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Gottfried Brakemeier

Sabedorias da fé
Num mundo confuso
Literatura II. Tolerância
B o rn k a m m , Günter. Anhang: Jean Paul, Rede des toten Christus v o m Welten­
e religião
gebäude herab, dass kein Gott sei. (Mit einem Nachwort). In: Studien zu
A n tike und Urchristentum. München: Chr. Kaiser, 1959. p. 245-252. (Ges.
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C a t ã o , Francisco A. C. Em busca do sentido da vida. São Paulo: Paulinas, 1993.
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O tem a soa como tentativa de conciliar a água e o fogo. Pois, à
(Coleção Crer e Viver, 6). prim eira vista, tolerância e religião são fenômenos m utuam ente exclu-
K ilp p , Nelson. R etratos - exemplos de fé e de vida. São Leopoldo: Sinodal, 2013.
dentes. Não há nada mais intolerante do que as religiões, todas com a
O n f r a y , Michel. Contra-história da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
pretensão de oferecer a única verdade e de conduzir os fiéis à salvação.
. Tratado de Ateologia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
Aos adeptos é prom etido o céu, enquanto os dissidentes são rem etidos
ao inferno. Isso não somente no juízo final. A condenação costum a
ser antecipada em forma de demonização, perseguição e até mesmo
extermínio dos “incrédulos”. Preconizam-se as guerras santas e as bar­
báries cometidas em nome do combate ao mal como obra agradável a
Deus. Religião pode ser altam ente brutal. Desde sempre a convivência
de credos divergentes tem sido difícil. São incontáveis as vítimas do
fanatismo religioso, não por últim o na história do Brasil. Fervor reli­
gioso desconhece tolerância. Possui um a veia assassina.
No século 21, o assunto adquiriu particular periculosidade. En­
ganou-se quem acreditava que guerra religiosa era algo do passado.
Os horrores da guerra dos trinta anos, que no século 17 devastou a
Europa e colheu um terço de sua população, aparentem ente não fo­
ram suficientes para desiludir as pessoas com relação à legitimidade
de um a guerra em nom e da fé. No m undo globalizado renascem os
fundamentalismos, ameaçando a paz e espalhando o medo. O terror
que ceifa indiscrim inadam ente supostos inimigos e pessoas inocentes
possui fortes ingredientes religiosos. É praticado em boa medida por
“m ártires assassinos”, que sacrificam sua vida em favor de um a causa
dita "santa”, num a lógica completamente irracional. A atualidade en­
frenta a ameaça de novos conflitos que, em razão do poderoso arsenal
bélico da era tecnológica, adquire dimensões m onstruosas. Não é por
acaso que ultim am ente o reclamo por paz tenha alcançado singular
insistência em todo o mundo.

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O anseio costuma ser burlado pelo propósito de revestir leis reli­ denada a coexistir em vizinhança imediata. Deve responder à pergunta
giosas de força política. Religiões procuram usurpar o espaço do estado se sua convivência terá natureza conflituosa ou pacífica.
ou então subordiná-lo a seu comando. Querem implantar o “estado re­ “A intolerância está na raiz das grandes tragédias m undiais.” A
ligioso” que já não distingue entre lei de Deus e lei civil. Tendências teo- constatação de Marcelo Guimarães (p. 38) dispensa comprovantes. A
cráticas são típicas de todas as religiões, ora mais ora menos. Também hum anidade compara-se à tripulação de um a nave espacial, da qual
o cristianismo não faz exceção. Basta lembrar a luta pela hegemonia não há como desembarcar. Mesmo assim, vive desunida, armada até os
entre império e papado na Idade Média, ou então a promoção de uma dentes, disputando o comando e procurando aniquilar o diferente. As
denominação à religião estatal. Assim aconteceu no Brasil enquanto co­ estratégias usadas para coibir as agressões alheias são nada anim ado­
lônia e monarquia. Também a Europa por m uito tempo desconhecia ras. Limitam-se essencialm ente à força policial e militar, ao antiterror,
tolerância religiosa. Todo estado religioso é autoritário, antidemocráti­ ou então à dominação cultural ou econômica. Ainda prevalece aquele
co, totalitário. É o que se observa nitidamente no m undo islâmico. Em nefasto princípio rom ano que dizia: “Se quiseres a paz, prepara a guer­
vários países se pretendem a ditadura da fé e a introdução da “sharia” ra”. E claro que nesse jogo a culpa sempre é em purrada aos outros.
como código jurídico. O embate entre grupos islamistas e outros de Diz-se ser preciso defender-se dos ataques inimigos. E a lógica parece
orientação liberal, democrática resulta em fortes explosões de violência. dar razão ao raciocínio. Tolerância obviamente não pode se estender ao
Também entre cristãos a separação entre a esfera secular e a religiosa crime nem compactuar com o mal. Não poderá ser ilimitada, portanto.
continua a defrontar-se com dificuldades. Eis uma causa da repressão Esta é a questão-chave do pluralismo do m undo global, presente nas
de minorias religiosas pelo m undo afora. Para muitas pessoas, liberdade relações internacionais bem como em cada nação em particular: To­
religiosa e de expressão é promessa ainda não cumprida. Frente a essa lerância sim, mas até onde? E a religião, que pode e deve contribuir?
triste realidade importa insistir no imperativo da tolerância. Sem ela, a
democracia se inviabiliza e paz permanece ideia fictícia. B. O p ap el d a religião
Tolerância não é exatamente sinônimo de paz. E apenas uma
premissa da mesma, embora de primeira ordem. Merece atenção jus­ O quadro desenhado acima com respeito ao exclusivismo das
tamente nessa condição. De acordo com a declaração da UNESCO, de religiões evidentemente não retrata a verdade toda. Refere-se de fato
1995, tolerância é o respeito mútuo, a aceitação e o reconhecimento apenas às alas radicais, aliás, presentes em todas as religiões com ex­
das culturas deste mundo. Implica a coexistência harmoniosa de con­ pressões mais ou menos intensas. Podem dar origem a juízos injustos.
vicções e propostas diferentes. Tolerância concede o direito à diferença. Será o islamismo violento por natureza? E o que dizer do cristianismo
Trata-se de um imperativo que se dirige a qualquer tipo de convivência. a partir de seus pecados históricos que deixaram um rasto de sangue
Pois comunhão hum ana se constitui inevitavelmente de membros que nas Américas e em outras partes do m undo sob o controle da inquisi­
se distinguem uns dos outros. A própria família pode servir de exem­ ção? Ora, importa resistir à tentação de caracterizar um a religião com
plo. Sem um mínimo de tolerância não haverá como evitar o conflito. base em algumas manifestações patológicas. Cabe recorrer ao “discurso
Aplica-se isso com muito maior pertinência à realidade da sociedade fundante” para ver se consagram a intolerância ou não. Jesus Cristo,
plural, multicultural, plurirreligiosa do m undo atual. Essa, aliás, não ele mesmo, legitima a violência cometida em seu nome? Se esse não
é nenhum a invenção moderna. Também as sociedades antigas, como a for o caso, há que se espalhá-lo pelo m undo afora para não haver dúvi­
do Império Romano, se defrontavam com o problema da pluralidade. das a respeito. Jesus Cristo condena a tortura, as guerras preventivas, a
Tinham que decidir o que toleravam e o que não. E, no entanto, a ace­ violação da dignidade do inimigo. O mesmo se exige do mundo islâmi­
lerada aproximação das culturas, das etnias, das religiões decorrente do co. Caso o Alcorão repudiar a violência em nome de Alá, as lideranças
assim chamado processo de globalização aguçou a problemática e lhe muçulmanas deverão distanciar-se dos talibãs, dos grupos “Al-Qaeda”,
confere nova qualidade. Mobilidade e comunicação quase instantânea da repressão exercida em pessoas de outra fé. De qualquer maneira, a
impossibilitam m anter o diferente à distância. A humanidade está con­ relação entre religião e intolerância exige o juízo diferenciado.

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Tal diferenciação implica considerações adicionais. N orm alm en­ O problem a é que o saber é incapaz de substituir os credos. As
te se m isturam outros interesses ao confronto dos credos. Religião coisas mais im portantes da vida podem ser som ente cridas, não de­
pode ser instrum entalizada para fins econômicos, políticos, racistas e m onstradas. Incluem-se aí o sentido, o objetivo e as metas de vida,
até mesmo pessoais. Basta lembrar o conflito histórico entre protes­ a razão de ser, o porquê da existência, a dignidade hum ana e m uito
tantes e católicos na Irlanda do Norte ou a disputa da terra santa entre mais. Por isso mesmo tam bém cientistas têm seus credos. No fundo,
Israel e os palestinos. Há causas religiosas em jogo, sim. Mas não só. ninguém dispensa a fé. Todas as pessoas têm sua visão de realidade.
Não raro a intolerância se prende a objetivos específicos, a serviço do Logo, devem prestação de contas de seus valores, de seus princípios
lucro, de privilégios e da preservação do poder. A religião é abusada e éticos, de seu projeto de vida. Tal projeto não se constrói em cima
se torna refém de interesses alheios, devendo “abençoar” guerras não de fatos, e sim de apostas, esperanças e anseios. Não raro também
por ela inventadas, m uito embora apoiadas. Enfim, tam bém o ateísmo niilistas exibem sinais de intolerância. “Fundamentalism o científico”,
pode exibir feição intolerante. Isso quando se alicerça em fundam ento fanático, é fenômeno nada excepcional. Então, eliminar a religião para
ideológico, a exemplo do marxismo ou então da “doutrina da seguran­ desse modo construir um a sociedade tolerante é ficção. O caminho
ça nacional” na época da ditadura no Brasil. As igrejas sofreram per­ deve ser outro. Consiste na mobilização das energias próprias das reli­
seguição sob os antigos regimes com unistas e militares. Secularidade giões na construção da paz. Há que se com bater não as religiões, mas
não é nenhum a garantia contra a perseguição de m inorias dissidentes. suas manifestações doentias, patológicas, alienadas. Pois, no fundo,
Aliás, intolerância é algo típico de “credos”, sejam eles de matiz todas as religiões ou, pelo menos, a maioria delas se sabem a serviço
religioso, ideológico ou m esm o secular. Por verdades científicas não é da nobre causa da paz. A credibilidade exige que honrem esse com­
preciso batalhar. Elas vão se im por por força inerente. Se alguém d u ­ prom isso e deem provas da sinceridade de suas intenções. Se de fato
vida que dois mais dois são quatro, m ostra ser não um descrente, mas preconizam salvação, deve-se lem brar que a paz é um dos com ponen­
um ignorante. Ciência não necessita de m ártires, nem precisa fazer tes imprescindíveis dela.
missão. Isso é diferente sempre que fé está em jogo. Pois fé não existe
independentem ente das pessoas que a professam. Fatos são objetivos, C. O projeto do evangelho
indiscutíveis, universais. Enquanto que convicções se revestem de na­
tureza subjetiva, particular, relativa, sendo que questionam entos sem­ Em suas afamadas bem-aventuranças, Jesus inclui a dos paci­
pre atingem não somente os assuntos em discussão, como também as ficadores. Quem promove a paz tem a prom essa de ser chamado fi­
pessoas que os defendem. Crítica em questões de fé costum a ser sen­ lho e filha de Deus (Mt 5.9). Sim ultaneamente, paz é dom do Cristo
tida como “agressão pessoal”. Explicam-se assim as reações violentas. ressuscitado 0o 20.26), característica do reino de Deus (Rm 14.17),
Se assim é, poder-se-ia concluir ser preferível abandonar o uni­ realidade criada pelo evangelho (Ef 2.11s). A comunidade confessa
verso dos credos, da religião e da fé para substituí-lo por aquilo que Cristo como sendo a sua paz por ter derrubado muros de separação e
de fato sabemos. O crer deveria ceder espaço para o saber, a religião à reconciliado inimigos (Ef 2.14). E amplo o testem unho bíblico a esse
ciência. Sonha-se com uma sociedade “arreligiosa”. É essa, hoje, a p ro­ respeito. Daí porque se deve concluir ser o evangelho sinônimo de um
posta de m uitas pessoas cansadas das brigas e da fúria dos crentes. Em “projeto de paz”, promovido por Deus em favor de um m undo m ortal­
virtude de seus efeitos flagrantemente desum anizantes, o fenômeno m ente ameaçado por conflitos. Em vista da cidade de Jerusalém, Jesus
religioso está perdendo crédito. “A tentação de se tornar descrente”, chorou por ela desconhecer o que lhe serve para a paz (Lc 19.41s).
foi esse o título do relatório de alguém que recentem ente voltou de Assim ele chora hoje sempre que pessoas, grupos, povos preferem a
viagem ao Oriente Médio. Em vista do fervor religioso reinante naque­ tolice da guerra, da violência e do conflito à sabedoria do perdão, da
la região bem como em tantas outras, a opção a favor da incredulidade reconciliação, do entendim ento m útuo.
parece ter plausibilidade. Enquanto o fanatismo religioso mobiliza os A causa desse im pressionante testem unho está na centralidade
instintos assassinos, a secularidade prom eteria a paz. Esse é um dos do amor como dom e exigência de Deus. Deus, ele mesm o é amor, diz
fortes argumentos dos agnósticos para declarar guerra à religião.

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a Primeira Epístola de João (ljo 4.16). Portanto ele pretende o bem de natureza intolerante por definição. Está proibida de dar razão à posi­
sua criatura ainda que ela esteja afundada em pecado, culpa, obstina­ ção e à oposição ao mesmo tempo.
ção. Consequentem ente, resume-se no am or o imperativo evangélico. A fé cristã defende a verdade do evangelho. Afirma, por exem­
O duplo m andam ento que exige amar a Deus acima de todas as coisas plo, que o ser hum ano é justificado por graça e fé. E não pode arre­
e o próximo como a si mesm o compila a “lei e os profetas” e exprime dar pé dessa verdade sem aniquilar-se. E, no entanto, está obrigada a
a vontade de Deus por excelência. Ora, “o am or é paciente, é benigno, defendê-la com amor. Se o amor quer tolerar tudo, a verdade o im pe­
[...] tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”, diz o apóstolo de. Precisa traçar limites. Inversamente, se a verdade quer excluir ou
Paulo em IC o 13.4,7. Em outros termos, o am or é necessariamente condenar, vai sofrer a oposição do amor, que não se conforma com a
“tolerante”, carrega o outro, suporta o diferente. Tolerância é ingre­ exclusão do próximo. Verdade e amor se desafiam e com plementam
diente essencial da ética cristã, ou seja, de um a conduta em consonân­ m utuam ente. O amor protege a verdade contra o perigo de tornar-se
cia com o evangelho. Ela é típica do “andar no espírito”. Sem amor, a desum ana e brutal. Reprova o assassinato do inimigo, a demonização
fé está prejudicada, corrompeu-se, está morta. Por isso tolerância está do dissidente e a violação de sua dignidade. Inversamente, a verda­
na raiz da fé cristã. de protege o am or de favorecer a indiferença incapaz do protesto e
Comprova-o a natureza do próprio Novo Testamento. Ele “tole­ da resistência contra o mal. E claro que a renúncia à verdade seria o
ra” diversidade de vozes. Admite o lado a lado de quatro evangelhos, modo mais cômodo de assegurar a tolerância. Todo m undo “fica na
cada qual com sua especificidade e sua mensagem própria. O mesmo sua”; cada qual faz o que quer; ninguém se mete na vida do vizinho.
vale com relação aos demais escritos. Os autores das cartas nem sem ­ Por que não conformar-se com a lei do vale-tudo? Ora, o preço será
pre são unânim es em seus enunciados. O testem unho do Novo Testa­ a perda da capacidade de distinguir entre o bem e o mal. Tolerância e
mento, pois, é plural. A diversidade se acentua quando se contempla permissividade são coisas distintas. N enhum governo pode adm itir tal
a Bíblia em seu todo, incluindo o Antigo Testamento. Daí porque se “filosofia”. Deve exigir respeito às regras que sustentam a sociedade.
deve concluir que a composição da Sagrada Escritura do povo cristão O cidadão e a cidadã não têm a licença para um agir ao bel-prazer.
exigiu alto grau de “tolerância”. A Bíblia é o exemplo clássico da con­ É corrente a constatação que a prim eira vítima num a guerra é
cessão do “direito à diferença”. Mesmo assim seria errôneo deduzir a verdade. A m entira faz parte da estratégia militar. Por analogia vale
da Bíblia a permissão do “vale tudo”. Se interpretada devidamente, a que a prim eira vítima do fanatismo religioso é o amor. Fundamentalis-
Bíblia não deixa de estabelecer limites, definidos essencialmente pela mo religioso, inclusive o de natureza cristã, despreza o supremo m an­
pessoa de Jesus Cristo. Ele é o critério da autenticidade da fé. Nem dam ento de Jesus, como bem o podemos observar na prim eira carta do
tudo o que se propaga em seu nome tem de fato seu aval. apóstolo Paulo aos coríntios. Não é por acaso que o hino de exaltação
A tolerância, pois, não é ilimitada. N enhum a tolerância o é. Já ao amor se encontre justam ente nessa carta (cap. 13). A fé cristã não
dissemos que não pode acobertar o crime. Por isso mesm o a vontade pode sacrificar nem a verdade nem o am or sem se descaracterizar irre­
de Deus se articula não som ente em m andam entos, como tam bém em mediavelmente. E ela sustenta essa afirmação como válida para todas
proibições. M ostra-o o decálogo, assum ido por Jesus e integrado nos as religiões. Im porta conjugar a paixão pela verdade com a paixão pelo
catecismos das igrejas. Proibição é um a forma de intolerância. Mas ela amor, sem prejuízo nem para esta nem para aquela. Isso significa:
é legítima desde que preventora do mal. O mesmo vale com relação
à verdade. Ela é uma só e exclui o seu contrário. A verdade não pode 1. Não se pode esperar da religião que renuncie à incon-
tolerar a m entira, o erro, a falsidade. Insiste no que é correto, h o ­ dicionalidade de seu discurso. Sem ela, perde sua credibilidade.
nesto, procedente. Certam ente não existe apenas um a verdade, visto Todas as religiões se sabem portadoras de um a “verdade”, e rea­
que podem ser diversas as perspectivas, cada um a revelando outras gem agressivamente à negação dela. Enquanto não incorrerem
dimensões do mesm o fenômeno. Mas quando o assunto é o mesmo, a em crime, devem ter espaço para a articulação e a prática de
verdade é exclusiva. Caso contrário, elimina-se a si própria. Ela possui seus credos sem serem obrigadas a trair sua identidade. O que

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se deve legitim am ente esperar das religiões é que desistam de cristã da nação alemã” (Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sino-
antecipar o juízo divino m ediante perseguição e exterm ínio dos dal; Porto Alegre: Concórdia, 1989. v. 2, p. 326), referindo-se à
dissidentes, respectivamente dos “incrédulos”. Condenar a pes­ condenação de João Hus à m orte na fogueira, ele afirma que se
soa descrente é atribuição exclusiva de Deus. Sua palavra diz: deve vencer a heresia com escritos, não com fogo. E um a posição
“A m im me pertence a vingança” (cf. Dt 32.35; Rm 12.19). O defendida pelo reform ador durante toda a sua vida. E claro que
próprio Jesus dá o exemplo. Ele acusou não os dissidentes, mas a igreja católica da época não a compartilhava. Lamentavelmente
os fanáticos, os justos. N enhum a autoridade hum ana, religio­ tam bém a igreja luterana nem sem pre seguiu o conselho do Re­
sa ou política, tem a permissão de usurpar autoridade divina. formador. Tanto mais im portante é reforçá-lo hoje. Deve-se con­
Guerra religiosa, mesm o em term os tão som ente verbais, é sem­ ceder tam bém ao dissidente o direito à liberdade de consciência.
pre pecado. Tolerância não significa concordância com o outro, E mais! Ele ou ela não deixam de ser igualmente filhos e filhas
mas concessão de espaço de vida. E este o verdadeiro sentido da de Deus, pelos quais Cristo m orreu na cruz. Também os inim i­
palavra “tolerar”, a saber, “suportar” o outro sem ver nele uma gos são amados por Deus. Comete crime quem os desrespeita
ameaça a ser liquidada. Tolerância não joga as diferenças na mes­ nessa qualidade.
ma panela. Mas possibilita a convivência dialógica, afastando o
ódio, a agressão e a violência. D. P o r u m a c u ltu ra global d a paz

2. Exatamente por isso se espera das religiões mais do Convivência plural exige o Estado tolerante, que garante a liber­
que o em penho por coexistência estanque. O princípio da não dade de pensam ento, consciência e religião. De acordo com o artigo
interferência m útua é insuficiente para assegurar a paz. Impor­ XVIII da Declaração Universal dos Direitos Humanos, esse direito “in­
ta lem brar às religiões seu m andato “pacificador”, que inclui a clui a liberdade de m udar de religião ou crença e a liberdade de m a­
tentativa de entendim ento m útuo, a erradicação do preconceito, nifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto e
a abstenção do juízo injusto. Tolerância exige o respeito frente pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particu­
à alteridade do outro e de sua dignidade. Enfim, cabe perguntar lar”. O estado de direito vai im por restrições ao pleno exercício da ci­
se não existem afinidades entre as diferenças, pontos de conver­ dadania apenas em casos de ação lesiva ao indivíduo, ao bem comum,
gência, causas comuns. Está aí o propósito legítimo do reclamo à dignidade humana, à saúde do corpo social. Liberdade religiosa é
por um a ética planetária, vinculante para todas as religiões e to ­ reclamo não som ente político. Emana do próprio evangelho. A fé sofre
dos os povos. A sociedade global, m ulticultural tem necessidade prejuízo sob coação de qualquer espécie. Em consonância com isso,
de reconciliar diferenças, promover a confiança m útua e capaci­ as igrejas cristãs, em bora em processo histórico lento, tornaram -se
tar para o intercâm bio cultural. Portanto, tolerância não é um protagonistas da liberdade religiosa. Não se perm ite ao Estado tom ar
fim em si. E instrum ento para o objetivo maior da paz. E essa é o partido de um a só facção. Deve seguir a m eta da neutralidade em
que deverá ser a m eta conjunta das religiões. assuntos de cosmovisão e credo. Cabe-lhe a função de um a casa que
abriga a multicolorida vida social, protegendo os legítimos direitos de
3. E dentro desse arcabouço que se situa a posição lutera- seus cidadãos e de suas cidadãs.
na. A igreja medieval havia justificado os horrores da inquisição Se as igrejas cristãs reivindicam liberdade religiosa para si, es­
com o argum ento de que heresia seria equivalente a um assas­ tão comprometidas a concedê-la tam bém a outros. Devem adm itir a
sinato da alma. Por isso mesmo caberiam perseguição e morte pluralidade que inevitavelmente brota da liberdade. Diversidade é um
aos e às hereges. O desvio da doutrina oficial da igreja mereceria princípio fundam ental de sociedade sustentável, assim como a bio­
ser punido com a exclusão social e a pena de morte. Lutero se diversidade o é na natureza. Uniformidade religiosa sempre terá por
opôs a esse raciocínio. Já em 1520, em seu escrito “À nobreza condição a tirania, a repressão, o controle. Exatamente por isso abriga

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alto potencial conflituoso suscetível de violentas irrupções. Pluralida­ Seria errôneo concluir que esse projeto dem andaria a renúncia
de não é um mal, desde que desarmada e habilitada para a convivência à missão cristã, respectivamente à propaganda religiosa em term os
harmoniosa. É claro que a pluralidade, para não ser caótica, necessita abrangentes. Missão como testem unho, como convite, como chamado
de um denom inador comum. N enhum Estado pode abrir mão de um a à fé é atividade legítima tam bém e justam ente em sociedade plurirreli-
constituição que define os princípios básicos da nação, os direitos e giosa. Na definição que acabamos de apresentar, nada terá de violento.
deveres de seus membros, e com isso os limites da tolerância. Mas Vai usar como um de seus privilegiados instrum entos o diálogo, sendo
esses limites, a serem respeitados tam bém pelos grupos religiosos, que o diálogo inter-religioso, em meio ao renascer dos fundamentalis-
devem ser tão amplos como possível. mos, adquiriu particular relevância. Há quem prefira falar em macro-
O Estado neutro em assuntos de religião é um a conquista m o­ ecumenismo, palavra que tem a vantagem de afirmar um a plataforma
derna, fruto de secularização e iluminismo. Ela separa o poder espiri­ comum de todos os credos. E, com efeito, por mais atem orizantes que
tual, religioso, e o poder temporal, secular, ou seja, o “sacerdócio” e o pareçam os muros de separação entre as religiões, há um a unidade
“im pério”, a Igreja e o Estado. E sabido que essa separação custou a se original entre os seres hum anos como criaturas de Deus e concida­
impor, apesar de que deita profundas raízes na Bíblia. O reino de Deus, dãos deste planeta. A paz global pressupõe o esforço por substituir o
anunciado e antecipado por Jesus, não tem estruturas teocráticas. A confronto pelo encontro, o que vai transform ar a simples tolerância
palavra: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de D eus” (Mc em comunhão.
12.17), certam ente não perm ite a César desprezar a vontade divina. E, Conflitos têm causas. Também o terrorism o dos dias de hoje.
no entanto, tam bém não confunde as competências. O poder secular É claro que o combate ao mesm o não pode desistir por completo do
tem direitos e deveres específicos que devem ser respeitados pela co­ uso das armas. Mas engana-se quem supõe serem as armas capazes de
m unidade de fé. Precedentes de tal concepção encontram-se já no An­ produzir a paz. A violência, tanto a nacional quanto a internacional,
tigo Testamento. Desde os tem pos de Davi até os de Herodes, reinado necessita de outra terapia do que o contraterror. E estúpido quem não
e sacerdócio conviviam não sem tensões, e, todavia, como instituições o enxerga e continua apostando no princípio “olho por olho, dente por
distintas. O “poder secular” tem a obrigação de cuidar do bem de to ­ dente” (Êx 21.24; Mt 5.38s). Sem reconciliação, sem o combate ao
dos os cidadãos, independentem ente de seu credo. Deve promover o ódio, sem a construção de confiança de parte a parte, não há perspec­
bem, a justiça e a paz, cumprindo exatam ente assim um m andato di­ tivas de um m undo pacífico. Como diz o provérbio: Verdadeiro herói
vino (cf. Rm 13.Is). Proíbe-se à religião apropriar-se das funções do não é quem derrotou o inimigo, mas sim quem o transform ou em
Estado. O resultado seria a tirania clerical. amigo. O m undo globalizado, vangloriando-se de armas inteligentes e
Nas igrejas foram fortes as resistências a abandonar o “Estado gabando-se de fantásticas proezas técnicas, ressente-se de aguda falta
religioso” a serviço de um a religião oficial, beneficiária de proteção dessa sabedoria. Progresso científico não está protegido contra o pe­
da parte dos órgãos públicos. Convém apontar para a contribuição de rigo de ser cooptado por projetos terrivelm ente estúpidos. O m undo
Lutero nesse tocante. Foi um dos protagonistas do Estado tolerante ao m oderno necessita da sabedoria da cruz, da inteligência do amor para
sustentar ser religião um a questão de consciência e, por isso, im une à sobreviver.
penalização por lei estatal. Divergências religiosas exigem o diálogo, Im porta reiterar, porém, que tolerância não é a única condição
não a repressão violenta. Fé não se julga por tribunais governamen­ da paz. Não m enos im portante é a justiça, a devida distribuição dos
tais. Infelizmente prevalece ainda hoje, em m uitos países, o regime bens, a garantia da subsistência, o respeito à dignidade das pessoas.
teocrático, que pratica autoritarism o religioso. Ele é incompatível com Não há sujeito mais perigoso do que aquele que teve sua dignidade
o projeto da paz. Por isso mesm o não basta reivindicar liberdade para ferida, seja por desprezo, tortura, injustiça, miséria, falta de emprego
determ inada religião, enquanto essa não estiver disposta a conceder o e perspectivas futuras. Vai planejar a vingança.
direito da livre escolha às pessoas que a confessam. Liberdade religio­ Certam ente o engajamento em favor da paz é atividade com­
sa é reclamo legítimo não só de instituições, como também e acima de plexa. Mas necessariam ente vai incluir a aprendizagem da tolerância
tudo dos cidadãos.

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em term os acima expostos. A pluralidade contém potencial explosivo. III. O m istério
E preciso capacitá-la para a cooperação e redirecionar suas energias
para o enriquecim ento m útuo. As religiões são desafiadas a dem ons­
da Trindade
trar seus recursos para a promoção da tolerância como indispensável
estágio no caminho para a paz.

Literatura
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São Paulo: Paulinas, 1995.
B r a n d e n b u r g e r , Egon. Frieden im Neuen Testament. Grundlinien urchristlichen
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A. “Para nós há um só Deus...” (ICo 8.6)
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G o n ç a l v e s , Antonio Baptista. A relação de intolerância religiosa com os di­
“Pastor! Deus é um só em todas as religiões.” Não raro é esse o
argum ento de quem abandona sua tradicional comunidade de fé para
reitos humanos. Ciências da religião, São Paulo: Universidade Presbiteriana
Mackenzie, p. 32-60, 2012. se filiar a outra. A “troca de religião”, pois, seria um a questão apenas
G e n s i c h e n , Hans-Werner. Weltreligionen und W eltfriede. Göttingen: Vanden-
formal, não afetando o credo. A gente m udaria o rótulo, não o conteú­
hoeck & Ruprecht, 1985. do. Continuam os crendo naquele Deus que é o mesm o para todas as
pessoas. E assim que se fala. Então já não faz diferença se somos cató­
G u i m a r ã e s , Marcelo Rezende. Um novo mundo é possível. São Leopoldo: Sinodal.
2004. licos ou luteranos, cristãos ou budistas, espíritas ou adeptos de um a
K a u f m a n n , Thomas. Vertreiben, aber nicht töten. Luthers Umgang mit Ab­
das num erosas igrejas pentecostais que se espalham pelo país. Em
weichlern war ein Impuls für allgemeine Toleranz. In: Zeitzeichen, ano 14, últim a análise, tudo daria no mesmo. E correto pensar assim?
n. 4, p. 24-26, 2013. Ora, por um lado não há como discordar. Deus de fato é um só.
K ü n g , Hans. Projeto de ética mundial. São Paulo: Paulinas, 1993.
A igreja cristã jamais admitiu o politeísmo, ou seja, a crença em muitos
P e d r e i r a , Eduardo Rosa. D o confronto ao encontro. A análise do cristianismo
deuses. Ela defende o “monoteísmo”. Trata-se de um legado recebido do
em suas posições ante os desafios do diálogo inter-religioso. São Paulo: antigo povo de Israel, que foi enfático em rejeitar o culto a outras divin­
Paulinas, 1999. dades ao lado daquele Deus que o libertara da escravidão do Egito e que
Q u e i r u g a , André Torres. O diálogo das Religiões. São Paulo: Paulus, 1997.
com ele firmou um a aliança. Diz o primeiro mandamento: “Eu sou o Se­
S c h u l z , Adilson. O encontro do cristianismo com o islã na casa da coexistên­
nhor, teu Deus [...] Não terás outros deuses diante de m im” (Ex 20.1s).
cia - apesar do exclusivismo religioso. Estudos Teológicos, São Leopoldo: Tal formulação não deixa margem para dúvidas. Israel sempre abominou
EST, ano 42, n. 2, p. 48-67, 2002. a idolatria. O mesmo se observa no Novo Testamento. A pergunta pelo
S i n n e r , Rudolf von. Confiança e Convivência. Reflexões éticas e ecumênicas. São
principal mandamento Jesus responde citando Dt 6.4s. Ele diz: “O prin­
Leopoldo: Sinodal, 2007. cipal é: Ouve, ó Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor! Amarás,
T e i x e i r a , Faustino. Teologia das religiões. Uma visão panorâmica. São Paulo:
pois, o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de
Paulinas, 1995. todo o teu entendimento e de toda a tua força” (Mc 12.29). Que Deus
seja um só é o pressuposto indiscutível de todo o Novo Testamento e por
isso também da igreja cristã. Para ela existe “um só Deus e Pai de todos”
(Ef 4.5s). Juntam ente com o judaísmo e o islamismo, o cristianismo é
tido como uma das grandes religiões monoteístas do mundo.
Mesmo assim há fortes diferenças. Ainda que Deus seja um só,
as maneiras de adorá-lo variam. São outras as imagens de Deus aqui e

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