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EDITORIAL NOTíCIAS
Impressão e acabamento:
RELIGIõES EM GUERRA?
O DEBATE DO SÉCULO
Nesta colecção:
OS FILHOS DE HITLER - FILHOS DE DIRIGENTES DO TERCEIRO REICH FALAM DOS SEUS PAIS E
DE Si PRóPRIOS
Gerald L. Posner
ROGER GARAUDY
RELIGIOES EM GUERRA?
DEBATE DO SÉCULO
3ª edição
D. noticias
editorial
wAi v
PREFÁCIO
ACTUALIDADE DA PROFECIA
Garaudy e Hélder Câmara cumpriram nas suas próprias vidas este pacto assinado em 29
de Maio de 1967: Garaudy dá cada vez mais importância à dimensão mística da vida e
Hélder Câmara à dimensão libertadora do cristianismo. Une-os o espírito de
profecia.
Este livro de Roger Garaudy prolonga o anterior' com a mesma preocupação com o
destino da Humanidade, numa altura em que o mundo está dominado pelo mercado e pela
ditadura do modelo de crescimento ocidental.
no mundo, onde dois terços dos habitantes são pobres. Nos Estados Unidos, uma
criança em cada oito sofre de fome. No Brasil, em cada noventa segundos morre uma
criança vítima da fome. Por ano quinze milhões e meio de crianças no mundo morrem
de fome ou de doenças causadas pela fome. Que Humanidade é esta, cruel e sem
piedade, "composta por bárbaros motorizados a viver na selva de uma pré-história,
onde nenhuma consciência pensa em Deus, na unidade do Universo e no seu sentido?,
pergunta Garaudy.
Existe actualmente uma grande divisão no mundo entre os que comem e os que não
comem, entre os que, com egoísmo, açambarcam para si até à saciedade os meios de
vida e os que são deixados à sua sorte, morrendo prematuramente.
Contém esplêndidas páginas que convidam cada uma descobrir em si o Deus que nele
habita, o poder da captar as energias cósmicas que nele vivem e da Energia
animadora de tudo. É um livro necessário para ajudar os espíritos generosos a
orientarem-se no "debate do século".
LEoNARDo BOFF
INTRODUÇÃO
O mundo tem uma alma, ou seja, uma unidade e um sentido? Vivemos num "mundo"
dividido: entre o Norte e o Sul, e, tanto no
Norte como no Sul, entre aqueles que têm e aqueles que não têm. 80% dos recursos
naturais do planeta são controlados e consumidos por 20% da sua população. Os 20%
mais ricos do planeta dispõem de 83% das receitas mundiais, os 20% mais pobres, de
1,4%1.
Resultado desta divisão: morrem todos os dias 40 000 seres humanos de subnutrição
ou de fome. 0 modelo de crescimento do Ocidente custa aos países do Sul o
equivalente a uma Hiroshima de dois em dois dias.
0 fosso alarga-se: ao longo dos últimos 30 anos a distância entre os países pobres
e os países ricos passou de 1 para 30 a 1 para 1502. Esta divisão está na origem
dos nossos problemas vitais. Três gran-
3 Grupo dos sete países mais industrializados do mundo: Alemanha, Canadá, EUA,
França, Grã-Bretanha, Itália e Japão. (X do T.)
Os Estados e os partidos políticos dos países ocidentais não tratam nunca assim o
problema porque estão obcecados, há cinco séculos, pelo fantasma do crescimento,
que consiste em produzir cada vez mais e cada vez mais depressa seja o que for:
útil, inútil, prejudicial ou até mortal (como a droga e os armamentos).
Este "crescimento" é apresentado pelos políticos e pelos media como uma panaceia
para sair da crise e do desemprego; mas o crescimento obtido desde 1975, com o
aumento de produtividade graças ao desenvolvimento das ciências e das técnicas,
deixou de criar empregos, antes os destruindo na medida em que substitui o trabalho
do homem pelo da máquina. Em 1980, a Bélgica produzia 10 milhões de tonela~ das de
aço com 40 000 operários; em 1990, produz 12 milhões e meio, com 22 000 operários.
10
Seria absurdo culpar as ciências e as técnicas. 0 mal vem do uso que delas se faz.
Por exemplo, desde 1970, a produtividade, graças a estas descobertas, aumentou 89%.
É uma boa hipótese para a humanidade, para lhe poupar os trabalhos mais
repetitivos. Mas é também uma desgraça ao verificar-se que, neste mesmo período, o
tempo de trabalho não diminuiu e o desemprego mais do que decuplicou. Significa
isto que o aumento da produtividade devido ao desenvolvimento das ciências e das
técnicas não serviu toda a humanidade mas apenas os proprietários dos meios de
produção.
Seria um beneficio se este aumento do tempo de lazer não fosse recuperado por um
"mercado de lazeres" que transforma o "tempo livre" num tempo vazio, esvaziado de
humanidade pelo gênero de "divertimentos" que lhe propõe e que não favorece o
desenvolvimento fisico e cultural. Este modo de vida, em vez de ajudar o homem a
ser homem, ou seja, um criador, tende, em virtude do sistema de mercado, a fazer
dele um desempregado e, na melhor das hipóteses, um consumidor.
Não se pode pôr assim a questão quando se está limitado pela perspectiva de uma
"economía de mercado". A crítica da "economía de mercado" não signífica que se deva
substituir o mercado por uma planificação estatal omnipotente.
Aquilo a que actualmente chamamos "economía de mercado" não é uma economia em que
as necessidades se sobrepõem ao mercado e
11
Uma tal economia assenta numa concepção do homem reduzido às simples funções de
produtor e consumidor, movido apenas pelo seu interesse. Cada um é, assim,
concorrente de todos os outros. Na fase ascendente do capitalismo, o filósofo
inglês Hobbes dava esta definição lapidar: "0 homem é um lobo do homem."
Porque é que as religiões institucionais não têm, então, uma resposta? Nem a Igreja
dominante dos dominantes - a Igreja Católica
Porque tanto uma como outra se aliaram ao poder e à riqueza e não poem em causa os
respectivos postulados.
4 p
,M 13, 1.
Todas as passagens do Antigo e Novo Testamento citadas nesta obra são retiradas da
mais recente tradução interconfessional para português corrente, Bíblia Sagrada
- A Boa Nova, Difusora Bíblica, 1993. (N. do T.)
12
13
nas alguns anos depois da morte de Jesus, cuja vida, no entanto, punha toda ela em
causa a ordem estabelecida.
De igual forma, alguns anos após a morte do profeta Maomé, quando os príncipes
omíadas usaram e abusaram do poder e da riqueza, e quando devotos muçulmanos, que
tinham vivido a comunidade de Medina, do Profeta ou dos "califas bem orientados",
protestavam contra esta corrupção da mensagem, respondia-lhes a autoridade: "Se
tendes este príncipe é porque assim o quis Deus. Deveis por isso obedecer-lhe".
poder e do dinheiro, mas pactuando na prática com os poderes, mesmo com poderes
criminosos como o de PinochetI ou da sanguinolenta ditadura militar do Haiti (que
só foi reconhecida oficialmente pelo Vaticano) contra o padre Aristide, acusado de
simpatias pela teologia
da libertação.
nos, praticando assim algo que o Alcorão denuncia - a riba, isto é, o lucro sem
trabalho.
Tudo isto esconde a realidade central e o drama do nosso tempo: vivemos a mais
cruel das guerras religiosas.
Não é uma guerra entre católicos e protestantes, muçulmanos e cristãos, mas entre
uma religião que não ousa dizer o seu nome e que, de facto, rege actualmente todas
as relações sociais e todas as relações internacionais: o monoteísmo de mercado,
que afecta todas as idolatrias.
mais urgente é a de reunir todos aqueles para quem a vida tem um sentido, e que têm
consciência da sua responsabilidade pessoal para o descobrir e cumprir.
Um sentido outro que não o de produzir e consumir cada vez mais, numa vida sem
sentido cujo símbolo parece ser uma pista de automóveis, em que andamos cada vez
mais depressa sem chegar a lado nenhum e em que nos espera a morte atrás de cada
curva.
A vida só pode ter sentido se o mundo for um; não o pode ter se for de tal forma
que alguns só podem ficar cada vez mais ricos se outros ficarem cada vez mais
pobres, como no sistemdactual. A divisão entre Norte e Sul é actualmente a mais
dramática, e não pára de se agravar. Só pode levar a explosões, acabando num
suicídio planetário, mas não é a única: o presidente Clinton, logo que subiu ao
poder, reconheceu que 1% dos americanos detém 70% da riqueza nacional. Pertencem a
este 1% os heróis de "Dallas" e outras ficções, de quem se apregoam
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A Organização das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) diz-nos que em 1994, nos
Estados Unidos, uma em cada oito crianças não mata a fome, e que, no mesmo ano, em
todo o mundo, quinze milhões e meio de crianças morrem de fome ou subnutrição.
É este o "fim da história", a sua conclusão gloriosa? Não nos revelará esta
crescente divisão do mundo que ainda somos uns bárbaros motorizados a viver na
seiva de uma pré-história onde nenhuma consciência pensa em Deus, na unidade do
Universo e no seu sentido?
Nenhuma sabedoria ou religião pode aceitar esta divisão do mundo e excluir três
quintos da sua população do direito a viver humanamente. É este o "homem feito à
imagem de Deus", como diz a Bíblia?
"0 homem a quem Deus insuflou o seu espírito", como diz o Alcorão? É este o homem
de todas as sabedorias, que não usa o nome de Deus mas do Uno e do Todo para
designar as mesmas exigências?
"Ser Uno com o Todo", ensina o taoísmo chinês com Lao Tse. "Tu és Isto", dizem os
Upanixadas da índia, ensinando ao homem, há três mil anos, que o que nele há de
mais íntimo e mais pessoal é o movimento único da vida e a força que anima todos os
seres. A esta força, co-extensiva à vida, chamaram Deus as religiões
tradicionalmente animistas de África ou dos ameríndios, o mesmo Deus que Santo
Agostinho descobria como "mais interior a si que ele próprio".
Não se trata de uma unidade hegemónica, imperial, de uma unidade de dominação, mas
sim de uma unidade sinfónica a que cada povo trará a contribuição do seu trabalho,
cultura e fé, para que todas as crianças do mundo tenham todas as possibilidades
económicas, políticas e espirituais para desenvolver em pleno todo o potencial que
trazem em si.
São estes os fins "penúltimos" que todos os homens de fé (qualquer que seja a sua
fé), para quem a vida só é vida se tiver um sentido, podem e devem procurar e
atingir juntos.
16
É este gênero de "liberdade" que os dirigentes dos Estados Unidos querem espalhar
pelo mundo inteiro. Dizia o presidente George Bush: "Temos de instituir um mercado
único do Alasca à Terra do Fogo." Acrescentava o seu secretário de Estado: "Temos
de criar um mercado
6nico de Vancouver a Vladivostok.>>
17
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Deus ordena, no Alcorão, que se honrem os profetas dos judeus e o Messias dos
cristãos. "Dizei: cremos em Deus, no Deus que nos foi revelado, no que foi revelado
a Abraão, a Ismael, a Isaac, a Moisés, a Jesus e no que foi concedido aos profetas
da parte do seu Senhor. Não os distinguimos em nada" (11, 136; 111, 84).
E mais: "São ímpios os que quiserem estabelecer uma distinção entre Deus e os seus
profetas, afirmando: Cremos em alguns deles, não cremos noutros" (iv, 150).
Dou novamente a palavra ao Alcorão, onde se fala melhor de Jesus do que do próprio
Maorné. Primeiro, reconhecendo-lhe um nascimento sobrenatural: "Maria conservou a
sua virgindade. Insuflámos nela o nosso Espírito e fizemos d'Ela e de seu Filho um
sinal para o universo" (xxi, 9 1).
Quando Jesus morre, diz-lhe Deus: "Chamo-te a Mim e ergo-te até Mim" (111, 55).
Isto volta a repetir-se duas vezes. (iv, 158 e v, 11). No Alcorão, atribuem-se,
assim, a Jesus e a mais ninguém, nem
Desde já podemos ver como são vãs as querelas teológicas que alimentaram durante
séculos polémicas entre "mouriscos e cristãos", como diz Cardaillac1.
20
0 Alcorão proclama com força o monoteísmo: "Deus é Uno!... Não cria nada; não é
criado. Nada é como Ele" (cxii, 1-4).
0 texto latino é exactamente igual ao do Alcorão: "]Von est generans, neque genita,
nequeprocedens." Não se põe de maneira nenhuma em causa a unidade divina, mas
simplesmente a sua complexidade, que não se pode reduzir em conceitos à maneira dos
gregos.
Outro falsa discussão, também criada pela argúcia dos teólogos e não pelos
Evangelhos ou pelo Alcorão, é a da divindade de Jesus. Diz o Alcorão: "Perante
Deus, Jesus é como Adão; Deus criou-O
do pó. E disse depois: Sê, e Ele foi" (111, 59). Como Adão, Jesus é assim
directamente uma criatura de Deus (o próprio Paulo lhe chama "Novo Adão") (Rm. 5,
15; 1 Cor. 15, 45; 2 Cor. 11, 3). A palavra árabe para "disse" é a que designa "o
Verbo de Deus". Este texto, datado do ano x da Hégira, faz parte de um debate entre
Maomé e os cristãos de Najran sobre a divindade de Jesus, que os últimos
consideravam o "Filho de Deus". 0 Alcorão, vimos, diz o mesmo, fazendo de Jesus o
"Verbo" de Deus, o seu "Espírito" e o seu "Messias".
E os Evangelhos dizem outra coisa? Jesus nunca diz: "Sou Deus". É o Filho,
completamente submetido a Deus (submetido a Deus é a única tradução da palavra
"Islão"). Jesus diz: "Sou Filho de Deus" (Mt. 27, 43). É enviado por Deus
(parábolas de Marcos 12, 6 e de Lc. 13). Mas em nenhum instante Jesus se identifica
com Deus. Foram os judeus, conta-nos João no seu Evangelho, que criaram esta
confusão para o condenar por blasfémia - tendo Jesus dito, depois de violar a lei
do sabbat: "0 meu Pai está sempre a trabalhar e eu faço o mesmo"
21
(Jo. 5, 17), os judeus parecem acreditar que se identificava com Deus (e para eles
o Messias não é Deus mas sim um enviado d'Ele). "Por causa destas palavras, as
autoridades judaicas procuravam cada vez mais dar-lhe a morte. É que ele não só
transgredia a lei do sabbat, mas até se fazia igual a Deus, ao afirmar que Deus era
o seu Pai" (Jo. 5, 18). Mas Jesus rapidamente os corrige, demonstrando que não é
igual a Deus, antes pelo contrário, Lhe obedece. "Então Jesus respondeu-lhes:
Fiquem sabendo que o Filho nada pode fazer só por sL Faz apenas aquilo que vêfazer
a seu Pai. Faz o mesmo que o Pai. 0 Pai ama o Filho e, por isso, mostra-lhe tudo
quanto faz. Vai confiar-lhe obras ainda maiores do que estas, de tal modo que vocês
vão ficar admirados" (Jo. 5, 19-20).
Jesus, ao dizer no Evangelho de São João "Eu e o Pai somos um só" (Jo. 10, 30),
esclarece imediatamente que toma visível, pelos seus gestos e palavras, o Deus
escondido. Vê-lo é ver o Deus que o enviou: "E quem me vê a mim, ve aquele que me
enviou" (Jo. 12, 45). Acrescenta: "É que não falo por minha autoridade. 0 Pai que
me enviou deu-me ordens sobre o que devia dizer e ensinar" (Jo. 12, 49).
Jesus cumpre a vontade do Pai, distinguindo-a sempre da sua própria, até à morte:
"Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?" (Mt. 27, 46 e Mc. 15, 34). "Pai, se
for do teu agrado, livra-me deste cálice de amargura. No entanto, não se faça a
minha vontade mas sim a tua" (U. 22,42). "Eu nada posso fazer só por mim. Julgo
apenas segundo aquilo que o Pai me diz e o meu julgamento é justo, porque não
procuro fazer a minha vontade, mas a do Pai que me enviou" (Jo. 5, 30).
Onde pretende então Jesus ser Deus, ser seu igual? Mesmo Paulo, que frequentemente
reconhece em Jesus os atributos dos antigos deuses de poder, como a criação ou o
comando, proclama, com o seu sentido da "hierarquia", da "obediência" e do "chefe":
"é Cristo quem tem autoridade sobre todos os homens, tal como o homem tem
autoridade sobre a mulher, e Deus sobre Cristo" (1 Cor. 11, 3).
E mais ainda, com que argúcias nos vamos debater para interpretar as palavras de
Paulo em CI. 2, 9: "Porque Deus está totalmente presente em Cristo"? Significará
isto, como diz Santo Irineu, que "o Filho toma visível tudo o que podemos ver do
Deus invisível" (Adversus Haereses 4, 6, 6)?
22
Acrescente-se, por fim, que a expressão "Filho de Deus" não se aplica, nos
Evangelhos, apenas a Jesus.
É o que dizem os Evangelhos que, felizmente, não foram escritos nem por filósofos
gregos, nem por teólogos, nem por linguistas, mas por pessoas simples, como o foram
os profetas de Deus - do pastor Amos ao operário Jesus ou a Maorné, caravaneiro
iletrado. Para todos eles era claro que qualquer filho do homem é filho de Deus.
Neste aspecto os Evangelhos não deixam dúvidas: "Porque Deus chamará seus filhos"
(Mt. 5, 9; ML 5, 45 e Lc. 6, 3 5) aos que ouvirem o seu chamamento: "Felizes os que
procuram a paz entre os homens" (Mt. 5, 9).
Escreve Paulo: "Pois vocês são todos filhos de Deus" (GI. 3, 26).
No livro L'amour de Dieu chez Ghazali, une philosophie de Paniour à Bagdad au début
du XII siécle', Siative lembra o princípio
Vrin, 1936.
23
fundamental da concepção de amor para Ghazali: "É Deus que amamos através de cada
objecto amadol."
eu disse: Eu sou a verdade (ana'l Haqq), a essência do Todo... Como Jesus, portador
do Evangelho do amor,
IP. 151.
4P.262.
1 Ver o grande livro do padre Miguel Asin. Palacios sobre lbn Arabi, LIslam
6Hadith são dos textos islâmicos mais importantes, relatando tradições relativas a
Maomé (análogos, por exemplo, ao Novo Testamento). Cada hadith é transmitido e
atestado por uma cadeia de relatores, e, para ser considerado autêntico, o hadith
deve identificar todos estes relatores, desde o Profeta aos testemunhos em primeira
mão e aos que o escreveram. (N. do T.)
24
Para os sufis a mensagem central de Jesus, e que fazem sua, é o amor na sua forma
mais elevada: o amor que provém de Deus e que a Ele regressa, como toda a
realidade.
Aquele que se libertar do seu 'eu' fica como um anjo e, como Jesus, Espírito de
Deus, eleva-se ao quarto céu."
Ghazali, evocando a cura do leproso por Jesus, acentua aquilo que Jesus mais ama -
a fé, que encontra, até nos piores momentos, a alegria de conhecer Deus (Ihya, IV,
36, 16).
"0 sopro de Jesus faz-te renascer, dá-te beleza e abençoa-tel." "Jesus baniu a
mortel."
"Jesus... subiu ao céu, pois era da mesma natureza que os anjos10." "Jesus, filho
de Maria, atinge o cume do quarto céu11."
"A Alma universal uniu-se à alma parcial. A alma individual ficou grávida, como
Maria, de um Messias que eleva os corações a Deus. 12" lbn Arabi chama a Jesus "o
selo da santidade":
"Sim, o selo dos santos é um apóstolo que não terá igual no mundo.
9 111, 4258.
10 iv, 2672.
920.
1183-1186.
25
É Espírito e é Filho do Espírito e de Maria, está num nível que ninguém poderá
atingir."
Referindo-se a outro místico, Abu Yãzid, diz-nos: "A sua contemplação é crísticalI,
porque recebeu o sopro que cria a vida."
"Quando Jesus regressar, no fim dos tempos, confirmará a lei de Maoiné e restaurá-
la-á... pois é a lei última e o seu profeta é o selo dos Profetas. Jesus será um
árbitro justo, pois nessa altura já não existirão sultões muçulmanos, nem ímãs, nem
qadi, nem muphti... Os crentes juntar-se-ão à sua volta e proclarná-lo-ão seujuiz,
pois nenhum de entre eles será mais digno."
"Deus ergueu-o até Si, para o fazer descer no fim dos tempos como selo dos santos,
aplicando a justiça segundo a lei de Maorné11."
"Sendo Deus único, como lhe podemos chamar ao mesmo tempo Pai, Filho e Espírito
Santo?
26
- A Beleza eterna reflectiu em três espelhos o Seu rosto deslumbrante ... 11"
Aos maravilhosos tratados de São João de Damasco sobre o valor revelador do ícone,
responde a interrogação de Shabestari nas últimas páginas do seu Roseiral dos
Mistérios: "Que luz ilumina os ícones dos cristãos para que tal brilho emane dos
seus rostos?"
Seguirei qualquer pista por onde o amor leve a sua caravana: o amor é o único
caminho da fé.
0 islamismo é uma doença do Islão, tal como o integrismo é uma doença de todas as
religiões.
27
invocar aquilo que pensava ser privilégio de povo eleito: a expansão universal da
sua religião, considerando-a superior a todas. Depois, com o retrocesso da Igreja,
continuou a considerar-se como centro do mundo e como único criador de valores e,
desde o fim do século xix, quis impor ao mundo a sua cultura técnica e mercantil, a
que chamou "modernidade".
À pretensão ocidental de ser a cultura e não uma cultura, entre outras, opõe-se
então o mito de uma "islamização" que se quer exclusiva, esquecendo o carácter
universal da "entrega a Deus" (islam), em vez de procurar uma verdadeira
universalização da cultura que chegue a uma unidade não hegemónica, colonial ou
imperial, mas antes sinfónica, graças ao contributo de cada cultura para a cultura
universal.
Seria errado ver o islamismo simplesmente como uma forma recente, invariavelmente
nefasta, nascida apenas do falhanço dos projectos nacionalistas ou socialistas no
mundo muçulmano.
Tal como seria falso reduzi-lo às influências externas (que terão a sua importância
para mudar o curso do movimento, mas não estão na sua origem) como se exemplifica
com a revolução iraniana ou o financiamento saudita (suspenso durante a Guerra do
Golfo).
As raizes profundas dos fenômenos actuais remontam à segunda metade do século xix,
quando nasceu o movimento AI Nahda (o despertar do Islão), com pensadores como AI
Afghani (t 1897) que, significativamente, manteve em 1883 uma apaixonada
controvérsia com Ernest Renan, da Sorbonne ao Journal des débats; ou Mohammed Abdou
(t 1905), depois Rachid Rida (t 1935), na índia, Hassan AI
28
AI Afghani abriu caminho para uma investigação que irá durar um século e que se
desenvolverá em tomo de dois eixos principais:
2.' A questão da "modemidade" não deve ser tratada a partir da perspectiva de uma
ideologia ocidental dita "moderna", que exclua o problema do fins últimos do homem
e reduza a razão à busca dos meios técnicos de poder e riqueza, princípio do seu
colonialismo, do militar ao económico e ao cultural.
Esta doença consiste, por exemplo, em querer aplicar um código penal do século vii
(como as mãos cortadas por roubo ou a fiagelação por adultério - os "juristas"
acrescentam, contra o Alcorão e em nome de uma "tradição", o apedrejamento até à
morte!). Consiste em querer aplicar a casamentos, divórcios e heranças o direito
civil e o estatuto pessoal correspondentes às condições históricas do século vii.
21 p. 16 1.
22 p. 179.
23 p. 182.
30
Mas esta procura, de que deram exemplo os grandes juristas do passado, fazendo o
esforço necessário (ijtíhad) para resolver os problemas da altura, é da
responsabilidade pessoal de cada um de nós, para contribuir para a solução dos
problemas do nosso tempo.
0 próprio Alcorão ensina a distinguir a "via" divina eterna (shari'a) que ocupa
5800 versículos em 6000, dos 200 versículos consagrados a prescrições legislativas
históricas, que exprimiam as condições da época.
Pode acontecer uma substituição deste gênero até a nível da oração. 0 exemplo mais
típico é o da mudança da Qibla, da direcção do corpo para orar. Na primeira
mesquita construída pelo profeta Maorné, em Medina, em 622, a Qibla estava virada
para Jerusalém; depois, uma passagem do Alcorão ordena a mudança e explica-a (li,
142 a 150).
Neste caso, para além da modificação histórica, devida a uma alteração das relações
com a comunidade judaica, o sentido e o objectivo são os mesmos: trata-se de
marcar, através da orientação da oração, simultaneamente a unidade da fé abraâníca
e a unidade da Umma, da comunidade muçulmana. Nas duas situações, os muçulmanos
viram-se para o mesmo ponto no espaço, e, nas duas situações, trata-se de um lugar
importante da "gesta" de Abraão: Jerusalém ou Meca, com a sua Ka'ba.
Contra beatices e formalismos, diz-nos Deus: "A piedade não consiste em voltar a
face para Oriente ou Ocidente" (li, 177). Apela não só à interioridade da fé contra
o ritualismo, mas também à fé expressa pelas acções para com os outros: "Não
conseguireis a verdadeira piedade enquanto não deres aquilo de que gostais" (111,
92).
0 Alcorão dirige-se aos homens na sua língua, escrito ao nível da sua compreensão,
para que a mensagem seja inteligível. Dirige-se a árabes do século vil, ou seja, a
uma comunidade pertencente à tradição "patriarcal" do Médio Oriente, É a mesma
tradição da linhagem hebraica, que consagra a inferioridade essencial da mulher, do
cristianismo de São Paulo, profundamente misógino, e da Península Arábica, com a
tradição tribal de dominação masculina.
Para divulgar a mensagem na linguagem deste povo e desta tradição patriarcal com
4000 anos é necessário aceitar o postulado milenário: "Os homens têm uma
preeminência sobre as mulheres" (li, 228). Ou, sem sequer justificar, este
postulado: "Os homens têm autoridade sobre as mulheres, porque tiveram a
preferência de Deus" (iv, 34)24. A mulher pode e'.
mesmo ser espancada por suspeita de infidelidade (iv, 34). Na linguagem do povo,
nesta altura, de acordo com a tradição e no seu nível de compreensão possível,
admite-se, por exemplo, que é necessário o testemunho de duas mulheres para
confrontar o de um só homem (li, 282) ou que o vencedor de uma guerra tem direitos
sobre as prisioneiras (iv, 254) ou, ainda, que o homem pode dispor da sua mulher
como disporia de um campo.
24 "À tua mulher não concedas autoridade sobre ti" diz o Ben. Sira (Sir. 33, 20) na
tradição judaica.
32
Todos estes aspectos têm a ver com determinadas condições históricas, em que
"assini. é a lei de Deus" (iv, 13). Esta lei representa um considerável progresso
em relação à sociedade pré-islâmica, judaica, cristã, grega ou romana, onde a
mulher (filha ou cônjuge) não tinha quaisquer direitos sobre a herança.
Nada existe nesta lei que possa justificar a discriminação, o verdadeiro apartheid
da mulher que impera hoje nos países muçulmanos. Esta discriminação vem de uma
certa tradição do Próximo Oriente, e não do Islão. No Islão do tempo do Profeta e
dos califas "bem orientados", ainda que se seguisse uma divisão do trabalho e dos
deveres, as mulheres não estavam excluídas de qualquer actividade social; mesmo em
combate, serviam não só como enfermeiras (Boukhari, LVI, 67-68) mas como soldados
(Boukhari, LVI, 62-63, 65).
dade" não retira nada ao valor universal e eterno da mensagem: cada intervenção
divina, tanto na comunidade religiosa de Meca como na comunidade religiosa e
politicamente unida de Medina, contém um princípio de acção válido para todos os
povos e tempos, mas tem uma forma específica, ligada às circunstâncias concretas
dessa época e dessa região.
não depende da sua posição social nem da sua riqueza, mas antes da sua piedade e
das suas virtudes. Quer isto dizer que a leitura do Alcorão não pode ser
constantemente literal. Sempre que o princípio de acção se exprimir na linguagem
específica e nas condições particulares da época da sua revelação, deve-se retirar
da letra morta o espírito vivo. Por outras palavras, para aplicar a lei islâmica
(sharia) não se pode raciocinar por dedução mas antes por analogia.
35 1 1:'
novo caso.
No Alcorão, a palavra sharia só é utilizada uma vez (45, 18) e noutros três
versículos aparecem palavras com a mesma raiz: o verbo shara'a (42, 13) e o
substantivo shira (5, 48).
Isto permite chegar a uma definição precisa. "Pusemos-te num caminho (shariatin)
vindo da ordem."
Em que consiste este "caminho" (sharia)? É o que nos explica o versículo 42, 13: "A
respeito de religião, abriu-vos um caminho [aqui trata-se do verbo shara'al que
recomendara a Noé, o mesmo que te revelámos, aquele que recomendámos a Abraão, a
Moisés e a Jesus: segui-o, e não façais dele objecto de divisão."
36
- que este caminho é comum a todos os povos, a quem Deus enviou os seus profetas (a
todos os povos e na língua de cada um).
A shari'a (a lei divina para chegar a Deus) não pode pois incluir estas legislações
(fíqh) que, ao contrário da sharia comum a todas as religiões, diferem entre si
conforme a época e a sociedade à qual Deus enviou um profeta.
Diz Deus no Alcorão (13, 38): "A cada época um livro", e ainda: "Não existe
comunidade onde não tenha passado um profeta para o futuro" (35, 24 e 16, 36).
A sharia, de facto. está presente de forma idêntica nos três Livros revelados:
0 Alcorão proclama diversas vezes que só Deus possui. "Tudo o que está nos céus e
na terra pertence a Deus" (2, 116 e 284: 3, 109, etc.). Tal como diz o
Deuteronómio: "Os céus e tudo o que eles encer-
ram pertence ao Senhor, teu Deus, bem corno a terra e tudo o que nela existe" (Dt.
10, 14).
E tal como diz Paulo, no Novo Testamento: "Pois a terra inteira e tudo o que nela
existe pertencem ao Senhor." (Cor. 10, 26).
Acontece o mesmo, nos três Livros, com as expressões "Só Deus manda" e "Só Deus
sabe".
Esta nítida distinção corânica exclui qualquer interpretação literal e apela a que
reflictamos sobre os exemplos, em vez de aplicar cegamente em qualquer momento
receitas históricas que também constam do Alcorão.
A sharia une todos os homens de fé; pelo contrário, querer impor aos homens do
século xx uma legislação do século vii, e da Arábia, é uma obra de divisão que dá
uma falsa imagem do Alcorão. É um crime contra o Islão.
38
Se, como diz a shari'a corânica, "só Deus possui", qualquer riqueza é relativizada:
estes príncipes são simples gerentes responsáveis e deixam de poder investir nos
Estados Unidos, na Suíça ou em paraísos fiscais, nem podem delapidá-la pelos
casinos de todo o mundo, nem construir para uso pessoal os palácios ostentatórios e
orgíacos de Marbella, em Espanha, ou da Côte d'Azur francesa. Pelo contrário, todas
as prescrições económicas do Alcorão, trate-se do riba (dinheiro obtido sem
trabalho) ou do zakat (exigência de uma taxa religiosa sobre a fortuna pessoal),
tendem a impedir a acumulação de riqueza, num dos pólos da sociedade, e de miséria,
no outro.
Se, como diz a sharia corânica, "só Deus manda", a monarquia absoluta e as suas
feudalidades vassalas estão condenadas. Porque misturam lucros pessoais e dívidas
do Estado na partilha dos rendimentos petrolíferos, porque criam para si
"clientelas", financiando os "integrismos" mais retrógados em todos os continentes,
para fazer do Islão um "ópio" dos povos que aceitarem resignados a sua dominação.
Se, como diz a sharia corânica, "só Deus sabe", dobrou a finados por todos os
dogmatismos e pretensões de posse da verdade absoluta que "fecham a porta da
ijtihad" (da interpretação dos textos sagrados). A interrupção hambalita 26 da
reflexão religiosa é o oposto do que o Alcorão exige, ao fazer de cada muçulmano
responsável e ao apelar constantemente à "reflexão" sobre os "exemplos" de acção
divina revelados pelo Profeta. A apropriação da doutrina wahabita pelos Saoud, como
fundamento de uma "teologia de dominação" e do obscurantismo mais arcaico para
conseguir a resignação das massas, tudo isto voará em estilhaços à luz da sharia
corânica.
39
Aquilo que a propaganda saudita, graças às suas mesquitas e seus imãs pára-
quedistas, difunde por todo o mundo sob a desipação usurpada de sharia, são, pelo
contrário, proibições e repressões. A mão do ladrão cortada para proteger a riqueza
é o símbolo desta forma de aplicar a sharia que mais convém aos ricos e poderosos.
Disse Abbad Ben Sharahbil: "Vim a Medina com os meus pais. Entrei num campo (de
trigo). Arranquei algumas espigas e tirei o grão. Chegou o dono (do campo). Tirou-
me a roupa e bateu-me. Fui procurar o Profeta para me queixar. 0 Profeta mandou
chamá-lo. 0 Profeta perguntou-lhe: "Que te levou a agir assim?" 0 dono respondeu:
"ó Mensageiro de Deus, este homem entrou no meu campo, levou-me umas espigas e
tirou-lhes o grão". 0 Profeta disse: "Era ignorante e não o ensinaste. Tinha fome e
não o alimentaste. Devolve-lhe a roupa." E o Mensageiro de Deus ordenou-me que
desse uma medida de trigo." Segundo Yahya Ben Abderrahman Ben Hateb:
40
Este facto é relatado no AI Muwatta, do ímã MaIek. Estes exemplos devem ajudar-nos
a tomar consciência de que querer aplicar a shari'a cortando as mãos ao ladrão é
começar pelo fim: a primeira função de uma sociedade que se esforça por obedecer à
lei divina consiste em eliminar as condições sociais que levam ao roubo, ou seja,
todas as formas de injustiça social e de miséria.
Se se começa pela repressão, os mais pobres serão os mais atingidos. Se lhes forem
cortadadas as mãos, toma-se impossível a sua normal reintegração na sociedade
através do trabalho. A humilhação e a exclusão irreversíveis atingem os mais
desprovidos (e deixam os "entesouradores" - Sura cm - prosseguir a sua obra de
divisão social pela desigualdade). É um sacrilégio que desafia tanto a justiça de
Deus como a Sua infinita misericórdia.
Ora o Alcorão é muito claro neste aspecto. Condena com firmeza aquele "que junta
riquezas e as conta" (civ, 2 e Lx, 34); quem o fizer, chama a si os castigos do
Inferno.
Num país onde as prescrições fossem aplicadas com rigor, reinaria, então, no plano
económico e social, a lei de Deus, a verdadeira shari'a, e não haveria mais
"necessidade" que pudesse levar ao roubo.
41
seu massacre, foi imediatamente designado o general alemão UIrich Wegener como
instrutor da Guarda Nacional. Em 1990, quando os dirigentes americanos no Golfo
recomeçam a antiga guerra colonialista conduzida pela Inglaterra para tirar o
Kuwait ao Iraque, a monarquia saudita chamou à "terra sagrada" a gigantesca armada
americana (pagando-lhe), para organizar o massacre de um povo árabe. E é nestes
lugares que se proíbe a construção de uma igreja ou de um templo.
Com os seus milhares de milhões de dólares nos Estados Unidos e os seus mercenários
infiltrados em todas as comunidades muçulmanas do mundo, a Arábia Saudita
transformou-se no mais hipócrita dos aliados daquilo que se opõe ao Islão e que é o
seu pior inimigo: o monoteísmo do mercado.
"Dessauditizar" o Islão é hoje em dia uma das principais tarefas dos muçulmanos de
todos os países para devolver à sharia a sua verdadeira face: aplicar a sharia é
viver vinte e quatro horas por dia na transparência do Deus unico que possui, que
manda e que sabe.
42
A luta contra o integrísmo não é por uma "integração" que obrige os outros a deixar
de ser o que são, mas sim uma luta para que o sejam mais profundamente e para que,
com o seu contributo e experiência específica, enriqueçam as noções de cidadania e
de vida que lhes dão um sentido humano - ou divino, conforme a linguagem de cada
um. É este sentido que Jesus, interiorizando ainda mais a mensagem dos Profetas
anteriores, chamava o "Reino" e que o Alcorão designa como "caminho" (sharia),
sublinhando que tanto é de Abraão como de Jesus ou de Maorné.
É absurdo, por exemplo, dizer que o Islão, é, por questão de princípio, inimigo da
ciência ou da tolerância religiosa.
43
Só políticos que desconheçam tudo do passado da sua própria cultura podem proclamar
que a França não será multicultural, como se a cultura arabo-islâmica não fizesse
parte da nossa cultura ocidental.
Ouve-se frequentemente dizer que esta cultura tem duas origens: greco-romana e
judeo-cristã. É ignorar a herança arabo-islâmica. Francis Bacon, o monge inglês
justamente considerado como intro-
dutor da ciência experimental na Europa, reconhecia, com modéstia, no Opus majus,
ter aprendido tudo com a Escola Muçulmana de Córdoba e cita frequentemente o
Tratado de óptica, do egípcio lbn Haytham, que primeiro exemplificou este método:
formular uma hipótese matemática, e, a seguir, elaborar um dispositivo experimental
para a verificar ou infirmar.
Noutros domínios, basta ler o tratado Do Amor, de Stendhal, que lembra que "é sob a
negra tenda do beduíno que se revela o verdadeiro amor". É na obra de lbn Hazin
sobre o amor cortês, tal como em Ibn Arabi, que se encontra a expressão da
continuidade entre o amor humano e o amor divino, que inspirará, segundo a bela
expressão do padre Asin Palacios, "a escatologia muçulmana" na Divina Comédia, de
Dante.
0 mesmo se passa quanto à tolerância: a intolerância não tem que ver com o Islão
mas antes com as suas perversões.
É a ignorância de todos estes factos que leva, por exemplo, à política puramente
repressiva que, em França, toma o ambiente cada vez mais irrespirável ao confundir
simples tradicionalistas e seguidores dos costumes da sua terra com terroristas
potenciais.
No conjunto das relações internacionais, tal como nas relações políticas internas,
só se pode escolher entre o diálogo e a guerra, Maldito seja aquele que escolher a
guerra.
44
A fé é ópio ou fermento?
Uma etapa importante da minha vida ficou assinalada por um encontro com D. Hélder
Câmara, precisamente a 29 de Maio de 1967, era eu na altura membro do Comité
Político do Partido Comunista Francês e D. Hélder arcebispo do Recife, no Brasil.
Participámos, em Genebra, numa comemoração da Encíclica Pacem in terris. Desde este
primeiro encontro não se esgotou a fraterna comunhão que nos une.
D. Hélder conta nas Conversions dun évêque' como as nossa relações começaram por um
"pacto": "Roger, e se fizéssemos um pacto? Encarrego-o a si de obter duas coisas.
[... ] Há marxistas que pensam que ser marxista é seguir à letra o que Marx disse.
[ ... 1 Não se apercebem que, se fosse hoje, Marx, sempre fiel à realidade, teria
visto as coisas de maneira diferente. Por exemplo, nem sempre é correcto afirmar
que há uma ligação necessária entre religião e alienação. Sou o primeiro a
reconhecer que existiram no passado e ainda existem nos nossos dias, infelizmente,
grupos que apresentam a religião de forma demasiado passiva, que fazem dela um
verdadeiro "ópio para o povo", e que conseguem assim uma verdadeira alienação. Mas
garanto-lhe que em todas as religiões, e não só no cristianismo, pessoas e grupos
trabalham para que a religião, em vez de ser alienada e alienante, seja uma força
de libertação.
45
[... ] Encarregue-se de fazer com que os marxistas deixem de relacionar
necessariamente religião com alienação. É este o primeiro ponto.
Por outro lado, acredita que há uma ligação necessária entre socialismo e
materialismo, ou pelo contrário, que é possível, como penso, ser um verdadeiro
socialista sem aderir ao materialismo dialéctico? IN
D. Hélder responde: "Sim. Ambos fizemos tudo o que podíamos. No entanto, ainda não
realizámos os nossos objectivos."
46
Sei bem quantas lágrimas e quanto sangue custaram estas obras a estes
precurssoresl: a repressão dos generais e seus "esquadrões da inorte", o ódio da
CIA norte-americana que declarou: "A política externa dos Estados Unidos deve
defrontar a teologia da libertação" (documento de Santa Fé, Lima, Fevereiro de
1985). Esta tomada de posição da Administração americana seguiu de perto o ataque
vindo do Vaticano (a 23 de Novembro de 1984) com as "Instruções" do cardeal
Ratzinger contra a "teologia da libertação"4.
No ano em que saiu Spirale de la violence (1970), fui expulso do Partido Comunista
Francês, de que era um dos dirigentes e teóricos, por ter dito que a União
Soviética não era um país socialista. Foi há 24 anos.
Tanto eu como D. Hélder mantínhamos o nosso pacto, contra ventos e marés. Não
deixámos de o fazer.
Pela minha parte, demonstrei, nos diálogos cristãos-marxistas que organizei desde
1960 e em todos os meus livros e artigos sobre o marxismo, que o ateísmo não era um
componente necessário do socialismo. Marx nunca fez uma crítica filosófica da
religião, mas sim uma crítica política: na sua luta pela libertação das classes
exploradas e oprimidas, debatia-se, nuina Europa dominada pelo espírito da "Santa
Aliança" (entre o alto clero e os príncipes contra qualquer movimento democrá-
47
tico ou socialista), com uma religião que de facto tinha o papel de "ópio do povo".
Mas, frisando que a fé não era sempre nem em qualquer lado um "ópio do povo", na
mesma página onde utiliza esta expressão declarava que o cristianismo era
simultaneamente "um. reflexo" e um protesto contra a miséria do Homem'. Graças a
este aspecto contestatário, a religião pode então ser, noutras circunstâncias
históricas, não um ópio mas um fermento para a libertação do Homem.
Seria errado pensar que ao falar de socialismo "científico" se está a excluir a fé.
Ciência e fé não são de maneira nenhuma rivais, excepto na concepção arcaica de
ciência - o Positivismo -, ou seja, na concepção de um "cientismo" totalitário que
pretende que todos os problemas da vida podem ser resolvidos pelas ciências
"positívas", até mesmo as questões dos fins últimos e do sentido da vida, do amor
ou da beleza. A ciência e a técnica, sejam quais forem os seus sucessos mais
maravilhosos (por exemplo, os computadores), podem dar-nos meios para atingir
qualquer fim, mas nunca os fins últimos, que só o Homem pode, de forma livre e
responsável, atribuir à sua vida.
Não há, portanto, concorrência, rivalidade, e ainda menos exclusão recíproca, entre
a Ciência que nos dá meios tão poderosos e uma fé e sabedoria com as quais
decidimos osfins a seguir.
48
Marx não opõe "socialismo científico" a utopia. Mostra como a utopia do "Hornem
total" encontra, em meados do século xix, a força histórica (a classe operária)
capaz de passar da utopia ao "movimento real" que, perante uma economia em que o
mercado é o único regulador das relações sociais e em que a concorrência isola os
homens, permitirá criar, "de acordo com um plano consciente", uma sociedade onde o
"livre desenvolvimeto de cada um será condição para o livre desenvolvimento de
todos" (Manifesto Comunista).
49
Para quem, pelo contrário, gosta do futuro naquilo que tem de criador e de
imprevisível, isto é, dependente dos homens que, como escrevia Marx, "fazem a
própria histórial", mesmo que não a façam arbitrariamente mas em condições herdadas
do passado, é evidente que a
Devo a tomada de consciência desta verdade essencial ao diálogo com os cristãos que
organizei à escala mundial, de 1962 a 1974, e aos teólogos da libertação, ao padre
Karl Ralmer (S. J. - Companhia de Jesus) e a D. Hélder Câmara.
50
futuro e para procurar o seu sentido, as próprias artes perderiam a sua dimensão
essencial. 0 socialismo não é o fim da História mas sim o começo de uma história
para além da selva de concorrências, dominações e guerras.
"Sei quem sou!", dizia D. Quixote do fundo da sua desgraça. Quem sou eu? Um homem
habitado por Deus. 0 próprio Prometeu não passa de um pioneiro, não é a esperança
última nem a "salvação" da Humanidade.
51
Ambos vêem em Prometeu o pioneiro de uma emancipação profana, e alguns vêem em
Jesus o anúncio de uma "graça" que é a própria criação, indo além de uma liberdade
que seria apenas um ruptura com as servidões.
Ambos têm o mesmo inimigo - o falso Deus, o falso Prometeu ou o falso Jesus da
religião dominante. É o monoteísmo do mercado, a idolatria do dinheiro que tira à
vida o seu sentido, pois só lhe oferece uma perspectiva: o crescimento quantitativo
da produção e do consumo.
É este o único inimigo do Homem e do Deus que nele habita. Compete a todos os
homens de fé unir esforços para destruir este obstáculo ao nosso futuro.
Sim, meu caro D. Hélder, o nosso pacto há-de ser mantido, por outros além de nós e
depois de nós: a recíproca fecundação do marxismo vivo, ou seja, sem dogrnatismos,
e de uma fé viva, ou seja, sem credulidades, constitui, graças às teologias da
libertação, a grande esperança da Humanidade.
Marx morreu?
Na política externa, leltsin, à procura de divisas seja por que meios for, até o
armamento vende em saldo, o que leva a uma proliferação das mais sofisticadas
técnicas militares, incluindo técnicas nucleares.
Estes são apenas alguns dos sintomas, dos mais patentes, da decomposição material e
moral de uma sociedade com mais de 200 milhões de habitantes.
Este gigantesco saldo daquilo que foi a segunda potência mundial, e a prostituição
política do antigo apparatchik transformado em executante das vontades dos Estados
Unidos e do FM1, resultam da restauração do capitalismo. Fala-se da "restauração"
do capitalismo, como se fala da "restauração da monarquia", a propósito do
movimento de 1815.
53
y_
Para rever manuais escolares e enciclopédias e criar uma geração de jovens iniciada
com o tráfico de droga em negociatas mafiosas ou com fanatismos nacionalistas e
religiosos, em aventuras místico-chauvinistas, haveria que apagar da Rússia os
traços de São Sérgio e de Rublov, de Dostoíevskí e de ToIstoi, em beneficio de
Rastignacs e Rasputines.
Teria de se arrancar o ideal dos jovens comunistas, que sonhavam com a construção
do socialismo, e o canto que resumia as suas esperanças, de I)nieprostroi a
Estalinegrado, e que ainda em 1968 ouvi cantar nos estaleiros do lago Baikal.
Não foi Marx o primeiro a denunciar o capital. Gracchus Babeuf, em Junho de 179 1,
denunciava a lei Le Chapelier que proibiria durante três quartos de século a
formação de sindicatos operários como "lei bárbara ditada pelo capital".
Não foi Marx quem inventou a "luta de classes". Em 1833 (tinha Marx quinze anos),
Pierre Leroux, antigo seguidor de Saint-Simon, escrevia: "A actual luta dos
proletários contra a burguesia é a luta dos que não possuem os intrumentos de
produção contra aqueles que os possuem."
54
Resume todo este quadro, numa carta a J. Bloch: "[Na economia de mercado] há
inúmeras forças mutuamente opostas, um conjunto infinito de paralelogramas de
forças com um resultado - o acontecimento histórico -, podendo ver-se nele próprio
o produto de uma força que age, cega e inconscientemente, como um todo. Pois os
desejos de um indivíduo são contrariados pelos outros, e o resultado acaba por ser
algo que ninguém quis11."
1 .
mente enfraquecida e incapaz de fazer a sua propria revolução contra os vestígios
feudais do regime czarista.
Em tais condições, uma revolução não pode ser gerada pelo simples amadurecimento
das contradições do capitalismo. É necessariamente conjuntural, nascendo, por
exemplo, do confronto, na Rússia de
1917, entre este campesinato e as novas formas de exploração capitalista dos campos
que Lenine analisou em 0 Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia; nascendo, enfim,
da guerra, da derrota e da impotência do sistema para resolver este conjunto de
problemas.
56
0 paradoxo histórico foi querer fazer uma revolução "proletária" sem proletariado
ou, no máximo, com um proletariado embrionário.
0 desvio será terrível. Como dizia Trotski, o partido fala em nome
Lenine, em 1920, antecipava já o terrível momento. Depois de ter dito que o "nosso
inimigo principal é o burocrata, o militante comunista que ocupa uma função
administrativa no Estado ou no Partido", acrescenta, numa resposta a Trotski que
falava do Estado proletário: "Que diz? É um mito! 0 nosso Estado é, em princípio,
um Estado proletário, mas é-o com uma dominante camponesa, em primeiro lugar, e com
urna deformação burocrata, em segundo."
57
Situação oposta dá-se em 1968: com o meu livro Um Realismo sem Fronteiras (sobre
Kafka, Picasso e Saint-John Perse) consegui a ruptura total do Partido Comunista
Francês com a ortodoxia estética da URSS, desta vez com o apoio de Aragon que, num
prefácio ao meu livro, escreveu, plenamente de acordo com Maurice Thorez, que este
livro constituía "um acontecimento".
58
A exportação desta teologia sem Deus, considerando o modelo soviético como modelo
único e imutável do socialismo, conduziu os partidos comunistas da Europa e do
Terceiro Mundo a uma falência generalizada. Os do Terceiro Mundo porque o modelo
foi elaborado a partir de experiências limitadas ao Ocidente - por exemplo, a
economia política inglesa, a filosofia alemã ou o socialismo francês - e porque o
socialismo era aqui concebido como transição contra o capitalismo e o comunismo.
Mas, sem uma modificação radical, como se poderia aplicar este esquema de análise a
povos que não tinham as estruturas capitalistas, nem sequer feudais, que apenas o
Ocidente conheceu? Quanto aos partidos comunistas europeus: se Marx tinha dado um
exemplo de análise da História baseando-se no desenvolvimento de um capitalismo que
tinha chegado, na Europa, à maturidade, a Revolução Soviética, surgida em condições
excepcionais, só poderia servir como modelo universal para uma extrapolação
alucinada, desligada da realidade histórica do Ocidente.
59
60
Esta concepção do papel do Estado está em contradição radical com a de Marx. Este
dava como exemplo de "forina de Estado socialista finalmente conseguida" a Comuna
de Paris, exacto oposto do Estado Soviético. A Comuna era, quanto aos seus
objectivos e numa forma embrionária, autogerida, federativa e não centralizada, sem
partido único: os proudhonistas tinham a maioria absoluta, havia blanquistas, mas
marxistas contava-se só um.
61
tido uma organização de tipo militar Mas os seus discípulos esqueceram-se de que
Lenine a tinha concebido exclusivamente para a clandestinidade, contra a violenta
repressão warista. Manter este "comunismo de guerra" no partido em tempo de paz só
poderia levar à derrocada.
Com a União Soviética morreu, portanto, não o marxismo mas a sua trágica
caricatura.
Penso que nunca como hoje se verificou tão claramente a previsão de Marx.
0 futuro do sistema capitalista foi prognosticado por dois grandes teóricos seus:
Adam Smith e Karl Marx.
Adam Smith, a quem chamaram "pai da economia política", desenvolveu na sua obra
fundamental, A Riqueza das Nações, a dita teoria "clássica" do crescimento
económico, que constitui a principal linha directriz daquilo a que se convencionou
chamar, ainda nos nossos dias, "liberalismo".
A sua tese principal é que se a acção individual for guiada por interesse de lucro
pessoal, satisfazer-se-á um interesse geral. A harmonia será garantida por uma "mão
invisível".
Marx, pelo contrário, partindo de uma profunda análise da obra de Adam Smith,
reconhece que o capitalismo assim concebido criará grandes riquezas e estimulará o
desenvolvimento das técnicas (e no Capital não esconde a sua admiração por este
dinamismo prometeico do sistema) mas que simultaneamente criará misérias e
desigualdades terríveis.
Adam Smith, no fim do século xviii, e Karl Marx, em meados do século xix,
analisaram o capitalismo num período de expansão e fizeram previsões diferentes.
Hoje, reinando o "liberalismo" sozinho à escala planetária, podemos perguntar qual
deles terá previsto mais acertadamente o futuro do capitalismo: Adam Smith, ao
afirmar que se cada um seguir o seu interesse pessoal é o interesse geral que será
satisfeito, ou Marx, ao analisar os mecanismos de acumulação da riqueza num pólo e
da miséria noutro?
62
Marx mostrou como superar esta contradição: através de um plano que oriente o
mercado para a protecção dos mais fracos, para pôr as riquezas produzidas ao
serviço do desenvolvimento de todo e qualquer homem e não da sua exclusão e da sua
morte.
Hoje mais que nunca apresenta-se-nos a escolha entre "o socialismo e a barbárie".
Entre a barbárie que gera divisões e exclusões fatais, seja à escala do mundo ou de
cada sociedade, e o socialismo que não é mais do que a procura dos meios para
evitar esta polarização, dando prioridade à unidade da Humanidade e ao desabrochar,
em cada homem, da plenitude da sua Humanidade.
Ofuturo não é aquilo que tiver de ser, mas aquilo que nósfizermos.
63
6i
Jesus não definiu qualquer programa político ou doutrina social que se impusesse a
todos os tempos e povos.
Não se trata, portanto, de, em nome da fé, querer sacralizar a obrigação de ser de
esquerda ou de direita. Mas podemos e devemos proclamar bem alto que, em nome da
nossa fé, não podemos continuar a tolerar a divisão do mundo entre Norte e Sul e a
acumulação da riqueza num pólo da sociedade, e da miséria, noutro. Nem a nossa vida
pessoal nem a nossa história comum terão sentido se o mundo não for um só.
A nossa missão é reunir todos os homens de fé - seja qual for - contra o actual
mundo do não-senfido, criar núcleos de resistência, denunciando e combatendo tudo o
que se opuser à unidade sinfónica do mundo, em que cada criança, cada mulher e cada
homem possam desenvolver plenamente todo o valor humano que em si carregam, para
que cada povo, cada cultura e cada fé dêem o seu contributo para a fecunda unidade
do mundo.
Isto implica que combatamos tudo o que se opõe a esta unidade, pretendendo impor
urna dominação imperial e, pura e simplesmente, uma falsa unidade.
"braço secular" dos senhores do mundo, dos Estados Unidos e dos seus cúmplices e
vassalos dos G7: o GATTI, o FM1, o Banco Mundial, todos os instrumentos que, em
nome de uma pretensa liberdade, impõem a idolatria do dinheiro.
0 Terceiro Mundo poderá representar um espaço económico muito mais vasto, com duas
condições:
A primeira é não o considerar como escoadouro ou vazadouro dos excessos das nossas
economias disformes, que produzem mais para o armamento e para o gadget do que para
as necessidades reais dos povos (nossos e deles).
66
Os media e o não-sentido
. 1 .
67
"Enquanto o presidente Bush pedia o apoio dos seus concidadãos para a operação de
destruição do Iraque por si projectada, e os kuwaitianos se angustiavam por causa
do pouco interesse dos americanos pela sua causa, uma agência de relações públicas
americana (Hill and KnowIton) era financiada pelos países petrolíferos da Península
Arábica, para interceder a favor da libertação do Kuwait. A agência serviu-se do
estratagema mais eficaz, de um golpe infalível que mobilizaria toda a América:
divulgou o relato de uma jovem refugiada, que por milagre escapou aos soldados
iraquianos, sobre a morte deliberada de recém-nascidos. Escondendo o nome por temer
represálias contra a sua família, ainda nas mãos dos invasores, e de lágrimas nos
olhos, a jovem contou minuciosamente como os iraquianos tinham retirado vinte e
dois bebés das incubadoras, atirando-os ao chão, onde os deixaram agonizar.
Escassos minutos televisivos tão perturbantes que os americanos exigiram vingança.
Saffiam Hussein era diabolizado, o seu povo proscrito, e justificavam-se de antemão
os massacres posteriores e o embargo que causou a morte a cerca de 200 000
iraquianos, especialmente crianças. Terminada a guerra, soube-se' que graças a este
programa, a agência Hill and KnowItort conseguiu 'manipular', por 10 milhões de
dólares, 250 milhões de americanos: na verdade, a 'refugiada' era a filha do
embaixador do Kuwait junto das Nações Unidas e a história dos bebés arrancados das
suas incubadoras era uma invenção que enganou o próprio presidente Bush, que se lhe
referiu diversas vezes, no Senado, na televisão e nos jornais."
2Les Vérités Yougoslaves ne Sontpas Toutes Bonnes à Dire, Albin Michel, 1993, pp.
15-19.
68
aeródromos e uma estação de rastreio da 'circulação' dos seus satélites. Foi por
isto, sem dúvida, que a fome que afecta a população deste país mereceu tantas
reportagens televisivas: desta forma se preparou a opinião pública para uma
gigantesca intervenção militar e humanitária. Realizou-se com sucesso desigual mas,
graças às imagens, foi quase aprovada."
Graças a estas opções, os Estados Unidos e seus aliados na Somália foram vistos
como benfeitores da Humanidade. Na verdade, as provisões que distribuíram, fazendo-
o frente a dezenas de câmaras, não representavam mais de 10% das que organizações
humanitárias mais discretas distribuíam todos os dias.
Já Sócrates sabia que entre medicamentos e doçaria nenhuma criança hesita. Mas os
senhores do espectáculo não se contentam em tratar os espectadores como crianças.
Dizia Adolf Hitler, também ele mestre da manipulação dos espíritos: "Perante um
auditório, para ter a sua adesão, aponto ao mais animalesco e mais baixo: às
glândulas... lacrimais ou sexuais... E ganho sempre. Tratarei da minoria crítica
com outros métodos."
Abundam assim, nos pequenos écrans do mundo inteiro, as vedetas do tele-lixo saídas
das piores produções americanas, da Madonna
69
aos heróis exterminadores, para quem todas as relações humanas passam pela mediação
do revólver, ou aos heróis de "Dallas", para quem todas as relações humanas passam
pela mediação do dólar.
Restam os concursos, cujo vício mais inofensivo é dar um ideia perversa da cultura:
confundir cultura com memória, memória de tudo e mais alguma coisa, desde a data da
primeira Volta à França em bicicleta ao comprimento do rio Orinoco. Este é o vício
mais inofensivo, pois há ainda o dos jogos de azar, das corridas de cavalos às
lotarias, para os quais se inventou o inesquecível slogan "É fácil e dá milhões!" A
isto se resume a moral do sistema, a esperança ilusória que pode ter quem não tem
mais nada.
Dada a forma como a televisão se encarrega das suas três funções, o resultado
habitual é a destruição de todo o espírito crítico, de qualquer tentativa de
procura de sentido. Qualquer projecto é afastado da paisagem audiovisual e
mediática pela censura, explícita ou implícita, das leis do mercado e do poder seu
protector, ambos submetidos ao monoteísmo do mercado.
70
É uma acção não violenta, mas que pode envolver riscos pessoais, na medida em que,
adquirindo o movimento alguma importância, podem-se encarar medidas mais
ambiciosas, como seja a recusa de taxas contra a invasão americana das televisões,
ou mesmo uma greve selectiva ao pagamento de impostos.
Para trabalhar para a unidade do mundo, uma das primeiras medidas será a abolição
da dívida do Terceiro Mundo. Esta suposta dívida não tem fundamento histórico nem
justificação.
Perguntemos, para começar, quem é o devedor? 0 Ocidente, na verdade, tem uma enorme
dívida para com o Terceiro Mundo: quem reembolsou o Peru pelas toneladas de prata e
ouro pilhadas pelos conquistadores deste país? Quem reembolsou a índia por todo o
algodão que enriqueceu Manchester? Quem reembolsou o Iraque, o Irão, todos os
países petrolíferos, pelo petróleo levado a preço de chuva por colonizadores e
multinacionais?
71
Em qualquer dos casos, as dívidasjá estão saldadas há muito, através dos juros
usurários pagos aos credores estrangeiros. A Argélia, por exemplo, com uma dívida
de 26 milhões de dólares, paga por ano, em juros, 6 milhões. Em tais condições, não
há recuperação económica possível, e este facto é a principal origem dos
integrismos.
Enfim, tanto no Noite como no Sul, grande parte da "ajuda" alimenta um vasto
sistema de corrupção.
1
2.' Os empréstimos e investimentos só serão atribuídos a projectos especificamente
de obras de utilidade pública: por exemplo, desenvolvimento de culturas ou
trabalhos de irrigação, de transportes, de infra-estruturas.
72
3.' Estas trocas deveriam ser, quanto aos bens essenciais, trocas directas, para
não se gastarem divisas estrangeiras (nomeadamente dólares) e evitar as
especulações que as regem.
4.' Impõe-se a revalorização dos preços das exportações dos países de Sul para pôr
termo a trocas cada vez mais desiguais: em 1954 bastavam a um brasileiro 14 sacos
de café para comprar um jipe aos Estados Unidos. Em 1962, já eram precisos
39 sacos. Em 1964, um jamaicano comprava um tractor americano com 680 t de açúcar e
em 1968 com 3500 t. Persiste a desigualdade colonial. Os países pobres continuam a
subsidiar os países ricos. 0 PNUD (Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento) refere: "De 1983 a 1991, o índice ponderado de um grupo de 33
produtos básicos (excluindo a energia) diminuiu praticamente metade, passando do
índice 105 ao
57. [... ] Entre meados de 1989 e meados de 1991, os preços de exportação dos
produtos básicos dos países em vias de desenvolvimento baixaram 20%. Em 1991 [
... ] os preços em valor real do café e do chá desceram ao seu mais baixo nível
desde 1950."
Todas as medidas sugeridas para uma mudança radical nas nossas relações com o
Terceiro Mundo vão no sentido de o libertar da servidão do mercado global integrado
(tal como o entendem os dirigentes ocidentais) de que são as principais vítimas.
73
Continuam a morrer no mundo (isto é, na maior parte dos casos, no Terceiro Mundo),
por dia, 35 000 crianças, de uma combinação de doenças facilmente evitáveis ou
curáveis e de subnutrição. Cerca de
60% destas mortes são, de facto, imputáveis a três doenças: pneumonia, diarreia e
rubéola.
Para dar a cada família acesso a água potável e a meios de saneamento básico, que
reduziria num terço a mortalidade das crianças com menos de 5 anos e em metade a
taxa de mortalidade materna, os países do Norte deveriam disponibilizar mais 25
biliões de dólares do que o que gastam actualmente com o desenvolvimento. Esta soma
é inferior às somas gastas por ano em vinho, pelos europeus, ou em cerveja, pelos
americanos.
Um exemplo ainda mais impressionante: o Sara foi, há alguns milhares de anos, uma
floresta. É possível torná-lo fértil novamente, de Dakar a Mogadiscio, acabando
assim com a fome em África.
3.' 0 acesso às "bolsas fôsseis", com conteúdo vastíssimo. São profundas, mas
bastante menos que as jazidas petrolíferas de Hassi Messaoud, onde os poços chegam
aos 2000 m.
74
0 custo destes empreendimentos foi avaliado, por especialistas, num bilião e meio
de dólares. É o preço de um porta-aviões mais os seus 86 aviões Rafale. É cerca de
100 vezes menos do que a totalidade de crédito em equipamento militar previsto para
os orçamentos franceses de 1995 a 2000. (De 613 a 620 milhares de milhões de
francos fora a inflação, o equivalente a 150 milhares de milhões de dólares). Mais
uma comparação: o custo da fertilização do Sara representa um décimo do montante
fornecido em armas pelos Estados Unidos aos países em vias de desenvolvimento, em
1992 (15 milhares de milhões de dólares).
Uma mutação do Ocidente
Pôr o mundo nos eixos significa, primeiro, devolver ao mercado a sua verdadeira
função, que é ser o local de manifestação e satisfação das necessidades materiais e
espirituais autenticamente humanas.
Isto requer, como primeira medida correctiva, como medida para o verdadeiro
renascimento do homem, uma reconversão de todo o nosso aparelho produtivo. 0
exemplo mais impressionante é o da indústria de armamento que actualmente
representa 7% do produto nacional bruto francês, e que faz da França o terceiro
mercado de armamento mundial, a seguir à Rússia e aos Estados Unidos.
75
0 número dos que, directa ou indirectamente, trabalham para a morte é tal que se
chega a invocar o argumento do desemprego para manter activos os arsenais e seus
anexos. E, no entanto, quantos meios de desenvolvimento humano podiam ser criados
com a reconversão desta indústria estéril, quanta maquinaria agrícola para o
Terceiro Mundo, quantos meios de transporte inovadores, quanta tecnologia de
extracção de metal subaquática, quantas próteses inteligentes, e tantas outras
coisas!
76
- uma mutação das nossas atitudes, pela qual a conversão ao Uno e o desenvolvimento
do espírito criador surgiriam inicialmente de uma reconversão da nossa produção e
da indexação sobre a produtividade da duração do horário de trabalho.
77
V-
1
I I
'z'
7 ,-ANN
Crença e fé
E eis que nos nossos dias o Homem é capaz de fazer quase tudo o que dantes se
tomava por blasfémia humana ou por milagre de Deus.
0 Homem consegue construir uma Torre de Babel e, como um deus, pulverizá-la por
implosão em segundos.
Deixou de erguer o olhar e implorar a um deus que se pavoneava para além da abóbada
de buracos dourados das estrelas.
procurar algo anterior a esse anterior primordial? Não será a "Criação" o nome que
dou à minha propna ignorancia pnmordial, acrescida da certeza de não me ter criado
a mim próprio, e que oculto sob imagens demasiado humanas, como as do oleiro ou do
soberano?
Não será a fé tomar consciência desta insuficiência essencial e desta ausência? Não
será a recusa de um ersatz' de resposta àquilo que não tem resposta uma mitologia
ingénua da criação a partir do nada, como se a própria palavra "nada" não tivesse
conteúdo e sentido?
E, no entanto, não posso iludir esta questão sem resposta. Pois a suficiência é o
oposto da transcendência, e reconduz-me aos deuses da potência: projecto a minha
impotência e com isto crio o meu Deus Zeus, Jeová ou o homem pretensioso que
acredita que, proclamando a morte de Deus, se toma seu herdeiro.
Pobre herdeiro mortal! Porque há a morte, essa que não posso negar para me igualar
a estas potências que são a projecção celeste da minha impotência.
Mas esta fé perturbante, reduzindo todos os antigos falsos deuses com poder à
ilusão da magia, não se podia estabelecer em grande escala junto dos povos, gregos
ou judeus, desde sempre submetidos aos deuses dos raios e dos exércitos.
0 judaísmo reformulado de Paulo restaura o poder do "Deus dos exércitos". Faz Jesus
dizer, depois de morto, o contrário de tudo o que
80
ao longo da vida dissera: faz dele um novo Deus todo-poderoso, que regressará "com
os anjos do seu podem (2 Te. 1, 7). Atribui ao carpinteiro dos humildes a coroa
real de David, desse condottiere de quem Samuel conta inúmeras traições e
crueldades (1 S. 16 a 2, 23). Faz de Jesus o mensageiro do "Deus dos exércitos", do
Deus que garantiu a vitória de Josué para exterminar os povos de Canaan. (Ac. 13,
19).
Foi assim com Joaquim de Flora, monge calabrês do século xii, que mostrou à
Humanidade a visão do que e o homem habitado por Deus, que proclamou o fim do Reino
do Pai e da Lei, do Filho confiscado pela Igreja, para assim chegar à plenitude do
Espírito anunciador de Jesus - Jesus sem propriedade, sem poder, sem Igreja. Depois
de Jesus, alguns homens ousaram viver a sua vida divina, mas sem acreditar no
recurso a promessas ou milagres. Habitados por Deus, ou seja, pelo sentimento de
tudo o que lhes falta, e, para colmatar esta falta, infinitamente responsáveis.
Esta fé é a mesma que fez o padre Chenu. afirmar: "0 meu Deus é um homem", e ao
pastor Bonhoeffer: "Ele não proclamou uma nova religião [ ... 1 Ele deu-nos o
exemplo de um homem totalmente livre, mesmo quando o vemos despojado de todo o
poder." Ele nunca limitou a nossa plena responsabilidade.
Como escreve Bonhoeffer, "Jesus propõe-nos uma nova maneira de viver sem esperar
por auxílio exterior, e de morrer sem troca ou promessa de outra vida." Escreve
ainda: "Ser cristão não significa ser religioso... significa ser homem." "Jesus não
apela a uma nova religião mas sim à vida." A uma vida totalmente responsável.
81
0 Deus de que falamos não é o da crença, mas sim o da fé. Muitas vezes é dificil
separá-los. Cada religião, ou seja, cada cultura, está mais ou menos ligada a uma
visão do mundo.
A fé, sem dúvida, por mais pura que se pretenda, não pode subsistir na atmosfera
rarefeita de um mundo sem imagens. Basta que tenha sempre presente que a crença, o
dogma ou o rito, as instituições e as hierarquias são provisórias e relativas; sem
o que, segundo a expressão de Paul Ricoeur, "a religião é uma alienação da fé."
0 sentido da palavra "Deus" não pode ser dado na conclusão de um silogismo que
demonstre a sua "existência", nem numa experiência particular, subjectiva. Ou é a
realidade total ou não é nada.
0 dificil não é apreender esta realidade total com o sentimento da nossa finitude,
mas sim entrever pelo menos a possibilidade, que só nos pode permitir transcender a
mesma finitude.
A história do Homem e a do cosmos são uma única e mesma aventura, que deve ser,
necessariamente, superada e libertada para ser vivida
- por paradoxal que pareça a expressão - como a história de Deus. Só então, através
deste compromisso total, na aventara total da explosão da vida, a "teologia"
deixará de ser uma carreira liberal.
E não são demais as experiências partilhadas de todos, a sua fecundação mútua, para
aproximar deste mistério a abrir sobre o infinito a sua finitude.
Não existe nenhum Deus "em si" sobre o qual possamos especular ou raciocinar, como
os que com conceitos fabricam novas ídolos: a Ideia do Bem, para além das outras
ideias, ou o Ser de todos os seres, ou o "imóvel motor"...
Podemos apenas tentar dizer o que é para nós Deus, a nossa relação com Deus. E, sem
poder falar d'Ele como falamos das coisas, podemos
84
ver n'Ele só o que um homem nos revela. Um homem de tal forma destituído de
qualquer desejo particular e de qualquer apego ao que lhe é próprio, propriedade,
que deixa transparecer, nos seus gestos e nas suas palavras, só as exigências do
todo da Humanidade, ao contrário dos individualismos, dos tribalismos e de todas as
suas variantes.
É o que se quer dizer ao afirmar que Deus se fez homem em Jesus, assim nos
mostrando todas as dimensões do Homem: a sua dimensão divina, ou seja, a sua
relação com Deus; a sua dimensão cósmica, sempre que, fora da armadura de pele que
o parece aprisionar, toda a natureza se toma corpo; a sua dimensão comunitária,
sempre que cada um se sente pessoalmente responsável pelo destino de todos os
outros.
Esta parábola, sem dúvida, dá-nos noção da interacção universal de todas as coisas,
da sua relatividade, da sua unidade não individual mas total, e do dinamismo sem
fim que a move.
No entanto, é ainda preciso que o Homem não se submeta a esta relação, mas antes a
deseje. A partícula humana não estende simplesmente as suas raízes pelo infinito
dos mundos - ela tem consciência deste facto. A sua relação com o Todo não faz dela
uma realidade individual mas sim uma pessoa, através da relação de diálogo amoroso
com tudo o que não for ela, mas que ela contenha e que a contenha a si.
Esta metáfora tem pelo menos o mérito de mostrar que o indivíduo (átomo) é apenas
uma abstracção. A pessoa é o contrário: uma partí-
85
cula, decerto, mas que nela traz tudo, que nela traz uma totalidade sem fronteira,
sem limite e sem a inércia do vazio.
A meditação sobre esta pessoa de Jesus, do homem na sua plenitude divina, é a única
teologia possível. Exclui todas as formas de "deísrno". Para além da teologia
escolástica, baseada na metafisica grega, da
A tradição cristã, contra toda a tradição grega ejudaica, diz que "Deus fez-se
homem". Para os hebreus, era impensável que Deus, de quem nem o nome ousavam
pronunciar, pudesse vestir roupagens humanas. Para os gregos, que partilhavam a
ideia de exterioridade e anterioridade de Deus, não se excluía no entanto a
hipótese de o seu Deus se mascarar de homem, mesmo que fosse só para se envolver em
aventuras terrenas.
A encamação cristã é outra coisa. Não é a máscara grega; também não é compatível
com a transcendência judaica do "totalmente outro": o Deus bíblico morreu em Jesus
com todos os antigos deuses. Como nas palavras vigorosas do padre Cardonnel: "Deus
morreu em Jesus Cristo." Deus fez-se Homem.
"Deus fez-se Homem para que o Homem se possa fazer Deus", como escreve Santo Irineu
e com ele toda a Patrística que assinala a rotura da continuidade que o termo do
judeo-cristianismo esconde.
86
Jesus nasceu judeu mas poderia ter nascido indiano ou negro, pois não se pode ser
Homem abstractamente, como numa espécie de extraterritorialidade espiritual em que
estaríamos no mundo sem nele assentar os pés.
Para que a mensagem conserve toda a sua universalidade será necessário separá-la da
expressão cultural que dava à fé fundamental a tradição judaica.
Desafia todas as leis e a própria Lei "em si" com todos os seus interditos.
A moral tradicional será igualmente posta em causa pela inversão de valores: "os
cobradores de impostos e as prostitutas hão-de entrar primeiro que vocês no Reino
de Deus" (Mt. 21, 3 1).
87
Nem a pedra nem a madeira nem o barro podem conter esta presença que, no entanto,
se manifesta no coração do homem habitado pela fé. Seria fácil multiplicar estes
exemplos de transgressão voluntária,
Mas seria tão falso fazer desta transgressão, da mera negação da religião judaica,
o objectivo de Jesus, e atribuir aos judeus a sua morte, como ver nele um judeu
exemplar, ou, sequer, um judeu.
Em todas as religiões, para dar conta do sentido da vida e das regras que permitern
a coesão da comunidade, o Homem definiu para si um horizonte projectando acima de
si próprio a imagem dos seus deuses. Estes representavam quer a ascenção ao nível
das virtudes humanas mais nobres quer uma força temível e invisível. Esta força,
mesmo condensada sob a forma de ídolo, era simultaneamente um estímulo e uma norma
de acção.
Detenhamo-nos num só exemplo e fiquemos pelo esquema mais simples deste imenso
poema do divino, nos primeiros livros sagrados hindus: os Vedas. Aqui Vichriou cria
o mundo e garante a sua conservação. Em cada época de desintegração, enviará à
terra um dos seus "avatares", encamação humana de um herói ou Deus que garante aos
Há, certamente, uma diferença inegável entre os ídolos dos povos vizinhos
fabricados pela mão humana e o irrepresentável Deus de Israel. Mas, como demonstra
o padre Pannikar, este Deus, verdade invisí-
vel e viva para os judeus, mantém com o seu povo as mesmas relações que os deuses
dos cananeus: esta analogia faz de Jeová um deus "ciumento" (Dt. 5, 9-6, 15) rival
dos outros deuses. Ainda que seja falso afirmar que o monoteísmo nasceu no povo
judeu. Este povo foi politeísta durante muito tempo: o próprio nome de Deus é um
plural (Elohim) durante séculos, já depois de o faraó egipto Akhériaton ter mandado
apagar o plural da palavra Deus do frontão de todos os templos, reconhecendo assim
um só Deus, senhor da vida, do sol, que todas as manhãs faz erguer homens e trigo.
0 salmo 104, por exemplo, é uma paráfrase, por vezes literal, do "Hino ao Sol", de
Akhénaton.
É o facto de receber, no seu Arco, onde é adorado sem imagem, os mesmos louvores e
implorações que Baal dos cananeus que deixa Jeová "ciumento". Não os nega, pede
apenas que não sejam honrados e que os hebreus, "povo eleito" por si, só a si
obedeça.
89
reis ou das autoridades terrenas. Os hebreus oram aos seus deuses tal
Com Paulo, contemporâneo de Jesus e redactor das Cartas quinze anos antes do
primeiro Sinóptico, o cristianismo passa a reclamar-se herdeiro do judaísmo e da
sua concepção da exterioridade do Deus dirigindo do céu as coisas humanas.
Pois o que seria ela para nós se, com uma concepção radical da transcendência de um
"totalmente outro" de algo que nos fosse totalmente estranho e sem semelhança
connosco, deixássemos de conseguir manter qualquer relação com aquilo que nos
supera, no sentido em que o sentido supera ofacto?
Este Deus, este apelo, só através da parábola nos pode ser apresentado, e só
metaforicamente o poderíamos evocar. Mas pelo menos
90
Certas obras de arte, graças ao seu poder de evocação do sentido, servem-nos como
rampas de lançamento para a nossa própria superação. 0 "ícone da Trindade", de
Roublev, ajuda-me, se não a conceber (pois trata-se de uma realidade irredutível ao
conceito e que a supera), pelo menos a viver e a pressentir que aquilo a que chamo
Deus (na linguagem tradicional) não é um "ser", nem mesmo uma "pessoa", mas sim uma
comunidade representada pelo três anjos debruçados no cálice da vida. Uma história
de amor entra neste jardim, e o pintor celebrante comunica-me a sua alegria.
Tal como o Moisés, de Miguel Ângelo, ou como um elmo baluba, com a sua cabeça
esférica, planetária, e os seus cornos, eternos evocadores da potência, uma máscara
africana guro, com os seus chifres de gazela enrolados à volta de um rosto humano,
não é urna "obra de arte", não é um espectáculo de museu, mas sim um condensador de
energia que a dança (executada com a máscara posta) irradia por toda a comunidade,
sou atravessado, como a máscara guro, pela presença de um campo de forças que me
faz Um com o Todo.
Toda a verdadeira criação é uma "teofania". Tal como um rosto humano. Do Tarjuman
al Ashouak (0 "Dito" da paixão), de lbn Arabi, à Divina Comédia, de Dante, o amor
de uma mulher é também o ícone que nos indica o caminho desse amor de manifestação
total a que chamamos, à falta de melhor termo, divino.
91
Este mito "divino" não é o maior na sua escala, não enquanto narrativa histórica,
mas como símbolo eterno e apelo ao questionar dos mais altos poderes, ao cortar as
amarras dos preconceitos e dos poderes, e à libertação do Homem de todas as
servidões.
Esta manipulação que tende a reduzir a mitologia criadora à história positiva é uma
caso particular de reversão do ícone ao ídolo.
Esta falsa história é retomada actualmente por uma televisão manipuladora de toda
uma clientela servil, constituída por crianças envelhecidas e velhos pueris.
Oferece a caixa de ressonância das suas ondas a uma juventude limitada a vociferar
"nãos" de recusa impotente, a políticos arcaicos, a vedetas de feira, a velhos
resmungando "sinis" de consentimento.
Quando o dinheiro começou a reinar nos centros urbanos comerciais, com o seu
cortejo de miséria, São Francisco de Assis escolheu a pobreza para passar da
religião fossilizada da Igreja feudal ao despertar da fé numa cidade de
comerciantes e indigentes.
93
0 vosso Deus não é Deus. Não é nada do que dele dizeis, afirmarão os pioneiros da
"teologia negativa" (apofática, dizem os teólogos). Nada disso!... Nada disso!...
(Neti.--- Neti..., na língua dos Upanixadas e de Çankara). "Nada disso!", grita São
João da Cruz, como noutros tempos gritou Lao Tse. Exprime este grito na humildade
do poema que não pretende conhecer ou definir Deus conceptualmente mas sim indicar
o caminho, "noite obscura" ou "subida ao Calvário", pelo qual o Homem se eleva à
divindade.
Estes arautos do Reino a criar são os pais dos Ghandi, dos Luther King, dos D.
Hélder, tal como dos Dostoievski e dos Pablo Neruda, de todos os militantes da
aventura indivisivelmente humana e divina, a das "teologias da libertação" da
América Latina, de Áffica e da Ásia.
0 Filho dá um rosto pessoal, humano, ao Deus sem imagem. Torna-se nosso irmão e com
ele ficamos "Filhos do Homem" e "Filhos de
94
Falava-se assim da morte e da vida na linguagem daquele tempo. Mas repetir estas
fórmulas nos nossos dias é dar uma falsa imagem da morte, da vida e da
ressurreição.
Por mais grandioso que seja, como foi na visão de Ezequiel (37,
1- 14), o milagre da ressurreição não é um espectáculo; não foi um acontecimento
único que poderia garantir uma esperança quanto ao nosso próprio destino no "fira
dos tempos".
Não é uma "imortalidade da alma", tal como a concebem os gregos por causa do seu
dualismo entre a alma e o corpo.
É o que se diz, igualmente, numa linguagem antiga, mas que exprime uma verdade
eterna: trata-se do anúncio, ainda mais grandioso no Alcorão (111, 42-28) do que no
Evangelho (Lc. 1, 26-38), do nascimento virginal de Jesus. Exprime esta mensagem de
vida: Jesus só pode
96
ter o Todo como pai, tal como cada um de nós, na verdade, fora da nossa criação
provisória enquanto indivíduos que nos restringe a uma linhagem, a uma tradição,
numa palavra, a uma particularidade, ainda que colectiva.
Dizer que Jesus nasceu de uma Virgem e que Deus insuflou nele o seu espírito, é
reconhecer-lhe uma presença mais forte que a de cada um de nós, precisamente porque
extravasa a nossa vida individual. (Dizer isto é, também, destruir a inverosímil
ascendência davidiana.)
Com um Pai particular, Jesus poderia ter sido um herói, um mártir, um santo, mas
não poderia ter sido esta força, esta presença do Todo revelada por um homem
"vazio" de si próprio, sem quaisquer posses ou particularidades individuais ou
tribais. Esta força (os teólogos dirão esta "graça") é um dom gratuito mas apenas
para aqueles que, a exemplo de Jesus, tenham operado esta kénose, o esvaziar de si
próprio de tudo o que nos pertence para poder dar lugar ao Todo, para o acolher e
ter consciência de apenas ser, enquanto indivíduo, uma eférnera centelha do
braseiro eterno a que regressaremos depois de viver um instante na ilusão de dele
estarmos afastados.
É também por este meio que superamos as imagens ingenuas da criação sugeridas pela
arte do oleiro ou o poder do faraó.
97
A criação, palavra ingénua, irapia, linguagem do Homem que mede tudo à sua medida e
concede ao seu Deus o irrisório decreto dos príncipes: sê! A transcendência vivida
é justamente o contrário desta suficiência
Ignorâncias fecundas, no entanto, quando são também consciência dos nossos limites.
Quando surgem, depois de todos os esforços técnicos e científicos, chamando a
atenção para questões a que não podem responder as nossas técnicas, as nossas
ciências ou as nossas metafisícas.
98
0 dinamismo divino não é mais separável do Homem do que o são os dois pólos de um
íman. Se assim não for, regressaremos aos dualismos da alma e do corpo, de Deus e
do Homem.
advaita dos vedas (esta forma da relação do homem com Deus) evita assim quaisquer
antropomorfismos e panteísmos. A realidade mais profunda do meu ser (atman) é o
brahma, a realidade profunda, absoluta, de todas as coisas: "Tu és isto."
A Trindade cristã, plenamente vivida, implica três formas da relação com Deus:
, A do Pai, que é o silêncio de Deus, pois não posso falar de um Deus "em si" mas
só daquilo que nos revela o Filho, Jesus, que nós podemos conhecer, ou seja, amar.
99
100
Esta unidade profunda, unidade entre a energia divina e a dos homens, pressentiram-
na os Padres do Oriente de forma maravilhosa: "Se nos conhecermos a nós próprios
conhecemos Deus e, conhecendo Deus, tornamo-nos Deus9", escreveu, com ousadia, São
Gregório de Alexandria (t 215) (Pedagogo, 11, 15). E São Gregório de Nazianzo (329-
390): "Veio fazer-nos perfeitamente unos em Cristo, no Cristo que veio a nós
perfeitamente, para pôr em nós tudo aquilo que é" (Discurso, Vii). São João
Crisóstomo (344-407), com o mesmo espírito com que o Alcorão falará do homem: "A
quantos anjos, a quantos arcanjos, não é o homem igual?" (VII Romilia Sobre São
Paulo).
É sobre esta "graça" que Martin Buber escreve: "É o nome religioso da liberdade."
Ou seja, retomando a "parábola dos fisicos":
- a tomada de consciência de que as nossas origens estão nos confins de um mundo
sem fim;
- que o centro de mim mesmo coincide com o centro de todas as coisas, centro que
está por todo o lado.
101
A arte não é apenas a linguagem do sagrado que se tomou necessária perante a nossa
impossibilidade de encerrar Deus em conceitos, ou seja, de "deduzir" o sentido a
partir dofacto.
103
Este "trabalho" é aquele que os Padres da Igreja definem: Deus fez-se homem em
Jesus, para que o homem se possa tomar Deus. Mas "fazer-se Deus", à maneira de
Jesus, não é dominar, é servir. Deus só está connosco, e em nós, como fez com
Jesus, quando nós somos como Jesus: para os outros. É esta a mensagem de todas as
sabedorias e de todas as místicas do mundo. Na parábola do grande místico persa
Attar, "A linguagem dos pássaros", quando os pássaros decidem dar-se um Deus,
partem à sua procura, sofrem os piores tormentos e travam os piores combates: "Se
te contentas com o reino deste mundo, perderás
104
Só trinta pássaros (em persa "trinta" diz-se "si morg" e este é também o nome de
Deus: Symorg) chegaram ao último vale. Olhando para o espelho de um lago, só se
viram a si, trinta pássaros. E assim conheceram o seu rei invisível: o rei do seu
amor e do seu sacríficio que era a própria vida desse deus oculto. "Só agistes pela
minha acção, dizlhes Symorg, e deste modo compreendestes o meu ser e as suas
perfeições." Os pássaros acabaram por se diluir para sempre no Symorg; a sombra
perdeu-se no Sol.
Esta parábola muçulmana do "Deus está em tudo e tudo está n'Ele" é a mesma de todos
os amantes de Deus. Do Deus único que, nas sabedorias e religiões em qualquer
linguagem, é força de manifestação da vida total na sua unidade. É assim, como
"força" e não como "ser" que Deus é vivido nas religiões tradicionais de Áffica ou
no Popol Vuh, o livro sagrado dos índios americanos, onde se desfazem homens feitos
de argila, onde apodrecem homens feitos de madeira, até aparecer o "homem de
milho", herdeiro da vida e da terra e dos seus eternos deuses da vida.
Foi esta a contribuição específica da Arte na obra divina do homem: mostrar como o
homem se pode tomar humano.
105
0 nosso ensino consome-se nas querelas arcaicas entre sector público e sector
privado, enquanto ambos se submetem cada vez mais às exigências de uma formação
flincional voltada para as actividades de uma sociedade de produção e consumo, e
fecham-se no etnocentrismo ocidental, rejeitando as sabedorias e religiões de
outros mundos, o primeiro em nome do laicismo, o segundo em nome do estatuto
excepcional do cristianismo.
0 essencial é não confundir esta imagem com a História, mas, também, não a opor a
ela, com o pretexto de que esta imagem ou esta narrativa mitológica não podem ser
"verificadas" através de comparações com a história de outros povos ou com
vestígios arqueológicos.
Existem ruínas da cidade de Tróia, mas a narrativa do cerco e das suas batalhas,
assim como a figura heróica e profundamente humana de Heitor, são obra do
imaginário criador dos povos, e de
106
um ou de vários fabulosos poetas que dele fizeram a Mada, tal como Ésquilo criou o
grandioso mito de Antígona, do auto-sacrifício exemplar, contra todas as tiranias,
em nome das "leis não escritas" da consciência.
Estas imagens "míticas" têm inspirado os actos mais elevados e belos da Humanidade.
0 amor que Khrisna inspira ou o modelo da cavalaria espiritual que Rama apresenta,
dois avatars do deus indiano Vichriu, não precisam de sair da lenda ou do poema
para se inscreverem na verdadeira história dos homens, inspirando, durante
milénios, a acção dos melhores de entre eles, como Gliandi.
107
Toda a Arte é sagrada, porque em qualquer religião dizer "Deus" é dizer "A vida tem
um sentido."
Não é um sentido escrito antes de nós e sem nós. Mas sim a exigência de procurar,
contra todos os riscos, esse sentido. Toda a verdadeira Arte nos impele a
questionar o sentido da vida e nos projecta novas possibilidades.
A Arte não é uma forma de escrever, de pintar ou de dançar; é, acima de tudo, uma
forma de existir.
Os homens "devem" ser pintados "tal como devem sem, ou "tal como são", implacáveis
vias da crítica "clássica" que se tomou "acadêmica".
0 século XIX é revolucionário no sentido profundo em que com ele se afirmam novas
formas de existir.
108
Esta contra-revolução restaura a ideia de uma ordem eterna, já não das religiões e
metafisicas tradicionais mas de uma ciência que impoe factos duros e as leis que os
ordenam. "0 mundo existe sem ti. É assim, Tu não podes nada." Este postulado
positivista do statu quo é tão opressor como as antigas interdições de atingir a
ordem desejada por Deus ou os decretos da Providência.
Mudar o mundo, não a sua própria vida. Mas uma coisa implica a outra.
Ser poeta, na vida tal como na escrita, é participar na criação contínua do mundo
pela nossa vida transformada em poema.
Cada obra de arte lê-se como um rosto que toma fisicamente visível o invisível do
sentido. Da dança à pintura, da música ao cinema, do teatro ao romance, a Arte é
expressão da vida dos outros, não o seu reflexo mas o sentido que deram a essa
vida, os projectos possíveis em todas as eras da Humanidade.
110
Só as artes, mesmo que seja através dos seus vestígios mutilados, nos permitirão
reviver as formas de existência cujo projecto encarriavam, só as artes nos
permitirão viver, através da sua presença em nós, se as soubermos ler, a verdadeira
História da Humanidade: a história das possibilidades humanas.
Quais são então estas "possibilidades" e que significa saber lê-Ias? Até mesmo
genéros artísticos mortos nos ajudam a reviver: o homem da epopeia é aquele a que
os biólogos chamariam um "mutante" - é habitado por um futuro ainda não definido.
Anuncia uma forma de vida de que só mais tarde filósofos e moralistas descobrirão
as leis. Mais tarde, ou seja, quando a sua forma de vida tiver "deixado de ser a
tentativa de um só homem para se encamar nas massas humanas", escreve Aragon na
Semaine Saínte.
0 momento em que o homem procura um sentido no caos do mundo, e que, por exemplo na
Renascença, com o derrube de todos os antigos valores, deu à luz Shakespeare e
Cervantes, continuam a emocionar as massas que têm encontrado ali as mesmas
angústias do seu tempo. Estas obras, no entanto, estão firmemente implantadas na
sua época: Cervantes escreve um século depois da abertura de um Novo Mundo. É
soldado na cruzada de Lepanto contra os turcos. Intendente da preparação da Armada
Invencível, viu naufragar o destino da Espanha.
111
1605: "Sei quem sou", responde D. Quixote (1, 5), igualmente vencido, também ele no
máximo da sua tristeza. Mas habitado pelo projecto louco de dar a si um sentido.
Martha Graham dizia que a dança deve transmitir na sua linguagem aquilo que Miguel
Ângelo ou Shakespeare transmitiram na deles. A dança é a síntese de todas as artes,
porque todas as artes requerem a participação do homem total.
Não se "Iê" uma pintura, uma escultura, uma música ou um monumento como se lê um
tratado de matemática ou de gestão, só com a inteligência. Porque "compreender" uma
obra de Arte não é uma simples questão de pensamento. Este acto implica a
participação da totalidade do homem e principalmente do seu corpo.
Um escravo agrilhoado de Miguel Ângelo irradia a sua força e o seu esforço pelo
espaço à volta. Não leio esta obra como um manual de anatomia. 0 meu corpo é
captado por este campo de energia, e eu experimento, sem mediação intelectual, no
meu torso, nos meus braços, nas minhas coxas, as suas tensões e vibrações. As
linhas de força apoderam-se das fibras da minha carne como se fosse minha obrigação
libertá-lo.
para o eliminar mas para o ordenar numa unidade mais harmoniosa e serena. Como um
yoga em meditação, só regressaria do nada para rever o rosto anterior ao meu
nascimento. Recomeçar um vida depois de um nascimento purificado.
0 percurso de uma obra "sagrada" leva-me para lá de mim, para me tomar consciente
de uma realidade que me supera e à qual pertenço, num movimento que é, igualmente,
"em mim" sem ser "meu". Tomo-me uno com o Todo, o Todo vive em mim.
No silêncio, mesmo paradoxo, murmura esse diálogo com as abóbadas de que nasceu o
canto gregoriano.
Não é por se destinar a um culto que a Arte é sagrada, tal como o não são inúmeras
pinturas só por que tratam de temas "religiosos". A Arte é sagrada quando não me
deixa intacto, quando mefazpar-
ticipar numa vida maior A igreja de Ativers ainda existe, e passamos-lhe em frente
como passamos por qualquer edificio banal. Mas, transfigurada por Van Gogli, a
igreja faz-nos reviver uma agonia e uma ressurreição. As paredes de pedra cinzenta
e os tectos de tijolo são agora carne e sangue, sob um arrebatador céu azul,
tórrido e ensombrado por serpentes de cor. Os meus músculos enrijam para resistir a
tamanho esmagamento, são percorridos por todas as curvas destas paredes gementes,
destas telhas em sangue, e o arco escorado ao solo resis-
113
tindo à tortura dos caminhos reptilíneos que já o esmagam e ao peso do céu. Todo eu
participo neste esforço para uma vitória impossível.
Nelas, o espírito ganha corpo. No corpo do bailarino ergue-se um outro eu, maior,
já não limitado pelas fronteiras da sua propria pele ou da minha, mas que invade o
espaço dando-lhe um sentido, aludindo à sua imensidão ou à sua asfixia: Martha
Graham, em Frontiers, faz-nos experimentar fisicamente o infinito das grandes
planícies americanas e a aventura humana que evocam.
A Arte é o caminho mais curto entre dois homens. Através da dança, o movimento
significante de um corpo induz directamente ao esboço desse movimento noutro corpo
e, com este movimento, do sentido que o anima. A dança cria assim uma comunidade,
não de "espectadores", mas de celebrantes. Porque a participação de uma comunidade
numa significação comum, numa interrogação comum, cria uma comunicação que é algo
mais do que o conjunto de indivíduos que a compõem. Esta superação está na base do
sagrado.
É esta comunhão com o outro e com o apelo ao todo outro, ao para além de si mesmo,
que ela suscita que, em todas as grandes civilizações e no seu apogeu, fez da dança
uma linguagem do sagrado. 0 que há de sagrado na dança não é a pretensão de
ilustrar a liturgia desta ou daquela crença, é sim a exigência de totalidade do
homem, corpo e espírito. É também o poder de se subtrair aos gestos quotidianos
utilitários ou protocolares, pré-fabricados pelos constrangimentos das máquinas ou
da tradição.
114
É esta, nas artes, a experiência de base da transcendência, que permite, mesmo aos
que a não partilham, compreender o nascimento das projecções divinas no coração dos
homens.
As artes são sagradas porque são o contrário da história já feita, da história do
passado. São a história enquanto se faz, a história do futuro, e não a história de
dominações, impérios, generais, déspotas, negócios e guerras, de tudo o que
preencheu o tempo ilusório das derrotas humanas, de tudo o que tentou destruir a
eternidade viva.
Júlio César não representa nada na minha vida. Só existe nos manuais escolares. Tal
como Ranisés 11 só existe nas verdadeiras "bandas desenhadas" em baixo-relevo, em
Kamak, relatando os massacres que cometeu. São o negativo da história, da falsa
história, cada vez mais destruidora em função do "progresso" graças à eficácia das
armas, militares, económicas ou mediáticas.
Os músicos dez vezes milenários que em tempos prenderam o sopro do vento em canas
quebradas para fazer uma flauta, ou o lamento do trigo curvando-se num qualquer
Agosto para fazer uma harpa, não são nem novos nem velhos demais para despertar os
nossos amores, a nossa fé, as nossas angústias ou os nossos entusiasmos.
115
A Arte está no centro desta vida "poética", criadora e amorosa fora do tempo
linear, ilusório e agressivo.
0 comércio e o dinheiro incitam a isto. Nesta nova religião que não ousa dizer o
seu nome, o monoteísmo do mercado, tudo incentiva o artista, pintor, músico ou
bailarino, a apresentar sempre mercadorias inéditas porque se vendem melhor nas
galerias de pintura, na televisão ou aos empresários de espectáculos, da canção ou
dança, numa palavra, no "mercado da arte".
Rimbaud abrira aos artistas as portas da fortaleza positivista; dela saíram mais
evadidos do que homens livres.
116
Um romance que não nos ajude a tomar consciência da realidade profunda é um romance
trivial.
Porque o romance é uma arte do tempo, tal como a música. E só há tempo verdadeiro,
História especificamente humana, quando emerge nas nossas vidas algo de
radicalmente novo, em rotura com o passado.
0 tempo do romance não é o do calendário, dos relógios, dos astrónomos, em que o
futuro nada mais é que o prolongamento do passado e do presente. 0 tempo do romance
é o da criação. Não da criação do escritor, mas da criação continuada de um homem
por um homem.
A causa profunda do retrocesso é o facto de, durante este século o mesmo das duas
guerras convulsivas do Ocidente -, a visão positivista ter manifestado as suas
consequências fatais.
As ciências e técnicas dos nossos dias deram-nos este poder: um niffismo à escala
da espécie. Um suicídio planetário já programado em computador.
Uma razão que não se interroga sobre os seus fins aproxima-se do irracional.
A vida não é esta vida falsa e mesquinha, acumulação de coisas e de movimentos que
são a malha do tempo e nos afastam da vida total.
0 tempo urdido por tudo o que se pode programar: o relógio de ponto, na empresa; a
calculadora, para o supermercado; a programação do video; a data adequada para
trocar de carro; em poucas palavras, a lista daquilo que compõe a trama do tempo. 0
que constitui a sua grelha: todas as imagens da vida que a televisão me impede de
ver; todos os perfumes de húmus ou de mar que o petróleo ou o tabaco me impedem de
cheirar; todo o murmurar dos ventos e das pessoas que me rodeiam, e talvez a sua
alegria ao falar, de que me separa o walkman das multidões solitárias, fechando-me
na sua gaiola sonora com a dança de São Guido do ritmo binário que se impõe aos
meus pés e ao estalar dos meus dedos.
Eis-nos então "ligados"', ligados à mais falsa das vidas, robots telecomandados
ligados à gaiola do tempo.
Viver a vida das artes, do seu desapego ao caos, cria um novo olhar: o olhar que
não se prende com o parcial mas que nele descobre o todo e o futuro que indica.
Qualquer ser finito (e só há seres finitos através do corte mecânico do real com a
serra de conceitos e palavras) é testemunho e sinal daquilo que o supera, é um
indicador de transcendência.
Juan Gris, o mais inovador dos nossos pintores, inventor do cubismo, com Braque e
Picasso, dizia: "A força de um verdadeiro cria-
118
dor exige-lhe que meça a grandeza do passado que em si carrega antes de o superar."
Não apelava a um regresso ao passado; apelava, pelo contrário, à sua superação, na
condição de não o ignorar.
É esta a missão da dança, síntese das artes: a máscara africana, sob a qual se
executa a dança, é um acumulador de energia, reunindo as forças dispersas da
natureza, dos antepassados, dos deuses, dos vivos e dos mortos, para as irradiar
pela comunidade e criar núcleos de realidade e de energia mais densos.
É esta a missão universal de todas as artes: despertar no homem o Deus que carrega.
Num mundo físico que tende, imparável, à desintegração, e numa epopeia humana que,
na actual decadência em que o Ocidente parece deixar-se ir pela corrente da
entropia, as artes, e a dança sua síntese, são um esforço de reelevação do
Universo, um núcleo de resistência ao não-sentido para anunciar uma ordem da vida
mais rica. Para exaltar as suas forças ascendentes: o trabalho, o amor, a revolta
contra o não-sentido, a beleza e a fé.
119
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sowsi;)I!Iod so sopol op a opleo -.iaw op, owslalouotu op o ? ;)nb luolpui owsloju
op, 'slUloos Sao- 5ula-i su supol wa 'qjunlij olod upusnuo opunw op o0vi2olulsop
junjou V
ovsfl,IDNOD
ros para a escravidão"; "Deus dos exércitos", o Deus de Josué e de David, que apela
ao herem, aos extermínios sagrados.
No outro lado do mundo, o Oriente, cujo extremo se proclama "o país do Sol
nascente".
Neste "crescente fértil" das terras e das almas onde se conjugam a confluência e o
confronto entre Oriente e Ocidente acendeu-se a centelha. A centelha divina da
unidade viva dos mundos, Oriente, Ocidente,
Podia começar a epopeia humana. Mas, também ela, só se elevou de "queda em queda".
Os deuses ciumentos das antigas lendas, com Paulo, depressa substituíram Jesus no
direito comum dos antigos deuses de potência, com
122
as suas "guerras santas", cruzadas e inquisições, com as suas "santas alianças" com
todos os Mammons.
A fé não deixou de precisar do "rio de fogo" (Feuerbach) que nos protege contra a
tentação de projectar num Deus, ou em deuses, as vontades de poder dos homens; o
"rio de fogo" que Marx e Nietzsche nos incitaram a ultrapassar para levar a fé para
além das alienações "religiosas".
"Morre e transforma-te." Porque o Uno e o Todo, que temos de reencontrar para que o
homem se torne o Deus anunciado pelos Padres de Capadócia, identificam-se com a
unidade e totalidade da vida na incessante criação do novo. 0 Oriente apela a
descobrir no Uno e no Todo que são a nossa verdadeira realidade o acto que
constitui o nosso ser.
Lembre-se o Ocidente de que não há nenhum "fim da história", que o homem é um Deus
em flon
123
-- - r" -4 -, -, i . e- i , K
ANEXOS
IF ,4 F
Para Aristóteles, o movimento não é mudança de lugar mas sim passagem do possível
ao real, operada pelo crescimento das coisas ou dos seres vivos que lhes permite
atingir o seu pleno desenvolvimento. Também aqui, não se podendo explicar esssa
"evolução", dá-se-lhe um nome: um "motor imóvel" chamando cada coisa à sua
perfeição. Tal como antes, à falta de explicação para a causa primeira, se lhe dava
um nome, aqui, não podendo dar conta do fim último, dá-se-lhe um nome: esse desejo
que move os "seres" para a sua perfeição chamar-se-á "motor imóvel", "pensamento do
pensamento" e, na teologia cristã,
' Na Répública e no Teteto, definiu Deus identificando-o ao Bem, uma pura questão
de escolha de palavras e de substituição de um pelo outro: Deus Bem.
127
que adoptou este racionalismo puramento verbal, Deus. Este será o argumento de
finalidade, baptizado de "argumento teleológico".
Tudo começa, como para os gregos, por uma definição: Deus, diz Santo Anselmo, é "o
ser do qual é impossível pensar que exista algo de maior" (id quo majus cogitari
non potest). É, segundo Santo Anselmo, um conceito irrecusável: "Mesmo o pobre de
espírito que, no seu coração, diz 'Deus não existe' tem, para 0 negar, uma ideia de
Deus."
Esta ginástica verbal esconde, para lá das palavras e do papel, uma experiência
real: a das nossas ignorancias e dependências. Não podemos responder às questões da
nossas origens primeiras, nem às dos nossos fins últimos. Temos consciência de não
sermos os nossos próprios criadores, de pertencer a um Todo maior que nós próprios.
A angústia das três questões vitais, "De onde vimos?", "Para onde vamos?", "Quem
somos?", não será apaziaguada com os disfarces e o palavreado de pretensos
"argumentos" ou "provas" de algo que, na realidade, requer um acto defé. Um acto de
fé no verdadeiro sentido do termo. Um acto, dado que se trata do compromisso de uma
vida inteira. E um acto de fé, já que se trata de uma decisão responsável, que não
se baseia em nenhuma sequência de factos nem em nenhum
128
129
4 i
I I
"I I LA
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Num primeira época, até 1965, criar um "existencialísmo cristão" foi a tendência
dominante.
Dois grandes teólogos protestantes desta geração, Rudolf BuItmann e Paul Tillich,
incorporam o existencialismo nas suas teologias.
131
. 1
Estes são apenas alguns exemplos, dos mais eminentes, da tendência para falar do
Homem na sua subjectividade, independentemente das condições históricas, sociais e
políticas que o rodeiam.
Não menos significativo é o facto de eles e os seus discípulos se terem tomado nos
principais companheiros católicos dos "diálogos cristãos-marxistas" organizados na
Europa conjuntamente pelo Centro de Estudos e Investigações Marxistas (CERM), que
eu tinha fundado em
1962, e pela PaulusgeseUschafi, dirigida na Áustria pelo padre KelIner.
0 cardeal Koenig, nomeado pelo Concílio para presidente da Comissão para os Não-
Crentes, considera estes encontros desejáveis e encoraja-os.
132
A grande viragem teológica dá-se em 1965 e 1966; entretanto, o Vaticano 11, que
constitui o marco fundamental desta viragem, acabava.
1966 é o ano da Conferência Mundial do Conselho Ecuinénico das Igrejas, realizado
em Genebra, em Julho, sob o tema "Igreja e sociedade". No texto final, as Igrejas
protestante e ortodoxa abrem um grande espaço à reflexão teológica sobre as suas
relações com a sociedade.
0 terreno tinha sido preparado por uma série de controvérsias, no Quartier Latin,
entre existencialistas e marxistas, controvérsias que tiveram o seu apogeu nos
confrontos da Mutualité: todas as salas e a rua tinham altifalantes para acolher
6000 estudantes, no dia 7 de Dezembro de 196 1. Sartre estava com Jean Hyppolite,
director da École Normale Supérieure e eu, com o fisico Jean-René Vigier, do
Instituto Henri Poincaré. 0 debate foi publicado logo na altura pelas Edições Plon
e representou, para a juventude, o começo da substituição do existencialismo pelo
marxismo.
0 terreno tinha sido preparado pelas discussões entre marxistas e cristãos sobre a
obra do padre Teilhard de Chardin. Em 1959, o meu livro Perspectives de Vhomme,
(sobre existencialismo, pensamento católico, marxismo), reconhece no padre Teilhard
de Chardin um mestre da esperança.
No seu esforço, enquanto sábio e padre, para "captar as forças vivas da nossa
época", fossem elas as ciências ou a construção do futuro, e para integrar numa
visão dinâmica e optimista do mundo o sentido do evolutivo, desde a formação da
terra e da evolução biológica aos esfor-
133
ços dos homens para construir o futuro, a visão do mundo do padre Teilhard de
Chardín permite abrir o debate fundamental com os marxistas: o debate sobre a
transcendência do futuro. Eu subscreveria a homenagem a Teilhard de Chardin. feita
pelo padre Lubac: "Tocou aos vivos; mais: suscitou a própria vida".
"Estabelece o terreno para um diálogo fecundo... porque esse diálogo não está
viciado à partida por preocupações próprias do conservadorismo social ou por
desconfianças em relação à ciência e à alegria de viver" (Perspectives de Vhomme,
1959)
0 primeiro grande debate aconteceu em Paris, perante 3000 pessoas, entre seis
filósofos, três dos quais católicos e três marxistas, a partir da obra de Teilhard,
e foi publicado sob o título Morale crélienne e morale marxÍstCI.
134
No mesmo ano, Johann Baptiste Metz elabora na Alemanha a sua Théologie politique.
Éditions du Cerf.
135
Em 1970, tem lugar, em Assis, na Itália, um encontro entre o padre Balducci, prior
da abadia de Fiesole, o teólogo espanhol Gonzalez Ruiz, o teólogo francês Bernard
Besret e Roger Garaudy, que será posteriormente publicado em França e Itália sob o
título: Un Pisque appelépPIére.
0 principal resultado destes debates está numa nova orientação, tanto dos
interlocutores marxistas como dos interlocutores cristãos. Os marxistas, nestes
debates com os teólogos cristãos, foram levados a investigações sobre "as dimensões
perdidas" do Homem.
11 Barcelona, 1970.
136
Entre os teólogos da libertação, a obra do teólogo Ruben Alvez converge com a dos
seus homólogos católicos. Na Europa, o pastor Jürgen Moltmann, o grande teólogo da
esperança, efectua investigações críticas no mesmo espírito do católico J.-B. Metz,
na sua teologia política.
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Senti, em todas as discussões sobre o meu livro, o incómodo provocado pela tese de
Será que precisamos de Deus?: "0 Cristo de Paulo não é Jesus. 0 Deus de Paulo não é
o Deus de Jesus: ao contrário da mensagem libertadora de Jesus, Paulo forneceu os
fundamentos teóricos de toda a teologia da dominação. Não é desta teologia nem
deste Deus que precisamos."
Esta irritação de muitos dos meus leitores, cuja boa fé (e, a alguns, a competência
como exegetas) reconhecia, irritação nem sempre revelada publicamente, conduziu-me
a reflectir mais profundamente sobre a questão apresentada nesse livro.
Esta anterioridade de Paulo tornava evidente que ele não era o comentador dos
testemunhos da vida de Jesus, mas sim, graças ao seu
139
Para ler Mateus, Marcos e Lucas, baseei-me na erudita Sinopse, dos padres Benoit e
Boismard, da Escola Bíblica de Jerusalém. Depois disto, li e reli as Cartas de
Paulo de forma "ingénua", ou seja, abstraindo-me das milhentas exegeses destes
textos, abstendo-me mesmo de consultar os especialistas (pelo menos numa primeira
fase - a da leitura).
Este esforço para estudar os textos com "novos olhos", ou, pelo menos, sem prestar
atenção, nas entrelinhas, a vinte séculos de glosas, alterou todas as minhas
anteriores convicções.
1.' Porque é que Paulo nunca cita as palavras ou as acções de Jesus? Teriam estas
pouca importância para os cristãos?'
Se, efectivamente, nas Cartas não se encontra nada sobre as palavras, os actos e a
própria vida de Jesus, como se ele não existisse antes da sua morte e ressurreição,
encontramos, pelo contrário, mais de 200 citações do Novo Testamento que permitem
reconstituir a imagem de um Messias (Cristo).
2A única excepção aparente será a evocação da última Ceia, na primeira Carta aos
Coríntios (11, 23-29). É estranho que Paulo - que não esteve lá pessoalmente - não
indica quem foram as testemunhas. Pelo contrário, pretende que "recebeu do Senhor"
esta narrativa (11,23). Ora, em nenhuma das aparições a que diz ter assistido
acontece algo que aluda a semelhante comunicação. 0 que Paulo conta nesta passagem
não é a narrativa da celebração da Páscoa, tal como a viveram os participantes, mas
a sua própria concepção da Eucaristia como instituição da "nova aliança", decalcada
dos modelos do Antigo Testamento. A sua narrativa é, de facto, um puzzle de
citações. "Este cálice é a nova aliança" (11,25), à maneira de Moisés, evocando o
"sangue da Aliança" (Ex. 24,28) de Jeremias (31,31). Invoca uma "nova aliança" de
Isaías quando profetizou o "festim para todos os tempos" (Is. 25,6). Apenas Lucas,
o discípulo mais próximo de Paulo e seu colaborador, relaciona esta cerimônia com a
tradição da refeição pascal de Israel ffit. 16,1-8), quando fala de "aliança nova"
(U. 22,19), enquanto nem Mateus (26,26-29) nem Marcos (14,22-5) evocam qualquer
aliança nova. Lucas dá-nos, aliás, a chave da interpretação desta passagem, ao
lembrar que tudo aconteceu segundo "o caminho que lhe foi traçado por Deus" (U.
22,22), sublinhando, de novo, como nota a TOB, a "ideia, judaica das Escrituras que
estão por cumprir" (p. 270, n. 1).
Assim, neste caso como noutros, Paulo não nos transmite a correcta palavra de
Jesus.
140
Jesus não trará nada de novo em relação ao Antigo Testamento? Será apenas um actor
obediente, que representa um papel escrito antes dele? Não se esconde desta forma a
fractura radical introduzida por Jesus na história dos homens e dos deuses?
2.' Se Paulo, depois da perturbante aparição que sofreu, queria realmente divulgar
a mensagem de Jesus, porque esperou três anos para se informar sobre a vida dos que
a testemunharam?
"Passados três anos, fui a Jerusalém para me encontrar com Pedro... E não vi nenhum
outro apóstolo a não ser Tiago, o iri-não do Senhor" (GI. 1,18-19). Justifica este
episódio pelo privilégio especial que teria recebido, dispensando-o assim de evocar
um Jesus vivo, que falasse e agisse: "A Boa Nova que eu vos anunciei não é de
origem humana. Não a recebi nem a aprendi de qualquer pessoa, mas foi Jesus Cristo
que ma deu a conhecer." (GI. 1, 11- 12).
Os discípulos directos eram homens; Paulo não procura informar-se junto deles. E
Jesus não era também um homem? É verdade que no Evangelho de Paulo ("o meu
Evangelho", Rin. 2,16) Cristo não aparece como homem, mas como um Deus, com os
atributos do poder.
É estranho que Paulo nunca fale da obra apostólica das testemunhas, a não ser para
evocar os diferendos com elas. Está de tal maneira certo de ser o verdadeiro
depositário da mensagem que só volta a Jerusalém depois de catorze anos de missão.
"Catorze anos mais tarde voltei a Jerusalém" (GI. 2, 1). E é para lhes dar um
lição: "Expliquei-lhe a Boa Nova que anuncio aos não-judeus" (GI. 2,2) e "vi que
não estavam a comportar-se como deviam em relação à verdade da Boa Nova" (GI.
2,14).
Critica fortemente São Pedro: "Resisti-lhe frente a frente, porque merecia ser
repreendido" (GI .2,11). A reprimenda que
141
fez a Pedro é oportunista: vivendo em Jerusalém num meio judeu, Pedro toma as
refeições com os judeus. Segundo Paulo tudo acaba com um compromisso; "Deus tinha-
me encarregado de anunciar a Boa Nova aos não-judeus tal como tinha encarregado
Pedro de anunciar a Boa Nova aos judeus." (GI. 2, 7-9).
Neste último caso não teria havido, de facto, qualquer fractura na História: o Deus
tradicional das dominações teria enviado à Terra um substituto seu para restaurar a
antiga ordem das hierarquias e das obediências, depois de todas as peripécias
impostas pela desordem.
1 Lembremos que Crísto não é um nome próprio, mas o de uma fimção. É a tradução
grega do termo tradicional "messias", do messias de Israel, o único que interessa a
Paulo, urna vez que este messias é a conclusão da história judaica.
142
Mesmo que se reconheça como último daqueles a quem Jesus se manifestou, como o
"mais pequeno" e como um "aborto" (1 Co. 15,
8 e 9) entre os apóstolos, não deixa de acrescentar: "Trabalhei mais do que todos
os apóstolos, ainda que não fosse eu propriamente a fazê-lo, mas sim toda a força
que Deus me concedia" (1 Co. 15, 10). Porque conheceu o Cristo não na sua vida
histórica mas depois da glória da sua ressurreição para receber a investídura.
Conheceu-o então melhor do que ninguém: "pelo espírito", e não "pela came", e por
comunicação directa-
Evoca o dia em que "quando assim o quis, Deus deu-me a conhecer o Seu filho" (GI.
1, 15-17). É a aparição do Ressuscitado e não o facto de o ter conhecido
historicamente que fundamenta o seu apostolado: "Assim, de agora em diante, já não
quero julgar ninguém por critérios humanos. Ainda que noutro tempo tenha pensado
assim sobre Cristo, agora já não o faço" (2 Co. 5, 16).
3.' Porque é que nunca fala da Virgem Maria e se contenta em dizer que o Cristo
nasceu de uma "mulher" (GI. 4, 4), como se a virgindade de Maria (e, portanto, o
carácter sobrenatural deste nascimento) perturbasse a inserção histórica de Jesus
na linhagem de David? Esta "mulher" teria assim tão pouca importância para os
católicos para que se perdoe a Paulo ter só visto nela a portadora do herdeiro de
David e não a portadora do Espírito de Deus?
4.' Este facto não alterará perigosamente a concepção nova do Reino anunciada por
Jesus, aquele que está dentro de nós e que já o está porque as palavras, as acções,
a vida de Jesus inauguraram a sua presença na vida dos homens?
143
Será este o Reino anunciado por Jesus, em que se entra pela renúncia e não pela
conquista?
Com a leitura das Cartas, este compromisso parece ter deixado de ser cumprido.
0 Jesus das testemunhas anuncia o Evangelho aos pobres (Mt. 11, 5; Lc. 4, 18).
Paulo, cuja teologia sistemática (a Carta aos Romanos) não contém sequer a palavra
"pobre", pede apenas aos ricos donativos de auxílio (2 Con 9, 1), acrescentando:
"não vos digo que vão fazer bem a outros, ficando vocês sem o necessário" (8, 13)
mas apenas que dêem "aquilo que neste momento vos sobra" (8, 14) para assim
garantirem "um grande tesouro que lhes servirá no futuro" (1 Tin. 6, 18).
Segundo Paulo, Jesus é o Messias de Israel; tal como David, cumpriu as "promessas
feitas aos antepassados" (Rm. 15, 8). Como sublinha uma nota da TOBI, "Trata-se de
demonstrar que a fé cristã está realmente incluída na fé de Israel."
4P.4333.
144
A cólera contra o Messias dos judeus ortodoxos que por vezes o desprezam e
perseguem é perfeitamente justificável e compreensível: utilizando o conceito,
inventado pelo profeta Isaías, de um "resto", isto é, de uma parte dos judeus que
continuaram fiéis a Jeová apesar da traição dos demais, Paulo reserva para os seus
discípulos a marca da "eleição": aqueles que seguem o "seu Evangelho", mesmo se não
forem de origem judaica, se forem gregos, por exemplo, que aceitem a versão da
história do "povo eleito" e que vejam em Cristo o "Messias", o cumprimento da Lei e
das promessas feitas ao "povo eleito". Este "resto", segundo Paulo digno da
eleição, são os seus discípulos.
1.' Há um "povo eleito", mas quando este povo desobedece ao Deus que o escolheu, é
um "resto" que Lhe continuou fiel que fica com o privilégio desta eleição. Da noção
de "eleição" arbitrária de um povo por Deus vem a ideia paulina da "predestinação"
dos eleitos e dos excluídos.
145
2.' 0 <"~", que ficou com o privilégio da eleição, é constituído por aqueles que
aceitaram que Jesus é o Messias, sejam ou não judeus. Não é, pois, a obediência à
lei judaica que "salva", mas sim a "fé" no carúcter messiânico de Jesus, a partir
daqui chamado "Jesus Cristow
Isto permite incluir não-judeus no "resto" fiel a Deus. Vem daqui a doutrina da
"justificação pela fé". Para a fundamentar, Paulo invoca o exemplo de Abrãao:
anterior a Moisés, este aramaico não é judeu e não pode por isto referir-se à Lei.
É apenas a sua fé em Deus que lhe concede a salvação.
Esta concepção não era totalmente estranha à comunidade judaica. No último Salmo do
Manual de Disciplina de Qumran (IQS 11, 13) já surgia o tema da justificação feita
exclusivamente pela fé, que, se não manifestava a concepção paulina, constituía
pelo menos uma sua prefiguração, como nota Jeremias1.
Pode-se perguntar o que é que esta "graça" deixa ao homem no que toca à iniciativa
e à responsabilidade, na medida em que se lhe atribui a mesma exterioridade que à
Lei judaica. Paulo aponta, efectivamente (Ef. 2, 8-10): "Foi por amor que vocês
foram salvos, mediante a fé. Não foram vocês que conquistaram a salvação. Ela é um
dom de Deus." É a isto que responde a Carta de Tiago: sem obras a fé está morta
(Tg. 2, 14-26).
Paulo considera que só a sua versão está correcta, e que só ele fala em nome de
Deus: "É isto que se há-de ver, de acordo com a Boa Nova que eu anuncio, no dia em
que Deus julgar... os segredos de cada um" (Rm. 2, 16).
Transtomou-me profundamente tudo o que assim me pareceu como uma inversão feita por
Paulo do essencial da mensagem de Jesus: do anúncio do Reino, em rotura radical com
as suas ligações tradicionais com o poder e com a riqueza,
Devo prestar o meu reconhecimento ao padre Tassin, que me alertou para a minha
tendência para atribuir a Paulo teses que vigoravam no seu tempo, em muitas
comunidades judaico-cristãs e mesmo helenísticas.
Muito devo também, e sobre este mesmo assunto, à sabedora exegese de Joseph Rius
Camps, professor na Faculdade de Teologia de Barcelona.
146
Segundo Rius Camps, foi só com a conversão do centurião Comélio que Pedro começou a
tomar consciência desta unidade humana: ainda assim, afirmou que Deus fez de Jesus
"o juiz dos vivos e dos mortos" (Ac. 10, 42), fôrmula restritiva retomada por Paulo
(2 Tm. 4, 1). Esta fórmula não aparece em nenhuma afirmação do próprio Jesus, que
não impõe limites à sua pregação, cuja expressão em círculos concêntricos chega a
traçar, a todos aqueles que até então ignoravam este universalismo, começando pelos
próprios judeus.
Jesus, pelo contrário, diz que é necessário pregar por todas as nações o perdão e
arrependimento dos pecados, a começar por Jerusalém (Lc. 24, 47). (Como bom
discípulo de Paulo, Lucas naturalmente relaciona esta obrigação com as antigas
Escrituras.)
P. 249.
147
e o profano, Deus, conta Pedro (Ac. 10, 28) "mostrou-me que não devo considerar
ninguém impuro ou indigno".
Tendo em conta estas valiosas correcções das exegeses e da história, parece-me que
saem assim reforçadas as minhas observações sobre o papel eminente de Paulo na
"rejudaização".
Segundo Stauffer, a rotura começa quando Jesus curou um homem e lhe ordenou que
pegasse na sua enxerga, no dia do cumprimento do sabbat. Nesta primeira rotura com
a Lei começa o processo de excomunhão pelos grandes padres. A esta rotura
sucederam-se muitas outras".
14 Stauffer, Jesus Gestalt und Geschichte. Tradução inglesa, Jesus and His History,
(Londres, 1960).
148
que não aceitam a sua Lei, Jesus, pelo contrário, diz: "Não vim chamar os justos,
mas os pecadores" (Mc 2, 27).
Não se encontram, nos Evangelhos, referências aos massacres das populações pagãs ou
idólatras exigidos por um Deus cruel (Dt. 20, 16), excepto com Paulo que evoca o
extermínio dos cananeus, como precedente anunciador de outras vitórias (Ac. 13, 16-
19). Também Paulo persegue os pecadores: "Os que se entregam à devassidão e à
imoralidade ou se deixam dominar pela ganância, que é uma espécie de idolatria, não
têm parte na herança do Reino de Cristo e de Deus" (Ef. 5, 5). Ou seja, em profunda
contradição com Jesus: "Cobradores de impostos e prostitutas hão-de entrar primeiro
no Reino de Deus" (Mt. 21, 3 1). Mesmo quando já estava na Cruz, responde Jesus ao
malfeitor também crucificado que lhe implorara que se lembrasse de si: "Podes ter a
certeza que hoje mesmo estarás comigo no Paraíso" (U. 23, 42).
Jesus diz: "Eu não julgo ninguém" (Jo. 8, 15). "Não faço nada por minha vontade"
(8, 28).
Paulo, em contraste, no espírito do Antigo Testamento, diz: "Cristo Jesus, que há-
de vir julgar os vivos e os mortos" (2 Tm. 4, 1).
Por último, a mais alta autoridade religiosa, o tribunal judaico e o seu chefe dos
sacerdotes decidem que "Jesus devia ser condenado à morte" (Mc. 14, 64). Acusam-no
de blasfémia, fingindo acreditar que Jesus era um impostor que se dizia o Messias,
no sentido que eles próprios davam ao termo: o rei que restauraria o poder de
Israel.
149
Jesus sublinhou sempre que se deve mais obediência a Deus do que à Tora. Quando o
acusam de não respeitar a Lei, por exemplo de não fazer as abluções rituais,
responde: "Vocês desprezam os mandamentos de Deus para obedecerem aos mandamentos
dos homens" (Mc. 7, 8).
Por fim, o tribunal judaico e Caifás, chefe dos sacerdotes, condenam-no à morte
porque põe em perigo a vida de todo o povo judeu (Jo. 11, 50; Mt. 26, 4).
Toda a vida de Jesus, as suas palavras e as suas acções, de facto, põem em causa a
fé e a cultura judaica: "Eu vim a este mundo para julgar" (Jo. 9, 38).
Julgar a Lei escrita, da Tora e dos seus tabus, que constitui a jurisdição de uma
época e de um povo, em nome da vontade eterna do Deus revelada em todos as suas
palavras e todas as suas acções: a contestação do ritual, mesmo do mais decisivo,
do sabbat e da hierarquia sacerdotal. 0 seu comportamento em relação às mulheres:
fala com uma mulher de moral duvidosa, e, cúmulo dos cúmulos, a uma samaritana (Jo.
4, 9). Tem mulheres nos seus aposentos e, entre elas, a "pecadora" Maria Madalena
(U. 7, 37). Manda em paz, sem a apedrejar (contra a lei judaica) uma mulher
adúltera (Jo. 8, 1 -11). Questiona o tempo
150
sagrado, o espaço sagrado: o Templo (Mc. 22, 5) e, acima de tudo, quesfiona o dogma
central: a restauração de Israel como "povo eleito", por um Messias encarregado de
o salvar, à semelhança de David. Os seus discípulos, mesmo os mais próximos,
acreditaram nisto até à sua morte.
Chama "pecadores" aos fariseus doutores da Lei, até então "cegos" (Jo. 10, 40), e a
partir daí ainda mais culpados porque disseram "Nós vemos" (Jo. 9, 41).
Jesus prova a má fé dos que o acusaram de se ter tomado por Deus quando disse: "Eu.
e o Pai somos um só" (Jo. 10, 30) e que por isto o apedrejaram. Recorre às próprias
Escrituras para esclarecer o sentido da sua proposta: "Não diz Deus na vossa Lei:
Eu declaro que vocês são deuses? Deus chama deuses àqueles que receberam um mandato
divino" (Jo. 10, 34-35).
É de notar a expressão a vossa Lei. Tal como noutras situações, Jesus não diz a
"nossa" lei: "Os vossos antepassados comeram o pão do deserto, e morrera~ (Jo. 6,
49); "Na vossa Lei está escrito" (Jo. 8, 17); "0 que está escrito na sua lei" (Jo.
15, 25), no que difere de Paulo, que diz: "a lei", como se não houvesse outra (por
exemplo, Rm. 3, 2 1), ou os "Meus antepassados" (2 Tm. 1, 3), revelando assim a
vontade de se incluir nesta linhagem.
É uma linguagem estranha a Jesus: "Mas vocês não queiram ser tratados por Mestre,
porque só um é Mestre e vocês são todos innãos" (Mt. 23, 8); "Agora já não vos
chamo servos... Chamo-vos amigos ... " (Jn. 15, 15); "Digo-vos, meus amigos ... "
(U. 12, 4); "Vão ter com os meus irmãos ... " (Mt. 28, 10).
151
Mas não aparece no Decálogo e o facto é tão inovador que Jesus, numa derradeira
conversa, diz aos seus discípulos: "Deixo-vos agora um mandamento novo: amem-se uns
aos outros" (Jo. 13, 34).
Isto permite ultrapassar todos os equívocos de Paulo quanto ao papel da Lei que,
até Jesus, teria tido um papel pedagógico, dando depois lugar à justificação pela
fé.
Esta confusão surgiu da continuidade que Paulo procurou estabelecer entre o Antigo
e o Novo Testamento. A expressão que utiliza "Cri sto pôs termo à Lei" (Rm. 10, 4)
é ambígua, porque a palavra grega telos (fim, termo) pode significar que a Lei foi
abolida ou que foi cumprida. Ora, como observou Pannenberg 16 , deve-se ser
claro a este respeito: "Jesus foi rejeitado em nome da Lei como blasfemo por ter
cometido injúrias. Terá sido Jesus um "blasfemo"? ou, pelo contrário, foi a Lei (o
judaísmo enquanto religião) que foi revogada?"
Para Jesus não é do Reino de Israel que se trata, mas do Reino de Deus (U. 9, 11).
Insiste nisto, monstrando ter cumprido as obras do seu Pai, tomando assim visível o
Deus invisível.
" Pannenberg, Essais de Christologie, Éditions du Clef, 1972, pp. 322 e segs.
152
Quando Pilatos lhe pergunta: "Tu és o rei dos judeus?", Jesus responde: "És tu que
o dizes." Pilatos diz aos chefes dos sacerdotes e ao povo: "Não acho razão para
condenar este homem" (U. 23, 3-4).
É então evidente que a resposta de Jesus não significa que tenha aceitado o título,
pois caso contrário I:ilatos não o teria absolvido: proclamar-se "rei dos judeus"
seria um acto de rebelião contra o Imperador romano, acto passível de pena de
morte.
Isto é confirmado pela versão de João (18, 33-38). Quando Pilatos pergunta: "Tu és
o rei dos judeus?", responde Jesus: "Perguntas-me isso, porque tu mesmo pensaste,
ou foram os outros que to disseram de mim?" E acrescenta:"O meu Reino não é deste
mundo." Pilatos volta à carga: "Mas então semprè és rei?" E Jesus responde: "És tu
que o dizes: eu sou rei. Nasci e vim ao mundo para dizer o que é a verdade."
Pílatos saiu do Palácio para^falar com os judeus, e disse-lhes: "Não encontro
nenhum motivo para condenar este homem."
A mensagem de Jesus é muito clara: ele é aquele que, pelas suas palavras, pelas
suas acções, pela sua vida e pela sua morte, toma visível a vontade do seu Pai.
Superando todas as leis Particulares e históricas, que são obras dos homens, Jesus
revela a vida divina, eterna, universal, que nada tem a ver com a restauração do
reino de um povo em particular que se aproveite de um dado aspecto parcial de Deus.
153
0 comportamento divino de Jesus leva-o a uma morte certa, porque luta contra o
poder religioso e político dos judeus e dos romanos, contra a "Lei", para uns,
contra a "pax romana", para outros. Os discípulos mais chegados não se enganam: não
esperam pela ressurreição para ver nele o Alho do homem" e o "filho de Deus", o
supremo libertador através do amor, o "caminho, a verdade e a vida" (Jo. 14, 6),
"fonte que dá a vida eterna" (Jo. 4, 14): "Só as tuas palavras dão vida eterna"
(Jo. 6, 68).
154
Nos Evangelhos nunca aparecem comparações como esta, excepto em Paulo (Rm. 9, 20),
que retoma as palavras de Isaías.
' Quando Marcos fala da Criação sublinha que esta não terminou. Deus, "até
agora ... " (Me. 13, 19)
155
Nos Evangelhos, o Pai, aquele que dá a vida, é o Pai de todos, sem distinguir entre
eleitos e excluídos ou puros e impuros.
e aos romanos.
A morte de Jesus é uma consequência da sua própria vida (para os sacerdotes judeus
porque violou a Lei, para os romanos porque ela cau-
156
Paulo revela-nos uma estranha encenação de onde se exclui a vida de Jesus: a sua
morte teria um sentido como resgate do pecado original e dos nossos pecados e como
redenção.
Jesus nunca quis este poder. Tal como não se tomou por filho de David. Jesus
rejeitou de início tal interpretação: "Como é que os doutores da Lei ensinam que o
Messias é descendente de David?" (Mc. 12,
35-37; Mt. 22, 42-45; Luc. 20, 41-44).
157
dos: "Senhor, será agora que vais restaurar o Reino para o povo de Israel?" (Ac.
1,6; Mc. 9,12; Lc. 19,12).
Será Jesus o "novo Moisés" e o "novo David"? ou, pelo contrário, terá a Lei perdido
todo o seu valor? Terá Jesus abolido a Lei ou tê-la-à cumprido?
As esquivas de Paulo a esta questão crucial são angustiantes: "Quer isto dizer que,
por causa da fé, nós negamos todo o valor à lei? Pelo contrário, reconhecemos à lei
o seu verdadeiro valor" (Rm. 3, 3 1).
Da resposta a esta questão depende o sentido da vida e morte de Jesus. Terá sido
ela programada por Deus, com todo o vocabulário e espírito do Antigo Testamento -
servo sofredor, resgate, redenção, expiação, de um Messias, (Cristo) que foi
"entregue à morte por causa dos nossos pecados e ressuscitou para nos pôr de bem
com Deus" (Rm. 4, 25), do Cristo que resgata o pecado de Adão - ou, pelo contrário,
ter-se-á revelado, pelas acções, pelas palavras e pela vida de Jesus, uma imagem
radicalmente nova do homem e da comunidade? "A tradução da teologia judaica para
grego" feita por Paulo não resolve a questão. Diz Schweitzer, e todos os textos o
confirmam, que "para, Paulo, o cristianismo não é uma nova religião, mas
simplesmente a verdadeira religião judaica, simultaneamente em harmonia com a sua
época e com as Escrituras`".
158
de Isaías (26, 19), onde os cadáveres ganham vida. 0 mesmo de Daniel, no judaísmo
tardio. "Muitos dos que já morreram, viverão novamente. Alguns disflutarão de vida
eterna, enquanto outros receberão a vergonha, a eterna desgraça" (Dn. 12, 2).
Surgem daqui as imagens ingénuas do túmulo vazio e das ligaduras, ou de Jesus
ressuscitado retomando o seu antigo corpo, com as suas feridas e as suas
necessidades alimentares (peixe grelhado).
Viverá uma vida plena: aquela que a vida de Jesus faz nascer todos os dias e em
todos os tempos e que a morte não atinge.
Dir-se-á que o mérito de Paulo foi ter-nos libertado da Lei, em especial da Lei na
forma em que a tinham fixado os saduceus, fariseus e os escribas da altura. Mas
não. Porque a sua concepção da "graça", que se substitui à Lei, implica a mesma
exterioridade de Deus: "Deus está sempre a ajudar, fazendo com que desejem e
realizem o que é da Sua vontade" (Fl. 2, 13).
"Foi por amor que vocês foram salvos Não foram voces que conquistaram a
salvação. Ela é um dom de Deus" (Ef 2, 8).
Em Será Que Precisamos de Deus? mostrámos como esta "gratuitidade" de Deus não
excluía, de maneira nenhuma, o esforço humano, sem cair, no entanto, nos excessos
de Pélage sobre a "suficiência" do homem que exclui toda a transcendência divina'.
Contra o judaísmo reformado que caracteriza a obra de Paulo, assiste-se, com Jesus,
a uma mutação radical da concepção de Deus, do homem e da sua comunidade, do mundo:
"Ninguém cose um remendo de um tecido novo em roupa velha... Nem tão-pouco se põe o
vinho em vasilhas velhas" (Mc. 2,21-22). É preciso escolher entre o Antigo e o Novo
Testamento. De que Deus é filho Jesus?
op. cit.
159
Não será, certamente, de Jeová, do deus dos exércitos e dos massacres, da divisão
do mundo entre puro e impuro, entre "eleitos" e "excluídos", do Deus ciumento e
vingativo de -Paulo: "Aqueles que vos causam esses soffimentos receberão de Deus o
justo castigo" (2 Te. 1, 6).
Paulo rejudaizou a comunidade original de Jesus, que dizia "É preciso que a Boa
Nova seja pregada a todas as nações" (Mc. 13,10). Estamos longe da afirmação de
Paulo: "primeiro os judeus, só depois
os gregos".
É este, de facto, o tema constante do Antigo Testamento: a Tora (os cinco primeiros
livros da Bíblia, a. que os cristãos chamam Pentateuco) e os livros de Josué, dos
Juizes, de Samuel e dos Reis contam-nos a história dos genocídios cometidos pelas
tribos de Israel.
160
Moisés, portanto, dá graças a este Deus mais forte que todos os outros: "Senhor meu
Deus, começaste a mostrar ao teu servo a tua grandeza e o teu poder. Não existe
outro Deus, no céu ou na terra, que realize os prodígios e maravilhas que tu fazes"
(Dt. 3, 24).
Josué, o sucessor de Moisés, prossegue com o mesmo zelo religioso esta política de
genocídio. 0 livro de Josué é, por excelência, o livro dos massacres que começam em
Jericó, na travessia do Jordão: "Destruíram tudo o que havia, matando à espada
homens e mulheres, novos e velhos ... " (Js. 6,2 1), poupando apenas a prostituta
Raab, que tinha guiado os espiões (Js. 6,22). Depois foi a vez de Hai. 0 Senhor diz
a Josué: "Farás a Hai e ao seu rei o mesmo que fizeste a Jericó e ao seu rei" (Js.
8,1-2). Josué cumpre à letra: "Ninguém escapou nem houve sobreviventes" (Js. 8,22).
"Josué incendiou Hai, deixando-a num montão de ruínas, e assim ficou até hoje" (Js.
8,28). Seria fastidioso enumerar todos os massacres, basta ver a sequência no
livro: o "extermínio" do povo de Maceda (Js. 10,20), a cidade de Laquis onde Josué
matou "todos os seus habitantes" (Js. 10,
32), a cidade de Hebron, "conderiando-a à total destruição, como tinham feito a
Eglon" (Js. 10, 37). "Fizeram a Debir o mesmo que tinham feito a Hebron" (Js. 10,
39), depois foi o resto da região, a montanha, o Negueve, "sem deixar
sobreviventes, condenando à destruição todos os seres vivos" (Js. 10, 39 e 40).
"Sem deixar sobreviventes" (Js. 11,8) entre
161
Faltava exterminar os povos do sul, os filisteus, até Gaza e até ao Líbano. A cada
tribo de Israel coube a sua parte de território, de massacre e de saque, excepto à
tribo de Levi, dedicada ao culto (13, 14). Josué pode então fazer o seu testamento,
recordando os massacres, "Entreguei-os nas vossas mãos" (24, 8), e as leis de
segregação racista sobre a interdição dos matrimónios (23,12), para que o "Senhor
já não expulse esses povos da vossa presença" (23,13).
"0 Senhor, teu Deus, vai-te conduzir à terra para onde te diriges, a fim de tomares
posse dela. Ele vai expulsar muitos povos: os hititas, os guirgaseus, os amoreus,
os cananeus, os perizeus, os heveus e os jebuseus. São sete povos maiores e mais
fortes do que tu. 0 Senhor, teu Deus, vai colocá-los nas tuas mãos. Vais derrotá-
los e destruí-los completamente. Não faças aliança com eles nem tenhas pena deles.
Não faças casamentos corri eles, nem tu nem os teus filhos nem as tuas filhas"
ffit. 7, 2-4).
da judiaria, que graças às suas leis raciais, se manteve durante séculos, enquanto
todas as restantes raças e civilizações desapareceram. 7"
Na verdade, datações posteriores reconheceram, como afirma o padre de Vaux, que "os
israelitas, chegando ao fim do século X111 a. C., não poderiam conquistar Jericó
porque esta já estava abandonada". Passou-se o mesmo quanto à "conquista de Hai"
por Josué (Js. 8,1-29). 0 padre de Vatix nota: "De todas as narrativas sobre as
conquistas, esta é a mais pormenorizada: não contém nenhum elemento n-iilagroso e
parece ser a mais verosímil. Infelizmente é desmentida pelos arqueólogos... Quando
os israelitas lá chegaram, já não existia a cidade de Hai. Só ruínas com 1200
anos.1"
Os planos dos mestres do genocídio não ficam por aqui. Nem com os Juizes nem com os
Reis. É assim que no primeiro livro de Sainuel: "Ouve o que o Deus dos exércitos de
Israel te manda dizer: "[ ... ] Vai combater os amalecitas e destrói completamente
tudo quanto possuem. Mata homens, mulheres, crianças e meninos de peito ... " (I S.
15,2-3). Por não cumprir as suas ordens, o "Senhor" castiga Saul: "0 Senhor disse a
Samuel: Lamento ter consagrado Saul como rei, porque [ ... ] desobedeceu às minhas
ordens" (I S. 15, 10). 0 Senhor procura então um executante mais dócil e mais
implacável. Manda Samuel procurar o rei que indicava (I S. 16,1). Será David, sobre
quem o Catecismo, de 1992, diz que "foi por excelência o rei de acordo com o
coração de DeusI" e que "se podem encontrar em Jesus Cristo", Messias de Israel",
os seus "traços essenciais11".
P. 126.
11p.98.
163
Esta identificação é ainda mais lamentável tendo em conta que a biografia de David,
segundo a Bíblia (não existem outros testemunhos históricos sobre David além da
Bíblia), de 1 S. 16 a 2 S. 24, faz dele um personagem inquietante.
David, antigo escudeiro do rei Saul (I S. 16, 21), que este afastou, com inveja das
suas vitórias contra os filisteus (18, 18), refugia-se nas montanhas onde organiza
um bando armado com "todos os que tinham dívidas e com todos os descontentes" (22,
2). Depois, à maneira dos condottieti, passando para o lado dos filisteus, inimigos
de Saul e de Israel, põe-se ao serviço do seu rei Aquis (29) e comanda raids de
pilhagem nas zonas vizinhas: "Devastavam o território, matando homens e mulheres e
levando consigo ovelhas, burros, camelos e roupas" (27, 9). Aquis alista-o no seu
exército para combater Israel (28, 1), o que David aceita (29, 8). Mas os príncipes
filisteus exigem ao seu rei que se afaste de David.
Depois do suicídio de Saul, David faz-se eleger como rei. 0 único filho de Saul
vivo também se proclama rei. Depois da batalha do Campo das Rochas onde "as tropas
de Israel foram derrotadas pelos soldados de David" (2 S. 2, 17), "A guerra entre
os adeptos da família de Saul e os da família de David durou muito tempo" (3, 1).
Dois chefes de bando assassinam o filho de Saul e mandam a sua cabeça a David (4,
8). David manda cortar as mãos e os pés dos mensageiros e enforca-os (4, 12). Com a
morte do filho de Saul, David pode tomar-se ao mesmo tempo rei da Judeia e de
Israel (5, 4). Instala-se então em Jerusalém, no centro dos dois reinos. Jerusalém
toma-se a "cidade de David" (5, 8-9).
David, senhor da guerra, vencerá inúmeras batalhas: "E o poder de David aumentava
sempre cada vez mais, porque o Senhor, o Deus todo-poderoso, estava com ele" (5,
10).
É este o antepassado real que Paulo, antes de todos, atribuiu a Jesus. Este
sincretismo fatal pesou até aos nossos dias na história do cristianismo.
0 padre Segundo lembra que David é, para a exegese clássica, "uma das prefigurações
mais clássicas de Jesus no Antigo Testamentow Esta "exegese clássica" é, antes de
mais, a do primeiro Evangelho,
Acrescenta Paulo: "0 Deus de Israel escolheu os nossos antepassados... Deu o reino
a David. Foi a respeito de David que Deus disse: "Encontrei David. Ele é pessoa do
meu agrado, que irá fazer sempre a minha vontade" (Ac. 13, 17-22).
Os dois livros de Samuel e o primeiro livro dos Reis mostram-nos quais foram estas
"vontades" e como foram "realizadas".
165
Os textos que acabámos de citar são só uma amostra dos muitos casos que abundam no
Antigo Testamento e que não é possível reduzir a uma metáfora. Servem, ainda nos
nossos dias, para justificar políticas`. Como podem tais textos figurar entre os
"textos sagrados" dos cristãos, ao lado dos profetas e dos Evangelhos?
. 1 .
Como se pode comparar este Deus saguinano e tribal ao Pai que Jesus invoca? Como se
podem considerar percursores de Jesus os seus mais ferozes executantes, como David,
por exemplo?
-judeus, entre escravos e pessoas livres, entre homens e mulheres" (GI. 3, 28; Rm.
10, 12), esta fórmula sublime é contradita pelos seus ensinamentos práticos.
Trata-se de afirmar: já não há gregos nem judeus, é esta a sua mais radical
afirmação da prioridade do judeu. "Eu até desejaria ser amaldiçoado por Deus e
separado de Cristo, se isso servisse para bem deles. Eles são os descendentes de
Israel. Deus tomou-os como seus filhos e favoreceu-os com a sua presença gloriosa.
Fez alianças com eles e deu-lhes a lei, o culto sagrado e as promessas. Eles são os
descendentes dos patriarcas. E Cristo, como homem, pertence a essa mesma raça. Ele,
que está acima de todas as coisas, Deus bendito para sempre." (Rin. 9, 3-5).
11 Estas invasões, estes massacres, esta expoliação das terras dos autóctones
constituíram o protótipo de todas as exacções coloniais efectuadas em nome de Deus.
166
Desta desigualdade teológica decorre uma prática:"As mulheres obedeçam aos maridos"
(Ef 5, 22; CI. 3, 18). "Não lhes permito que ensinem nem dêem ordens aos homens,
mas devem ficar em silêncio" (I Trn. 2, 12), "ouvir com humildade" (2, 11). "As
mulheres não devem tomar a palavra nas reuniões da comunidade" (I Cor. 14, 34; 1
Tm. 2, 12). "Se a mulher não quer estar de cabeça coberta, é melhor que corte o
cabelo" (I Cor. li, 6).
Paulo escreve magnificamente: "Ele, que por natureza era Deus... humilhou-se a si
mesmo" (Fl. 2, 6-8), mas anuncia a sua segunda vinda como a de um segundo Davíd
triunfante, porque, diz, "é preciso que Cristo tome conta do Reino até Deus
sujeitar todos os seus inimigos ao seu domínio" (I Cor. 15, 25), onde se refere ao
Salmo 110 de David, um exaltação da potência guerreira mais implacável: "0
Senhor... encherá de cadáveres os campos de batalha e esmagará os reis por todo o
país" (110, 5-6).
Como se pode conciliar toda esta brutalidade com o magnífico hino ao amor da
Primeira Epístola aos Coríntios (13, 1-13)?
167
Para mencionar só o período mais recente, esta doutrina omnipresente foi aplicada à
letra pelos episcopados. Em 24 de Dezembro de
1936, os bispos alemães, numa carta pastoral comum, apelavam aos católicos que
seguissem o seu führer. Escrevia: "0 chefe e chanceler do Reich apercebeu-se a
tempo da avalanche do bolchevismo... Os bispos alemães consideram ser seu dever
apoiar o chefe do Reich nesta luta, com todos os meios à sua diposição no domínio
religioso."
É verdade que o papa Pio XII, na encíclica Mit Brennender Sorge, condenou a
doutrina da raça e do sangue, e reconheceu que Hitler violava os pactos que tinha
assinado, mas não denuncia a concordata com o Reich, assinada pelo seu antecessor
Pio XI, em 1933, de tal maneira que em Outubro de 1940, uma nova conferência do
episcopado alemão, em Fulda, evoca o sacrificio feito pelo exército alemão para a
"grande causa da liberdade de todos os povos"",
Em Espanha, sob o regime de Franco, o cardeal primaz de Espanha via na sua guerra
contra a República "uma verdadeira cruzada pela religião católica" (Apelo de 23 de
Novembro de 1936).
11P.397. MP.459.
11 Le Temps, 24 de Outubro de 1940.
168
Com o mesmo espírito de respeito pela ordem estabelecida, a condenação romana das
teologias da libertação pelo cardeal Ratzinger, em
23 de Novembro de 1984, precede em dois meses a Declaração de Santa Fé (7 de
Fevereiro de 1985), em que os ideólogos de Reagan e da CIA declaram (Proposta 3):
"A política externa dos Estados Unidos deve começar a combater a teologia da
libertação."
16P. 12.
169
É certo que esta política imperial romana teve repercussões contraditórias nos
campos de batalha a que João Paulo 11 era mais sensível: na Polónia e em Itália. Na
Polónia nem os dólares nem as bençãos evitaram que Lech Walesa visse desaparecer o
poder político de uma Igreja que, no entanto, durante séculos se identificava com a
nação. Em Itália, em 1987, as instruções formais do papa ordenando aos bispos que
fizessem os católicos votar na Democracia Cristã não foram suficientes para impedir
o colapso total, nas eleições seguintes, do partido confessional no governo há já
quase meio século.
E, neste mesmo sentido, o papa revelou a sua nostalgia das ditaduras militares
quando beatificou Escriva de Balaguer, chefe da Opus Dei e o maior apoiante
religioso de Franco, ou quando enviou ao general Pinochet, carrasco do Chile, a sua
"benção apostólica especial", publicada no jornal chileno El Mercurio, em 30 de
Março de 1993.
silêncio pela cúria romana, e, para poder continuar a sua obra no espírito do
Vaticano 11 e de Medellín - a opção preferencial pelos pobres
é levado à demissão.
171
4111 OF
R,
wb
.e. .,
íNDICE
2. GUERRA ENTRE A FÉ E 0
ATEíSMO? .......................................
45
A fé é ópio ou
fermento? ............................................................
45 Fins últimos e fins penúltimos: Prometeu ou
Jesus? .............................. 49 Marx morreu?
...........................................................................
52
4. DE QUE DEUS
PRECISAMOS? ...............................................
.... 79 Crença e
fé ............... . .........................................................
..... 79 Deus feito
Homem? .................. ...... .. . ................................
....... 86
0 mito e a História: do ícone ao
ídolo ............................................. 90
Conjugação do verbo
Deus ......................... . ..................................
94 A história santa da
Humanidade ...................................................
99
173
ANEXOS
1. HÁ "PROVAS" DA EXISTÊNCIA DE
DEUS? ................................. 127
BIBLIOGRAFIA ............................................................
............... 173
174
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