Você está na página 1de 16

A

CRUZ
É
MINHA
ALEGRIA

Carta do Prior Geral, Fr. Míceál O’Neill, O. Carm.


à Família Carmelitana
por ocasião da canonização de Tito Brandsma
A CRUZ É MINHA ALEGRIA

Estimados irmãos e irmãs da família carmelitana:

Sua Santidade, o Papa Francisco, presidiu, segunda-feira,


04 de março de 2022, o consistório ordinário de cardeais
e aprovou, com grande alegria, para toda a Família
Carmelitana, a canonização do beato Tito Brandsma,
O.Carm. Determinou, igualmente, que a data na qual
será oficialmente inscrito no livro dos santos será 15 de
maio de 2022. Aproveito esta ocasião para dirigir-me com
entusiasmo a toda Família do Carmelo.

O testemunho do Pe. Tito é inspirador e luminoso não só


para a Ordem do Carmo, mas também para nossa
sociedade. Nestes dias em que somos inquietados pelo
fantasma da guerra, encontramos em sua pessoa um
profeta da esperança e uma testemunha da paz. Nosso
olhar contempla os milhões de pessoas que se veem
obrigadas a abandonar sua pátria por conta da devastação
da Ucrânia. A atualidade nos convida também a olhar as
feridas dos conflitos bélicos – às vezes, com indiferença,
esquecidos – que continuam sangrando em outros lugares
do planeta. A Igreja, nestas circunstâncias, tem a
oportunidade de levar a encíclica Fratelli tutti ao mundo e
torná-la realidade, apostando na esperança de um Deus
que sonha e crê na fraternidade universal de seus filhos.
Unimos nossas vozes à dos homens e mulheres de boa
vontade que, diante do sofrimento dos inocentes, clamam
em favor da paz, da liberdade, da defesa da dignidade de
cada pessoa. Tito, especialista na condição humana, nos
ensinou, com seu sangue derramado por amor (cf. Mc
14,24), que ser discípulo de Cristo não é só admirá-lo ou
saber muitas coisas sobre Ele, mas estar dispostos a
compartilhar do seu mesmo destino de amor.
Papa Francisco, Gaudete et exsultate, n. 7
”. O Pe. Tito não é um
nostálgico do passado, mas alguém que explora a história
do Carmelo, os místicos e modelos de santidade, vendo
neles figuras proféticas que têm muito a dizer no presente.
De fato, fundou na Universidade de Nimega o “Instituto de
Mística”, cuja herança será retomada, décadas mais tarde,
pelo Instituto que levará o seu nome.

Tito, amigo de Deus, é como um elo na “nuvem tão


grande de testemunhas” (Hb 12,1) da rica tradição
espiritual do Carmelo. Soube combinar, de modo magistral
e integrador, a tradição e a modernidade. O Beato Tito
Brandsma foi um homem aberto e flexível, com uma
capacidade enorme de trabalho, ao qual se entregava com
generosidade e paixão. Viveu com equilíbrio e de forma
harmônica o espírito contemplativo do Carmelo, sendo um
homem orante, fraterno e profético no meio do povo.
Talvez seja esta a chave para entender sua personalidade
versátil na diversidade de tarefas às quais se dedicou: reitor
da Universidade Católica de Nimega, professor,
conferencista, tradutor e estudioso, fundador de colégios,
promotor do movimento ecumênico, jornalista profissional
e delegado do episcopado holandês para a imprensa, além
de levar uma intensa vida apostólica (atendendo emigrantes
italianos ou escrevendo as cartas de uma jovem analfabeta a
à pseudomística ou solidariedade de fim
de semana” ou cair na tentação de invisibilizar os pobres
para que não nos questionem.

3. Mística no cotidiano

Tito foi místico no sentido mais genuíno da palavra: o fiel


que vive a presença do amor de deus no meio das
circunstâncias da vida, desde as mais comuns às mais
heroicas do seu martírio. Era reconhecido experto na
mística renano-flamenca, na devotio moderna e grande
conhecedor da obra e da doutrina de Santa Teresa de
Jesus, da qual era um fervoroso admirador, porém
distingue-se não por sua profunda espiritualidade teórica
mas experiencial. Tito considerava que as grandes ações de
Deus costumam ser silenciosas. E é esta a razão por que foi
tão discreto ao falar de sua vida interior, mesmo que,
depois, esta tenha-se tornado visível nos momentos mais
dramáticos, em especial nos campos de concentração onde
esteve preso. A experiência mística, segundo ele, não é para
uma elite ou um grupo seleto. Referindo-se ao místico
carmelita francês do século XVII, o venerável João de São
Sansão, numa conferência que deu nos Estados unidos,
afirmou: “João de São Sansão rechaçou completamente a
ideia de que a vida mística – que não consiste
essencialmente nem em visões nem aparições, nem em
estigmas ou levitações, mas em ver Deus diante de nós
e em nós – não era para todos e para cada um de nós.
Tito apreciou o testemunho daqueles que na tradição
carmelita se aprofundaram na pessoa como “Deus por
participação”5.
______________________________________
5Cf. S. João da Cruz, CB 39,4
omente seu próprio bem,
ainda que para isso tenham que pisotear os direitos dos
outros. Cristo, ao contrário, não constrói muros nem
estabelece fronteiras que dividem (cf. Ef 2,14-15). Ele
insistia que “a paz é possível” e recusava a ideia, facilmente
manipulável por determinadas ideologias, de que a guerra e
a violência são inevitáveis porque são inerentes à condição
humana. De fato, em várias ocasiões refletiu sobre a
responsabilidade que tem a imprensa católica na sociedade
moderna para impulsionar a paz, denunciando o
armamentismo, a xenofobia ou a exaltação da nação ou da
raça. Não esqueçamos que Tito foi capturado por defender
a independência dos meios de comunicação católicos, ao
opor-se a que a imprensa católica publicasse a propaganda
nacional-socialista. Trata-se de um testemunho maravilhoso
na chamada “era da pós-verdade”, na qual abundam
“notícias falsas” que manipulam a opinião pública. Tito,
com valentia, resiste a compartilhar o pensamento daqueles
que consideram que “a primeira vítima de uma guerra é a
verdade”, e anunciará que só a verdade pode nos fazer
livres (cf. Jo 8,31): “Depois das igrejas, a imprensa é o
melhor púlpito para pregar a verdade, e não só para
responder àqueles que nos atacam, mas também para
proclamar a verdade dia após dia... A imprensa é a força da
palavra contra a violência das armas... É a força da nossa
luta pela verdade”.

Para Brandsma, a imprensa não é um instrumento


de combate ao serviço de uma ideologia ou de um poder,
mas um instrumento de encontro, de diálogo, de busca
isso, quando, numa alocução
aos representantes dos jornalistas italianos e estrangeiros
em fevereiro de 1986, sublinha este aspecto místico e
espiritual da figura de Tito Brandsma:

“O respeito pela verdade exige um compromisso sério,


um esforço cuidadoso e escrupuloso de busca, de
verificação e de valoração... Aqui surge espontaneamente
a figura heroica do sacerdote carmelita Tito Brandsma, ao
qual tive o prazer de inscrever entre os Beatos. Jornalista
valoroso, encarcerado e morto num campo de morte por
sua defesa incansável da imprensa católica, ele permanece
como o mártir da liberdade de expressão contra a tirania
da ditadura...”

5. A força dos pequenos e dos que sabem amar

Amar aos amigos é próprio de todos – escreveu


Tertuliano6 – porém, amar os próprios inimigos, só dos
cristãos. Para o professor Brandsma, o perdão não era um
sinal de debilidade, mas um sinal heroico próprio de
pessoas com grandeza de espírito, e Tito brilhou como um
autêntico servidor da reconciliação. O perdão verdadeiro,
adverte, é uma decisão sobrenatural que tem sua raiz no
próprio Deus, não nas forças do homem. Não era fácil
viver esse espírito de reconciliação na Europa febril e
convulsiva que lhe coube viver. O cristão, segundo
Brandsma, não pode submeter-se ao fatalismo de excluir o
perdão da vida política e das relações internacionais
marginando-o à esfera privada. Tito insistirá na força
transformadora do perdão. Em sua célebre homilia de 16
de julho de 1939, num missa em honra de São Bonifácio e
São Villibrordo, Tito, num verdadeiro canto de amor ao
inimigo, insistiu no poder transformador do perdão. Suas

_______________________________
6 Tertullian, De Patientia, 6
e impressionou
a jovem enfermeira. Um colega seu e também professor na
Universidade de Nimega, Robert Regout, SJ, escreveu que
“Brandsma havia morrido como havia vivido. Não morreu
simplesmente. Brandsma esteve unido a Cristo, imitando-o
até o último suspiro”. A vida de Tito Brandsma é um alto-
falante da reconciliação. Já no cárcere, ao final de seus dias
e com letra trêmula, deixou escrito uma mensagem
emocionante e conciliadora: “Deus salve a Holanda! Deus
salve a Alemanha! Oxalá Deus conceda a estes dois povos
voltarem a caminhar em paz e em liberdade e
reconhecerem sua Glória para o bem destas duas nações
tão próximas!”.
A ajuda de Deus é
necessária – dirá em outra ocasião – pois diante do
sofrimento não somos mais que pobres homens”. Às vezes
se questiona: “Pergunto-me se não serão necessários em
nossa época homens e mulheres que aceitem tomar sobre
seus ombros o sofrimento do mundo”.

Chama a atenção sua particular devoção à contemplação


da paixão de Cristo e a defesa que fez da via-sacra do
pintor expressionista belga Albert Servaes, na qual Cristo
era apresentado como um homem frágil, faminto e
extenuado. As autoridades eclesiásticas se escandalizaram
com aquelas gravuras e proibiram sua exposição. Tito,
no meio da polêmica, o apoiou, afirmando que o corpo
sofredor de Cristo se prolonga em cada pessoa ferida e
agredida.

Inclusive enquanto estava no cárcere de Scheveningen,


nosso carmelita escreveu um comentário à via-sacra para o
santuário de São Bonifácio em Dokkum, sua terra natal.
Curiosamente, falta a última estação. Talvez não tenha
as do século XXI.

A cruz deixa evidenciar, por um lado, a fragilidade humana,


a existência do mal, a dor; por outro, a força e a capacidade
de amar, como reflexo do imenso amor de Deus para
com o homem. Amor e dor andam sempre juntos. O que
significa carregar a cruz? Não se trata de ser masoquistas
e comprovar até onde podemos aguentar o sofrimento.
Na cruz constatamos nossa capacidade de amar gratuita
e incondicionalmente e o quanto estamos dispostos a
compartilhar, acompanhar e consolar o próximo. Naquelas
circunstâncias extremas, o Beato Tito fez da misericórdia
e da compaixão o centro de sua pregação.

7. Nunca tão feliz!

O mártir confessa sua fé até às últimas consequências.


Como indicou São João Paulo II na homilia da beatificação
de Tito Brandsma: “Tal heroísmo não se improvisa”, é
fruto de uma rica vida interior. A prova de que a espiritua-
lidade é verdadeira é que é selada com o próprio sangue.
O mártir é livre diante do poder, do mundo; diante da
morte é livre de não amar a própria vida (Ap 12,11). O
martírio não é resultado do esforço humano, é um dom
de Deus, que nos torna capazes de oferecer a própria
(médicos, sindicalistas, monárquicos,
comunistas, judeus, cristãos e protestantes...) era um
sacrário vivo, onde, melhor que em qualquer lugar, se
sentia a presença de Cristo.

Nós Carmelitas, neste momento crucial de nossa história,


na qual a humanidade segue enfrentando a guerra, a
violência, as desigualdades flagrantes e tantos outros males,
continuamos confiando plenamente na misericórdia e na
graça de Deus. Denunciamos, com a força profética de
Elias, tudo o que destrói o ser humano, os nossos irmãos
e irmãs com os quais compartilhamos plenamente a
peregrinação da vida, com seus gozos e esperanças,
Roma, 1 de maio de 2022

Você também pode gostar