela espiritualidade pagã, no pecado e por fim, no amor de
Cristo. Homem apaixonado, Santo Agostinho é exemplo para homens pios e para medíocres
pecadores, instigando aqueles a orar com amor e devoção, e a estes entregar suas fraquezas
ao Cristo crucificado.2

Tendo vivido por três décadas até o momento de sua conversão, Agostinho teve tempo de se
formar academicamente e, após essa formação, ao ser convocado de forma irresistível pela
graça de Deus para serví-Lo, fazê-lo com excelência em um campo de atuação que era caro à
Igreja do quarto século: argumentação filosófica.

Com o início da derrocada do Império Romano e a Igreja imiscuída no poder político, as


invasões bárbaras significavam mais que uma derrota política, mas também a derrota religiosa
do cristianismo. Cairiam as basílicas juntamente com o Senado romano? A Igreja tratou de
impedir essa tragédia com uma atuação que a mistificava, ou seja, a espiritualizava retirando-a
da representação material e transformando-a em um corpo espiritual, e esse trabalho foi
realizado em grande parte pelo bispo de Hipona ao escrever sua obra magna, Cidade de Deus.
Ao defender que o Corpo de Cristo é composto de homens e mulheres, vivos, mortos e ainda
por nascer, todos membros de uma mesma filiação consanguínea no Filho do Homem, Jesus

2
Ver Confissões, Livro I, XI, onde o autor narra o episódio de sua confissão de fé ainda criança, no episódio onde foi
acometido de uma forte febre que quase lhe ceifou a vida. Nesse trecho, Agostinho pergunta para Deus por que seu
batismo não foi realizado naquela ocasião, seria isso uma forma de Deus lhe poupar de viver uma vida de pecados
estando já conformado à imagem de Cristo?

3
Cristo, Agostinho torna a Igreja em Católica, espalhada por todo o tempo e espaço, sendo inútil
aos povos bárbaros tentar destrui-la, e sendo desnecessário ao cristão se preocupar com a
impossibilidade do culto racional3 caso ocorressem a destruição de paróquias e basílicas.

Além de formulações teológicas que afetavam a vida administrativa da Igreja, Agostinho deu a
sustentação necessária para os concílios realizados nos quatro primeiros séculos da Era
Cristã, que apesar de realizarem encontros entre oriente e ocidente, não conseguiam formular
credos que fossem cridos e rezados pela Igreja ao redor do mundo. Suas formulações sobre a
Trindade, o pecado original, a graça, o batismo assim como suas interpretações completas de
livros como Salmos e Gênesis, entregaram para a cristandade uma sustentação intelectual que
significaria para o Corpo de Cristo mais que material intelectual, sendo verdadeiro substrato
para a fé.

Vejamos a partir de agora os principais pontos da teologia agostiniana.

Fernando Melo
Brasília, 22 de junho de 2022

3
Cf. Rm 12.1

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