Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Lições camponesas
LIÇÕES CAMPONESAS1
Teodor Shanin
1
O presente texto corresponde a uma versão editada da conferência ministrada pelo Prof. Teodor
Shanin na sessão de encerramento do III Simpósio Internacional e IV Simpósio Nacional de Geografia
Agrária.
23
Campesinato e Territórios em Disputa.
Eliane Tomiasi Paulino e João Edmilson Fabrini (Org.)
São Paulo: Expressão Popular, 2008.
em que a pobreza não se resolve sozinha, tendendo a se tornar cada vez mais
profunda, expulsando as pessoas do campo2. Nós podemos nomear muitas sociedades
que hoje se encontram nessa situação de involução agrícola e econômica.
Entretanto, pelo menos mais dois outros processos estão acontecendo
atualmente. O primeiro é a criação do campesinato, que acontece em muitos países,
entre eles o Brasil, em que pessoas que não são camponeses ou pessoas que são “sem-
terra” recebem terra por meio de políticas de redistribuição fundiária. Há também,
então, o processo de criação e recriação do campesinato. Para provar que este
processo não é uma particularidade do Brasil, vou citar um exemplo russo. Na Rússia
atual, há muitas vilas que são consideradas ‘vilas mortas’, nas quais só se encontram
mulheres idosas morando nelas e metade das casas já não existe mais. As pessoas
abandonaram essas vilas, especialmente em lugares em que a agricultura era difícil e
a terra era ruim. Contudo, desde que houve o colapso da União Soviética, há russos
retornando de outras ex-repúblicas soviéticas como a Geórgia e o Kazaquistão, com o
objetivo de se fixarem em seu próprio ambiente étnico. Quando eles chegam,
descobrem que é extremamente difícil se estabelecer, que a vida é muito cara na
cidade e que não há lugar para eles, então, muitos decidem morar nas vilas. Eles são
geralmente os mais jovens e fortes membros das comunidades residentes nas vilas
hoje.
Assim, há um processo de restabelecimento do campesinato acontecendo com
base em razões étnicas. Há também, como acontece no Brasil, um processo que
envolve decisões governamentais e ocorre devido à própria mobilização e ação direta
dos camponeses que reivindicam terras para se reproduzirem como tal. Outra
importante característica a ser destacada a partir dos acontecimentos dos séculos XX
e XXI é que as comunidades camponesas demonstram uma real habilidade para se
ajustar a novas condições e também uma grande flexibilidade para encontrar novas
formas de se adaptar e ganhar a vida. Em alguns lugares, há comunidades de
camponeses que hoje vivem principalmente do turismo. Há lugares onde as
comunidades camponesas ganham a vida com novos métodos de produção e, em
2
Ver GEERTZ, Clifford. Agricultural Involution: The Process of Ecological Change in Indonesia,
New York: Fontana Press, 1963. (Nota dos revisores)
24
Teodor Shanin
Lições camponesas
25
Campesinato e Territórios em Disputa.
Eliane Tomiasi Paulino e João Edmilson Fabrini (Org.)
São Paulo: Expressão Popular, 2008.
26
Teodor Shanin
Lições camponesas
resposta está na questão de sua eficiência. Ela é mais eficiente, de certa maneira, do
que qualquer uma das duas outras formas de economia.
Nenhuma economia estatal conseguiu, até o momento, resolver o problema de
cuidar das crianças de forma tão eficiente quanto a economia familiar. Na União
Soviética, houve algumas tentativas nesse sentido, mas, sem sucesso. Do mesmo
modo que não há economia de mercado que funcione de forma tão eficiente e barata
como ocorre em algumas situações em que se dá a junção da união da família com a
economia familiar em suas especificidades. A economia familiar tem seus próprios
modelos, suas próprias estruturas e seu próprio significado primordial que não
desaparece. Por isso, sob certas condições, a economia camponesa é mais eficiente do
que economias não-camponesas. Os membros da família e o modelo familiar básico
de bem-estar econômico estão envolvidos de forma particular num sistema de uso do
trabalho que não é trabalho assalariado, mas trabalho familiar. Daí a sua capacidade
para resolver problemas que outros tipos de economia não resolveriam de uma
maneira tão eficaz e pouco dispendiosa.
Se, por um lado, o capitalismo foi estudado profundamente e nós temos bons
estudos analíticos de seu modo de operação, assim como também temos estudos
relativamente bem desenvolvidos sobre a economia estatal e a organização da
economia pelo Estado, incluindo a crítica aplicada a essas economias, por outro lado.
Em relação a última forma de crítica, gostaria de mencionar o livro recente do
sociólogo norte-americano James Scott, Seeing Like the State3, quer dizer, o jeito do
estado olhar o mundo, que é uma crítica sistemática da economia estatal. Temos
menos conhecimento de economias familiares, e por isso menos entendimento delas.
Essa é uma razão pela qual o nosso entendimento de economias nacionais é
sempre falho na compreensão das margens. Há alguns problemas que estão
fundamentalmente ausentes e sem eles não conseguimos entender o que está
acontecendo. Podemos acrescentar que essa é a razão principal para o fato de que o
maior teórico da economia camponesa, Alexander Chayanov, é tão freqüentemente
utilizado pelos estudiosos da economia familiar e tão importante para entender
economias familiares como um certo tipo – um modelo, se quiser – de
3
SCOTT, James, Seeing Like the State: how certain schemes to improve the human condition have
failed, New Haven: Yale University Press, 1998. (Nota dos revisores)
27
Campesinato e Territórios em Disputa.
Eliane Tomiasi Paulino e João Edmilson Fabrini (Org.)
São Paulo: Expressão Popular, 2008.
4
Ver CHAYANOV, Alexander, La organización de la unidad económica campesina, Buenos Aires:
Ediciones Nueva Visión, 1974, disponivel em http://www4.fct.unesp.br/nera/telas/uso%20restrito.htm.
(Nota dos revisores.)
28
Teodor Shanin
Lições camponesas
29
Campesinato e Territórios em Disputa.
Eliane Tomiasi Paulino e João Edmilson Fabrini (Org.)
São Paulo: Expressão Popular, 2008.
Debate
Questão 1 - Ariovaldo Umbelino de Oliveira - USP
Professor Teodor, parabéns pela brilhante conferência que fez e muito obrigado
por continuar defendendo princípios que fizeram com que nós que não nos
conhecíamos pudéssemos acreditar naquilo que o Senhor tem dito nos seus livros e
nos seus textos. Então, a primeira fala é de gratidão. Gratidão que certamente de
agora em diante vai se somar às interlocuções que esperamos poder continuar a
estabelecer contigo. A minha questão refere-se aos processos que estão em
desenvolvimento na Europa, sobretudo em função da Política Agrícola Comum
(PAC) e a possibilidade que a Europa, sobretudo a Europa Ocidental, tem no sentido
de garantir esse processo de reprodução, de recriação do campesinato, que foi durante
muito tempo o esteio da economia e da produção de alimentos na Europa.
30
Teodor Shanin
Lições camponesas
5
Ver SHANIN, Teodor, Chayanov’s Message: Illuminations, Miscomprehensions, and the
Contemporary ‘Development Theory’ em Chayanov, A. V. The Theory of Peasant Economy, Madison:
The Unversity of Wisconsin Press, 1986. Ou, então, ver, CHAYANOV, Alexander, La organización
de la unidad económica campesina, Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1974, disponível em
http://www4.fct.unesp.br/nera/telas/uson%20restrito.htm. (Nota dos revisores.)
31
Campesinato e Territórios em Disputa.
Eliane Tomiasi Paulino e João Edmilson Fabrini (Org.)
São Paulo: Expressão Popular, 2008.
32
Teodor Shanin
Lições camponesas
33
Campesinato e Territórios em Disputa.
Eliane Tomiasi Paulino e João Edmilson Fabrini (Org.)
São Paulo: Expressão Popular, 2008.
quisermos. Camponeses que não têm terra suficiente para sobreviver, mas, ao mesmo
tempo, têm uma economia familiar, mostram a maioria das características do
campesinato em sua maneira de sobreviver e morar, mesmo que não sejam
encontrados neste caso todos os elementos da definição.
Gostaria de acrescentar o seguinte: quando nós comparamos os modelos com a
realidade, esta última é sempre mais complexa do que os modelos, e mais difícil de
apreender devidamente. Isso não significa que modelos são inúteis. Mas, tratar
modelos como se fossem realidade é inútil e perigoso. Modelos são modelos e é
importante que isso seja destacado para que possamos notar a diferença existente
entre o conceito e a realidade, caso contrário, perderemos nossa capacidade de
entender a realidade.
Eu acho que uma das características principais do campesinato é o fato de que
ele corresponde a um modo de vida, a uma combinação de vários elementos. Somente
após compreendermos que se trata de uma combinação de elementos e não de algo
sólido e absoluto é que começamos a entender realmente o que ele é. Porque, se
procurarmos uma realidade fixa, não vamos encontrar isso no campesinato. Houve
momentos de argumentos fortes sobre a definição do camponês no tempo em que eu
defino como a época em que eu era jovem e bonito. Argumentos fortes dizendo que,
sim, os camponeses são diversificados enquanto o proletariado é único e, portanto,
revolucionário. Aos quais eu respondi dizendo: “me mostra um grupo de proletários
reais que seja singular e consolidado.” Às vezes, podemos até encontrar um grupo
assim, mas isso é uma exceção, não a regra.
A classe operária normal também não é única, porque uma classe normal, o
campesinato e outros grupos, nunca é como o modelo. O modelo é uma coisa, a
realidade é outra. Isso é importante para você, que analisa o tipo de gente que
descreveu, que vive parcialmente com o dinheiro da aposentadoria proveniente do
Estado e parcialmente de outras fontes. O instrumento crucial para tudo isto, para a
sobrevivência deles, é a economia familiar. A economia familiar é um elemento mais
significativo para compreendermos quem o camponês é do que um modelo geral de
campesinidade
34
Teodor Shanin
Lições camponesas
Bom dia a todos, que lindo dia, professor eu estou um pouco nervosa, mas é
pela emoção, porque tê-lo aqui foi um sonho construído coletivamente por pelo
menos duas gerações, então eu tenho todo o direito de estar nervosa. Eu gostaria que
o professor nos desse um esclarecimento em relação ao debate em torno do
campesinato como classe no capitalismo, e principalmente a partir da perspectiva
marxista. Como o professor já falou e tem escrito, o campesinato se define
principalmente em função dessa economia doméstica, familiar, ou seja, ele vive da
sua mão-de-obra, só que ele também é um proprietário de terra. O professor o chamou
de classe mais baixa da sociedade. Será que essa posição dupla do camponês no
processo produtivo, de ser ao mesmo tempo dono dos meios de produção e dono da
força de trabalho, não produziria nele uma consciência ambígua no processo político
mesmo, muitas vezes, se envolvendo em movimentos mais conservadores de defesa
da terra e, outras vezes, se mobilizando através de movimentos sociais de contestação
da propriedade privada, de contestação do neoliberalismo? Eu gostaria de entender
um pouco melhor isso. Então, professor, pensando nas classes fundamentais de Marx,
me corrija se eu estiver equivocada, temos a classe burguesa, o proletariado e os
proprietários de terra. Os camponeses seriam uma quarta classe?
35
Campesinato e Territórios em Disputa.
Eliane Tomiasi Paulino e João Edmilson Fabrini (Org.)
São Paulo: Expressão Popular, 2008.
Capitalistas não são pessoas que têm capital e não fazem nada. Dizem que
muitos deles não trabalham, porque o trabalho é realizado em outros lugares. Mas, a
realidade é muito mais complexa. O uso de modelo exige que estejamos atentos ao
risco de eles se tornarem mal compreendidos e assim contribuírem para nos confundir
mais do que para entendermos a realidade. Como é que resolvemos esse problema,
então? Como entendermos o que é classe e o que não é classe? Eu acho que temos
que partir da abstração para a realidade. De fato, foi o que Marx fez com bastante
freqüência. Se pegarmos sua obra “O dezoito de Brumário de Luís Napoleão
Bonaparte”, temos aí uma definição de classes. As classes lutam entre si por objetivos
específicos e assim se definem enquanto tal. Elas não são definidas pelo fato de que,
em abstração, há os que não têm propriedade. Ninguém está perguntando se o sans-
culotte é proprietário ou não-proprietário, mas, se ele pega em armas para lutar contra
uma outra classe, ele é uma classe.
Marx gostava da expressão “classe para si”. A questão não é simplesmente uma
questão da posição da classe ou de sua situação objetiva em dada circunstância
analítica, mas diz respeito ao que as pessoas fazem. A partir desse espírito, eu diria
que para responder a pergunta sobre se os camponeses são uma classe, eu precisaria
fazer outra pergunta: o que é que eles fazem? Não o que eles são, mas o que eles
fazem. Porque é no fazer que as classes são definidas.
Neste sentido, os camponeses russos de 1905 a 1907 pegaram em armas,
lutaram e se tornaram uma classe. Sob opressão pesada, desistiram, mas, em 1917,
lutaram de novo e ficaram na luta até 1922 e definitivamente formaram uma classe. E
na atualidade, o campesinato russo é uma classe? Provavelmente não. Porquê? Não
por sua definição analítica, mas pela realidade da inexistência da luta de classes hoje
em dia. Esta não é uma posição anti-marxista, é uma posição marxista, é só olhar o
“Dezoito de Brumário”.
Agora, qual é a definição alternativa que eu gosto mais? Ela não é,
definitivamente, marxista. É uma definição derivada da antropologia clássica,
produzida pelo antropólogo chinês Fei Hsiao-Tung6, que não está vivo atualmente,
6
Às vezes, Fei Xaotong. Ver HSIAO-TUNG, Fei, “Peasantry and Gentry: an interpretation of Chinese
social structure and its changes”, em The American Journal of Sociology, Volume LII, July 1946,
Number I, p. 1-17. (nota dos revisores)
36
Teodor Shanin
Lições camponesas
37
Campesinato e Territórios em Disputa.
Eliane Tomiasi Paulino e João Edmilson Fabrini (Org.)
São Paulo: Expressão Popular, 2008.
hoje o movimento sindical mundial luta por 36 horas de trabalho semanal enquanto
que, na agricultura, o trabalho familiar impõe jornadas muito maiores, especialmente
para as mulheres e para essa nova geração? Não estaria aí, no trabalho familiar,
justamente uma armadilha que vai reduzindo esse modo de vida?
Resposta: Para começar, eu gostaria de, mais uma vez, fazer o movimento da
abstração para a realidade. É verdade que, no mundo em que vivemos, os camponeses
trabalham mais horas do que os operários. É quase sempre assim, inclusive quando
chega a época da colheita, no período de pico, tem camponeses que não dormem
nenhum pouco, porque este é o único jeito de manter-se. No entanto, temos que ser
mais precisos, porque o camponês enfrenta trabalho duro na época da safra, mas, fora
dela, não é bem assim. A situação do camponês na Sibéria, por exemplo, é a de um
verão muito curto, quando ele trabalha demais, e um inverno muito comprido, quando
ele trabalha muito pouco. Então, não é só uma simples questão de dizer que têm
trabalho demais.
Eles são, também, donos de seu próprio trabalho e assim são capazes de
escolher sua própria maneira de descansar, o que é importante. Se olharmos para o
camponês real, não o camponês abstrato, quando ele está trabalhando, veremos que
ele é capaz de sentar-se à sombra de uma árvore numa hora quente do dia e comer um
pouco da comida que trouxe de casa, saboreá-la ou até tirar uma soneca. Então,
quando o calor diminui, ele retoma o trabalho, e aí ele trabalha realmente pra valer e
termina o que tem que ser feito, só Deus sabe quando. Essa é uma peculiaridade do
trabalho camponês, é o trabalho de um homem que é dono do seu próprio trabalho e
pode decidir como utilizá-lo. Há pessoas que preferem trabalhar mais horas em seu
próprio trabalho, outras, preferem trabalhar oito horas diariamente e, depois disso,
ficar totalmente livre. Primeiramente, é parcialmente uma questão de escolha, de
cultura. Diferentes culturas esperam que você aja de diferentes maneiras.
No contexto russo, o qual eu conheço melhor do que o do Brasil, quando, em
algum momento, o camponês larga o campo e vai para a cidade, o primeiro motivo,
quase sempre, é a pressão da esposa. Geralmente, os homens gostavam da vila, da
comunidade rural. Eles gostavam de seu trabalho, gostavam de ser seu próprio patrão,
gostavam dessas horas em que podiam escolher quando descansar. Mas, o trabalho
38
Teodor Shanin
Lições camponesas
feminino nessas vilas é extremamente duro. Ele nunca pára: é criança, horta, lenha,
cozinha e outros tantos trabalhos domésticos.
Descobrimos em nossa pesquisa que muitas mulheres preferem ir para a cidade.
Elas pressionam os maridos para saírem do campo e se mudarem para a cidade. Na
maioria dos casos, quando nós perguntamos ao camponês: Porque você saiu do
campo? A resposta é, a minha mulher disse que ela não queria continuar sofrendo
com aquela vida, ou eu vinha para a cidade, ou ela se divorciaria de mim. Então, o
trabalho é duro, mas, pode ser aceitável ou não e isso se dá de forma diferente
conforme se trate de homem ou de mulher. O quanto o fato de ir para a cidade pode
tornar o trabalho mais fácil, não depende da busca por um menor esforço físico. A
maioria das pessoas que vão para a cidade são pessoas jovens, que não estão
necessariamente procurando um trabalho mais leve.. Eles estão geralmente em busca
de cinema, das luzes da cidade grande, de uma vida mais interessante que a cidade
pode oferecer em lugar da vila. Então, mais uma vez, não se trata de uma questão de
simples reposta. As pessoas migram por vários motivos e não muito frequentemente
por causa de trabalho ou de renda, mas, por muitas outras razões.
O trabalho camponês pode ser extremamente duro, dependendo da cultura, dos
diferentes tipos de agricultura e também das estações do ano. Algumas pessoas
preferem o trabalho agrícola, outras, odeiam esse tipo de trabalho. Neste sentido,
enquanto houver essa situação e enquanto houver campesinato, algumas pessoas vão
continuar a sair do campo para a cidade e eles devem ser apoiados em sua decisão. Eu
não vejo nada errado nisso, porque as pessoas devem ter a liberdade de encontrar o
melhor lugar para elas. E, se elas quiserem ficar e acharem a cidade interessante, esse
direito deve ser defendido. Eles também têm direito à mudança.
Mas, as dificuldades da vida agrícola têm mudado por causa da mecanização.
Agora, o trabalho de muitos camponeses é fundamentalmente mecanizado. Então, a
necessidade de realizar um esforço grande é menor. Mesmo assim, isso não acontece
em todos os lugares, há variações, etc. Alguns jovens, mesmo apresentando boa
escolaridade, preferem ficar nas vilas por motivos próprios. Eu posso dar um
exemplo. Você me fez lembrar que uma vez na Tanzânia, na África, caminhando no
campo, vendo como as pessoas trabalhavam, um trator se aproximou de mim. Eu fui
até o operador e pedi informação sobre como chegar na vila agrícola. Ele me orientou
39
Campesinato e Territórios em Disputa.
Eliane Tomiasi Paulino e João Edmilson Fabrini (Org.)
São Paulo: Expressão Popular, 2008.
Resposta: São várias questões dentro desta sua pergunta. Há a questão do que
aconteceu com as organizações dos kolkoses e sovkoses e há a questão sobre a direção
que a Rússia está tomando agora na organização do trabalho rural. Vamos começar
com a primeira questão. Quando houve o colapso da União Soviética, na maioria dos
lugares as fazendas coletivas foram abolidas. É importante notar que elas não foram
abolidas porque os camponeses disseram: “Nós não queremos os kolkoses, os
sovkoses, queremos uma nova vida sem eles”. Eles foram abolidos porque o governo
determinou que esta era a medida certa, sem sequer consultar os camponeses. Nesse
sentido, a reforma agrária ocorreu da mesma maneira que nos tempos da
7
SHANIN, Teodor, Campesinos y sociedades campesinas, México, Fondo de Cultura Económica,
1979.
8
Na historia da implementação da reforma agrária na União Soviética, algumas fazendas particulares
foram transformadas em fazendas do Estado através do processo de coletivização, criando os kolkoses,
e outras foram reunidas em sistema comunal, estabelecendo os sovkoses. (Nota dos revisores.)
40
Teodor Shanin
Lições camponesas
41
Campesinato e Territórios em Disputa.
Eliane Tomiasi Paulino e João Edmilson Fabrini (Org.)
São Paulo: Expressão Popular, 2008.
agricultura. Além disso, hoje em dia é preciso maquinário para tocar a agricultura. A
terra foi dividida como se fosse isso que eles quisessem, mas eles não tinham
maquinário e, ainda mais importante, não tinham crédito bancário para comprar
máquinas. O que foi especialmente difícil para os agricultores dos kolkoses foi que
eles tinham tratores pesados e nenhum maquinário leve. Isso se deve à opção feita no
período soviético pela criação de grandes unidades estatais, o que determinou uma
tendência nacional. Não havia como adquirir tratores leves porque eles não eram
produzidos na Rússia e a maioria das vilas não tinha recursos adequados. Mas, muitas
culturas da agricultura moderna precisam de tratores pequenos e não de grandes.
Algumas vilas, com bastante esforço, conseguiram comprar tratores na Holanda.
Outro problema que surgiu foi o de como comercializar a produção. No
período dos kolkoses, não havia problema porque o governo comprava os produtos e
os transportava, pagando um valor pré-estabelecido por eles. Agora os produtores
precisavam se ocupar disso também e ninguém sabia como comercializar. Alguns
deles formaram cooperativas para lidar com estes desafios, mas ninguém sabia como
criar uma cooperativa porque isso não é algo auto-evidente. É preciso aprender como
fazer isso, é preciso a ajuda de pessoas experientes, que queiram colaborar e saibam
como elas funcionam.
Depois de dois ou três anos, o que aconteceu? Os próprios camponeses re-
criaram os kolkoses. Há um número significativo de lugares onde existem kolkoses
hoje e não existiam antes porque o governo determinou que fossem desmembradas as
fazendas coletivas. Eles criaram os kolkoses, não por gosto da forma, mas porque não
sabiam mais o que fazer sem este modelo de organização. Em outros lugares, a
comunidade camponesa se reorganizou de uma maneira que lembra os sovkoses, mas
é diferente deles. A última vila que visitei na Rússia Central revelou-me esse novo
padrão. Trata-se de uma comunidade, mas tem um homem que controla tudo porque
ele é o único que tem um trator.
Eu perguntei para esse agricultor como era a vida dele antes da
descoletivização, quando a União Soviética ainda existia. Eu queria entender melhor
como foi que ele conseguiu estabelecer sua própria fazenda. E ele respondeu: “Eu era
o secretário do partido no distrito”. Então, ele não era um camponês comum. Ele
aprendeu a se organizar, a se relacionar com outras pessoas, a lidar com o banco, a ir
42
Teodor Shanin
Lições camponesas
até a cidade e aproveitar a viagem para comprar coisas e negociar suas necessidades.
Ele desenvolveu essas habilidades em uma boa escola, o partido comunista da região,
e aplicou esse conhecimento para melhorar a sua posição pessoal na nova economia.
Também o perguntei sobre o que fazia a mulher dele. Ele me respondeu: “Ela é
diretora da escola local”. Isso significou, então, que, desde o início da transição, ele
pode contar com um salário para garantir o sustento da família.
Então, há esse tipo de situação, que corresponde a um tipo de re-coletivização
com um fazendeiro exercendo o papel de diretor do sovkose com base nas habilidades
que aprendeu em sua carreira dentro do partido. Hoje em dia, então, tem produção
agrícola em fazendas coletivizadas, que foram recriadas, especialmente em lugares de
terras boas, principalmente no sul. De fato, o sistema lá é tão produtivo que o novo
governo não aboliu os kolkoses que existiam lá. Muitos têm os mesmos diretores que
tinham na época da União Soviética, homens bem mais preparados do que qualquer
um que o governo pudesse mandar. E, os camponeses sabem que é melhor assim. É
melhor ter a velha guarda competente do que apostar em um desconhecido ou tentar
fazer eles mesmos quando não têm a preparação adequada.
Em alguns lugares há os kolkoses, em outros, as fazendas particulares. Porém,
em uma vila com mais ou menos quarenta famílias, só encontramos dois ou três
agricultores e o resto é um grupo de bêbedos que não sabem o que fazer. Há as vilas
onde moram só algumas velhinhas e ninguém mais. Essas mulheres sobrevivem com
aposentadorias. São vilas mortas e, é só uma questão de tempo, elas vão desaparecer.
Isso é uma questão preocupante para o meio-ambiente, inclusive a água.
Agora, o futuro, quer dizer, o futuro em termos do que já aconteceu nos últimos
cinco anos. Vários ex-kolkose e ex-sovkose foram dominados pelo agronegócio. O
agronegócio é, na maioria, de capital nacional, local, russo, não de capital estrangeiro.
Por exemplo, há grandes companhias de gás que compraram grandes parcelas de terra
e estabeleceram grandes fazendas com produção em larga escala; há algumas
empresas médias que também conseguiram fazer a mesma coisa. Geralmente, essas
empresas acumularam capital em outras atividades como o comércio e depois
decidiram investir no campo.
Atualmente, há um discurso na Rússia, principalmente articulado pelos
funcionários do Ministério da Agricultura, que defende que o futuro da Rússia está
43
Campesinato e Territórios em Disputa.
Eliane Tomiasi Paulino e João Edmilson Fabrini (Org.)
São Paulo: Expressão Popular, 2008.
Questão 7
Maria Franco Garcia - UFPB
Na sua fala, professor, o Sr. apresentou um caminho para a apreensão da
realidade camponesa e este caminho estava localizado, com grande ênfase, nas
estratégias que os camponeses desenvolvem para se inserir de forma diferenciada na
economia estatal, na economia de mercado. E, estas estratégias partiam,
evidentemente, pela minha compreensão, da esfera da reprodução. A criação é um
momento fundamental em que o campesinato desenvolve suas estratégias. Como foi
colocado, nessa esfera da reprodução, existe um ser camponês homem e um ser
camponês mulher e o papel desse ser camponês mulher de reproduzir e criar a
unidade familiar é fundamental em todas as sociedades, do passado e do presente.
Durante minha pesquisa de doutorado, eu tive a oportunidade de acompanhar um
movimento camponês no Brasil, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST). Na ocasião, eu observei que a divisão sexual do trabalho no universo
camponês é um elemento que limita muitas vezes a inserção da mulher camponesa
em movimentos políticos que poderiam politizar essa mulher, movimentos que lutam
pelo universo camponês como um todo. Como o senhor tem uma experiência muito
mais ampa das lutas e do universo do camponês e, de fato, é só por meio deles que
poderemos encontrar respostas, eu pergunto,qual a sua análise da relação entre gênero
e política entre os camponeses? Existem de fato, em algum lugar ou tempo, luzes,
estratégias ou movimentos camponeses significativos que contestem o Estado, o
neoliberalismo, a opressão, e que não tenham reproduzido a opressão da mulher
camponesa através do trabalho diferenciado entre homens e mulheres no campo?
44
Teodor Shanin
Lições camponesas
45
Campesinato e Territórios em Disputa.
Eliane Tomiasi Paulino e João Edmilson Fabrini (Org.)
São Paulo: Expressão Popular, 2008.
uma família que não tinha homens, o único homem que havia ficou velho ou morreu;
ou não há mulher, a mulher morreu, talvez até num acidente ou outras coisas dessa
natureza. Se analisarmos, veremos exatamente onde é que está o desastre que levou as
famílias à pobreza, e não há maneira de resolver isso sem resolver o problema de falta
de fatores de produção.
Normalmente, os camponeses resolviam seus problemas. Por isso, a maioria
dos camponeses pobres da Rússia não ficava pobre para sempre. Depois de um
período de pobreza, eles começavam a melhorar, começavam a subir na vida de novo.
Quando vamos estudar por que eles saíam dessa condição, vemos que, quase sempre,
o fator de produção que anteriormente estava faltando entrou na equação da unidade
de produção de novo e não estava mais em falta. Como? Através do casamento.
O casamento de um camponês russo não acontece porque o menino conhece a
menina, se apaixona e casa. No casamento do campesinato é diferente, ninguém está
interessado em quem gosta de quem. Primeiro, são os pais que decidem quem vai
casar. Como é que eles decidem? Muito freqüentemente é o menino que tem cavalo
que vai se casar com a menina que tem vaca. Ou, então, uma menina que tem terra se
casa com um menino com força de trabalho. Não é um casamento com sentido
romântico, como o adotado pelas comunidades européias, por exemplo. É um
casamento entre cavalo, terra e a força de trabalho, esse é o casamento que existe.
Quando isso acontece, podemos notar, por meio dos estudos dinâmicos, que tais
propriedades se fortalecem repentinamente na maioria dos casos. Essa é a maneira de
o camponês resolver o seu problema. Porque os camponeses não são passivos, eles
são ativos na defesa de seus interesses e eles sabem qual é a solução a tomar. Eles
sabem muito melhor do que os acadêmicos como solucionar os seus problemas.
Durante uma etapa de minha carreira, eu estudei os camponeses poloneses e
lhes perguntei como resolviam o problema quando havia dois filhos homens na
família, porque a terra tem que ser dividida para os dois, já que a terra vai para o filho
homem. Neste caso, a propriedade pode se torna tão pequena após ser dividida, que
ela deixa de ser suficientemente produtiva para garantir os interesses da família.
Então, eu perguntei aos historiadores poloneses que estudam a agricultura o que eles
fazem numa situação como essa. “É simples”, eles responderam. “Simples?” “Sim, o
pai pega os dois filhos homens e os leva até o padre da comunidade, indagando qual é
46
Teodor Shanin
Lições camponesas
esperto e qual é estúpido”. Na maioria dos casos, o padre de uma vila agrícola
também é o professor da comunidade e, por isso, sabe quem é esperto e quem é
estúpido no sentido acadêmico. Com base na avaliação do padre, o camponês decide
sobre o destino de seus filhos. Ele manda aquele que é mais inteligente para o
seminário para se tornar padre e dá a terra para o mais estúpido. Isso acontece há
muitas gerações e é um fato documentado, inclusive.
O resultado dessa prática é que alguns desses que saíram se tornaram
intelectuais. Alguns ex-camponeses, ou seja, filhos de camponês, tornaram-se
professores destacados. Eu perguntei a um professor amigo meu como é que ele era o
químico mais importante da Universidade de Varsóvia tendo nascido camponês. A
resposta foi a seguinte: “Meu pai me mandou para o seminário porque foi o que o
padre sugeriu. Mas, eu não gostei do seminário. A disciplina era rígida mas, o mais
importante, foi que eu queria uma mulher.” Então, ele saiu do seminário e entrou na
universidade e se tornou o químico mais importante do país naquela época.
Nesse sentido, a estratégia dos camponeses de combinar os fatores
demográficos e econômicos, com um bom entendimento do que isso significa, é
freqüentemente a maneira de resolver esse tipo de problema e também de estabelecer
o status da mulher. Porque, se a mulher não tiver um homem para trabalhar, ela estará
impossibilitada de permanecer como agricultora. Então, ela tem que resolver esse
problema por meio do casamento.
A questão das relações de gênero não foi adequadamente estudada e analisada
e, sem dúvida, tem muito mais para ser feito. Porém, os pesquisadores da última
geração têm dado mais atenção a isso e hoje há mais estudos disponíveis sobre essa
temática.
47