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O PRÓXIMO

As minhas cordiais saudações a todos os que participam neste encontro e os meus


agradecimentos por me ter sido dada a oportunidade de participar.

O meu contributo é uma apresentação simples de como o próximo é abordado no documento


do Papa Francisco: Fratelli Tutti.

De entre as três irmãs: igualdade, liberdade e fraternidade, devemos reconhecer que a


fraternidade é a mais pequenina e esquecida de todas.

Nas circunstâncias em que hoje vivemos, o apelo à fraternidade é um apelo indispensável:


Recordo as palavras do Papa Francisco na Praça de São Pedro, em 27 de março de 2020:
«Demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados mas ao mesmo
tempo importantes e necessários: todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo
encorajamento. E, neste barco, estamos todos».

Estes tempos são um apelo à fraternidade e solidariedade. Sem elas não seremos capazes de
ultrapassar o difícil estrangulamento que vivemos.
Estamos diante de desafios únicos para a humanidade. É um problema de salvação coletiva.
Um país pode imunizar-se, mas continuará desprotegido se os outros países não estiverem,
como diz Karina Gould, Ministra de Desenvolvimento Internacional do Governo do Canadá,
ao somar-se às iniciativas de ajuda Covax : “Sabemos que enquanto um país estiver em risco,
todos corremos risco».

Na Fratteli Tutti o Papa Francisco retoma muitos dos seus ensinamentos e discursos sobre este
tema que lhe é tão caro e que é como uma estrela que o tem guiado no seu pontificado. Anote-
se que a sua primeira mensagem para o dia mundial da Paz, em 1 de Janeiro de 2014 era
exatamente sobre a fraternidade, fundamento e caminho para a paz.
Nasce, esta encíclica, num tempo de confinamento e de clausura, num tempo de fragilidade e
de interrogação sobre o futuro. É, de certo modo, uma longa meditação sobre o centro da vida
humana a partir da expressão de Francisco de Assis «Fratelli tutti para «destacar o convite a
um amor que ultrapassa barreiras de geografia e de espaço, e nele declara feliz quem ama o
outro «o seu irmão» tanto quando está longe, como quando está junto de si» (FT 1).
Curiosamente, tinha sido já Francisco de Assis a motivar um outro documento «impensável»
que foi a Laudato Si.

Surpreende ainda mais quando o Papa coloca como referência e estímulo para este documento
o Grande Imã Ahmed-Al-Tayeb com quem tinha elaborado uma proposta sobre a fraternidade
humana, em prol da paz mundial e da convivência comum, e que foi assinada na sua viagem a
Dubai em 4 de fevereiro de 2019, e que está na base da proclamação, pela ONU, do dia 4 de
fevereiro como dia mundial da fraternidade.
Nesse documento havia um convite «à reconciliação entre todos os crentes, mais ainda, entre
todos os crentes e não crentes, e entre as pessoas de boa vontade».
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Logo na primeira abordagem da Fratelli Tutti há um evocar da memória dos «pais fundadores
da união europeia, que desejavam um futuro assente na capacidade de trabalhar juntos para
superar as divisões e a comunhão entre os povos do continente» (FT 10)

Ao recordar os pais duma Europa solidária e fraternal não pode esquecer-se a multidão de
refugiados que a demandam em busca de uma vida diferente e que tentam atravessar o mare
nostrum que deixou de ser um espaço de comunicação para se tornar uma vala comum dos
pobres que partem à procura de uma vida melhor.

Estamos numa cultura «cada vez mais globalizada que nos torna vizinhos mas não nos faz
irmãos» como lembra o Papa, citando a Caritas in Veritate de BentoXVI.

«A urgência de cuidar do mundo que nos rodeia e sustenta significa cuidar de nós mesmos».
Mas a urgência de cuidar de nós mesmos urge a necessidade de nos constituirmos como um
«nós» que habita a casa comum (FT 17).
Estamos numa sociedade do descarte que se manifesta de várias forma desde o domínio dos
grandes grupos económicos até ao reaparecimento de velhos fantasmas do racismo, dos
nacionalismos e dos populismos. Estes são um perigoso caldo de cultivo da violência e de
exclusão nesta nossa terra que foi feita para todos. As desigualdades «ganham novas formas
com os efeitos da pandemia que pode deixar populações frágeis sem capacidade de
sobreviver». Ainda recentemente, um dos responsáveis do Misereor, uma organização da
Conferência Episcopal Alemã para ajuda aos países pobres, afirmava que 13% dos países
tinha já bloqueado para si 50% das vacinas disponíveis…

Estamos num mundo que é não só o nosso mundo, mas também o mundo dos que hão de vir.
E é neste mundo que vão crescendo os muros de autodefesa, muros no coração e muros na
Terra para impedir o desconhecido para lá das nossas fronteiras (depois da queda do muro de
Berlim são já 59 os muros construídos). Mas, como diz o Papa Francisco: «quem levanta um
muro, quem constrói um muro, acabará escravo dentro dos muros que construiu, sem
horizontes, porque lhe falta esta alteridade» (FT 27)
Estamos em perigosa pandemia e, para lá do vírus assassino, outros vírus não menos terríveis
emergem. Dizia um alto responsável da ONU que passada esta pandemia podemos ter que nos
confrontar com a pandemia da fome que já hoje é real para trinta milhões de irmãos nossos. A
17 de setembro de 2020 soava uma campainha de alarme do PGA (programa mundial da
alimentação): «A humanidade está a enfrentara maior crise que qualquer um de nós já viu. É
hora daqueles que têm mais se esforçarem para ajudar aqueles que têm menos. O PMA precisa
de US $ 4,9 bilhões para evitar que 30 milhões de pessoas morram de fome».

É neste contexto preocupante que o Papa Francisco nos fala do próximo. Vai à matriz e fonte
da sua inspiração que é o evangelho para o revisitar e nos ajudar a revisitar a história de um
estranho a caminho de Jerusalém. A parábola do bom Samaritano é a ultrapassagem de uma
visão do próximo como os que pertencem à mesma família, ao mesmo grupo social ou étnico.
Como diz Luter King estamos perante o desafio de acolher o próximo numa visão universal,
sem barreiras nem fronteira.
O doutor da lei pergunta: E quem é o meu próximo?
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Como é seu hábito Jesus de Nazaré não responde. Conta a história, por demais conhecida de
todos, do viajante assaltado no deserto e deixado meio morto à beira do caminho. Passa um
sacerdote e continua o seu caminho. Passa um levita e igualmente continua o seu caminho.
São dois homens com funções ligadas ao templo. Para eles o próximo eram os seus familiares
e conterrâneos. Este homem caído não fazia parte dessa rede familiar e era um desconhecido
com a agravante de estar ensanguentado e por isso mesmo impuro.

Passa um samaritano: olha, vê, desce da sua montada. Cuida das feridas e leva o ferido para a
estalagem mais próxima onde pede que cuidem dele, pois pagará o que for gasto quando
regressar.
Agora é Cristo que pergunta: Qual destes três te parece ter sido o próximo daquele homem
que caiu nas mãos do Salteador?

Eis a grande questão. O importante não é saber quem é e onde está o meu próximo. É perceber
de quem me torno próximo.

No primeiro livro da Bíblia, o Génesis, há um episódio paradigmático: Abel e Caim. Caim


mata o seu irmão Abel e Deus a pergunta: «Caim, Caim, onde está o teu irmão Abel?» A
resposta de Caim «não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão?»
Onde está o teu irmão? Esta pergunta atravessa a história e é colocada a todos e a cada um:
Não só aos que decidem mas a todos.

No imaginário bíblico perpassam séculos de violência e de destruição. O desastre do homem


incapaz de suportar que o outro possa ser diferente.

Para o Papa Francisco a parábola do samaritano inicia um tempo novo de compreensão do


universo em que o outro se situa. O samaritano é alguém que cuida do outro, do desconhecido,
porque é irmão. A narração, diz o Papa, revela-nos uma característica do ser humano,
frequentemente esquecida: fomos criados para plenitude que só se alcança no amor… Viver
indiferente á dor não e uma opção possível; não podemos deixar ninguém caído nas margens
da vida. Isto deve indignar-nos de tal maneira, que nos faça descer da nossa serenidade,
alterando-nos com o sofrimento humano. Isto é dignidade. (FT 68)

Estamos todos conscientes que hoje há cada vez mais feridos. A inclusão ou exclusão da
pessoa que sofre nas margens da estrada define a qualidade humana de todos os projetos
económicos, políticos, sociais e religiosos... Dia a dia enfrentamos a escolha entre ser
viandantes indiferentes que passam ao lado, ou samaritanos que se aproximam para cuidar.
No fundo, diz o Papa, todos temos um pouco do ferido, do salteador, dos que passam ao largo
e do bom samaritano.
O samaritano não pergunta quem é, donde é, de que religião é.
Como olhamos (ou não olhamos) para o homem ferido?...
E esta é a grande questão colocada a todos os políticos, a todas as experiências religiosas, a
todos os humanistas.
E o papa continua com o seu olhar penetrante: Os salteadores do caminho têm como aliados
secretos os que passam ao largo. O círculo encerra-se entre aqueles que usam e enganam a
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sociedade para a chupar e aqueles que julgam manter a sua pureza na sua função crítica, mas
ao mesmo tempo vivem desse sistema e seus recursos, (FT 63)…
Ao engano de que tudo está mal, corresponde o dito: ninguém o pode consertar. E nesta lógica
estamos desculpados.
Fazer entrar o povo no desânimo é o epílogo de um perfeito ciclo vicioso: assim procede a
ditadura visível dos interesses ocultos que se apoderam dos recursos e da capacidade de ter
opinião e pensamento próprios.
O olhar penetrante de Francisco vai ainda a um outro ponto: Existe uma forma elegante de
olhar para o outro lado: sob as aparências do politicamente correto ou das modas ideológicas
olhamos para aquele que sofre, mas não o tocamos, transmitimo-lo ao vivo e até proferimos
um discurso aparentemente tolerante e cheio de eufemismos. (76)
E a fratteli Tutti continua abrindo perspetivas de leitura da situação atual propondo um mundo
aberto, onde todos têm lugar e vez, onde a liberdade, igualdade e fraternidade se harmonizam
e se implementam em práticas de renovação política, económica e social e religiosa.
Passando pela imensa floresta do que já foi feito, é indispensável olhar o que ainda é
necessário acontecer para uma cultura da fraternidade, do perdão e da paz.

Termino recordando um poema de D. Pedro Casaldáliga, o bispo emérito de São Félix na


Amazónia e falecido há poucos meses. Neste poema, a nossa proximidade com todos os
Caims da história, todos os condenados, todos os que vivem na margem da vida. São nossos
irmãos

Caim
Carrega o destino às suas costas, com o saco,
Morto o amor e a tristeza viva.
Esvai-se a alma no olhar opaco.
É uma solidão à deriva.

Cruzou a Ilha, o Araguaia,


A sociedade, o tempo, o mal. Foge
da luz do sol e do sonho da praia.
foge de todos, de si próprio foge,

condenado a viver a sua vida acabada.


Violou a lei, a paz estabelecida
Matámos-lhe a sua paz apropriada.

Talvez seja um Caim, mas é humano.


E por ele, cuidadoso, Deus pergunta
-Abel, Abel, que fizeste do teu irmão?
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