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Daniel Pennac

COMO
UM ROMANCE

1(aCú...., 2ª EDIÇÃO
l•
COMO UM ROMANCE

O que afasta uma criança ou um


adolescente da leitura de um livro
não é só a televisão, o mundo fas.
cinante dos videogames, das com-
pras nos shopping-cent.crs, dos lan-
ches em cadeias como o MacDo-
nald 's. Do alto de sua experiência
de professor, embalado num estilo COMO
a um só tempo irónico e poético,
que o tornou um fenõmeno edito- UM ROMANCE
rial na França, Daniel Peonac inves-
tiga as cha\'CS para o mundo da lei-
lllfa, esse desconhecido de um nú-
mero expressivo de possíveis leito-
res. Como um romance, um ensaio
em que as imagens fazem brotar
sensações em quem as lê, mostra
que o cio perde-se. normalmente,
quando o IÍ\To deixa de ser " vivo"
- a narração ao pé da cama, na in-
fância, na ho ra de dormir, e passa
a ser a " ficha de leitura", obriga-
tória para o bom cumprimento do
programa escolar.
A partir do momento em que o
livro é dC'\-er, tudo contribui para
afastar o jO\-'rm da tarefa. A espes-
sura intransponivel das páginas, a
falta de diálogos do texto, a distân-
cia cronológica dos personagens.
Peonac não propõe nenhuma fór-
mula mágica. Quem quer que tra-
balhe numa sala de aula com lin-
guagem, comunicação e expressão,
terá se visto, pelo menos urna vez,
às voltas com soluções igualmente
criativas para transpor as aparentes
barreiras. O cinema mesmo contri-
buiu, recentemente, com o exemplo
de Sociedade dos poetas monos,
uma excursão à poesia e à vida ten-
do como ponto de partida a fruição
de textos.
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1
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llnJoonpal
COMME UN ROMAN

o édiais~ 1992

O.rouH para a linrua l'l)ltU(IIC>A =-ado,


a,e c,cd~"•'lda.k J'&I'& o liras,!. •
EOllORA ROCCO L ~
Rua Rodrisc> Saln. U, • , :· and.&r
~1141() Rio de Jannro, RJ •
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m'iúo
WE?-.'DEU. SEJúBAL
JOÃO HENRIQUE Para Franklin Rist,
CARLOS NOUOt,~
grande leitor de romances
e romanesco leitor.

À memória de meu pai,


e na lembrança cotidiana
de Frank Vlieghe

CP-&a.il 0,1Jios,,ç.u-ro..1c
SiadatoNacimiai cb Ediaorcs de U'"fOS, RJ.

Pcnaac.D>AicJ
P461c
~ • - J D a c J Pcuac ; lnduç-.o de Lcay Wa-
mct.-it;,,c1cJ11DCJrO Rcca,.llm.

T ~ c l c C - - • roman

1. Em.n L W ~ Lcay. ll lllulo.

9'l-076a COD- 843


CDU 840-J
SUMÁRIO

1. NASCIMENTO DO ALQUIMISTA......... 11
n É PRECISO LER (O dogma) . . . . . . . . . . . . . . . 61
li. DAR ALER ............................. 99
IV. O QUE LEMOS, QUANDO LEMOS
( ou os direitos imprescritfveis do leitor) .....•. 141
1. O direilo de não ler. . • • . • . • . . • • • • • • . . • • . • . 143
2. O direilo de pularp6ginas. . . • . . • . . . . . • • • • • • 146
3. O direilo de n4o temúnar um livro. . . . . . . . • . • • 150
4. O dimlo de reler. . . . . . . • . . • • • • • . • • . . • • • • . 153
5. O direilo de ler quaJquo coisa . . . . . . . . . . . . • . . 154
6. O dimlo ao bovarismo (doença
textualmente transmisslvel) . • . . • • • • • • • • • • . • . 157
7. O direito de ler em quaJquo lugar . . . . . . . . • • . • 159
8. O direito de ler uma frase aqui
e outTP ali. . . • . . . . . . . • . • . • . • . • • • • . • • • • • • 162
9. O dimlo de ler em voz alJa .. ...• .. . . . ..... . 163
10. O dimlo de calar . . . . . . . . . • . • • . . . . • • • . . . . 167
NOTADA TRADUTORA

A leitura fluente de Como um romance pode fazer


pensar que a tradução foi realizada com facilidade.
Nada disso, Daniel Pennac é mestre em engati-
lhar citações literárias, referências populares, gíria
escolar e outras armadilhas, de que se serve como
um ... alquimista.
Além do habitual recurso aos Robert e Aurélio,
que freqüentam lado a lado a mesa de trabalho de
qualquer tradutor que se preze (se dão bem, os dois!),
busquei conselho e palavras com amigos cujo co-
nhecimento do francês clássico e cotidiano veio com-
pletar a tarefa em que me lancei por amor ao livro e
admiração pelo autor. Por essa cumplicidade, venho
agradecer a Adrienne de Macedo e Raymond Rener.

LENY WERNECK
Paris, 27 de junho de 1993.
I
NASCIMENTO
DO ALQUIMISTA
1

O verbo ler não suporta o imperativo.


Aversão que partilha com alguns outros:
o verbo "amar"... o verbo "sonhar"...
Bem, é sempre possível tentar, é claro. Vamos
lã: "Me ame!" "Sonhe!" "Leia!" ''Leia logo, que dia-
bo, eu estou mandando você ler!"
- Vá para o seu quarto e leia!
Resultado?
Nulo.
Ele dormiu cm cima do livro. A janela, de repen-
te, lhe pareceu imensamente aberta sobre uma coisa
qualquer tentadora. Foi por ali que ele decolou. Para
escapar ao livro. Mas é um sono vigilante: o livro
continua aberto diante dele. E no pouco que abrimos
a porta de seu quarto, nós o encontramos sentado
junto à escrivaninha, seriamente ocupado em ler.
Mesmo se nos aproximamos na ponta dos pés, da
superficie de seu sono ele nos terá escutado chegar.
- Então, está gostando?
Ele não vai nos responder que não, isto seria um
crime de lesa-majestade. O livro é sagrado, como é
possível não gostar de ler? Não, ele vai dizer que as
descrições são longas demais.

- 13 -
TranqüiJizados, voltamos ao DOS&> aparelho de
televisão. E é até possível que esta reflexão SUScite
um apaixonante debate entre nós e os outros como
nós ...
- EJe acha as descrições longas demais. É pre-
ciso entender, estamos n? século do audiovisual,
evidentemente os romanc1Stas do século dezenove
tinham que descrever tudo ...
- Mas isto não é razão para pular a metade das
páginas!
Não vamos nos cansar, ele voltou a dormir.
2

g ~ aversão pela leitura fica ainda mais


inconcebível se somos de uma geração,
de um tempo, de um meio e de uma
família onde a tendência era nos impedir de ler.
- Mas pára de ler, olha só, você vai estragar a
vista!
- Sai, vai brincar um pouco, está fazendo um
tempo tão bonito!
-Apaga! Já é tardei
É isso, o tempo estava sempre bom demais para
ler, ou então era a noite, escura demais.
Note-se que em ler ou não ler, o verbo já era
conjugado no imperativo. Mesmo no passado, as
coisas não davam certo. De um certo modo, ler,
então, era um ato subversivo. À descoberta do ro-
mance se juntava a excitação da desobediência fami-
liar. Duplo esplendor! Ah. a lembrança dessas horas
de leitura roubadas, debaixo das cobertas, à luz fraca
de uma lanterna elétrica! Como Anna Karenina ga-
lopava depressa-depressa para junto do seu Vronski,
naquelas horas da noite! Eles se amavam, aqueles
dois, e isso já era lindo em s~ mas eles se amavam
contra a proibição de ler e isso era ainda melhor. Eles
se amavam contra pai e mãe, se amavam contra o

- 14 -
- 15 -
dever de matemática não terminado, contra a "dis-
sertação" a preparar, contra o quarto por artumat
eles se amavam em vez de irem para a mesa, eles ~
amavam antes da sobremesa, eles se preferiam à
partida de futebol, à colheita de cogumelos... eles se
tinham escolhido e se preferiam a tudo mais... Ah,
meu Deus, o belo amor!
E como o romance era curto.

Sejamos justos. Nós não havíamos pen-


sado, logo no começo, em impor a ele a
leitura como dever. Havíamos pensado,
a princípio, apenas no seu prazer. Os primeiros anos
dele nos haviam deixado em estado de graça. O
deslumbramento absoluto diante dessa vida nova nos
deu uma espécie de inspiração. Para ele, nos trans-
formamos em contador de histórias. Desde o seu
desabrochar para a linguagem, nós lhe contamos
histórias. E essa era uma aptidão em que nos desco-
nhecíamos. O prazer dele nos inspirava. A felicidade
dele nos dava fôlego. Para ele, multiplicávamos os
personagens, encadeávamos os episódios, refináva-
mos as armadilhas ... Como o velho Tolkien para seus
netos, inventamos para ele um mundo. Na fronteira
entre o dia e a noite, nos transformávamos em ro-
mancista, só dele.
Se não tivéssemos esse talento, se apenas con-
tássemos para ele as histórias dos outros, e mal,
buscando as palavras, estropiando os nomes pró-
prios, confundindo episódios, casando o começo de
um conto com o final de outro, nada disso teria
importância. .. E mesmo se não contássemos his-
tórias, mesmo se nos contentássemos em ler em voz

- 16 - - 17 -
alta nós, ainda assim, teríamos sido o romancista
dei~ o contador único por quem, no final de cada dia,
ele escorregava dentro ~os pija~as do sonho antes
de se dissolver nos lençóIS d a n01te. Melhor, éramos
o Livro.
Quem não se lembra dessa intimidade, incom-
parável.
Como gostávamos de amedrontá-lo, pelo puro
prazer de o consolar! E como ele reclamava ~
medo! Nada bobo, jã, e, no entanto, todo trêmulo 4
Em suma, um verda~eiro leitor. ~im era a dupl~
que formávamos na epoca, ele leitor, e tão sagaz, e
nós o livro, e tão cúmplice!
Resumindo, ensinamos tudo do livro a
ele, naquele tempo em que ele não sabia
ler. Nós o abrimos à infinita diversidade
das
- coisas imaginárias, o iniciamos nas alegrias da
viagem vertical, o dotamos da ubiqüidade, libertado
de Cronos, mergulhado na solidão fabulosamente
povoada de leitor... As histórias que líamos para ele
formigavam de irmãos, de irmãs, de pais, de duplos
ideais, esquadrilhas de anjos da guarda, legiões de
amigos tutelares encarregados de suas tristezas, mas
que, lutando contra seus próprios ogres, encontra-
vam, eles também, refúgio nas batidas de seu cora-
ção. Ele tinha se tomado o anjo recíproco deles: um
leitor. Sem ele, o mundo deles não existiria. Sem eles,
ele continuaria preso na espessura do seu. Assim, ele
descobriu a virtude paradoxal da leitura que é nos
abstrair do mundo para lhe emprestar um sentido.
Ele retomava mudo dessas viagens. De manhã,
passávamos a outras coisas. Para dizer a verdade, não
procurávamos saber o que ele havia ganho, por lá.
Ele, inocentemente, cultivava esse mistério. Era, co-
mo se diz, seu universo. Suas relações particulares
com Branca de Neve ou com qualquer um dos sete
anões eram da ordem da intimidade, que exige segre-

- 18 - - 19 -
do. Grande fruição do leitor, esse silêncio depois da
leitura!
É, nós lhe ensinamos tudo do livro.
Nós abrimos formidavelmente seu apetite de
leitor.
A tal ponto, lembremos, a tal ponto que ele tinha
pressa em aprendu a ler!

[s:IJ Que pedagogos é~os, quando n~o,- t'•-


nhamos a preocupaçao da pedagogia.

- 21 -
- 20 -
Não adianta, a palavra vai se impor de novo à
sua pena, na próxima dissertação:

"Em seu livroMadame Bovary, Flaubert nos diz que..."


Porque, do ponto de vista de sua presente soli-
dão, W? livro~ um livro. E cada li~o pesa seu peso
de enCiclopéclia, d ~ mesma enciclopédia de capa
dura, por exemplo, cujos volumes antigamente lhe
empurravam debaixo de sua bunda de menino para 7
que ele ficasse na altura da mesa da família.
E o peso de cada livro é suficiente para baixar o
astral da gente. Ele estava sentado na cadeira com
Enquanto isso, na sala, em t~~o do apa-
uma relativa leveza, ainda há pouco - a leveza das relho, o argumento de telev1Sao corrup-
decisões tomadas. Mas ao final de algumas páginas tora vai ganhando adeptos: .
sentiu-se invadido por esse peso dolorosamente fa.
A •

_ A bobagem, a vulgaridade, ~ v10lenc1a dos


miliar, o peso do livro, o peso do tédio, insuportável
fardo do esforço fracassado. programas .. . É incrível! Não se pode ligar o aparelho
Suas pálpebras anunciam a iminência do naufrá- sem ver... V A • ,

- Os desenhos animados japoneses... oces Jª


gio. O rochedo da página 48 abriu uma brecha sob a
viram esses desenhos animados japoneses? ,
linha-d'água de suas resoluções.
-Mas não é só uma questão de programa .. . E
O livro o arrasta. a televisão em si mesma.. . essa facilidade.. . essa
Eles afundam.
passividade do telespectador ...
- É, a gente liga, a gente se senta ...
- Passa de um canal pra outro .. .
- Essa dispersão. . . . . .
- Isso permite que ao menos se evite a publici-
dade. .
- Nem isso. Eles organizam programas smcrô-
nicos. Você deixa um anúncio e vai cair num outro.
-Às vezes, o mesmo!
E faz-se o silêncio: é o momento da brusca
descoberta de um desses territórios "consensuais"
iluminados pelo brilho ofuscante de nossa lucidez
adulta.
Então alguém, mezza voce:

- 25 -
- 24 -
caiu. Das profundezas da casa chega até ele o sinal
do jornal da televisão. Ainda meia hora a empurrar
antes do jantar. Como é extraordinariamente com-
pacto um livro. Não se pode separar em pedaços. E
parece, além do mais, que é difícil de queimar. Nem
mesmo o fogo consegue se insinuar entre as páginas.
Falta de oxigênio. Ele faz tod~ essas r~flexões à
margem. E as margens dele são unensas. E grosso, é
6 compacto, é um objeto contundente, o tal livro. Pá-
gina quarenta e oito ou cento e quarenta e oito, qual
é a diferença? A paisagem é a mesma. Ele revê os
lábios do professor ao pronunciarem o título. Ele
, escuta a pergunta uníssona dos colegas:

l!I
Ei-lo ago~ adolescent~ recluso em seu
quarto, diante de um livro que não lê. - Quantas páginas?
Todos os seus desejos de estar longe er- - Trezentas ou quatrocentas...
guem, entre ele e as páginas abertas, uma tela esver- (Mentiroso ... )
deada que perturba as linhas. Ele está sentado clian te -É pra quando?
da janela, a porta fechada às costas. Página 48. Ele O anúncio da data fatídica provoca um cortejo
não tem coragem de contar as horas passadas para de protestos:
diegar a ~ quadragésima oitava página. O livro _ Quinze dias? Quatrocentas páginas ( qui-
tem exatamente quatrocentas e quarenta e seis. nhentas) pra ler em quinze dias! Mas nós não vamos
Pode-se dizer 500 páginas! Se ao menos tivesse uns conseguir nunca, Professor!
diálogos, vai. Mas não! Páginas completamente Professor não negocia.
cheias de linhas apertadas entre margens minúsculas, Um livro é um objeto contundente e um bloco
negros parágrafos comprimidos uns sobre os outros de eternidade. É a materialização do tédio. "O livro."
e, aqui e acolá, a caridade de um diálogo - um Ele não o denomina nunca de outra maneira, em suas
travessão, como um oásis, que indica que um perso- dissertações: o livro, os livros, livros.
nagem fala a um outro personagem. Mas o outro não "Em seu livro Pensamentos, Pascal nos diz que..."
J.1:SpOnde. E segue-se um bloco de doze páginas! O professor protesta, com caneta vermelha, que
Do& páginas de tinta preta! Falta de ar! Ufa, que essa não é a denominação correta, que é preciso dizer
ar!
:;M,fâ(de Merda, puta que pariu! Ele xinga. Muitas se é um romance, um ensaio, uma antologia de con-
'~ mas ele xinga livro filho da puta, burro. tos, uma coletânea de poemas, que a palavra "livro",
quarenta e oito ... Se ao menos conseguisse em si, na sua aptidão de tudo designar, não diz nada
do conteúdo dessas primeiras quarenta e de preciso, um catálogo telefônico é um livro, assim
1E nem ousa se colocar a pergunta que como um dicionário, um guia turístico, um álbum de
jata, inevitavelmente. A noite de inverno selos, um livro de contabilidade...

- 23 -
_ Ler, evidentemente, ler é outra cois~ ler é
um atol .
-É muito justo o que você disse, ler é um ato,
"o ato de ler", é verdade... A •

_ Enquanto que a teve, e mesmo o cmema,


~ d o bem... tudo nos é dado num filme, nada é
conquistado, tudo é m~gado, a imagem, o som, os
cenários, a música ambiente, ~o caso de alguém não
ter entendido a intenção do diretor...
_ A porta que range para indicar que é o 8
momento de ter medo...
-Na leitura, é preciso imaginar tudo isso ... A
leitura é um ato de criação permanente.

l!i
Nmo silSncio. Podeáamos co~tinuar a ~izer ';Imitas coi-
(Entre "criadores permanentes", dessa vez.) sas, para medir essa d1Stãnc1a entre o
Então: livro e ele.
- O que me choca, pelo menos a mim, é o Nós as dissemos todas.
a6memdehoras pmadas, em média, por um garoto Que a televisão, por exemplo, não é a única causa.
diante da tevê em comparação às horas de comuni- Que entre a geração de nossos filhos e a nossa
_,_
c:a;ão e expressão na escola. Eu li estatísticas sobre própria geração de leitores as décadas têm a profun-
didade de séculos.
-Deve ser fenomenal! De tal modo que, se nos sentimos psicologica-
- Uma por seis ou sete. Sem contar as horas mente mais próximos de nossos filhos do que nossos
passaduno cinema. Uma criança (não estou falando pais estiveram de nós, continuamos, intelectualmen-
dauos.,a) pasmem média - média mínima - duas te falando, mais próximos de nossos pais.
liam por dia diante de um aparelho de televisão e (Aqui, controvérsia, discussão, questionamento
&oito a dez horas durante o fim de semana. Ou seja, dos advérbios "psicologicamente" e "intelectualmen-
fQII Jota) de trinta e seis horas, para cinco horas te". Reforço na figura de um novo advérbio):
...,anais de oomunicação e expressão. - Afetivamente mais próximos, se você prefere .
~rwidente, a escola não tem peso. -Efetivamente?
f~silêncio. - Eu não disse efetivamente, eu disse afetiva-
~ o dos ab.mnos insondáveis. mente.
- Quer dizer nós somos afetivamente mais pró-
ximos de nossos filhos, mas efetivamente mais próximos
de 00&505 pais, é isso?
- É um "fenômeno de sociedade". Uma acu-
mulação de "fenômenos de sociedade" que poderiam

- 26 - - 27 -
ser resumidos no fato de que nossos filh _
bém filhos e filhas da época deles, en os sao tam- Beaubourg...
fomo.:_a~;as os filhos de nossos pais:uanto que nós O barbarismo-Beaubourg ...
-Mas claro! Adolescentes não éram r
de nossa sociedade. Comerci~ente e cul~ lentes Beaubourg, o imaginário errante. Beaubourg-a-
te falando, vivíamos numa sociedad d almen- perdiçáo-a-droga-a-violência .. . Beaubourg, o gran-
Roupas em comum, pratos comuns culetu e adultos. de vazio do R.E.R. • ... O Buraco dos Halles!**
· - , racomum - De onde se lançam hordas de analfabetos aos
o rrmao menor herdava as roupas d . ,
comíamos o m~o cardápio, às
mesma mesa, fazíamos
m~m~t~ ::ho,
0
os mesmos passe·10s no do- ,à
pés da maior biblioteca pública da França.
Novo silêncio ... um dos mais belos: o do "anjo
• . _ paradoxal".
1
mm~o~ a te eVISao amarrava a famfüa em tomo de - Os seus filhos freqüentam Beaubourg?
um uruco e~ canal {bem melb~r, aliás, do que todos - R aramente. Por sorte moramos longe, no
esses de hoJe. ••) e, em maténa de leitura, 0 ; • Quinze, um bairro mais familiar.
11
cwºd a d o d e nossos pais
• umco
era o de colocar certos títul Silêncio .. .
em prateleiras inacessíveis. os Silêncio .. .
-quanto à ge!3çãO precedente, a de nossos avós, - Enfim, eles não lêem mais.
ela proibJa, pura e snnplesmente, a leitura às moças -Não.
. - E verdade! Sobretudo os romances: "a ~a- - Solicitados demais, lã fora.
gmação é a perdição do lar". Coisa ruim para 0 -É.
casamento...
' 1

- Enquanto que boje. .. Os adolescentes são


clientes totais de uma sociedade que os veste os
distrai, os alimenta, os cultiva: onde floresce~ os
macdonald's e as marcas de jeans, entre outros. Nós
íamos a festinhas, eles saem para as boates, nós
líamos livros, eles devoram cassetes ... Nós adoráva-
mos comungar sob os auspícios dos Beatles, eles se
fecham no autismo dos walkmans... E a gente vê
essa coisa estranha, bairros inteiros confiscados pela
adolescência, gigantescos territórios urbanos consa-
grados às deambulações adolescentes.
Aqui, evocação do Beaubourg. • • R.E.R.: Rcseau Exprcss Regional, sistema de transporte rápido, integrado às
linhas de mettõ, que liga Paris à sua cncnsa periferia suburbana. (N. da T.)
•• Buraco dos Hallcs: referência ao grande centro comercial subterrâneo que
• Bcaubowg: - do quarteirio (Plateau Bcaubourg) onde estj situado o ocupa a área do antigo mercado de Paris e a grande estação de metrô e R.E.R.
Cadro Georges Pompidou que recebe, por meosão, esse apelido. (N. da T.) Oiitelet-Les-Halles, à qual o centro comercial está ligado. (N. da T.)

- 28 - - 29 -
9
10

■ E quando nã_o_é o processo acusatório ffi!~ E assim vão _nossos propósitos, vit?ria
contra a televisao ou o consumismo fala- ~ · ~ perpétua da lmguagem sobre_a opac1da-
se da invasão eletrônica; e se a culp~ não ' de das coisas, silêncios lummosos que
~ dos joguinhos hipnóticos, é da escola: a aprendi- dizem mais do que calam. Vigilantes e informados,
zagem aberrante da leitura, o anacronismo dos pro- não somos os enganados da nossa época. O mundo
gramas, a incompetência dos professores, a decadê n- inteiro está naquilo que dizemos - e totalmente
cia dos prfdios, a falta de bibliotecas. esclarecido pelo que calamos. Somos lúcidos. Melhor
B o que mais, ainda? ainda, temos a paixão da lucidez. . .
Ah! sim, o orçamento do Ministério da Cul- De onde vem então essa vaga tnsteza de depo1S da
tura.•• uma miséria! E a parte infinitamente pequena conversa? Desse silêncio de meia-noite na casa devol-
mrenada ao -i..ivro" n ~ bolsa microscópica. vida a ela mesma? Da perspectiva da louça a lavar?
OJmo i que \'DCês querem, nessas condições, Vejamos.. . A algumas dezenas de metros daqui - um
que meu filho, que minha filha, que nossos filhos, que sinal vermelho - nossos amigos estão presos nesse
os jovens, leiam? mesmo silêncio que, passada a embriaguez da acuidade,
- Alim do mais, 16-se cada vez menos, de toma conta dos ~ quando voltam para casa, em
seus carros fechados. É como um certo gosto de ressaca,
maneim_Jeral... o fim de uma anestesia, uma lenta volta à consciência,
-Bwnladc. o retomo a si mesmo e o sentimento vagamente dolo-
roso de não nos reconhecermos naquilo que estivemos
dizendo. Nós não estávamos lá. Tudo mais estava, certo,
os argumentos eram justos -e, sob esse ponto de vista,
tínhamos razão -, mas não estávamos lá. Sem dúvida,
mais uma noite sacrificada à prática anestesiante da
lucidez.

- 31 -
- JO -
É assim ... a gente pensa estar voltando para casa
e é para dentro de si mesmo que está voltando.
O que dizíamos agora mesmo, em torno da
mesa, era o oposto do que se dizia dentro de nós.
Falávamos da necessidade de ler, mas estávamos lá,
perto dele, no quarto dele, do que não lê. Enumerá-
vamos as boas razões que a época lhe fornece para
não gostar da leitura, mas buscávamos atravessar o
livro-muralha que nos separa dele. Falávamos do
livro, mas não pensávamos senão nele.
Ele, que não melhorou nada as coisas, descendo 11
para a mesa no último segundo, sentando sua falta
de jeito de adolescente sem uma paJavra de desculpa,
não fazendo o menor esforço para participar da con-
versa e que finalmente se levantou sem esperar a
sobremesa:
-Me desculpem, preciso Jer.
l!i A intimidade perdida... . A

Pensando bem, nesse começo d~ msorua,


aquele ritual da leitura, toda nmte, à sua


cabeceira, quando ele era pequeno - hora certa e
gestos imutáveis -tinha um pouco de pr~. Aquele
súbito armistício depois da barulhada do dia, aqueles
reencontras fora de todas as contingências, o mo-
mento de recolhido silêncio antes das primeiras pa-
lavras do conto, nossa voz enfim igual a ela mesma,
a liturgia dos episódios ... Sim, a história lida cada
noite preenchia a mais bela das funções da prece, a
mais desinteressada, a menos especulativa e que não
diz respeito senão aos homens: o perdão das ofensas.
Não se confessava falta alguma, não se pensava na
graça de um quinhão de eternidade, era um momen-
to de comunhão entre nós, a absolvição do texto, um
retomo ao único paraíso válido: a intimidade. Sem
saber, descobríamos uma das funções essenciais do
conto e, mais amplamente, da arte em geral, que é
impor uma trégua ao combate entre os homens.
O amor ganhava pele nova.
Era gratuito.

- 32 - - 33 -
12 13

l!!I
Gratuito. Era bem assim que ele enten-
dia. Um presente. Um momento fo_ra d<?s
momentos. Apesar de tudo. A históna
noturna o liberava do peso do dia Largávamos as
g o
que foi então que aconteceu entre
aquela intimidade e ele, agora, batendo-
se contra um livro-falésia enquanto nós
procuramos entendê-lo ( quer dizer, nos tranqüilizar-
amarras. Ele ia com o vento, imensamente leve, e o mos), incriminando o século e a televisão -que nos
vento era a nossa voz. esquecemos talvez de apagar?
Como preço dessa viagem, não se exigia nada Culpa da tevê?
dele, nem um tostão, não se pedia a menor compen- O século vinte demasiado visual? O século deze-
sação. E não era nem mesmo uma recompensa. (Ah! nove descritivo? E por que nã<? o dewito. racional
as recompensas-como era preciso se mostrar digno demais, o dezessete clássico demais, o dczcssetS Renas-
de ter sido recompensado!) Aqui, tudo se ~ v a no cença demais, Púchkin demasiado russo e Sófocles de-
país da gratuidade. masiado morto? Como se as relações entre o homem e
A gratuidade, que ~ a única moeda da arte. o livro tivessem necessidade de séculos para se espaçar.
Bastam alguns anos.
Algumas semanas.
O tempo de um mal-entendido.
Na época em que, na cabeceira de sua cama,
evocávamos o vestido vermelho de Chapcuzinho e, nos
mínimos detalhes, o conteúdo de sua cesta, sem esque-
cer as profundezas da floresta, as orelhas da avó estra-
nhamente peludas de repente, a cavilheta e a taramela,•
• No original. la cJieviJklu ei la boblnetl~, n:íer~ncia à narrativa do conlo de
Panult. consagrada popularmente como c:llprcssio núg,ic::a do tipo •abra-te
ammo•. (N. da T.)

- J4 - - 35 -
- _,..ttfsamos lembrança de que ele a ~ essas
nao ~--- .
descrições Jon~ delJllm.
E não foram séculos que se passaram, desde
então. ham .
Apenas esses momentos a quf: e amos a vida,
e aos quais damos ~ de et~nuda~e, a golpe de
princípios inatingíve1S: "É preaso ler.

14

Lá como cá, a vida se manifesta ix:ta e~o-


são de nosso prazer. Um ano de histónas
na cabeceira da cama dele, tudo bem. Dois
anos, vai. Três, limite. Isso totaliza mil e noventa e cinco
histórias, à base de uma por noite. 1.095, é um número!
E se fosse só o quarto de hQra do conto... mas tem o
tempo que o antecede. O que é que vou poder contar
esta noite? O que é que vou ler?
Nós conhecemos os tormentos da inspiração.
No começo, ele nos ajudava. O que o seu encan-
tamento exigia de nós não era uma história, mas a
mesma história.
- Outra vez! Outra vez o Pequeno Polegar!
Mas meu filhote, não existe só o Pequeno Polegar,
olha só, tem o ...
Pequeno Polegar ou nada.
Quem diria que iríamos sentir falta da época
feliz em que sua .floresta era povoada somente pelo
Pequeno Polegar? Por um pouco mais e chegaríamos
até a nos maldizer por termos ensinado a ele a diver-
sidade, dado a escolha.
- Não, essa não, você já me contou!
Sem se tomar uma obsessão, a questão da esco-
lha virou um quebra-cabeças. Incluindo algumas sú-

- 36 - - 37 -
bitaS resoluções: correr no próxim.o sábad~ a uma outra urgência doméstica, ou um momento de silên-
livraria especializada e examinar a litera~ra infantil. cio, simplesmente... uma leitura para si mesmo.
No sábado seguinte passávamos ao pró~o. O que O contador, em nós, estava perdendo o fôlego,
continuava sendo para ele uma e~ativa sagrada, prestes a passar adiante a tocha.
havia adentrado, para nós, o ~omlDlo das preocupa-
ções domésticas. PreoCUpaçao menor, mas que se
somava a outraS, de tamanhos mais respeitáveis. Me-
nor ou não, uma preocupação herdada de um prazer
é para ser acompanhada de perto. E nós não a acom-
panhamos.
Twemos momentos de revolta.
-Por que eu? E por que não você? Essa noite
sinto muito, mas é você quem vai contar a história! '
- Você sabe muito bem que não tenho imagi-
nação nenhuma...
Logo que aparecia uma oportunidade, incum-
bíamos uma outra voz, primo, prima, baby-sitter, tia
de passagem, uma voz até então poupada, que en-
contrava ainda graça no exercício, mas que perdia
muitas vezes o entusiasmo diante de suas exigências
de públioo exigente:
-Não é ~im que a avó responde!
Trapaceávamos vergonhosamente, também
~ de uma vez negociamos o preço que a históri~
valia para ele.
. -Se você continuar, não vai ter história hoje à
noite.
_ Ameaça que raramente púnhamos em execu-
çao._ Dar um berro ou privá-lo da sobremesa não
trazia a me~or ~nseqüência. Mandá-lo para a cama
sem a sua históna era mergulhar seu dia numa noite
negra d~~- Era abandoná-lo sem o ter encontra-
do. ~mçao mtoleráve~ para ele e para nós.
bem verdade que esta ameaça, nós a proferi-
fadi oh! umas três -
mos ... - o subterfúgio . de uma
de =::, •-··.
tentação mal revelada de utilizar esse quarto
por uma vez, para fuer outra coisa, uma
- 39 -
- 38 -

1.a.
faz UD1 só, a mochila sacolejando nas costas, e já é a
porta da escola, o beijo rápido, o pátio de cimento e
as castanheiras escuras, os primeiros decibéis... ou
bem ele se protege sob a parte coberta da entrada ou
entra logo na dança, isso varia, mas logo eles se
encontram todos sentados por trás de mesas lilipu-
tianas, imobilidade e silêncio, todos os movimentos
do corpo forçados a domesticar somente o movimen-
15 to da pena nesse corredor de teto baixo: a linha!
Língua de fora, dedos canhestros e pulso pesado ...
pontezinhas, pauzinhos, curvas, redondos e pontezi-
nhas... e a cem léguas de distância de mamãe, mer-

l!!f
A esoola veio na hora certa. gulhado, nesse instante, nessa solidão estranha que
E tomou o futuro pela mão. se chama esforço, cercado de todas essas outras soli-
Ler, escrever, contar... dões de língua de fora .. . e eis o encontro das primei-
No oom~ ele sentiu um eJ1h1siasmo verdadeiro ras letras .. . linhas de "a" ... linhas de "m"... linhas de
Que todos aqueles pauzinhos, laços, cwvas re~ "t"... (nada fác~ o "t", com essa barra transversal,
dondos e pontezinhas juntos formassem letras ' era mas um doce, comparado com a revolução dupla do
bonito! E que aquelas letras juntas dessem em 'síla- "f", ao emaranhado de onde emerge o laço do "q" ... ),
bas, e que as sílabas, Jado a lado, fossem palavras, ele todas essas dificuldades, entretanto, vencidas passo
nem acreditava. E que certas palavras lhe fossem a passo ... até o ponto em que, imantadas umas às
familiares, era mágico! outras, as letras acabam por se organizar por elas
Mamãe, por exemplo, mamãe, três pontezinhas mesmas em sílabas .. . linhas de "ma" ... linhas de
um redondo, uma curva, outra vez três pontezinhas' "pa" ... e que as sílb a as, por sua vez...
outros redondos e curvas, mais uma nuvem em cim~ Resumindo, numa bela manhã, ou numa tarde,
e o resultado: mamãe. Como se recuperar desse as orelhas quentes ainda do tumulto do refeitório, ele
deslumbramento? assiste à aparição silenciosa da palavra sobre a folha
VaJ~ apena tentar imaginar a coisa. Ele acordou branca, lá, na sua frente: mamãe.
cedo. Sai~ aoompaohado pela mamãe, justamente, Ele já tinha visto, no quadro, é claro, reconhe-
num chUVJSCO de outono (é isso, um chuvisco de cido diversas v:zes, mas lá, debaixo dos olhos, escrita
outono e uma Juz de aquário maJ cuidado não sei a- por seus própnos dedos ...

= . . avaros oom a drama•=-


mos

bem de
- atmosfenca),
uuaçao , ! eleJse
dirige P~ ~ escola embuçado ainda no calor da
F:reúJtimo g~ ~e chocolate na boca, aper-
eaa mao ~ da cabeça, caminhando
pressa, fazendo do15 ~ s quando mamãe
Com uma voz meio incerta, no começo ele
balbucia as duas silabas, separadamente: "Ma-~ãe."
E, de repente:
-Mamãe!
Esse grito de alegria celebra o resultado da mais
gigantesca viagem intelectual que se possa conceber,

- 41 -
=:: •e de primeiro~ na 1~ ª_Passagem da
arbitrariedade gráfi~ à significação mais
da de emoção! Pontezmhas, ~as, redon-
carrega _ e mamãe! Está escnto lá, diante
dos, ouvem 1~•.,.. · •
lhos, mas é dentro dele que a coisa explode!
o é uma comb'~açao_
de seus não
AqUilo • de síJabas, nao
- _é uma
palavra, não é um conceito, nao é "'!"' m a~ae, é a
mamãe, a dele, uma tranSIDutaçao m ágica, que
:fa infinitamente mais do que a mais fiel das foto-
grafias. Nada mais do que uns redondos, umas pon- 16
tezinhas... mas que de repente - e para sempre _
deixaram de ser eles mesmos, de serem nada, para se
tornarem essa presença, essa voz, esse perfume, essa
mão, ~ corpo, essa infinidade de de talhes, esse
todo tão intimamente absoluto e tão absolutamente ,
-~;JJ!
,~
Ninguém se c~ra dessa me~amo rfose.
Não se retoma ileso de uma VIagem des-
-1io ao que está traçado ali, sobre os trilhos da . ~ sas. A toda leitura p reside, mesmo que
página, entre as quatro paredes da sala... seja inibido, o prazer de ler, e, por sua natureza mesr:ia
A pedra filosofal. - essa fruição de alquimista - , o prazer de ler nao
Nem mais nem menos. teme imagem, mesmo televisual e mesmo sob a for-
Ele acaba de desoobrir a pedra fiJosofal. ma de avalanches cotidianas.
Se entretanto, o prazer de ler ficou perdido (se,
como ~ diz, meu filho, minha fiJha, os jovens não
gostam de ler), ele não se perdeu assim tão comple-
tamente.
Desgarrou-se, apenas.
Fácil de ser reencontrado.
Ainda que seja preciso saber por qual caminhos
procurá -lo, e para fazê-lo, enu merar algumas verda-
des sem relação com os efeitos da modernidade sobre
a juventude. Algumas verdades que nos concernem.
E s6 a nós .. . que afirmamos "gostar de ler", e que
pretendemos partilhar esse amor.

- 43 -
-'2-
~IIIJ'■WIIIUUUJIJ//BlllalllfWJ'.15 MMl,,,..11-~
0--lltalta:1'1111111111111 , _ .. ,...... -- - -

17 18

l!I
Asmn, tocado pelo encantamento, ele
volta da escola cheio de confian_ça em s~
e mesmo feliz, para sermos precisos. Exi-
be suas manchas de tinta como condecorações. As
g Nós nos deixamos ~car cegos por ~e
entusiasmo? Acreditamos que bastana
a uma criança o praze r das palavras
para dominar os livros? Pensamos que a ap~en-
teias de aranha de sua caneta esferográfica quadrico- dizagem da leitura iria por si mesma, co~o vao a
lor são para ele enfeites de que se orgulha. marcha vertical ou a linguagem - resummdo, um
Uma felicidade que compensa ainda os p rimei- outro privilégio da nossa espécie? O que quer q~e
ros tormentos da vida escolar. dias absurdamente seja, é o mome nto que escolhemos para pôr fim as
longos, exigências da professora, barulhada do refei- leituras noturnas.
tório, primeiras turbulências do coração ... A escola ensinava a ler, ele punha paixão nisso,
Ele chega, abre a mochila, expõe suas proezas, era uma virada na vida dele, uma nova autonomia,
repete as palavras sagradas (e, se não é "mamãe ", uma outra versão do primeiro passo, e foi isso que
será "papal"", ou "bala" ou "gato", ou seu próp rio nos dissemos, confusamente, sem na verdade nos
nome...). dizermos, tanto que o acontecimento nos pareceu
Na ma, ele se transforma no substituto incansá- "natural", uma etapa como outra qualquer na evolu-
vel das grandes epístolas publicitárias.. . Renault, ção biológica, sem choque.
Mesbla, Minalba, Minerva, Campeiro, as palavras Ele estava grande, agora, podia ler sozinho, ca-
lhe caem do céu. Marca nenhuma de sabão resiste à minhar sozinho no território dos signos.
sua paixão de decifrar: Ele nos devolvia, enfim, nossos quinze minutos
- "La-va-mais-bran-co", o que é que é isso, de hberdade.
"lavamaisbranco"? Sua confiança, nova em folha, não fez grande
Porque bateu a hora das questões essenciais. coisa para nos contradizer. Ele se enfiava na cama,
BABAR aberto sobre os joelhos, uma ruga de con-
centração entre os olhos: ele lia.

- 45 -
- 44 -
Garantidos por essa pantomima, saíamos de seu
quarto sem a,mpreender_-ou sem quere~ conf~r
-que aquilo que uma cnança aprende pnmeiro não
é O ato, mas o gesto do ªI<?, e que, se por um lado, ela
pode ajudar na ap~ndizagem, ~ ostentação é,
acima de tudo, destinada a tranqutlizá-lo, nos con-
tentando.

19

9 1r-rr Nem por isso nos transformamos em


~ ' ~ pais indignos. Nós não o abandonamos
- ·- à escola. Pelo contrário, acompanha-
mos bem de perto seu progresso. A professora nos
conhecia como pais atentos, presentes a todas as
reuniões, "abertos ao diálogo".
Nós ajudamos o aprendiz a fazer seus deveres.
E quando ele manifestou os primeiros sinais de sufo-
cação em matéria de leitura, insistimos bravamente
para que ele lesse sua página coticliana, em voz alta,
e que ele lhe compreendesse o sentido.
Nem sempre era fácil.
Um parto, cada sílaba.
O sentido da palavra perdido no esforço de sua
composição.
O sentido da frase atomizado pela quantidade
de palavras.
Voltar atrás.
Retomar.
Infatigavelmente.
- Então, o que foi que você acabou de ler? O
que é que quer dizer?
E tudo isso no pior momento do dia. Ou seja, na
volta dele da escola, na nossa volta do trabalho. Ou

- 47 -
seja, no ápice do seu cansaço e no vazio de nossas Só que nós, "pedagogos", somos credores a-
pressados. Detentores do Saber, emprestamos com
Corça_: Mas yad não faz n~nh~m esforço! juros. E é preciso que isso renda. Depressa! Sem o
Nerwsi9DO, gritos, renonaas espetaculares, por- que, é de nós mesmos que duvidamos.
taS que batem, teiJDaS:
-Começar tudo, começar tudo bem do começo!
E ele recomeça, desde o ~meço, cada palavra
deformada pelo tremor dos lábios.
_ Não adianta fazer cena!
Mas aquela tristeza não procurava nos fazer
mudar. Era uma tristeza verdadeira, incontrolável
que nos dizia da dor, j~amente, de_ não poder coa~
trolar mais nada, de nao poder ma.JS representar 0
papel à JIOS,Çl satisfa_?O e que se ~imentava na fonte
da nossa preocupaçao, muito maJS do que nas mani-
f ~ da no.m impaciência.
Porque estávamos preocupados.
O>m uma preocupação que rapidamente nos
Jewu a compará-lo a outras crianças de sua idade.
E a questionar tais e tais amigos, cuja filha, não
não, ia muito bem na escola, devorava os livros, é isso~
E se ele .fime surdo? Disléxico, talvez? Iria nos
fuer uma "rejeição escolar"? Acumular um atraso
irrecuperável?
. Omsultas variadas: audiograma dos mais nor-
lD3JS.
Diagn6stia>s tranqüili7.adores de fonoaudiólo-
gos. Serenidade de psicólogos...
F.ntão?
Preguiçoso?
Simplesmente preguiçoso?
é ~ao, ~seguia~ seu ritmo, e era tudo, o que não
~ t e o_ ntmo ~ um outro e que não é
~ o n ~ uniforme de uma vida, seu
ritnxJ
broasde leitor_aprendiz, que oonhece acelerações e
rJjpyas,re,pS1IJeS, peifodos de hulimia e longas sestas
safe de avançar e medo de decepcionar.. .
- 49 -
- 48 -
Onde, então, é que foram se esconder todos
aq_uel~ personagens mági~s! aqueles irmãos, irmãs,
reis, ramhas, aqueles heróis tão perseguidos por tan-
tos inimigos e que o a~avam da aflição de ser
chamando-o a ajudá-los? E possível que eles tenha~
aJgurna coisa a ver com esses traços de tinta brutal-
mente apertados que se chamam letras? É possível
20 que aqueles semideuses tenham sido despedaçados
a esse ponto, reduzidos a isso: signos impressos? E o
livro tornado esse objeto? F.stranha metamorfose! O
inverso da magia. Seus heróis e ele sufocados juntos
na muda espessura do livro!
S~, como se costuma dizer, meu filho, E não é das menores metamorfoses, esse furor
-=-. ~ mmha filha, os jovens não gostam de ler, determinado de papai e mamãe, tal como da profes-
ou melhor, não amam a leitura - e sora, em querer que ele libere esse sono aprisionado.
verbo é justo porque se trata bem de uma ferida de0 -Então, o que foi que aconteceu com o prínci-
amor - não é preciso incriminar nem a televisão pe? Eu estou esperando!
nem a modernidade, nem a escola. Ou incriminam~ Esses pais nunca, nunca, quando liam um livro
tudo isso, se quisermos, mas somente depois de nos para ele, se preocupavam em saber se ele tinha en-
tendido bem que a Bela dormia no bosque porque
termos colocado esta primeira questão: o que foi que tinha sido picada por um fuso, e Branca de Neve
fizemos daquele leitor ideal que ele era, naquele porque tinha mordido a maçã. (Nas_primeiras vezes,
tempo em que representávamos, de uma só vez, o aliás ele não tinha mesmo entendido, de verdade.
papel do contador e do livro? Havfa tantas maravilhas, nessas histórias, tantas pa-
A enormidade dessa traição! lavras bonitas tanta emoção! Ele punha toda aten-
Formávamos, ele, o conto e nós, uma Trindade ção em espeJr o pedaço preferido, que_ re~itava, ele
a cada noite reconciliada: agora, ele se encontra só, mesmo, no momento chegado; e depois vmham ~
diante de um livro hostil. outros, mais obscuros, onde se atavai:n todos os mis-
térios, mas pouco a pouco el_e entendia tudo, absolu-
A leveza de nossas frases o libertava da gravida- tamente tudo, e sabia perfeitamente que, se a Bela
de; o indecifrável movimento confuso das letras su- dormi~ era por causa do taJ fuso, e Branca de Neve
foca até mesmo suas tentações de sonho. por causa da maçã ... ) fi .
Nós o havíamos iniciado na viagem vertical; ele - Vou repetir minha pergunta: 0 que º' que
foi abatido pela estupefação do esforço. . aconteceu a esse prfnc,pe• quando seupaio expulsou do
Nós o havíamos dotado de ubiqüidade; e1-Jo castelo? - é possível
agora preso em seu quarto, em sua sala de aula, em Insistimos, insistimos. Meu Deus, nao 'd
seu livro, numa linha, numa palavra. que esse garoto nao _ tenha entendido o conteu o

- 51 -
- 50 -
dessas quinze Jinh~! ~nal ~e contas, não é nenhum
fim de mundo, qwnze lmhas.
Éramos o contador de histórias e nos tornamos
contadores, simplesmente.
Eh! é isso...
É isso. .. A televisão elevada à clignidade d
recompensa ... e, em corolário, a leitura redUZ1ºda e
. - ... e• bem no~o, esse achado ao
, l de o bngaçao
ruve ...
21

"iil.:_ ~ "A leitura é o flagelo da infância e quase a


;S única ocupação que se sabe lhe dar. ( ...)
Uma criança não fica muito interessada
em aperfeiçoar o instrumento ~om o qual é °!°rmenta-
da; mas façais com que esse instrumento suva a seus
prazeres e ela irá logo se aplicar, apesar de v6s.
Dá-se a um grande trabalho emprocuraros melhores
métodos para ensinar a ler, inventam-se escrivaninhas,
cmtões, faz-se do quarto de uma criança uma oficina de
impressão(...) Queridículo! Um meio mais seguro do que
esses todos, e é aquele que se esquece sempre, é o desejo
de aprender. Dai. à criança o desejo de VO&SaS esaivani-
nhas ( .. .); todo método lhe sení bom.
O interesse presente; aí está o grande impulro, o
único que conduz com segurança, e longe.
( ...)
Acrescentarei a única palavra que faz uma impor-
tante máxima; é que, em geral, se obtém mais segura-
mente e mais depressa aquilo que não se está, de modo
nenhum, apressado em obter."
Está certo, está certo! Ro~eau não deveria ter
~oz no capítulo, ele que jogou seus filhos fora com a
agua do banho familiar! (Ditado idiota ...)
- 52 -
- 53 -
Não importa ... ele intervém, bem a propósito,
embrar que a obsessão adulta do "saber ler"
paranOS l .d d
não data de ontem ... nem a estup1 ez os achados
pedagógicos que se elaboram contra o desejo de
aprender. . . .
E depois (ó.o nso ~h~ do an10 paradoxal!)
pode acontecer que um pat rwm tenha excelentes
princípios de educação e um bom pedagogo, princí-
pios e.'tecráveis. Assim é.
~Ias se Rousseau não é recomendável, o que 22
dizer de Valéry (Paul) - que não tinha ligação com
a Assistência Pública, ele que, fazendo às jovens da

g
austera Légion d'Jwnneur o discurso mais edificante
possí\'el. o mais respeitoso da instituição escolar, "Ele é um público implacável e ~lente."
passa direto ao essencial do que se pode dizer em Ele é, desde O começo, o bom leitor q~e
matéria de amor, de amor pelo livro: continuará a ser se os adultos que o ru-
d m alimentarem seu entusiasmo em lugar d~ pôr
"SenhoriJas, não é, de modo algum, sob o aspecto ~unro~a sua competência, estimularem seu deseJ'? de
do vocabulário e da sintaxe que a Literatura começa a a prender, antes de lhe impor o dever de reatar,
nos seduzir. Lembrai-vos simplesmente de como as a~mpanharem seus esforços, sem se conte~tar de
Letras se inlroduzem em nossas vidas. Na idade mais esperar na virada, consentirem em perder n01tes, em
tenra, mal cessam de nos cantar a cantiga que faz o lugar de procurar ganhar tempo, fizerem vibrar o
recém-nascido sorrir e adormecer, abre-se a era dos presente, sem brandir a aD?-ea~ do futuro, se recusa-
contos. A criança os bebe como bebia seu leite. Ela exige rem a transformar em obngaçao aquilo que era pra-
a seqüência e a repetição das maravilhas; ela é um zer, entretendo esse prazer até que ~lese faça um
público únplacável e excelente. Sabe Deus as horas que dever, fundindo esse dever na gratwdade de toda
perdi em alimenJar de mágicos e monstros, piratas e aprendizagem cultural, e fazendo com que encon-
fadas, os pequeninos que gritavam: Mais! a seu pai trem eles mesmos o prazer nessa gratuidade.
faligado."

- 54 - - 55 -
Na noite seguinte, mesmos encontros. E mesma
leitura, provavelmente. Sim, há chances de que ele
nos reclame o mesmo conto, coisa de provar a si
mesmo que não estava sonhando na véspera, e que
nos faça as mesmas perguntas, nos mesmos lugares,
apenas pela alegria de nos escutar lhe dando as
mesmas respostas. A repetição é confortadora Ela é
prova de intimidade. Ela é respiração mesma. Ele
23 tem neces.5idade de reencontrar esse sopro:
-Mais!
"Mais, mais ... " quer dizer, na bucha: "É preciso
que nos amemos, você e eu, para nos satisfazermos
~ 'E ~ra, este prazer está bem próximo. Fá- com esta mesma história, infinitamente repetida!"
~ -~ cil de reencontrar. Basta não deixar os Reler não é se repetir, é dar uma prova sempre nova
. . anos passarem. Basta esperar O cair da de um amor infatigável.
noite, abnr de novo a porta do seu quarto E ntão relemos.
, b . , nos O seu dia ficou para trás. Estamos aqui, enfim
sent armos a sua ca eceua e retomarmos nossa 1 •
tura em comum. e1- juntos, enfim em outro lugar. Ele reencontrou o mistério
Ler. da Trindade: ele, o texto e nós (na ordem que se quiser
Em voz alta. porque toda felicidade vem justamente de não se poder
Gratuitamente. pôr em ordem os elementos desta fusão!).
Suas histórias preferidas. Até que ele se ofereça o último prazer do leitor,
que é o de se cansar do texto, e nos pedir para passar
O que a~ntece e~tão vale a descrição. Para a um outro.
começar, ele nao acredita nos seus ouvidos. Gato Quantas noites pa~mos~ perdidas em desa-
escaldado tem medo de histó rias! A coberta puxada ferrolhar as portas do imaginário? Algumas, não mais.
até o queixo, ele está alerta, esperando a armadilha: Outras mais, admitamos. Mas o jogo valia a pena E
- Bom, o que foi que eu acabei de ler? Você ei-lo de novo aberto a todas as narrativas ~íveis.
entendeu?
Enquanto isso, a escola prossegue seu apren-
Mas olha só, não lhe fazemos essas perguntas. dizado. Se ele não apresenta ainda progresso no
t:lem outra qualquer. Nos contentamos em ler. Grá- balbucio de suas leituras escolares, não nos assus-
tis. Ele se descontrai pouco a pouco. {Nós também.) temos, o tempo está do nosso lado desde que não
Ele recupera _lentamente aquela concentração so- queiramos ganhá-lo.
nhadora que tinha o seu rosto, de noite. E nos reco- O progresso, este famoso "progresso", se manifes-
nhece, enfim. A nossa voz recomposta. É possível tará num outro terreno, em um momento inesperado.
q~e, sob o choque, ele adormeça logo nos primeiros Uma noite, porque pulamos uma linha, vamos
mmutos... o alivio. escutá-lo gritar:

- 56 - - 57 -
- Você pulou um pedaço! de cor, que reconhece mais do que lê, mas que lê assim
-O quê? rnesrno pela alegria de reconhecê-los. Não está longe
- Você ~assou, você pulou um peda 1 a hora, agora, em que vamos surpreendê-lo a um
-Mas nao, eu garanto... ço. da
momento ou outro do dia, comAs histórias caro-
-Medá! clunha nos joelhos, penteando, com Delfina e Mari-
Ele vai nos tomar O livro das - nette, os animais da fazenda.
dedo vitorioso, mostrará a linha :ados e, com um Há alguns meses, ele mal acabava de reconhecer
em v~z alta. P ª ª·
Que vai ler "mamãe''; hoje é uma narrativa que emerge inteira
E o primeiro sinal. da chuva de palavras. Ele se tomou o herói de suas
Outros seguirão. Ele vai e , . leituras, aquele a quem o autor havia investido do
romper nossa leitura: p gar o habito de inter- mandato, por toda a eternidade, de vir a liberar os
- Como é que isso se escreve? personagens presos na trama do texto - para que
-Issooque. A? · eles II}esmos o arrancassem das contingências do dia.
- Pré-histórico. E isso. Partida ganha.
-P.R.E.H.I.S . .. E se quisermos lhe dar um último prazer basta
-Deixa ver! adormecermos enquanto ele lê para nós. '
Não tenhamos ilusões
tem um pouco a ver com , essa brusca curiosidade
alquimista, claro, mas sob:e:UU:orecente vocação de
prolongar o tempo acordad0 com seu desejo de
(Prol onguemos, prolonguemos
N • )
umV a o utra noite, ele vai decr~~r:
- ou 1er com você! · 1,
Com a cabeça por e· d
s~guindo, por alguns m:ªen~ nosso ombro, ele irá
linhas que estamos lendo os, com os olhos, as
Ou então: ·
-Sou eu quem começo'
E vai se lançar de assalto ·3 . •
A Laboriosa, a sua leitu o pnmetro parágrafo.
fole~o, queseja .. . Nadaim ra, é certo; e logo sem
ele lesem medo E . porta, a paz reencontrada,
· vai 1er amda lh
voluntariamente. me or, cada vez mais
O Essa noite sou eu quem leio'
mesmo parán-r-:>f. é . .
repetição - d .õ• aio, evidente - as virtudes da
d ", depois textos 15 um outro
' epointe
0
• T , seu "pedaço preferi-.
uos. extos que conhece quase

- 59 -
- 58 -
24
II

g "Não se fará nunca um menino entender


que a noiJe fica bem no meio de uma
história cativante, não se fará jamais que
ele enJerula por uma demonstração só para ele mesmo.
É PRECISO LER
(O dogma)

que é preciso interromper sua leiJura e ir se deitar. n '

É Kafka quem diz isso, no seu diário, o pequeno


Franz, cujo papai teria preferido que ele p ~
todas as noites de sua vida a fazer contas.

- f,() -
25

Continua o drama do carinha em seu


quarto.
Ele também estava precisando se recon-
ciliar com "os livros"!
Casa vazia, pais deitados, televisão apagada, en-
tão ele se encontra só ... diante da página 48.
E essa "ficha de leitura" para apresentar ama-
nhã ...
Amanhã ...
Rápido cálculo mental:
446 - 48 = 398.
Trezentas e noventa e oito páginas a engolir
durante a noite!
Ele toma a decisão, heroicamente. Uma página
empurrando a outra. As palavras do livro dançam
entre as "orelhas" do seu walkman.
Sem alegria As palavras têm pés de chumbo.
Elas caem umas após outras, como esses cavalos
feridos que a gente mata Nem mesmo o solo de
bateria consegue ressuscitá-las. (E no entanto, um
tremendo baterista, Kendall!) Ele prossegue a leitura
sem se voltar sobre o cadáver das palavras. As pala-
vras revelaram o seu sentido, paz a suas letras. Essa

- 63 -

hecatombe não o assusta. EPláe ~~o 2u~m avança
É O dever que o empurra. gma , P gma 63.
Ele Jê.
o que é que ele está lendo? . .
A história d~ Emm~ Bovary. A históna de uma
moça que tinha hdo mmto:
"Ela tinha lido Paul et Vuginie e tinha sonhado
com a pequenina casa de bambu, o negro J?omingo, 0
cão Fidele, mas sobretudo com a ~oce amizade de um 26
bom innãozinho qualquer, que vai buscarfrutas verme.
lhas nas grandes árvores, mais altas que ton-es de igre-
jas, ou que corre de pés descalços na areia, trazendo um
11
ninho de passarinho. ~.,~ Enquanto isso, no colégio (com? diziam
O melhor é telefonar a Tiago ou a Stephanie
1 :~
- -
em itálico as históri~ em quadrinbos da
geração deles), os pais:
para que lhe passem as fichas de leitura deles, ama-
nhã de manhã, para copiar às pressas, antes de entrar
_ o senhor sabe, meu filho.• • minha filha.·· os
na aula, sem ser visto, eles lhe devem bem isso. livros... ai
O professor de francês entendeu: o uno em
"Quando ela fez treze anos, seu pai a levou, ele questão "não gosta de ler". .
mesmo, à cidade, para interná-la no convento. Eles -O que é mais surpreendente é que em cnança
desembarcaram num albergue do baino Saint Gervais ele lia muito ... até adorava, não é, meu bem, pode-se
onde lhes serviram, no jantar, pratos pintados que dizer que ele devorava ...
representa\.·am a história da senhorita de La Valliere. Me_µ bem opina: ele devorava. . . _
As explicações, cortadas aqui e ali pelo aminhado das -E preciso dizer que nós proibnnos a televtsa.o!
facas, glorificavam todas a religião, as delicadezas do (Outro caso comum, esse: a proibição absoluta
coração e as pompas da Corte. " da tevê. Resolver um problema suprimindo seu enun-
ciado, mais um famoso truque pedagógico!)
A fórmula: "lhes serviram, no jantar, uns pratos - É verdade, nada de televisão durante o ano
pintados ..." lhe arranca um sorriso cansado: "Deram escolar, é um princípio que nunca transigimos!
pratos vazios pra eles comerem? Fizeram eles bicar Nada de televisão, mas piano de cinco às seis,
a história dessa 4 Valliêre?" Ele se faz de esperto. violão de seis às sete, dança na quarta-feira, judô,
Ele se crê à margem da sua leitura. Errado, sua ironia tênis, esgrima no sábado, ski desde os primeiros
acertou no aJvo. Porque as suas infelicidades simétri- flocos de neve, estágio de vela desde os primeiros
cas vêm daí: Emma é capaz de olhar seu prato como raios de sol, cerâmica nos dias de chuva, viagem à
um livro, e ele, seu livro como um prato. Inglaterra, ginástica rítmica ...

- 64 - - 65 -
dar 3 menor chance ao pequeno quarto de
Sern · esmo
bora de encontro com s1 m .
Ataque ao -~nho.
Abaixo o ted10.
O beJo tédio .. .
o longo tédio.. .
Que toma toda a criação po~el. ..
_ Nós fazemos tudo para que ele não se abor-
reça nunca.
(Coitado dele... )
-Nós temos, como dizer? Nós temos o cuidado
de dar a ele uma formação completa...
- Eficiente, sobretudo, meu bem, eu diria me-
lhor eficiente.
- Sem o que, não estaríamos aqui
- Por sorte, os resultados dele em matemática
não são ruins ...
g E ~im vão as nossas existências: ele
traficando fichas de leitura, nós face ao
espectro de sua repetência, o professor
. O livrº·'
em sua matéria ultrajada. .. E viva
- Evidentemente, em comunicação e ex-
press~o....
O o pobre, o triste, o patético esforço que impo-
mos a nosso orgulho para irmos assim, quais bur-
gueses de Callais* e daqui, as chaves do nosso fracas-
so estendidas na frente, visitar o professor - que
escuta, o professor, e diz sim-sim, e que gostaria bem
de se oferecer uma ilusão, ao menos uma vez em sua
longa vida de professor, se oferecer uma ilusãozi-
nha ... mas não:
- O senhor pensa que um fracasso em sua
matéria possa ser causa para repetência?

• Re!eréncia a um episódio da Guerra do5 Cem Anos, cm que a c:ádadc de


CaJ_lais se rebelou contra o domfruo inglb. A revolta fm esmagada i; para salYar
a ada.de da destruição, seis burgueses se apresentaram _. w:ncedorea para
serem enforcados, levando as chaves da cidade. o rei da [nglatcrra levantou •
sentença_e a cidade foi prcsc:rvada. &se episódio foi reproduzjdo em escultura,
par _Rodm, e pode ser visto no porto de Caiws, assim como, em cópia, IIOI
Jardins do Mll5CU Rodin, em Paris. (N. da T.)

- 66 - - 67 -
da ecessidade de ler.
odos, todos, em nome n
Mast • afi a
O dogma. se não lê mais hoJe, um
Inclusive aquele que, tece que ele tem, de
ter lido ontem, acon . dos para trás e
qu~~ ~~a frente, se_us ;5tu~os/ : : , é claro ( é dos
ag .da "bem-sucedida ' ~ çaé ") mas reconhece
sua vt _ nada a rungu m ' ~ · mais
"que nao devem livros de que nao precisa . é
de bom grado que ~es. mesmo indispensávelS, '
28 lhe foram bastante
. 1 utelS .. •
. -dis-pen-sá-ve1s. . tanto que esse garoto
m _ Mas é preciso, entre ,
meta isso na cabeça!
~:;;~ Bem depressa um professor se toma um O dogma.
a

1

'
velho professor. Não que a usura da pro-
fissão seja maior do que outra qualquer,
não ... é de escutar tantos pais lhe falarem de tantos
filhos - e, assim fazendo, falarem deles mesmos -
e de escutar tantas narrativas de vidas, tantos divór-
cios, tantas histórias de família: doenças infantis,
adolescentes que não são mais controláveis, filhas
queridas cuja afeição escapa, tantos fracassos chora-
dos, tantos sucessos proclamados, tantas opiniões
sobre tantos assuntos, e sobre a necessidade de ler, a
absoluta necessidade de ler, unanimidade.
O dogma.
Tem aqueles que nunca leram e têm vergonha,
os que não têm mais tempo de ler e que cultivam o
remorso, há os que não lêem romances, só livros
úteis, ensaios, obras técnicas, biografias, livros de
história, há os que lêem tudo e não importa o quê, os
que "devoram" e têm olhos que brilham, há os que
só lêem os clássicos, meu senhor, "porque não há
melhor crítica do que a peneira do tempo", os que
passam a sua maturidade a "reler" e aqueles que
leram o último livro tal e o último tal outro, porque
é preciso, o senhor sabe, estar atualizado ...

- 68 - - 69 -
- Para conservar a memória do passado.
- Para esclarecer nosso presente.
- Para aproveitar as experiências anteriores.
- Para não repetir as besteiras de nossos ances-
trais.
- Para ganhar tempo.
- Para nos evadirmos.
- Para buscar um sentido na vida
29 - Para compreender os fundamentos de nossa
civilização.
- Para alimentar nossa curiosidade.
- Para nos distrairmos.
Ora, o "garoto" já tem isso na cabeça -Para nos informarmos.
Nem poi: um segundo ele questiona ~ - Para nos cultivarmos.
dogma E, pelo menos, o que aparece -Para comunicar.
claramente na sua dissertação: - Para exercer nosso espírito crítico.

Assunto: O ~ você p~a desta exortação de E ao professor cabe aprovar, na margem: "sim,
Gusta~e Flaubert a sua armga Louise Collet: "Leia sim, B, MB, AB, exato, interessante, é mesmo, muito
para vrver!" correto" e se conter para não se pôr a gritar: "Mais!
maisr', ele que, no corredor do colégio, essa manhã,
O garoto está de acordo com Flaubert, o garoto viu o "garoto" recopiar a todo vapor sua ficha de
~us cole~as,,e suas cole~. todos de acordo: "F1aubert leitura em cima da do colega, ele que sabe por expe-
~a ~o!_ Uma !1flat11;ffi1dade de trinta e cinco reda- riência que a maior parte das citações encontradas
çoes: e preciso ler, e precJSO ler para viver e é mesmo_ pelo caminho de certos sábios escritos saem de um
~ absoluta_ n~dade de leitura - o que nos dis- dicionário específico, ele que compreende, logo nu-
tin~e. do_ ~al, do bárbaro, do bruto ignorante, do ma primeira olhada, que os exemplos escolhidos
~ o histenco, do ditador triunfante, do materialista ("vocês citarão exemplos tirados de suas experiências
msacravel, é preciso ler! é preciso ler! pessoais") vêm de leituras feitas por outros, ele em
- Para aprender. cujas orelhas ressoam ainda os gritos que provocou
- Para dar certo nos estudos. ao impor a leitura do próximo romance:
- Para nos informarmos. - O quê? Quatrocentas páginas, em quinze
- Para sabermos de onde viemos. dias? Mas nós não vamos nunca chegar lá, professor!
-Para sabermos quem somos. -Tem o teste de matemática!
- Para conhecer melhor os outros. -E a dissertação de economia para entregar na
- Para saber para onde vamos. semana que vem!

- 70 - - 71 -
. etir. Ele come-
os têm tendên~1a ~ se rete recitalll seus
E ainda que conheça o papel que a televisão
representa na adolescência de !"latheus, de l.eila, de a se enervar.
?
os argument É um brevt~O, o A interminável
é preciso ler. ando
Brigitte, de Nacib ou de Cednc, o professor aprova ça . É preciso ler, . . é preciso ler... 9u ,.
mais uma vez, com o vermelho de sua caneta, quando alun?s.d alavra educauva. ue eles nao leem
Htania a pd frases deles prova q
Cedric, Nacib, Brigitte, Leila ou Matheus afumam cada uma as
que a tevê ("nada de abreviaç~ nas suas redações!") nunca!
é a inimiga Número Um do lMo - até mesmo 0
cinema se pensarmos bem - porque um e outro
supõem a passividade mais amorfa, lá onde ler valo-
riza o ato responsável. (MB!)
Aqui, entretanto, o professor pousa a caneta,
levanta os olhos como um aluno em devaneio e se
pergunta - oh! para ele só - se certos filmes
afinal, não lhe deixaram lembranças comparávei~
às de livros. Quantas vezes ele "releu" Amarcord,
A-fanhattan, Uma janela para o amor, A festa de
Babette, Fanny e Alexandre? Essas imagens lhe pa-
reciam portadoras do mistério dos signos. É claro
que essas não são proposições de um especialista
-ele não conhece nada de sintaxe cinematográfica
e não entende o léxico dos cinéfilos - , essas são
apenas proposições de seus olhos, mas seus olhos
lhe dizem claramente que há imagens cujo sentido
não se esgota e cuja interpretação renova, a cada
vez, a emoção, e mesmo imagens de televisão, sim:
o rosto do velho filósofo Bachelard, há tempos, em
Lectures pour tous ... a mecha do igualmente filóso-
fo Jankélévitch em Apostrophes* ... aquele gol de-
cisivo numa grande partida.
Mas a hora passa. Ele retoma suas correções.
(Quem descreverá, um dia, o que é a solidão do
"corretor anônimo"?) A partir de umas tantas reda-
ções, as palavras começam a saltar ante seus olhos.

• ~ pour Tous cApostropha: famosos programas de tdeYisio <kdicadol


aos livros, aos autores e à leitura. (N. da T.)

- 72 - - 73 -
d ixaSSe em paz, o deixasse trabalhar tranqüilo sua
B~vary, e que ainda não lhe f?sse fazer _um filho pel~
coStaS. Essa é a verdade, voce sabe mmto bem. "Leia . '
ara viver" na pluma de Flaubert quando escrevta a
p ' 1
Louise, queria dizer ~em e aro: "Leº d .
1a para m: e001r
viver", você explicou isso aos seus alunos? Nao? Por
quê?
Ela sorri. Põe a mão sobre a dele:
30 -É preciso enfrentar, meu bem: o culto do livro
passa pela tradição oral. E nisso você é mestre.

l~:'1 -Masporqueéquevocêse -
- estado, meu querido? Seus r
nesse
_ Que~â~:~aquilo que você espera ~~~! es-
-Que é preciso ler! O dogma você -
~perand~ certamente encontrar u~ paco~~ee:!:i:~
çoes glorificando os autodafés, não?
- O que eu espero é que eles desliguem os seus
walkmans e se ponham a ler de verdade'
- Nada disso. .. O que você espe~ é que eles
apresentem boas fichas de leitura sobre romances
que você lhes impõe, que "interpretem" corretamente
os poemas de sua escolha, que no dia do exame
analisem finamente os textos da sua lista, que "co-
mentem" judiciosamente ou que "resumam" inteli-
gentemente aquilo que o examinador lhes enfiará
debaixo do nariz, nessa manhã... Mas nem o exami-
nador, nem você, nem os pais aspiram verdadeira-
mente a que esses meninos leiam. Eles também não
desejam o contrário, note bem. O que eles desejaJ!1
é que eles se saiam bem nos seus estudos, ponto. E
tudo. De resto, eles têm mais o que fazer. Além disso,
Flaubert também tinha mais o que fazer. Se ele
mandava Louise aos livros dela, era para que ela o

- 74 - - 75 -
t6vamos h~tórias de Gogo! e ª!é ~ ~ obra de
Dostoievski - essa farsa ,nqwetanJe intitulada Uma
história ridícula."

( ...)

"Sem sombra de dúvida, as horas passadas no


escritório de meu pai estimulavam não somente nossa
31 imaginação, como também nossa curiosidade Uma
vez provado o encanto sedutor da grande liJeratura e o
reconforto que ela nos oferece, gostaríamos de conhecer
sempre mais - outras histórias ridículas e parábolas
-•~f=' ·'Não encontrei nada de estimulante 1IQr cheias de sabedo~ contos de múltiplas significações
~ ~ cursos disP,e~ados p~lo Estado. Mesmo e estranhas
. aventuras.
,,. E é assim que se começa a ler
~~ - =si que a matena do ensmo fosse mais rica por si mesmo ...
mais apaixo1Uirzte do que era na realidade, o pedantis~
mo nwroso dos profes~ores bávaro! me teria tirado , ~im falo~ Klaus Mann, filho de Thomas, o
0
gosto do assunto mais interessante. . .. Magico, e de Mielen, a de voz emocionada e bem
'Tudo,, que possuo de cultura literária adquiri.fora timbrada.
da escola ...
':45 vous dos poetas se confundem na minha
lembrança com as dos que me fizeram primeiro co-
nhecê-los: há certas obras-primas da escola roman&:a
alemã que não posso reler sem escutar novamente a
entonação da voz emocionada e bem timbrada de
Afielen. Durante todo o tempo em que, criançaa, ,i.
nhamos dificuldade em ler sozinhos, ela cultivava. 0
hábito de ler para nós."

(. . .)

"E no entanto, escutávamos com reverênciaaindií


maior a voz tranqüila do Mágico ... Os autores J.Wefeti•
dos dele eram os russos. Ele nos lia Os cossaco.t #
Tolstoi e as parábolas estranhamente infantis, dea.,a
• Klaus Mann, T1te 1iuning Point (N.Y. 1942). Autobiografia escrita original-
didatismo simplista, de seu último período... ~ mente cm ingles.. (N. da T.)

- 76 - - 77 -
colar - programas, notas, exames, classificações,
ciclos orientações, seções - afirma a finalidade
comp~titiva da instituição, ela mesma impulsionada
pelo mercado de trabalho.
Que o escolar, uma vez ou outra, encontre um
prof~r cujo _entusiasmo pareça ~nsiderar as ma-
temáacas em s1 mesmas, que as ensme como uma das
Belas Artes, que as faça serem apreciadas pela virtu-
32 de de sua própria vitalidade, graças à qual o esforço
se toma um prazer, tudo isso se deve ao acaso e nã0
à disR()sição natural da Instituição.
É próprio dos seres vivos fazer amar a vida,
?•7-:' Deprimente, de certo modo, essa UDani.- mesmo sob a forma de uma equação de segundo
~ k,: midade .. . Como se, das O~IVaçõesde grau, mas a vitalidade não esteve jamais inscrita no
2 ~ , ~ Rousseau sobre a ap~endizagem da lei- programa das escolas.
tura às de Klaus Mann sobre o _e~o ~ Letras pelo A função é que está lá.
Estado bávaro, passando pela uorua da Jovem CSJ.>9sa A vida está em outro lugar.
do professor para chegar às lamenta~ ~os alllilQs Ler é aJgo que se aprende na escola.
daqui e de agora, o papel da escola se limitasse, em Gostar de ler...
toda parte e sempre, ao ensino de técnicas, ao dever
do comentário, cortando o acesso imediato aos livros
pela proscrição do prazer de ler. Parece estabelecido
por toda a eternidade, em todas as latitudes, que 0
prazer não deva figurar nos programas das escolu e
que o conhecimento não pode ser outra coisa senão
fruto de um sofrimento bem comportado.
Tudo isso é defensável, entende-se.
E não faltam argumentos.
A escola não pode ser uma escola do pra7.er, o
qual pressupõe uma boa dose de gratuidade. FJa é
uma fábrica necessária de saber que requer esfo~.
As matérias ensinadas são, ali, os instrumentos da
consciência. Os professores encarregad~ ~~ma-
térias são os iniciadores e não se pode eXJgir queem&
proclamem a gratuidade da aprenda.agem inteJs.'rc
tual, quando tudo, absolutamente tudo na YIIMli.t&i

- 78 - - '79 -
_ Familiares.
_ Domésticas.
_ Gregárias.
_ Patológicas.
_ Pecuniãrias.
- Ideológicas.
_ Culturais.
_ Ou umbilicais.
33 Uma leitura bem \evada nos salva de tudo, in-
clusive de nós mesmos.
E, ' acima de tudo, lemos contra. a morte.
E Kafka \endo contra os pro1etos mercantis do
~ t~ É preciso ler, é p~~iso ler ... pai, é ~\annery _O'~nn?~ lend~ Dostoievski contra
~ ~ E se, em vez de eng,.r a leitura O pro~
1
a irorua da mae ( O idiota? E bem seu mesmo,
· decidisse de repente p a ~ sua p~r encomendar um livro com tal nome"), é Thibaudet
felicidade de ler'? Pna lendo Montaigne nas trincheiras de Verdun, é Henri
A felicidade de ler? O que que é isso, felicidad Mondor mergulhado no seu Ma\\armé na França da
de ler1 e Ocupação e do mercado negro, é o jornalista Kauff-
Questõ es que pressupõem um bem conhecido mann relendo infinitamente o mesmo volume de
cair em si mesmo, na verdade\ Guerra e Paz nas prisões de Beirute, é esse doente,
E para começar, vamos à confissão dessa verda- operado sem anestesia, de que Valéry nos conta que
de que vai radicalmente contra o dogma: a maior "encontrou um pouco de alívio, ou melhor, de descanso
parte das leituras que nos formaram não foram feitas para suas forças e para sua paciência, recitando para si
a favor, mas contra. Líamos, e lemos, como quem se mesmo, entre dois extremos de dor, um poema de que
protege, como uma recusa, como uma oposição. Se gostava". E é também o testemunho de Montesquieu,
isso nos dá ares de fugitivos, se a realidade perde as cuja distorção pedagógica deu tinta para tantas red~-
esperanças de nos ating~- por trás do amuleto que é ções: "O estudo foi assim para mim o soberaoo remédio
nossa leitura, somos fugitiVos ocupados em nos cons- contra os desgostos, não tendo jamais ~t~o "'!;teza
truir desertores nascendo outra vez. que tuna hora de leitura não me tivesse ~do. .
'eada leitura é um ato de resistência. De resis- Mas é mais cotidianamcnte, o refugio do livro
, • &. . ........""ento
tência a quê? A todas as contingências. Todas: contra o crepitar da chuva, o silencioso 0 1~ ..
das páginas contra a cadência do metrô, o rom~nce
-Sociais. • · h a, a breve leitura
escondido na gaveta da escnvanm
- Profissionais.
- Psicológicas.
do professor enquanto os alunos trabalham,: 0 ª
no fundo da sala lendo, disfarçado, esperan °ª
:o'~1

-Afetivas. de entregar a folha em branco.•·


- Climáticas.
- 81 -
- 80 -
Ou então, uma outra ofuscação, de embargar a
. co~º é que pode isso? que acaba de me perturbar
voi:. panto, não ter modificado em nada a ordem do
a~ ? É ~ível que n ~ século tenha sido aqw1o
rnunf ~ ·depOis de Dostoievski ter escrito Os J)OSSesSOs?
que º~e vêm Pol Pote os outros, quando se imaginou
De º~nagem de Piotr Verkhovenski? E o terror dos
0
pepas de concentração, se Tchekov escreveu A ilha
caIIlS k}--'ina? Quem se iluminou à branca luz de Kafka,
de, adeuu, . "dê .
34 0
nossas piores evi nC1as cortavam como placas
: ~oco? E então, mesmo quando acontecia e rolava o
he::.Or quem escutou Walter Benjamin? E oomo é
~~l que, q~~o tudo terminou, a terra inteira não
-:e ç- Difícil ensinar as Belas Letras, quando a t nha lido A espeae hwnana, de Robert Antelme, nem
~ :~ leitura requer, a tal ponto, recolhimento :ue fosse para hberaç o ~ o de C.arlo I..evi, definiti-
· e silêncio! vamente parado em Eboli.
Leitura. ato de comunicação? Mais uma belapiada Que os livros possam a esse ponto perturbar
dos comentaristas! Aquilo que lemos, calamos. O pra- nossa consciência e deixar o mundo caminhar para
rer do livro lido, guardamos, quase sempre, no segredo pior, é de emud~r.
de nosoo ciúme. Seja porque não vemos ~ ~ t o Silêncio, entao...
para ~ o , seja porque, antes de podermos dizer Menos, é claro, para os fazedores de ~ do
alguma co~ precisamos deixar o tempo fazer seu poder cultural.
delicioso trabalho de destilação. E este silêncio é a Ah! esses propósitos de salão, onde ninguém
garantia de noS5a intimidade. O livro foi lido mas tem nada a dizer a pessoa alguma e a leitura paS&l
estamos nele, ainda. Sua simples evocação ab~ um para o plano de assuntos de conversa possíveis. O
refúgio à nossa recusa. Ele nos preserva do Grande romance engolido como uma estratégia de comuni-
&t~rior._ Ele nos ?ferece um observatório plantado cação! Tantos gritos silenciosos, tanta gratuidade
mwto aC1ma das paisagens contingentes. Lemos e cala- obstinada para que um cretino vá se CD1>ir para uma
m~. Calamos porque lemos. Seria engraçado ver al- pretensiosa: "Como, você não leu nenhum livro de
~em emboscado nos esperando na virada de nossa Céline?"
leitura para nos perguntar: "Entãããão? É bom? Você Há quem mate, por menos que isso.
enten~eu? Relatório!"
• A~ ve~es, é a. humildade que comanda n ~
sile~CJ0 : Nao a glonosa humildade dos analistas pro-
fissionais, mas a consciência íntima solitária, quase
• -...., de queessa 1e1•tura aqu1. aqueleautoracolá,
dolorrn:~ '
vem, como se diz, "mudar minh; vida!"

- 82 - - 83 -
lhOU nele: toda a. força de uma obra está
!l'e{~ente, no varrer mais essa contingência! '
JUS Entretanto, com o passar dos anos, acontece que
ção do texto traz a le_!11brança do outro; certos
a ocase transformam, entao, em rostos.
811
tl'tu1os . .
E para se fazer Justiça, nem sempre o rosto de
'essoa amad~ mas o de (oh! raramente) um
urna ~tico ou de um certo professor.
certoAsSiID, acontece com}go! com Pierr~ Dumayet,
35 lhar sua voz, seus silenaos que, no livro Leitura
O
seu ara tod~s de minha infância, diziam de todo seu
P peito pelo 1e1tor que, graças a e1e, eu ..
.
ma me
res ar. AsSim, acontece com esse professor cuja pai-
-;:'i:i.·1· deE nocomun1caçao
~
enranto,_se_a le~tura não é um ato
imediata, é, certamente
torn
- pelos livros sabº1a encontrar todas as paaenaas
xao dar mesmo a ilusao
. .. . e
- d o amor. p orque era preciso .
5
· um objeto de partilhamento. Mas ~ noe ele nos distinguisse -ou que nos estimasse-a
parulhamento longamente retardado e violentamen- ~~s, seus alunos, para nos dar a ler aquilo que lhe era
te seletivo. roais caro.
Se fizéssemos o inventário das grandes leituras
de que somos devedores à Escola, à Crítica, a todas
as formas de publicidade o~ ao contrário, ao amigo,
ao amante, ao camarada de classe, até mesmo à
família - quando ela não coloca os livros no armário
da educação - o resultado seria claro: aquilo que
lemos de mais belo deve-se, quase sempre, a uma
peswa querida. E é a essa mesma pessoa querida que
falamos primeiro. Talvez porque, justamente, é pró-
prio do sentimento, como do desejo de ler, preferir.
Amar é, pois, fazer dom de nossas preferências àque-
le~ q?~ pre~erimos. E esses partilhamentos povoam
a IDVJSIVel Cidadela de nossa liberdade. Somos habi-
tados por livros e amigos.
Quando um ser querido nos dá um livro para ler,
é a ele quem primeiro buscamos nas linhas: seus
~ostos, as razões que o levaram a nos colocar ~
livro entre as mãos, os fraternos sinais. Depois é o
texto que nos carrega e esquecemos aquele que nos

- 84 - - 85 -
. ada em troca. Q~ndo a atenção de um ou de
pedia ntre nós esmorecia, ~ava de !er um segundo,
uinª cn sonhador e assobiava. Nao era uma re-
0
olhava .. era um alegre apelo à consciência Ele não
preensa~a nunca de vista Mesmo do fundo de sua
nos per te nos olhava por cima das linhas. Ttnha uma
leitura, e ra e clara, um pouco nasalada, que enchia
voz 5?nC:0ente O volume das salas de aula, como teria
perfei~ todo um anfiteatro, um teatro, o Champ de
36 oc 0 Pª ºro queJ· amais uma palavra fosse pronunciada
..1v,,(ars se
• ' lto que outra.
G da . . .
uar va, lllStintiVamente, as
~ 31s ª -es do espaço e de n05.50s miolos. Ele era a
dit?e~~ ressonância natural de todos os livros, a
~~~ Na biografia que consagra ao poet ca~ª ção do texto, o livro feito homem. Por sua
~-~ Georges Perros, Jean Marie GibbaI ci~ eo~~bríaroos de repente que aquilo tudo tinha
· esta _frase de uma estudante de Renoes v?z, escrito para nós. ~ descoberta surgia após
onde Perros ensmava: s1do . terminável escolaridade em que o ensino das
uma Ul s havia mantido •
a uma

respeitosa
distância...
Letras no . l . d
''Ele (Ferros) dzegava desgrenhado pelo vento e dos livros. o que fazia e e a_ mais o que os rumos
pelo frio. em sua moto azul e enferrujada. Encurvado outros Pro
fessores? Não muito. Sob certos aspectos,
-
muna japona azul-marinho, cachimbo na boca ou ,,:i falia mesmo muito menos. Só que,~ao nos entre~
mão. Esvaziava uma sacola de livros sobre a mesa. E a literatura num conta-gotas analítico, ele a sema a
era a vida. n
nÓsem COpos tranSOOrdantes, generosamente ... E
lia Nós
, compreendíamos tudo que ele nos o
nos • - d •
Quinze anos mais tarde, a maravilhosa maravi- escutávamos. Nenhuma explicaçao o texto sena
lhada ainda fala. O sorriso inclinado sobre a xícara mais luminosa do que o som da sua voz quando ele
de café, reflete, evoca lentamente as lembranças e antecipava a intenção do autor, acentuava 1J1!1 subet:
então: tendido, revelava uma alusão ... Ele tomava unposs1-
- Sim, era a vida: uma meia tonelada de livros, vel o contra-senso. . l
cachimbos, fumo, um exemplar dos jornais France- Absolutamente inimaginável, depolS de tê- o
Soir ou /'Equipe, chaves, carnês, recibos, uma vela de • --i:
ouvido ler A dupla incon.n"naa, ·
continuar a falar
sua moto .. . Dessa desordem ele puxava um livro, nos mal do "marivaudage" e de vestir de rosa os bonecos
olhava, começava com um riso que nos aguçava o humanos desse teatro da ~ção. ~ nulll: labo-
paladar e se punha a ler. Ele caminhava, lendo, uma ratório que a precisão da sua Vf!Z nos mf:n?dUZl~ era
das mãos no bolso, a outra, a que segurava o livro, a uma vivissecção que nos convidava a luadez ~
estendida, como se, lendo-o, ele o oferecesse a nós. dicção. Ele, entretanto, nada acrescenta;-::º~ão
Todas as suas leituras eram como dádivas. Não nos e não fazia de Marivaux a antecâmara e e.

- 86 - - 87 -
. ava, tínhamos a sensaçã~ de ver numa ta ao escutá-lo, não sentíamos vontade de
11"?~::os de Arlequim e de SílVJ~...co~o se f ~OS rnesmos~a uma religião, de tomar o hábito do saber.
cer 1 boratoristas dessa expenenc1a OS entrar,~amos vontade de ler e pronto, era tudo.
nósos a h d
Ele nos dava uma ora e c~rso por seman }'lós ti ele se calava, esvaziávamos as livrarias de
Essa hora se parecia com sua mochila: uma mudan a. Quando de Quimper. E quanto mais líamos, mais,
Quando nos deixou no fim do _ano, fiz as con:.
Shakespeare, Pro~t, Kafka, V ialatt~, Strindber&
Rennerdede nos sentíamos ignorantes, sós sobre as
eIJl .verdea nossa
' " · e face ao mar. Comele,
ignoranc1a,
Kierkegaard, _Mohêre, ~kett, Manvaux, Valéiy, praias to não tínhamos medo de nos molharmos.
Huysmans, Rilke, Bataille, Gracq, ~dellet, Cer- no entan '
gulhávamos .
nos Imos, sem perder tempo em
vantes, Lados, Cioran, Tchecov, Henn Thomas, Bu- tJer d friorentas. Não sei quantos, entre nós, se
tor... cito-os na d~ orde1;11 e esqu~ço outros tantos. bra~: professores. . . não muitos, sem dúvida, o
Em dez anos, eu nao haVJa conh~do um décimo! 1: é uma pena, no fundo, porque fazendo de con~
Ele nos falava de tudo, nos lia tudo, porque não q - ele nos legou uma bela vontade de transmi-
supunha que tivéssemos uma biblioteca na cabeça. que nao,
. M de transnntrr · · a t odos os vent os. Ele, que nao
-
Seria má-fé a merecer ~ u.z~ro. Ele nos tomava pelo ur
. · as nem um pouco para o ensmo, · sonhava b' nncan-
que éramos, jovens colegiais incultos e que mereciam ligava a universt 'dad e 1tineran
.. te:
saber. E nada de patrimônio cu1tural, de segredos doOO_rn umSe passeássemos um pouco... se 1ossemos r
sagrados grudados nas estrelas; com ele, os textos Goethe em Weimar, xingar Deus com o
não caíam do céu, ele os apanhava na terra e nos encontrar . As :,L.,, b
. de Kierkegaard, partir com nouc;., roncas
oferecia para ler. Tudo estava ali, em tomo de nós, pai · N
sobre a perspecuva evs .. • ki
fremente de vida. Lembro da nossa decepção quando
abordou os ''grandes", aqueles de quem nossos pro-
fessores haviam até mesmo falado, os raros que iina-
ginávamos conhecer bem: La Fontaine, Moliere...
Em uma hora eles perderam a estatura de divindades
escolares para se tomarem íntimos e misteriosos -
isto é, indispensáveis. Perros ressuscitava autores.
Levanta e caminha: de Apollinaire a Zola, de Brecht
a Wilde, eles apareciam todos na nossa sala, bem
vivos, como se tivessem saído de Chez Michou, o café
em frente. Café onde às vezes nos oferecia um segun-
do tempo. Entretanto, não se fazia de professor-
coleguinha, não era o seu gênero. Ele prosseguia
simplesmente o que chamava de seu "curso de igno-
rância". Com ele a cultura deixava de ser uma religião
de Estado e o balcão de um bar era uma tnbuna tão
aceitável quanto um estrado de sala de aula. Nós

- 88 - - 89 -
37 38

"A leitura, ressurreição de J .árno levan ~\~ ~ p~of~r nã~ inculcava o saber, ele
ta a lápide das palavras." , • •·~ oferecia o que sabia Era menos um pro-
. f~r do que um mestre trovador, um
GEOROE PERRos (EcJaanm.a) de$e5 malabaristas de palavras que povoavam as
hospedarias do caminho de Compostela e diziam
canções de gesta aos peregrinos iletrados.
Como é preciso um começo para tudo, ele agru-
pava, a cada ano, seu pequeno rebanho em tomo das
origens orais do romance. Sua voz, como a dos tro-
vadores, se endereçava a um público que não sabia
ler. Ele abria os olhos. Acendia lanternas. Engajava
sua gente numa estrada de livros, peregrinação sem
fim nem certeza, caminhada do homem na direção
do homem.
- O mais importante era o fato de que ele nos
lia em voz alta! ~ confiança que ele estabelecia,
logo no começo, em nos.50 desejo de compreender...
O homem que lê em voz alta nos eleva à altura do
livro. Ele se dá, verdadeiramente, a ler!

- 90 - - 91 -
39 40

-1fl2 Em vez disso, nós, os que lemos e preten- ii'~o:1 É preciso ler. soa ~mo declaração de prin-
m.~ demos. propagar o amo~ pela livro, nos S ;8 cípio para os oUVIdos adolescentes. Por
· prefenmos com demasiada freqüência - :!:::::.. mais brilhantes que sejam as demonstra-
como comentaristas, intérpretes, analistas, críticos, çõ~ ... nada mais do que uma declaração de princípio.
biógrafos, exegetas das obras tomadas mudas pelo Aqueles entre os nossos alunos que descobriram
piedoso testemunho que apresentamos de sua gran. 0 livro por outr~s meios contin~o ~plesm~nte a
deza. Presa na fortaleza de nossa competência, a ler. Os mais cunosos entre eles gwarao suas leituras
palavra dos livros cede espaço à nossa palavra. Em pelos fanais de nossas explicações mais luminosas.
lugar de deixar a inteligência do texto falar por n~ Entre aqueles que não lêem, os mais espertos
boca, nos remetemos à nossa própria inteligência e saberão aprender, como nós! a r ~ o ~?:
falamos do texto. Não somos os emissários do livro serão excelentes na arte inflacionária do comentário
mas os guardiões juramentados de um templo cuj~ (leio dez linhas, produzo dez páginas), na prá~ca
maravilhas ~xaltamos com as palavras que lhe ~rram jívaro da ficha (percorro 400 páginas, reduzo a CID-
as portas: ''E preciso ler, é preciso ler!" co), na pesca à citação judicio~ (n~~ pequenos
manuais de cultura congelada disporuve~ em to~os
os comerciantes de sucessos), eles saberao maneJar
o escapelo da análise linear e se tomarão especialis-
tas na sabida cabotagem por entre os "textos esco-
lhidos" que leva seguramente ao vestibular, à grad~-
ção, mesmo à admissão aos concursos... mas nao
necessariamente ao amor pelos livros.
Sobram os outros alunos.
Aqueles que não lêem e que se aterromam logo
cedo com as emanações do senâdo.

- 92 - - 93 -
Aqueles que se crêem burros .. .
Para sempre privados de livros .. .
Para sempre sem respostas ...
E logo sem perguntas.

41

dlm
~. ~
~nhemo~
E a prova chamada de aula para o con-
. curso de professor de Letras.
Tema da aula: Os registros da consciêncúl liJerária
em Madame Bovary.
A jovem candidata está sentada na sua carteira,
muito abaixo dos seis membros da banca em bloco
lá no alto sobre o estrado. Para acrescentar à soleni-'
dade da coisa, digamos que isso se pas.5a no grande
anfiteatro da Sorbonne. Um odor de séculos e de
madeira sagrada. O silêncio profundo do saber.
Um minguado público de parentes e amigos
espalhados sobre os bancos do anfiteatro escuta seu
coração, único, ritmar o medo da moça. Todas as
imagens são vistas de baixo para cima e a jovem bem
lã no fundo, esmagada pelo terror daquilo que lhe
resta de ignorância.
Estalidos leves, to~es abafadas: é a eternidade
que antecede a prova.
A mão trêmula da moça arruma as notas diante
dela; ela abre sua partitura de saber: Os registros da
consciência literária em Madame Bovaiy.
O presidente da banca (é um sonho, podemos
dar a esse presidente uma toga vermelho-sangue,

- 95 -
- 94 -
idade considerável, pequena estola de arnf E O que é essa súplica infantil, tão inesperada nessa
uma peruca em ~chos, para acentuar suas lllho e ? E O fato de que os ~ r e s comP.L'!lltt
granito), o presidente da banca, então, se i:::s
de
sobre a direita, levanta a peruca de seu cole fUÇa
110Z • d • (po
agitar ern su~ ca elf3S
-..-u a se
rque cada um trouxe sua
cadeira e estao todos sentados à volta dela) ... A
murmura duas palavras ao ouvido. O ~ a e lhe oÇ3 levanta os olhos, afmal:
jovem, a maturidade ro~da e competente, ~(lllais J1l _ Senh?_?ta_, por favor, deixe de lado 05 regis-
toga mesma peruca) opina gravemente. Faz CStna trOS da consc1encia...
a m;nsage!11 a seu vizinho en9u~to que O presfd~ o presidente e seus ~ r e s retiraram as pe-
murmura a esquerda. A aqu1escencia se prop ente rucas. Eles têm ca~los desarrumad~ de. crianças
as duas pontas da mesa. aga até pequenas, olhos mwto abertos, uma impaciência de
Os registros da consciência literária em M dam famintos:
Bovary. Perdida em suas anotações, assusta~ e _ Senhorita, conte para nós Madame Bova,y!
brusca desordem de suas idéias, a jovem não ~la -Não! Não! Conte-nos,émelhor,oseuroman-
b~ca..se levantar, não vê.ª banca descer do es~doª ce preferjdo! .
_ E, A balada do café trtste. A senhorita que
nao ve a banca se aproX1IDar dela, não vê a ban '
cercá-la. Ela levanta os olhos para refletir e se enco: gosta tanto de CarsonMcCu/Jers, conte-nos A balada
tra pres~ na rede de se~ olhares. Deveria ter medo do café triste!
_ E depais, dê-nos a vontade de reler A prin-
mas está ocupada demais com o medo de não sabe ' cesa de C/éves, de Madame de Lafayette, bein?
A custo, se pergunta: o que estão eles fazendo tã~ _ Dê-nos a vontade de ler, senhorita!
perto de mim? Volta a mergulhar em suas no~ Os -Vontade verdadeira!
registros da consciência literária ... Ela perdeu o pl~o - Conte-nos Adolphe, de Benjamin Constant!
de sua aula. Um plano tão límpido, entretanto! o que - Leia para nós Dedalus, de James Joyce, o
foi que fez do plano de sua aula? Quem lhe darã as capítulo dos óculos!
claras diretrizes de sua demonstração? - Kafka! Qualquer coisa do seu Diário ...
- Senhorita ... - Svevo! A consciência de Zeno!
A moça não quer escutar o presidente. Ela pro- - Leia-nos O manuscrilo encontrado em Sara-
cura e procura o plano de sua aula, desaparecido de goça, de Jan Potocki! .
repente no turbilhão do seu saber. - Os livros de sua preferêneta!
- Senhorita .. . -Ferdydurke, de Gombrowicz!
Ela procura e não acha. Os registros da cons- - Uma confraria de tolos, de John Kennedy
ciência em Madame Bovary... Ela procura e acha Toole!
todo o resto. Mas não o plano de aula. Nada de plano - Não olhe o relógio, temos tempo!
de aula. -Por favor .. .
-,. Senhorita, por favor ... - Conte-nos!
E a mão do presidente que acaba de tocar seu - Senhorita...
braço? (E desde quando presidentes de banca de - Leia para nós...
provas põem a mão sobre o braço dos candidatos?)
97 -
- 96 -
_ os três mosqueteiros, de Alexandre n
_ o Harlem é escuro, de Cbester llimes~lllasf
-Jules e Jün, de Henri-Pierre Roché! ·
-A fanJástica fábrica de diocolate.s, de R.
Dahl! ºald
_oprimo Basllio, de Eça de Queiroz!
_ O príncipe de J.,f otordu, de Pef!

III

DARALER

- 98 -
42

Pegu~-se um_a classe adolescente, cerca


de tnnta ~ cmco alunos. Oh! não esses
• alunos cuidadosamente calibrados para
atravessar bem depressa os altos pórticos das grandes
escolas, não, os outros, aqueles que se fizeram des-
pachar dos liceus do. centro da cidade porque seus
boletins não prometiam nada parecido com vesti-
bular1, nenhum vestibular mesmo.
E o começo do ano.
Eles levaram pau e encalharam aqui.
Bem nessa escola, aqui.
Diante desse prof~r.
"Encalharam" é a palavra. Rejeitados na praia,
quando seus colegas de ontem seguiram ao largo, a
bordo dos liceus-transatlânticos em partida para os
grandes "cruzeiros". Carcaças abandonadas pela ma-
ré escolar. É assim que eles se descrevem, eles mes-
mos, na tradicional ficha de começo de ano:
Sobrenome. nome, data de nascimento ...
Informações diversas:
"Sempre fui ruim em matem4tica"... ~ llnguas
não me interessam"... ''Não consigo me concentrar"...
"Não sou bom para escrever"... 'Tem vocabulário
. li ,, ( . t E. . 1) ,~,- _,_.1_
demazs nos vros . . . s1c. ~, s1c. . . . .nao gwQIUU

- 101 -
da de ftsica".. . "Sempre tirei zero em ortografia" . estiu tudo na estética: corpo de pôster e car d
';;m história, podia ser, mas eu~ gua!do as datas"::. :v a de revista, cuidadosamente glacial. ª e
",.d,oquenãoestutfo bastante •··,, "Naoconsiooco P .Apenas saídos da caxumba e da rubéola, ei-los
n ,_ ..,1 · . • "G º tn-· .á 03 idade e~ que se corre atrás das modas.
preender"... "Perul muitas ~ IS-~ •;, . , ostaria de de-
J E como sao grandes, em sua maioria! De tomar
senhar, mas.nó,? te,';'11: muiJo 1e1to .. : '!!'~,di[lcil de- sopa na cabeça do prof~SS,Or! Fortões, os meninos! E
maispara ,mm .. . ~ª?. te~ho ~ n a ... Nao tenho
base"... ''Não tenho ideias ... 'Nao tenho Palavras" as meninas, que curvas Já.
Acabados... ··· parece, ª? ~rof~r, que sua própria adoles-
É assim que eles se definem. cência foi_mais mdefiruda ... mais magrelo, ele...
Acabados antes de começar. M.ercadon a mal acabada do pós-guerra ... leite enla-
É claro que eles forçam um pouco a mão É tado do Plano Marshall. .. ele estava em reconstru-
gênero que o exige. f:- ficha in~vidual, como O diári~ ção, 0 professor, como o resto da Europa...
Eles, eles têm caras de resultado.
íntimo, ':°ºt~m em s1a a~tocntica: é preciso se dene-
grir por msttnto. E depois, se desculpando por todos A saúde e essa conformidade com a moda lhes
dão um ar de maturidade que poderia intimidar. os
os lados, podemos nos colocar ao abrigo de muitas
penteados deles, as roupas, os walkmans, as calcula-
exigências.A escola lhes terá ensinado ao menos isso· doras, o léxico, essa reserva meio orgulhosa, deixam
o conforto da fatalidade. Nada de mais tranqüilizant~ pensar, mesmo, que poderiam estar mais "adapta-
que um zero perpétuo em matemática ou em orto- dos" ao tempo deles do que o professor. Saber muito
grafia: excluindo-se a eventualidade do progresso roais do que ele . ..
suprimem-se os inconvenientes do esforço. E a con: Muito mais sobre o quê?
fissão de que os livros contêm "vocabulário demais" Esse é o enigma de seus rostos, justamente...
quem sabe, pode nos pôr ao abrigo da leitura... ' Nada de mais enigmático do que um ar de ma-
Entretanto, o retrato que esses adolescentes fa-
turidade.
zem de si mesmos não é homogêneo: eles não têm a Se não fosse um veterano, o professor poderia
cara do ~lun~ va~io de testa estreita e queixo quadra- se sentir despossuído do presente do indicativo, um
do que nnagmana um mau cineasta ao ler seus tele- pouco brega ... Somente que... já viu crianças e ado-
gramas autobiográficos. lescentes em vinte anos de aula. .. uns três mil e
Não, eles têm a cara múltipla da época deles: tanto ... viu passarem as modas ... ao ponto mesmo
topete e botas para o roqueiro de plantão, grifes para de as ter visto voltar!
o que sonha com as roupas, blusão de couro para o A única coisa que é imutável é o conteúdo da
motoqueiro sem moto, cabelo longo ou à escovinha ficha individual. A estética da "ruína", em toda sua
segundo as tendências familiares. .. Aquela menina ostentação: sou preguiçoso, sou burro, sou nulo, já
lá flutua dentro da camisa do pai que bate nos joelhos tentei tudo, não vá se cansar, meu passado é sem
rasg~dos de seus jeans, aquela outra se fez uma figura futuro ...
de -~~va
, s1c· ilian.a ("este mundo não me interessa Enfim, não gostar de si mesmo. E pôr-se a cla-
maIS ), enquanto que sua loura vizinha, ao contrário, má-lo, com uma convicção ainda infantil.

- 102 - - 103 -
Estar entre dois m~dos, res~mindo. E ter J>er
elido contato com os dois. Estar "ligado", claro " -
beça fresca" (e como!), mas a escola "nos deixa~-
suas exigências nos "enchem o saco", não somos~
garotos, mas a gente ''pena", na eterna espera de ser
grande ...
A gente queria ser livre e se sente abandonada.

43

E, bem enten~do, a g~nte não gosta de


ler. V oca~ulário demais nos livros. Pági-
nas demais, também. Para dii.er tudo de
uma vez, livros demais.
Não, decididamente, a gente não gosta de ler
É, pelo menos, o que indica a floresta de ded~
levantados quando o prof~or faz a pergunta:
- Quem é que não gosta de ler?
Uma certa provocação, mesmo, n~ quase
unanimidade. Quanto aos raros dedos que não se
levantam (entre outros o da Viúva Siciliana), é por
decidida indiferença à pergunta feita.
- Bom, jã que vocês não gostam de ler, sou eu
que vou ler livros para vocês.
Sem pausa, abre a pasta e tira um livro grosso
assim, um troço cúbico, verdadeiramente enorme, de
capa plastificada. Tudo o que se pode imaginar de
mais impressionante em matéria de livro.
-Vocês estão prestando atenção?
Eles não acreditam nos seus olhos, nem nos seus
ouvidos. E.sse tipo vai ler tudo isso? Mas a gente vai
passar o ano assim! Perplexidade! ... Uma certa ten-
são, mesmo. .. Isso não existe, um professor que se
propõe a passar o ano a ler. Ou é um grande pregui-

- 104 - - 105 -
çoso ou está escondendo o jogo. O malandro n _ Difícil dizer a.!1tes de ter lido. Bom, vocês
espia. E a gente vai acabar recebend~ a lista diária: estão prestando atençao? Fun das negociações. Va-
vocabulário, a permanente prestaçao de contas de rnos Já. .
leitura. Eles estão.. . céticos, mas estão.
Eles se entreolh~ . Alguns, casualmente, J>Õem -Capítulo Um:
uma folha diante de s1 e preparam as canetas, Clll "No século dezoito viveu na França um homem
alerta. que pertenceu à galeria das mais geniais e detestáveis
_ Não, não, é inútil tomar notas. &cutem, é figuras ~aq~ele"século nada pobre em figuras geniais
tudo. e detestáveis ...
Coloca-se agora o problema da atitude. Como é
que vai postar-se um corpo numa sala de aula, se não
tem mais o áHbi da esferográfica e da folha em
branco?
- Instalem-se confortavelmente, relaxem ...
(Tem cada uma, ele ... relaxem .. . )
Tomado pela curiosidade, Tapete e Botas acaba
por perguntar.
-O senhorvai ler esse livro todo. .. em voz a/Ja?
- Eu não vejo muito bem como é que você ia
poder me escutar se eu lesse em voz baixa...
Risada discreta. Mas a jove m Viúva Siciliana
não engole ~ assim. Num murmúrio sonoro o
bastante para ser escutado por todos, ela solta:
-Já passamos da idade.
Preconceito comumente propagado... princi-
palmente entre aqueles a quem nunca se fez o verda-
deiro presente de uma leitura. Os outros sabem que
não há idade para esse tipo de delícia.
- Se em dez minutos ainda achar que passou
da idade, você levanta o dedo e nós passamos a outra
coisa, está bem?
- E o que é que é, em termos de livro? -
pergunta Grifes, com um tom de quem já viu muita
coisa
- Um romance.
-Que conta o quê?

- 106 - 107 -
44 45

-~.: ''Na época de que [a~mos, reinava nas -- ;~~ (?rro Senhor Süskin~ obrigado! Suas pã-
1: cidades um fedor dificilmente concebível
p_ara n6s,. ~ je. As ruas fediam_ a merda,
:,a-;
·
ginas ~xalam um.che1r0 bom de tempero
que dilata as nannas e os baços, fazendo
os pátios fediam a mlJO, as escadanas fediam a ma- rir. Jamais o seu Perfume teve leitores mais entusias-
deira podre e bosta de rato, as cozi.nhas a couve taS que aqueles trinta e cinco, tão pouco dispostos a
estragada e gordura de ovelha; sem ventilação, salas Jê-Io. Passados os dez primeiros minutos, peço que
fediam a poeira, mofo; os quartos, a lençóis sebosos, acredite que a jovem Viúva Siciliana achava que o
a úmidos colchões de penas, impregnados do odor senhor tinha a idade dela. Era mesmo tocante ver
azedo dos penicos. Das chaminés fedia o enxofre, dos todas as pequenas caretas que fazia para não deixar
curtumes as lixivias corrosivas; dos matadouros fedia 0 riso sufocar a sua prosa. Grifes abria os olhos como
o sangue coagulado. Os homens fediam a suor e a os ouvidos e "chiu! cala essa boca!" logo que um dos
roupas não lavadas; das bocas eles fediam a dentes colegas deixava transparecer sua hilaridade. Em tor-
estragados, dos estômagos fediam a cebola e, nos no da página trinta e dois, nessas linhas em que o
corpos, quando não eram mais bem novos, a queijo senhor compara o seu Jean-Baptiste Grenouille, en-
velho, leite azedo e a doenças infecciosas. Fediam os tão pensionista de Madame Gaillard, a um percevejo
rios, fediam as praças, fediam as igrejas, fedia sob as em perpétua emboscada (o senhor sabe, "o solitário
pontes e dentro dos palácios. Fediam o camponês e carrapato que fica escondido na árvore, cego, surdo
o padre, o aprendiz e a mulher do mestre, fedia a e mudo, e só fareja, recolhido em si, a milhas de
nobreza toda, até o rei fedia como um animal de distância, o sangue dos animais que passam... j bem
rapina e a rainha como uma cabra velha, tanto no nessas páginas, onde pela primeira vez se d~ às
verão quanto no inverno ... ,,. profundezas úmidas de Jean-Baptiste Grenouille,
Topete e Botas adormeceu, a cabeça entre os braços
cruzados. Um sono honesto, de respiração regular.
• PatrickSüskind, Operfume (Rccord). Traduzido por Flávio Kobtc. (N. da T.) Não, não o acordem, nada melhor que um bom sono

- 108 - - l(J') -
depais da cantiga de ninar, esse é mesmo O Pritn .
dos prazeres na ordem da leitura. Ele se 10 caro
pequenino, Topete e Botas, todo confiante ~
cresce nem um pouco quando, soando a h~ e llã_o
num grito de voz forte e emocionada: ra, d1Z
- Merda, eu dormi! E o que foi que acont
na casa da mãe Gaillard? CCeu

46

-;--.~~ E ob~gado também, senhores Márquez,


.... - ~ Calvmo, Stevenson, Dostoievski, Saki
1
' Amado, Gal}', Fante, Dahl, Rocbé, viv~
ou mortos! Nenhum, entre esses trinta e cinco refra-
tários à leitura, esperou que o professor termin~
qualquer de seus livros para terminá-lo antes dele.
Para que deixar para a próxima semana um prazer
que se pode ter numa noite?
- Quem é, ~ Süskind?
-Ele está vivo?
- O que mais que ele escreveu?
- Foi escrito em nossa língua, O perfume?
Podia se dizer que foi. (Obrigado, obrigado, se-
nhoras e senhores da tradução, luzes de Pentecos-
tes, obrigado!}
E as semanas passando ...
- Fonnidável, Cronica de uma morte anuncia-
da! E Cem anos de solidão, prof~r, conta o quê?
, - Oh! Fante, professor, Fante! Pergunte ao p6!
E verdade que é terrivelmente engraçado!
-Toda a vida pela frenle, Ajar... enfim, Galy...
Super!
- Ele é demais, o Roald Dahl! A história da
mulher que mata o homem dela com um golpe de

- 110 - - 111 -
pernil congelado e depois faz os caras da
comerem a~ de ac~ção, me fez explodir J:~
_ ~e seJa, que seJa... ~ ca!egorias críticas~I
estao ·runda
•ISSO virá. afinadas ... mas isso virá·· · dea·emos lenao
.. r...
- No fundo, professor, O visconde .
meio, O médico e o monstro, O retrato de DoJHl!fido ao
tratam do mesmo as.5unto: o bem O mal
consciência, a tentação, a moral ~ai, t~plo, a
n;n Grrzy
coisas, não é? ~ 47
-É sim.
- Raskolnikov, a gente pode dizer
personagem "romântico"? que é um
Como se vê, isso vem. l :~ E.ºº entanto, ~o aconteceu nada de
~ :~ milagroso. O ménto go prof~r é quase
· nenhum nesse caso. E que o prazer de ler
estava bem perto, seqüestrado num desses sótãos
adolescentes por um medo secreto: o medo {muito,
muito antigo) de não compreender.
Eles tinham simplesmente esquecido o que era
um livro, aquilo que ele tinha a oferecer. Tmham se
esquecido, por exemplo, que um romance conta antes
de tudo uma história. Não se sabia que um romance
deve ser lido como um romance: saciando primeiro
nossa ânsia por narrativas.
Para acalmar esse apetite, nos pusemos, faz tem-
po, diante da telinha que faz seu trabalho em cadei~
enfiando-nos goela abaixo desenhos animados, seria-
dos, novelas e aventuras num colar sem fim de es-
tereótipos intercambiáveis: n ~ ração de ficção.
Isso enche a cabeça como se enche barriga: isto é,
sacia, mas não fica no corpo. Digestão imediata. E
depois nos sentimos tão sós quanto antes.
Com a leitura do Perfumt, nos encontramos
diante de Süsk:ind: urna história, é certo, uma bela
narrativa, engraçada e barroca, mas um~ voz~-
bém, a de Süsk:ind (mais tarde, numa d,issertaçao,

- 112 - - 113 -
vamos chamar a isso de um "estilo"). Uma bis .
(Obrigada,
. senhord Márquez, o senhor d eu on- •
sim, mas contada por alguém. tóna, geill a um J~go _que urou o ano todo: captar e
. - Incrível, esse começo, professor
fi~,1;_..... . , "os ounw__ guardar as pnmerras frases ou passagens preferidas
fedwm ... aspessoas wuu,,...os nos fediam ~--qo de UJ1l roroance..que nos agradou.)
fediam, as igrejas fediam ... o rei fedia ...,, n~- ~asJJrllças - f:u, :,,oce ~be: ~osto ~o com~ deAdolphe,
proibia as repetições! E no entanto é bonito ?u':D1 se bre a tUllldez:
. Eu nao sabw que, mesmo coms~
~-:,.,~
SO
engraçado, mas é bonito també~ não? ' em? t filho, meu pai era ""uuu e que muitas vezes, depois de
Sim, o charme do estilo se acrescenta à fe .. ter esperado algum_tempo um testemunho qualquer de
de da narrativa. Quando a última página é vu!!Clda- afeifáO que sua frieza aparente parecia me interditar.
o eco dessa voz que nos faz companhia. E d d_a, é ele me deixava com os olhos molhados de lágrimas, ~
voz de Süskind, mesmo através do filtro d epolS, a se queixava a outros que eu não o amava. n
- Igual a meu pai e eu!
tradução e da voz do professor, não é a de Miilo da
Ser insensível, face ao livro fechado. E agora
"isso a gente nota logo!", ou a de Calvino Daíquez, nadar,, alongando-se em suas páginas.
· - · vem
essa unpressao,estranha de que, lá onde O estereóti E claro que a voz do profesoor ajudou, n~ re-
fala a mes~ a língua a todo o mundo, Süskind, M po conciliação: economizando o esforço da decifração
. e·~Calvmo,
quez 1
falando. cada_um sua linguagem pró- ár- desenhando claramente as situações, delineando O ~
pna, 1éUam s6 para IIlllD, nao contam sua his . nãrio, encarnando os personagens, sublinhando os te-
senão para mim, jovem Viúva Siciliana, Blusao _tóna
de mas, acentuando as tonalidades, fazendo, o mais clara-
Co~? s~m moto, Topete e Botas, para mim, Grifes mente possível, seu trabalho de revelador fotográfico.
que JªAna~ confundo mais suas vozes e me aut . Mas bem depressa a voz do professor interfere:
preferenc1as. onzo prazer parasita de uma alegria mais sutil.
. "Muitos anos mais tarde diante do pelotão de - O senhor nos ajuda a ler, profesoor, mas eu fico
fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de conte!}te, depois, ao me encontrar sozinho com o livro.
recordar aquela tarde remota em que O p'!l; 1 E que a voz do professor - narrativa oferecida
ara conh , a.a o evou - me reconciliou com a escrita, e, assim fazendo, me
P . ecer o geio. Macondo era então uma ald . devolveu o gosto da minha secreta e silenciosa voz de
de vmte casas de barro e taquara, construíd eia à alquimista, essa mesma que, alguns anos atrás, se
margem de um rio de águas diáfanas que se r ; . maravilhava de que mamãe escrito no papel corres-
tavam por um leito de pedras polid as b rancaspe enor- pi- pondesse, bela e formosa, à mamãe na vida real.
mes como ovos pré-históricos ... "* O verdadeiro prazer do romance está ligado à
- Eu conheço de cor, essa primeira frase de descoberta dessa intimidade paradoxal: o autor e
eem anos de solidão' Com essas eu ... A solidão dessa escrita reclama a ressurrei?º
como ovos pré-históricos... pedras, redondas do texto por minha própria voz, muda e solitária.
O professor não é, aqui, mais do que uma casa-
• Gabriel García Márqu
menteira. Quando é chegada a hora, é bom que ele
Eliano Zagwy. (N. da T.) cz, em, anos de solid4o (Rccord). Traduzido por saia de cena na ponta dos pés.

- 114 - - 115 -
prodigiosa descoberta, que muda tudo! Um li-
vro, feitas as ~ntas, se lê depressa: em uma só hora
de leitura por dia, durante ut?a semana, chego ao fim
de um ro~an~ de 280 págmas! Que pos.50 ler em
enas tres dias, se gasto um pouco mais de d
aPras! Duzentas e 01' t enta páginas
. em três dias•. Quas
._
ho . d. , UI
nhen tas e sessenta em seIS ias uteis. E se acontece
do livro ser mesmo legal - " ...E O vento levo
48 professor, é mesmo leg~!" -~ que a gente se ofer~
quatro horas de l~buJa no ~a _de domingo (é muito
possível, no d~nungo ~ subúrbio de Topete e Botas
cochila e os pais de Grifes o levam para se aborrecer
~~~ Além do tem?r de não compreender no campo) e eis-nos com 160 páginas ganhas: total,
~ - ~ uma outra fobia a vencer, para reco .' 720 páginas! .
.
l1ar DC1-
Ou 540, se faço trinta à hora, média muito ra-
esse pequeno mundo com a leitu
é a da duração. ra, zoável.
O tempo da leitura: o livro visto como u E 360, se passeio a vinte à hora.
ameaça de eternidade. rna - 360 páginas durante a semana! E você?
Quando. vimos O perfu'!1~ sair da sacola do pro- Contem suas páginas, crianças,
, contem... os ro-
fess.or, acreditamos na apançao de um iceberg! (Es- mancistas fazem o mesmo. E preciso vê-los, quando
pecifiqu~mos que o prof~or em questão tinha _ atingem a página 100! É o Cabo da Boa Esperança do
voluntaname~te :- escolhido uma edição de tipos romancista, a página cem! Ele abre uma pequena gar-
grandes, pagmaçao espaçada, vastas margens, um rafa interior, dança uma discretasarabanda, bufa como
livro enonne aos olhos daqueles refratários à leitura, um cavalo de tração e, vamos lá, mergulha de novo no
e que pro~ etia um suplí: io interminável.) tinteiro para atacar a página 101. (Um cavalo de tração
Ora, eis que ele se poe a ler e vemos o iceberg se mergulhando num tinteiro, poderosa imagem!)
derreter nas mãos dele! Contem suas páginas... Começamos por nos
O tempo não é mais o tempo, os núnutos es- maravilharmos com o número de páginas lidas, de-
corre~ em segundos, quarenta páginas são lidas e a pois vem o momento em.que nos assustamos com o
hora Jª passou. pouco que resta a ler. Não mais que 50 páginas!
O professor faz quarenta à hora. Vocês vão ver ... Nada de mais delicioso do que es.5a
. Qu:itrocentas páginas em dez horas. À razão de tristeza: Gue"a e paz, dois grossos volumes ... e não
cmco h~r~s de francês por semana, ele poderia ler mais que 50 páginas a ler. .
2.400 pagmas num trimestre ! 7.200 no ano escolar! A gente retarda, retarda, nada mais a fazer.
Sete romances de 1.000 páginas! Em apenas cinco Natacha acaba por se casar com Pedro Bezuk
pequenas horas de leitura semanal! hov, e é o fim.

- 116 - - 117 -
Roubado a quê?
Digamos, à obrigação de viver.
É sem dúvida por essa razão que se encontra no
trô _ símbolo refletido da dita obrigação - a
01e. or biblioteca do mundo.
roaJ O temPo para l~r, como o tempo para amar,
·1ata o temPo para viver.
dí Se tivéssemos que olhar o amor do ponto de
vista de nosso tempo disponíve~ quem se arriscaria?
49 em é que tem tempo para se enamorar? E no
~anto, alguém j~ viu um enamorado que não tenha
temPo para ~ · . .
Eu nunca tIVe tempo para ler, mas nada, 1ama1S,
Sim, mas a qual fração de meu tempo pôde me impedir de terminar um romance de que eu
~ ~ disponível vou subtrair ~ hora de Je·
· , tura cotidiana? Aos colegas? A tevê? i gostasse-
A leituranao- depende da orgaruzaçao
. - dotempo
ocial, ela é, como o amor, uma maneira de ser.
saídas? As noites passadas com a família? A meus
deveres? s A questão não é de ~be~ se tenho telllJ>!l para
Onde encontrar o tempo para ler? l r ou não (tempo que, aliás, nmguém me dará), mas
Grave problema. ; me ofereço ou não à felicidade de ser leitor.
Que não é um só. Discussão que Topete e Botas resume num slo-
A partir do momento em que se coloca o pro- gan demolidor:
blema do tempo para ler, é porque a vontade não está - O tempo para ler? Eu _tenho no_meu bo~!
lá. Porque, se pensarmos bem, ninguém jamais tem À vista do livro que ele tira ( um Jun Hamson,
tempo para ler. Nem pequenos, nem adolescentes, l0/18), Grifes aprova, pensativo: _
nem grandes. A vida é um entrave permanente à _ É, quando a gente compra um blusao, ~
leitura importante é que os bolsos sejam do formato certo.
-Ler? Queria muito, mas o trabalho, as crian-
ças, a casa, não tenho mais tempo ...
:ºcê
- Invejo por ter tempo para ler! E por que
é_ q~e essa aqm que trabalha, faz compras, cria filhos,
dmge seu carro, ama três homens, vai ao dentista,
muda na semana que vem, encontra tempo para ler,
e esse casto celibatário que vive de rendas não?
O tempo para ler é sempre um tempo roubado.
(Tanto como o tempo para escrever, aliás, ou o
tempo para amar.)

- 118 - - 119 -
50 51

g
, ..
e um t1Jolo.
Ler um livro muito interessante
_ se atracar a um livro em gíria ' pode ser
Em linguagem fi~cla um livr 0
grosso
-~€-~
i~
·
Uma só. condi~o p~a se reconciliar
com a leitura: nao pedir nada em troca.
Absolutamente nada. Não erguer ne-
nhuma muralha fortificada de conhecimentos pre-
Liberem-se essas ligações, 0 tiiolo se tra & liminares em torno do livro. Não fazer a menor
em nuvem. 'J ns,orma
pergunta. Não passar o menor dever. Não acres-
centar uma só palavra àquelas das páginas lidas.
Nada de julgamento de valor, nada de explicação
de vocabulário, nada de análise de texto, nenhuma
indicação biográfica... Proibir-se completamente
"rodear o assunto".
Leitura-presente.
Ler e esperar.
Não se força uma curiosidade, desperta-se.
Ler, ler e ter confiança nos olhos que se abrem,
nas cabeças que se divertem, na pergunta que vai
nascer e que vai puxar uma outra pergunta.
Se o pedagogo em mim fica chocado por não
"apresentar a obra no seu contexto", persuada-se o
dito pedagogo de que o único contexto que conta, por
enquanto, é o dessa classe.
Os caminhos do conhecimento não terminam
nessa classe: eles devem começar nela!

- 120 - - 121 -
No momento, leio romances para um auditó .
que acredita não gostar de ler. Nada de sério se P<>d no
ensinar enquanto eu não tiver dissipado essa ilUS:rá
0
te, r
is ele se sentia à vontade demais na pele de
pilhando, violand~, cortando a garganta de
J-1~0 'que se mexe. A ramha gorda não ia gostar.
feito meu trabalho de casamenteiro. , tu t'o ele inventou Jek.yll
Ena ,
A partir do momento em que esses adolesce t
n es
estejam reconc1·1·1a dos com os livros, eIes vão perco
rer voluntariamen!e o ~nho qu~ v~ ~o roman;
ao autor, do a~tor a sua epoca e da histona lida a seus
múltiplos sentidos.
O importante é estar preparado.
Esperar firme a avaJanche de perguntas.
- Stevenson é um inglês?
- Um escocês.
- QuaJ época?
- Sé.culo dezenove, sob o reinado da Rainha
Vitória.
-Parece que ela reinou muito tempo, essa aí...
-64 anos: 1837-1901.
-64 anos!
- Ela reinava há 13 anos, quando Stevenson
nasceu, e ele morreu 7 anos antes dela. Você tem 15
anos hoje, ela sobe ao trono e você vai ter 79 no fim
do reinado dela! (Numa época em que a idade média
de vida era de uns trinta anos.) E não foi uma rainha
das mais divertidas.
- É por causa disso que Hyde nasceu de um
pesadelo!
O comentário é da Viúva Siciliana. Grande es-
panto de Grifes:
-E como é que você sabe disso, você?
A viúva, enigmática:
-A gente se informa...
E depois, com um sorriso discreto:
- Posso mesmo te dizer que era um alegre
pesade~o: 9uando Stevenson acordou, foi se fechar
no ~ntono e redigiu em dois dias a primeira versão
do hvro. A mulher dele o fez queimar, imediatamen-

- 122 - - 123 -
,,
vossas mem~rias (como iri~ encontrá-los sem vós eu
cuja memóna par~Ct? mais um terreno bald' ?) é
prodigioso que estejais em dia com todas as te~~t. '
ordenadas nas estantes que vos circundam icas
orno seria bom também vos escutar contar. ·v· mas
1, C & 'd .. ossos
! otnances .prei.en os ,aos. VISitantes perdidos nao-fl
resta de I_e1turas poss1Ve1S... como seria lindo se lhes
rendêsseIS a ~omenagem de vossas melhores lem-
b ranças de leitura!
- d Contadoras, . sejam máoicas ,eos
52 1 1 O"
livfOS sa t~a? e suas prate erras nas mãos do leitor.
:
E é ~ o simples contar um romance. Bastam três
palavras, as vezes. . ... .
Lembrança de mfanCia e de verão. Hora da
1
jj-;~I?? Mas ler em voz alta não é suficiente é sesta. O irmão mais velho deitado de bruços na cama,
: : ..- ~ preciso contar também, oferecer no~ queixo entre as palmas das mãos, mergulhado num
~~ -=- tesouros, desembi:ulhá-los na praia igno- enorme livro de bolso. O pequeno, como quem não
rante. Escutem, escutem e vejam como é bom ouvir quer nada: "O que é que você está lendo?"
uma história. O GRANDE:~ chuvas chegaram.
Não há melhor maneira de abrir o apetite de um 0 PEQUENO: E bom?
leitor do que lhe dar a farejar uma orgia de leitura. O GRANDE: Demais!
De Georges Perros, a estudante encantada dizia O PEQUENO:, O que que ele conta?
também: O G~ E : ,E a história de um cara: no começo,
-Ele não se contentava em ler. Ele nos conta- ele bebe mwto u1sque, no fim ele bebe muita ãgua!
va. Ele nos contava Dom Quixote! Madame Bovary! Não precisei de grande coisa para passar o fim
Enormes pedaços de inteligência crítica, mas que nos desse verão molhado até os ossos por As chuvas
servia primeiro como simples histórias. Sancho, na chegaram, do senhor Louis Bromfield, furtado a meu
boca dele, era uma outra vida e o Cavaleiro da Triste mano, que não o terminou nunca.
Figura, um grande feixe de ossos armado de certezas
atrozmente dolorosas! Emma, tal como nos contava,
não era apenas uma idiota gangrenada pela "poeira
dos gabinetes de leitura", mas um depósito de energia
fenomenal, e era Flaubert que escutávamos, pela voz
de Perros, em seu sarcasmo diante desse amontoado
de desperdício que é Hénaurme!
Caras bibliotecárias, guardiãs do templo, é uma
felicidade que todos os títulos do mundo tenham
encontrado seus estojos na perfeita organização de

- 124 - - 125 -
vro. Nesse começo de ano todo o mundo lê é certo
rnedo venci~o! lê-~ sob o efeito do entusi~o, d~
espírito de umtaçao. Talvez mesmo, quer ele queira
quer não, lê-se p~aagradar ao pro~r... 0 qual, aliás,
não deve donrur sobre as b~._.- nada esfria mais
depr~ 9ue um ardor, ele Já viveu várias vezes a
experiênci~! ~ no momento lê-se unanimemente,
sob a influencia desse coquetei a cada vez especial, que
faz com que uma classe confiante se comporte como um
53 só indivíduo, co~~do suas trinta individualidades
distintaS- Isso nao significa que, uma vez adulto cada
UJ1l desses alunos vá "gostar de ler". Outros p~res

g
irão se sobrepor, talvez, ao prazer do texto. Vale saber
Tudo isso é ~mito _bonito, Süskind, Már- que, nessas primeiras semanas do ano, o ato de ler -o
quez, Dost01evski, ~ante, Chester Hi- famoso "ato de ler"! - não aterroriza mais ninguém e
mes, Lagerlõf, Calvmo, todos esses ro- que se lê, às vezes, muito depr~)
mances lidos na desordem e sem contrapartida, todas E o que têm esses romances, afinal, para serem
essas histórias contadas, esse anárquico festim de lidos assim depressa? Fáceis de ler? O que quer dizer
leitura pelo prazer da leitura ... mas e o programa, "fácil de ler"? Fácil de ler A lenda de Gosta Berüng?
bom Deus, o Programa! As semanas correm e 0 Fácil de ler Crime e castigo? Mais fáceis do que O
programa ainda não foi tocado. Terror do ano que estrangeiro, que O vermelho e o negro? Não, mas eles
passa, espectro do programa inacabado ... têm, justamente, porque não estão no programa, uma
Nada de pânico, o programa será tratado, como qualidade inestimável para os coleguinhas da Viúva
se diz dessas árvores que dão frutos calibrados. Siciliana, prontos a qualificar de "chata" toda obra
Contrariamente ao que imaginava Tapete e Bo- escolhida pelo magistério para o crescln,iento racional
tas, o professor não vai passar o ano todo lendo. Que da cultura deles. Pobre "programa". E claro que o
pena! Que pena! Por que é preciso que se desperte programa não existe a troco de nada, o tal programa.
assim tão depressa o prazer da leitura silenciosa e (Rabelais, Montaigne, La Bruyere, Montesquieu, Ver-
solitária? Mal ele começa um romance em voz alta, laine, Flaubert, Camus "chatos"? Não, nem brincan-
é um precipitar-se nas livrarias para se obter a se- do ... ) Mas não bá como o medo para tomar "chatos"
qüência, antes da aula seguinte. Basta que conte duas os textos do programa Medo de não entender, medo
ou três histórias" .. .o fim não, professor, não conte deresponder errado, medo do outro, vigiando, por cima
o fim!"... para que sejam devorados os livros que do texto, medo do francês, visto como matéria opaca;
escolheu. nada mais do que isso para embaralhar as linhas, para
(Unanimidade da qual não se deve abusar. Não, afogar o sentido no leito da frase.
não, o professor não vem, com um golpe de vara mágica, Grifes e Blusão de Couro são os primeiros a se
metamorfosear em leitores 100% de refratários ao li- espantar quando o professor anuncia que O apa-

- 126 - - 127 -
r no campo de centeio, de Sallinger, COlll
nJ,ado .. - da que O programa se1:' seguido e, então, as técnicas de
acabam de se deliciar, n~o agra a seus COndis,. &ssertação, de análise de texto (belos esquemas tão
cípulos americanos p~lo sun_ples fato de fazer Parte metódicos), de composição critica, de resumo ~ de
do programa dei~- E posswel que um BlUSão de discussão serão devidamente transmitidas e toda
Couro texano esteJa oferecendo, secretamente, Ma- ~ mecânica fun~o~~ perfeitamente, pelo bem
dome Bovary enquanto seu professor se cansa d de tazer chegar às mstânClaS competentes, no dia do
tentar lhe vender Sallin~er! . e exame, que não nos contentamos em ler para nos
Aqui (pequeno parenteses) mteivenção da Viú- distr3ll", mas para compreender também, nos empe-
va Siciliana: nhamos no famoso esforço de compreender.
-Um texano que lê, professor, isso não existe A questão de saber o que foi que "compre-
-Ah! É? E de onde você tira isso? · endemos" (questão final) não é sem inter~. Com-
-De Da/las. O senhor já viu um só personagem preendido o texto? Sim, sim, é claro... mas com-
de Da/las com um livro na mão? preendido sobretudo que, uma vez reconciliados com
(Fechemos parênteses.) a Jeitura, o texto perdendo seu foro de enigma parali-
Em resumo, planando por todas as leituras, via- sante, nosso esforço de apreender o sentido toma-se
jando sem passal?°rte pelas obras estrangeiras (so- um prazer; uma vez vencido o medo de não entender,
bretudo estrangeiras: esses Ingleses, esses Italianos, as noções de esforço e de prazer trabalham fortemen-
esses Russos, esses Americanos têm a esperteza de te uma em favor da outra, meu esforço, aqui, garan-
tindo o crescimento de meu prazer e o prazer de
se manter longe do "programa"), os alunos, reconci- entender me mergulhando até a embriaguez na ar-
liados com o que se lê, se aproximam, em círculos dente solidão do esforço.
concêntricos, das obras que são para ler, e logo nelas E entendemos uma outra coisa, também. Com
mergulham, como se não fosse nada de mais, pela uma pequena dose de divertimento, entendemos
simples razão de A princesa de Cleves ter se tomado "como a coisa funciona", entendemos a arte e a
um romance "corno um outro", tão bom quanto qual- maneira de "rodear o assunto", de se fazer valer no
quer outro ... (Mais bela que todas, até, essa história mercado dos exames e dos concursos. Inútil escon-
de um amor protegido do amor, tão curiosamente der, esse é um dos objetivos da opera~o. Em matéria
familiar a essa adolescência moderna, que se preten- de exame e de emprego, "entender" e entender o que
de, um pouco depressa demais, submissa às fatalida- se espera de nós. Um texto "bem_compr~ndido~ ~
des consumistas.) um texto inteligentemente negOC1ado. São os divi-
dendos dessa negociação que o jovem candidato bus-
Cara Madame de Lafayette. ca no rosto do examinador quando lança um olhar de
Caso a notícia possa vos interessar, sei de uma soslaio depois de lhe ter servido uma ~terpretação
certa classe de segundo ano reputada como pouco audaciosa -mas não demasiado audacmsa -de um
'1~erária" e passavelmente ''dissipada" em que vossa alexandrino com reputação de enigmático. ("El~ está
Prozcesa de Cleves foi elevada ao hiJ-parade de tudo com um ar contente, vou continuar por esse caminho,
que foi lido este ano. ele vai me levar direto à menção honrosa.")

- 128 - - 129 -
Des.se ponto de vista, uma escolaridade r
bem conduzida valoriza tanto a estratégia Jterária
boa inteligência do texto. E um "mau aluno~~anto .ª
freqüentemente do que se acredita, um me . , lllais
gicamente desprovido de aptidões táticas ntno lra-
pânico de não poder nos fornecer aqui)~ que, no
peramos dele, se põe logo a confundir escoI q~e es-
e cultura. De~~o por ~nta da escola, ele se ::dade
depressa um pana da leitura. Imagina que "le ,,!>eni
si mesmo um ato de elite e se priva de livros r e ern
a vida por não ter sabido faJar deles quand<illi 10da 54
perguntado. e era
Existe, então, ainda outra coisa a se "co
ender''. mpre-
~l~ Resta "co~preeoder" que os livros não
~ ~ foram escntos para que meu filho minha
·- filha, os jovens os comentem, ~ para
que, se o coração lhes mandar, eles os leiam.
Nosso saber, nossa escolaridade, nossa carreira,
nossa vida social são uma coisa. Nossa intimidade de
leitor, nossa cultura são outra. É muito bom fabricar
bacharéis, graduados, pós-graduados e administra-
dores classe A,• a sociedade demanda e isso não se
discute. .. mas muito mais essencial é abrir a todos as
páginas de todos os livros.
Ao longo de toda a aprendizagem, fazemos da
glosa e do comentário um dever para os escolares
e os estudantes de segundo grau e as modalidades
desse dever os assustam de tal modo que chegam a
privar um grande número deles da companhia dos
livros. Nosso fim de século não acomoda muito as
coisas: o comentário reina absoluto, chegando ao
ponto, com freqüência, de nos esconder, longe
da vista, o objeto comentado. ~ zumbido que

• Referêoci3 aos diplOID3dos da Ecolc N•tiooaled'Admimstration que prep311I


para as carreiras superiores da administBçio. na França. (N. da T.)

- 130 - - 131 -
cega carrega um nome delinqüente·• e Oll)u •
cação... n1-
Falar de uma obra aos adolescentes e . .
dei~ que faJem de!a pode se revelar muito útiJe~8tr
não e um fim em s1 mesmo. O fim é a obra A, lllas
nas mãos deles. E o primeiro de seus direit obra
matéria de leitura, é o direito de se calar. os, em

55

g Nos primeiros dias do ano escolar me


acontece de pedir a i_neus alunos qu~ me
descrevam uma bibhoteca. Não uma bi-
blioteca municipal, não. O móvel. Aquele onde arru-
mo meus livros. E é um muro que eles me descrevem.
Uma falésia de saber, rigorosamente ordenada, ab-
solutamente impenetrável, uma parede que só se
pode contornar.
- E um leitor? Descrevam-me um leitor.
- Um verdadeiro leitor?
- Se assim vocês quiserem, se bem que eu não
saiba o que é que vocês chamam de um verdadeiro
leitor.
Os mais "respeitosos" entre eles me descrevem
Deus Pai, ele mesmo, uma espécie de eremita ante-
diluviano, sentado desde a eternidade sobre uma
montanha de livros dos quais ele teria sugado o
sentido até compreender o porquê de todas as coisas.
Outros me desenham o retrato de um autista profun-
do, tão absotvido pelos livros que esbarra contra
todas as portas da vida Outros ainda me fazem o
retrato inverso, se apegando a enumerar tudo aquilo
que um leitor não é: não é esportivo, não é vivo, não
é engraçado, não encara um "rango'\ nem roupas,
'

- 132 - - 133 -
nem "máquinas", nem tevê_, nem amigos ... e outro
enfim, com mais estratégia, constroem diante ds,
professor a estátu~ acad~mi~ ~o leitor conscient~
dos meios postos a sua dispos1çao pelos livros Para
aumentar seu sa~er e aguçar _sua lucidez. Alguns
misturam esses diferent~ reg1stros, mas nenhum,
nenhum só, se descreve a si mesmo nem descreve um
membro de sua família ou um desses inúmeros leito-
res com que eles cruzam todos os dias no metrô.
E quando lhes peço para me descrever "um 56
livro", é um OVNI que pousa na sala: objeto mis-
terioso, praticamente indescritível, dada a inquietan-
te simplicidade de suas formas e a proliferante mul-
tiplicidade de suas funções, um "corpo estranho" - : ~ Poucos objetos despertam, como o livro,
ca~egado de to~os o~ poderes e ~e todos os perigos: · o sentimento da absoluta propriedade.
obJeto sagrado, infinitamente cwdado e respeitado, Caídos em nossas mãos, os livros setor-
arrumado com gestos de celebrante nas prateleiras nam nossos escravos - escravos, sim, porque de
de uma biblioteca impecável, para ser venerado por matéria viva, mas escravos que ninguém pensaria em
uma seita de admiradores de olhar enigmático. libertar, porque feitos de folhas mortas. Como tal,
O Santo Graal. são submetidos aos piores tratamento~ frutos dos
Bem. amores mais loucos ou de terríveis furores. E que eu
Tentemos dessacralizar um pouco essa visão do te dobre os cantos das páginas (oh! que ferida, cada
livro que lhes enfiamos na cabeça, com uma des- vez, essa visão da página dobrada! "mas é pra saber
crição mais "realista" da maneira como tratamos onde eu estoooooooou!") e que te ponha minha
nossos livros, nós, os que gostamos de ler. xícara de café sobre a capa, essas auréolas, esses
relevos de farelos, essas manchas de óleo solar... e
que eu deixe um pouco por toda parte a impressão
do meu polegar, aquele que enche meu cachimbo
enquanto leio ... e essa obra encadernada secando
vergonhosamente sobre o radiad?r depo~ de ter
caído no seu banho ("seu banho, IIllnha quenda, mas
meu Swift!") e essas margens rabiscadas de comentá-
rios felizmente ilegíveis, esses parágrafos aureol_a?os
de marcadores fluorescentes... esse livro de~•t~-
mente enfermo por ter ficado uma semana mteira
dobrado sobre a lombada, esse outro pretensamente
, .
protegido por uma imunda capa de plastico trans-

- 134 - - 135 -
parente com reflexos petrolíferos ... essa carna desa
parecendo sob urna banquisa _de livr~s espalhado~ Desde que um livro caia em nossas mãos, ele é
como pássaros,mort_os ... essa pil~a de livros de bolso f1!JSS~, exatame~te como dizem as crianças:~ meu
abandonados a wmdade de sótao ... esses infeliz hvro . . . parte mtegrante de mim mesmo. E sem
livros da infância que ningué m mais lê, exilados 011 _es dúvida a razão pela qual dificilmente devolvemos os
. é . u..u,a
casa no campo on de nmgu m mais vai.. . e todos livros que nos emprestam. Não é exatamente um
esses outros, sobre o cais, ve ndidos como saJdo aos roubo ... (não~ não, não somos ladrões, não... ), diga-
revendedores de escravos ... mos, um deslizamento de propriedade, ou melhor,
Tudo, nós submetemos os livros a tudo. Mas , uma transferência de substância: o que era do outro
'
so ª. maneJra. como os outro'S os ma ltratam que nose sob os olhos dele toma-se meu enquanto meus olhos
entnstece. o devoram e, palavra, se gostei do que li, sinto certa
Não faz ~mito_ tempo, vi, com meus próprios dificuldade em "devolvê-lo".
olhos, uma leitora Jogar um enorme romance pela Falo, aqui, da maneira como nós, os particula-
janela de um carro rodando em alta velocidade: raiva res, tratamos os livros. Mas os profissionais não fa-
r-, por ter pago tão caro, na fé de críticos tão competen- zem melhor. E que eu corte o papel rente às palavras
tes, e por estar tão decepcionada. O pai do romancis- para que minha coleção de bolso seja mais rentável
~ ta Tonino Benacquista chegou até mesmo a fumar (texto sem margem, de letras espremidas pela com-
um Platão inteiro. Prisione iro de guerra numa parte pactação) ou que faça inchar como uma bexiga esse
qualquer da Albânia, um resto de fumo no fundo do pequeno romance, para fazer o leitor acreditar que
bolso, um exemplar do Cratyle (vai saber o que fazia está gastando bem seu dinheiro (texto afogado, frases
Já?), um fósforo ... e crac! uma nova maneira de estonteadas por tanta brancura) e que cole "capas"
dialogar com Sócrates .. . por sinais de fumaça! do tipo "cheguei" cujas cores e títulos enormes gritam
Outro feito da mesma guerra, mais trágico ain- a cento e cinqüenta metros: "você me leu? você me
da: Alberto Moravia e E lsa Morante, obrigados a se leu?" E que eu fabrique exemplares do C'lfCUlo do
refugiar durante muitos m eses numa cabana de pas- Livro em papel esponjoso e capa cartonada recheado
. só tinham podido salvar dois livros, a Bíblia e Os
tor, de ilustrações debilóides, e que pretenda fabricar
um_ãos Koramazov. Daí um terrível dilema: qual dos "edições de luxo", sob o pretexto de que ilumino um
dois monum~ntos utilizar como papel higiênico? Por faJso couro com uma orgia de dourados...
cruel que SeJa, uma escolha é uma escolha. Com a Produto de uma sociedade superconsumista, o
morte na alma, eles escolheram. livro é quase tão cuidado quanto um frango engorda-
Não, ~or mais sagrado que seja o discurso em do com hormônios e muito menos que um míssil
t~T?º dos livros, ainda não nasceu aquele que impe- nuclear. O frango com honnônios de crescimento
drra Pepe Carvalho, o pe rson agem preferido do es- instantâneo não é, aliás, uma comparação gratuita,
panhol ~anuel Vasquez MontaJba n de ace nder, a se a aplicamos a esses milhões de livros "de circuns-
~da noite, um bom fogo com as páginas de suas tância" que se encontram escritos em uma semana
le1turfs preferidas. sob o pretexto de que, naquela semana, a rainha
E o preço do amor, o resgate da intimidade. ba teu as botas ou o presidente perdeu seu lugar.

- 136 - - 137 -
Visto desse ângulo, o livro, então, não é nern
mais nem menos que um objet~ de <:0nsumo e tão
efêmero quanto outro qualquer: lDl_ediatamente des-
truído se não vende, ele morre mwtas vezes sem ter
sido lido.
Quanto à maneira como a Academia trata os
livros seria bom perguntar aos autores o que eles
pensa'm. Eis o que escreveu F1annery O'Connor no
dia em que ficou sabendo como faziam os estudantes
trabalhar sobre sua obra: 57
"Se os professores têm, hoje em dia, por princípio
atacar uma obra como se se tratasse de um problema
de pesquisa para o qual toda resposta é um caso, desde Assim aconteet: com o "livro".
que não seja evidmte, tenho medo de que os estudanJes Passemos ao leitor.
não descubram nunca o prazer de ler um romance... " Porque, ainda mais instrutivas que nos-
sas maneiras de tratar nossos livros, são nossas ma-
neiras de lê-los.
Em matéria de leitura, nós, os "leitores", nos
concedemos todos os direitos, a começar pelos que
recusamos a essa gente jovem que pretendemos ini-
ciar na leitura.

1) O direito de não ler.


2) O direito de pular páginas.
3) O direito de não terminar um livro.
4) O direito de reler.
5) O direito de ler qualquer coisa.
6) O direito ao bovarismo.
7) O direito de ler em qualquer l1;1gar. .
8) O direito de ler uma frase aqui e outra ali.
9) O direito de ler em voz alta.
10) O direito de calar.

Fico arbitrariamente, com o número 10, primei-


ro porq;e faz conta redonda, depois porque é o

- 139 -
- 138 -
número sagrado dos famosos M~dame_ntos e é agra.
dável vê:lo, l!°r uma vez que seJa, semr a uma lista
de autonzaçoes.
Porque se quisermos que filho, filha, que
jovens leiam, é urgente lhes conceder os direitos q os
. ~
propore1onamos a n6s mesmos.

IV
O QUE LEMOS,
QUANDO LEMOS

(ou os direitos
imprescritíveis do leitor)

- 140 -
1

O direito de não ler

- -, . Como toda enumeração de "direitos"


:~ que se preze, esta dos direitos à leitura
e~·~• deveria começar pelo direito de não ser
usado - no caso, o direito de não ler - sem o que
não se trataria de urna lista de direitos, mas de uma
viciosa armadilha. .
A maior parte dos leitores se concede cotidiana-
mente o direito de não ler. Sem macular nossa repu-
tação, entre um bom livro e um telefilme ruim, o
segundo muitas vezes ganha, mesmo que preferísse-
mos confessar ser o primeiro. Além disso, não lemos
continuamente. Nossos peáodos de leitura se al-
ternam muitas vezes com longas dietas, onde até a
visão de um livro desperta os miasmas da indigestão.
Mas o mais importante vem agora.
Estamos cercados de uma quantidade de pes-
soas respeitáveis, às vezes diplomadas, às vezes "emi-
nentes" - entre os quais alguns possuem mesmo
belas bibliotecas - mas que não lêem, ou lêem tão
pouco que não nos viria jamais a idéia de lhes ofere-
cer um livro. Eles não lêem. Seja porque não sintam

- 143 -
necessidade, seja porque tenham coisas demais Para
fazer (0 que dá no mesJ?o, é qu~ essas outras coisas Em outras palavras, a liberdade de escrever não
os obturam ou os obnubilam), seJa porque alimente111 saberia se acomodar com o dever de ler.
um outro amor e o vivenciem de maneira absoluta- ~ dever de ed_u~ consiste, no fundo, no ensinar
mente ex~lusiva. E~, essa gen~e não g?sta de ler. as cnanças a ler, 101c1ando-as na Literatura, fome-
Nem por ISSO el~ ~o menos fre9uentáve1S, são mes- cend_o-Ih;s meio~ de jul~ livremente se elas sentem
mo muito agradavelS _de se frequentar. {Pelo menos ou n~<:> a necess.1da~t; de Jwi:os". Porque, se podemos
não perguntam à queima-rou~a nossa opinião sobre admitir que ~ m~duo reJeite a leitura, é intolerá-
vel que ele seJa re1e1tado por ela
0 último livro que lemos, nos_ bvram de _suas reservas É uma tristeza imensa, uma solidão dentro da
irõnicas sobre nosso_ romanc1Sta p~efendo e não nos solidã_?, ser ~xcluído dos livros - inclusive daqueles
consideram como alienados por nao nos termos pre- que nao nos mteressam.
cipitado so~re o último Tal, ~~e acaba de sair pela
Editora Coisa e ao qual o cntico Duchrnole fez os
maiores elogios.) Eles são tão "humanos" quanto
nós, perfeitamente sensíveis às desgraças do mundo
atentos aos "direitos humanos" e preocupados e~
respeitá-los dentro da sua esfera de influência pes-
soal, o que já é muito. Mas eles não lêem. Direito
deles.
A idéia de que a leitura "humaniza o homem" é
justa no seu todo, mesmo se ela padece de algumas
deprimentes exceções. Tomamo-nos um pouco mais
"humanos", entenda-se aí por um pouco mais solidá-
rios com a espécie ( um pouco menos "animais"),
depois de termos lido Tchekhov.
Mas evitemos vincular a esse teorema o corolá-
rio segundo o qual todo indivíduo que não lê poderia
ser considerado, em princípio, como um bruto poten-
cial ou um absoluto cretino. Nesse caso, faremos a
leitura passar por obrigação moral, o que é o começo
de uma escalada que nos levará em seguida à "mora-
lidade" dos livros, em função de critérios que não
terão qualquer respeito por essa outra liberdade ina-
lienável: a liberdade de criar. E então os brutos
seremos nós, por mais '1eitores" que sejamos. E sabe
Deus que não faltam brutos dessa espécie, no mundo.

- 144 - - 145 -
Eu era interno, era um presente inestimável.
pois gro~sos vol~es que me aqueceriam durante
todo o tnmestre. Cmco anos mais velho meu irm-
não era compl~~m~nte idiota (e nunca' foi) e sab~
com toda pertmencia que Guerra e paz não poder·
ser reduzido a uma história de amor, por mais elab:
rada q~e fosse. ~penas, conh~cia meu gosto pelos
incênd10s do senttmento e sabia arranhar minha cu-
riosidade, pela formulação enigmática de seus resu-
2 mos. (Um ~pedagog~", ~~aria meu coração.) Acre-
dito que fot bem o ~teno matemático da frase dele
O direito de pular pági.nas que me fez temporanamente abandonar meus livros
de aventuras para me atirar inteiro nesse romance.
"Uma garota que gosta de um cara e que se casa com
um terceiro" ... não vejo quem pudesse resistir. Na
verdade, não fiquei decepcionado, se bem que ele

l!iJ
Li Gue"a e paz, pela p~eira vez, aos tivesse se enganado nas contas. Na realidade, éramos
doze ou tre_ze ~os ( m~ certo treze, quatro a amar Natacha: o príncipe André, o crápula
estava no pnncíp10 do qumto ano e nem do Anatole ( mas pode-se chamar isso de amor?),
um pouco avançado). Desde o começo das férias, Pedro Bezukhov e eu. Como não tinha a menor
as grandes, via meu irmão ( aquele mesmo de As chance, fui obrigado a me "identificar" com os outros.
chuvas chegaram) mergulhado num enorme ro- (Mas não com Anatole, um verdadeiro canalha!)
mance, e seus olhos voavam longe, longe como os Leitura ainda mais gostosa porque feita à noite, à
de um explorador que tenha, faz tempo, perdido luz de uma lanterna de bolso e debaixo de cobertas
contato com a terra natal. arrumadas como uma tenda no meio de um dormitório
-É tão legal assim? de cinqüenta sonhadores, roncadores e outros tantos
-Formidável! revoltosos. A cabina do bedel de onde escorria a luz
- O que é que ele conta? fraca de uma lâmpada ficava ali mesmo, mas o quê, em
- É a história de uma garota que gosta de um amor é sempre tudo pelo tudo. Sinto ainda a ~
cara e que se casa com um terceiro. e o peso d ~ dois volumes entre as mãos. Era a versão
Meu irmão sempre teve o dom da síntese. Se os de bolso, com o rostinho lindo de Audrey Hepburn
editores o contratassem para redigir seus textos de fazendo um olhar de desdém para o principesco Mel
"quarta capa" ( essas patéticas exortações a ler que Ferrer, pálpebras pesadas de rapace amoroso. Pulei três
são coladas nas costas dos livros) nos poupariam quartos do livro porque só me inte~va pelo coração
algumas conversas fiadas inúteis. de Natacha Fiquei com pena de Anatole, apesar de
-Você me empresta? tudo, quando lhe amputaram a perna, mald}sre aquele
-Te dou. idiota do príncipe André que ficou em pe na frente

- 146 - - 147 -
daquela bomba, na batalha de_Bo~o: . . ("M~ deita, lica que se supõe ser a deles. Um pouco como se eu
rda' fica de barriga pra bruxo, ISSO vat explodir, VOCê roe metesse ª. redes~nhar Gu';"'ica sob o pretexto de
~~ pode wer ~ com ela, ela !e ama!") Me interessei que Picasso uvesse Jogado ali traços demais para um
;:10 amor e pelas bat~lbas, pulei os ~untos de política olho de doze ou treze anos.
e estratégia... As teonas de Oausewitzp~vam muito E depois, quando nos tomamos "grandes" mes-
acima da minha cabeça, puxai, deixei de lado as teorias mo se recusamos confessar, ainda nos acont~ de
de aausewitz... Acompanhei de perto as decepções pularmos páginas, por razões que só interessam a nós
conjugais de Pedro Bezukhov e Helena, a mulher dele e 30 livro que es~os lendo. Pode acontecer tam-
("nadalegal", aHelena,_eu_achavaqueela_nãoera "nada bém que nos pr01bamos totalmente fazer isso nos
legalj e deixei Tolstoi ~rtando sozinho sobre os obriguemos a ler tudo até a última palavra, julg~ndo
problemas agrários da Rússia eterna. que aqui o a~tor se alongou demais, que ele está
Pu)ei páginas, e daí? tocando uma linha de flauta passavelmente gratuita,
Todos os meninos e todas as meninas deveriam que em certos lugares ele se dã à repetição e que em
fazer o mesmo. outros, à idiotice: Seja o que for que digamos, ~
C.Orn a condição de poderem se oferecer muito aborrecimento teimoso que nos impomos não está na
cedo quase todas as maravilhas consideradas inaces- ordem do dever, ele é uma categoria do nosso prazer
síveis à idade deles. de leitor.
Se têm vontade de ler Moby Dic~ mas perdem
a coragem diante das digressões de Melville sobre o
material e as técnicas da caça à baleia, não é preciso
que renunciem à leitura, mas que pulem, que pulem
por cima dessas páginas e persigam Ahab sem se
preocupar com o resto, como ele persegue sua branca
razão de viver e de morrer! Se querem conhecer Ivan,
Dimitri, Aliocha e o incrível pai deles, que abram e
leiam Os irmãos Karamazov, é feito para eles, mesmo
que seja preciso pular o testamento do starets Zózimo
ou a lenda do Grande Inquisidor.
Um grande perigo os espreita, se não decidem
por si mesmos por aquilo que está à disposição,
pulando as páginas de sua escolha: ouJros o farão no
lugar deles. Outros se armarão das grandes tesouras
da imbecilidade e cortarão tudo que julgarem "difí-
cil" demais para eles. Isso dá resultados ~ustadores.
Moby Dick ou Os miseráveis reduzidos a resumos de
150 páginas, mutilados, estragados, raquíticos, mu-
mificados,reesaitos para eles numa linguagem famé-

- 148 - - 149 -
adianta, fico com o !>elo sentimento de que o que está
escrito merece ser lido, mas não pego nada _ ou tão
pouco que é m~o que nada -, sinto ali um "estra-
nhamento" que nao me prende.
Deixo cair.
Ou melhor. deixo d~ lado. Guardo na minha
estante com o vago proJeto de voltar um dia 0
Perersburgo de Andrei Bielyi, Joyce e seu Uliss~ À
sombra do vulcfú> de Malcom Lowry me esperar'am
3 alguns_anos. Há outros que me esperam ainda, alguns
que nao vou recupe~ nunca, provavelmente. Isso
O direito de não terminar um livro não é um drama, é assim mesmo. A noção de "matu-
ridade" é coisa estranha, em matéria de leitura Até
uma certa idade, não temos a idade para certas leitu-
ras. Mas, ao contrário das boas garrafas, os bons
livros não envelhecem, somos nós que envelhecemos.

Ili Existem trinta e seis mil razões p ara se


abandonar um livro antes do fim: o sen-
timento do "já lido", uma história que
não nos prende, nossa desaprovação total pelas teses
do autor, um estilo que nos deixa de cabelo em pé,
E quando nos acreditamos suficientemente "madu-
ros" para lê-los, nós os atacamos mais uma vez. En-
tão, das duas uma: ou o reencontro acontece ou é um
novo fiasco. Talvez tentemos de novo, talvez não.
Mas o certo é que não é por culpa de Thomas Mann
ou ao contrário, uma ausência de narrativa que não se não pude, até hoje, chegar ao cume de sua Monta-
compensa ir mais longe... Inútil enumerar as 35.995 nha mágica.
outras, entre as quais as de que é preciso cuidar da O grande romance que nos resiste não é neces-
cárie dentária, as perseguições do nosw chefe de sariamente mais dificil do que um outro ... Há entre
seIViço ou um abalo sísmico de coração que petrifica ele - por grande que seja - e nós - por aptos a
nossa cabeça. "compreender" que nos estimemos - uma reação
O livro nos cai das mãos? química que não se opera. Um belo dia simpatizamos
Que caia. com a obra de Borges que até então nos mantinha à
Afinal, não é porque Montesquieu o quisesse distância, mas continuamos toda vida estranhos à de
que se vai poder oferecer, de encomenda, o consolo Musil ...
de uma hora de leitura. Bem temos a escolha: ou vamos pensar que é
No entanto, entre n ~ razões para abandonar ' que temos uma telha de men~s, que
nossa culpa,
uma leitura existe uma quemerece que nos detenhamos abrigamos uma porção irredutível de burnce, .ou
um pouco: o sentimento vago de perda. Abri, li e cedo vamos bisbilhotar do lado da noção tão controvertida
me senti submerso por qualquer misamaisforte do que do gosto e buscar estabelecer o mapa dos nossos
cu. Reuni meus neurônios, discuti oom o texto, mas não gostos cuidadosamente.

- 150 - - 151
É prudente recomendar a nossas crianças essa
segunda solução.
Tanto mais que ela pode oferecer esse prazer
raro: reler compreendendo, enfim, por que não gos-
tamos. E esse outro raro prazer: escutar sem emoção
0 pretensioso erudito de plantão berrar em nossos
ouvidos:
-Mas como é que se pode não gostar de Stend-
baaaal?
Él)C)$ível.
4

O direito de reler

R eler o que me tinha uma primeira vez


rejeitado, reler sem pular, reler sob um
outro ângulo, reler para verificar, sim ...
nós nos concedemos todos ~es direitos.
Mas relemos sobretudo gratuitamente, pelo
prazer da repetição, a alegria dos reencontros, para
pôr à prova a intimidade.
"Mais", "mais", dizia a criança que fomos ...
Nossas rele ituras adultas têm muito d~e dese-
jo: nos encantar com a sensação de permanência e as
encontrarmos, a cada vez, sempre ricas em novos
encantamentos.

- 152 -
- 153 -
. dos bons sentimentos e das
cio ç
sensações

fortes, salta
sobre todos os pretext~s OLere~dos pela atualidade
ara desovar uma ficçao de crrcunstância se dá a
festudos de mercado" para colocar, segund~ a "con-
J'un"·~"
I.~ .. '
tal tipo

de "produto", capaz de inflamar tal
categoria de leitores.
São assim, infalivelmente, os maus romances.
Por quê? Porque eles não valorizam a criação,
mas a reprodução de ,cform~" p~eesta_belecidas, por-
5 que são uma empresa de s1mplificaçao (quer dizer,
de mentira), quando o romance é a arte da verdade
( uer dizer, de complexidade), porque incensando
O direito de ler qualquer coisa n~ssos automatismos adormecem nossa curiosidade,
enfim e sobretudo porque o autor não está ali, nem a
realidade que ele pretende nos descrever.
Resumindo, uma literatura do "pronto para o

l!!1
A propósito de "gosto", alguns de meus consumo", feita na fôrma e que gostaria de nos amar-
alunos sofrem um bocado quando se rar dentro dessa mesma fôrma.
acham diante do arquiclás.sico tema de Nem pensem que essas idiotices são um fenôme-
~rtação: "Podemos/alarde bons e maus romances?u 00 recente, ligado à industria~ização do livro . Nada
O>mo sob a aparência de um "eu não faço con- disso, a exploração do sensacional, d_? folhetun, do
cesdo" eles são no fundo gentis, em lugar de abordar arrepio fácil nu!11a fr~e sem a~tor nao data de on-
0 aspecto literário do problema, eles o olham do tem. Para não citar mais que dois exemplos, lembre-
ponto de vista ético e não tratam a questão senão sob mos o romance de cavalaria que escorregou nesse
o ângulo das hberdades. Assim, o conjunto de suas mangue assim como o romantismo, muito tempo
redações poderia se resumir nesta fórmula: "Mas mais wde. E como o mau P?de servir a qualquer
não, não, cada um tem o direito de escrever o que coisa de bom, a reação a essa literatura ~esVIada no~
quiser e os gostos dos leitores estão aí, por toda parte, deu dois dos mais belos romances que ha no mundo.
não, fora de brincadeira!" Sim.. . é, sim... posição Dom Quixote e Madame Bovary.
perfeitamente honrosa... Há, então, os "bons" e os "maus" rom~nc~s.
Isso não impede que haja bons e maus roman- O mais comum é que encontremos pnmeiro os
~. É possível citar nomes, é possível apresentar segundos em nosso caminho. . .
provas. E tenho certeza, quando passei Pº,~ ali? lembro~
Para encurtar: digamos que existe aquilo que me de ter achado "terrivelmente bom . Tive sorte.
vou chamar de uma "literatura industriaJ" que se ninguém riu de mim ninguém levantou os olhos aos
contenta em reproduzir ao infinito o mesmo tipo de céus não fui tratado ~mo um cretino. Simplesmente
narrativa, debita o estereótipo em cadeia, faz comér- for~ deixados à mão, nos meus lugares de passa-

- 154 - - 155 -
gem, alguns "bons" romances, sem que me proibis.
sem dos outros.
Sabedoria
Durante um certo tempo, lemos os bons e os
maus, tudo junto. Do mesmo modo que não renun.
ciamos de um dia para o outro às nossas leituras de
criança. Tudo se mistura Sai•se de Guen-a e paz para
sevoltar a mergulhar em livros de aventuras. Passa.se
de Sabrina e Julia (histórias de belos douto res e de
louváveis enfermeiras) a Boris Pastemak e a seu 6
DoutorTwago- um belo doutor, ele também, e Lara
uma enfermeira ó quão louvável! ' O direito ao bovarismo
Então, um dia, é Pastemak quem ganha Insen.
sivelmente, nossos desejos nos empurram a freqüen• (doença textualmente transmissível)
tar os "bons". Procuramos os escritores, procuramos
a escrita, abandonamos simples colegas de brincadei-
ras, reclamam.os companheiros de ser. A anedota pura
É assim, grosso modo, o "bovarismo",
não nos satisfaz mais. Chegou o momento em que
pedimos ao romance uma outra coisa que não seja a
satisfação imediata e exclusiva de nossas sensações.
Uma das grandes alegrias do "pedagogo" é -
toda leitura sendo autorizada - a de ver um aluno
l!1 esta satisfaçã~ ime~ata. e e~cl~siva de
nossas sensaçoes: a unagmaçao mfla, os
nervos vibram, o coração se embala, a adrenalina
jorra, a identificação opera em todas as direções e o
bater sozinho à porta da fábrica Best-seller para subir cérebro troca (momentaneamente) os balões do co-
e respirar na casa do a.migo Balzac. tidiano pelas lanternas do romanesco_.
É nosso primeiro estado de leitor, comum a
todos.
Delicioso.
Mas meio assustador para o observador ~dulto
que, com freqüência, se pr~ipit~ a brandir. um
"bom título" debaixo do nanz do Jovem bovansta,
gritando: . lh ,, _ ?
-Afinal, Maupassant é bem "me or , n~o.
Calma!. . . não se deixar ceder ao bovansmo;
dizer que Emm~ afinal, não era ela mesma.outra
coisa que um personagem de romance, quer dizer, o
produto de um dete~mo em q~e as causas:~-
meadas por Gustave não engendrariam outros e e1·

- 156 - - 157 -
tos _ por mais 1,,erdadeúos que fossem - senão os
ue desejasse F)aubert.
q Em outros termos, não. é porque e~ mocinha
coleciona Sabrina que ela vat a~bar engohn~o arsê-
nico numa concha. Forçar a mao nesse estágio de
suas JeituraS é nos sep~;dela, negand~ nossa pró-
pria adolescência. E é p1;va-la do prazer m~mpará-
vel de desalojar amanha, por conta própna, os es-
tereótipos que, hoje, parecem deixá-la fora de si.
É sábio nos reconciliarmos com a nossa adoles- 7
cência; detestar, desprezar, negar ou simplesmente es-
quecer O adolescente que fomos é em s1 uma atitude
adolescente, uma roncepção da adolescência como
O direito de ler em qualquer lugar
doença mortal.
Daí a necessidade de lembrarmos nossas primei-
ras efervescências de leitores e montarmos um pe- ,.:ili Châlons-sur-Mame, 1971, inverno.
queno altar a nossas antigas leituras. Inclusive às
mais "bobas". Elas representam um papel inesti- 1 .· ~ . da Escola de Aplicação de Arti-
Caserna
lhana.
mável: nos emocionar com aquilo que fomos, rindo Na distnbuição matinal de tarefas, o soldado de
daquilo que nos emocionava. Os meninos e as meni- segunda classe Fulano (MatrícuJa 14672/1, bem co-
nas que partilham nossa vida ganham aí, certamente, nhecido de nossos serviços) se apresenta sistematica-
em respeito e em ternura. mente como voluntário para a tarefa menos popular, a
E depois, se dizer também que o bovarismo é - mais ingrata, distnbuída com freqüência a título de
com algumas outras - a coisa do mundo m ais bem punição e que atinge a _ho~ dos mais aguerri~os: .a
partilhada: é sempre nos outros que vamos buscá-la. lendária, a infamante, a mommável tarefa das latnnas.
Ao mesmo tempo que vilipendiamos a estupidez das Todas as manhãs.
leituras adolescentes, não é raro que concorramos Com o mesmo sorriso. (Interior.)
para o sucesso de um escritor te1egêníco, para em - Tarefa das latrinas?
seguida p~os à maledicência, assim que a moda Ele dá um passo à frente:
tenha acabado. As coqueJuches literárias se explicam - Fulano!
largamente por essa alternância de nossos esclare- .Com a gravidade úJtima que precede ~ ~ lto,
cidos embalos e nossas perspicazes rejeições. pega a vassoura de onde pende o pano de chao, como
Nunca enganados, sempre lúcidos, passamos o se fosse o estandarte da co~panhia, e d~ap~ece,
tempo anos suceder a nós mesmos, convencidos para para grande alivio da tropa. f: um bravo: _nmgue~ o
sempre de que Madame Bovary é o outro. segue. O exército inteiro continua protegido na tnn-
Emma devia compartilhar essa convicção. cheira das tarefas honrosas.

- 158 - - 159
As horas passam. Acredita-se que ele se perdeu. prisão de ventre crônica sem a u l _
Quase se esquecem dele. &quecem-no. Ele reapare- :is
teria tido jamais a felicidade deie: trmmóav3:, nao
ce entretanto, no fim da manh~ batendo os saltos das Saint-Simon.) e nas de
botas para o relatório ao sargento da companhia:
"Latrinas impecáveis, meu sargento!" O sargento
recupera vassoura e pano de chão ~m uma profunda
interrogação nos olhos, 9ue ele nao formula jamais.
(Respeito humano obnga.) O soldado saúda, faz
meia-volta, se retira, levando o segredo com ele.
O segredo pesa um bom peso no bolso direito
do blusão: 1.900 páginas do volume consagrado às
obras completas de Nicolai Gogol Quinze minutos
de pano de ch~o contra ~a manhã de Gogol. .. Cada
manh~ faz doJS meses de mvemo, confortavelmente
sentado na sala dos tronos fechada com duas voltas
o soldado Fulano voa muito acima das contingênci~
militares. Todo Gogol! Das nostálgicas Noites na
fazenda de Dikanke às hilariantes Novelas, passando
pelo terrível Taras Bulba e a negra farsa das Almas
mortas, sem esquecer o teatro e a correspondência de
Gogoi esse incrível Tartufo.
Porque Gogol é o Tartufo que Moliere teria
inventado -o que o soldado Fulano não teria jamais
entendido se tiv~ oferecido aquela tarefa a outros.
O exército gosta de celebrar os feitos de armas.
~ nada resta, senão dois alexandrinos, grava-
dos no alto do metal de uma caixa de descarga e que
oontam entre os mm sunwosos da poesia francesa:
Oui je peux sans menJir, assieds-to~ pédagogue,
Affinner avoir h, tout mon Gogol aux gogues. •
(PorsuavezovelhoQemenceau, "o Tigre", um
famoso soldado, ele também, era agradecido a uma

• Simp-,~ mcatir, leDla-lc., P""-lolo.


Afirmar ter lido todo mea Gogol w prmda (Tradaçio livre.)

- Jf,(J - - 161 -
8 9

O direito de ler O direitQ de ler em voz alta


uma frase aqui e outra ali

11-r!I
· i
Eu lhe pergunto:
~ - Em casa, liam histórias em voz alta,

l!i
Eu colho, nós colhemos, deixemos que
eles colham, ao acaso. : quando você era pequena?
É a autorização que nos concedemos de Ela me responde:
pegar qualquer volume de nossa biblioteca, de o abrir - Nunca. Meu pai estava muitas vezes ausente
em qualquer lugar e de mergulharmos nele por um e minha mãe ocupada demais.
Eu lhe pergunto:
momento, porque só dispomos, justamente, desse mo-
- Então, de onde é que vem esse seu gosto pela
mento. Alguns livros se prestam melhor que outros a
leitura em voz alta?
~ colheita ao acaso, porque são compostos de textos
Ela me responde:
curtos e separados: as obras completas de Alphonse -Da escola.
Aliais ou de Woody Allen, as novelas de Kafka ou de Feliz de escutar alguém reconhecer um mérito
Saki, os escritos de Georges Perros, o bom velho Ro- à escola, exclamo, todo contente:
chefoucauld e a maior parte dos poetas.. . -Ah! Você está vendo?
Assim dito, se pode abrir Proust, Shakespeare Ela me diz:
ou a Comspondência de Raymond Chandler em -Nada disso. A escola nos proibia a leitura em
qualquer lugar, colher aqui e ali, sem o menor risco voz alta. Leitura silenciosa, já era o credo na época.
de se ficar decepcionado. Direto do olho ao cérebro. Transcrição instantânea.
Quando não se tem nem o tempo nem os meios Rapidez, eficiência. Com um teste de compreensão
de se oferecer uma semana em Veneza, por que se a cada dez linhas. A religião da análise e do comen-
recusar o direito de passar lã cinco minutos? tário, desde o começo! A maior parte das crianças

- 162 - - 163 -
morria de medo, e isso era só o começo! Todas as E Dostoievski, que não se contentava de ler em
minhas respostas eram boas, se você quer saber, mas voz alta, mas que ~crevia em voz alta... Dostoievski,
voltando para casa eu relia tudo em voz alta. sem fôlego.! depois de ter proferido violentamente
-Porquê? sua acusa5<10 ~ ntr~ R askolnikov (ou Dimitri Kara-
- Pelo encantamento. As palavras pronuncia- rnazov, nao sei mais) .. . Dostoievski perguntando à
das se punham a existir fora de mim, elas viviam de sua mulher estenógrafa; "Então? Qual é o seu vere-
verdade. E depois, me parecia que era um ato de dicto? H ein? H ein?"
amor. Que era o amor mesmo. Sempre tive a im- ANN.k Condenado!
pressão de que o amor pelo livro passa pelo amor, E o mesmo Dostoievski, após lhe ter ditado o
simplesmente. Deitava minhas bonecas na m inha discurso da defesa ...: "Então? Então?n
cama, no meu lugar~ e lia para elas. Me acontecia de ANN.k Absolvido!
dormir aos pés delas, no tapete.
Eu a escuto, escuto e parece que estou escu- É ...
tando Dylan Thomas, bêbado como o desespero,
lendo seus poemas, com sua voz de catedral.. . &tranho desaparecimento, esse da leitura em
Eu a escuto e parece que estou vendo Dickens voz alta. O que é que Dostoievski teria pensado
o velho, Dickens, o~do e pálido, tão perto da morte, disso? E Flaubert? Não se tem mais o direito de pôr
as palavras na boca antes de enfiá-las na cabeça? Não
subir em cena ... seu grande público de iletrados de
há mais ouvidos? Nem música? Nem saliva? Nem
repente petrificado, silencioso a ponto de se escutar
gosto nas palavras? E além de tudo e ainda mais! Será
o livro se abrir... OliverTwist. .. a morte de Nancy ... que Flaubert não se pôs a gritar (até fazer explodir
é a morte de Nancy que ele vai ler para nós! os tímpanos), seu Madame Bovary? Será que ele não
Eu a escuto e ouço Kafka rir até as lágrimas lendo está definitivamente mais bem equipado do que qual-
A metamorfose para Max Brod que não está certo de quer outro para saber que a inteligência do texto
estar acompanhando... e vejo a pequenina Mary Shel- passa pelo som das palavras, Já onde se faz a fusão
ley oferecer grandes fatias de seu Frankenstein a Percy dos seus sentidos? Será que não é ele que sabe, como
e aos amigos as&>mbrados... ninguém mais, ele que tanto brigou com a música
Eu escuto e aparece Martin du Gard lendo para intempestiva das silabas, a tirania das cadências, que
Gide seus Thibault... mas Gide parece não escutar... o sentido é algo que se pronuncia? O quê? T~xtos
eles estão sentados na beira de um rio, mas o olhar mudos para puros espíritos? A _mim, Rab~laLS! A
de Gide está longe ... os olhos de Gide escaparam, lá mim, Flaubert! D ostô! Kafka! D1ckens!, a num! Ve-
mais embaixo, onde dois adolescentes mergulham. .. nham dar um sopro a nossos _livros! N~ssas pala~s
uma perfeição que a água veste de luz... Martin du precisam de corpos! Nossos livros precisam de vida!
Gard fica uma fúria... mas não, ele leu bem... e Gide É verdade que o silêncio do te~o é confortá-
escutou tudo... e Gide lhe diz todo o bem que pensa vel. .. não se arrisca a morte, como D1ckens; a quem
dessas páginas... mas, mesmo assim, precisaria talvez os médicos pediam que calass~ enfim seus roman-
modificar iB> e aquilo, aqui e ali... ces... o texto e cada um ... todas essas palavras amor-

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daçadas na amolecida cozinha de nossa inteligên-
cia... como pode se sentir alguém nesse silencioso
tricotar de nossos comentários!. . . e além disso, jul-
gando o livro à parte, a sós, não se corre o risco de
ser julgado por ele. . . é que, desde que a voz se
mistura, o livro diz muito sobre seu leitor. .. o livro
diz tudo.
O homem que lê de viva voz se expõe totalmen-
te. Se não sabe o que lê, ele é ignorante de suas
palavras, é uma miséria, e isso se percebe. Se se
recusa a habitar sua leitura, as palavras tomam-se 10
letras mortas, e isso se sente. Se satura o texto com a
sua presença, o autor se retrai, é um número de circo, O direito de calar
e isso se vê. O homem que lê de viva voz se expõe
totalmente aos olhos que o escutam.
Se ele lê verdadeiramente, põe nisw todo seu
saber, dominando seu prazer, se sua leitura é um ato O homem constrói casas porque está vivo
de simpalia pelo auditório como pelo texto e seu . mas escreve livros porque se sabe mortal
autor, se consegue fazer entender a necessidade de · Ele vive em grupo porque é gregário, mas
escrever, acordando nossas mais obscuras necessida - lê porque se sabe só. Esta leitura é para ele uma
des de compreender, então os livros se abrem para companhia que não ocupa o lugar de qualquer outra,
ele e a multidão daqueles que se acreditavam excluí- mas nenhuma outra companhia saberia substituir. Ela
dos da leitura vai se precipitar atrás dele. não lhe oferece qualquer explicação definitiva sobre
seu destino, mas tece uma trama cerrada de conivên-
cias entre a vida e ele. Ínfimas e secretas conivências
que falam da paradoxal felicidade de viver, enquanto
elas mesmas deixam daro o trágico absurdo da vida.
De tal forma q ue nossas razões para ler são tão estra-
nhas quanto nos.5a5 razões para viver. E a ninguém é
dado o poder para pedir contas dessa intimidade.
Os raros adultos que me deram a ler se retraíram
diante da grandeza dos livros e me pouparam de
perguntas sobre o que é que eu tinha entendido deles.
A esses, claro, eu costumava falar de minhas leituras.
Vwos ou mortos, ofereço a eles essas páginas.

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Lendo para seus alunos, Daniel
Pennac fez com que eles percebes-
sem que Dostoievski, Tolstoi, Calvi-
no, Gabriel Garcia Márquez, John
Fante, todos, qualquer que seja a
fonna por eles escolhida, as palavras
que uulízaram. contam uma histó-
ria. Para entendê-la, basta voltar ao
despudor da primeira infância de
querer tudo descobrir, tudo ouvir.
Um livro bem lido é, para quem
o lê, um passapone para a fantasia
e o dcspcnar de si mesmo. E quem
mais propenso a aceitar esses dois
convites do que um leitor jovem?

O AUTOR

.. Daniel Pennac nasceu em 1944


quando o na\10 em que estavam --eus
pais fez uma escala em Casablanca_
Filho de um oficial colonial ele pas-
sou a infância viajando pela África,
Ásia e Europa, foi aluno num inter-
nato, serviu no exército e há 20 anos
começou a lecionar francês, carrei-
ra que continua desemo1'.endo. Seu
primeiro Lino foi publicado cm
1973, mas foi a partir da trilogia Au
bonhcur dcs ogres, La f ée ca.rnbinc
e La petitc marchandc de prose que
ele se tornou sinônimo de sucesso.
Como um romance, um ensaio de-
l!IM lma lai o-,••..., pela licioso sobre a leitura, "esse ato m-
. . . . VirlilllBh y,Llda. timo, alquimia prhi1eg1ada e mme-
._lk. . El-1alct, 7S li. 15- Non Pribaqo - RJ riosa eutre autor e leitor'', ajudou a
e-.--•Bdilaia \bra Lida.. fixar o fenômeno Pennac. Hoje ele
._IW La&. 100 - Pcln1pulil - RJ
•Jaá'ock l ffl é um autor que agrada a adultos e
.... Bditara Roem Lida. adolescentes, igualmente. capaz de
vender 117 mil exemplares de um
único título e de colocar reedições da
trilogia nas listas de mais vendidos
de toda a França.
DIREITOS IMPRESCRITÍVEIS DO LEITOR

1. O direito de não ler.


2. O direito de pular páginas.
3. O direito de não terminar um livro.
4. O direito de reler.
5. O direito de ler qualquer coisa.
6. O direito ao bovarismo
(doença textualmente transmissível).
7. O direito de ler em qualquer lugar.
8. O direito de ler uma frase aqui e outra ali.
9. O direito de ler em voz alta.
10. O direito de calar.

ISBN 85-325-0425-6

9 885 2 504258

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